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O Ultimo Adeus de Sherlock Holmes

Date post: 10-Mar-2016
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Vila Glicínia I — A estranha aventura do sr. John Scott Eccles — Ridículo, extravagante... — sugeri. Este texto digital reproduz a tradução de Wisteria Lodge publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto Aguiar. Título original: Wisteria Lodge Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1908 Sobre o texto em português
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Arthur Conan Doyle Vila Glicínia Título original: Wisteria Lodge Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1908 Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de Wisteria Lodge publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto Aguiar. I — A estranha aventura do sr. John Scott Eccles Vejo anotado em meu bloco que se tratava de um dia muito frio e ventoso, em fins de março de 1892. Holmes recebera um telegrama, enquanto almoçávamos, e rabiscara às pressas uma resposta. Apesar de nada ter dito, percebia-se que o assunto ainda o preocupava, pois fora postar-se em seguida diante da lareira com ar pensativo, fumando o cachimbo e lançando ocasionalmente um olhar para o telegrama que tinha nas mãos. Subitamente, voltou-se para mim com um brilho malévolo no olhar. — Suponho, Watson, que você pode ser considerado um homem de letras. Como definiria a palavra "grotesco"? — Ridículo, extravagante... — sugeri. — Há certamente mais alguma coisa além disso — observou Holmes abanando a cabeça. — Uma sugestão dissimulada do trágico e do terrível. Se procurar recordar-se de algumas dessas narrativas com que tem atormentado um público paciente, verificará como é tênue a fronteira entre o grotesco e o criminoso. Lembre-se do incidente dos homens ruivos. Era bastante grotesco na aparência, e todavia terminou numa audaciosa tentativa de roubo. Ou então daquele outro, mais grotesco ainda, das cinco sementes de laranja, que terminou
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Page 1: O Ultimo Adeus de Sherlock Holmes

Arthur Conan Doyle

Vila Glicínia

Título original: Wisteria Lodge Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1908

Sobre o texto em português

Este texto digital reproduz atradução de Wisteria Lodge publicado em

As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V,editado pelo Círculo do Livro

e com tradução de Álvaro Pinto Aguiar.

I — A estranha aventura do sr. John Scott Eccles

Vejo anotado em meu bloco que se tratava de um dia muito frio e ventoso, em fins demarço de 1892. Holmes recebera um telegrama, enquanto almoçávamos, e rabiscara àspressas uma resposta. Apesar de nada ter dito, percebia-se que o assunto ainda opreocupava, pois fora postar-se em seguida diante da lareira com ar pensativo, fumando ocachimbo e lançando ocasionalmente um olhar para o telegrama que tinha nas mãos.Subitamente, voltou-se para mim com um brilho malévolo no olhar.

— Suponho, Watson, que você pode ser considerado um homem de letras. Como definiriaa palavra "grotesco"?

— Ridículo, extravagante... — sugeri.

— Há certamente mais alguma coisa além disso — observou Holmes abanando a cabeça.— Uma sugestão dissimulada do trágico e do terrível. Se procurar recordar-se de algumasdessas narrativas com que tem atormentado um público paciente, verificará como é tênue afronteira entre o grotesco e o criminoso. Lembre-se do incidente dos homens ruivos. Erabastante grotesco na aparência, e todavia terminou numa audaciosa tentativa de roubo. Ouentão daquele outro, mais grotesco ainda, das cinco sementes de laranja, que terminou

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numa conspiração homicida. Essa palavra põe-me sempre de sobreaviso.

— Tem-na aí? — perguntei.

Holmes leu o telegrama em voz alta:

"Acaba de me suceder algo de terrível e grotesco. Posso consultá-lo? — Scott Eccles,Repartição dos Correios, Charing Cross".

— Homem ou mulher? — indaguei.

— Homem, naturalmente. Nenhuma mulher enviaria um telegrama com resposta paga. Teriavindo pessoalmente.

— Vai recebê-lo?

— Meu caro Watson, você sabe que vida aborrecida levo desde que conseguimos meter ocoronel Carruthers na prisão. Meu cérebro é uma espécie de máquina veloz, que se reduz apedaços quando não é aplicada no trabalho para o qual foi construída, A vida é umasucessão de fatos corriqueiros, e os jornais andam fastidiosos; parece que a audácia e oespírito de aventura desapareceram para sempre domundo do crime. Como, então, você pode me perguntar se estou disposto a examinarqualquer novo problema, por mais trivial que possa parecer? Mas, se não me engano, aívem nosso cliente.

Ouviram-se passos cadenciados na escada e, instantes depois, era introduzido na salaum homem alto e corpulento, de suíças e bigodes grisalhos e ar solene e respeitável. Ahistória de sua vida revelava-se na fisionomia grave e nos modos circunspectos. Daspolainas aos óculos de aros de ouro, era a figura típica do conservador, homem religioso,bom cidadão, ortodoxo e intransigente respeitador dos preceitos sociais. Entretanto, algode extraordinário devia ter-lhe alterado a natural compostura e deixado vestígios noscabelos revoltos, no rosto rubro e encolerizado e nos gestos nervosos e agitados. Entrousem mais delongas no assunto que o preocupava:

— Aconteceu-me algo extremamente esquisito e desagradável, sr. Holmes — principiou. —Jamais me encontrei em situação semelhante. É positivamente indecorosa... ultrajante.Tenho o direito de exigir uma explicação!

Estava de tal modo enraivecido que bufava de cólera e tinha o rosto tumefacto.

— Queira sentar-se, sr. Scott Eccles — disse Holmes em tom brando. — Antes de maisnada, permita-me que lhe pergunte por que resolveu procurar exatamente a mim.

— Porque não me pareceu que o caso pudesse interessar à polícia. Todavia, quando lhetiver exposto os fatos, verá que eu não poderia deixar as coisas como estavam. Nuncasimpatizei com a classe dos detetives particulares. Não obstante, como ouvi falar dosenhor...

— Perfeitamente. Mas, em segundo lugar, por que não veio imediatamente?

— O que quer dizer?

Holmes consultou o relógio.

— São duas e um quarto — disse. —Seu telegrama foi-me expedido por voltada uma hora. Contudo, quem olhar paraseu aspecto e seu traje não poderádeixar de notar que sua inquietação datado momento em que se levantou.

Nosso cliente alisou o cabelodespenteado com as mãos e tocou com

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os dedos o rosto, que estava com abarba por fazer.

— Tem razão, sr, Holmes. Nem sequerpensei em me arrumar. Nunca maischegava a hora de deixar aquela casa.Antes, porém, de vir para cá, andei pordiversos lugares em busca deinformações. Falei com os agentes doproprietário da casa, e elesdisseram-me que o sr. Garcia tinha pagopontualmente o aluguel e que tudo

estava em ordem com relação à Vila Glicínia.

— Calma, calma, meu caro — disse Holmes, rindo. — O senhor até parece o meu amigo,dr. Watson, que tem o mau hábito de contar suas histórias começando pelo fim. Queiraordenar as idéias e contar-me, na devida seqüência, quais foram de fato os acontecimentosque o fizeram sair de casa despenteado, com a roupa por escovar, as botinas e o coletemal-abotoados, à procura de conselho e auxílio.

Nosso cliente lançou um compungido olhar à sua própria aparência em desalinho.

— Devo ter-lhe causado uma péssima impressão, sr. Holmes, e não me recordo de, emtoda a minha vida, me ter sucedido tal coisa. Mas vou contar-lhe tudo o que aconteceu, e,quando tiver terminado, estou certo de que encontrará razão de sobra para me desculpar.

Não chegou, porém, a iniciar a narrativa. Ouviu-se um ruído do lado de fora, e dali ainstantes a sra. Hudson abria a porta para fazer entrar dois indivíduos robustos que, peloaspecto, pareciam pertencer à polícia, um dos quais era, na verdade, nosso bem conhecidoinspetor Gregson, da Scotland Yard, funcionário enérgico, brioso e, dentro de suaspossibilidades, capaz. Apertou a mão de Holmes e apresentou seu companheiro, o inspetorBaynes, do comissariado de Surrey.

— Estamos ambos empenhados numa caça, sr. Holmes, e nossa pista trouxe-nos até aqui.— Ao dizer isso, voltou para nosso visitante seus olhos de buldogue. — É, por acaso, o sr.John Scott Eccles, da Popham House, Lee?

— Exatamente.

— Andamos em seu encalço toda a manhã.

— Sem dúvida, foi o telegrama que lhes deu o rastro — interpôs Holmes.

— Precisamente. Farejamos a pista na agência postal de Charing Cross, e elaconduziu-nos até sua casa.

— Mas por que me seguem? O que querem de mim?

— Queremos ouvi-lo, sr. Scott Eccles, a respeito dos acontecimentos que redundaram namorte, ontem à noite, do sr. Aloysius Garcia, na Vila Glicínia, nos arredores de Esher.

Nosso cliente endireitou-se na cadeiracom os olhos esbugalhados, enquanto ascores lhe fugiam do rosto atônito.

— Morto? O senhor diz que ele está morto?

— Sim, ele está morto.

— Mas como? Um acidente?

— Assassinato, sem a menor sombra dedúvida.

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— Santo Deus! Isso é horrível! O senhorquer dizer... que eu sou suspeito?

— Foi encontrada uma carta no bolso domorto, e por ela ficamos sabendo que osenhor tencionava passar a noite de ontemem casa dele.

— É verdade.

— Oh! Deveras?

O inspetor tirou prontamente do bolso seu caderno de notas.

— Espere um pouco, Gregson — disse Sherlock Holmes. — Tudo o que você deseja éouvir-lhes as declarações, não é verdade?

— E é meu dever prevenir o sr. Scott Eccles de que elas podem ser usadas contra ele.

— O sr. Eccles ia contar-nos sua história quando você entrou. Creio, Watson, que umuísque com soda não lhe faria mal. E agora, caro sr. Eccles, aconselho-o a que não seimporte com esse aumento de auditório e nos conte tudo, exatamente como o faria se nãotivesse sido interrompido.

Nosso visitante ingeriu de um trago a bebida, e a cor voltou-lhe às faces. Lançando umolhar indeciso ao caderno de notas do inspetor, deu início, sem mais demora, a seuextraordinário depoimento.

— Sou solteiro — disse — e, como tenho um temperamento sociável, possuo largo círculode amizades. Entre estas, encontra-se a família de um antigo fabricante de cervejachamado Melville, residente na Albemarle Mansion, em Kensington. Foi à sua mesa queconheci, há algumas semanas, um rapaz de nome Garcia. Era, ao que soube, de origemespanhola, e tinha uma ligação qualquer com a embaixada. Falava perfeitamente o inglês e,além de muito afável no trato, era um dos homens mais belos que já vi em toda a minhavida.

"Entre mim e esse rapaz manifestou-se imediatamente uma sincera amizade. Ele pareciater simpatizado comigo desde aquele primeiro encontro, e, dali a dois dias, foi visitar-meem Lee. Uma coisa puxa outra, e acabou por me convidar para passar alguns dias em suaresidência — a Vila Glicínia —, situada entre Esher e Oxshott. Ontem à noite dirigi-me aEsher a fim de atender ao convite.

"Antes de minha ida, ele me falara sobre o pessoal a seu serviço. Morava com um criadodedicado, seu compatriota, que cuidava de todas as suas necessidades. Esse homem, quesabia falar inglês, tomava conta da casa. Contou-me que tinha também um magníficocozinheiro, um mestiço que encontrara em suas viagens, capaz de servir excelentesjantares. Lembro-me de me ter chamado a atenção para a singularidade de tal criadagemem pleno coração de Surrey, e de eu ter concordado, embora viesse a verificar que eramuito mais singular do que havia imaginado.

"Fui de carro para lá... cerca de três quilômetros ao sul de Esher. A casa era de bomtamanho, um pouco distante da estrada, e tinha-se acesso a ela por uma sinuosa vereda,ladeada de arbustos. Tratava-se de um velho edifício, em péssimo estado de conservação.Quando o carro parou no caminho coberto de mato, diante da porta manchada eescurecida pelo tempo, tive dúvidas quanto a meu bom senso em visitar um homem queafinal só conhecia superficialmente. Ele próprio veio me abrir a porta, e recebeu-me comprovas de grande cordialidade. Fui entregue aos cuidados do criado, indivíduo de tezescuríssima e ar melancólico, que me conduziu a meu quarto, levando minha maleta. Todoo ambiente era desalentador. Jantamos sós, e, apesar de o dono da casa fazer o possívelpor se mostrar amável, o curso de seus pensamentos parecia interromper-se de vez emquando, e sua conversa era tão vaga e desconexa que eu tinha dificuldade em segui-la.

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Tamborilava constantemente com os dedos na mesa, mordiscava as unhas e dava outrostantos sinais de inquietação nervosa. Quanto ao jantar, não foi nem bem servido, nem bempreparado, e a sombria presença do taciturno criado não contribuía decerto para nosalegrar. Afianço-lhes que muitas vezes, durante aquela noite, desejei poder inventarqualquer desculpa que me permitisse regressar a Lee.

"Recordo-me de um fato que talvez tenha certa relação com o caso que essescavalheiros estão investigando. Naquela ocasião, não lhe dei grande importância. Quase nofim do jantar, o criado apareceu com um bilhete. Notei que, depois de lê-lo, Garciatornou-se ainda mais distraído e nervoso. Renunciando a qualquer pretexto deconversação, recostou-se numa cadeira, fumando cigarros consecutivos, absorto em seuspróprios pensamentos, sem fazer o menor comentário ao conteúdo do bilhete. Senti-mesatisfeito quando, por volta das onze horas, nos fomos deitar. Algum tempo depois, Garciaapareceu à porta do meu quarto (o quarto estava às escuras nessa ocasião) eperguntou-me se eu tinha tocado a campainha. Disse-lhe que não. Pediu-me desculpas porme ter incomodado a hora tão avançada, dizendo já ser quase uma da madrugada.Adormeci depois disso, e dormi profundamente o resto da noite.

"E agora chego à parte mais espantosa de minha história. Quando acordei, já era diaclaro. Consultei o relógio e verifiquei serem quase nove horas. Insistira na véspera para queme chamassem às oito, e por isso tal esquecimento surpreendeu-me muitíssimo. Saltei dacama e toquei a campainha para chamar o criado, mas não obtive resposta. Voltei a tocá-larepetidas vezes, com o mesmo resultado. Cheguei então à conclusão de que estavaavariada. Vesti-me às pressas, e de péssimo humor desci rapidamente a escada, a fim depedir um pouco de água quente. Poderão imaginar minha surpresa ao ver que não havianinguém. Pus-me a gritar no vestíbulo, sem obter resposta. Percorri, então, todos osaposentos. Não encontrei ninguém. O dono da casa, na véspera, mostrara-me seu quarto.Bati-lhe à porta. Nada. Dei volta à maçaneta e entrei. O aposento estava vazio, e a camanão fora ocupada. Tinha-se ido com os outros. O patrão estrangeiro, o criado estrangeiro,o cozinheiro estrangeiro, todos tinham desaparecido durante a noite! Assim terminou minhavisita à Vila Glicínia."

Sherlock Holmes esfregou as mãos e sorriu satisfeito, diante da perspectiva deacrescentar mais esse estranho incidente à sua coleção de episódios fantásticos.

— Sua aventura, pelo que vejo, é positivamente excepcional. Poderá dizer-me, sr. Eccles, oque fez depois?

— Estava furioso. Minha primeira impressão foi ter sido vítima de qualquer brincadeira demau gosto. Arrumei minhas coisas, bati a porta atrás de mim e pus-me a caminho deEsher, carregando minha maleta. Dirigi-me ao escritório dos irmãos Allan, os maisimportantes corretores de imóveis da cidade, e soube que a vila tinha sido alugada porintermédio deles. Parecia-me difícil acreditar que aquilo constituísse um simples plano parame fazer passar por tolo, e comecei a pensar que o principal objetivo fosse fugir aopagamento do aluguel. Estamos no fim de março, e o vencimento trimestral está próximo.Essa hipótese, porém, logo caiu por terra. O agente agradeceu-me a informação, masdisse-me que o aluguel havia sido pago adiantado. Tomei, então, o caminho de Londres, eprocurei a embaixada espanhola. Ninguém ali conhecia o homem. Depois disso, fui procurarMelville, em cuja casa eu fora apresentado a Garcia. No entanto, averiguei que, narealidade, ele o conhecia ainda menos do que eu. Finalmente, quando recebi sua respostaa meu telegrama, vim para cá, pois sei que o senhor é pessoa capaz de dar bonsconselhos em casos difíceis. Entretanto, inspetor, vejo agora pelo que disse quando entrouque a história não termina aqui e deve ter ocorrido uma tragédia. Posso afirmar-lhe queminhas palavras correspondem à pura verdade e que, além do relatado por mim, nada maissei sobre o destino desse homem. Meu único desejo é auxiliar a justiça em tudo quanto mefor possível.

— Estou certo disso, sr. Scott Eccles, estou certo disso — proferiu o inspetor Gregson, emseu tom mais cordial.

— Sinto-me na obrigação de lhe dizer que tudo o que acaba de nos referir está em perfeitoacordo com os fatos chegados a nosso conhecimento. Por exemplo, aquele bilheteentregue durante o jantar. Notou, por acaso, o que foi feito dele?

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— Sim, Garcia amarrotou-o e atirou-o ao fogo.

— Que diz a isso, sr. Baynes?

O detetive provinciano era umhomem gordo, rubicundo, semprebufando, e seu rosto de aspectogrosseiro era suavizado por dois olhosde extraordinária vivacidade, quaseocultos entre as saliências dasbochechas e da testa. Com um lentosorriso, tirou do bolso um pedaço depapel descolorido e amarrotado.

— Havia uma grade diante da lareira,sr. Holmes, e ele deve ter errado apontaria. Apanhei-o do lado de fora,sem que as chamas o tivessematingido.

Holmes sorriu com ar de aprovação.

— O senhor deve ter examinado a casacom muito cuidado para encontrar uma bola de papel como essa.

— De fato, é meu sistema. Quer que o leia, sr. Gregson?

O inspetor londrino acenou afirmativamente com a cabeça.

— O bilhete está escrito em papel pautado comum, sem filigrana. É a quarta parte de umafolha, e foi cortado em dois sentidos com uma tesoura de lâmina curta. Foi dobrado trêsvezes e selado com lacre vermelho, colocado às pressas e comprimido com um objetochato e oval. Está endereçado ao sr. Garcia, Vila Glicínia, e diz: "Nossas cores, verde ebranco. Verde aberto, branco fechado. Escada principal, primeiro corredor, sétima àdireita, estofo verde. Boa sorte. D." A letra é de mulher, e foi escrita com pena de pontafina, mas o endereço foi feito com outra pena ou por outra pessoa. Como pode ver,trata-se de uma caligrafia mais grossa e firme.

— O bilhete é deveras extraordinário — comentou Holmes, examinando o papel. — Devocumprimentá-lo, sr. Baynes, pela atenção que dispensou aos pormenores na análise feita.Poderíamos talvez acrescentar algumas minudências sem importância. O sinete oval é, semdúvida, uma abotoadura de punho; que outro objeto pode ter tal formato? A tesoura usadadeve ter sido uma tesourinha de unha, de ponta recurva, pois, apesar de os cortes seremcurtos, nota-se distintamente em cada um deles a mesma ligeira curvatura.

O detetive deu uma risadinha.

— Julguei ter espremido todo o suco desse bilhete, mas vejo que ainda sobrou algumacoisa — disse. — Confesso que não compreendo nada dele, a não ser que nosencontramos diante de um caso grave, cuja figura central, como de costume, é uma mulher.

Durante essa conversa, Scott Eccles estivera em contínua agitação em sua cadeira.

— Alegra-me que tenha encontrado o bilhete, pois ele vem corroborar meu depoimento —disse. — Tomo, porém, a liberdade de observar que ainda não me contaram o queaconteceu ao sr. Garcia e a seus criados.

— Quanto a Garcia — disse Gregson —, é fácil responder. Foi encontrado morto estamanhã em Oxshott Common, a cerca de um quilômetro e meio de distância de sua casa.Reduziram-lhe a cabeça a um amontoado informe de carne sangrenta, mediante golpesviolentíssimos desferidos com um saco de areia ou outro objeto semelhante, que, mais doque feri-lo, esmigalhou literalmente seu crânio. O lugar é deserto, e a casa mais próxima

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fica a quatrocentos metros. Aparentemente, recebeu o primeiro golpe pelas costas; dequalquer modo, o assaltante continuou a golpeá-lo muito tempo depois de ele já estarmorto. Deve ter sido uma agressão inesperada e brutal. Não havia pegadas no local, nem omenor indício que nos pudesse pôr na pista dos assassinos.

— Houve roubo?

— Não; não se trata de tentativa de roubo.

— É muito doloroso... doloroso e terrível — comentou Scott Eccles em voz trêmula. —Mas, para mim, a situação é particularmente trágica. Nada tenho a ver com o fato de meuamigo ter saído para uma excursão noturna que o fez encontrar tão triste fim. Como possoestar implicado neste caso?

— Por um motivo muito simples — respondeu o inspetor Baynes. — O único documentoencontrado no bolso do morto era uma carta sua, na qual o senhor dizia que iria fazer-lheuma visita exatamente na noite em que ele morreu. Foi o envelope dessa carta que nosrevelou o nome e o endereço da vítima. Já passava das nove da manhã quando chegamosà casa dele, onde não encontramos nem o senhor nem mais ninguém. Telegrafei a Gregsonpara procurá-lo em Londres, enquanto examinava a Vila Glicínia. Vim então para a cidade,reuni-me a Gregson, e aqui estamos.

— Creio que agora — disse Gregson, levantando-se — é melhor darmos a esse assuntoum caráter oficial. Faça o favor de nos acompanhar até o posto policial, sr. Scott Eccles, afim de tomarmos suas declarações por escrito.

— Perfeitamente; estou às ordens. Mas ainda necessito de seus serviços, sr. Holmes, epeço-lhe que não poupe dinheiro nem trabalho para descobrir a verdade. Meu amigo voltou-se para o detetive de Surrey.

— Espero que não se oponha a que lhe dê minha colaboração, sr. Baynes.

— Pelo contrário, eu me sentirei muito honrado, sr. Holmes.

— O senhor parece ter sido muito pronto e eficiente em tudo o que fez. Poderiainformar-me se havia algum indício quanto à hora em que se deu a morte desse homem?

— Ele estava desde uma hora da madrugada no lugar em que o encontramos. Tinhachovido mais ou menos a essa hora, e sua morte deve ter ocorrido antes da chuva.

— Mas isso é absolutamente impossível, sr. Baynes — exclamou nosso cliente. — A voz deGarcia era inconfundível e posso jurar-lhes que foi ele próprio que falou comigo, em meuquarto, a essa mesma hora.

— É esquisito, mas não de todo impossível — comentou Holmes, sorrindo.

— O senhor já tem alguma idéia? — perguntou Gregson.

— À primeira vista, o caso não me parece muito complexo, se bem que apresenteinegavelmente alguns aspectos novos e interessantes. Todavia, é preciso que eu tenhamelhor conhecimento dos fatos antes de poder aventurar uma opinião definida. A propósito,sr. Baynes, encontrou alguma outra coisa digna de nota, além do bilhete, quando examinoua casa?

O detetive fixou meu amigo de maneira estranha.

— Sim; descobri uma ou duas coisas muito singulares. Talvez, depois de terminado meuserviço no posto policial, o senhor possa se encontrar comigo e dar sua opinião a esserespeito.

— Estou inteiramente à sua disposição — disse Sherlock Holmes, tocando a campainha. —Queira acompanhar estes senhores até a porta, sra. Hudson, e fazer o favor de mandar o

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rapaz expedir este telegrama. Deve ser enviado com resposta paga de cinco xelins.

Permanecemos sentados, em silêncio, durante algum tempo, depois de nossos visitantesse terem retirado. Holmes fumava incessantemente, as sobrancelhas contraídas sobre osolhos penetrantes, a cabeça inclinada para diante, na atitude de intensa concentração quelhe era característica.

— Então, Watson — perguntou, voltando-se subitamente para mim —, que pensa de tudoisso?

— Não consigo compreender nada dessa trapalhada em que Scott Eccles se meteu.

— Mas e o crime?

— Bem, se tomarmos em consideração o desaparecimento dos companheiros da vítima,diria que eles devem estar de algum modo comprometidos com o assassinato, e quefugiram da justiça.

— Esta é, sem dúvida, uma hipótese viável. Por outro lado, deve convir que é muitoestranho que os dois criados tivessem conspirado contra Garcia e o tivessem atacadojustamente numa noite em que ele tinha um hóspede. Tinham-no sozinho, à sua mercê,qualquer outra noite da semana.

— Então, por que fugiram?

— Precisamente. Por que fugiram? É um fato importante; outro fato muito importante é asingular aventura de nosso cliente Scott Eccles. Ora, meu caro Watson, estará fora doslimites do engenho humano atinar com uma explicação para esses dois fatos importantes?Se se pudesse com tal explicação desvendar também o mistério daquele bilheteenigmático, com sua extravagante fraseologia, então valeria a pena aceitá-la como hipóteseprovisória. E se os fatos ulteriores, que chegarem a nosso conhecimento, se adaptarem aoesquema, nossa hipótese, então, pode pouco a pouco tornar-se uma solução.

— Mas qual é essa hipótese?

Holmes recostou-se na cadeira, os olhos semicerrados.

— Como deve concordar, meu caro Watson, a idéia de uma brincadeira é inaceitável. Algode grave estava para acontecer, como muito bem o demonstra a seqüência dos fatos, e oconvite feito a Scott Eccles para ir à Vila Glicínia deve ter qualquer relação com isso.

— Mas qual é a possibilidade dessa relação?

— Sigamos nossa argumentação ponto por ponto. De início, existe alguma coisa irrealnessa amizade súbita e estranha entre o jovem espanhol e Scott Eccles. Foi o primeiro quea forçou, visitando Eccles no outro extremo de Londres logo no dia seguinte àquele em queo conheceu, e mantendo-se em estreito contato com ele até conseguir fazê-lo ir a Esher.Ora, o que pretendia esse homem com relação a Eccles? O que Eccles poderiaoferecer-lhe? Não vejo nessa personagem nenhum atrativo; não é particularmente dotadode inteligência, nem possui gênio capaz de agradar ao espírito vivaz de um latino. Então,por que foi escolhido, entre tantos outros que Garcia conheceu, como especificamente útil aseu propósito? Terá ele alguma qualidade relevante? Creio que sim. É o protótipo daconvencional respeitabilidade britânica, e justamente o homem suscetível de impressionar,com o próprio testemunho, um outro britânico. Você próprio acabou de verificar que nenhumdos inspetores sequer sonhou em pôr em dúvida seu depoimento, por mais extraordinárioque pareça.

— Mas o que deveria ele testemunhar?

— Nada, como as coisas se deram; tudo, porém, se elas tivessem corrido diversamente. Éassim, pelo menos, que interpreto a situação.

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— Percebo; ele talvez pudesse servir para provar um álibi.

— Exatamente; poderia servir para provar um álibi. Suponhamos, para argumentar, que osocupantes da Vila Glicínia estivessem metidos em alguma empresa suspeita. Esta, fossequal fosse, deveria ser executada, digamos, antes da uma hora. Adiantando os relógios, éperfeitamente possível que tivessem feito Scott Eccles recolher-se mais cedo do quepensava; de qualquer modo, é provável que, quando Garcia se deu ao incômodo de lhedizer que era uma hora, não fosse realmente mais de meia-noite. Se Garcia pudesse fazero que pretendia antes da hora mencionada, teria evidentemente uma poderosa defesacontra qualquer acusação. Ele teria sempre esse inglês irrepreensível, pronto a jurarperante qualquer tribunal que o acusado se encontrava em sua residência na ocasião docrime. Era uma precaução contra a adversidade.

— Sim, sim, compreendo; mas como explica o desaparecimento dos outros?

— Ainda não tenho todos os elementos na mão. Entretanto, não creio que existamdificuldades insuperáveis para a elucidação desse ponto. Todavia, é um grave erroalimentar idéias preconcebidas, pois, insensivelmente, a pessoa procura torcer os fatos afim de adaptá-los às próprias teorias.

— E o bilhete?

— Quais são seus termos? "Nossas cores, verde e branco." Parece referir-se a corridas decavalos. "Verde aberto, branco fechado." Trata-se, evidentemente, de um sinal, "Escadaprincipal, primeiro corredor, sétima à direita, estofo verde." Isso não pode deixar de ser umencontro marcado. Quem sabe se, no fundo de tudo isso, não iremos topar com um maridociumento? Indubitavelmente, a expedição era perigosa, pois, de outro modo, não teriaacrescentado "Boa sorte. D." Esta inicial seria uma orientação.

— O homem era espanhol. Por isso, talvez "D" signifique Dolores, nome de mulher muitocomum na Espanha — sugeri.

— Ótimo, Watson, perfeito... mas absolutamente inadmissível. Uma espanhola escreveria aum espanhol em sua própria língua. A autora desse bilhete é certamente inglesa. Mas, porenquanto, nosso único recurso é munirmo-nos de paciência até que esse excelente inspetoresteja de volta. Enquanto isso, podemos dar graças à nossa boa estrela por nos terlibertado durante algumas horas do insuportável tédio da ociosidade.

A resposta ao telegrama de Holmes chegou antes do regresso do detetive de Surrey.Meu amigo leu-a e ia guardá-la entre as páginas de seu bloco, quando notou a expressãode curiosidade em meu rosto. Passou-o a mim por cima da mesa, com uma risada.

— Estamos nos movendo em altasesferas — disse.

O telegrama era uma lista de nomese endereços: "Lorde Harringby, TheDingie; Sir George Foiliot, OxshottTowers; sr. Hynes Hynes, J. P., PurdieyPlace; sr. James Baker Williams, FortonOld Hall; sr. Henderson, High Gable;reverendo Joshua Stone, NetherWaisling".

— Este é um modo muito simples delimitar nosso campo de operações —comentou Holmes. — Sem dúvidaBaynes, com seu espírito metódico, jáadotou algum processo análogo.

— Não percebo bem o que quer dizer.

— Ora, meu caro amigo, já chegamos à

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conclusão de que o bilhete recebido por Garcia, durante o jantar, devia servir para marcarum encontro ou indicar-lhe um lugar. Se a interpretação desse bilhete está certa, para sechegar ao lugar indicado é preciso subir uma escada principal e procurar a sétima porta deum corredor, e é evidente que a casa deve ser muito grande. É igualmente certo que essacasa não pode distar mais do que dois ou três quilômetros de Oxshott, pois Garciacaminhava naquela direção e esperava, segundo minha interpretação dos fatos, estar devolta à Vila Glicínia a tempo de aproveitar de um álibi, válido apenas até uma hora damadrugada. Como o número de casas grandes nas proximidades de Oxshott deve serlimitado, recorri ao expediente de telegrafar aos agentes mencionados por Scott Eccles eobter uma lista dessas residências. Ei-la neste telegrama; a outra ponta de nossaembaraçada meada deve encontrar-se aí.

Eram quase seis horas quando chegamos à graciosa vila de Esher, no Surrey, nacompanhia do inspetor Baynes. Holmes e eu tínhamos trazido o necessário para passar anoite, e arranjamos aposentos confortáveis no Buli Hotel. Partimos finalmente com odetetive para nossa visita à Vila Glicínia. Era uma escura e frígida noite de março.Feriam-nos o rosto um vento cortante e uma chuva miúda, moldura condizente com a regiãodesolada que o trem atravessava, e com a trágica meta a que nos destinávamos.

II — O Tigre de San Pedro

Depois de uma fria e melancólica caminhada de cerca de três quilômetros, alcançamos oalto portão de madeira que dava acesso a uma alameda de castanheiros. Esse caminhosinuoso, envolto em sombras, conduzia a uma casa escura e baixa, cujo vulto negro sedestacava no céu cinza. De uma janela da frente, ao lado esquerdo da porta de entrada,coava-se uma luz bruxuleante.

— Há um policial de guarda — explicou Baynes. — Vou bater à janela.

Atravessou o canteiro de relva e bateu com os nós dos dedos na vidraça. Através dovidro embaciado, vi vagamente um homem saltar de uma cadeira ao lado do fogo, e ouvium grito agudo vindo do interior da sala. Logo em seguida, um policial pálido e ofegante,com uma vela na mão trêmula, abria a porta.

— Que aconteceu, Walters? — perguntou Baynes secamente.

O homem enxugou a testa e soltou um suspiro de alívio.

— Alegro-me de vê-lo aqui, chefe. A noite pareceu-me interminável, e creio que já nãopossuo nervos tão bons como antigamente.

— Nervos, Walters? Nunca supus que você tivesse nervos.

— Ah!, sr. Baynes, é esta casa vazia efúnebre e aquela coisa esquisita nacozinha que me põem assim. Além disso,quando o senhor bateu na janela julgueique fosse ele outra vez.

— Ele quem?

— O Demônio, chefe, não podia seroutro. Apareceu na janela.

— Quem apareceu na janela e quando foiisso?

— Foi há cerca de duas horas. Principiavaa escurecer. Eu estava lendo sentado na

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cadeira. Não sei o que me fez levantar acabeça, e, repentinamente, vi uma caraque me fitava através ao vidro inferior dajanela. E que cara, Deus meu! Estou certode que a verei sempre em meus sonhos.

— Calma, calma, Walters! Isso é maneira de um policial falar?

— Bem sei, chefe, bem sei; todavia, não posso negar que ela me assustou. Não era pretanem branca, mas de uma cor que jamais vi; parecia feita de argila, sobre a qual tivessemesborrifado um pouco de leite. E o tamanho, então, chefe! Era o dobro da sua. E queolhar... dois olhos esbugalhados, fixos, e duas fileiras de dentes brancos como os de umafera faminta. Garanto-lhe, chefe, que não fui capaz de me mover, nem ao menos derespirar, até ela desaparecer. Precipitei-me para fora e dei uma busca entre as moitas,mas, graças a Deus, não encontrei ninguém.

— Se eu não soubesse que você é um homem como deve ser, Walters, seu nome ficariamarcado por causa disso. Ainda que fosse o Diabo em pessoa, um policial em serviçonunca deveria dar graças a Deus por não lhe poder pôr as mãos em cima. Tem certeza deque tudo isso não foi apenas uma visão ou produto dos nervos?

— Isso, pelo menos, é fácil verificar — interveio Holmes, acendendo sua lanterna portátil.— De fato — prosseguiu, depois de um rápido -exame ao canteiro de relva —, as pegadassão de quem calça número 45, posso quase afirmar. Se o corpo for proporcional aotamanho do pé, deve ser por certo um gigante.

— O que teria sido feito dele?

— Parece ter pulado a sebe de arbustos e fugido para a estrada.

— Bem — sentenciou o inspetor com ar grave e pensativo —, fosse quem fosse e o quetivesse pretendido, está por enquanto fora de nosso alcance, e temos coisas mais urgentesa tratar. E agora, sr. Holmes, se me permite, lhe mostrarei a casa.

Apesar da cuidadosa pesquisa, os vários quartos e salas não revelaram nada notável.Aparentemente, os ocupantes da vila tinham trazido muito pouca coisa consigo, e toda amobília, até as mais insignificantes peças, tinha sido alugada com a casa. Grandequantidade de roupas com a marca Marx & Co., High Holborn, fora abandonada por eles.Já tinham sido feitas indagações telegráficas, que revelaram que Marx nada sabia de seufreguês, exceto que pagava bem. Diversas miudezas, como cachimbos, alguns ro-mances,dois dos quais em espanhol, um revólver de modelo antiquado e um violão, constituíam ospoucos objetos de uso pessoal encontrados.

— Até aqui, nada interessante — disse Baynes, passando cautelosamente de quarto emquarto com a vela na mão. — Mas, agora, sr. Holmes, quero chamar sua atenção para acozinha.

Era um compartimento alto e sombrio, nos fundos da casa, onde se via, num dos cantos,um enxergão de palha, que devia ter servido de cama para o cozinheiro. A mesa estavacoberta de pratos sujos e restos do jantar da noite anterior.

— Veja isto — disse Baynes. — O que lhe parece?

Dizendo isso, aproximou a vela de umestranho objeto que se encontrava atrás doarmário. Era uma coisa de tal modo enrugada,murcha e seca, que se tornava difícil dizer oque poderia ter sido. Apenas era possívelverificar que era preta, e tinha o aspecto decouro, assemelhando-se a uma figura humanaem miniatura. Ao examiná-la, pensei aprincípio tratar-se de um negrinho mumificado;depois pareceu-me um macaco muito velho e

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encarquilhado. Finalmente, fiquei na dúvida,sem saber se era animal ou ser humano. Tinhapendurada ao redor uma fileira de conchasbrancas.

— Muito interessante... realmente, muitointeressante! — exclamou Holmes,observando a sinistra relíquia.

— Mais alguma coisa?

Baynes aproximou-se em silêncio da pia eiluminou-a com a vela. Viam-se ali os

membros e o corpo de uma ave branca de grandes dimensões, reduzida brutalmente apedaços, com as penas ainda agarradas à pele. Holmes indicou com o dedo as barbelasda cabeça cortada.

— Um galo branco — disse. — Interessantíssimo! É, de fato, um caso muito curioso.

Baynes, entretanto, reservara para o fim o pormenor mais sinistro. Extraiu da parte debaixo da pia um balde de zinco contendo uma grande quantidade de sangue. Depois, decima da mesa, agarrou uma bandeja em que se amontoavam fragmentos de ossosqueimados.

— Algo foi morto e queimado. Retiramos tudo isto do fogo. Esteve aqui, hoje de manhã, ummédico que afirmou não se tratar de restos humanos.

Holmes sorriu e esfregou as mãos.

— Devo felicitá-lo, inspetor, pela maneiraperspicaz e inteligente com que está agindoneste caso. Sua capacidade, se mepermite dizê-lo sem ofensa, parece-mesuperior às suas oportunidades.

Os olhinhos do inspetor Baynescintilaram de prazer.

— Tem razão, sr. Holmes. Vegeta-se aquino interior. Um caso como este podeoferecer grandes possibilidades para quemsaiba aproveitá-lo, e eu espero não deixarfugir a ocasião. O que pensa destesossos?

— Diria serem de cordeiro ou de cabrito.

— E o galo branco?

— Curioso, sr. Baynes, muito curioso, e diria quase único.

— Sim; esta casa deve ter sido habitada por pessoas muito estranhas, com hábitosesquisitíssimos. Uma delas morreu. Terá sido seguida e morta pêlos seus companheiros?Se for isso, nós os apanharemos, pois todos os portos estão sendo vigiados. No entanto,minha opinião a esse respeito é diferente. Sim, sr. Holmes, a minha opinião pessoal é muitodiferente.

— Já formulou, então, uma hipótese?

— Trabalharei nela por minha conta, sr. Holmes. Se for bem sucedido, isso redundará emcrédito para mim. Seu nome está feito; eu, porém, ainda preciso fazer o meu. Eu mesentiria satisfeito se pudesse dizer mais tarde que resolvi este problema sem sua ajuda.

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Holmes riu gostosamente.

— Está bem, inspetor — disse. — Siga seu caminho; eu seguirei o meu. Em todo caso,meus resultados estarão sempre à sua disposição se, por acaso, quiser servir-se deles.Penso ter visto tudo o que desejava ver nesta casa, e meu tempo poderá ser melhoraproveitado em outro lugar. Até a vista e boa sorte!

Percebi por inúmeros pequenos indícios, que poderiam ter escapado a outra pessoa,que Holmes já tinha descoberto nova pista. Embora pudesse parecer impassível a qualquerobservador casual, havia em seus olhos brilhantes e nos gestos vivos uma ansiedade, umatensão contida que me faziam compreender que ele pressentira a proximidade de caçagrossa. Como de costume, não me disse nada, nem eu lhe fiz perguntas. Bastava-meparticipar das emoções da aventura e prestar-lhe meu insignificante auxílio na captura, semperturbar com inúteis interrupções aquele cérebro em contínua efervescência. Em tempooportuno, eu seria inteirado de tudo.

Esperei, portanto, mas, para meu sempre crescente desapontamento, esperei em vão.Sucediam-se os dias, e meu amigo não dava o menor passo em frente. Esteve certa manhãna cidade e soube depois, por uma casual alusão de sua parte, que visitara o MuseuBritânico. Exceto por essa única ausência, consumia o tempo em longas e assíduascaminhadas solitárias, ou tagarelando com certo número de bisbilhoteiros da vila, cujaamizade cultivara.

— Estou certo, Watson — observou um dia —, de que uma semana no campo lhe fariamuito bem. É agradável ver despontar os primeiros rebentos verdes nas sebes e asaveleiras cobrindo-se de delicadas florinhas. Com uma pazinha, uma caixinha de lata e umlivro elementar de botânica, pode-se passar horas muito instrutivas.

Ele próprio fazia suas excursões pêlos arredores com esse equipamento, mas era muitoescassa a quantidade de plantas que trazia para casa à noite.

Às vezes, em nossos giros, encontrávamos o inspetor Baynes. Seu rosto corado erechonchudo desfazia-se em sorrisos, e os olhos miúdos cintilavam ao saudar meucompanheiro. Falava pouco sobre o caso, mas desse pouco depreendia-se não estardescontente com o curso dos acontecimentos. Confesso, contudo, ter ficado algo surpresoquando, cinco dias após o delito, ao abrir o jornal da manhã, deparei com estes dizeres emletras garrafais:

SOLUÇÃO DO MISTÉRIO DE OXSHOTT.PRISÃO DO SUPOSTO ASSASSINO.

Quando li em voz alta esse título, Holmes deu um pulo na cadeira como se tivesse sidopicado por uma tarântula.

— Com os diabos! — exclamou. — Será possível que Baynes o tenha apanhado?

— É o que parece — respondi, passando a ler a seguinte notícia:

"Causou grande sensação em Esher e emtoda a zona circunvizinha a notícia de que,às últimas horas da noite de ontem, foiefetuada uma prisão relacionada com ocrime de Oxshott. Como todos devem estarlembrados, o sr. Garcia, da Vila Glicínia, foiencontrado morto na região de Oxshott. Ocorpo apresentava sinais de violentaagressão, e, na mesma noite,desapareceram seus dois criados, o que fazsupor que ambos sejam participantes dodelito. Presumiu-se, embora sem provas,que a vítima tivesse em sua casa objetos de

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grande valor e o motivo do crime fosse oroubo. Foram despendidos todos osesforços pelo inspetor Baynes, em cujasmãos se encontra este caso, no sentido dedescobrir o paradeiro dos fugitivos, pois eletinha fundados motivos para crer que não setinham afastado muito do lugar e seencontravam em qualquer esconderijopreviamente preparado. Todavia, tinha-secomo certo, desde o princípio, que eles mais cedo ou mais tarde seriam descobertos,porquanto o cozinheiro, segundo o testemunho de um ou dois fornecedores que o tinhamavistado através da janela, era homem de aparência extraordinária — um mulatogigantesco, de catadura repelente, tez amarelada e acentuado tipo negróide. Esseindivíduo foi visto depois do crime, tendo sido encontrado e perseguido naquela mesmanoite pelo agente Walters, ao ter a audácia de voltar à Vila Glicínia. O inspetor Baynes,considerando que tal visita deveria ter algum objetivo e que, portanto, podia se repetir,abandonou a casa e preparou uma emboscada entre as moitas do jardim. O homem caiuna armadilha e foi capturado ontem à noite, após violenta luta, durante a qual o agenteDowning recebeu uma feroz dentada do selvagem. Sabemos que, quando o prisioneirocomparecer perante os magistrados, a polícia pedirá sua prisão. Esperam-se grandesrevelações relacionadas com essa captura".

— Claro que precisamos ver Baynes o quanto antes — exclamou Holmes, pegando ochapéu. — Temos o tempo necessário para apanhá-lo antes de partir.

Descemos apressadamente a rua do vilarejo e, como havíamos previsto, encontramos oinspetor pronto para sair.

— Já leu o jornal, sr. Holmes? — indagou, apresentando-lhe um exemplar.

— Sim, Baynes, já o li. Peço-lhe que não se ofenda, mas quero dar-lhe um conselho deamigo.

— Um conselho, sr. Holmes?

— Examinei a fundo este caso e não estou convencido de que o senhor esteja na pistacerta. Não queria que se expusesse demasiado, a não ser que esteja realmente seguro.

— O senhor é muito gentil, sr. Holmes.

— Afirmo-lhe que falo unicamente para seu próprio bem.

Pareceu-me vislumbrar, por um rápido instante, um malicioso brilho nos minúsculos olhosdo inspetor Baynes.

— Concordamos em trabalhar cada um por seu lado, sr. Holmes. É o que estou fazendo.

— Oh, muito bem! Não me queira mal por isso.

— De forma nenhuma, sr. Holmes; estou certo de que suas intenções são as melhorespossíveis. Mas todos nós temos nosso próprio sistema. O senhor tem o seu, e eu talveztenha o meu.

— Não falemos mais nisso.

— Terei sempre o maior prazer em informá-lo do que souber. O tal cozinheiro é um perfeitoselvagem, forte como um touro e feroz como o Diabo. Quase arrancou o polegar deDowning com uma dentada, antes de conseguirmos subjugá-lo. Praticamente não fala umapalavra de inglês, e não pudemos arrancar-lhe nada, exceto grunhidos.

— E julga ter provas de que foi ele o assassino?

— Eu não disse isso, sr. Holmes; não disse isso. Cada um de nós tem os próprios

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métodos. Siga os seus, e eu seguirei os meus. Foi essa a combinação.

Quando nos afastamos, Holmes disse-me, encolhendo os ombros:

— Não consigo compreender esse homem. Tenho a impressão de que está se precipitandonum abismo. Bem, como ele próprio diz, cada um de nós deve pôr à prova seu método ever o que acontece. Há, porém, qualquer coisa na atitude do inspetor Baynes que ainda nãoconsegui entender bem.

— Sente-se naquela cadeira, Watson — disse Sherlock Holmes quando chegamos a nossoapartamento no Buli Hotel.

— Quero pô-lo a par da situação, pois talvez precise de seu auxílio hoje à noite. Vouexpor-lhe a evolução desse problema, tanto quanto me foi dado segui-la. Embora simplesnas linhas principais, tem, contudo, apresentado surpreendentes empecilhos com referênciaà prisão dos culpados. Existem falhas nesse sentido, as quais precisamos remediar.

"Voltemos ao bilhete entregue a Garcia na noite de sua morte. Podemos desprezar aidéia de Baynes de que os criados da vítima estavam implicados no crime. A prova dissoestá no fato de que o próprio Garcia fez com que Scott Eccles estivesse presente naquelanoite na vila, o que só poderia ter o propósito de criar um álibi. Era, portanto, Garcia quemtinha um plano em mente, e, aparentemente, um plano criminoso, em cuja execuçãoencontrou a morte. Digo criminoso, porque somente quem nutre um desígnio dessa espécietem necessidade de estabelecer um álibi. Quem, pois, lhe tirou a vida? Certamente apessoa contra a qual fora arquitetado o plano. Até aqui, parece-me que estamos pisandoterreno seguro.

"Portanto, agora podemos perceber o motivo do desaparecimento dos criados deGarcia. Estavam todos associados na mesma empresa misteriosa. Se ela fosse coroadade êxito, Garcia então voltaria, e toda a eventual suspeita seria afastada com o testemunhodo inglês, o que faria com que tudo acabasse bem. Contudo, o empreendimento eraperigoso, e, se Garcia não regressasse até determinada hora, era muito provável que suavida tivesse sido sacrificada. Ficou por isso combinado que, se tal acontecesse, seussubordinados se refugiariam num esconderijo determinado, onde pudessem escapar àsinvestigações e estar depois em condições de renovar o atentado. Não lhe parece que issodaria uma total explicação dos acontecimentos?"

Como por encanto, todo aquele inexplicável emaranhado de fatos pareceu esclarecer-sediante de meus olhos. Admirei-me, como sempre, de que tal explicação não me tivesseacudido mais cedo.

— Mas por que um dos criados teria voltado?

— Podemos supor que, na confusão da fuga, tivesse esquecido qualquer coisa preciosa, daqual não pudesse separar-se. Isso explicaria sua insistência, não lhe parece?

— Bem, e depois?

— Depois temos o bilhete recebido por Garcia à hora do jantar, o que indica a existência deum cúmplice na outra ponta da meada. Nesse caso, onde se encontra essa outra ponta? Jálhe mostrei que só poderia encontrar-se em qualquer casa grande e que o número decasas grandes nestas redondezas é limitado. Meus primeiros dias aqui neste vilarejo foramdedicados a uma série de passeios, durante os quais, nos intervalos de minhas pesquisasbotânicas, fiquei conhecendo as casas grandes dos arredores e a história das famílias deseus respectivos ocupantes. Uma casa, apenas uma, me atraiu a atenção. Trata-se dafamosa e antiga granja jacobita de High Gable, a um quilômetro e meio de Oxshott e amenos de oitocentos metros do local da tragédia. As outras pertenciam a genteprosaicamente respeitável, que se mantém afastada de toda atmosfera romanesca. O sr.Henderson, da High Gable, porém, é inegavelmente um homem curioso, a quem podemsuceder estranhas aventuras. Eis por que concentrei minha atenção sobre ele e seusfamiliares.

"É um grupo de pessoas bastante singular, Watson, e o chefe da casa é, sem dúvida, a

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mais singular. Procurei vê-lo sob um pretexto plausível, mas pareceu-me ler em seus olhosescuros, profundos, pensativos, que estava perfeitamente a par de meu verdadeiroobjetivo. É um homem de seus cinqüenta anos, forte, enérgico, de cabelos grisalhos,sobrancelhas negras e espessas. Possui o andar imponente de um cervo, e a majestade deum imperador... uma figura, em suma, indômita e autoritária, cujo espírito candente seoculta por trás da pele pergaminácea do rosto. Deve ser estrangeiro ou, pelo menos, deveter vivido muito tempo nos trópicos, pois é moreno-escuro e ressequido, mas rijo como umchicote. Seu amigo e secretário, o sr. Lucas, é indubitavelmente estrangeiro: tez cor dechocolate, ardiloso, melífiuo e felino, com uma venenosa suavidade no falar. Como vê,Watson, já entramos em contato com dois grupos de estrangeiros: um na Vila Glicínia,outro na High Gable. Nossas falhas, portanto, principiam a ser remediadas.

"Esses dois homens, amigos íntimos e inseparáveis, constituem o núcleo da casa; há, noentanto, outra pessoa que, para nosso fim imediato, talvez seja ainda mais importante.Henderson tem duas filhas... uma de onze e outra de treze anos de idade, cuja governanta,a sra. Burnet, é uma inglesa quarentona. Existe também um criado de confiança. Essepequeno grupo compõe toda a família, que viaja sempre reunida, pois Henderson viajamuito e está continuamente mudando de ares. Há muito pouco tempo regressou à HighGable, após um ano de ausência. Posso ainda acrescentar que ele é muito rico e lhe é fácilsatisfazer qualquer capricho, por mais extravagante que seja. Quanto ao resto, sua casaestá cheia de mordomos, lacaios, criadas e o habitual magote de criados, bem alimentadose com pouco serviço, como sucede em todas as grandes casas de campo inglesas.

"Vim a saber de tudo isso, em parte através dos bisbilhoteiros da vila, em parte porobservação própria. Não existe ninguém melhor como informador do que criadosdespedidos, irritados com os patrões, e eu tive a sorte de encontrar um nessas condições.Digo sorte; contudo, ela não viria a meu encontro se eu não fosse procurá-la. Comoobserva Baynes, cada um de nós possui seu próprio método. E foi graças ao meu que tivea oportunidade de encontrar John Warner, antigo jardineiro da. High Gable, despedido, nummomento de cólera, por seu arrogante patrão. Ele, por seu turno, possuía amigos entre osoutros criados da casa, os quais nutriam pelo patrão o mesmo temor e ódio. Essa foi achave que me permitiu penetrar nos segredos da High Gable.

"Gente curiosa, Watson! Ainda não tenho a pretensão de conhecê-la bem. Posso,porém, afirmar-lhe que é muito estranha. A construção é dividida em duas alas; os criadosmoram numa, a família, na outra. Não há entre eles nenhuma ligação, a não ser o criadopessoal de Henderson, que serve as refeições da família. Tudo é levado até certa porta,que constitui o único meio de comunicação. A governanta e as crianças raramente saem,salvo -ao jardim. Henderson jamais se afasta da casa sozinho. O secretário acompanha-opor toda parte, como uma sombra. Os criados comentam que o patrão anda apavoradocom qualquer coisa. "Vendeu a alma ao Diabo por amor ao dinheiro", diz Warner, "e receiaque o credor venha buscar o que lhe pertence." Ninguém sabe de onde vieram, nem quemsão. Possuem um gênio muito violento. Já por duas vezes, Henderson agrediu pessoas àschicotadas, e unicamente sua bolsa bem-provida o conseguiu livrar de ser processadopêlos tribunais.

"Por conseguinte, Watson, julguemos agora a situação à luz dessas novas informações.Podemos supor que a carta tenha partido dessa casa estranha, e que era um convite aGarcia para pôr em ação um plano premeditado. Quem pode ter escrito o bilhete?Naturalmente, alguém de dentro da cidadela e, com toda a certeza, uma mulher. Quempoderia ser senão a sra. Burnet, a governanta? Nosso raciocínio parece conduzir-nos nessadireção. Seja como for, tomemos isso como hipótese viável, e vejamos que conseqüênciasacarreta. Posso acrescentar que a idade e o temperamento da sra. Burnet afastamdefinitivamente minha primeira idéia, a de que pudesse haver um interesse amoroso nessahistória.

"Se ela escreveu o bilhete, presume-se que fosse amiga e cúmplice de Garcia. Qualseria, pois, sua provável reação ao saber que ele fora assassinado? Se tivesse perecidoem alguma empresa criminosa, ela permaneceria calada. Em todo caso, conservaria nofundo do coração rancor e ódio aos que o tivessem morto, e provavelmente faria o possívelpara se vingar deles. Poderíamos, então, ir vê-la e procurar utilizar esse ódio em nossoproveito? Tal foi meu pensamento. No entanto, apresenta-se agora uma circunstânciasinistra. Desde a noite do crime, a sra. Burnet desapareceu. Estará ainda viva, ou terá

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encontrado a morte na mesma noite, como o amigo que ela havia chamado? Ouencontra-se apenas prisioneira? Este é um ponto que ainda precisamos esclarecer.

"Você certamente já percebeu a dificuldade da situação, Watson. Não temos pretextoalgum em que nos possamos apoiar para um mandado de prisão. Toda a nossa históriaparecerá fantástica, exposta a um magistrado. O desaparecimento da mulher não provanada, pois naquela casa é comum que alguém fique invisível por uma semana. Todavia, elapoderá estar neste instante em perigo de vida. Tudo o que posso fazer é vigiar a casa epostar Warner de guarda no portão. Mas não podemos deixar que tal situação continue, e,visto que a lei é impotente para agir, devemos correr o risco sozinhos."

— Que sugere então?

— Sei qual é o quarto da sra. Burnet; é acessível do alto de um telhado que fica abaixo desua janela. Proponho que estejamos lá esta noite, para ver se conseguimos penetrar nofundo do mistério.

Devo confessar que a perspectiva não me era muito tentadora. Aquela velha mansãocom atmosfera de crime, seus habitantes estranhos e temíveis, os perigos desconhecidosque iríamos arrostar e o fato de, agindo assim, nos colocarmos em posição legalmentecomprometedora, tudo contribuía para esmorecer meu ardor. No entanto, havia algo no frioraciocínio de Holmes que me impedia de recusar qualquer aventura para que ele meconvidasse. Sabia que assim, e só assim, era possível encontrar a solução. Apertei-lhe amão em silêncio e selei minha sorte.

Estava decidido, porém, que nossa investigação não teria um fim tão rocambolesco.Eram cerca de cinco horas, e as sombras daquela tarde de março principiavam aadensar-se, quando irrompeu em nosso quarto um aldeão profundamente emocionado.

— Eles se foram, sr. Holmes. Partiram no último trem. A senhora conseguiu fugir deles, eeu a trouxe comigo. Está num carro lá embaixo.

— Bravo, Warner! — exclamou Holmes, pondo-se de pé. — As falhas estão sendo sanadasrapidamente, Watson.

No carro encontrava-se uma mulhersemidesfalecida pela exaustão nervosa.Trazia nas feições aquilinas e pálidas osvestígios da recente tragédia. A cabeçapendia-lhe inerte sobre o peito, mas,quando a levantou para nos fitar com osolhos embaciados, vi que suas pupilas eramdois pontos negros no centro das enormesíris cinzentas. Estava evidentemente sob aação de uma forte dose de ópio.

— Fiquei de guarda ao portão, como osenhor me recomendou — explicou nossoemissário, que era na verdade o jardineirodespedido. — Quando a carruagem saiu,segui-a até a estação. Esta senhora pareciasonâmbula. Todavia, quando pretenderampô-la no trem, voltou a si e lutou com todasas forças. Quiseram empurrá-la para dentrode um vagão; ela, porém, ofereceuresistência e conseguiu escapar-lhes.Tomei-lhe a defesa, coloquei-a num carro, e aqui estamos. Jamais esquecerei o rosto queme fitou da janela do vagão, quando a trouxe. Poucos dias me restariam de vida se aqueledemônio amarelo de olhos negros me pusesse as mãos em cima.

Levamos a mulher para dentro, colocamo-la no sofá, e em breve duas xícaras de cafébem forte lhe aclararam o cérebro das névoas do alcalóide. Baynes fora chamado porHolmes, e em breves palavras lhe explicamos a situação.

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— Caramba! O senhor obteve justamente a prova de que eu necessitava — gritou oinspetor, apertando entusiasticamente a mão de meu amigo. — Eu estava na mesma pistadesde o princípio.

— Como! O senhor também suspeitava de Henderson?

— Exatamente, sr. Holmes. Enquanto o senhor se arrastava entre as moitas da High Gable,eu estava em cima de uma das árvores do pomar observando-o. Tratava-se apenas desaber quem obteria a prova primeiro.

— Então, por que prendeu o mulato?

Baynes soltou uma gargalhada.

— Tinha a certeza de que Henderson, como ele próprio se chama, sabia que desconfiavamdele, e se manteria quieto em seu esconderijo enquanto se julgasse em perigo. Por issoprendi o pobre-diabo para fazer crer que ninguém se ocupava de sua pessoa. Estavaconvencido de que ele, com toda a certeza, procuraria afastar-se daqui o mais depressapossível, e nos daria a oportunidade de nos apoderarmos da sra. Burnet.

Holmes pôs a mão no ombro do inspetor.

— O senhor irá longe em sua profissão. Tem o instinto e a intuição necessários a um bompolicial — disse.

Baynes corou de satisfação.

— Deixei um agente à paisana na estação durante toda a semana. Para onde quer que sedirijam os moradores da High Gable, ele não os perderá de vista. Mas que teria elepensado, quando a sra. Burnet fugiu? Seja como for, seu homem apanhou-a e tudo acaboubem. No entanto, não podemos prender ninguém sem o testemunho dela, é claro. Portanto,quanto mais depressa ouvirmos suas declarações, melhor.

— Ela está readquirindo as forças pouco a pouco — disse Holmes, observando agovernanta. — Mas diga-me, Baynes, quem é esse Henderson?

— Henderson — respondeu o inspetor — é dom Murillo, outrora chamado o "Tigre de SanPedro".

O Tigre de San Pedro! Toda a história daquele homem me veio à mente como umrelâmpago. Esse indivíduo celebrizara-se como o tirano mais cruel e sanguinário que jamaishavia governado um país com a aparência de civilizado. Forte, destemido e enérgico,possuía uma capacidade que lhe permitiu impor durante dez ou doze anos seu jugo odiososobre um povo aterrorizado. Seu nome era temido em toda a América Central, mas, no fimdaquele tempo, houve uma revolta geral contra ele. Entretanto, tão astucioso como cruel,ao pressentir o perigo iminente fez transportar secretamente seus tesouros para um naviotripulado por correligionários fiéis. Foi apenas um palácio vazio que os revoltososassaltaram no dia seguinte. O ditador e suas duas filhas, o secretário e as riquezas, tinhamescapado. Desde essa época desapareceram dos olhos do mundo, e sua identidade eraobjeto freqüente de comentários na imprensa européia.

— Sim senhor, dom Murillo, o Tigre de San Pedro — repetiu Baynes. — Se procurarrecordar-se, verá que as cores de San Pedro são o verde e o branco, as mesmas citadasno bilhete. Adotara o nome de Henderson, mas consegui seguir-lhe as pegadas, em sentidoinverso, através de Paris, Roma e Madri, até Barcelona, onde seu navio aportou em 1886.Seus inimigos procuraram-no durante todo esse tempo com o intuito de se vingarem. Noentanto, só agora conseguiram encontrá-lo.

— Descobriram-no há um ano — interveio a sra. Burnet, que se tinha sentado eacompanhava atentamente a conversa. — Já uma ocasião haviam atentado contra suavida, mas há um espírito demoníaco que parece defendê-lo. E agora, mais uma vez, é onobre e cavalheiresco Garcia que cai abatido, enquanto o monstro consegue escapar

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impune. Mas outro virá, e ainda outro, até um dia ser feita justiça; isso é tão certo como onascer do sol.

Suas mãos finas contraíram-se, e o rosto cansado empalideceu sob o domínio do ódiode que se achava possuída.

— Mas de que maneira a senhora se envolveu neste caso? — perguntou Holmes. — Comopoderia uma inglesa tomar parte em semelhante atentado homicida?

— Aderi à conspiração porque não havia outro meio no mundo de fazer justiça. Que importaà magistratura inglesa os rios de sangue que esse homem fez correr há alguns anos pelasruas de San Pedro, ou o navio abarrotado de ouro que ele roubou? Para os senhores, sãocomo crimes cometidos em outro planeta. Nós, porém, sabemos o que isso representa.Descobrimos a verdade no sofrimento e na dor. Para nós, não há no inferno demônio maisperverso que Juan Murillo, e não teremos paz nesta vida enquanto suas vítimas clamarempor vingança.

— Inegavelmente — observou Holmes —, ele é tudo quanto a senhora diz. Estou a par desuas atrocidades. Mas, que mal esse homem poderia ter-lhe causado?

— Vou explicar-lhe tudo. A política desse bandido era liquidar, sob qualquer pretexto, todohomem que, pêlos seus dotes, demonstrasse a possibilidade de um dia vir a transformar-senum rival perigoso para ele. Meu marido, sim, meu verdadeiro nome é sra. Victor Durando,exercia as funções de ministro de San Pedro em Londres. Ali nos conhecemos e casamos.Jamais existiu sobre a terra homem melhor do que ele. Desgraçadamente, Murillo ouviufalar de sua competência, chamou-o sob uma desculpa qualquer e mandou-o fuzilar.Pressentindo seu destino, recusara-se a levar-me com ele. Foram-lhe confiscadas aspropriedades e eu fiquei na miséria, com o coração despedaçado.

"Ocorreu, então, a queda do tirano. Ele conseguiu fugir da maneira que o senhor acabade descrever. Mas o número infindo de pessoas cuja existência ele arruinou, e cujosparentes mais caros e mais próximos sofreram atrozes torturas e encontraram a morte emsuas mãos, não poderiam deixar a coisa cair no esquecimento. Congregaram-se numasociedade destinada a permanecer indissolúvel até que a missão estivesse cumprida.Coube a mim, logo após termos descoberto no falso Henderson o déspota caído, unir-me àsua família e manter os outros informados de seus passos. Alcancei meu intentotornando-me governanta de suas filhas. Mal sabia ele que a mulher que se sentava à suafrente a cada refeição era a mesma cujo marido ele despachara para o outro mundo sem amenor piedade. Eu sorria-lhe, cumpria minha obrigação para com suas filhas e esperava omomento oportuno. Um atentado foi levado a efeito contra ele em Paris, mas falhou.Andamos aos ziguezagues por toda a Europa, a fim de despistar os perseguidores, efinalmente regressamos a esta casa, que ele havia alugado ao chegar, pela primeira vez, àInglaterra.

"Entretanto, também aqui seus inimigoso aguardavam, sequiosos de justiça.Sabendo que ele voltaria a este lugar,Garcia, filho de um antigo alto dignitário emSan Pedro, esperava-o com doiscompanheiros fiéis, de origem humilde,absorvidos os três por idêntico desejo devingança. Pouco podia ele fazer durante odia, pois Murillo cercava-se de precauçõese não saía nunca sem ser acompanhadode sua sombra, Lucas, ou López, comoera conhecido na época de seu fastígio. Ànoite, porém, Murillo dormia só, e ovingador poderia colhê-lo de surpresa.Certa noite, de antemão determinada,enviei a meu amigo instruções definitivas,porquanto nosso homem vivia desobreaviso e mudava constantemente dequarto. Competia-me ver se as portas

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estavam abertas e, por sinais feitos comluz verde ou branca, através de uma janela

fronteira à estrada, informá-lo se tudo corria em ordem ou se seria melhor adiar o atentado.

"Tudo, porém, nos saiu às avessas. Não sei por que motivo, eu havia provocado assuspeitas de López, o secretário. Aproximou-se de mim sorrateiramente e, mal acabei deescrever o bilhete, saltou sobre mim. Ele e seu amo arrastaram-me para meu quarto esubmeteram-me a julgamento como traidora. Ter-me-iam apunhalado ali mesmo, setivessem encontrado meio de escapar depois às conseqüências desse ato. Finalmente,após longa discussão, decidiram que meu assassinato era demasiado perigoso.Resolveram, contudo, livrar-se para sempre de Garcia. Haviam-me amarrado, e Murillotorceu-me o braço até eu lhes dar o endereço de meu companheiro. Juro-lhes que preferiaque o tivessem arrancado de mim, se soubesse o que isso iria significar para Garcia. Lópezendereçou o bilhete que eu havia escrito, fechou-o com lacre, colocou sobre este suaabotoadura de punho e enviou-o por intermédio do criado José. Como o mataram não lhessei dizer, salvo que foi a mão de Murillo que o abateu, pois López ficara de guarda junto amim. Acredito que o esperou entre as moitas que ladeiam o caminho, e saltou sobre ele nomomento em que passava. A princípio, pensaram em deixá-lo penetrar na casa e abatê-locomo se se tratasse de um ladrão apanhado em flagrante. Todavia, refletindo melhor,acharam que, se fossem envolvidos num inquérito, sua verdadeira identidade seria reveladapublicamente, e ficariam expostos a novos ataques, ao passo que, com a morte de Garcia,a perseguição talvez cessasse, pois tal morte certamente assustaria os outros conjurados eos faria desistir da empresa.

"Tudo correria bem para eles agora, se não fosse meu testemunho do que tinham feito.Não tenho a menor dúvida de que houve ocasiões em que minha vida esteve pendente deum fio. Achava-me prisioneira em meu quarto, apavorada com as mais terríveis ameaças,maltratada de maneira cruel com o fito de me perturbarem o intelecto. Vejam este golpeaqui no ombro, e as manchas que me recobrem os braços. Quando, em certo momento,tentei chamar por socorro da janela, puseram-me uma mordaça na boca. Essa prisãointolerável durou cinco dias, durante os quais me deixaram praticamente sem alimento. Hojeà tarde trouxeram-me uma boa refeição, mas, mal a tinha ingerido, percebi que lhe tinhamadicionado algum narcótico. Lembro-me, como num sonho, de ter sido arrastada para acarruagem no mesmo estado fui conduzida para um trem. Só então, quando as rodas jáestavam quase em movimento, compreendi subitamente que minha liberdade dependiaapenas de meu próprio esforço. Atirei-me para fora do vagão; eles tentaram fazer-mevoltar e, se não fosse a intervenção deste bom homem, que me conduziu para um carro,jamais teria escapado. Agora, graças a Deus, estou definitivamente fora do alcance deles."

Todos tínhamos ouvido atentamente aquela extraordinária declaração. Holmes foi oprimeiro a quebrar o silêncio:

— Nossas dificuldades ainda não terminaram — observou, abanando a cabeça. — Findaaqui nosso trabalho policial. Inicia-se, contudo, o trabalho legal.

— Precisamente — disse eu. — Qualquer advogado hábil poderá justificar o fato sob aalegação de legítima defesa. Ainda que existam centenas de delitos anteriores a reclamarjustiça, só por este eles poderão ser julgados.

— Qual!... — exclamou Baynes alegremente. — Faço um conceito melhor de nossos juízes.Uma coisa é legítima defesa, outra é atrair um homem a sangue-frio com o intuito dematá-lo, por mais perigoso que ele possa ser. Não, não; verão que poderemos provar aboa razão de nosso procedimento, quando virmos os habitantes da High Gable no próximojúri de Guilford.

Pertence à história o fato de que, apesar de tudo, algum tempo ainda deveria decorrerantes que o Tigre de San Pedro recebesse o castigo merecido. Astutos e audazes, ele eseu companheiro conseguiram despistar os perseguidores, entrando num prédio deapartamentos pela porta principal da Edmonton Street e saindo pela porta dos fundos naCurzon Square. Desde esse dia, jamais foram vistos na Inglaterra. Cerca de seis mesesmais tarde, o marquês de Montalva e o sr. Rulli, seu secretário, foram encontradosassassinados em seus quartos no Hotel Escoriai, em Madri. O delito foi imputado aosniilistas, e os criminosos jamais foram presos.

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O inspetor Baynes foi visitar-nos na Baker Street com um jornal em que vinham descritoso rosto trigueiro do secretário e os traços dominadores, os olhos negros e magnéticos e assobrancelhas espessas de seu patrão. Não tivemos dúvidas de que a justiça, emboratardia, chegara finalmente.

— Um caso muito confuso, amigo Watson — comentou Holmes mais tarde, no meio de suacachimbada noturna. — Não lhe será possível apresentá-lo sob aquele aspecto coerente ecompacto, que lhe é tão caro. Ele abrange dois continentes, atinge dois grupos misteriososde indivíduos e complica-se ulteriormente diante da presença respeitável de nosso amigoScott Eccles, cuja inclusão nos acontecimentos me vem demonstrar que Garcia possuíauma imaginação fértil e um bem-desenvolvido instinto de conservação. É notável unicamentepelo fato de que, no meio de um verdadeiro caudal de possibilidades, nós, com nosso dignocolaborador Baynes, soubemos cingir-nos aos fatos essenciais, e desse modo orientar-nosem nosso obscuro e tortuoso caminho. Há algum ponto que não lhe tenha ficado bem claro?

— Qual o motivo do regresso do cozinheiro mulato?

— Creio que pode ser atribuído àquele estranho objeto encontrado na cozinha. O homemera um selvagem primitivo das florestas de San Pedro, e aquilo era seu fetiche. Quando elee o companheiro fugiram para algum esconderijo previamente arranjado, sem dúvida jáocupado por outro cúmplice, o companheiro devia tê-lo persuadido a abandonar um trastetão comprometedor. Todavia, o coração do mulato ficara preso ao fetiche, e por isso voltouno dia seguinte para reavê-lo, ocasião em que, espreitando pela janela, viu que ocompartimento estava ocupado pelo agente Walters. Aguardou durante mais três dias,mas, depois, sua religiosidade ou superstição o levou a realizar nova tentativa. O inspetorBaynes, com a astúcia que lhe é peculiar, tinha, em minha presença, fingido dar poucaimportância ao incidente, mas, na realidade, percebera-lhe todo o significado, e, por essarazão, armou uma emboscada na qual o pobre-diabo caiu. Mais alguma coisa, Watson?

— E o galo despedaçado, o balde de sangue, os ossos carbonizados e todo o mistériodaquela fantástica cozinha?

Holmes sorriu, enquanto procurava uma anotação em seu bloco.

— Passei uma manhã no Museu Britânico procurando elucidar esse e outros pontos. Eisuma citação extraída do livro de Eckermann, O vodu e as religiões dos negros:

"O verdadeiro praticante do vodu não empreende nada de importante sem efetuar certossacrifícios destinados a tornar propícios seus imundos deuses. Em casos extremos, essesritos assumem aspectos de imolação de entes humanos, seguidos de canibalismo.Contudo, de ordinário, a vítima comum é um galo branco, esquartejado vivo, ou uma cabrapreta, cujo pescoço é cortado e cujo corpo é queimado".

— Portanto, como você vê, nosso selvático amigo era muito ortodoxo em seus ritosreligiosos. É um caso grotesco, Watson — acrescentou Holmes, fechando lentamente obloco —, mas, como já tive ocasião de lhe fazer notar, do grotesco ao horrível vai apenasum passo.

Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House

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Sherlock Holmes

em:

A caixa de papelão Por Sir Arthur Conan Doyle

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Ao escolher alguns casos típicos, que demonstrassem bem os extraordinários dotes mentais de meu amigo Sherlock Holmes, esforcei-me, tanto quanto possível, por selecionar os que, apesar de oferecerem vasto campo para aplicação de suas qualidades, apresentassem o mínimo de sensacionalismo. Infelizmente, porém, não há possibilidade de separar inteiramente o

elemento sensacional do criminal, e o cronista fica a braços com o dilema de sacrificar pormenores essenciais à narrativa, e dar assim uma falsa impressão do problema, ou usar o material oferecido pelo acaso e não pela escolha. Com este breve preâmbulo, volto às minhas anotações sobre o caso que se revelou uma sucessão de acontecimentos estranhos, embora apavorantes. Era um dia sufocante de agosto. A Baker Street parecia um forno, e o reflexo do sol sobre os azulejos amarelos da fachada da casa fronteira tornava-se intolerável aos olhos. Custava crer que fossem aquelas as mesmas paredes sombrias que mal se distinguiam através da névoa espessa do inverno. Tínhamos até baixado as cortinas das janelas, e Holmes estava recostado no sofá, lendo e relendo uma carta que recebera pelo correio da manhã. Quanto a mim, o tempo de serviço na Índia habilitara-me a suportar melhor o calor que o frio, e, assim, o termômetro a trinta e cinco graus não me incomodava. Mas o jornal matutino nada continha de interesse. O Parlamento suspendera os seus trabalhos, grande parte da população abandonara a cidade e eu ansiava pelas clareiras verdejantes de New Forest ou pelas praias recobertas de seixos de Southsea. A situação precária de minha conta bancária, contudo, havia me obrigado a adiar as férias, e, no tocante a meu companheiro, nem o campo nem o mar exerciam sobre ele a menor atração. Deliciava-se em permanecer no meio de cinco milhões de pessoas, qual aranha a desenvolver em torno de si os fios da teia, sempre alerta ao menor rumor ou suspeita de um crime inextricável. A apreciação da natureza não encontrava lugar entre seus inumeráveis predicados, e a única mudança que ele podia suportar era desviar seu espírito do malfeitor da cidade para perseguir o colega deste na província. Percebendo que Holmes estava demasiado absorto para conversar, pus de lado o jornal inútil e recostei-me na cadeira, concentrado em melancólica divagação. De súbito, a voz de meu amigo interrompeu-me o curso dos pensamentos. — Você tem razão, Watson — disse. — É de fato absurda essa maneira de resolver contendas. — Incrivelmente absurda! — exclamei. No mesmo instante, porém, compreendendo que ele fizera eco ao que eu estava pensando naquele momento, endireitei-me na Cadeira e fitei-o, atônito. — Como é possível, Holmes? — gritei. — Isso ultrapassa tudo quanto eu poderia imaginar.

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Ele riu gostosamente de minha perplexidade. — Deve lembrar-se — disse ele — de que quando há pouco tempo li para você um trecho de um conto de Poe, no qual certa personagem acompanha pelo raciocínio os pensamentos íntimos do companheiro, você se mostrou inclinado a considerar o assunto simplesmente um tour de force do autor. Como se afirmasse que estava habituado a fazer a mesma coisa, mostrou-se incrédulo. — Oh! Não é verdade! — Talvez não tenha dito nada, meu caro Watson, mas o movimento de suas sobrancelhas deu-o a entender. Assim, quando o vi abandonar o jornal e pôr-se a pensar, aproveitei o ensejo para seguir o curso de sua meditação e, eventualmente, interrompê-lo com uma oportuna observação, a fim de lhe provar que o havia feito. — Todavia, eu estava longe de me dar por satisfeito. — No exemplo que você leu — disse eu —, o raciocinador tira suas conclusões dos atos praticados pelo homem que ele observa. Se não me engano, este tropeçou num monte de pedras, olhou para as estrelas, e assim por diante. Eu, porém, deixei-me ficar tranqüilamente em minha cadeira. Portanto, que indicação poderia ter-lhe proporcionado? — Você não é justo para com você mesmo. As feições foram dadas ao homem como meio de exprimir suas próprias emoções, fato que em si pode muito bem ser absurdo. — Quer dizer que você seguiu o curso de meus pensamentos pela expressão de meu rosto? — Do rosto e especialmente dos olhos. Talvez se recorde de como teve início seu devaneio, não é verdade? — Na verdade, não me lembro. — Então, vou dizer-lhe. Depois de ter atirado o jornal para o chão, gesto esse que me atraiu a atenção para sua pessoa, deixou-se ficar durante meio minuto com o rosto inexpressivo. Em seguida, seus olhos fixaram-se no retrato, recentemente emoldurado, do general Gordon, e percebi, pela mudança de sua fisionomia, que este lhe provocara uma série de reflexões. Estas, porém, não o levaram muito longe. Seu olhar voltou-se subitamente para o retrato ainda sem moldura de Henri Ward Beecher, que se encontra em cima de seus livros. Depois disso, você olhou para a parede e adivinhei-lhe claramente o pensamento. Você considerou que, se o retrato estivesse emoldurado, caberia exatamente naquele espaço vago e ficaria simétrico com o de Gordon, do outro lado. — Você acompanhou-me maravilhosamente! — exclamei. — Até aí, dificilmente poderia enganar-me. Mas, nesse momento, você voltou a pensar em Beecher, e seu olhar tornou-se fixo, como se estivesse estudando

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através das feições o caráter do homem. Depois, seus olhos perderam a firmeza; no entanto, você continuou a mirar o retrato com ar pensativo, evocando os incidentes da carreira de Beecher. Tinha certeza de que não poderia fazer isso sem se lembrar da missão por ele empreendida a favor do norte, durante a guerra civil, pois recordo-me de tê-lo ouvido dar largas à sua indignação pela maneira como foi recebido pêlos mais exaltados de nossos compatriotas. Seu ressentimento era tão forte a esse respeito, que compreendi não lhe ser possível pensar em Beecher sem se recordar disso. Quando, um instante depois, vi seu olhar desviar-se do retrato, suspeitei que seu pensamento se voltara para a guerra civil, e, ao observar-lhe os lábios cerrados, os olhos cintilantes e os punhos crispados, fiquei absolutamente certo de que estava se recordando da admirável bravura demonstrada por ambas as partes naquela luta desesperada. Todavia, seu rosto novamente se carregou, e você sacudiu a cabeça. Refletia sobre a tristeza e o horror daquele conflito, e o inútil desperdício de vidas. Sua mão pousou quase inadvertidamente sobre o ferimento na perna, e um sorriso lhe pairou nos lábios, o que me veio demonstrar que notara o ridículo desse modo de resolver questões internacionais. Foi então que concordei com você, afirmando-lhe que era absurda essa situação, e fiquei satisfeito por ver que todas as minhas deduções eram exatas. — Exatíssimas! — confirmei. — E agora, depois de me ter explicado tudo, confesso que estou tão perplexo como antes. — Asseguro-lhe que foi uma experiência muito superficial, caro Watson. E nem lhe teria chamado a atenção para isso, se não fosse a incredulidade demonstrada por você outro dia. Entretanto, tenho aqui entre as mãos um pequeno problema que talvez se mostre de solução bem mais difícil do que meu modesto ensaio de leitura de pensamento. Leu por acaso no jornal um breve parágrafo relativo ao estranho conteúdo de certo pacote enviado pelo correio à srta. Cushing, residente à Cross Street, em Croydon? — Não, não li nada. — Ah! Deve ter-lhe escapado, então. Passe-me o jornal. Cá está ele, sob a coluna financeira. Quer fazer o favor de lê-lo em voz alta? Tomei o jornal que ele me devolvera e li o parágrafo indicado. Trazia o título "Um pacote macabro" e rezava o seguinte: — "A srta. Susan Cushing, residente à Cross Street, Croydon, foi vítima do que se pode considerar uma brincadeira de mau gosto particularmente revoltante, a não ser que se prove que o incidente tenha significado mais trágico. Às duas horas da tarde de ontem, foi-lhe entregue pelo carteiro um pacote envolto em papel pardo. Dentro encontrava-se uma caixa de papelão cheia de sal grosso. Ao esvaziá-la, a srta. Cushing deparou, horrorizada, com duas orelhas humanas, aparentemente recém-cortadas. A caixa fora despachada de Belfast, como encomenda, na manhã anterior. Não há a menor indicação quanto à identidade do remetente, e o caso torna-se ainda mais misterioso ao considerar-se que a destinatária é solteira, tem cinqüenta anos de idade,

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sempre levou uma vida muito isolada e possui tão poucos conhecidos ou correspondentes que, para ela, é acontecimento raro receber qualquer coisa pelo correio. Todavia, há alguns anos, quando morava em Penge, alugou quartos a três jovens estudantes de medicina, dos quais foi obrigada posteriormente a desfazer-se devido aos hábitos irregulares e turbulentos deles. A polícia é de opinião que se trata de obra desses estudantes, que, por vingança, enviaram à srta. Cushing, com o intuito de aterrorizá-la, esses sobejos da sala de anatomia. Essa hipótese apresenta certas probabilidades pelo fato de um dos estudantes ser oriundo do norte da Irlanda e mesmo, como a srta. Cushing crê poder afirmar, de Belfast. Entretanto, o caso está sendo ativamente investigado, sob a direção do sr. Lestrade, um de nossos mais hábeis agentes policiais." — Isto é o que diz o Daily Chronicle — disse Holmes, quando terminei a leitura. — Vejamos agora nosso amigo Lestrade. Recebi um bilhete dele hoje de manhã, com os seguintes dizeres: "Suponho que este caso seja muito a seu gosto. Temos grandes esperanças de esclarecê-lo. No entanto, encontramos certa dificuldade em obter uma pista concreta. Já telegrafamos, naturalmente, para a agência do correio de Belfast, mas, como naquele dia foi entregue ali grande número de pacotes, não foi possível identificar o que nos interessa, nem a pessoa do remetente. A referida caixa é de tabaco para cachimbo, de meia libra, e não nos fornece nenhuma indicação. Segundo me parece, a hipótese relativa ao estudante de medicina é a mais viável, mas, se o senhor pudesse dispor de algumas horas, teria muito prazer em vê-lo por aqui. Encontrar-me-á, a qualquer hora do dia, em casa da srta. Cushing ou no posto policial.' "Que me diz disso, Watson? Sente-se com coragem para enfrentar o calor e me acompanhar até Croydon, com a vaga esperança de mais um caso para seus anais?" — Estava ansioso por fazer alguma coisa. — Aí tem, pois, a oportunidade. Chame o criado e peca-lhe que nos arranje um carro. Estarei pronto num instante; apenas o tempo de mudar de roupa e encher a charuteira. Caiu uma chuva forte durante a viagem de trem, e encontramos em Croydon um calor muito menos opressivo do que na cidade. Holmes fizera-se preceder de um telegrama, de modo que Lestrade, nervoso, vivaz e furão como sempre, aguardava nossa chegada na estação. Uma caminhada de cinco minutos conduziu-nos à Cross Street, onde residia a srta. Cushing. Era uma rua muito comprida, formada por fileiras de casas de tijolos, sóbrias e bem-conservadas, com degraus de pedra branca e pequenos grupos de mulheres tagarelando no limiar das portas. A meio caminho, Lestrade parou e bateu a certa porta, que foi aberta por uma criadinha. Fomos introduzidos na

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sala da frente, onde se encontrava a srta. Cushing, mulher de fisionomia plácida, olhos grandes e meigos e cabelos grisalhos, que caíam em bandós sobre as têmporas. Via-se em seu regaço uma coberta de poltrona, já quase toda bordada, e, sobre um tamborete próximo, um cesto com novelos de fios de seda de diversas cores. — Aquelas coisas horrendas estão lá fora, no

quarto de despejo — disse, ao ver Lestrade entrar. — Ficar-lhe-ia grata se as levasse daqui definitivamente. — É o que vou fazer, srta. Cushing. Conservei-as aqui até que este meu amigo, o sr. Holmes, as visse em sua presença. — Por que em minha presença? — Para o caso de ele desejar fazer-lhe alguma pergunta. — Que adianta fazer-me perguntas quando já lhe afirmei não saber nada a esse respeito? — Perfeitamente, minha senhora — interpôs Sherlock Holmes com seu tom conciliador. — Estou certo de que já foi muito importunada por causa desse desagradável assunto. — Já o fui, deveras. Sou amiga do sossego e levo vida retirada. É absoluta novidade para mim ter o nome nos jornais e a polícia em minha casa. Não quero ver aquelas coisas aqui, sr. Lestrade; se deseja examiná-las, deve fazê-lo no quarto de despejo, lá fora. Era um acanhado quartinho, no estreito quintal dos fundos da casa. Lestrade entrou e trouxe de lá uma caixa amarela de papelão, embrulhada com um pedaço de papel pardo e um barbante. Havia um banco, num canto do quintal, em que todos nos sentamos, enquanto Holmes observava, um por um, os objetos que Lestrade lhe entregara. — Este barbante é extremamente interessante — ponderou, levantando-o contra a luz e cheirando-o. — Que me diz disso, Lestrade? — Foi besuntado com alcatrão. — Precisamente. Trata-se de barbante alcatroado. Terá notado, sem dúvida, que a srta. Cushing o cortou com uma tesoura, como se depreende das duas pontas desfiadas. Isso é importante. — Não vejo qual a importância de tal fato — retorquiu Lestrade. — A importância está no fato de o nó não ter sido tocado. Ora, este nó é

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característico. — Foi feito com muita precisão. Já o notara também — acrescentou Lestrade com ar complacente. — Isso no que diz respeito ao barbante — continuou Holmes, sorrindo. — Vejamos, agora, o invólucro da caixa. Papel pardo com forte cheiro de café. Como? Não o havia

notado? Creio não existir dúvidas. Endereço escrito em letra de forma e em caracteres muito irregulares: "Srta. S. Cushing, Cross Street, Croydon". Escrito com pena de ponta grossa e tinta de qualidade muito ordinária. A palavra Croydon foi a princípio ortografada com i, depois transformado em y. O pacote, portanto, foi enviado por um homem — a letra é visivelmente masculina — de limitada cultura e que não conhece a cidade de Croydon. Até aqui, muito bem! A caixa é de tabaco para cachimbo, de meia libra, amarela, sem nada de especial exceto duas marcas de polegar no ângulo inferior esquerdo. Está cheia de sal grosso, da qualidade usada para conservar peles e outros produtos comerciais de tipo inferior. E no meio dele é que se encontram estas singularíssimas remessas. Enquanto falava, retirou as duas orelhas da caixa e, colocando-as sobre uma tábua, em cima dos joelhos, pôs-se a examiná-las atentamente, ao passo que eu e Lestrade, curvados a seu lado, olhávamos alternadamente para aqueles despojos horrorosos e para o rosto atento e sagaz de nosso companheiro. Finalmente, repôs as orelhas macabras na caixa e deixou-se ficar algum tempo imerso em profunda meditação. — Com certeza, já deve ter observado — disse ele por fim — que estas duas orelhas não pertencem a um mesmo indivíduo. — Sim, já o notara; mas, se isso é brincadeira de mau gosto da parte de alguns estudantes, a estes seria tão fácil subtrair da sala de anatomia duas orelhas diferentes como um par. — Perfeitamente; mas não se trata aqui de travessura de estudantes. — Tem certeza disso? — As aparências são absolutamente contrárias a tal hipótese. Os cadáveres usados para dissecação normalmente são injetados com um líquido próprio para conservá-los. Ora, estas orelhas não apresentam sinais desse líquido e, além do mais, são frescas. Foram cortadas com instrumento cortante mal-afiado, o que dificilmente aconteceria se fosse obra de um estudante de medicina. Por outro lado, não ocorreria por certo a esse estudante escolher sal grosso como elemento preservativo, mas sim o formol ou o álcool retificado. Repito que não existe aqui nenhuma brincadeira de mau gosto, mas que nos encontramos em face de gravíssimo delito.

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Senti um ligeiro arrepio percorrer-me a espinha ao ouvir as palavras de meu amigo e ao ver a gravidade de sua expressão. Aquele prelúdio brutal parecia vaticinar estranha e inexplicável tragédia. Lestrade, porém, abanou a cabeça como quem tivesse ainda suas dúvidas. — Certamente, podem ser levantadas objeções à hipótese de uma travessura — disse. — Todavia, há razões muito mais fortes contra sua teoria. Sabemos que esta mulher levou vida tranqüila e respeitável durante os últimos vinte anos, tanto em Penge como aqui. Durante esse tempo, quase não se afastou de casa. Por que diabos um criminoso iria enviar-lhe as provas de sua culpabilidade, tanto mais que, salvo tratar-se de atriz consumada, ela parece entender tanto do assunto como nós mesmos? — É esse o problema que nos cumpre resolver — replicou Holmes —, e por minha parte iniciarei as pesquisas no suposição de ser correto o meu raciocínio e de ter sido cometido um duplo assassinato. Uma dessas orelhas é de mulher: pequena, de contornos delicados e com um orificiozinho para brincos. A outra é de homem, queimada de sol, descorada e também furada para brincos. Ambas as pessoas devem estar mortas; caso contrário, já teríamos sabido alguma coisa. Hoje é sexta-feira. O pacote foi posto no correio quinta-feira cedo; a tragédia, portanto, ocorreu quarta ou terça-feira, ou talvez antes. Ora, se estas duas pessoas foram assassinadas, quem, senão o assassino, teria enviado à srta. Cushing a prova do delito? Podemos, pois, considerar o remetente do pacote como o homem que nos interessa. Contudo, alguma razão poderosa deveria tê-lo feito mandar esta caixa à srta. Cushing. Qual seria? Teria agido dessa maneira a fim de mostrar-lhe ter sido o crime cometido, ou talvez para impressioná-la e afligi-la? Nesse caso, ela sabe de quem se trata. Saberá realmente? Duvido. Se soubesse, por que haveria de chamar a polícia? Poderia ter enterrado as orelhas, e ninguém ficaria sabendo de nada. É o que teria feito se quisesse proteger o criminoso. No entanto, se não tivesse a intenção de protegê-lo, teria dado o nome dele. Há aqui uma confusão que precisa ser esclarecida. Holmes falara rapidamente, em voz alta, olhando absorto por sobre a cerca do jardim. De súbito, pôs-se de pé e encaminhou-se para a casa. — Preciso fazer algumas perguntas à srta. Cushing — explicou. — Nesse caso, vou deixá-lo aqui — respondeu Lestrade —, pois tenho que tratar de outro assunto de menor importância. Creio já ter obtido da srta. Cushing todas as informações que me poderiam interessar. Encontrar-me-á no posto policial. — Passaremos por lá quando formos para a estação — respondeu Holmes. Momentos após, eu e ele encontrávamo-nos de novo na sala da frente, onde a impassível senhora continuava trabalhando tranqüilamente em seu bordado. Ao entrarmos, depô-lo no regaço e fitou-nos com os olhos azuis, francos e inquiridores.

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— Estou convencida — disse-nos — de que toda essa história não passa de um engano, e que o pacote não me era destinado. Já o disse várias vezes àquele senhor da Scotland Yard, o qual, todavia, se limitou a rir de mim. Que eu saiba, não tenho um único inimigo no mundo. Por que iria alguém fazer tal brincadeira comigo? — Estou propenso a concordar com a sua opinião, srta. Cushing — replicou Holmes, sentando-se ao seu lado. — Creio ser mais que provável... Parou de falar e, olhando-o, fiquei admirado ao notar o singular interesse com que fitava o perfil da srta. Cushing. Nesse instante foi-me possível ler em seu rosto expressivo surpresa e contentamento, embora, quando ela se voltou para averiguar a causa de sua interrupção, ele já houvesse recuperado a impassibilidade habitual. Pus-me a estudar, por minha vez, seus cabelos lisos e grisalhos, a graciosa touca, os pequenos brincos dourados e suas feições serenas; nada, porém, encontrei que justificasse a evidente emoção de meu amigo. — Há uma ou duas perguntas... — Oh! Já estou farta de perguntas — exclamou a srta. Cushing com impaciência. — A senhorita tem duas irmãs, creio. — Como pode saber isso? — Logo que entrei nesta sala, vi sobre a prateleira da lareira o retraio de três moças, uma das quais é indiscutivelmente a senhorita, enquanto as outras se lhe assemelham de modo a não deixar dúvidas acerca do parentesco que as une. — De fato, tem razão. São minhas irmãs Sara e Mary. — E aqui a meu lado está outro retraio, tirado em Liverpool, de sua irmã mais nova em companhia de um homem que, pelo uniforme, me parece comissário de bordo. Vejo que nessa ocasião ela ainda não era casada. — Que grande observador! — É minha profissão. — Realmente, acertou. Todavia, ela casou-se poucos dias após com Browner. Na época dessa fotografia, ele fazia o serviço regular de navegação para a América do Sul, mas amava-a tanto que não se resignou a passar tanto tempo longe dela, e conseguiu transferência para o serviço costeiro entre Londres e Liverpool. — No Conqueror, por acaso?

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— Não; no May Day, pelo menos na última vez que dele tive notícias. Em certa ocasião, Jim veio visitar-me. Foi antes de ele quebrar sua promessa; desde então, porém, sempre que desembarcava punha-se a beber, e bastavam uns poucos goles para transformá-lo num doido varrido. Ah! Dia fatídico aquele em que começou a beber! Primeiro deixou de me procurar, depois brigou com Sara, e agora que Mary deixou de me escrever, não sei como andam as coisas entre eles. Era evidente ter a srta. Cushing tocado em assunto que lhe era de extremo interesse. Como a maioria das pessoas de vida solitária, tinha se mostrado tímida a princípio, mas acabara por tornar-se excessivamente loquaz. Contou-nos numerosas particularidades a respeito do cunhado marinheiro, e depois passou ao assunto dos antigos pensionistas, os estudantes de medicina, de cujas travessuras nos fez longa relação, dando-nos seus nomes e os dos hospitais em que praticavam. Holmes ouvia tudo com atenção, fazendo ocasionalmente uma ou outra pergunta. — A propósito de sua segunda irmã, Sara — disse —, não compreendo como, sendo ambas solteiras, não pensaram em montar casa juntas. — Ah! Se o senhor conhecesse o gênio de Sara, compreenderia. Tentei morar com ela por ocasião de minha mudança para Croydon, e estivemos juntas até há cerca de dois meses, quando fomos forçadas a nos separar. Não quero falar mal de minha própria irmã, mas Sara sempre foi muito difícil de aturar. — A senhorita disse que ela se dava mal com seus parentes de Liverpool? — Sim, mas houve tempo em que eles foram étimos amigos, a ponto de ela se mudar para lá para estar mais perto deles. E, no entanto, agora vive dizendo o

pior de Jim Browner. Nos últimos seis meses que passou aqui, não fazia outra coisa senão falar na maneira como ele bebia e em seu mau comportamento. Suspeito que Jim a apanhou fazendo algum mexerico, ficou seriamente zangado e aí está como principiou a inimizade entre eles. — Obrigado, srta. Cushing — disse Holmes, pondo-se de pé e fazendo uma vênia. — Parece haver-me dito que sua irmã Sara mora na New Street, em Wailington, não é? Passe bem, e creia que lastimo que tenha sido tão importunada num caso com o qual nada tem que ver. Ao sairmos dali, passava um carro, e Holmes

fez sinal ao cocheiro. — Qual é a distância daqui a Wailington? — indagou.

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— Não chega a um quilômetro e meio. — Muito bem. Suba, Watson; precisamos malhar enquanto o ferro está quente. Embora simples, este caso oferece alguns aspectos muito interessantes. Pare um momento na agência telegráfica mais próxima, cocheiro. Holmes expediu um breve telegrama, e durante o resto do trajeto permaneceu recostado no fundo da carruagem, com o chapéu caído sobre os olhos para proteger-se do sol. Nosso veículo parou diante de uma casa não muito diversa da que acabávamos de deixar. Meu companheiro ordenou ao cocheiro que esperasse, e estava para bater à porta quando esta se abriu e um jovem de maneiras circunspectas, vestido de preto e usando uma cartola muito reluzente, apareceu no limiar. — A srta. Cushing está em casa? — A srta. Cushing acha-se gravemente enferma — respondeu o jovem. — Apresenta desde ontem distúrbios cerebrais de extrema intensidade. Como seu médico, não posso arcar com a responsabilidade de permitir-lhe visitas. Tomo a liberdade de pedir-lhes para voltarem daqui a uns dez dias. Dizendo isso, calçou as luvas, fechou a porta e afastou-se a pé, rua abaixo. — Bem, o que não tem remédio, remediado está — observou Holmes em tom gaiato. — Talvez ela não estivesse em condições, ou mesmo não tivesse desejo de lhe dizer grande coisa. — Não pretendia que ela me dissesse nada; queria apenas vê-la. Não obstante, creio ter obtido tudo quanto desejava. Leve-nos a algum hotel decente, cocheiro, onde possamos almoçar; depois, passaremos pelo posto policial para ver nosso amigo Lestrade. Fizemos juntos uma agradável refeição, durante a qual Holmes não falou de outra coisa senão de violinos, explicando-me com grande satisfação como comprara pela ridícula soma de cinqüenta e cinco xelins, a um judeu vendedor de objetos de segunda mão, na Tottenham Court Road, seu Stradivarius, que valia no mínimo quinhentos guinéus. Esse assunto fê-lo divagar sobre Paganini, e ficamos, pelo espaço de uma hora, sentados diante de uma garrafa de clarete, enquanto desfiava histórias e mais histórias acerca dessa extraordinária personalidade. A tarde já declinava e a luz ardente do sol transformara-se em amena claridade, quando chegamos ao posto policial. Lestrade esperava-nos à porta. — Aqui está um telegrama à sua espera, sr. Holmes — disse. — Ah! É a resposta que aguardava. — Holmes abriu-o, leu rapidamente o texto

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e guardou-o no bolso. — Vai tudo muito bem — acrescentou. — Conseguiu descobrir alguma coisa? — Descobri tudo! — Como?! — exclamou Lestrade, assombrado, fitando Holmes. — O senhor está brincando! — Nunca disse nada de mais sério em minha vida. Foi perpetrado um crime espantoso, e acredito tê-lo desvendado em todos os pormenores. — E o criminoso? Holmes rabiscou algumas palavras no verso de um cartão de visita e estendeu-o a Lestrade. — Eis o nome dele — explicou. — Todavia, não poderá prendê-lo senão amanhã à noite. Gostaria que meu nome não fosse mencionado no que diz respeito a este caso, porque prefiro associá-lo unicamente a crimes cuja solução ofereça reais dificuldades. Vamos, Watson. Encaminhamo-nos a pé para a estação, enquanto Lestrade fitava, entre atônito e satisfeito, o cartão que Holmes lhe entregara. — Este caso — declarou Sherlock Holmes enquanto cavaqueávamos naquela noite, saboreando nossos charutos nos aposentos da Baker Street — assemelha-se aos que você já descreveu sob os títulos de Um estudo em vermelho e O signo dos quatro, nos quais fomos obrigados a raciocinar, seguindo a ordem inversa, dos efeitos para as causas. Escrevi a Lestrade pedindo-lhe que nos forneça os detalhes que ainda nos faltam, os quais só poderão ser obtidos depois de ele ter capturado o homem. Isso podemos ter a certeza de que o fará, pois, embora desprovido totalmente de inteligência, é dotado de uma tenacidade de buldogue quando compreende o que deve fazer. Aliás, foi justamente essa tenacidade a causa de sua ascensão na Scotland Yard. — Então seus dados ainda não estão completos? — perguntei. — Estão quase completos no que se refere aos pontos essenciais. Sabemos quem é o autor deste crime revoltante, apesar de ainda ignorarmos a identidade de uma das vítimas. Você, naturalmente, já tirou suas próprias conclusões. — Imagino ser Jim Browner, o comissário de bordo de um navio de Liverpool, a pessoa de quem você suspeita. — Oh! É mais do que simples suspeita. — E, ainda assim, nada vejo senão indícios muito vagos.

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— Pelo contrário, para mim nada poderia ser mais claro. Deixe-me recordar-lhe os pontos principais. Como deve estar lembrado, enfrentamos o caso com espírito completamente desarmado, o que, nestas circunstâncias, constitui sempre uma vantagem. Não tínhamos formulado nenhuma hipótese. Ali estávamos, simplesmente para observar e tirar conclusões do que nos fosse dado ver. O que se nos deparou em primeiro lugar? Uma excelente senhora, calma e respeitável, que parecia completamente alheia ao mistério, e um retrato que me revelava possuir ela duas irmãs mais novas. Instantaneamente, surgiu-me no espírito a ideia de que o pacote talvez fosse destinado a uma delas. Deixei de lado essa hipótese, que poderia, em tempo oportuno, ser confirmada ou abandonada. Dirigimo-nos depois, como deve estar lembrado, para o quintal, onde examinamos o singularíssimo conteúdo da caixa amarela. "O barbante do tipo usado no velame de navios, e, de súbito, o ambiente do mar invadiu nossas investigações. Quando observei que o nó era característico entre marinheiros, que o pacote fora expedido de um porto de mar e que a orelha masculina tinha um orifício para brinco, coisa muito mais comum entre marujos do que entre habitantes de terra firme, convenci-me de que os protagonistas da tragédia deviam encontrar-se nos meios marítimos. "Ao examinar o endereço do pacote, notei estar ele dirigido à srta. S. Cushing. Ora, a irmã mais velha seria, naturalmente, também srta. Cushing, mas, embora sua inicial fosse S, essa letra poderia pertencer da mesma forma a uma das outras. Nesse caso, deveríamos iniciar nossas pesquisas em base completamente nova. Entrei, portanto, na casa, com o intuito de esclarecer esse ponto. Talvez se lembre de que, quando eu estava para afirmar à srta. Cushing minha convicção de ter havido algum engano, calei-me subitamente. O fato é que acabara de notar algo que me encheu de surpresa e, ao mesmo tempo, restringiu consideravelmente o campo de minhas indagações. "Na qualidade de médico, Watson, deve saber que não existe parte do corpo humano que apresente tantas variações como a orelha. Cada uma tem as próprias características, e difere de todas as demais. Na Revista Antropológica do ano passado, você encontrará duas breves monografias de minha lavra sobre o assunto. Examinei, por isso, com olhos de entendido, as orelhas contidas na caixa, e verifiquei cuidadosamente suas peculiaridades anatômicas. Imagine, pois, meuespanto quando, ao olhar para a srta. Cushing, reparei corresponder sua orelha à orelha feminina que eu acabara de inspecionar. Não era possível pensar em coincidência. Ali estava o mesmo encurtamento da aurícula, a mesma curva larga do lobo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna. Em todos os pontos essenciais, era perfeita a semelhança. "Percebi logo a enorme importância de tal observação. Era evidente ser a vítima uma consangüínea e até, provavelmente, parente muito próxima. Comecei a falar-lhe de sua família, e você se lembra que ela nos propiciou informações particularmente preciosas. "Em primeiro lugar, o nome da irmã era Sara, e até há pouco tempo o

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endereço de ambas era idêntico, o que tornava patente a causa do engano e a pessoa a quem se destinava o pacote. Falou-nos depois daquele comissário de bordo, casado com sua irmã mais nova, e ficamos sabendo que suas relações com Sara foram tão íntimas durante algum tempo que esta passara a residir em Liverpool a fim de ficar mais próxima dos Browners, embora uma desavença os separasse depois. Essa discórdia fizera cessar todas as relações entre eles durante alguns meses, e por isso, se Browner tivesse tido ocasião de remeter um pacote à srta. Sara, tê-lo-ia feito ao antigo endereço. "O assunto começava, então, a tornar-se extremamente claro. Sabíamos da existência desse marujo, homem impulsivo e de paixões violentas (lembre-se de que, para ficar mais perto da esposa, renunciou a carreira muito superior), sujeito também a freqüentes bebedeiras. Tínhamos razões para crer que sua mulher fora assassinada e que um homem, talvez um marujo também, havia sido morto na mesma ocasião. Imediatamente, o ciúme se nos apresenta como motivo do crime. Mas por que mandar à srta. Sara Cushing as provas do delito? Possivelmente porque, durante sua estada em Liverpool, ela teve alguma influência na sucessão de acontecimentos que levaram à tragédia. Repare que os navios da linha de Browner fazem escala em Belfast, Dublin e Waterford; presumindo, portanto, que Browner tivesse cometido o crime, embarcando logo após no May Day, Belfast teria sido o primeiro porto do qual podia expedir o macabro pacote. "Nessa fase, evidentemente, era possível uma segunda solução, e embora a achasse muito menos provável, resolvi elucidá-la antes de ir mais além. Um apaixonado repelido talvez pudesse ter matado o sr. e a sra. Browner, e a orelha masculina seria então do marido. Contra essa hipótese existiam muitas e graves objeções, mas era admissível. Por conseguinte, telegrafei a meu amigo Algar, da polícia de Liverpool, e pedi-lhe que me informasse se a sra. Browner se encontrava em sua residência e se Browner partira no May Day. Feito isso, dirigimo-nos a Wailington, a fim de visitar a srta. Sara Cushing. "Antes de mais nada, estava curioso por ver até que ponto os traços de família da orelha se tinham reproduzido nela. Por outro lado, talvez ela pudesse fornecer-nos informações importantes, coisa com que, aliás, eu não contava muito. Já devia ter ouvido falar sobre o assunto no dia anterior, pois em toda Croydon não se comentava outra coisa, e só ela podia ter compreendido a quem se destinava o pacote. Se fosse sua intenção ajudar a justiça, decerto já teria se comunicado com a polícia. Em todo caso, era nosso dever procurá-la, e por isso fomos até lá. Verificamos que a notícia da chegada do pacote, pois sua doença datava daquele momento, produzira nela efeito tão violento que a prostrara de cama com uma febre cerebral. Era mais que evidente ter ela compreendido todo o seu significado e, por outro lado, era igualmente claro que teríamos de esperar algum tempo antes de podermos contar com qualquer ajuda de sua parte. "Na realidade, porém, esse auxílio era-nos desnecessário. As respostas que desejávamos já nos esperavam no posto policial, pois dera a Algar instruções para remetê-las para lá. Não poderiam ser mais conclusivas. A casa da sra. Browner encontrava-se fechada havia mais de três dias, e os vizinhos

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acreditavam que ela viajara para o sul, em visita a parentes. Algar certificara-se, na companhia de navegação, da partida de Browner a bordo do May Day, que, calculo, entrará amanhã à noite no Tamisa. Ao chegar, será acolhido pelo obtuso mas resoluto Lestrade, e não tenho dúvidas de que obteremos então os pormenores que ainda nos faltam." Sherlock Holmes não viu frustradas suas expectativas. Dois dias mais tarde, recebia um envelope volumoso que continha um bilhete do detetive e um documento datilografado constando de várias páginas de papel de carta. — Lestrade apanhou-o, como eu esperava — disse Holmes, lançando-me um olhar significativo. — Talvez lhe interesse saber o que ele diz.

"Meu caro sr. Holmes: De acordo com o plano por nós estabelecido a fim de poder provar nossas teorias, dirigi-me ao cais Albert, ontem às dezoito horas, e subi a bordo do May Day, propriedade da Liverpool, Dublin & London Stream Packet Company. Procedendo a indagações, fui informado de que efetivamente se encontrava ali um comissário de nome James Browner, que se portara durante a viagem de maneira tão estranha que o capitão se vira forçado a dispensá-lo de suas funções. Descendo à sua cabina, fui encontrá-lo sentado num caixote, com a cabeça entre as mãos, agitando-se como um demente. É um tipo corpulento, robusto, de rosto escanhoado e pele trigueira — meio parecido com Aldrige, que nos auxiliou no caso da falsa lavanderia. Quando soube do objetivo de minha visita, pôs-se de pé num salto felino, e eu já estava com o apito na boca para chamar dois

homens da polícia fluvial que me esperavam do lado de fora quando ele, dando mostras de completa falta de ânimo, estendeu maquinalmente as mãos às algemas, sem opor a menor resistência. Levamo-lo imediatamente para a prisão, juntamente com o caixote, que pensávamos pudesse conter algo de acusador; no entanto, além de um facão afiado, como os usados pela maioria dos marinheiros, nada encontramos que merecesse nosso trabalho. Mas verificamos não serem necessárias mais provas, pois, uma vez diante do inspetor de serviço, pediu licença para fazer uma declaração que, como é natural, foi anotada literalmente pelo nosso taquígrafo. Mandamos tirar três cópias datilografadas, das quais lhe mando uma. A coisa, como sempre imaginei, resolveu-se de maneira extremamente simples. Todavia, fico-lhe agradecido pela sua gentil assistência na investigação deste caso. Com as melhores saudações, creia-me seu amigo devotado,

G. Lestrade."

— Hum! A investigação era realmente muito simples — comentou Holmes; — no entanto, não creio que assim lhe parecesse quando nos procurou pela primeira vez. Vejamos, entretanto, o que diz Jim Browner. Eis sua declaração,

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feita diante do inspetor Montgomery, no posto policial de Shadwell, que tem a vantagem de ter sido registrada com as próprias palavras do criminoso: "Se tenho alguma coisa que dizer? Sim, muitíssimo. Sinto necessidade de aliviar minha consciência. Se quiserem, podem enforcar-me ou deixar-me em paz. Pouco me importa. O que posso afirmar é que não preguei o olho desde que fiz aquilo, e não sei se jamais conseguirei fazê-lo. Algumas vezes é o rosto dele que vejo, mas é o dela que me surge diante dos olhos com mais freqüência. Não consigo fazê-los desaparecer de minha frente. Ele fita-me, carrancudo e ameaçador; ela, porém, olha-me com surpresa. Ah! Pobrezinha! O que

não teria sentido ao ver a morte estampada num rosto onde até então só vira amor! "No entanto, a culpa foi toda de Sara, e possa a maldição de um desgraçado cair sobre sua cabeça e fazer-lhe apodrecer o sangue nas veias! Não digo isso para me inocentar; tinha recomeçado a beber, como um bruto que sou. Mas tudo isso ela me teria perdoado; ela continuaria ligada a mim como uma corda à sua caçamba, se a figura daquela mulher nunca tivesse escurecido a porta de nosso lar. Pois Sara Cushing amava-me — esta foi a origem da tragédia —, amava-me até sua paixão desvairada se transformar em ódio venenoso quando percebeu que para mim tinham mais valor as pegadas de minha mulher na lama do que todo o seu corpo e alma juntos. "Eram três irmãs. A mais velha era uma boa criatura; a segunda, um demônio, e a terceira, um anjo. Quando me casei, Sara tinha trinta e três anos, e Mary, vinte e nove. No início, a felicidade era completa em nosso lar, e em toda Liverpool não existia melhor esposa do que minha Mary. Certo dia convidamos Sara para passar uma semana conosco, mas a semana converteu-se num mês, os meses sucederam-se, e ela acabou por tornar-se pessoa da casa. "Minha situação financeira naquela época era boa, tínhamos começado a economizar algum dinheiro, e tudo corria às mil maravilhas. Meu Deus, quem poderia supor que iríamos terminar assim? Quem poderia ao menos imaginá-lo? "Freqüentemente, eu passava os fins de semana em casa, e algumas vezes, quando o navio ficava retido à espera de carga, tinha sete dias de licença, o que me proporcionava maior contato com minha cunhada. Era uma bela mulher, alta, morena e enérgica, de porte altivo e tinha olhos que pareciam lançar chispas de fogo. Todavia, quando a pequenina Mary estava em casa, nem pensava nela, e isso eu juro pela esperança que tenho na misericórdia divina. "Às vezes, tinha a impressão de que ela desejava ficar só comigo ou procurava convencer-me a sair a passeio em sua companhia. No entanto,

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jamais dei importância a isso. Mas certa noite meus olhos abriram-se. Tinha desembarcado e, chegando a casa, encontrei apenas Sara à minha espera. "— Onde está Mary? — perguntei. "— Oh! Saiu para pagar umas contas. "Fiquei impaciente e pus-me a andar de um lado para outro na sala. "— Você não pode ficar sossegado cinco minutos sem Mary, Jim? — disse ela. — É bem pouco lisonjeiro para mim que não possa contentar-se com minha companhia por tão pouco tempo. "— Não fique zangada comigo, minha cara — desculpei-me, estendendo-lhe a mão num gesto carinhoso. Ela, porém, tomou-a de súbito entre as suas, que queimavam como se estivesse com febre. Fitei-a nos olhos e compreendi tudo num relance. Não tivemos necessidade de falar, nem ela nem eu. Assumi um ar severo e retirei a mão de entre as suas. Ela permaneceu algum tempo em silêncio, depois levantou o braço e bateu-me no ombro. "— Paciência, meu velho — disse-me e, com uma espécie de risada irónica, saiu da sala. "Pois bem, desse dia em diante Sara passou a odiar-me de todo o coração. E de que ódio é capaz aquela mulher! Fui idiota por deixá-la continuar a viver conosco, um rematado idiota; mas nunca disse nada à minha mulher, pois sabia que a iria desgostar. Tudo ficou como antes; todavia, algum tempo depois, principiei a notar certas mudanças em Mary também. Ela, que sempre se mostrara confiante e inocente, tornara-se esquisita e suspeitosa. Queria saber onde eu estivera e o que havia feito, a proveniência de minhas cartas, o conteúdo de meus bolsos e outras tantas tolices. Dia a dia se tornava mais estranha e irritável, provocando discussões pêlos motivos mais fúteis. Tudo isso me deixava francamente perplexo. Sara passou a evitar-me; no entanto, ela e Mary eram inseparáveis. Percebo agora que ela conspirava contra mim e envenenava a alma de minha mulher. Entretanto, eu, cego e cretino, não via nada disso. Foi então que quebrei a promessa e recomecei a beber, mas não creio que o tivesse feito se Mary continuasse a ser a mesma de antigamente. Tinha, então, motivos bastantes para se sentir desgostosa comigo, e a cisão entre nós aumentava cada vez mais. Entretanto, apareceu em cena esse maldito Alec Fairbairn, e a situação piorou sensivelmente. "Foi para ver Sara que ele foi pela primeira vez à minha casa, mas logo suas visitas destinavam-se a todos nós, pois era um homem de maneiras insinuantes e arranjava amigos aonde quer que fosse. Rapaz agradável, audacioso, elegante, vira meio mundo e sabia falar do que vira. Era sem dúvida bom companheiro, e sua educação excedia a de um marujo. Por isso, julgo que houve uma época em que viajava mais como passageiro do que como tripulante. Durante um mês não fez outra coisa senão ir à minha casa, e nem por um momento me passou pela cabeça a ideia de que qualquer mal pudesse resultar de seus modos gentis e suaves. Finalmente, porém, algo me fez

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suspeitar, e desde então minha tranqüilidade desapareceu para sempre. "Na essência, o episódio foi insignificante. Eu entrara em casa de improviso e, ao transpor a soleira da porta, notei um clarão de alegria no rosto de minha mulher. Contudo, quando viu que se tratava de mim, essa luz desapareceu, e ela voltou-se com ar desapontado. Isso bastou-me. Não existia ninguém, além de Alec Fairbairn, cujo andar ela pudesse confundir com o meu. Se naquele momento o tivesse ao alcance das mãos, tê-lo-ia morto, pois sempre que fico fora de mim procedo como um louco. Mary leu nos meus olhos a fúria demoníaca, correu para mim e segurou-me pela manga do casaco. "— Não, Jim, pelo amor de Deus! — suplicou. "— Onde está Sara? — perguntei. "— Na cozinha — respondeu. "— Sara — gritei —, não quero que Fairbairn ponha mais os pés aqui dentro. "— E por quê? "— Porque assim o ordeno. "— Oh! — exclamou —, se meus amigos não são dignos desta casa, eu também não o sou. "— Faça como quiser — repliquei-lhe —, mas se Fairbairn tornar a aparecer por aqui, mandar-lhe-ei uma de suas orelhas como lembrança. "Acredito que a tenha assustado com a expressão de meu rosto, pois não disse mais nada, e no dia seguinte abandonou nossa casa. "Ora, não sei se essa mulher agia assim por simples maldade, ou se pensava poder revoltar-se contra minha mulher, encorajando-a a trilhar seu caminho. Seja como for, ela arranjou uma casa a dois quarteirões de distância, onde alugava aposentos a marinheiros. Fairbairn costumava alojar-se lá, e Mary ia freqüentemente tomar chá com a irmã e ele. Quantas vezes ela foi, não sei dizer. Certo dia, porém, segui-a, e, ao chegar à porta, Fairbairn fugiu covardemente, pulando o muro do quintal. Jurei a minha mulher matá-la se a encontrasse novamente na companhia daquele homem, e levei-a para casa, soluçante e trêmula, branca como uma folha de papel. Já não existia entre nós a menor sombra de amor. Percebia o ódio e o temor que ela me votava, e quando, por causa disso, me punha a beber, o desprezo juntava-se a esses sentimentos. "Sara, entretanto, compreendeu que não lhe era possível ganhar o suficiente para viver em Liverpool. Por isso — pelo menos assim o creio — voltou a viver com a irmã em Croydon, mas a situação em minha casa continuou no mesmo estado vacilante de sempre. Finalmente, chegou esta última semana e toda a maldição e ruína que se seguiram.

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"Foi assim. Tínhamos embarcado no May Day para uma viagem de sete dias, mas, devido a certa avaria a bordo, fomos obrigados a permanecer no porto durante doze horas. Deixei o navio e fui para casa, pensando na surpresa que iria causar a minha mulher e esperando que ela talvez ficasse contente por me ver de volta tão cedo. Essa idéia ainda me empolgava quando dobrei a esquina de minha rua, no momento em que passou por mim um carro, em cujo interior vi minha mulher sentada

ao lado de Fairbairn, ambos conversando e rindo animadamente, sem notarem minha pessoa, que os observava imóvel na calçada. "Asseguro-lhes que, daquele momento em diante, já não fui senhor de mim próprio, e tudo me parece um sonho confuso ao recordar os acontecimentos. Nestes últimos tempos andara bebendo muito, e as duas coisas juntas uniam-se para me transtornar completamente. Agora sinto qualquer coisa a bater-me na cabeça como o malho de um britador, mas naquela manhã tinha todo o Niagara assobiando e zumbindo nos ouvidos. "Corri desabaladamente atrás do carro. Tinha nas mãos um pesado bastão de carvalho e afirmo-lhes que, desde o princípio, comecei a ver tudo vermelho; no entanto, a corrida tornou-me também astuto e, de vez em quando, procurava ficar um pouco para trás, a fim de ver sem ser visto. Dentro de pouco tempo eles pararam na estação. Havia muitas pessoas junto à bilheteria, e pude, portanto, aproximar-me deles sem ser notado. Compraram bilhetes para New Brighton; fiz o mesmo, mas instalei-me três vagões atrás. Chegados a seu destino, desceram e dirigiram-se para a praia. Eu acompanhava-os sempre a cerca de uma centena de metros de distância. Vi-os, por fim, alugar um barco e sair remando, pois fazia muito calor e eles julgavam sem dúvida que sobre a água o ar estaria mais fresco. "Na verdade, era como se estivessem em minhas mãos. O dia estava algo enevoado, e nada se via para além de certa distância. Aluguei também um barco e fui no encalço deles. Conseguia distinguir-lhes o contorno do barco, mas iam quase tão depressa como eu e já deviam estar a um quilômetro e meio da praia quando os alcancei. A neblina formava como que uma cortina à nossa volta, e dentro dela estávamos os três. Deus meu! Jamais poderei esquecer a expressão de seus rostos quando viram quem estava no barco que se aproximava! Ela soltou um grito de pavor, ele pôs-se a praguejar como um alucinado e atirou um remo em minha direção, pois deve ter lido nos meus olhos um presságio de morte. Eu esquivei-me ao golpe e atingi-o com meu bastão, que lhe espatifou a cabeça como se fosse um ovo. É possível que a tivesse poupado, apesar de toda a minha loucura. Ela, porém, lançou os braços em torno dele, gritando desesperadamente e chamando-o 'Alec'. Desferi, então, novo golpe, e prostrei-a a seu lado. Sentia-me qual besta feroz que houvesse provado sangue. Se Sara estivesse presente, por Deus, ter-se-ia juntado a eles. Puxei de minha faca e... bem, chega! Já disse o bastante.

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Experimentava certa alegria selvagem ao pensar no que Sara sentiria diante daqueles dois testemunhos do resultado de suas intrigas. Amarrei então os corpos ao barco, quebrei uma tábua do fundo e fiquei ali perto até submergirem de todo. Sabia muito bem que o proprietário da embarcação julgaria que ambos tinham perdido o rumo na névoa, sendo impelidos para o alto-mar. Limpei-me bem. Depois regressei a terra e reembarquei em meu navio, sem que pessoa alguma suspeitasse de tudo quanto se passara. Naquela noite, preparei o pacote para enviá-lo a Sara Cushing, e no dia seguinte remeti-o de Belfast. "E aqui têm toda a verdade. Podem enforcar-me ou fazer o que quiserem de mim, pois não poderão punir-me mais do que já fui punido. Não consigo fechar os olhos sem ver aqueles rostos a fitar-me. . . como o fizeram quando viram meu barco surgir ao lado do deles dentre a névoa. Matei-os rapidamente, mas eles estão me matando devagarinho; sei que, se isso durar mais uma noite, ficarei louco ou morrerei antes do amanhecer. O senhor não me porá sozinho numa cela, não é verdade? Pelo amor de Deus, não o faça. Oxalá seja tratado no dia de sua agonia como me tratar agora!" — Qual é o significado disso tudo, Watson? — proferiu Holmes, em tom solene, ao terminar a leitura. — Que propósito anima este círculo de desgraça, violência e terror? Deve tender para um fim. De outro modo, nosso universo seria governado pelo acaso, o que é inadmissível. Mas qual será esse fim? Eis o imenso, imutável e eterno problema, de cuja solução a mente humana se encontra mais longe do que nunca.

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Sherlock Holmes

em:

O círculo vermelho

Por Sir Arthur Conan Doyle

PDF por ZOHAR ([email protected])

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— Com franqueza, sra. Warren, não vejo qualquer motivo para estar inquieta, nem vejo por que eu deveria intervir neste assunto. O meu tempo é precioso e tenho outras coisas em que me ocupar. Assim se exprimiu Sherlock Holmes, e voltou a absorver-se em seu enorme álbum de recortes, no qual estava incluindo e classificando novo material. Mas a senhoria tinha a pertinácia e também a astúcia característica de seu sexo, e não se deu por vencida. — No ano passado, o senhor resolveu uma dificuldade para um pensionista meu, o sr. Fairdale Hobbs — insistiu ela. — Ah, sim!... Coisa muito .simples. — Todavia, ele não se cansa de falar nisso... sua gentileza e a maneira como o senhor esclareceu tão obscuro assunto. Lembrei-me das palavras dele, quando eu própria me vi envolvida na dúvida e na escuridão. Estou certa de que, se quisesse, poderia ajudar-me. Holmes era acessível pelo lado da lisonja e também, façamos-lhe justiça, pelo da cortesia. Essas duas forças conjugadas fizeram-no pôr de lado o pincel de goma-arábica, com um suspiro de resignação, e recostar-se na cadeira. — Está bem, sra. Warren, ouçamos o caso. O fumo não a incomoda? Obrigado, Watson... Os fósforos, por favor! Se não me engano, a senhora está preocupada porque seu novo inquilino se fecha no quarto e a senhora não consegue vê-lo. Ora, se eu fosse seu pensionista, garanto-lhe que não me veria durante semanas a fio. — Não duvido, sr. Holmes; mas o caso aqui é diferente! Ando apavorada, não consigo pregar o olho, tal é meu medo. Ouvir o ruído dos passos nervosos, de um lado para outro, desde manha cedo até altas horas da noite, e não avistá-lo um momento sequer... está além de minhas forças. Meu marido está tão impressionado como eu; mas ele trabalha fora o dia todo, ao passo que eu não tenho um instante de sossego. Por que vive escondido? Que terá feito? Com exceção da criada, fico todo o santo dia sozinha com ele em casa, e sinto que meus nervos não poderão suportar por muito tempo tal situação. Holmes inclinou-se para a frente e pousou os dedos longos e finos sobre os ombros da mulher. Quando desejava, possuía um poder quase hipnótico de acalmar o próximo. Toda a expressão de temor desapareceu dos olhos dela, e as feições agitadas tranqüilizaram-se e readquiriram a aparência normal. Ela sentou-se na cadeira que ele lhe indicara. — Se me encarregar deste caso, será preciso pôr-me a par de todos os pormenores — advertiu. — Reflita com calma. A mais simples minúcia pode ser essencial. A senhora disse que esse homem apareceu há dez dias e pagou duas semanas adiantadas de quarto e comida? — Perguntou-me quais eram as condições, e eu lhe respondi: "Cinqüenta

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xelins por semana". No sótão da casa existe uma salinha e um quarto de dormir, ambos mobiliados. — E então? — Ele afirmou que pagaria cinco libras por semana se eu aceitasse suas condições. Que havia de fazer? Sou pobre, sr. Holmes; meu marido ganha pouco e esse dinheiro significava muito para mim. Tirou uma nota de dez libras do bolso e mostrou-a. "Terá outro tanto de quinze em quinze dias, durante muito tempo, se atender às minhas condições", disse-me. "Se não quiser, nada mais teremos a conversar." — E quais eram essas condições? — Bem, ele queria ter a chave da casa. Até aí, nada de extraordinário, pois os pensionistas habitualmente a têm. Além disso, devia deixá-lo inteiramente só, e nunca perturbá-lo sob nenhum pretexto. — Nada vejo de extravagante nisso. — Parece razoável, sr. Holmes. Entretanto, isso excede todos os limites do bom senso. Há dez dias ele vive ali, e nem meu marido, nem eu, nem a criada,

conseguimos pôr lhe os olhos em cima uma única vez. Ouvimos seu andar rápido, de um lado para outro, noite e dia, sem cessar, pois nunca mais saiu de casa, exceto na primeira noite. — Ah! Então saiu na primeira noite? — Sim, senhor, e voltou muito tarde, depois de todos nos encontrarmos já deitados. Avisou-me disso depois de ter alugado o apartamento, e pediu-me que não trancasse a porta. Ouvi-o subir as escadas quando já passava da meia-noite. — E as refeições? — Recomendou-me expressamente que, quando tocasse a campainha, deveríamos colocar a refeição sobre uma cadeira do lado de fora da porta. Quando terminasse, tocaria de novo, e nós retiraríamos os pratos da mesma cadeira. Se tem necessidade de

alguma coisa, escreve em letra de forma num pedaço de papel e coloca-o do lado de fora. — Em letra de forma? — Sim, senhor. Escreve em letra de forma e a lápis a coisa que deseja, e nada mais. Aqui está um desses pedacinhos de papel que eu trouxe para lhe

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mostrar: SABÃO. Eis outro: FÓSFORO. Este ele deixou na primeira manhã: DAILY GAZETTE. Entrego-lhe esse jornal todas as manhãs, com a primeira refeição. — Caramba, Watson! — exclamou Holmes, fitando com grande curiosidade os pedacinhos de papel que a sra. Warren lhe entregara. — Este é na verdade um caso muito estranho. A reclusão eu compreendo, mas por que escrever em letra de forma? Dá mais trabalho. Por que não escrever, simplesmente, em caracteres normais? Que significa isso, Watson? — Ele não quer revelar a própria letra. — Mas qual será o motivo? Que importância pode ter para ele que sua senhoria veja uma palavra escrita com sua caligrafia? É possível, contudo, que seja como você diz. Mas qual a razão de mensagens tão lacônicas? — Não consigo entender. — Isso abre um agradável campo à especulação inteligente. As palavras foram escritas com lápis grosso, de tipo comum. Repare que o papel foi rasgado nesse ponto, depois de a palavra ter sido escrita, de modo que o s de sabão está cortado ao meio. Sugestivo, não lhe parece, Watson? — Ele o teria feito por precaução? — Exatamente. Havia provavelmente qualquer sinal, qualquer impressão digital, qualquer coisa, enfim, que poderia trair-lhe a identidade. Escute, sra. Warren, a senhora afirma que esse homem é de estatura mediana, moreno e usa barba. Que idade terá ele? — Deve ser ainda novo... não deve ter mais de trinta anos. — Muito bem, pode dar-me outras indicações? — Fala inglês corretamente, porém pelo sotaque parece-me estrangeiro. — E estava bem vestido? — Elegantemente vestido... um perfeito cavalheiro. Usava roupa escura... nada que desse na vista. — Não deu o nome? — Não. — E não tem recebido cartas ou visitas? — Absolutamente nada.

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— Mas, naturalmente, a senhora ou a criada entram no quarto pela manhã, não é verdade? — Não; ele próprio cuida de tudo. — Santo Deus! É sem dúvida extraordinário. E quanto à bagagem? — Trazia apenas uma enorme mala castanha... nada mais. — Bem, parece que não contamos com muito material. Tem certeza de não ter saído nada do aposento... absolutamente nada? A sra. Warren extraiu da bolsa um envelope, do qual fez cair sobre a mesa dois fósforos queimados e uma ponta de cigarro. — Estavam na bandeja hoje de manhã. Trouxe-os porque ouvi dizer que o senhor é capaz de descobrir grandes coisas através de simples ninharias. Holmes encolheu os ombros. — Não vejo nada de significativo nisso — observou. — Esses fósforos foram evidentemente usados para acender cigarros, o que se pode verificar pelo pequeno tamanho da parte queimada. Para acender um cachimbo ou um charuto, consome-se metade do fósforo. Mas, por Deus, esta ponta de cigarro é muito interessante! Se não me engano, a senhora disse que seu pensionista usa barba e bigode, não é? — Sim. — É estranho! Eu diria que este cigarro só podia ter sido fumado por uma pessoa de rosto barbeado. Caramba, Watson! Até seu modesto bigode se teria chamuscado. — Talvez tivesse usado boquilha — sugeri. — Não, não; a extremidade indica o contrário, não é possível haver duas pessoas no quarto, sra. Warren? — Não, sr. Holmes. Ele come tão pouco, que às vezes pergunto a mim própria como consegue manter-se em pé. — Está bem; creio que vamos ter de esperar até possuirmos outro elemento. Afinal de contas, a senhora não tem do que se queixar. O aluguel está pago, e não se pode dizer que ele seja um inquilino incômodo, apesar de estranho. Ele lhe paga regiamente, e, se deseja manter-se oculto, a senhora não tem o direito de interferir. Não temos o menor pretexto para violar sua clausura, até que surja qualquer razão para pensarmos que existe no fato um motivo criminoso. Aceito a investigação deste caso, e pode ficar descansada que farei o possível para resolvê-lo. Comunique-me se acontecer algo de novo, e conte com meu auxílio, se dele tiver necessidade.

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Depois de a senhoria ter saído, Holmes declarou: — Incontestavelmente, Watson, este caso oferece aspectos interessantes. Pode, é claro, não ter significado nenhum, e tratar-se apenas de mera extravagância individual, mas pode também ser muito mais profundo do que parece à primeira vista. A idéia que nos acode de imediato ao espírito é certamente a possibilidade de que naquele quarto esteja morando uma pessoa inteiramente diversa da que o alugou. — Por que supõe tal coisa? — Ora, pondo de parte a ponta de cigarro, não é curioso que a única vez que o pensionista saiu fosse logo depois de ter alugado o quarto? Ele voltou... ou melhor, alguém voltou, quando todos estavam dormindo. Não possuímos prova alguma de que a pessoa que regressou tenha sido a mesma que saiu. Além disso, o pensionista falava bem inglês. Todavia, este outro escreve "fósforo", quando devia ter escrito "fósforos". Suponho que a palavra tenha sido tirada de um dicionário, onde os vocábulos aparecem apenas no singular. O estilo lacônico talvez esconda a ignorância da língua inglesa. Sim, Watson, há bons motivos para suspeitar de que tenha havido uma troca de inquilinos. — Mas com que intenção? — Ah! Eis o problema. Sem dúvida, a linha de investigação a seguir apresenta-se bastante clara — disse meu amigo, retirando da estante um grosso álbum, no qual colava, diariamente, a seção dos principais jornais londrinos reservada a avisos de pessoas desaparecidas. "Deus meu!", exclamou, folheando-lhe as páginas. "Que coro de gemidos, choros e lamentações! Que amontoado de acontecimentos estranhos! Todavia, este é sem dúvida o campo mais precioso que jamais houve para quem se dedica ao estudo dos fatos extraordinários! A pessoa que nos interessa encontra-se só, e não pode receber cartas sem quebra do absoluto sigilo que as circunstâncias lhe impõem. Como pode chegar até ela uma notícia ou qualquer recado do mundo exterior? Ao certo, por meio de anúncios publicados num jornal. Não parece haver outra solução, e felizmente já sabemos qual é esse jornal. Aqui estão os recortes do Daily Gazette dos últimos quinze dias: 'Senhora com uma estola preta no Prince's Shating Club...', podemos passar adiante. 'Certamente Jimmy não quererá despedaçar o coração de sua mãe. . .', isso parece não ter importância. 'Se a dama que desfaleceu no ônibus de Brixton. . .', não me interessa. 'Todo dia meu coração anseia. . .' Lamentações, Watson, lamentações infindáveis. Ah!, eis algo mais provável. Ouça isto: 'Tenha paciência. Encontrarei qualquer meio seguro de comunicação. Por enquanto, esta coluna. — G.' Este anúncio foi publicado dois dias depois da chegada do inquilino da sra. Warren. Não parece plausível? O nosso ente misterioso podia entender inglês, apesar de só saber escrever em letra de forma. Vamos ver se encontramos mais alguma coisa. Sim, aqui está... três dias mais tarde: 'Estou tomando providências. Paciência e cautela. As nuvens passarão. — G.' Uma semana em branco depois desse aviso. Vem em seguida

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algo mais definido: 'O caminho está se tornando mais claro. Se me for possível escrever em código, lembre-se do combinado: um, a; dois, B; e assim por diante. Terá notícias em breve. — G.' Isso veio no jornal de ontem; o de hoje não traz nada. Parece-me muito apropriado ao pensionista da sra. Warren. Se esperarmos um pouco, Watson, creio que o caso se tornará mais inteligível."

E, de fato, assim sucedeu, pois na manhã seguinte encontrei meu amigo em pé, junto à lareira, com as costas voltadas para o fogo e um sorriso radioso de satisfação que lhe iluminava o rosto. — Que pensa disto, Watson? — gritou, apanhando o jornal de cima da mesa. — "Casa alta, de tijolos vermelhos, com remates de pedra branca. Terceiro andar. Segunda janela à esquerda. Depois do crepúsculo. — G." Parece-me bastante claro. Acho que depois do almoço devemos fazer um pequeno reconhecimento pelos arredores da casa da sra. Warren. Ah, minha cara senhora, que notícias nos traz? Nossa cliente entrara de improviso na sala, com uma energia tão explosiva, que nos indicava ter ocorrido um fato novo e inesperado. — É caso de polícia, sr. Holmes! — berrou. — Não quero saber de mais nada! Ele terá de sair de lá! Imediatamente, com bagagem e tudo. Ia falar com ele diretamente, mas achei melhor ouvir sua opinião primeiro. Minha paciência está esgotada, e quando penso que chegaram a bater em meu marido... — Bateram em seu marido? — Maltrataram-no. — Mas quem o maltratou? — Ah! É isso que nós queríamos saber! Aconteceu hoje muito cedo. Meu marido é encarregado do livro de ponto da firma Morton & Waylight, na Tottenham Court Road. Costuma chegar à fábrica antes das sete. Ora, hoje de manhã, não dera ainda dez passos pela rua quando dois homens o atacaram pelas costas, lhe puseram um pano sobre a cabeça e o jogaram dentro de um carro parado junto à calçada. Depois de rodarem com ele durante uma hora, abriram a porta e empurraram-no para fora. Ele ficou tão tonto com a queda que nem chegou a ver o destino do carro. Ao voltar a si, verificou que estava em Hampestead Heath; então, tomou um ônibus e foi para casa, e lá o deixei, deitado no sofá, para vir imediatamente procurá-lo a fim de lhe contar o sucedido. — Muito interessante — comentou Holmes. — Ele chegou a observar a aparência desses homens... Ouviu-os falar?

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— Não; está completamente aturdido. Sabe apenas que se sentiu levantado do chão como num passe de mágica, e devolvido à terra como por encanto. Os atacantes eram pelo menos dois ou três. — E a senhora relaciona essa agressão com seu pensionista? — Ora, nós moramos lá há quinze anos e nunca nos sucederam tais coisas. Já estou farta dele. Afinal, o dinheiro não é tudo. Farei com que saia de minha casa antes do anoitecer. — Um momento, sra. Warren. Não aja precipitadamente. Começo a suspeitar de que essa história é mais importante do que parecia à primeira vista. É evidente, agora, que algum perigo ameaça seu inquilino. E é igualmente evidente que seus inimigos, que se encontravam à espera dele nas proximidades da casa, confundiram seu marido com ele, devido ao nevoeiro matinal. Ao perceberem o engano, soltaram-no. Quanto ao que teriam feito se não tivessem se enganado, só nos resta conjeturar. — Diga-me então o que devo fazer, sr. Holmes. — Desejaria muito ver seu pensionista, sra. Warren. — Não sei como poderá fazê-lo, a menos que arrombe a porta. Ouço-o sempre abrindo-a, quando desço a escada depois de deixar a bandeja sobre a cadeira. — Ele precisa recolher a bandeja. Certamente podemos esconder-nos e vê-lo nessa ocasião. A senhoria refletiu um instante. — Há um pequeno quarto em frente. Poderia talvez colocar um espelho, de forma que, se o senhor estivesse atrás da porta... — Ótimo! — exclamou Holmes. — A que horas ele almoça? — Por volta da uma. — Então o dr. Watson e eu estaremos lá a tempo. Passe bem. Ao meio-dia e meia, subíamos as escadas da casa da sra. Warren — um prédio de tijolos amarelos, alto e esguio, na Great Orme Street, uma viela estreita situada a noroeste do Museu Britânico. Como fica na esquina, esse edifício permite uma boa visão da Howe Street, com suas casas mais requintadas. Holmes apontou-me, sorrindo, uma delas, que se salientava pela altura numa fileira de prédios de apartamentos. — Veja, Watson! — observou. — "Casa alta, de tijolos vermelhos, com remates de pedra branca." É aquele, sem dúvida, o posto de sinalização. Já conhecemos a casa e o código; o resto é simples. Há um cartaz com "Aluga-se" naquela janela. Trata-se evidentemente de um apartamento vazio, ao qual

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o cúmplice tem acesso. Então, sra. Warren, quais são as novidades? — Está tudo pronto. Se quiserem subir agora, eu os conduzirei até lá. Ê melhor deixarem os sapatos aqui embaixo. Ela arranjara um excelente esconderijo. O espelho fora colocado de tal modo que, sentados no escuro, podíamos ver distintamente a porta em frente. Mal nos tínhamos instalado ali, depois de a sra. Warren ter se retirado, um tinir distante anunciou que nosso misterioso vizinho tocara a campainha. Logo em

seguida, a senhoria apareceu com a bandeja, colocou-a sobre a cadeira junto da porta fechada e retirou-se a passos firmes. Acocorados um ao lado do outro, no ângulo da porta, não perdíamos de vista o espelho. Subitamente, enquanto o ruído dos passos da sra. Warren se extinguia no andar inferior, ouvimos o ranger de uma chave girando na fechadura, vimos a porta entreabrir-se e duas mãos finas introduziram-se velozes na fresta e levantaram a bandeja da cadeira. Quase no mesmo instante, porém, largaram-na precipitadamente, e eu vislumbrei, numa visão fugidia, um lindo rosto moreno, horrorizado, fitando a estreita abertura da porta do quarto onde nos encontrávamos. Em seguida, a porta fechou-se com estrondo, a chave girou novamente na fechadura e tudo ficou em silêncio. Holmes puxou-me pela manga do casaco e juntos descemos sorrateiramente a escada. — Voltarei à noitinha — disse ele para a sra. Warren, que nos esperava, ansiosa. — Creio, Watson, que poderemos discutir melhor a situação em nossa casa. "Minha hipótese, como vê, provou

estar certa", observou-me, falando das profundezas de sua cômoda poltrona. "Houve uma substituição de inquilinos. O que não previ, Watson, era que fôssemos encontrar uma dama e, por sinal, uma dama invulgar." — Ela nos viu. — De qualquer modo, viu algo que a alarmou. Isso é evidente. A seqüência dos acontecimentos parece agora bastante clara, não acha? Um casal procura refúgio em Londres devido a um perigo terrível e iminente. Podemos avaliar esse perigo pelo rigor de suas precauções. O homem tem um trabalho qualquer que precisa executar, e deseja conservar a mulher rodeada de segurança, enquanto desempenha sua missão. O problema não era fácil, e no entanto ele o resolveu de maneira original, e com tanta eficiência, que a presença da mulher é desconhecida até da dona da casa, encarregada de lhe levar as refeições. Explicam-se, assim, as mensagens em letra de forma: serviam para impedir que lhe descobrissem o sexo pela caligrafia. O homem não podia aproximar-se da mulher, pois desse modo a deixaria à mercê de seus inimigos. Sem possibilidade de se comunicar diretamente com ela, recorreu à coluna especial de um diário. Até aqui, tudo está claro.

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— Mas o que há por trás disso tudo? — Ah! Muito bem, Watson! Você, como sempre, se mostra essencialmente prático! O que há por trás disso tudo? O problema da sra. Warren, extravagante e algo cômico na aparência, aumenta de proporções e assume um aspecto mais sinistro à medida que avançamos em nossas pesquisas. Uma coisa podemos afirmar: não se trata de um simples caso de fuga amorosa. Você viu a expressão no rosto daquela mulher diante do possível perigo. Por outro lado, sabemos da agressão contra o dono da casa, a qual, sem dúvida, se destinava ao pensionista. Tais pormenores, e o impenetrável segredo de que procuram rodear-se, fazem-nos acreditar que estamos diante de um caso de vida ou morte. O ataque contra o sr. Warren demonstra ainda que os próprios inimigos, sejam quem forem, não deram pela troca de inquilinos. O caso é muito curioso e complexo, Watson. — Que razão tem você para levar avante a investigação? Que terá a ganhar com isso? — Ora essa! E o amor à arte, Watson? Suponho que, quando você se formou, teve ocasião de estudar casos sem pensar na parte pecuniária. — Tratava-se de enriquecer minha cultura, Holmes. — Não há limite para a cultura, Watson. Ela constitui uma série de lições, das quais a maior é sempre a última. Esse é um caso instrutivo. Ainda que não me traga dinheiro, nem fama, vale a pena resolvê-lo. Ao anoitecer, teremos dado mais um passo para sua completa elucidação. Quando regressamos à casa da sra. Warren, a vaga tristeza de uma noite hibernal adensara-se numa cortina cinzenta, que envolvia tudo na monotonia de sua cor mortiça, quebrada aqui e ali pelos nítidos retângulos amarelos das janelas iluminadas e pela claridade baça dos lampiões de gás. Ao espreitarmos pela janela, do interior sombrio da sala de estar da pensão, uma luz mais tênue tremeluziu alta na escuridão da noite. — Alguém se move naquele quarto — murmurou Holmes, encostando o rosto magro e atento à vidraça. — Sim, vejo sua sombra. Ei-lo de novo! Tem uma vela acesa na mão. Está olhando para cá. Quer ter a certeza de que ela está alerta. Agora começa a fazer sinais com a luz. Tome nota também da mensagem, Watson, a fim de que possamos comparar depois os resultados. Um lampejo apenas — é um a certamente. Atenção, agora! Quantos contou? Vinte. Exatamente, deve significar T. E agora? Outro T. Provavelmente, vai iniciar uma segunda palavra. Adiante... TENTA. Parou. Não pode ter acabado! ATTENTA não tem sentido em inglês. Nem dividindo em três palavras. . . AT. TEN. TA, salvo se T.A. corresponde às iniciais de alguém. Lá está ele de novo! Mas o que é isso? ATTE... Com os diabos! Trata-se ainda da mesma mensagem. Estranho, Watson, muito estranho! Ei-lo que recomeça! AT...ora, está repetindo a mesma coisa pela terceira vez. ATTENTA, três vezes!

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Quantas mais irá repetir? Não, parece ter terminado. Retirou-se da janela. Que pensa disso, Watson? — Parece-me uma mensagem cifrada, Holmes. O meu companheiro soltou de súbito uma gargalhada. — E não muito obscura, Watson — observou. — Foi transmitida em italiano, é claro! O A final significa que era dirigida a uma mulher. "Cuidado! Cuidado! Cuidado!" Que lhe parece, Watson? — Creio que você acertou. — Não pode ser outra coisa. É uma mensagem urgentíssima, repetida três vezes para chamar a atenção. Mas cuidado com quê? Espere um pouco; ele se aproxima novamente da janela. Avistamos outra vez o perfil indistinto de um homem agachado, e o tremeluzir da chamazinha através da janela, dando início aos sinais. Seguiam-se mais rápidos do que antes — tão rápidos que se tornava difícil contá-los. — PERICOLO... PERICOLO... Ei, o que quer dizer isso, Watson? "Perigo", não é? Sim, por Deus! A coisa é grave. Lá está de novo! PERI. Ora essa, que diabo... A luz se extinguira repentinamente, o quadrilátero brilhante da janela desaparecera, e o terceiro andar formava uma faixa escura ao redor do alto edifício, em contraste com as demais fileiras de vidraças cintilantes. Aquele último grito de alarme fora cortado de modo imprevisto. Como e por quem? Idêntico pensamento ocorreu-nos a ambos no mesmo instante. Holmes pôs-se subitamente de pé, como que impulsionado por uma mola. — Isso é sério, Watson — gritou. — Algo anormal está acontecendo ali! Por que motivo semelhante mensagem seria interrompida? Eu devia avisar a Scotland Yard... mas não temos tempo a perder. — Quer que chame a polícia? — Precisamos primeiro definir melhor a situação. Talvez ofereça uma interpretação mais inocente. Vamos, Watson, atravessemos a rua e vejamos se conseguimos resolvê-la sozinhos.

II Enquanto nos apressávamos ao longo da Howe Street, lancei um olhar por cima do ombro para o prédio que tínhamos deixado, e ali avistei, vagamente recortada contra a janela do andar superior, a sombra de uma cabeça, uma cabeça feminina, em atitude tensa, rígida, esperando ansiosamente, na escuridão da noite, pelo prosseguimento daquela mensagem interrompida. À

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porta do prédio de apartamentos da Howe Street estava encostado um homem embuçado num grosso sobretudo. Quando a luz do vestíbulo iluminou nossos rostos, ele estremeceu. — Holmes! — exclamou. — Você aqui, Gregson? — bradou meu companheiro, apertando a mão do policial da Scotland Yard. — Os namorados voltam sempre a encontrar-se! Que motivo o traz aqui? — Suponho ser o mesmo que o trouxe — respondeu Gregson —, embora não consiga compreender o que o colocou nesta pista. — Fios diferentes da mesma meada. Estive interceptando sinais. — Sinais? — Sim, daquela janela. Interromperam-se de repente, e aqui viemos para saber a causa. No entanto, desde que o caso está em suas mãos, não vejo razão para continuar minhas pesquisas. — Espere um pouco! — disse Gregson com ansiedade. — Devo fazer-lhe justiça, sr. Holmes, ao afirmar-lhe que sempre me senti mais capaz quando o tinha a meu lado. Esta casa tem apenas uma saída; ele não pode escapar. — Ele, quem? — Ah! Vejo que pelo menos por uma vez nos adiantamos. Não pode deixar de reconhecer que estamos na pista certa. Ao dizer isso, bateu fortemente com a bengala no chão. No mesmo instante, um cocheiro, empunhando um chicote, saltou de uma carruagem estacionada do lado oposto da rua e aproximou-se de nós. — Permita-me que lhe apresente o sr. Sherlock Holmes — disse, dirigindo-se ao novo personagem. — Este é o sr. Leverton, da Agência Americana Pinkerton. — O herói do mistério da caverna de Long Island? — indagou Holmes. — Tïnho imenso prazer em conhecê-lo. O americano, jovem calmo e prático, de rosto anguloso e bem-escanhoado, corou a essas palavras elogiosas. — Estou empenhado no caso mais importante de minha carreira, sr. Holmes. Se conseguir prender Gorgiano... — Como! O Gorgiano do Círculo Vermelho?

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— Oh! Pelo que vejo, sua fama já chegou à Europa! Bem, soubemos de tudo a respeito dele na América. Sabemos com segurança que é responsável por mais de cinquenta assassinatos, mas não temos ainda em mãos nada de positivo que permita prendê-lo. Tenho-o seguido desde Nova York, e há uma semana que não o perco de vista em Londres, à espera do mais leve pretexto para agarrá-lo. O sr. Gregson e eu acompanhamos seus passos até aqui, e, como há somente uma saída nesta casa, ele não poderá escapar. Desde que entrou, já saíram três pessoas, mas poderia jurar que ele não era nenhuma delas. — O sr. Holmes referiu-se a sinais — observou Gregson. — Espero que, como de costume, esteja a par de muita coisa por nós ignorada. Em rápidas e precisas palavras, Holmes explicou a situação tal como se nos apresentava. O americano bateu com os punhos fechados um no outro, sem poder conter seu desapontamento. — Ele notou nossa presença! — exclamou. — Por que diz isso? — Ora, a situação é clara, não lhe parece? Ele estava enviando mensagens a um cúmplice: há vários deles em Londres. Subitamente, como o senhor acaba de afirmar, quando o avisava de que havia perigo, interrompeu-se. Isso só pode significar que nos avistou na rua ou compreendeu a iminência do risco, e portanto devia agir sem demora a fim de evitá-lo. Qual é sua opinião, sr. Holmes? — Que subamos já para nos inteirarmos pessoalmente de tudo quanto aconteceu. — Mas não temos mandado de prisão contra ele! — Ele se encontra num apartamento desocupado, em circunstâncias suspeitas — lembrou Gregson. — De momento, é o suficiente. Depois de lhe termos posto a mão em cima, veremos se Nova York não pode ajudar-nos a metê-lo na cadeia. Por ora, assumo a responsabilidade de sua prisão. Aos nossos investigadores pode faltar inteligência; nunca, porém, coragem. Gregson subiu as escadas para prender aquele temível assassino com a mesma calma e naturalidade de movimentos com que teria subido a escadaria principal da Scotiand Yard. O homem da Pinkerton tentou tornar-lhe a dianteira, mas Gregson manteve-o com firmeza atrás de si. Os perigos de Londres eram privilégio da polícia londrina. A porta do apartamento da ala esquerda do terceiro andar estava entreaberta. Gregson escancarou-a. Dentro, tudo era silêncio e trevas. Risquei um fósforo e acendi a lanterna do policial. Ao fazê-lo, e no momento em que a luzinha trêmula se transformou numa boa chama, todos soltamos uma exclamação sufocada de surpresa. Sobre as tábuas nuas do soalho havia um rasto de sangue fresco. As

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pegadas rubras estavam voltadas para nós e provinham de outra sala interior, cuja porta se encontrava fechada. Gregson escancarou-a com um empurrão e iluminou o local com a luz clara da lanterna, enquanto todos nós olhávamos ansiosos por cima de seus ombros. No meio do pavimento da sala vazia, encontrava-se, em desalinho, o corpo de um homem de estatura avantajada, cujo rosto moreno, irrepreensivelmente barbeado, se contraía num esgar terrível e grotesco. Sua cabeça estava no meio de uma enorme poça de sangue, que se estendia, num amplo círculo úmido, pelas tábuas de madeira clara. Tinha os joelhos encolhidos, as mãos espalmadas num gesto de agonia, e do meio de seu pescoço largo e trigueiro, inclinado para trás, surgia o cabo branco de um punhal, profundamente enterrado na carne. Apesar da compleição gigantesca, o homem devia ter caído fulminado, como um boi no matadouro, sob aquele tremendo golpe. No soalho, junto

de sua mão direita, via-se uma enorme adaga de dois gumes e cabo de chifre, e, ao lado dela, uma luva preta de pelica. — Santo Deus! É Black Gorgiano em pessoa! — gritou o agente americano. — Alguém se antecipou a nós desta vez. — Aqui está a vela, sr. Holmes, no parapeito da janela — disse Gregson. — Mas que diabo o senhor está fazendo? Holmes atravessara o quarto, acendera a vela e movia-a de um lado para o outro por trás da vidraça. Depois, espreitou para fora, através da escuridão, apagou a vela e atirou-a ao chão. — Creio que isto vai nos ser útil — disse. Voltou para junto de nós e ficou absorto em seus pensamentos, enquanto os dois profissionais examinavam o cadáver. — O senhor disse que viu três pessoas saindo do prédio quando estava à espera lá embaixo? — perguntou, afinal. — Observou-as de perto? — Observei. — Havia entre elas um homem de cerca de trinta anos, barba preta, moreno e de estatura mediana? — Sim; foi o último a sair.

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— Se não me engano, é esse o homem. Posso dar-lhe a descrição, e, além disso, possuímos um excelente exemplar de sua pegada. Isso deve bastar-lhe. — Parece-me pouco, sr. Holmes, entre os milhões de habitantes de Londres. — É provável. Foi por esse motivo que julguei conveniente chamar

esta senhora em seu auxílio. Ao ouvi-lo, todos nos voltamos subitamente. No limiar da porta via-se uma mulher alta e bela — a misteriosa pensionista de Bloomsbury. A passos vagarosos penetrou no quarto, com o rosto pálido e angustiado, sem desviar os olhos do vulto sombrio estendido no soalho. — Os senhores o mataram! — balbuciou. — Oh! Dio mio! Os senhores o mataram! Mas, de súbito, inspirou profundamente e deu um pulo de alegria. Pôs-se a bailar ao redor do aposento, batendo as mãos, ao passo que seus olhos brilhavam de satisfação e a boca deixava escapar uma torrente de graciosas exclamações em italiano. Impressionava e surpreendia ao mesmo tempo ver uma mulher como aquela dominada por tamanho contentamento diante de tal espetáculo. Parou repentinamente e fitou-nos com ar interrogativo. — Mas quem são os senhores? São da polícia, não é verdade? Mataram Giuseppe Gorgiano. Não foi assim? — Somos realmente da polícia, minha senhora. Ela olhou em torno de si, perscrutando as trevas do quarto. — Mas onde está Gennaro, então? — indagou. — Gennaro é meu marido. Gennaro Lucca. Chamo-me Emilia Lucca e somos ambos de Nova York. Onde está Gennaro? Há pouco, ele me chamou daquela janela e corri para cá sem demora. — Fui eu quem a chamou — explicou Holmes.

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— O senhor! Como? — Seu código não era muito difícil. Sua presença aqui tornava-se necessária, e sabia que bastava dizer-lhe "Vieni" para fazê-la vir imediatamente. A formosa italiana olhou estupefata para meu companheiro. — Não compreendo como pôde saber disso. Como foi então que Giuseppe Gorgiano... Ela estacou de repente e seu rosto se iluminou de orgulho e satisfação. — Ah! Agora compreendo! Meu Gennaro! Meu incomparável, meu esplêndido Gennaro, que me tem protegido de todos os perigos, foi ele quem, com sua mão vigorosa, abateu o monstro! Oh! Gennaro, como você é maravilhoso! Que mulher poderá jamais ser digna de tal homem? — Ouça, sra. Lucca — disse o prosaico Gregson, segurando-a pela manga do vestido, com a mesma falta de consideração com que o faria a um vagabundo qualquer de Notting Hill. — Ainda não compreendi bem quem é e o que faz aqui, mas entendi o suficiente para saber que temos necessidade de sua presença na Scotland Yard. — Um momento, Gregson — interpôs Holmes. — Calculo que esta senhora esteja tão ansiosa por prestar-nos informações como nós estamos por ouvi-la. A senhora já percebeu que seu marido será preso e processado pela morte desse homem? Tudo quanto disser poderá ser usado como testemunho contra ele. No entanto, se julga que seu marido agiu por motivos não criminosos, não lhe será possível prestar melhor serviço do que contar-nos os fatos com todas as suas minúcias. — Agora que Gorgiano está morto, não tememos mais nada — replicou. — Ele era um demónio, um verdadeiro monstro, e não haverá juiz no mundo que ouse punir meu marido por tê-lo liquidado. — Nesse caso — observou Holmes —, parece-me aconselhável fecharmos esta porta à chave, deixarmos as coisas como as encontramos e acompanharmos esta senhora até seu quarto, a fim de tirarmos nossas conclusões do que ela tem a dizer. Meia hora mais tarde, estávamos todos sentados na saleta da sra. Lucca, ouvindo a emocionante narrativa dos sinistros acontecimentos de cujo desfecho fôramos testemunhas fortuitas. Ela falava num inglês rápido e fluente, mas muito desajeitado, ao qual, por amor à clareza, procurarei dar forma gramatical. — Nasci em Posilippo, perto de Nápoles — principiou —, sou filha de Augusto Barelli, que foi decano dos advogados napolitanos e, em certa ocasião, deputado por aquela região. Gennaro era empregado de meu pai, e eu me enamorei dele, como acontece a qualquer mulher. Ele não tinha dinheiro nem

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posição... unicamente sua beleza, força e energia, e por isso meu pai foi contrário a nosso casamento. Fugimos juntos, casamo-nos em Bari e vendemos minhas jóias, a fim de obtermos o dinheiro necessário para ir à América. Isso sucedeu há quatro anos, e desde então temos vivido sempre em Nova York. "A princípio, a sorte nos foi favorável. Gennaro teve a oportunidade de prestar dm favor a um senhor italiano, salvando-o das garras de malfeitores num lugar chamado Bowery. Conseguiu assim um amigo poderoso, que se chamava Tito Castalotte e era o sócio mais importante da grande firma Castalotte & Zamba, a principal importadora de frutas de Nova York. O sr. Zamba é doente, e nosso novo amigo Castalotte exerce plenos poderes na firma, que tem a seu serviço mais de trezentos funcionários. Contratou meu marido, nomeou-o chefe de seção e demonstrou-lhe de todas as maneiras sua benevolência. Castalotte era solteirão, e creio que considerava Gennaro como seu filho, do mesmo modo que eu e meu marido lhe queríamos como a um pai. Tínhamos alugado e mobiliado uma casinha no Brookiyn, e o futuro parecianos assegurado, quando surgiu a nuvem negra que em breve haveria de toldar completamente o céu. "Certa noite, ao voltar do trabalho, Gennaro trouxe consigo um compatriota nosso, cujo nome era Gorgiano e que também viera de Posilippo. Possuía um físico avantajado, como viram pelo seu cadáver. Mas não tinha somente o corpo agigantado; tudo nele era grotesco, imenso e terrífico. Sua voz ressoava em nossa casa como o fragor do trovão. Mal havia espaço para a gesticulação de seus enormes braços, enquanto falava. Todas as ideias, sentimentos e paixões daquele homem eram exagerados e monstruosos. Falava, ou melhor, rugia com tal força que seus interlocutores não podiam fazer outra coisa senão ouvi-lo, calados, esmagados por aquela tremenda torrente de palavras. Flamejavam-lhe os olhos ao fitar alguém, fazendo com que se ficasse completamente à sua mercê. Era ao mesmo tempo extraordinário e assustador. Dou graças a Deus por ele estar morto! "Visitava-nos com freqüência, e eu percebia que Gennaro não se sentia mais feliz do que eu em sua presença. Meu pobre marido ficava sentado, pálido e abstraído, ouvindo suas infindáveis divagações insensatas sobre política e questões sociais. Gennaro não dizia nada, mas eu, que o conhecia muito bem, podia ler-lhe no rosto certa angústia que jamais lhe notara. A princípio julguei tratar-se de simples aversão; depois, gradualmente, compreendi que era algo muito mais forte. Era medo — um medo profundo, secreto, incontrolável. Naquela noite — a noite na qual me compenetrei do terror que o devorava —, pus-lhe os braços em redor do pescoço e supliquei-lhe, em nome do amor que me devotava e de tudo o que lhe era caro, que não me ocultasse o motivo pelo qual a presença daquele brutamontes tanto o transtornava. "Ele me contou, e, ao ouvi-lo, senti um frio intenso invadir-me o coração. Meu pobre Gennaro, nos primeiros tempos de sua juventude atormentada e infeliz, quando o mundo inteiro parecia voltar-se contra ele e as injustiças da vida quase o enlouqueciam, filiara-se a uma sociedade napolitana denominada Círculo Vermelho, ligada à dos antigos carbonários. Os juramentos e os

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segredos dessa fraternidade eram espantosos, e, uma vez admitido em seu seio, nenhum homem podia evadir-se. Quando fugimos para a América, Gennaro pensou que se desligara dela para sempre. Qual não foi, pois, seu horror, quando deparou certa noite, na rua, com o próprio homem que o iniciara em Nápoles, o gigante Gorgiano, conhecido no sul da Itália pelo cognome 'Morte', pois tinha os braços tintos do sangue de incontáveis assassinatos. Transferira-se para Nova York a fim de evitar a polícia italiana, e estabelecera uma filial daquela terrível sociedade na terra que o acolhera. Tudo isso Gennaro me contou, e chegou a mostrar-me um convite que recebera naquele mesmo dia, encabeçado por um círculo vermelho, para uma reunião em determinado dia, à qual sua presença não era simplesmente solicitada, mas imposta. "Isso já era bastante mau, mas o pior ainda estava por vir. Tinha notado, há algum tempo, que quando Gorgiano ia visitar-nos, o que fazia quase todas as noites, se dirigia constantemente a mim; e, mesmo ao falar com meu marido, aqueles olhos flamejantes, aterradores, bestiais, estavam sempre voltados para minha pessoa. Uma noite, finalmente, seu segredo desvendou-se. Eu despertara em seu íntimo o que ele chamava 'amor' — amor de bruto, de selvagem. Gennaro ainda não regressara a casa quando ele chegou. Entrou de modo arrebatado, apertou-me nos seus braços de gorila contra o peito, cobriu-me de beijos e implorou-me que fugisse com ele. Eu me debatia e gritava, quando Gennaro apareceu e se atirou ao monstro. Mas Gorgiano, com um murro, prostrou-o sem sentidos e fugiu de nossa casa, aonde nunca mais voltou. Foi um inimigo mortal que arranjamos naquela noite. "Poucos dias mais tarde, efetuou-se a reunião. Gennaro voltou com uma fisionomia que sugeria ter ocorrido algo terrível. A coisa ia muito além do que poderíamos imaginar. Os fundos da organização provinham do dinheiro extorquido a italianos ricos, os quais eram ameaçados de violências se se recusassem a contribuir. Parece que tinham feito isso com Castalotte, nosso amigo e benfeitor... Este não só se recusara a ceder às ameaças, mas levara o caso ao conhecimento da polícia. Os bandidos resolveram por isso castigá-lo, de modo a fazer dele um exemplo capaz de intimidar qualquer outra vítima. De fato, na reunião decidira-se fazer com que sua casa fosse pelos ares com uma explosão de dinamite. Foi tirada a sorte para saber quem se incumbiria de pôr em prática o atentado. Quando enfiava a mão na sacola, Gennaro viu delinear-se no rosto de nosso inimigo um sorriso cruel. Certamente tudo fora preparado, pois foi o disco com o círculo vermelho, o mandato do crime, que ele encontrou ao abrir a mão. Devia matar o melhor amigo ou expor-se, e a mim também, à vingança dos companheiros. Fazia parte de seus métodos infernais punir todo aquele que temiam ou odiavam, não só prejudicando sua própria pessoa, como também as que lhe eram caras, e a certeza disso enchia de terror o espírito do meu infeliz Gennaro e punha-o quase louco de apreensão. "Passamos toda a noite nos braços um do outro, tentando encorajar-nos mutuamente, a fim de enfrentar os perigos que se nos deparavam. O atentado fora fixado para a noite seguinte. Ao meio-dia, meu marido e eu estávamos a caminho de Londres, não sem avisar nosso benfeitor da ameaça que pairava sobre sua cabeça, e enviar também à polícia informações, a fim de lhe

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salvaguardar a vida no futuro. "O resto os senhores já sabem. Tínhamos a certeza de que os inimigos nos acompanhariam como nossas próprias sombras. Gorgiano tinha razões particulares para se vingar, e de resto sabíamos perfeitamente como era capaz de ser desapiedado, astuto e incansável. Tanto a Itália como a América estão cheias de histórias de seu poder espantoso, e nunca, como nesta ocasião, ele deixaria de usá-lo. Meu querido marido aproveitou os poucos dias de calma e segurança que nossa partida repentina nos concedera para me arranjar um esconderijo onde nenhum perigo me ameaçasse. Do seu lado, desejava estar livre para poder manter-se em contato com a polícia americana e com a italiana. Eu própria ignoro onde ou como vivia. O pouco que sabia era através das colunas de um jornal. Certo dia, porém, ao olhar pela janela, notei dois italianos observando a casa, e compreendi que de algum modo Gorgiano descobrira nosso esconderijo. Finalmente, Gennaro disse-me — sempre por intermédio do jornal — que me transmitiria uma mensagem, por meio de sinais, de certa janela. No entanto, quando esses sinais vieram, verifiquei não passarem de advertências, as quais subitamente se interromperam. É evidente para mim, agora, que ele percebeu estar sendo seguido de perto por Gorgiano e que, graças a Deus, se encontrava preparado para enfrentá-lo quando chegasse o momento. E agora, senhores, desejaria saber se temos algo a recear da justiça, e se algum juiz do mundo poderia condenar meu Gennaro pelo que fez!" — Bem, sr. Gregson — disse o policial americano, dirigindo-se ao agente da Scotland Yard —, não sei qual é o ponto de vista britânico neste caso; julgo, porém, que em Nova York o marido desta senhora receberá um voto unânime de louvor e agradecimento. — Ela terá de ir comigo à presença do chefe — respondeu Gregson. — Se suas declarações forem confirmadas, não creio que ela ou o marido tenham muito o que temer. Mas, que diabo, o que não consigo atinar, sr. Holmes, é como o senhor se viu metido neste assunto. — Cultura, Gregson, cultura. Procuro ainda novos conhecimentos na velha universidade. Aí tem, Watson, mais um exemplo trágico e grotesco para juntar à sua coleção. A propósito, que tal uma noitada de Wagner, no Covent Garden? Ainda não são oito horas e, se nos apressarmos, chegaremos a tempo para o segundo ato.

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Arthur Conan Doyle

Os Planos do Submarino Bruce-Partington

Título original: The Bruce-Partington Plans Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1908

Sobre o texto em português

Este texto digital reproduz atradução de The Bruce-Partington Plans publicado em

As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V,editado pelo Círculo do Livro

e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

Na terceira semana de novembro de 1895, um denso e escuro nevoeiro abateu-sesobre a cidade de Londres. De segunda a quinta-feira, duvido que se pudesse avistar denossas janelas da Baker Street o perfil das casas fronteiras. Holmes passara o primeiro diaconferindo o índice de seu enorme livro de referências. No segundo e terceiro, ocupara-sedo assunto que se transformara, nos últimos tempos, em seu passatempo favorito: amúsica medieval. Porém, no quarto dia, depois de termos afastado nossas cadeiras damesa onde tomamos a refeição matinal, vimos a untuosa e espessa névoa passar ainda empesada massa compacta diante de nossos olhos e condensar-se em gotas oleosas nasvidraças, e o temperamento impaciente e enérgico de meu amigo começou a dar sinais dejá não poder suportar aquela existência monótona. Pôs-se a andar de um lado para outroem nossa sala de estar, invadido por uma febre de energia sufocada, mordiscando asunhas, tamborilando nos móveis, enfurecido com aquela inação.

— Nada interessante no jornal, Watson? — perguntou-me por fim.

Sabia perfeitamente que, para Holmes, algo interessante significava acontecimento oufato ligado à criminologia. Havia notícias de revolução, falava-se numa eventualidade deguerra e na iminência da mudança de governo, mas nada disso entrava na esfera deinteresse de meu companheiro. Nas colunas dedicadas à crônica criminal não via coisaalguma que não fosse vulgar e fútil. Holmes resmungou, desapontado, e recomeçou seuincessante peregrinar entre as quatro paredes da sala.

— O criminoso londrino é incontestavelmente desprovido de imaginação — observou, com avoz lamentosa do caçador que vê fugir-lhe a caça. — Espreite por essa janela, Watson.Repare como surgem os vultos dos transeuntes, quase invisíveis, para desapareceremnovamente no aluvião de névoa. Como o tigre pela brenha, o ladrão ou o assassino podevaguear livremente por Londres, num dia como este, sem ser pressentido, até o momentode dar o golpe, perceptível apenas para sua vítima.

— Houve somente alguns furtos sem importância — comentei.

Holmes teve um gesto de desprezo.

— Este cenário vasto e sombrio está reservado para algo muito mais importante —replicou. — É uma verdadeira ventura para a comunidade que eu não seja um criminoso.

— De fato! — exclamei, convicto.

— Suponhamos que eu fosse Brooks ou Woodhouse, ou qualquer um dos cinqüentahomens que possuem justificados motivos para me tirar a vida; por quanto tempoconseguiria sobreviver à minha própria perseguição? Um chamamento, uma emboscada, etudo estaria acabado. Ainda bem que nos países latinos, onde há tantos assassinatos, nãohá dias de nevoeiro como este: Salve! Eis finalmente uma coisa que pode quebrar estainsipidez mortal.

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Era a criada com um telegrama. Holmes abriu-o e caiu na gargalhada.

— Ora, ora! Qual será a última? — exclamou. — Meu irmão Mycroft vem por aí.

— E o que há de extraordinário nisso? — perguntei.

— É como se víssemos um bonde numa estradazinha de campo. Mycroft tem seuscaminhos habituais, por onde corre inexoravelmente. O apartamento na Pall Mall, o ClubeDiógenes, Whitehal... eis sua esfera. Aqui só apareceu uma única vez. Que cataclismo oterá feito sair dos trilhos?

— Ele não o explica?

Holmes passou-me o telegrama do irmão.

"Preciso falar com você acerca de Cadogan West. Sigo imediatamente para sua casa.Mycroft."

— Cadogan West? Já ouvi esse nome.

— A mim não ocorre nada, mas para fazer Mycroft sair assim de seus hábitos... É omesmo que um planeta desviar-se de sua órbita. E por falar em Mycroft, sabe o que ele é?

Lembrava-me vagamente de ter ouvido falar dele por ocasião da aventura do intérpretegrego.

— Você me disse que ele desempenhava uma pequena função a serviço do governobritânico.

Holmes deu uma risadinha.

— Nessa época ainda não conhecia bem você, Watson, e é necessária uma certa discriçãoquando se trata de altos assuntos de Estado. Tem razão em pensar que Mycroft trabalhapara o governo britânico. E em certo sentido ainda teria mais razão se dissesse que ele àsvezes é o próprio governo britânico.

— Meu caro Holmes!

— Já esperava seu assombro. Mycroft embolsa quatrocentas e cinqüenta libras por ano,permanece em posição subalterna, não nutre ambições de nenhuma espécie, recusa-se areceber honrarias ou títulos, mas nem por isso deixa de ser o homem mais indispensável dopaís.

— Mas como?

— Ora, a posição dele é única; criou-a especialmente para si. Nunca houve coisa parecida,nem jamais haverá. Possui o cérebro mais metódico e preciso deste mundo, cominsuperável capacidade de registrar fatos. Os mesmos dotes poderosos que dediquei àelucidação de crimes ele tem utilizado em seu trabalho especial. Vão ter-lhe às mãos asconclusões de cada departamento, e ele é o centro polarizador, a caixa de compensaçãoque contribui para nosso equilíbrio político. Todos os outros funcionários são especialistas;sua especialidade, porém, é a onisciência. Suponhamos, por exemplo, que certo ministronecessite de uma informação sobre uma questão que envolva a marinha, a Índia, o Canadáe o bimetalismo. Poderá obter pareceres isolados de vários departamentos sobre cadaassunto. No entanto, somente Mycroft estará em condições de focalizá-los ao mesmotempo, e dizer com facilidade como cada um deles pode exercer influência sobre o outro.Começaram por utilizá-lo a fim de facilitar o serviço, por comodidade; hoje, tornou-seindispensável. Naquele grande cérebro tudo está riassificado, pronto para ser usado aqualquer momento. Em muitíssimos casos, sua palavra decidiu a política nacional. Viveexclusivamente para isso e não pensa em mais nada, exceto quando, a título de exercíciointelectual, se digna atender-me quando vou procurá-lo, a fim de lhe pedir a opinião arespeito de alguns de meus modestos problemas. Contudo, Júpiter hoje resolveu descer à

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terra. Que diabo terá acontecido? Quem será Cadogan West, e o que ele significa paraMycroft?

— Heureca! — gritei, mergulhando na pilha de jornais sobre o sofá. — Sim, sim, cá estáele, não há dúvida! Cadogan West é o jovem encontrado morto, terça-feira de manhã, naestação de metro.

Holmes endireitou-se na poltrona, subitamente interessado, o cachimbo a meio caminhodos lábios.

— Isso deve ser grave, Watson, para fazer meu irmão desviar-se de seus hábitos. Tem deser algo extraordinário. Que motivo o ligará a este incidente? Se bem me lembro, o casonada tinha de especial. A impressão era a de um jovem que se tinha suicidado, atirando-sedo trem. Não houve roubo, nem existia o menor fundamento para se pensar em violência.Não é assim?

— Foi aberto um inquérito — respondi —, no qual surgiram muitos detalhes novos.Examinando-os mais atentamente, diria tratar-se com toda a certeza de um caso suspeito.

— A julgar pelo efeito produzido em meu irmão, estou propenso a acreditar que se tratamesmo dos mais estranhos — comentou Holmes, acomodando-se melhor na poltrona. —Vejamos então os fatos, Watson.

— O jovem chamava-se Arthur Cadogan West, tinha vinte e sete anos de idade, era solteiroe funcionário do Arsenal de Woolwich.

— Emprego público. Note a relação com meu irmão Mycroft!

— Desapareceu de Woolwich repentinamente, segunda-feira à noite. Foi visto pela últimavez por sua noiva, srta. Violet Westbury, a quem deixou de súbito, no meio do nevoeiro, àssete e meia daquela noite. Não houve nenhuma discussão entre eles, e a jovem não sabeexplicar o motivo de sua atitude. Depois disso, a única notícia a seu respeito foi o encontrodo cadáver por um operário de nome Mason, encarregado da conservação da linha, poucodepois da Estação de Aldgate, ao longo da rede subterrânea de Londres.

— Quando?

— O corpo foi descoberto às seis horas da manhã de terça-feira. Estava atravessadosobre os trilhos, do lado esquerdo da linha que vai para o leste, num ponto próximo daestação, à saída do túnel. A cabeça estava esmigalhada, o que poderia ser atribuído àqueda do trem. Só podia ter atingido a linha dessa maneira. Se tivesse sido transportadode alguma rua das vizinhanças, deveria ter passado pelas cancelas da estação, onde ficasempre um cobrador de bilhetes. Quanto a isso, parece não haver dúvida.

— Muito bem. O caso parece-me bastante definido. O homem, morto ou vivo, caiu ou foiatirado do trem. Até aí está tudo muito claro. Continue.

— Os trens que atravessam as linhas ao lado das quais o corpo foi encontrado correm deoeste para leste, alguns exclusivamente metropolitanos, e outros de Willesden e ramaisadjacentes. Não há dúvida de que aquele jovem, quando encontrou a morte, viajava nessadireção, a uma hora avançada da noite, apesar de ser impossível determinar o lugar de seuembarque.

— O bilhete naturalmente deveria indicá-lo.

— Não havia nenhum bilhete em seus bolsos.

— Nenhum bilhete! Caramba! Isso é realmente estranho, Watson. Se minha experiênciapessoal não falha, não é possível chegar à plataforma do trem subterrâneo sem exibir arespectiva passagem. É de presumir, portanto, que o jovem a tivesse. Será que ela lhe foitirada do bolso a fim de ocultar o nome da estação de onde provinha? É provável. Ou ateria deixado cair no vagão? Também é possível. De qualquer modo, é um pormenor muitointeressante. Você disse que não houve roubo?

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— Aparentemente, não. Eis aqui uma lista do que foi encontrado no corpo. A carteiracontinha duas libras e quinze xelins. Tinha também no bolso um talão de cheques da filial deWoolwich do Banco Capital and Counties, devido ao qual se pôde estabelecer suaidentidade. Havia ainda dois bilhetes para o Teatro Woolwich, datados daquela mesmanoite, e, além disso, um pequeno rolo de documentos técnicos.

Holmes soltou uma exclamação de júbilo.

— Aí está finalmente, Watson! Governo britânico... Arsenal de Woolwich... documentostécnicos... meu irmão Mycroft... tudo se encadeia com perfeição. Mas, se não me engano,ele está chegando para nos contar tudo de viva voz.

Dali a um momento, a figura alta ecorpulenta de Mycroft Holmes eraintroduzida na sala. De compleiçãorobusta e maciça, havia nele algo quesugeria uma incrível inércia física.Contudo, sobre o corpo desajeitadosurgia uma cabeça tão autoritária navastidão da fronte, tão viva naexpressão dos olhos profundos de umcinzento de aço, tão firme no contornodos lábios e tão sutil no conjunto dafisionomia, que, após a primeiraimpressão, esquecíamo-nos do corpovolumoso para nos lembrarmosapenas da mente dominadora.

Acompanhava-o nosso velho amigoLestrade, da Scotland Yard, magro eaustero. A gravidade emanada dorosto de ambos pressagiava umassunto de alta relevância. O policial apertou-nos a mão sem dizer palavra. Mycroft Holmesdesvencilhou-se do sobretudo e deixou-se cair pesadamente numa poltrona.

— Um caso desagradabilíssimo, Sherlock — disse. — Detesto profundamente ter dealterar meus hábitos, mas as altas esferas não quiseram ouvir desculpas. Na situação atualem que se encontra o Sião, é desairoso para mim ter de me ausentar do ministério.Todavia, trata-se de verdadeira crise governamental. Nunca vi o primeiro-ministro tãotranstornado. Quanto ao Almirantado... parece-me uma colmeia alvoroçada. Já leu asnotícias a respeito do caso?

— Acabamos de lê-las. Quais eram os documentos técnicos de que fala o jornal?

— Ah! Eis a questão! Felizmente, nada transpirou, do contrário a imprensa faria umescarcéu dos diabos. Os papéis que aquele desgraçado rapaz levava no bolso eram osplanos do submarino Bruce-Partington.

Mycroft Holmes expressara-se com uma solenidade que bem demonstrava a importânciaque atribuía ao fato. Seu irmão e eu permanecemos sentados, em ansiosa expectativa.

— Você já ouviu falar nisso, não? Pensei que toda gente o soubesse.

— Apenas de maneira vaga.

— Seu enorme valor mal pode ser exagerado se eu disser ter sido esse, dos segredos deEstado, o mais ciosamente guardado. Posso até assegurar-lhe que se torna impossíveluma batalha naval dentro do raio de ação de um Bruce-Partington. Há dois anos,conseguimos introduzir às escondidas uma avultada soma na previsão orçamentaria, a qualfoi despendida na aquisição do monopólio da invenção. Envidaram-se todos os esforços nosentido de manter o segredo. Os planos, extremamente complicados, compreendem cercade trinta patentes autônomas (cada uma das quais essencial para a execução do todo), que

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são conservadas na caixa-forte especial de um departamento secreto, perto do Arsenal,com portas e janelas à prova de arrombamento. Sob nenhum pretexto os planos deveriamser retirados dali. Se o construtor-chefe da marinha quisesse consultá-los, precisariadirigir-se ao Departamento de Woolwich para esse fim. Contudo, eis que os encontramosnos bolsos de um jovem funcionário subalterno morto no coração de Londres. A nosso ver,é simplesmente espantoso.

— Mas recuperaram-nos, então?

— Não, Sherlock, não! Aí está a tragédia. Não conseguimos reavê-los. Dez documentosforam subtraídos de Woolwich. Nos bolsos de Cadogan West só havia sete. Os três maisimportantes estão desaparecidos... roubados, evaporados. Você tem de abandonar tudo oque tiver em mãos, Sherlock. Não vêm ao caso, nesta altura, seus pequenos quebra-cabeças policiais de sempre. Cabe resolver agora um problema de magna influênciainternacional. Por que se teria apoderado Cadogan West dos documentos, onde estão osque faltam, como morreu ele, como veio ter seu cadáver ao lugar onde foi descoberto, deque maneira poderá remediar-se essa desgraça? Procure dar a resposta a todas essasperguntas e você terá prestado ao país um inestimável serviço.

— Por que não lhes responde você mesmo, Mycroft? É tão inteligente como eu.

— É provável, Sherlock; mas trata-se de obter pormenores. Consiga-os, e, de minhapoltrona, fornecerei uma excelente opinião de perito. Você sabe, pôr-me a correr daquipara ali para interrogar guardas do metrô e deitar-me de bruços com uma lente encaixadano olho... não, não é essa minha especialidade. Você é a única pessoa capaz de esclarecertal mistério. E se lhe interessa ver seu nome na próxima lista de honrarias...

Meu amigo sorriu e sacudiu a cabeça.

— Meu interesse é meramente esportivo — retrucou. — No entanto, o problema apresentacertos aspectos interessantes, e terei muito prazer em estudá-lo. Preciso, porém, de maisalguns dados.

— Anotei nesta folha de papel os mais necessários, bem como alguns endereços que lheserão úteis. Presentemente, o guarda oficial dos documentos é o famoso perito do Estado,Sir James Walter, cujos títulos e condecorações enchem duas linhas do anuário dereferência. Envelheceu ao serviço da pátria, é um perfeito cavalheiro, hóspede favorito dasfamílias mais eminentes e, sobretudo, um homem cujo patriotismo paira acima de qualquersuspeita. É uma das duas pessoas que possuem a chave da caixa-forte. Posso aindaafirmar que os documentos se encontravam no departamento na segunda-feira, nas horasdo expediente, e que Sir James partiu para Londres, por volta das três horas, levando achave consigo. Quando se verificou o incidente, ele estava na Barclay Square, em casa doalmirante Sinclair, e ali ficou até tarde.

— Esse pormenor foi averiguado?

— Sim; seu irmão, o coronel Valentine Walter, comprovou a partida de Woolwich, e oalmirante Sinclair, a chegada a Londres. Sir James, por conseguinte, deixa de constituir umfator direto no problema.

— Quem possui a segunda chave?

— O sr. Sidney Johnson, funcionário de categoria e desenhista do Arsenal, homem dequarenta anos, casado e pai de cinco filhos. É taciturno e rabugento, mas empregadoexemplar. Não goza de popularidade entre os colegas, não obstante ser um trabalhadorincansável. Segundo as próprias declarações corroboradas unicamente pela mulher,permaneceu em casa durante toda a noite de segunda-feira, após o trabalho, e sua chavenão deixou nem um momento a corrente do relógio, na qual se encontra pendurada.

— Fale-nos a respeito de Cadogan West.

— Trabalhava há dez anos nesse departamento, ao qual vinha prestando bons serviços.Tinha fama de irascível e violento, mas era considerado um rapaz de caráter e honesto.

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Nada temos contra ele. No departamento, estava subordinado diretamente a SidneyJohnson. Suas funções punham-no diariamente em contato pessoal com os planos.Ninguém mais tocava neles.

— Quem os guardou na caixa-forte aquela noite?

— Sidney Johnson.

— Bem, torna-se evidente quem os tirou de lá. Foram encontrados no corpo de CadoganWest. Não lhe parece que é bastante claro?

— À primeira vista parece, Sherlock; no entanto, muitos pontos continuam inexplicáveis.Para começar, por que razão ele faria isso?

— Presumo tratar-se de documentos de grande valor — insistiu Holmes.

— Poderia obter facilmente com eles alguns milhares de libras.

— Você consegue imaginar outro motivo plausível que o induzisse a levar os documentos aLondres, a não ser o intuito de vendê-los?

— Não, francamente não.

— Temos então de tomar essa hipótese como ponto de partida. O jovem West subtraiu osdocumentos, o que, entretanto, só seria possível mediante uma chave falsa....

— Várias chaves falsas, pois precisaria abrir também a porta do prédio e a da sala.

— Suponhamos, portanto, que possuísse diversas chaves falsas. Levou os documentos aLondres a fim de vender o segredo, certamente com a intenção de repô-los no lugar, namanhã seguinte, antes que dessem pela falta. Todavia, em Londres, no decurso de suadesprezível missão, encontrou o próprio destino.

— De que maneira?

— Podemos supor que regressava a Woolwich quando foi morto e atirado para fora dovagão.

— Aldgate, onde o corpo foi encontrado, fica muito distante da Estação da Ponte deLondres, lugar em que deveria descer a fim de seguir para Woolwich.

— Poderíamos imaginar inúmeras circunstâncias que o tivessem feito ultrapassar a Pontede Londres. Talvez houvesse no carro uma pessoa com quem se tivesse entretido emanimada palestra, que degenerou em cena violenta, na qual veio a perder a vida. Ou talvez,ao tentar saltar do metro, caísse na linha e assim morresse. A tal pessoa fechou a porta; onevoeiro estava muito espesso e nada foi visto.

— Em face de nossos atuais conhecimentos sobre o assunto, não é possível melhorexplicação; no entanto, Sherlock, veja quanta coisa você deixou de considerar.Suponhamos, para argumentar, que Cadogan West tivesse de fato resolvido levar essesdocumentos a Londres. Naturalmente, teria combinado um encontro com o agenteestrangeiro, a quem deveriam ser vendidos, e ficaria com a noite livre. Em vez disso,comprou duas entradas para o teatro, acompanhou a noiva até o meio do caminho, edepois desapareceu repentinamente.

— Um estratagema para despistar — interveio Lestrade, que ouvia a conversa com certaimpaciência.

— Aliás, muito estranho. Essa é a primeira objeção. Segunda: imaginemos que ele tenhachegado a Londres e visto o agente estrangeiro. Precisa repor os documentos antes doamanhecer, sob pena de darem pela falta dele. Levara consigo dez. Em seus bolsos foramencontrados ape- nas sete. O que teria acontecido aos outros três? Certamente não osteria perdido de propósito e, além disso, onde está o pagamento por sua traição? Era de

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supor que se encontrasse uma grande soma de dinheiro em seu poder.

— A mim tudo parece claro — observou Lestrade.

— Não tenho dúvidas em relação ao ocorrido. Ele tirou os documentos para vendê-los.Avistou-se com o agente. Não chegaram a um acordo quanto ao preço. Dirigiu-senovamente para casa, mas o agente acompanhou-o. No metro, o espião assassinou-o,apoderando-se dos papéis mais importantes, e atirou o cadáver para fora do vagão. Issoexplicaria tudo, não lhe parece?

— E por que ele não estava com o bilhete?

— Talvez indicasse a estação mais próxima da casa do agente. Por isso, este teve ocuidado de subtraí-lo do bolso da vítima.

— Muito bem, Lestrade, ótimo! — comentou Holmes. — Sua hipótese é bastante viável.Entretanto, se for verdadeira, o caso está terminado. Por um lado, o traidor encontra-semorto; por outro, os planos do submarino Bruce-Partington já se encontram com toda acerteza no continente. O que nos resta fazer?

— Agir, Sherlock... agir! — gritou Mycroft, saltando da cadeira. — Todos os meus instintosse rebelam contra essa explicação. Ponha em ação suas faculdades! Vá ao local do crime!Fale com as pessoas implicadas nos acontecimentos! Pesquise tudo! Jamais, durante todaa sua carreira, se apresentou melhor ocasião de servir seu país.

— Está bem, está bem! — disse Holmes, encolhendo os ombros. — Vamos, Watson! Evocê, Lestrade, pode acompanhar-nos por uma ou duas horas? Iniciaremos nossas buscascom uma visita à Estação de Aldgate. Até logo, Mycroft. Trarei fatos novos antes doanoitecer, mas pressinto que você terá pouco a esperar.

Uma hora mais tarde, Holmes, Lestrade e eu nos encontrávamos sobre os trilhos dotrem subterrâneo, no ponto em que emergem do túnel, pouco antes de Aldgate. Umcavalheiro idoso, cortês, de faces rubicundas, representava a companhia ferroviária.

— Aqui jazia o corpo do rapaz — explicou ele, indicando um lugar a cerca de um metro davia férrea. — Não podia ter caído lá de cima, pois, como vêem, estas paredes sãoinacessíveis. Só poderia, portanto, ter sido atirado de um trem, que, até onde nos é dadosupor, deve ter passado aqui por volta da meia-noite de segunda-feira.

— Verificaram se os vagões tinham algum sinal de violência?

— Não, nem foi encontrado qualquer bilhete.

— Alguma porta, por acaso, foi encontrada aberta?

— Não.

— Obtivemos hoje de manhã novos indícios — disse Lestrade. — Um passageiro quepassou por Aldgate num metro comum, cerca das onze e quarenta da noite de segunda-feira, declarou ter ouvido um pesado baque, como o de um corpo ao cair na linha, poucoantes de o trem entrar na estação. O nevoeiro, porém, estava muito denso, e ele não pôdever nada. Na ocasião não deu grande importância ao fato... Mas o que diabo estaráacontecendo ao sr. Holmes?

Com uma expressão de vivíssimo interesseestampada no rosto, meu amigo fixava ostrilhos no ponto em que estes, fazendo umacurva, saem do túnel. Aldgate constitui umentroncamento, e ali se entrecruza uma vastae emaranhada rede de desvios. Era neles quese fixavam seus olhos vigilantes,perscrutadores, e eu lhe notei na face ativa esagaz o contrair dos lábios, o tremor das

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narinas e a curvatura típica das espessassobrancelhas, tudo o que eu conhecia tãobem.

— Os desvios — murmurou —, os desvios!

— O que têm eles? O que quer dizer?

— Suponho que não haja grande número dedesvios num sistema ferroviário como este.

— De fato, existem muito poucos.

— E além disso uma curva. Desvios e curva. Por Deus! Se assim fosse!

— O que é, sr. Holmes? Encontrou algum indício?

— Uma idéia... mera suposição. Mas, sem dúvida nenhuma, o caso aumenta de interesse.Único, absolutamente único, e, todavia, por que não? Não vejo o menor sinal de sangue nalinha.

— Quase não havia nenhum.

— Segundo eu soube, o ferimento era bastante grande.

— O osso estava esmagado, porém externamente a ferida não parecia grave.

— E, no entanto, era de esperar que tivesse havido sangue. Poderia inspecionar o trem noqual viajava o passageiro que ouviu o baque de um corpo?

— Receio que não, sr. Holmes. A composição do trem já foi desfeita, e os vagões foramredistribuídos.

— Posso garantir-lhe, sr. Holmes — afirmou Lestrade —, que todos os vagões foramcuidadosamente examinados. Tratei disso pessoalmente.

Fazia parte das fraquezas mais características de meu amigo certa impaciênciaindomável ao defrontar-se com inteligências menos penetrantes que a sua.

— É provável — disse, afastando-se. — Na verdade, não eram os vagões o que eudesejava examinar. Não nos resta mais nada a fazer aqui, Watson. Não o importunaremosmais, Lestrade. Julgo que nossas investigações nos devem conduzir agora a Woolwich.

Na Ponte de Londres, mandou um telegrama a seu irmão, estendendo-o a mim antes deexpedi-lo.

"Vislumbro certa luz no meio das trevas, mas é provável que venha a extinguir-se.Entretanto, queria que você fizesse chegar às minhas mãos, na Baker Street, a listacompleta de todos os espiões estrangeiros ou agentes internacionais cuja residência naInglaterra é conhecida, com os respectivos endereços por extenso.

Sherlock."

— Isso poderá ser-nos útil, Watson — observou ele ao tomarmos lugar no trem deWoolwich. — Devemos sem dúvida a meu irmão Mycroft ter-nos posto em contato com umcaso que promete revelar-se fora do comum.

Seu rosto inteligente trazia ainda aquela expressão de energia intensa e concentrada quedemonstrava que alguma circunstância nova e sugestiva lhe abrira estimulante campo paraexercer seus notáveis dotes de raciocínio. Compare-se O cão de caça, de orelhaspendentes e cauda baixa, a vaguear em torno do canil, com o mesmo animal que, comolhos brilhantes e músculos tensos, fareja a caça próxima, e ter-se-á uma idéia damudança operada em Holmes no decorrer daquela manhã. Que diferença do homem inertee abatido que, em roupão cor de rato, andava ainda há poucas horas, de um lado para

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outro, na saleta isolada pela névoa!

— Aqui há um excelente material, um objetivo — disse-me. — Fui tolo por não ter vistodesde o princípio suas possibilidades.

— Ainda agora ele se apresenta para mim mais confuso que nunca.

— Mesmo para mim a conclusão é confusa, mas aferrei-me a uma hipótese que poderános levar longe. O homem encontrou a morte em outro lugar, e seu corpo estava na capotado vagão.

— Na capota?

— Extraordinário, não acha? Reflita, porém, nos fatos. Será mera coincidência ter sidoencontrado no ponto onde o irem se agita e oscila ao passar nos desvios? Não é esse olocal onde se pode esperar que um objeto colocado na capota devesse cair? Os desviosnão poderiam influir no que se encontrava dentro do trem. Ou o cadáver caiu da capota ouencontramo-nos diante de uma coincidência muito singular. Mas vejamos agora a questãodo sangue. Naturalmente, não deveria haver sangue na linha se o corpo tivesse sangradoem outro lugar. Os fatos são sugestivos por eles próprios; reunidos, adquirem uma forçacumulativa.

— E o bilhete também! — exclamei.

— Exatamente. Não conseguíamos explicar-lhe a ausência, e essa hipótese justifica-a.Tudo se articula com justeza.

— Mas, supondo que tivesse sido assim, ainda nos encontramos muito longe de poderdecifrar o mistério de sua morte. De fato, as coisas não se simplificam; tornam-se maisestranhas.

— Talvez — murmurou Holmes com ar pensativo —, talvez.

Meu amigo emudeceu e concentrou-se em seus pensamentos até a Estação deWoolwich. Ali chamou um carro de praça, e ao entrar nele tirou do bolso o papel queMycroft lhe entregara.

— Temos de fazer várias visitas esta tarde — disse. — Creio que Sir James Walter deveráser o primeiro a merecer a nossa atenção.

A residência do famoso perito era uma vivenda belíssima, rodeada de relvados verdes,que se estendiam até as margens do Tamisa. Ao chegarmos lá, a névoa começava adissipar-se, e os raios pálidos e débeis do sol surgiam lentamente através da bruma. Ummordomo veio atender-nos.

— Sir James! — exclamou com ar solene. — Sir James faleceu esta manhã.

— Santo Deus! — bradou Holmes, estupefato. — Como ele morreu?

— Os senhores desejam entrar e falar com o coronel Valentine, irmão dele?

— Sim, é melhor.

Fomos introduzidos numa sala fracamente iluminada, onde, instantes depois, nosrecebeu um homem alto, aparentando cinqüenta anos, de feições delicadas e barba poucoespessa — o irmão mais novo do cientista morto. O olhar desvairado, o rosto sulcado delágrimas e o cabelo despenteado descreviam com eloqüência o rude golpe desferido sobreaquela casa. Quase não conseguia articular palavra.

— Foi esse horrível escândalo — disse. — Meu irmão era muito sensível em questões dehonra, e não pôde sobreviver a tamanha vergonha. Perdeu completamente o ânimo.Sempre se orgulhou da eficiência de seu departamento, e semelhante catástrofeaniquilou-o.

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— Esperávamos que ele pudesse dar-nos certas indicações úteis para o esclarecimento docaso.

— Asseguro-lhes que constituía para ele um mistério tão impenetrável como para ossenhores e para todos nós. Já tinha posto à disposição da polícia tudo quanto sabia.Naturalmente, estava certo da culpabilidade de Cadogan West, mas todo o resto lheparecia inconcebível.

— O senhor não seria capaz de nos sugerir qualquer indício útil?

— Pessoalmente nada sei, exceto o que li ou ouvi. Não desejo passar por indelicado, sr.Holmes, mas deve compreender o abalo que acabamos de sofrer, e por isso peço-lhelicença para terminar este nosso colóquio.

— Eis uma coisa pela qual não esperava — observou Holmes ao regressarmos ao carro.— Fico com dúvidas sobre se a morte foi natural, ou se o pobre velho se suicidou. Nestaúltima hipótese, isso não poderia ser tomado como sinal de remorso por negligência nocumprimento do dever? Deixe-mos essa pergunta para o futuro. E agora tratemos dafamília Cadogan West.

A inconsolável mãe do morto habitava uma pequenina mas bem-cuidada casa nosarrabaldes da cidade. Estava demasiado abatida pela dor para que nos fosse de qualquerutilidade. Contudo, encontrava-se a seu lado uma jovem pálida, que se apresentou a nóscomo a noiva do rapaz, a srta. Violet Westbury, a última pessoa que o vira naquela noitefatal.

— Não consigo compreender, sr. Holmes — disse ela. — Não consigo mais dormir desdeque se deu a tragédia; vivo pensando, pensando incessantemente, noite e dia, noverdadeiro significado de tudo isso. Arthur era um rapaz simples, cavalheiresco e patriotacomo poucos. Preferiria cortar a mão direita a vender um segredo de Estado confiado àsua guarda. Para quem o conhecia bem, é a coisa mais absurda, impossível e fora depropósito.

— Mas e os fatos, srta. Westbury?

— Sim, sim; reconheço minha impossibilidade de explicá-los.

— Ele estava necessitando de dinheiro?

— Não; seus gastos eram mínimos, e ele ganhava um ótimo ordenado. Já tinhaeconomizado algumas centenas de libras, e devíamos casar-nos pelo Ano-Novo.

— Não lhe notou nenhuma perturbação ultimamente? Vamos, srta. Westbury, use damáxima franqueza conosco.

O olhar penetrante de meu amigo notara certa mudança nas maneiras da jovem. Elacorou, indecisa.

— Realmente — disse por fim. — Tinha a impressão de que qualquer coisa o preocupava.

— Há muito tempo?

— Mais ou menos há uma semana. Tornara-se pensativo e inquieto. Em certa ocasião,insisti com ele para que se abrisse comigo. Admitiu ter qualquer coisa que o perturbavacom referência ao serviço. "É um assunto grave demais para que ouse falar, mesmo avocê", respondeu. Nada mais consegui arrancar-lhe.

A atitude de Holmes tornou-se grave.

— Prossiga, srta. Westbury. Prossiga, mesmo se tiver a impressão de estar depondocontra ele. Não podemos saber a que isso nos pode conduzir.

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— Francamente, nada mais tenho a dizer. Uma ou duas vezes pareceu-me estar a ponto deme confiar qualquer coisa. Falou-me uma noite acerca da importância dos documentossecretos, e tenho uma vaga idéia de me ter dito que sem dúvida os espiões estrangeirospagariam uma fortuna para obtê-los.

A fisionomia de meu amigo tornou-se ainda mais severa.

— Nada mais?

— Disse-me que éramos negligentes a respeito de tais assuntos... que seria fácil a umtraidor apoderar-se dos planos.

— Ele fez essas observações recentemente?

— Sim, nestes últimos dias.

— Agora, fale-nos da última noite em que o viu.

— Tínhamos combinado ir ao teatro. O nevoeiro estava tão espesso que era inútil tomarum carro. Pusemo-nos a andar, e nosso caminho levou-nos às proximidades de suarepartição. De súbito, ele começou a correr, desaparecendo no nevoeiro.

— Sem uma palavra?

— Soltou uma exclamação; foi tudo. Esperei-o, mas não voltou. Regressei então a casa.Na manhã seguinte, quando a repartição abriu, vieram interrogar-nos. Por volta do meio-dia,soubemos da horrível notícia. Oh! sr. Holmes, se fosse possível ao menos salvar-lhe ahonra! Ele a prezava tanto!

Holmes sacudiu a cabeça tristemente.

— Vamos, Watson — disse-me. — Ainda temos muito o que fazer. Em primeiro lugardevemos ir à seção de onde foram subtraídos os documentos.

— Os indícios contra aquele rapaz já eram desfavoráveis, e nossas investigações ostornam ainda piores — observou Holmes, enquanto o carro se punha em movimento. — Seucasamento iminente fornece um motivo para o crime. Naturalmente, precisava de dinheiro, eessa idéia dominava-o, pois falou com a noiva a respeito disso. Quase chegou a torná-lacúmplice da traição, revelando-lhe seus projetos. A conjuntura apresenta-se muito má paraele.

— Todavia, Holmes, não acha que o caráter da pessoa deve ser levado em conta? Alémdisso, por que haveria de abandonar a noiva no meio da rua e desaparecer daquele modo?

— Exatamente! Há de fato várias objeções; contudo, os fatos que a elas se opõem sãoponderáveis.

O sr. Sidney Johnson, funcionário-chefe, veio a nosso encontro no átrio, e recebeu-noscom o respeito que o cartão de Holmes sempre suscitava. Era um homem de meia-idade,encovado, e as mãos tremiam-lhe com a emoção resultante dos últimos acontecimentos.

— Que desastre, sr. Holmes, que desastre! Já soube do falecimento de nosso chefe?

— Acabamos de sair de sua casa.

— Tudo aqui está caótico. O chefe, morto, Cadogan West, morto, os documentos,roubados. Entretanto, quando encerramos o expediente na noite de segunda-feira,constituíamos o departamento mais eficiente do governo. Santo Deus! É horroroso pensarque justamente West fosse cometer tal desatino!

— O senhor tem certeza, então, de que ele foi o culpado?

— Não vejo quem mais possa ter sido. E, contudo, confiava nele como em mim próprio.

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— A que horas fecharam a repartição na segunda-feira?

— Às cinco.

— Foi o senhor quem fechou as portas?

— Sou sempre o último a sair.

— Onde estavam os planos?

— Naquela caixa-forte. Coloquei-os lá pessoalmente.

— Não fica ninguém de guarda no prédio?

— Fica; mas há também outras seções para vigiar. É um antigo soldado, pessoa de inteiraconfiança. Nada viu naquela noite. O nevoeiro, sem dúvida, era muito denso.

— Se Cadogan West quisesse entrar no edifício fora de hora, teria necessidade de trêschaves para poder alcançar os documentos, não é certo?

— Exatamente. A chave da porta da rua, a do escritório e a da caixa-forte.

— Só o senhor e Sir James possuíam essas chaves?

— Eu não tinha as das portas... apenas a da caixa-forte.

— Sir James era um homem de hábitos regulares?

— Sim; creio que era. No tocante a essas três chaves, sei que ele as trazia sempre juntasno mesmo chaveiro. Eu próprio as vi muitas vezes.

— E ele costumava levar esse chaveiro a Londres?

— Assim dizia.

— E o senhor nunca se separou de sua chave?

— Nunca.

— Então, West, se ele é de fato o culpado, devia ter uma duplicata. No entanto, nenhumafoi encontrada em seus bolsos. Outra coisa: se um funcionário deste departamento tivesseintenção de vender os planos, não lhe seria mais fácil copiá-los em vez de subtrair osoriginais, como foi feito?

— Seriam necessários profundos conhecimentos técnicos para poder fazê-lo de maneiraeficiente.

— Creio, porém, que tanto Sir James como o senhor ou West possuíam essa competênciatécnica, não é verdade?

— Sem dúvida; peço-lhe, no entanto, que não me envolva nessa questão, sr. Holmes. Deque servem as especulações abstratas, quando os planos originais foram encontrados empoder de West?

— Contudo, é estranho que ele fosse correr o risco de roubar os originais, quando teriapodido copiá-los sem dificuldade, com resultados igualmente vantajosos para seu fim.

— É esquisito, sem dúvida... No entanto, foi o que ele fez.

— Todas as pesquisas relativas a este caso revelam algo de inexplicável. Quanto a essesdocumentos que ainda se encontram desaparecidos, segundo me disseram, são os demaior importância.

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— Sim, de fato.

— Acredita que alguémpudesse, com esses trêsdocumentos, mas sem osoutros sete, construir umsubmarino Bruce-Partington?

— Foi o que declarei aoAlmirantado. Entretanto, estivehoje revendo os desenhos e jánão estou tão certo disso. Asválvulas duplas, que se fechamautomaticamente, estãodesenhadas num dos papéisrecuperados. Enquanto o paísestrangeiro que se apoderoudos planos não as tiverinventado, não poderá construiro submarino. Essa dificuldade, é claro, poderá ser facilmente superada.

— De qualquer modo, os três desenhos desaparecidos são os mais importantes?

— Sem a menor dúvida.

— Agora, se me permite, gostaria de dar uma volta pelo prédio. Que me lembre, nada maisme resta perguntar-lhe.

Holmes inspecionou a fechadura da caixa-forte, a porta da sala e, finalmente, as folhasde ferro da janela. Somente quando nos encontrávamos na parte externa do edifício é queele deu mostras de um vivo interesse. Havia um grande loureiro abaixo da janela, e váriosde seus ramos mostravam sinais evidentes de terem sido torcidos ou quebrados.Examinou-os cuidadosamente com uma lente, e fez outro tanto com alguns vestígios pouconítidos rio terreno em redor. Por fim, pediu ao sr. Johnson que fechasse as folhas de ferroda janela e chamou-me a atenção para o vão que elas deixavam ao centro, o que facilitavaa qualquer pessoa de fora ver o que se passava no interior da sala.

— Estas marcas foram prejudicadas pêlos três dias de demora. Podem significar algumacoisa, mas também é possível que não tenham nenhum valor. Bem, Watson, penso quenada mais temos a fazer em Woolwich. Nossa colheita aqui foi bem magra. Vejamos se emLondres temos mais sorte.

Todavia, antes de deixarmos a Estação de Woolwich, acrescentamos mais um feixe ànossa ceifa. O bilheteiro informou-nos confidencialmente que tinha visto Cadogan West —que conhecia bem de vista — na noite de segunda-feira, e garantiu-nos que ele embarcarapara a Ponte de Londres, no trem das oito e quinze. Estava só, e comprou uma passagemde terceira classe. O empregado surpreendeu-se com seu aspecto nervoso e agitado.Estava de tal modo trêmulo que não conseguiu recolher o troco, no que foi auxiliado pelobilheteiro. Uma rápida consulta ao horário dos trens revelou-nos ser o das oito e quinze oprimeiro que West poderia ter apanhado, depois de ter se despedido da noiva às sete etrinta.

— Procuremos reconstituir os fatos, Watson — disse-me Holmes ao cabo de meia hora desilêncio. — Não acredito que tenhamos, em toda a nossa longa série de investigações emconjunto, defrontado caso mais difícil do que este. A cada passo encontramos um novoobstáculo. Apesar de tudo, é certo que realizamos um apreciável progresso. O resultado denossas pesquisas em Woolwich foi na maior parte desfavorável ao jovem Cadogan West;entretanto, os sinais da janela prestam-se a uma hipótese mais propícia. Suponhamos, porexemplo, que ele tenha sido sondado por algum agente estrangeiro. Isso pode ter sido feitomediante uma promessa que o teria impedido de falar sobre o assunto, a qual, apesar detudo, exerceu influência em seu espírito, conforme se depreende das observações feitaspor ele à noiva. Ora, muito bem. Imaginemos agora que, quando se dirigia ao teatro com a

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jovem, tivesse distinguido subitamente, através da névoa, o vulto desse mesmo agentecaminhando na direção do departamento. Rapaz impetuoso e de decisões rápidas, todasas suas outras preocupações desapareceram diante do dever. Acompanhou o homem,chegou junto à janela, presenciou a subtração dos documentos e lançou-se no encalço doladrão. Deste modo superamos a objeção de que ninguém tiraria os originais, quando lheseria mais fácil copiá-los. A esse estranho, porém, não restava outra alternativa senãoapoderar-se deles. Até aqui, o raciocínio está bem concatenado.

— E depois?

— Depois começam a surgir as dificuldades. É lógico conceber que, em tais circunstâncias,o primeiro gesto de Cadogan West fosse o de agarrar o meliante e dar o alarme. Por quenão o fez? Tratar-se-ia de funcionário de categoria elevada? Isso explicaria a conduta deWest. Ou o ladrão teria logrado escapar protegido pelo denso nevoeiro, e West embarcoupara Londres a fim de apanhá-lo na própria residência, presumindo-se que ele sabia ondemorava? O caso devia exigir a máxima urgência, em vista de ele ter abandonado a jovemsozinha no nevoeiro e não ter feito o mínimo esforço para se comunicar com ela. Nesseponto, nossa pista se perde e defrontamo-nos com uma imensa lacuna entre cada umadessas hipóteses e o encontro do cadáver de West, com sete documentos no bolso, sobrea capota de um vagão do metro. O instinto sugere-me que trabalhe, daqui em diante,começando pelo lado oposto. Se Mycroft nos mandou a lista de endereços, talvezconsigamos descobrir nosso homem e seguir assim duas pistas em vez de uma.

Havia realmente um bilhete à nossa espera na Baker Street. Fora trazido em caráter deurgência por um mensageiro do governo. Holmes passou os olhos por ele rapidamente e oentregou a mim.

"O cardume de espiões é grande; no entanto, poucos são os peixes de bom portecapazes de levar a cabo golpe de tal monta. Os únicos dignos de nota são os seguintes:Adolph Meyer, Great George Street, 13, Westminster; Louis La Rothiere, CampdenMansions, Notting Hill, e Hugo Oberstein, Caulfield Gardens, 13, Kensington. Deste últimosabe-se que esteve segunda-feira na cidade e que a deixou agora, com destino ignorado.Sinto-me satisfeito com a notícia de que finalmente você conseguiu vislumbrar alguma luz.O gabinete aguarda com impaciência seu relatório final. As altas esferas insistem namáxima urgência. Todas as forças do Estado se encontram à sua disposição, caso vocêvenha a necessitar delas.

Mycroft."

— Receio — disse Holmes, sorrindo — que todos os cavalheiros da rainha e todos os seushomens não nos possam valer neste assunto.

Estendeu sobre a mesa seu grande mapa topográfico de Londres, e pôs-se a estudá-lominuciosamente.

— Muito bem! — exclamou dali a instantes, dando mostras de satisfação. — O vento, porfim, começa a soprar a nosso favor. Ora, viva, Watson, acredito piamente que, no fim decontas, seremos bem sucedidos — acrescentou, dando-me uma palmada no ombro, numsúbito acesso de bom humor. — Agora vou dar um giro. É um simples reconhecimento.Nada farei de importante sem estar acompanhado de meu fiel camarada e ilustre biógrafo.Espere-me aqui, pois, na pior das hipóteses, dentro de uma ou duas horas estarei de volta.Se o tempo lhe parecer demasiado longo, pegue papel e tinta e inicie a narrativa de comosalvamos a pátria.

Senti-me invadido pelo seu bom humor, pois sabia perfeitamente que Holmes jamaisabandonaria a habitual austeridade de maneiras sem ter boas razões para isso. Aguardeicom impaciência seu regresso durante toda aquela infindável tarde de novembro.Finalmente, pouco depois das nove, apareceu-me um mensageiro com o seguinte bilhete:

"Janto no Goldini, na Gloucester Road, Kensington. Peço-lhe para vir ter comigoimediatamente. Traga um pé-de-cabra, uma lanterna furta-fogo, um escopro e um revólver.

S. H."

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Belos apetrechos para um cidadão respeitável levar consigo através de ruas escuras,encobertas pelo nevoeiro! Ocultei-os debaixo do sobretudo e dirigi-me sem demora para oendereço indicado. Meu amigo estava sentado a uma mesinha redonda, junto à porta dobizarro restaurante italiano.

— Já jantou? Então, faça-me companhia no café e num , cálice de curaçau. Experimente oscharutos da casa. São menos mortíferos que os habituais. Trouxe os utensílios?

— Estão aqui, no sobretudo.

— Ótimo. Deixe-me apresentar-lhe um resumo do que já fiz, acompanhado de certasinstruções a respeito do que ainda vamos fazer. Primeiro, é preciso lembrar que o cadáverdo jovem foi colocado na capota do vagão. Isso tornou-se evidente desde o instante emque compreendi que o corpo tinha caído dela, e não do interior da carruagem.

— Não poderia ter sido atirado de uma ponte?

— Sou capaz de jurar que isso seria impossível. Se você reparar nas capotas dos vagões,verá que são ligeiramente abauladas e não há o menor anteparo em redor. Podemosafirmar, portanto, que o corpo de Cadogan West foi colocado sobre a parte superior de umdos vagões.

— E como isso foi feito?

— Essa é a pergunta a que devemos responder. Só existe uma possibilidade. Você sabeque os trens do metro correm fora das galerias subterrâneas em certos pontos do WestEnd. Recordo-me vagamente de ter observado, ao percorrer esses lugares, algumasjanelas pouco acima de minha cabeça. Imaginando, pois, que um trem parasse exatamentedebaixo de uma dessas janelas, haveria qualquer dificuldade em depositar um cadáversobre um dos vagões?

— A idéia parece-me de todo inverossímil.

— Não devemos esquecer-nos do velho axioma de que, quando todas as outras hipótesesfalham, a que resta, mesmo que seja improvável, deve traduzir a verdade. No casopresente, todas as demais hipóteses são falhas. Quando descobri que o principal agenteinternacional, que acabava de deixar Londres, morava numa fila de casas à margem dalinha do metro, fiquei tão satisfeito que você se surpreendeu com minha leviandadeextemporânea.

— Ah! Era esse o motivo?

— Exatamente. O sr. Hugo Oberstein, da Caufield Gardens, 13, tornou-se meu objetivo.Iniciei minhas operações na Estação de Gloucester Road, onde um funcionário muitoamável me acompanhou ao longo da linha e me permitiu verificar não somente que asjanelas da escada de serviço da Caulfield Gardens se abrem sobre os trilhos, mas tambémque, fato ainda mais essencial, devido à intersecção de uma das linhas mais importantes,os trens às vezes ficam retidos, durante vários minutos, exatamente naquele ponto.

— Magnífico, Holmes! O caso está resolvido!

— Calma, calma, Watson. Fizemos progressos; a meta, no entanto, ainda se encontradistante. Ora, depois de ter estudado os fundos da casa na Caulfield Gardens, dirigi-me àparte da frente e convenci-me de que o pássaro tinha realmente batido a linda plumagem. Acasa é espaçosa, mas, pelo que pude ver, está vazia no andar superior. Oberstein moravaali com um único criado, provavelmente cúmplice de inteira confiança. Devemoslembrar-nos de que Oberstein partira para o continente com o fito de negociar sua presa,não com a idéia de fugir. Não tinha razões para temer um mandado de prisão, nem jamaislhe teria passado pela cabeça a possibilidade de uma busca domiciliar por parte de umpolicial amador. Contudo, é precisamente isso o que vamos fazer.

— Não poderíamos obter um mandado e legalizar a busca?

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— Impossível, diante da falta de provas.

— Que esperanças podemos alimentar?

— Talvez a correspondência que houver lá dentro...

— A coisa não me cheira bem, Holmes.

— Caro companheiro, você ficará de guarda à rua. Eu me encarregarei da parte delituosa.Não é ocasião para hesitar diante de ninharias. Pense no bilhete de Mycroft, noAlmirantado, no ministério, na alta personalidade que aguarda notícias. Precisamos agir.

Minha resposta foi erguer-me da mesa.

— Tem razão, Holmes, devemos agir.

Ele levantou-se de súbito e apertou-me a mão.

— Sabia que não iria abandonar-me no último momen to — disse-me.

Por um instante vi em seus olhos algo insólito, que chegava a parecer ternura; quaseimediatamente, porém, voltou a ser o homem prático e autoritário de sempre.

— Temos cerca de oitocentos metros de caminho, mas não há pressa. Vamos a pé.Cuidado para não deixar cair os instrumentos. Sua prisão como pessoa suspeita trariacomplicações desastrosas!

A Caulfield Gardens era constituída de uma dessas fileiras de casas de fachada lisa,com pórtico e pilares, produto característico dos meados da época vitoriana, no coração doWest End de Londres. Na casa vizinha à que procurávamos parecia haver uma festa decrianças, pois através da noite ressoavam um alegre burburinho de vozes infantis e osacordes de um piano. O nevoeiro continuava espesso e protegia-nos como sombra amiga,Holmes acendeu a lanterna e dirigiu o jato de luz para a pesada porta.

— Eis um obstáculo difícil de transpor — disse. — Além de fechada à chave, deve ter umatranca. Creio que (seremos mais bem sucedidos nos fundos da casa. Há uma excelentearcada lá embaixo, sob a qual poderemos ocultar-nos no caso de um policial demasiadozeloso vir interromper-nos. Ajude-me a saltar o muro, Watson, e farei o mesmo por você.

Um minuto depois, encontrávamo-nos no pátio. Mal alcançáramos a sombra, ouvimos ospassos de um policial ecoarem na névoa. Logo que o ritmo cadenciado morreu ao longe,Holmes tentou abrir a porta inferior. Vi-o curvar-se e empurrar até que esta, com umestalido seco, se escancarou. Precipitamo-nos através da escura passagem, fechando aporta do pátio atrás de nós. Holmes precedia-me na escada curva e desprovida depassadeira. O pequeno jorro de luz amarelada da lanterna projetou-se sobre uma janelabaixa.

— Aqui está, Watson... deve ser esta.

Abriu-a, e ouvimos de súbito ummurmúrio abafado, áspero, que foiaumentando progressivamente até setransformar num estrondo fragoroso:era um trem que passava por nós naescuridão. Holmes percorreu com a luzda lanterna o peitoril da janela- Estavacoberto de fuligem vomitada pelaslocomotivas em trânsito. Contudo, asuperfície negra estava apagada eraspada em alguns pontos.

— Pode se ver onde apoiaram o

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cadáver. Veja, Watson! O que é isto?Trata-se, sem dúvida, de manchas desangue — afirmou, apontando paraleves sinais descoloridos ao longo docaixilho da janela. — Ficaram impressastambém na pedra da escada. Ademonstração é completa. Esperemos

aqui até que um trem pare.

A demora não foi grande. O trem seguinte surgiu com estrondo na galeria, como o outro,mas retardou a marcha no espaço aberto e, em seguida, com um ranger de freios, parouexatamente debaixo de nós. Do parapeito da janela até a capota dos vagões a distâncianão chegava a um metro e vinte. Holmes cerrou a janela sem fazer ruído.

— Até aqui nossa hipótese está comprovada — observou. — Que pensa de tudo isso,Watson?

— É sua obra-prima. Jamais você se elevou a maior altura.

— Nesse ponto discordo de você. Desde o momento em que deduzi que o corpo foracolocado sobre a capota, intuição, aliás, fácil de compreender, o resto era inevitável. Senão fossem os graves interesses que o envolvem, o caso até aqui seria insignificante.Nossas dificuldades, porém, ainda não foram superadas. Todavia, talvez encontremosnesta casa algo que nos possa auxiliar.

Tínhamos subido a escada de serviço e entráramos no apartamento do primeiro andar.Era constituído de uma série de aposentos: a sala de jantar, sobriamente mobiliada, nadacontinha de interessante. O segundo aposento, um quarto, apresentava-se nas mesmascondições. A sala restante, porém, parecia mais prometedora, e meu companheiropreparou-se para fazer ali uma busca em regra. Estava repleta de livros e papéis, eevidentemente era utilizada como escritório. Rápida e meticulosamente, Holmes revistou oconteúdo de todas as gavetas e armários, mas nenhuma luz indicadora de êxito veioiluminar-lhe o rosto austero. Ao cabo de uma hora de trabalho, não tinha feito progressoalgum.

— Aquele velhaco apagou todos os rastros — disse. — Nada deixou que o incriminasse.Destruiu ou removeu toda a correspondência comprometedora. Esta é nossa últimaesperança.

Era um pequeno cofre de ferro que se encontrava sobre a escrivaninha. Holmes abriu-ocom o auxílio do escopro. Continha vários rolos de papel cobertos de cifras e cálculos, sema menor indicação, porém, do assunto a que se referiam. A repetição das palavras"pressão da água" e "pressão por polegada quadrada" sugeria uma possível relação comum submarino. Holmes pô-las de lado com ar impaciente. Restava apenas um envelope queencerrava pequenos recortes de jornal. Deixou-os cair sobre a mesa e, de súbito,compreendi pela expressão de seu rosto que suas esperanças se haviam reavivado.

— O que é isto, Watson? Hem? O que é isto? Recortes de uma série de mensagensinsertas na seção de anúncios de um jornal. Os tipos e o papel parecem indicar o DailyTelegraph. Ângulo superior direito da página. Nenhuma data... mas é fácil pô-los em ordem.Este deve ser o primeiro:

"Esperava receber notícias mais cedo. Concordo com as exigências. Escrevapormenorizadamente para o endereço contido no cartão. — Pierrot".

— Eis o seguinte:

"Demasiado complexo para descrevê-lo. Necessito relatório completo. O pagamentoser-lhe-á feito logo após a entrega da mercadoria. — Pierrot".

— Agora vem este:

"Negócio urgente. Preciso retirar oferta, a não ser que o contrato seja inteiramente

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executado. Marque encontro por carta. Confirmarei por anúncio. — Pierrot".

— E finalmente:

"Segunda-feira, à noite, depois das nove. Duas pancadas. Apenas nós dois. Não seja tãodesconfiado. Pagamento à vista na entrega da mercadoria. — Pierrot".

— Uma cadeia absolutamente sem falhas, Watson! Se conseguíssemos ao menosdescobrir quem está na outra ponta!

Sentou-se, mergulhado em seus pensamentos, tamborilando com as pontas dos dedosna mesa. Pôr fim, levantou-se epentinamente.

— Ora, afinal de contas, talvez não seja assim, tão difícil. Nada mais nos resta a fazer aqui,Watson. Acho melhor darmos um pulo até o Daily Telegraph e encerrarmos nosso dia detrabalho.

Mycroft Holmes e Lestrade compareceram no dia seguinte, após a refeição matinal, aoencontro que tínhamos marcado, e Sherlock Holmes os pôs a par de nossas atividades dodia anterior. O homem da Scotland Yard sacudiu a cabeça ao ouvir o relato de nossaviolação de domicílio.

— Não podemos usar esses meios, sr. Holmes — resmungou. — Não admira que obtenharesultados superiores aos nossos. Entretanto, qualquer dia o senhor pode ultrapassar oslimites e meter-se em apuros, juntamente com seu amigo.

— Pela Inglaterra, a terra natal e a beleza. Que tal, Watson? Imolados no altar da pátria!Mas o que você pensa de tudo isso, Mycroft?

— Ótimo, Sherlock! Simplesmente admirável! Mas o que pretende fazer?

Holmes apanhou o Daily Telegraph de cima da mesa.

— Viu a mensagem de hoje de Pierrot?

— Como?! Outra?

— Sim, ei-la.

"Hoje à noite. Mesma hora. Mesmo lugar. Duas pancadas. Assunto de importância vital.Sua própria segurança em jogo. — Pierrot."

— Por Deus! — exclamou Lestrade. — Se ele for, nós o apanharemos!

— Assim pensei ao mandar publicar o anúncio. Creio que, se puderem acompanhar-nos,por volta das oito horas, à Caufield Gardens, poderemos aproximar-nos de uma solução.

Uma das características mais notáveis de Sherlock Holmes era a faculdade de afastaras preocupações e fixar o espírito em coisas de menor monta, quando se convencia de quenão lhe era possível continuar a trabalhar com proveito. Lembro-me de que ele passou todoaquele memorável dia absorvido numa monografia, a qual se propusera escrever, sobre osMotetos polifônicos de Lassus. Quanto a mim, era completamente desprovido desse poderde abstração e, por conseguinte, as horas pareciam intermináveis. A enorme importâncianacional do fato, a ansiedade reinante nos mais elevados círculos governamentais, aprópria natureza da experiência que íamos tentar — tudo concorria para me pôr os nervosem frangalhos.

Senti um grande alívio quando, finalmente, após uma ligeira refeição, nos lançamos emnossa expedição. Encontramo-nos com Mycroft e Lestrade em frente à Estação deGloucester Road. A porta dos fundos da residência de Oberstein tinha sido aberta na noiteanterior, e eu fui obrigado a entrar e abrir-lhes a do vestíbulo, pois Mycroft recusara-se,irredutível e indignado, a pular a grade de ferro. Às nove horas, estávamos todos sentados

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no escritório, esperando pacientemente o nosso homem.

Duas horas decorreram lentamente. Ao soar das onze, as badaladas vagarosas dogrande relógio da igreja próxima pareciam fazer submergir todas as nossas esperanças.Lestrade e Mycroft agitavam-se impacientes em suas cadeiras e consultavam os própriosrelógios duas vezes por minuto. Holmes mostrava-se silencioso e calmo, as pálpebrassemicerradas, mas com todos os sentidos de sobreaviso. De repente, levantou a cabeça.

— Está chegando — murmurou.

Passos furtivos ecoaram através daporta. Foram um pouco adiante evoltaram. Ouvimos um arrastar de pés dolado de fora e, logo em seguida, doisgolpes secos da aldrava. Holmesergueu-se e fez-nos sinal parapermanecermos sentados. O bico de gásdo vestíbulo estava restringido ao mínimo.Abriu a porta da rua e, quando o vultoescuro deslizou à sua frente, voltou afechá-la e trancou-a. "Por aqui", ouvimo-lodizer, e, logo em seguida, o homemencontrava-se diante de nós. Holmesseguira-o de perto, e enquanto ele sevoltava com um grito de espanto,agarrou-o pelo pescoço e atirou-o paradentro da sala. Antes que o prisioneiropudesse recuperar o equilíbrio, a portaestava fechada, e Holmes, postado diantedela. O homem lançou um olhar em tornode si, cambaleou e caiu sem sentidos nosoalho. Com o choque, o chapéu de abas

largas voou-lhe da cabeça e o cachecol deslocou-se, apresentando a nossos olhos a barbalonga e rala e as feições suaves e delicadas do coronel Valentine Walter.

Holmes soltou um assobio de surpresa.

— Desta vez, você pode considerar-me um asno, Watson — disse-me. — Não era este opássaro que eu esperava.

— Quem é? — perguntou, ansioso, Mycroft.

— O irmão mais novo do falecido Sir James Walter, chefe do Departamento deEmbarcações Submarinas. Sim, sim; agora começo a entender. Ele está recuperando ossentidos. Acho melhor deixarem o interrogatório a meu cargo.

Tínhamos transportado o corpo exânime para o sofá. Um momento depois, nossoprisioneiro sentou-se, relanceou o olhar aterrorizado em redor e passou a mão pela testa,como se não pudesse acreditar nos próprios olhos.

— O que é isso? — perguntou. — Vim aqui fazer uma visita ao sr. Oberstein.

— Já sabemos de tudo, coronel Walter — respondeu Holmes. — Não posso compreendercomo um cidadão inglês tenha procedido dessa forma. No entanto, toda a correspondênciae as relações que manteve em Oberstein são do nosso conhecimento. Sabemos tambémdas circunstâncias relativas à morte do jovem Cadogan West. Permita-me aconselhá-lo aatenuar sua falta, arrependendo-se e fazendo uma confissão completa, pois ainda restamcertas minúcias que só podemos obter de sua própria boca.

O homem soltou um gemido e escondeu o rosto nas mãos. Esperamos algum tempo,mas ele se manteve silencioso.

— Posso garantir-lhe — insistiu Holmes — estar de posse de todos os elementos

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essenciais. Sabemos que tinha urgente necessidade de dinheiro; que tirou o molde daschaves de seu irmão e entrou em contato com Oberstein, que respondia às suas cartas porintermédio da seção de anúncios do Daily Telegraph. Estamos informados de que o senhorse dirigiu ao departamento de seu irmão, na noite de segunda-feira, protegido pelonevoeiro, quando foi visto e seguido pelo jovem Cadogan West, que provavelmente tinhasérias razões para desconfiar de sua pessoa. Ele assistiu ao roubo, mas não pôde dar oalarme, pois suspeitava que o senhor estivesse encarregado de levar os documentos a seuirmão, em Londres. Pondo de parte todas as suas preocupações particulares, como bomcidadão que era, seguiu-o de perto através do nevoeiro e não o perdeu de vista até osenhor ter alcançado esta casa. Nessa ocasião ele interveio, e foi assim, coronel Walter,que o senhor juntou à traição o crime ainda mais abominável do assassinato.

— Não! Não fui eu! Diante de Deus, juro que não fui eu! — gritou nosso desgraçadoprisioneiro.

— Conte-nos então como Cadogan West encontrou a morte e como colocaram o cadáversobre a capota de um vagão.

— Contarei tudo. Prometo fazê-lo. Eu me encarreguei do resto, confesso-o. Foi exatamentecomo o senhor disse. Precisava pagar um débito na Bolsa, e urgia obter o dinheiro.Oberstein ofereceu-me cinco mil libras para me salvar da ruína. Quanto ao assassinato,porém, estou tão inocente como os senhores.

— Que aconteceu então?

— West suspeitava de mim e seguiu-me, comoo senhor disse. Não o notei senão aoencontrar-me diante da porta desta casa. Anévoa estava demasiado densa, e não sedistinguia nada a dois metros de distância. Eutinha dado as duas pancadas convencionais naporta, e Oberstein viera abri-la. Westaproximou-se subitamente de nós eperguntou-nos o que pretendíamos fazer comos papéis. Oberstein tinha na mão umcassetete pesado e curto, que sempre oacompanhava. West, ao tentar penetrar à forçana casa, em nosso encalço, foi atingido com umgolpe na cabeça desferido por Oberstein. Apancada foi fatal. Dali a cinco minutos, o rapazestava morto. Jazia inerte no vestíbulo, e nãosabíamos que decisão tomar. Obersteinlembrou-se então dos trens que paravamdebaixo da janela dos fundos. Antes disso,porém, examinou os documentos que eutrouxera. Afirmou-me que precisava apenas detrês, os de maior valor, e que ia ficar com eles."Impossível", protestei; "haverá um tremendoescândalo em Woolwich se não foremrestituídos." "Preciso ficar com eles", insistiu,"pois são de tal modo técnicos que é impossível copiá-los em pouco tempo." "Mas devolevá-los de volta esta noite", repliquei. Oberstein refletiu por alguns momentos e, depois,disse ter encontrado uma solução. "Fi-carei com os três de que preciso. Poremos os outrosnos bolsos deste rapaz. Quando for encontrado, certamente lhe atribuirão a culpa de tudo."Eu não via outra saída, e por isso fizemos como ele tinha sugerido. Aguardamos meia horaà janela até que um trem parasse. A densidade do nevoeiro punha-nos a salvo de olharesindiscretos, e não tivemos a menor dificuldade em depositar o corpo de West sobre ovagão. Aí terminou o caso, no que me diz respeito.

— E seu irmão?

— Nada disse, mas já me surpreendera uma vez mexendo em suas chaves, e creio quedesconfiava de mim. Percebi-lhe a suspeita nos olhos. Como sabem, o escândalo deixou-o

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acabrunhado.

Fez-se na sala um longo silêncio, interrompido afinal por Mycroft Holmes.

— Não poderia reparar o mal que fez? Isso lhe aliviaria a consciência e possivelmenteatenuaria seu castigo.

— Como poderia fazer essa reparação?

— Onde se encontra Oberstein com os documentos?

— Não sei.

— Não lhe deu nenhum endereço?

— Disse-me que, se lhe escrevesse para o Hotel du Louvre, em Paris, as cartas, com todaa probabilidade, lhe chegariam às mãos.

— Então ainda há remédio — observou Sherlock Holmes.

— Farei tudo o que puder. Não nutro a menor simpatia por Oberstein, que foi o causadorde minha desgraça.

— Aqui tem papel e tinta. Sente-se a essa mesa e escreva o que vou ditar. Preencha oenvelope com o endereço indicado. Muito bem. Vamos agora ao texto da carta:

"Prezado senhor: Com referência à nossa transação, sem dúvida já terá notado que ainda falta nos planosum pormenor de grande importância. Possuo um desenho que os tornará completos. Paraobtê-lo, porém, vi-me envolvido em ulteriores complicações, o que me força a pedir-lhe umnovo adiantamento de quinhentas libras. Não confio na remessa do desenho pelo correio, esó aceitarei ouro ou notas como pagamento. Poderia ir ao seu encontro; todavia, minhaausência do país, neste momento, suscitaria suspeitas. Espero, portanto, encontrá-lo nosalão de fumar do Charing Cross Hotel, sábado, ao meio-dia. Lembre-se de que aceitareiunicamente papel-moeda inglês ou ouro".

— Isso será o bastante. Ficarei deveras surpreso se essa carta não trouxer nosso homemde volta.

E trouxe-o de fato! É um episódio que já faz parte da história — da história secreta deuma nação, que é freqüentemente muito mais interessante do que suas crônicas públicas.Oberstein, ansioso por levar inteiramente a cabo o golpe mais brilhante de sua carreira,caiu na armadilha e acabou por cumprir uma pena de quinze anos numa prisão britânica.Em sua mala foram encontrados os inestimáveis planos do Bruce-Partington, que elepusera a leilão em: todos os centros navais da Europa.

O coronel Walter morreu no cárcere, ao final do segundo ano de sua sentença. Quanto aHolmes, regressou com novas forças à monografia sobre os Motetos polifônicos de Lassus,a qual foi lançada em edição limitada, e julgada pêlos conhecedores como a última palavraa respeito do assunto. Soube incidentalmente, algumas semanas mais tarde, que meuamigo tinha passado um dia em Windsor, de onde voltou com um alfinete de gravata queostentava uma magnífica esmeralda. Quando lhe perguntei se o tinha comprado,respondeu-me que lhe fora dado de presente por uma nobre dama, em cujo interesse tiveraa fortuna de levar a bom termo uma delicada missão. Não disse mais nada; creio, porém,ter adivinhado o nome da augusta senhora, e estou certo de que aquele alfinete deesmeralda trará eternamente à memória de meu amigo a aventura dos planos do submarinoBruce-Partington.

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Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House

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Arthur Conan Doyle

O Detetive Agonizante

Título original: The Dying detective Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1913

Sobre o texto em português

Este texto digital reproduz atradução de The Dying detective publicado emAs Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V,

editado pelo Círculo do Livroe com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

A sra. Hudson, senhoria de Sherlock Holmes, era uma criatura dotada de paciênciainfinita. Não só seu apartamento do primeiro andar era continuamente invadido por legiõesde pessoas de aspecto estranho e muitas vezes indesejáveis, mas seu extraordinárioinquilino mostrava uma extravagância e uma irregularidade de vida capazes de pôr à provasua resignação. O incrível desmazelo, a paixão pela música nas horas mais insólitas, osexercícios ocasionais de tiro ao alvo no interior do apartamento, as fantásticas egeralmente malcheirosas experiências científicas, e a atmosfera de violência e perigo que orodeava, faziam de Sherlock Holmes o pior pensionista de Londres. Por outro lado, noentanto, ele pagava um aluguel principesco, e não tenho dúvidas de que todo o prédiopoderia ser comprado com odinheiro que Holmes pagou por seu apartamento durante o tempo em que vivi com ele.

A pobre mulher tratava-o com a mais profunda reverência, e jamais ousava interferir emsua conduta, por mais descabida que fosse. Dedicava-lhe também grande estima, poisHolmes usava, no trato com as senhoras, de gentileza e atenção fora do comum. Emboradetestasse o sexo oposto e não tivesse a menor confiança nele, fora sempre um adversáriocavalheiresco. Sabendo como era sincera a amizade que esta senhora lhe dedicava, ouviatenta e ansiosamente a narrativa que ela veio fazer-me em meu apartamento, no segundoano de minha vida de homem casado, e com a qual me pôs a par do triste estado a quemeu amigo estava reduzido.

— Ele está à morte, dr. Watson — disse-me. — Há três dias que piora a olhos vistos, enão sei se conseguirá resistir até a noite. Não quis deixar-me chamar um médico. Hoje demanhã, quando lhe vi o rosto encovado e aqueles enormes olhos brilhantes fitando-me, nãopude resistir mais. "Com sua licença ou sem ela, sr. Holmes, vou chamar um médicoimediatamente", disse-lhe eu. "Se é assim, chame Watson", respondeu. Se estivesse emseu lugar, doutor, não perderia tempo, caso queira encontrá-lo com vida.

Fiquei horrorizado, pois nada sabia de sua doença. É inútil dizer que me apressei a pôr osobretudo e o chapéu, e, enquanto íamos no carro, pedi à boa criatura outros pormenores.

— Pouco lhe posso dizer, doutor. Ele andava ocupado num caso lá para as bandas deRotherhithe, numa viela junto ao rio, e voltou com essa moléstia. Caiu de cama naquarta-feira à tarde, e desde então tem permanecido deitado. Há três dias que não provalíquido ou alimento algum.

— Santo Deus! Por que não chamou um médico?

— Ele não o permitiu, já lhe disse. O senhor sabe como ele é autoritário! Mas não lhe restamuito tempo de vida, como verá logo que lhe puser os olhos em cima.

Holmes oferecia realmente um espetáculo confrangedor. Na luz incerta daquele dianevoento de novembro, o quarto do doente era um lugar triste, mas foi principalmente seurosto lívido e descarnado, fitando-me do leito, que me gelou o coração. Os olhos luziam

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Frederic Dorr Steele, 1913

devido à febre, havia no rubor das faces sinais de exaustão progressiva do organismo, ecrostas escuras denegriam-lhe os lábios; as mãos exangues contraíam-se incessantementesobre o cobertor, e a voz era áspera e entrecortada. Jazia inerte na cama quando entrei;contudo, minha presença fez emanar de seus olhos um brilho de lucidez.

— Olá, Watson! Parece que acoisa vai mal — disse-me numfio de voz, na qual sepercebiam ainda traços doantigo tom despreocupado.

— Meu caro amigo! —exclamei, dirigindo-me a ele.

— Não se aproxime! Não seaproxime! — bradou, na vozcortante e imperiosa que só lheouvira em ocasiões de grandeperigo. — Se chegar perto demim, Watson, sereiconstrangido a fazer com quese retire desta casa.

— Mas por quê?

— Porque assim o desejo. Não lhe basta isso?

Sim, a sra. Hudson tinha razão. Estava mais autoritário que nunca; todavia, era tristevê-lo naquele estado.

— Desejava apenas ajudá-lo — murmurei.

— Exatamente! Você me será muito mais útil se fizer o que estou dizendo.

— É claro, Holmes.

A rispidez de suas maneiras abrandou.

— Você não ficou aborrecido? — perguntou ofegante.

Pobre amigo, como poderia ficar aborrecido, vendo-o reduzido àquela situação?

— É para seu próprio bem, Watson — rouquejou.

— Para meu próprio bem?

— Sei o que tenho. É a chamada moléstia dos cules de Sumatra, mal que os holandesesconhecem melhor do que nós, apesar de não terem conseguido remédio contra ele. Só umacoisa é certa: é mortal e terrivelmente contagioso.

Falava com uma energia febril, enquanto suas longas mãos se agitavam e torciam naânsia de me afastar.

— Transmite-se pelo simples contato, Watson... pelo simples contato. Conserve-se àdistância e tudo estará bem.

— Por Deus, Holmes! Você julga que eu posso tomar isso em consideração? Não o farianem mesmo no caso de um estranho, quanto mais quando se trata de cumprir meu deverpara com um velho amigo.

Fiz de novo menção de me avizinhar, mas ele repeliu-me com um olhar furioso de cólera.

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— Se você ficar onde está, falarei. Caso contrário, terá de sair deste quarto.

Tenho um respeito tão profundo pêlos dotes extraordinários de Holmes, que costumosempre ceder a seus desejos, ainda quando não os compreendo. Nesse momento, porém,todo o meu instinto profissional se insurgia. Podia aceitar suas ordens em qualquer outrolugar, mas, num quarto de doente, quem mandava era eu.

— Holmes — disse-lhe —, você está fora de si. Um homem enfermo é como uma criança, eeu o tratarei como tal. Queira ou não queira, vou examinar seus sintomas e tratar decurá-lo.

Meu amigo lançou-me um olhar irritado:

— Já que preciso dos serviços de um médico, ainda que contra minha vontade, permita-meao menos chamar um no qual eu deposite confiança.

— Então você não confia em mim?

— Em sua amizade, certamente; contudo, fatos são fatos, Watson, e, afinal de contas,você não passa de um simples clínico com experiência muito limitada e dotes medíocres. Édoloroso ter de lhe dizer estas coisas, mas você não me dá outra alternativa.

Senti-me profundamente magoado.

— Tal observação é indigna de você, Holmes. Ela revela claramente o estado de seusnervos. Todavia, se não tem confiança em mim, não lhe imporei meus serviços. Deixe-meentão chamar Sir Jasper Meek ou Penrose Fisher, ou outro qualquer dos melhores médicosde Londres. Mas alguém precisa ser chamado; quanto a isso, não há dúvida. Se pensa quevou ficar aqui vendo-o morrer, sem cuidar de você ou trazer alguém que o faça, engana-seredondamente.

— Acredito em suas boas intenções, Watson — disse o enfermo, entre um soluço e umgemido. — Quer que lhe demonstre sua ignorância? O que sabe você, por exemplo, arespeito da febre de Tapanuli? Que noções tem da putrefação negra de Formosa?

— Nunca ouvi falar nelas.

— Existem muitas doenças desconhecidas, e ignoram-se muitos problemas patológicoscom relação ao Oriente, Watson.

Interrompia-se a cada frase, a fim de recobrar as poucas forças que lhe restavam.

— Aprendi tudo no decurso de recentes pesquisas de caráter médico-legal. Contraí estainfecção quando me encontrava empenhado nelas. Você não poderá fazer nada.

— Talvez não; mas sei que o dr. Ainstree, a maior autoridade viva em doenças tropicais,está atualmente em Londres. Qualquer objeção de sua parte será inútil, Holmes. Voubuscá-lo imediatamente — retorqui-lhe, dirigindo-me, resoluto, para a porta.

Jamais experimentei tamanho choque. Numabrir e fechar de olhos, o moribundo, com umsalto tigrino, tinha- me interceptado o caminho.Ouvi o estalido de uma chave girando nafechadura. Um momento depois, ele tinharegressado cambaleante à cama, exausto earquejante, após tão violento desperdício deenergia.

— Não me tirará esta chave nem à força,Watson. Tenho-o em meu poder, caro amigo,e aqui ficará até eu resolver o contrário. Noentanto, compreendo sua atitude para comigo.— Tudo isso foi dito aos arrancos, entre

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esforços terríveis para tomar fôlego, — Seique deseja unicamente meu bem. Percebo-ocom clareza. Poderá fazer o que quiserdepois; antes, porém, dê-me tempo pararecuperar as forças. Agora não, Watson,agora não. São quatro horas. Às seis poderáir.

— Mas isso é uma loucura, Holmes.

— Somente duas horas, Watson. Prometo deixá-lo partir às seis. Quer esperar?

— Parece não haver outra alternativa.

— Nenhuma outra, Watson. Obrigado, não precisa me ajudar a arranjar as cobertas. Porfavor, mantenha-se à distância. E agora, devo impor-lhe outra condição. Você procuraráauxílio, não o do homem a que se referiu, mas do que eu escolher.

— Perfeitamente.

— É a primeira palavra sensata que pronuncia desde sua entrada neste quarto, Watson. Háalguns livros naquela estante. Sinto-me um pouco esgotado. Será esta a sensação de umabateria ao verter eletricidade num mau condutor? Às seis retomaremos nossa conversação.

Isso, porém, devia suceder muito antes da hora aprazada, e em circunstâncias que mecausaram uma emoção quase tão grande como a motivada pelo pulo em direção à porta.Permaneci alguns minutos olhando para aquele vulto silencioso estirado sobre a cama.Tinha o rosto quase oculto pelas cobertas e parecia dormir. Incapaz de me sentar para ler,pus-me a vaguear lentamente pelo quarto, examinando os retratos de criminosos célebrescom os quais as paredes estavam guarnecidas. Afinal, em meu deambular sem destino,cheguei diante do consolo da lareira. Sobre ele viam-se, espalhados em desordem,cachimbos, bolsas de tabaco, seringas, canivetes, cartuchos de revólver e diversos outrosobjetos. Entre estes, uma caixinha de marfim branco e preto, de tampa móvel. Atraído pelasua beleza, já tinha estendido a mão para examiná-la mais de perto, quando...

Que grito medonho ele soltou... grito que aocerto deveria ter sido ouvido da rua. Fiqueigelado de susto, e meus cabelos searrepiaram. Voltando-me rapidamente,vislumbrei um rosto convulso e dois olhosalucinados. Permaneci tolhido, com a caixinhana mão.

— Ponha isso aí! Depressa, Watson... já lhedisse!

Voltou a reclinar a cabeça no travesseiro eemitiu um profundo suspiro de alívio, aover-me pôr de novo a caixa sobre a prateleira.

— Não gosto que mexam em minhas coisas,Watson. Você bem sabe disso. E pare de meatormentar. Você, médico... é suficiente paralevar um paciente ao hospício. Sente-se,homem, e deixe-me repousar em paz!

Esse incidente produziu uma desagradávelimpressão em meu espírito. A irritação,violenta e infundada, acompanhada depalavras tão rudes, de tal modo diferente desua habitual gentileza, revelavam-me como era intensa a desorganização de sua mente. Detodas as ruínas, a de um cérebro esclarecido é a mais deplorável. Sentei-me numa cadeira,terrivelmente abatido, e esperei que o tempo passasse. Ele devia estar consultando o

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relógio como eu, pois, mal haviam soado as seis horas, começou a falar com a mesmaanimação febril.

— Ouça, Watson — disse-me —, tem dinheiro trocado no bolso?

— Tenho.

— Moedas de prata?

— Uma boa quantidade.

— Quantas meias-coroas?

— Cinco.

— Ah! Muito poucas! Muito poucas! Que infelicidade a minha, Watson! Apesar de tudo, émelhor pô-las no bolsinho do colete, e o resto de dinheiro no bolso esquerdo das calças.Obrigado. Isso manterá melhor seu equilíbrio.

Era puro delírio. Estremeceu e deixou escapar novamente dos lábios aquele ruído, mistode tosse e soluço.

— Agora acenda o gás, Watson, mas tenha muito cuidado em não levantar a chama, nempor um instante, acima da metade normal. Peço-lhe para agir com cautela. Obrigado, assimestá ótimo. Não, não precisa fechar as cortinas. Faça o favor de colocar algumas cartas ejornais sobre esta mesa, a meu alcance. Obrigado. Agora um pouco daquelas quinquilhariasque estão no consolo da lareira. Ótimo, Watson! Encontrará aí uma pinça para cubinhos deaçúcar.

"Queira pegar com ela essa caixinha de marfim. Ponha-a aqui entre os jornais. Muitobem! Agora pode ir buscar, no número 13 da Lower Burke Street, o sr. Culverton Smith."

Para dizer a verdade, meu desejo de chamar um médico diminuíra, pois meu amigoestava num estado visível de delírio, e me parecia perigoso abandoná-lo naquele instante.Todavia, mostrava-se agora ansioso por consultar a pessoa indicada, sem embargo de suarelutância anterior.

— Nunca ouvi tal nome — respondi.

— É provável, meu bom Watson. Talvez fique surpreendido ao saber que a pessoa maisversada nesta moléstia, no mundo, não é um médico, mas um lavrador. O sr. CulvertonSmith é um ilustre fazendeiro de Sumatra, atualmente de visita a Londres. Um surtoepidêmico da doença em sua propriedade, distante de qualquer auxílio médico, forçou-o aestudá-la por conta própria, com resultados notáveis. Como é criatura muito metódica, nãoqueria que você fosse procurá-lo antes das seis, pois tinha a certeza de que não oencontraria em casa. Se conseguir convencê-lo a vir aqui e conceder-nos o benefício desua experiência, única no campo desta doença, cujo estudo tem sido seu passatempofavorito, estou certo de que ele poderá curar-me.

Reproduzi as palavras de Holmes como se tivessem sido pronunciadasconsecutivamente, sem explicar que eram interrompidas por súbitas faltas de ar e pelocontínuo contrair das mãos, que indicavam o sofrimento pelo qual estava passando.Naquelas poucas horas, seu aspecto piorara bastante. A vermelhidão do rosto era aindamais pronunciada, os olhos luziam com maior brilho na concavidade das órbitas escuras, eum suor gélido cobria-lhe a fronte. Ainda conservava, contudo, o tom imperioso da voz quehavia de acompanhá-lo até o último alento.

— Conte-lhe exatamente como me deixou — disse.

— Transmita-lhe com fidelidade a impressão produzida por mim em seu espírito... a de ummoribundo... um moribundo delirante. Francamente, não consigo compreender por querazão todo o leito do oceano não se tornou uma única massa compacta de ostras, tãoprolíferas me parecem essas criaturas. Oh! Estou divagando. É estranho como o cérebro

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controla o cérebro. Que dizia eu, Watson?

— Dava-me instruções para falar com o sr. Culverton Smith.

— Ah! Sim; lembro-me agora. Minha vida depende disso. Insista com ele. Não estamos emmuito boas relações. O sobrinho dele... eu suspeitava de algo criminoso e contei-lhe isso. Orapaz morreu em condições horríveis. Ele nutre certo rancor por mim. Procure abrandá-lo,Watson. Sei que não falhará, pois jamais me desiludiu. Existem, sem dúvida, inimigosnaturais que limitam o aumento desses moluscos. Você e eu, Watson, fizemos nossaobrigação. Será, então, o universo submergido pelas ostras? Não, não; seria monstruoso!Você transmitirá fielmente a impressão que produzi em seu espírito.

Deixei-o com a dolorosa impressão daquele esplêndido cérebro proferindo disparatescomo uma criança. Tinha-me entregado a chave, e apressei-me a guardá-la comigo,receoso de que ele se trancasse por dentro. A sra. Hudson esperava no corredor, trêmulae chorosa. Ao descer as escadas, ainda ouvi a voz aguda e penetrante de Holmes aexpandir-se numa canção desconexa. Na rua, enquanto chamava um carro, um homemdirigiu-se a mim através do nevoeiro.

— Como passa o sr. Holmes, doutor? — indagou.

Era um velho conhecido, o inspetor Morton, da Scotland Yard, vestido à paisana.

— Muito mal — respondi.

Ele fitou-me de maneira tão singular que, se não fosse demasiado perverso, diria ter-lheobrigado no rosto, à luz tênue do lampião, um lampejo de alegria.

— Ouvi falar nisso — observou.

Entretanto, o carro chegou e nós nos separamos.

A Lower Burke Street era um conjunto de lindas casas residenciais situadas no vagolimite entre Notting Hill e Kensington. O carro parou em frente a uma casa que apresentavaum aspecto sóbrio e uma delicada imponência, com suas grades de ferro antiquadas, suaporta maciça e seus luzentes ornatos de bronze. Tudo isso condizia com o solene mordomoque surgiu, enquadrado na rósea claridade de uma lâmpada colorida pendente do vestíbulo.

— O sr. Culverton está, sim, senhor. Dr. Watson? Muito bem. Levar-lhe-ei seu cartão.

Meu humilde nome e meu título não pareceram impressionar o sr. Culverton Smith.Através da porta entreaberta, ouvi uma voz aguda e petulante:

— Quem é esse sujeito? O que ele quer? Com mil demônios, Staples, quantas vezes já lhedisse que não desejo ser perturbado nas minhas horas de estudo?

Percebi a voz do mordomo, submissa, gaguejando desculpas e explicações.

— Não importa, não posso recebê-lo, Staples. Não admito que meu trabalho sejainterrompido desta maneira. Diga-lhe que não estou em casa. Que volte amanhã de manhã,se deseja de fato falar comigo.

Novamente o mesmo murmúrio respeitoso.

— Está bem, está bem, dê-lhe meu recado. Pode vir amanhã de manhã, se quiser. Meutrabalho não pode ser retardado.

Pensei em Holmes, debatendo-se em seu leito de enfermo e talvez contando inquieto osminutos, na expectativa de que eu pudesse levar-lhe socorro. A ocasião não era paracerimônias. Sua vida dependia de minha presteza de ação. Antes que o mordomo metivesse transmitido o recado, eu o empurrara para o lado e irrompera na sala.

Com um grito estridente de cólera, um

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homem levantou-se de uma poltrona, ao pé dalareira. Vi à minha frente um enorme rostoqueimado de sol, com uma pele grosseira euntuosa, vasto queixo duplo e olhos cinzentos,sombrios e ameaçadores, fitando-me sob asespessas sobrancelhas grisalhas. O largocrânio estava coberto por um barrete develudo, posto elegantemente de lado sobre asuperfície rosada e luzidia. A cabeça eradescomunalmente grande, e todavia, baixandoo olhar, vi, para minha surpresa, que a figurado homem era pequena e frágil, de ombros ecostas torcidos como os de alguém que nainfância tivesse sofrido de raquitismo.

— Que história é essa? — bradou em vozestentórea.

— Que significa essa intrusão? Não lhe tinhamandado dizer que só poderia recebê-loamanhã?

— Sinto muito — respondi —, trata-se, porém, de um assunto inadiável. O sr. SherlockHolmes...

A simples menção do nome de meu amigo produziu extraordinário efeito no homenzinho.A expressão de cólera desapareceu-lhe imediatamente do rosto. Sua fisionomia tornou-setensa e vigilante.

— Vem da parte de Holmes? — indagou.

— Acabo de deixá-lo.

— Que aconteceu? Como está ele?

— Acha-se gravemente enfermo, em estado desesperador. Eis por que vim procurá-lo.

O homem fez sinal para que me sentasse e voltou a acomodar-se na poltrona. Nessemomento vislumbrei-lhe o rosto, refletido no espelho que se encontrava sobre o consolo dalareira. Teria jurado ler nele um sorriso maligno, odioso. Todavia, convenci-me de que foraapenas o efeito de alguma contração nervosa, pois logo em seguida encarou-me com ar desincera preocupação.

— Lamento-o muito — disse ele. — Conheço o sr. Holmes apenas através de certosnegócios em que estivemos empenhados, mas nutro o máximo respeito por seu talento ecaráter. Ele é um curioso do crime, como eu o sou das moléstias. Para ele, o delinqüente,para mim, o micróbio. Eis minhas prisões — continuou, indicando-me uma fileira de frascose tubos que se encontravam sobre uma mesinha. — Nesses meios de cultura cumprempena alguns dos piores malfeitores do mundo.

— É exatamente por causa de seus conhecimentos especializados que Holmes desejavê-lo. Ele o tem em alto conceito, e julga ser o senhor o único homem em Londres quepode salvá-lo.

O homenzinho estremeceu, e seu elegante barrete escorregou para o chão.

— Como? — perguntou. — Por que acredita o sr. Holmes que eu o possa socorrer nacontingência em que se encontra?

— Por causa de sua experiência no tocante a doenças tropicais.

— Mas por que ele julga que a moléstia que contraiu é de origem tropical?

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— Porque no decurso de certa investigação profissional recente, esteve trabalhando nasdocas entre marinheiros malaios.

O sr. Culverton Smith sorriu benevolamente e apanhou o barrete do chão.

— Ah? É isso? Vai ver que a coisa não é tão grave como pensa. Há quanto tempo estádoente? — indagou.

— Há cerca de três dias.

— Tem sido acometido de delírios?

— De vez em quando.

— Hum! Isso me parece grave. Seria desumano não atender a seu pedido. Não tolero queninguém me interrompa nas horas de trabalho, dr. Watson, mas este é, sem dúvida, umcaso excepcional. Num minuto estarei pronto para acompanhá-lo.

Lembrei-me de uma recomendação de Holmes.

— Neste momento tenho outro compromisso — repliquei.

— Está bem; irei sozinho. Sei o endereço de Holmes. Pode ficar certo de que estarei ládentro de meia hora no máximo.

Regressei ao quarto de Holmes com o coração apertado no peito. Por tudo quanto meera dado saber, receava que durante minha ausência tivesse sobrevindo algum acessofatal; no entanto, para meu grande alívio, ele melhorara sensivelmente durante esseintervalo. Seu aspecto ainda era impressionante, mas já não delirava e podia falar, com vozfraca, é verdade, mas com uma lucidez e uma presença de espírito maiores que decostume.

— Então, Watson, falou com ele?

— Falei; já deve estar a caminho.

— Magnífico, Watson! Magnífico! Você é o melhor dos mensageiros.

— Ele queria vir comigo.

— Isso não seria possível, Watson. Seria preciso impedi-lo a todo custo. Ele perguntou oque eu tinha?

— Sim; falei-lhe a respeito dos marinheiros malaios do East End.

— Muito bem! Fez tudo o que um bom amigo poderia fazer. Agora pode desaparecer decena.

— Mas devo esperar para ouvir a opinião dele, Holmes!

— Está certo; contudo, tenho motivos para supor que sua opinião será mais franca evaliosa se ele se julgar a sós comigo. Há espaço suficiente para se esconder atrás dacabeceira da cama.

— Meu caro Holmes!

— Creio não haver outro remédio, Watson. O quarto não se presta para alguém seesconder, e por isso mesmo não dá margem a suspeitas. Contudo, aí atrás, Watson, ficarábem.

Subitamente, sentou-se na cama, demonstrando uma viva atenção na fisionomiadescarnada.

Page 91: O Ultimo Adeus de Sherlock Holmes

— Ouço o barulho de rodas de carro. Depressa, homem, se me quer bem! E não se mexa,aconteça o que acontecer... aconteça o que acontecer, ouviu? Não fale! Não faça o menorgesto! Limite-se a escutar com toda a atenção.

Num instante, todo aquele inesperado acesso de energia o abandonou como porencanto, e suas palavras dominadoras e autoritárias perderam-se nos murmúriosdesconexos e ininteligíveis do delírio.

Do esconderijo para onde eu fora empurrado com tanta pressa, ouvi o soar de passosna escada e, em seguida, o abrir e fechar da porta do quarto. Depois, para minhasurpresa, seguiu-se longo silêncio, interrompido apenas pela respiração irregular e ofegantedo enfermo. Imaginei que nosso visitante estivesse de pé, ao lado do leito, olhando para afigura sofredora de meu amigo. Finalmente, quebrou-se o estranho silêncio.

— Holmes! — exclamou o recém-chegado, no tom peremptório de quem procura acordaralguém. — Holmes! Não está me ouvindo, Holmes?

Ouviu-se um roçar de panos, como se ele o houvesse sacudido rudemente pêlosombros.

— É o sr. Smith? — sussurrou Holmes. — Quase não ousava esperar que viesse.

O outro riu.

— Nem eu teria imaginado — redargüiu. — No entanto, como vê, estou aqui. Deve estarsentindo remorso, Holmes...

— É muita bondade de sua parte... muita nobreza, Prezo muito o valor de seusconhecimentos especializados.

Nosso visitante deu uma risadinha sarcástica.

— Bem sei. Felizmente, você é o único homem em Londres que tem conhecimento deles.Já sabe o que tem?

— A mesma coisa — respondeu Holmes.

— Ah! Reconhece os sintomas?

— Sem dúvida.

— Ora, isso não me surpreende, Holmes. Não me espantaria se se tratasse da mesmamoléstia. Se for esse o caso, os prognósticos são péssimos. O pobre Victor já era umcadáver no quarto dia... rapaz forte e cheio de vida como era. Foi de fato uma coisaextraordinária, como você disse, ele ter contraído, no coração de Londres, essa invulgardoença asiática... doença sobre a qual, além disso, eu tinha feito tão acurados estudos.Singular coincidência, Holmes. Houve grande habilidade de sua parte em notá-la, mas muitafalta de caridade em sugerir que, entre esses dois fatos, existia relação de causa e efeito.

— Sabia que o senhor era o culpado.

— Ah! Sabia então? Bem, seja como for, não pôde prová-lo. Mas que história é essa deandar me difamando daquela maneira e depois vir ajoelhar-se diante de mim a pedir auxílio,mal se encontra em dificuldades? Que espécie de brincadeira é essa, hein?

Ouvi a respiração áspera e difícil do enfermo.

— Dê-me um pouco de água — balbuciou.

— Está muito próximo do fim, meu caro, mas não quero que se vá antes de lhe dizer umapalavra. Eis por que lhe dou água. Cuidado, não a entorne! Muito bem. Compreende o queestou dizendo?

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Holmes gemeu.

— Faça tudo o que puder por mim. Esqueçamos o passado — murmurou. — Esquecereitudo o que disse.... Juro-lhe que o farei. Cure-me e esquecerei tudo.

— Esquecerá o quê?

— Ora, a morte de Victor Savage. O senhor acabou por admitir que foi o autor dela.Esquecerei isso.

— Poderá esquecer ou lembrar-se, como melhor lhe aprouver. Não o verei no banco dastestemunhas, meu caro Holmes, mas num lugar muito diferente, onde não se diz nada,garanto-lhe. Pouco me importa que saiba como meu sobrinho morreu. Não é nele queestamos falando, mas no senhor.

— Eu sei.

— O sujeito que me procurou... esqueci o nome dele... disse-me que você contraíra essadoença quando trabalhava no East End, entre um grupo de marinheiros.

— Não há outra explicação.

— Você se orgulha de sua inteligência, Holmes, não é verdade? Julga-se muito esperto,não é? Pois agora encontrou outro mais esperto ainda. Reflita um instante, meu caro. Nãose recorda de outra maneira pela qual pudesse ter apanhado isso?

— Não sei dizer. Minha memória esvaiu-se. Pelo amor de Deus, auxilie-me.

— Pois bem, vou ajudá-lo. Ajudá-lo a compreender o estado em que se encontra, e comochegou a ele. Quero que o saiba antes de morrer.

— Dê-me qualquer coisa que me acalme esta dor!

— Ah! Dói muito, não é? Sim, os cules costumam berrar ao aproximar-se o fim. Suponhoque seja uma espécie de cãibra.

— Sim; sinto cãibras.

— Bem; mesmo assim poderá ouvir o que vou lhe dizer. Ouça, então! Não se lembra denenhum incidente estranho que lhe tivesse acontecido pouco antes de aparecerem osprimeiros sintomas?

— Não; não consigo lembrar-me de nada.

— Pense bem.

— Estou muito mal para poder pensar.

— Pois bem, eu o ajudarei. Não chegou nada pelo correio?

— Pelo correio?

— Uma caixinha, por exemplo.

— Estou desfalecendo... vou morrer!

— Escute, Holmes!

Tive a impressão de que ele sacudia o moribundo, e foi a custo que me contive em meuesconderijo.

— Precisa me ouvir. Precisa me ouvir, entendeu? Recorda-se de uma caixinha... umacaixinha de marfim? Chegou na quarta-feira. Você a abriu... lembra-se?

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— Sim, eu a abri. Havia dentro uma agulha movida por uma mola forte. Algum jogo...

— Não era jogo, como verá à sua própria custa. Idiota, procurou sua própria ruína. Quem omandou atravessar-se em roeu caminho? Se me tivesse deixado em paz, não lhe teria feitomal algum.

— Lembro-me agora — articulou Holmes com dificuldade. — A agulha! Saiu sangue. Essacaixinha... aí em cima da mesa.

— Exatamente essa, com os diabos! E será melhor que eu a leve comigo. Assim se vai suaúltima esperança de prova. E agora que já sabe da verdade, Holmes, pode morrer cientede que eu o matei. Você sabia demasiado a respeito do destino de Victor Savage, e porisso resolvi mandá-lo fazer-lhe companhia. Seu fim está muito próximo. Vou sentar-me aquipara vê-lo morrer.

A voz de Holmes se transformara num sussurro quase inaudível.

— Que quer? — perguntou Smith. — Que aumente a chama do gás? Ah! As sombras jácomeçam a cair, não é? Sim, vou aumentá-la, pois assim poderei vê-lo melhor. Atravessouo quarto, e a luz, de súbito, tornou-se mais viva.

— Mais alguma coisa, meu amigo?

— Um cigarro e fósforos.

Por verdadeiro milagre não gritei de alegria, tal foi meu assombro. Holmes falava em suavoz natural, um pouco fraca, talvez, porém a mesma que eu tão bem conhecia. Seguiu-seuma longa pausa, e tive a sensação de que Culverton Smith fitava meu companheiro,imobilizado de espanto.

— Que significa isso? — ouvi-o dizer por fim, em tom seco e rouco.

— O melhor meio de representar com êxito um papel é identificar-se com ele — disseHolmes. — Dou-lhe minha palavra de honra que há três dias não provava nem comida nembebida, até o momento em que teve a gentileza de me dar aquele copo de água.Entretanto, foi do fumo que senti ;ais falta! Ah! Cá estão os cigarros!

Ouvi o ruído de um fósforo sendo riscado.

— Assim está muito melhor. Parece-me distinguir os passos de um amigo.

De fato, ouviu-se um rumor de passos do lado de fora; a porta abriu-se e o vulto doinspetor Morton surgiu no limiar.

—— Está tudo em ordem, e aí tem seu homem... — disse Holmes.

O policial fez os avisos de costume e concluiu:

— O senhor está preso sob a acusação de homicídio de Victor Savage.

— E poderá acrescentar: de tentativa de morte de Sherlock Holmes — observou meuamigo com uma risadinha. — A fim de evitar trabalho a um inválido, o sr. Culverton Smithteve a bondade de dar nosso sinal convencionado, aumentando a chama do gás. Apropósito, o prisioneiro tem uma caixinha no bolso direito do casaco, a qual seria melhorretirar. Obrigado. Se eu fosse o senhor, teria mais cuidado ao pegá-la. Ponha-a aqui.Poderá ser útil no processo.

Houve um rumor súbito de luta,acompanhado de um tilintar de metais e de umgrito de dor.

— O senhor quer se machucar? — perguntou

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o inspetor. — Faça o favor de ficar quieto.

Chegou a meus ouvidos o estalido dasalgemas que se fechavam.

— Bela armadilha! — gritou a voz aguda ezombeteira de Smith. — Isso o levará àcadeia, Holmes, não a mim. Ele pediu-me queviesse aqui para tratar dele. Compadeci-medele e vim. Agora, certamente, irá afirmar queeu disse alguma coisa inventada por ele, a fimde corroborar suas suspeitas insensatas. Podementir quanto quiser, Holmes. Minha palavravale o mesmo que a sua.

— Santo Deus! — exclamou Holmes. —Tinha-o esquecido completamente. Meu caroWatson, devo-lhe mil desculpas. E pensar quepude esquecer-me dele! Não tenhonecessidade de apresentá-lo ao sr. Culverton Smith, pois já se encontraram há algumashoras. Há um carro à espera lá embaixo? Eu o acompanharei assim que me vestir, poistalvez minha presença seja necessária no posto policial.

— Jamais senti tanta falta disto — continuou Holmes, enquanto se reconfortava, nosintervalos de sua toalete, com um copo de clarete e alguns biscoitos. — Todavia, comosabe, meus hábitos são irregulares, e esse acontecimento significa muito menos para mimdo que para a maioria dos homens. Era-me essencial impressionar a sra. Hudson, dando ameu estado imaginário uma aparência efetiva de realidade, a fim de que você, por sua vez,o transmitisse a Smith. Não ficou ofendido, não é mesmo, Watson? Deve reconhecerperfeitamente que, entre seus numerosos dotes, não se encontra a dissimulação, e que, selhe revelasse meu segredo, jamais seria capaz de convencer Smith da urgente necessidadede sua presença aqui, circunstância de vital importância para meu plano. Sabendo de suanatureza vingativa, tinha plena certeza de que viria, a fim de verificar pessoalmente o êxitode sua obra.

— Mas seu aspecto, Holmes... aquele rosto espectral?

— Três dias de jejum absoluto não melhoram a beleza de ninguém, Watson. Quanto aoresto, não há nada que uma boa esponja não possa limpar. Com um pouco de vaselina natesta, beladona nos olhos, carmim nas faces e crostas de cera nos lábios obtêm-se efeitossatisfatórios. A simulação de doenças é assunto a respeito do qual, mais de uma vez, jápensei em escrever uma monografia. E certas divagações ocasionais a propósito de meias-coroas, ostras ou outra coisa qualquer produzem uma aceitável aparência de delírio.

— Mas por que não deixou que eu me aproximasse de você, quando na realidade não haviaperigo de infecção?

— Ainda o pergunta, Watson? Imagina que não tenho respeito pelo seu talento médico?Acha que você, com seu astuto raciocínio, se deixaria enganar por um moribundo que,apesar de fraco, não apresenta alteração alguma no pulso ou na temperatura? A trêsmetros de distância, era-me fácil iludi-lo. Se não o conseguisse, quem iria fazer com quemeu Smith caísse na armadilha? Não, Watson, eu não tocaria nessa caixinha. Poderá ver,se a observar de lado, o ponto em que a agulha se projeta para fora, como um dente devíbora. Creio que foi por meio de um estratagema análogo que o pobre Savage, únicoobstáculo entre esse monstro e uma herança, encontrou a morte. Minha correspondência,porém, como sabe, é muito variada, e estou sempre em guarda contra todos os pacotesque me vêm ter às mãos. Compreendi, todavia, que se fingisse que ele obtivera êxito emseu intento poderia talvez obter uma confissão dele. Minha simulação foi realizada com aperícia de um verdadeiro artista. Obrigado, Watson, ajude-me a vestir o casaco. Depois decumprida nossa missão no posto policial, creio que qualquer coisa nutritiva no Simpson nãoseria verdadeiramente fora de propósito.

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Ilustrações: Frederic Dorr Steele e Walter Paget, cortesia The Camden House

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Page 96: O Ultimo Adeus de Sherlock Holmes

Sherlock Holmes

em:

O desaparecimento de Lady Frances Carfax

Por Sir Arthur Conan Doyle

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Page 97: O Ultimo Adeus de Sherlock Holmes

— Mas por que turco? — perguntou Sherlock Holmes, olhando fixamente para minhas botinas. Nesse momento, eu estava estirado numa poltrona de vime e, certamente, meus pés estendidos tinham atraído sua sempre vigilante atenção. — É inglês! — respondi-lhe, algo surpreendido. — Comprei este calçado na Latimer, na Oxford Street. Holmes sorriu com ar de entediada paciência. — Refiro-me ao banho! — replicou. — Ao banho! Por que fazer uso do banho turco, dispendioso e debilitante, em vez do revigorante banho doméstico? — Porque, nestes últimos dias, tenho me sentido velho e reumático. O banho turco é o que nós em medicina chamamos um purificador do sistema. A propósito, Holmes, não duvido de que a relação entre minhas botinas e um banho turco se apresente evidente para um espírito lógico; entretanto, eu lhe ficaria muito grato se a quisesse explicar. — O raciocínio não é muito obscuro, Watson — respondeu Holmes, piscando-me o olho com ar malicioso. — Pertence à classe de dedução elementar que eu mesmo usaria como ilustração se lhe perguntasse quem lhe fez companhia no passeio de carro desta manhã. — Não concordo que um novo exemplo seja uma explicação — respondi-lhe com certa aspereza. — Bravo, Watson! Admoestação muito digna e coerente. Examinemos os pontos de meu raciocínio. Comecemos pelo último: o passeio de carro. Repare que tem a manga e o ombro esquerdo do casaco salpicados de lama. Se se tivesse sentado no meio do banco do carro, provavelmente não ostentaria esses salpicos, e, se tal acontecesse, por certo seriam simétricos. É evidente, portanto, que ficou a um canto, e por isso é também evidente que estava na companhia de alguém. — Tudo isso é muito claro. — Absurdamente corriqueiro, não acha? — Sim, bem vistas as coisas... — E igualmente pueril. Você costuma atar os cordões das botinas de uma certa maneira. Vejo-os agora atados com um complicado nó duplo, diferente do habitual. Logo, descalçou-as. E quem as atou novamente? Um sapateiro... ou o empregado da casa de banhos. É pouco provável que se trate de um sapateiro, pois seu calçado está quase novo. Que resta então? O banho. Facílimo, não lhe parece? Mas, com tudo isso, o banho turco serviu para alguma coisa. — Qual?

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— Disse-me há pouco que o tinha tomado por sentir necessidade de retemperar as forças. Permita-me que lhe sugira que o faça de maneira completa. Que pensa de uma estada em Lausanne, meu caro... passagens de primeira classe e todas as despesas pagas regiamente? — Seria esplêndido! Mas por quê? Holmes recostou-se na poltrona e tirou do bolso seu inseparável livro de notas. — Uma das classes mais perigosas da sociedade — disse — é a da mulher nômade e sem amigos. É o mais inofensivo e, freqüentemente, o mais útil dos mortais; no entanto, constitui para os outros um inevitável incentivo ao crime. Não conta com a ajuda de ninguém, é migratória; tem meios suficientes para se transferir de um país para outro e de hotel para hotel. Perde-se, muitas vezes, num labirinto de pensões obscuras. É como uma galinha perdida num mundo de raposas. Quando desaparece, quase ninguém lhe sente a falta. Eis por que receio que tenha acontecido alguma desgraça a Lady Frances Carfax. Senti-me aliviado com essa repentina mudança do geral para o particular. Holmes consultou seus apontamentos. — Lady Frances — continuou — é a única descendente direta do falecido conde de Rufton. Como talvez se lembre, os bens de raiz couberam à descendência masculina, de forma que ela possui haveres limitados. Herdou, entretanto, grande variedade de antigas jóias espanholas, de prata, e brilhantes, que se recusa a deixar aos cuidados de seu banqueiro, levando-os sempre consigo. É uma figura verdadeiramente patética, essa Lady Frances, uma bela mulher, que conserva ainda um certo viço apesar da idade, mas, por estranho acaso, é a última remanescente do que, há apenas vinte anos, constituía uma ilustre linhagem. — Mas afinal, o que lhe aconteceu? — Ah! Isso pergunto eu. Está viva ou morta? Eis nosso problema. Lady Frances é uma senhora metódica e há quatro anos, invariavelmente, de duas em duas semanas, costuma escrever à srta. Dobney, sua velha governanta, há muito aposentada, que mora em Camberwell. Pois foi a srta. Dobney quem veio procurar-me. Há quase cinco semanas não recebe a menor notícia de Lady Frances. A última carta foi escrita do Hotel National, em Lausanne. Ao que parece, Lady Frances deixou esse hotel sem dar o novo endereço. Os parentes estão preocupados, e, como são riquíssimos, não pouparão despesas a fim de esclarecer esse mistério. — A srta. Dobney é a única fonte de informações que possuímos? Será possível que ela não tivesse outros correspondentes? — Existe um correspondente que constitui sempre boa fonte de informações, Watson. É o banco. As senhoras solteiras também precisam viver, e seus

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talões de cheques são verdadeiros diários condensados. Os haveres de Lady Carfax estão depositados no Silvester. Já estive lá examinando sua conta corrente. O penúltimo cheque foi sacado em Lausanne para pagar as despesas do hotel; era, porém, de quantia elevada, e com certeza lhe sobrou muito dinheiro. Apenas um cheque foi sacado depois desse. — A favor de quem e onde? — A favor da srta. Marie Devine. Não há nada que indique onde o cheque foi emitido. Foi descontado no Crédit Lyonnais, em Montpeilier, há menos de três semanas. Importava em cinqüenta libras. — E quem é essa srta. Devine? — Consegui também descobrir isso. A srta. Marie Devine era criada de Lady Frances Carfax. Por que motivo ela lhe deu esse cheque, ainda não fomos capazes de saber; no entanto, tenho certeza de que suas pesquisas esclarecerão essa particularidade. — Minhas pesquisas? — É esse justamente o motivo de sua estada em Lausanne. Você sabe que não posso deixar Londres de forma nenhuma enquanto o velho Abrahams estiver com tanto medo de perder a vida. Além disso, por princípio geral, é melhor que eu não saia do país. A Scotland Yard sente-se abandonada sem mim, e minha ausência provoca sempre uma indesejável agitação nas classes criminais. Vá, pois, meu caro Watson, e se achar que meus humildes conselhos valem a ninharia de dois pence por palavra, eles estarão a seu dispor, dia e noite, nesta extremidade do telégrafo continental. Dois dias depois, encontrava-me no Hotel National, em Lausanne, onde fui acolhido com as maiores atenções por parte do sr. Moser, seu afamado gerente, o qual me informou que Lady Frances ali estivera hospedada durante várias semanas. Todos os que a tinham conhecido eram unânimes em reconhecer que dela irradiava grande simpatia. Não devia contar mais de quarenta anos. Era ainda bonita, e parecia ter sido muito linda quando jovem. O sr. Moser nada sabia a respeito das jóias, mas as criadas do hotel tinham reparado que uma pesada mala, existente no quarto dessa senhora, se encontrava sempre cuidadosamente fechada à chave. Marie Devine, sua criada, era tão estimada como ela. Ficara noiva de um dos chefes de empregados do hotel, e não havia dificuldade em fornecer seu endereço: Rue de Trajan, número 11, Montpeilier. Tomei nota de tudo isso e tive a sensação de que nem Holmes, em pessoa, teria sido capaz de obter esses dados com maior presteza do que eu. Todavia, restava ainda um ponto obscuro. Ninguém sabia explicar-me a razão da partida súbita de Lady Frances. Sentia-se muito satisfeita em Lausanne. Tudo fazia crer que estava decidida a permanecer durante toda a estação em seu luxuoso apartamento à beira do lago. No entanto, partira com o aviso de apenas um dia, perdendo uma semana de hospedagem paga

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adiantadamente. Só Jules Vibart, o noivo da criada, ofereceu uma sugestão. Relacionava a partida repentina com a visita feita ao hotel, um ou dois dias antes, por um homem alto, moreno e barbudo. "Un sauvage.... un véritable sauvage!", exclamou Jules Vibart. Esse homem hospedara-se num lugar ignorado da cidade. Fora visto conversando animadamente com Lady Frances na avenida marginal do lago. Depois fora visitá-la no hotel, mas ela se recusara a recebê-lo. Era inglês, sem dúvida, mas ninguém soube dizer-lhe o nome. A dama partira logo em seguida. Jules Vibart e, o que era mais importante, sua noiva pensavam que entre a visita e a partida havia uma relação de causa e efeito. Apenas um ponto Jules Vibart não desejava discutir: o motivo pelo qual Marie deixara a patroa. Sobre isso não podia ou não queria dizer nada. Se eu o quisesse saber, teria de ir a Montpeilier e perguntar a ela. Assim terminou o primeiro capítulo de minhas investigações. O segundo foi dedicado ao lugar para onde se dirigira Lady Frances ao sair de Lausanne. A esse respeito houve um certo segredo, o que vinha confirmar a hipótese de ela ter partido com o propósito de despistar alguém. Caso contrário, por que motivo sua bagagem não fora abertamente endereçada a Baden? Tanto a bagagem como ela própria tinham chegado à estação terminal renana por vias indiretas, segundo informações do gerente local da Agência Cook. Segui, por conseguinte, para Baden, depois de transmitir a Holmes um resumo de minhas diligências, e recebi como resposta um telegrama de congratulações semi-irônico. Em Baden não me foi difícil acompanhar a pista da desaparecida. Lady Frances estivera hospedada no Englischer Hof por uns quinze dias. Durante sua permanência ali, travara relações com o dr, Schiessinger, missionário que acabara de regressar da América do Sul, e sua esposa. Como acontece à maioria das senhoras solitárias, Lady Frances encontrou lenitivo e trabalho na religião. A personalidade extraordinária do dr. Schiessinger, sua profunda devoção e o fato de estar convalescente de uma moléstia contraída no exercício de seu apostolado, impressionaram-na vivamente. Lady Frances ajudara a sra. Schiessinger a tratar do piedoso enfermo, o qual passava o dia, consoante me contou o gerente do hotel, no alpendre, deitado numa poltrona, sob os olhares vigilantes das duas dedicadas enfermeiras. Estava preparando um mapa da Terra Santa, com referências especiais ao reino dos medianitas, a respeito do qual estava escrevendo uma monografia. Por fim, como sua saúde melhorara, ele e a mulher haviam regressado a Londres, na companhia de Lady Frances. Isso acontecera exatamente três semanas antes, e desde então o gerente de nada mais soubera. Quanto à criada, Marie, partira alguns dias antes, num dilúvio de lágrimas, depois de ter informado às outras criadas que deixava para

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sempre o serviço de Lady Frances. O dr. Schiessinger, antes de partir, pagara a conta de todos. — A propósito — concluiu o hoteleiro —, o senhor não é o único amigo de Lady Frances Carfax que se interessa pelo paradeiro dela. Há cerca de uma semana, esteve aqui outra pessoa com o mesmo fim. — Deixou o nome? — indaguei. — Não; mas era evidentemente inglês, embora de um tipo pouco comum. — Um selvagem? — perguntei, relacionando meus dados à maneira de meu ilustre amigo. — Precisamente. Essa palavra descreve-o à maravilha. É um indivíduo corpulento, barbudo, queimado de sol, que parece achar-se muito mais à vontade numa pensão de província do que num hotel de luxo. Pareceu-me um homem rude, impulsivo, com o qual, por nada no mundo, eu desejaria entrar em conflito. O mistério já começava a aclarar-se, assim como as figuras se apresentam mais distintas à medida que a névoa se dissipa. Eu me deparava com uma boa e piedosa senhora, perseguida sem descanso por um tipo sinistro, inexorável. Ela o temia, pois do contrário não teria fugido de Lausanne. Ele seguira-a. Cedo ou tarde, ela cairia em seu poder. Talvez já a tivesse nas mãos. Seria esse o motivo do prolongado silêncio? Poderiam seus bondosos companheiros de viagem protegê-la contra a violência ou possível extorsão por parte desse chantagista? Que horrível objetivo, que intenção tenebrosa se ocultaria atrás dessa infindável perseguição? Eis o problema que me competia resolver. Escrevi a Holmes explicando-lhe a rapidez e a segurança com que atingira o âmago da questão. Recebi, em resposta, um telegrama no qual ele me pedia que descrevesse a orelha esquerda de Schiessinger. O conceito de humor de Holmes é estranho, e às vezes injurioso, por isso não dei atenção ao inoportuno gracejo... Por outro lado, eu já chegara a Montpeilier à procura da criada Marie, antes de receber o telegrama. Não tive dificuldade em encontrar a ex-criada e em ouvir de seus próprios lábios tudo o que ela sabia. Era muito devotada a Lady Frances, e só a deixara por estar certa de que ficara em boas mãos e também porque, de qualquer modo, seu casamento iminente iria tornar essa separação inevitável. A patroa, conforme me confessou, angustiada, tinha-se mostrado um tanto irritada com ela durante a permanência em Baden, chegando uma vez a interrogá-la, como se duvidasse de sua honestidade, fato esse que tornara a separação mais fácil. Lady Frances dera-lhe cinqüenta libras como presente de núpcias. Como eu, Marie também desconfiava do estranho que fizera a ama abandonar Lausanne. Com os próprios olhos,, vira-o agarrar violentamente a senhora pelos pulsos na avenida que circundava o lago. Era um homem selvagem e de aspecto terrível. Acreditava que Lady Frances tivesse concordado em acompanhar os

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Schiessinger até Londres unicamente de medo dele. Jamais falara com Marie a respeito disso; não obstante, numerosos e pequenos indícios tinham-na convencido de que a pobre mulher vivia em estado de permanente apreensão. Ao chegar a esse ponto da narrativa, ergueu-se subitamente da cadeira onde estava sentada, com o rosto contraído num esgar de surpresa e pavor. — Olhe! — exclamou. — Aquele canalha ainda está aqui! Lá vai a pessoa de quem estou falando. Através da janela aberta da sala de estar, avistei um homem gigantesco, moreno, com uma hirsuta barba negra, caminhando a passo lento pelo meio da rua e olhando com atenção os números das casas. Era evidente que, como eu, também ele viera em busca da criada. Agindo impulsivamente, corri para a rua e aproximei-me dele. — O senhor é inglês — disse-lhe. — E o que tem isso? — perguntou-me, franzindo o sobrolho. — Posso saber seu nome? — Não, não pode — respondeu-me secamente. A situação era embaraçosa; mas o método direto, porém, é muitas vezes o melhor. — Onde está Lady Frances Carfax? — perguntei. Ele fitou-me, aturdido. — O que fez dela? Por que a segue dessa maneira? Exijo uma resposta! — insisti. O homem lançou um rugido de cólera e atirou-se a mim como um tigre. Tenho demonstrado minha força em mais de uma luta, mas o desconhecido possuía um pulso de ferro e a fúria de um demônio. Sua mão já me comprimia a garganta e eu me sentia desfalecer, quando um operário francês, de barba por fazer e com uma blusa azul, surgiu de um botequim à nossa frente, brandindo um cassetete, com o qual aplicou um violento golpe no antebraço de meu agressor, obrigando-o a largar a presa. Durante alguns instantes, o homem permaneceu arquejante de cólera, indeciso sobre se deveria ou não recomeçar o ataque. Finalmente, com um grunhido feroz, abandonou-me e entrou na casa que eu

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acabava de deixar. Voltei-me para agradecer a meu salvador, que ficara no meio da rua. — Bravo, Watson! — disse-me ele. — Bela trapalhada você fez! Acho melhor voltar comigo a Londres, no trem de hoje à noite. Uma hora mais tarde, Sherlock Holmes, em sua elegância habitual, estava sentado em meu quarto de hotel. A explicação de seu aparecimento inesperado e providencial era simplicíssima. Verificando ser-lhe possível afastar-se de Londres, decidira preceder-me na segunda etapa de minha viagem, e, disfarçado de operário, ficara no botequim à minha espera. — Bela investigação você fez, e de consistência verdadeiramente notável, meu caro Watson. Com franqueza: neste momento, não consigo recordar-me de nenhum disparate que possa ter omitido. O resultado completo de suas pesquisas foi alarmar meio mundo e não descobrir coisa nenhuma. — Provavelmente, você não teria feito melhor — repliquei, despeitado. — Não se trata aqui de "provavelmente". Eu fiz melhor. Eis ali o sr. Philip Green, seu companheiro de hotel, junto de quem talvez se possa encontrar o ponto de partida para uma investigação mais construtiva. Tinham trazido numa salva um cartão de visita, seguido imediatamente do mesmo velhaco barbudo que me agredira pouco antes na rua. Ao ver-me, estremeceu. — O que significa isso, sr. Holmes? — indagou. — Recebi seu recado e apressei-me a vir. Mas o que este homem tem a ver com o assunto? — Este é meu velho amigo e sócio, o dr. Watson, que nos ajuda em nossas pesquisas. O desconhecido estendeu-me a mão enorme e bronzeada, acompanhando o gesto de breves palavras de desculpa. — Espero não lhe ter causado nenhum mal. Quando me acusou daquela maneira, perdi a cabeça. Na verdade, não respondo por mim nestes dias. Tenho os nervos à flor da pele, e esta situação põe-me maluco. Contudo, desejo que me diga, antes de mais nada, como, com todos os diabos, conseguiu saber de minha existência. — Estou em contato com a srta. Dobney, governanta de Lady Frances. — Ah! A velha Susan Dobney, com sua touca! Lembro-me muito bem dela. — E ela também se recorda do senhor. Foi um pouco antes... antes de o senhor se convencer de que devia partir para o sul da África. — Oh! Vejo que sabe de tudo. Não preciso ocultar-lhe nada. Juro-lhe, sr. Holmes, que não havia no mundo homem que amasse tanto uma mulher como eu amava Lady Frances. Era um doidivanas, bem sei... mas não era pior do

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que os outros jovens de minha condição social. Todavia, sua alma era pura como a neve. Não podia suportar a mais leve sombra de grosseria. Desse modo, quando descobriu tudo quanto eu fizera, já não quis saber de mim. No entanto, ela me amava... e, o que é mais estranho, amava-me a ponto de se conservar solteira, durante toda a sua longa e santa vida, unicamente por minha causa. Agora, passados tantos anos, e depois que fiz fortuna em Barherton, julguei que talvez pudesse procurá-la e enternecê-la. Soube que ainda não tinha se casado. Encontrei-a em Lausanne e fiz tudo para persuadi-la. Creio tê-la comovido, mas, dotada de um espírito forte, abandonou a cidade antes que procurasse pela segunda vez. Descobri que partira para Baden e, depois de algum tempo, soube que sua criada ficara aqui. Sou um tipo rude, recém-saído de uma existência de lutas, e, quando o dr. Watson me dirigiu a palavra daquele modo, fiquei fora de mim. Mas, pelo amor de Deus, diga-me o que aconteceu a Lady Frances. — É o que nos cumpre averiguar — respondeu Sherlock Holmes com particular gravidade. — Qual e seu endereço em Londres, sr. Green? — O senhor me encontrará no Langham Hotel. — Então permita-me aconselhá-lo a ir para lá e ficar à minha disposição até que eu precise de seu auxílio. Não desejo alimentar falsas esperanças, mas pode ficar certo de que farei todo o possível no sentido de salvar Lady Frances. Por ora, não posso dizer mais nada. Deixo-lhe este cartão a fim de que possa manter-se em contato conosco. E agora, Watson, se quiser arrumar a mala, telegrafarei à sra. Hudson para que faça tudo o que lhe estiver ao alcance, amanhã às sete e meia, por dois viajantes famintos. Ao chegarmos a nosso apartamento da Baker Street, encontramos um telegrama à nossa espera. Holmes leu-o com uma exclamação de interesse e atirou-o a mim. "Cortada ou arrancada", dizia a curiosa mensagem, cujo lugar de origem era Baden. — O que isso quer dizer? — perguntei. — Quer dizer tudo — respondeu Holmes. — Deve lembrar-se de minha pergunta, aparentemente fútil, a respeito da orelha esquerda do dr. Schiessinger, e à qual você não se dignou responder. — Já tinha deixado Baden, e não me foi possível obter informações. — Exato. Por esse motivo expedi um segundo telegrama ao gerente do Englischer Hof, e aí está a resposta. — E o que significa? — Significa, meu caro Watson, que estamos tratando com um homem excepcionalmente astuto e perigoso. O reverendíssimo dr. Schiessinger, missionário de regresso da América do Sul, não é outro, senão Holy Peters, um

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dos mais perigosos patifes que a Austrália já produziu... e vale a pena lembrar que, como país jovem, tem apresentado exemplares dos mais perfeitos. Sua especialidade é insinuar-se junto a senhoras solitárias, explorando-lhes o sentimento religioso. A mulher que passa por sua esposa é uma inglesa, de nome Fraser, e é sua digna companheira. A tática empregada, que lhe é característica, sugeriu-me sua identidade; o defeito físico (foi mordido na orelha numa luta de botequim, em Adelaide, em 1889) confirmou-me a suspeita. Essa pobre senhora está nas mãos de um casal satânico, capaz de tudo, Watson. A hipótese de que já esteja morta é muito viável. Caso contrário, deve estar, sem dúvida, prisioneira e impossibilitada de escrever, seja à srta. Dobney, seja a qualquer outro de seus amigos. É muito provável que nem tenha chegado a Londres ou que tenha apenas atravessado a cidade; contudo, a primeira suposição é improvável, pois, dado o sistema de registro, não é fácil a estrangeiros burlar a vigilância da polícia continental. Por outro lado, a segunda hipótese é igualmente inverossímil, porque esses patifes não podiam encontrar um lugar melhor do que Londres para manter alguém cativo. Tudo me leva a afirmar que ela se encontra em Londres, mas, como não possuímos de momento nenhum meio de saber o local, nada nos resta senão tomar as providências necessárias, jantar calmamente e munir-nos de paciência. À noitinha, darei um pulo até a Scotland Yard, a fim de trocar idéias com nosso amigo Lestrade. No entanto, nem a polícia oficial, nem a pequena mas eficaz organização de Holmes conseguiram lançar maior luz sobre o mistério. Entre os milhões de habitantes que se agitam em Londres, os três que procurávamos eram tão invisíveis como se jamais tivessem existido. Foram feitas tentativas através de anúncios nos jornais, sem resultado. Foram seguidas pistas que falharam completamente. Todos os lugares escusos onde Schiessinger pudesse ser encontrado foram vasculhados em vão. Todos os seus antigos companheiros foram seguidos; estes, porém, não foram vistos com ele. Finalmente, depois de uma semana de pesquisas inúteis, brilhou um raio de luz. Na casa de penhores Bevington, na Westminster Road, foi empenhado um pingente de prata e brilhantes lavrado em antigo estilo espanhol. O homem que o empenhara era corpulento, calvo e de aparência eclesiástica. Verificou-se que tanto o nome como o endereço eram falsos. A orelha escapara à atenção do empregado, mas a descrição correspondia, sem sombra de dúvida, a Schiessinger. Nosso barbudo amigo do Langham Hotel viera três vezes em busca de notícias — a terceira, uma hora depois de recebermos a inesperada informação. Suas roupas, pouco a pouco, ficaram folgadas para o corpo emagrecido. Definhava de ansiedade a olhos vistos. "Se ao menos me dessem alguma coisa para fazer!", era seu lamento habitual. Holmes, finalmente, estava em condições de lhe satisfazer a vontade. — Começou a empenhar as jóias; talvez, agora, consigamos apanhá-lo. — Mas isso significa que aconteceu alguma desgraça a Lady Frances? Holmes acenou gravemente com a cabeça.

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— Suponho que a tenham mantido prisioneira até agora; é evidente que não poderão libertá-la sem comprometerem a própria segurança. Devemos estar preparados para o pior. — Que devo fazer? — Essa gente não o conhece de vista? — Não. — É possível que no futuro eles procurem outra casa de penhores. Nesse caso, precisamos começar tudo de novo. Por outro lado, adiantaram-lhe um bom dinheiro pela jóia, sem lhe fazer perguntas; portanto, se ele necessitar de dinheiro com urgência, voltará provavelmente à Bevington. Com uma apresentação minha, ser-lhe-á permitido ficar à espreita na loja. Se o homem aparecer, siga-o até sua casa. Nada de indiscrições, porém, e principalmente, nada de violência. Dê-me sua palavra de honra de que não dará um passo sem que eu o saiba e sem meu consentimento. Durante dois dias, o nobre barão Philip Green (devo mencionar que ele era filho do famoso almirante do mesmo nome, que comandou a esquadra do mar de Azof, na Guerra da Criméia) não nos trouxe a menor notícia. Na noite do terceiro dia, irrompeu pela nossa sala de estar, pálido, trêmulo, cada músculo vibrante de emoção. — Nós o descobrimos! Nós o descobrimos! — berrou. A agitação tornava-o incoerente. Holmes tratou de acalmá-lo e fê-lo sentar-se numa poltrona. — Vamos, conte-nos por ordem tudo o que aconteceu. — Apareceu há apenas uma hora; desta vez foi a mulher, mas o pingente que tinha nas mãos era igualzinho ao outro. É uma mulher alta, descorada, com olhos de furão. — Sim, é ela — confirmou Holmes. — Quando saiu, pus-me a segui-la. Dirigiu-se para a Kennington Road e eu a acompanhei de perto. Pouco adiante, entrou numa loja. Uma empresa funerária, sr. Holmes! Meu companheiro estremeceu.

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— E então? — perguntou com aquela voz vibrante que revela, por trás da máscara impassível, a alma em tumulto. — Começou a conversar com uma mulher que se encontrava atrás do balcão. Entrei. "Está demorando", ouvi-a dizer. A mulher do balcão desculpou-se: "Já devia ter sido entregue. Levou mais tempo por ser de tamanho invulgar". Ambas pararam de falar e olharam para mim. Fiz uma pergunta qualquer e saí. — O senhor portou-se de maneira brilhante. Que aconteceu depois? — A mulher abandonou a loja, mas eu me ocultara na entrada de uma casa vizinha. Acredito que lhe despertei suspeitas, pois lançou um olhar em redor. Em seguida, chamou um carro e partiu. Tive a sorte de encontrar outro e segui-a. Desceu por fim em frente à casa número 36 da Poultney Square, em Brixton, Continuei até a esquina, onde deixei o carro, e pus-me à espreita. — Viu alguém? — As janelas estavam às escuras, exceto uma no andar térreo. A cortina, porém, estava abaixada, e não me foi possível distinguir nada lá dentro. Encontrava-me ali, sem saber o que fazer, quando vi parar uma carroça coberta, com dois homens na boleia. Estes apearam, tiraram alguma coisa do interior do veículo e transportaram-na até os degraus da porta de entrada. Sr. Holmes, era um caixão de defunto. — Oh! — Por um instante, estive a ponto de me atirar para dentro da casa. A porta fora aberta a fim de dar passagem aos dois homens e à sua carga. Enquanto me encontrava ali, a mulher que os fizera entrar avistou-me, e desconfio que me reconheceu. Vi-a estremecer e fechar rapidamente a porta. Lembrei-me, então, do que prometera ao senhor, e aqui estou. — Seu trabalho foi excelente — disse Holmes, rabiscando algumas palavras numa folha de papel. — Não podemos empreender nenhuma ação legal sem um mandado, e o senhor não poderá prestar melhor ajuda do que levar este bilhete às autoridades e conseguir-nos um. Talvez encontre certa dificuldade em obtê-lo, mas creio que a venda das jóias é motivo suficiente. Lestrade cuidará dos pormenores. — Mas eles podem assassiná-la enquanto isso. O que poderia significar o caixão, e para quem seria ele senão para Lady Frances? — Tentaremos tudo o que for possível, sr. Green. Não perderemos tempo. Deixe o caso em nossas mãos. E agora, Watson — acrescentou Holmes, enquanto nosso cliente se afastava apressado —, ele porá em ação a polícia regular. Nós, como de costume, somos os irregulares, e devemos escolher nosso próprio modo de agir. A meu ver, a situação é de tal forma desesperadora que justifica o emprego de medidas extremas. Precisamos ir à

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Poultney Square sem perda de tempo. "Procuremos reconstituir a série de ocorrências", continuou, enquanto nosso carro passava velozmente defronte ao edifício do Parlamento, em direção à Ponte de Westminster. "Aqueles patifes induziram a pobre senhora a acompanhá-los a Londres, depois de a terem separado de sua fiel criada. Ainda que tivesse escrito algumas cartas, teriam sido interceptadas. Por intermédio de um de seus sequazes, alugaram uma casa mobiliada. Uma vez instalados, fizeram-na prisioneira e apossaram-se de suas jóias, as quais, desde o início, constituíram seu objetivo. Já começaram a vender parte delas, e devem sentir-se seguros, pois não têm motivos para pensar que alguém possa interessar-se pela sorte de Lady Frances. Se a libertassem, ela certamente os denunciaria; portanto, torna-se para eles questão de vida ou morte mantê-la aprisionada. Mas, por outro lado, não podem conservá-la eternamente fechada à chave. Logo, seu assassinato é a única saída que lhes resta." — Isso parece-me perfeitamente claro. — Façamos, agora, outro raciocínio. Quando seguimos duas seqüências distintas de idéias, Watson, encontramos sempre algum ponto de intersecção que pode nos aproximar da verdade. Comecemos não por Lady Frances, mas pelo caixão, e raciocinemos na ordem inversa. O incidente indica com evidência, creio eu, que ela está morta. Isso também vem demonstrar-nos que será sepultada com atestado de óbito e os demais documentos exigidos por lei. Se eles a tivessem assassinado, tê-la-iam, sem dúvida, enterrado num buraco feito nos fundos da casa. No entanto, esse caso está sendo realizado às claras, regularmente. O que isso quer dizer? Evidentemente, mataram-na de modo a simular morte natural e enganar o médico... envenenando-a, talvez. Todavia, acho estranho o fato de deixarem um médico aproximar-se dela, a não ser que faça também parte da quadrilha, hipótese que não me parece plausível. — Não poderiam ter arranjado um falso atestado de óbito? — Seria perigoso, Watson, muito perigoso. Não, não creio que o tenham tentado. Pare, cocheiro. Deve ser aqui a empresa funerária, pois acabamos de passar pela casa de penhores. Quer ir até lá, Watson? Seu aspecto inspira confiança. Pergunte a que horas é o enterro da Poultney Square, amanhã. A mulher da loja respondeu-me sem hesitar que o serviço fúnebre estava marcado para as oito da manhã. — Como vê, Watson, nada de mistério; tudo claro, límpido, irrepreensível! De qualquer modo, as exigências legais foram preenchidas e eles, claro, nada têm a temer. Bem, temos de tentar um ataque frontal. Está armado? — Tenho minha bengala. — Paciência. Havemos de nos sair bem. "Quem peleja por causa justa é três vezes mais forte." Não podemos de forma nenhuma aguardar a chegada da polícia, nem conservar-nos estritamente dentro da lei. Pode andar, cocheiro. Agora, Watson, confiemos em nossa boa estrela, que já nos protegeu tanto.

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Holmes bateu com força na porta de uma casa grande e escura, localizada no centro da Poultney Square, a qual se abriu imediatamente, deixando entrever na penumbra do vestíbulo o vulto alto de uma mulher. — Que desejam? — perguntou de modo incisivo, olhando-nos com firmeza através das sombras. — Queremos falar com o dr. Schiessinger — respondeu Holmes. — Aqui não mora ninguém com esse nome — retrucou a mulher, procurando fechar a porta, no que foi impedida por Holmes, que introduzira o pé entre o batente e a porta. — Nesse caso, quero falar com a pessoa que mora aqui, seja qual for seu nome — insistiu Holmes, inabalável. A mulher hesitou um pouco, depois abriu a porta. — Está bem; podem entrar — disse. — Meu marido não teme ninguém. Fechou a porta, depois de termos entrado, introduziu-nos numa saleta à direita do vestíbulo, e acendeu o gás, antes de se retirar, dizendo-nos: — O sr. Peters já virá recebê-los. Dissera a verdade, pois, mal tivéramos tempo de observar a sala poeirenta e cheia de vestígios de traças, em que nos encontrávamos, quando a porta se abriu um homenzarrão calvo, de rosto cuidadosamente escanhoado, entrou a passos leves. Tinha as faces vermelhas, as bochechas caídas e um certo ar benevolente, que contrastava, porem, com uma boca cruel e implacável. — Aqui deve haver algum engano, cavalheiros — disse com voz untuosa e acomodatícia. — Devem estar no endereço errado. Talvez na casa ao lado... — Basta! Não temos tempo a perder — interrompeu meu companheiro com decisão. — O senhor é Henry Peters, de Adelaide, que se fez passar em Baden pelo reverendo dr. Schiessinger, missionário recém-chegado da América do Sul. Tenho tanta certeza disso como de que me chamo Sherlock Holmes.

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Peters, como o chamarei daqui em diante, estremeceu e encarou fixamente seu extraordinário adversário. — Creia, sr. Holmes, seu nome não me atemoriza — replicou com frieza. — Quando um homem tem a consciência em paz, nada pode amedrontá-lo. Que veio fazer em minha casa? — Desejo saber do destino de Lady Frances Carfax, que o senhor trouxe de Baden em sua companhia. — Eu lhe ficarei muito grato se puder dizer onde ela se encontra — redargüiu Peters sem titubear. — Emprestei-lhe cerca de cem libras, recebendo como garantia apenas um par de brincos falsos pelos quais ninguém dá nada. Ela contraiu amizade com minha mulher e comigo em Baden (de fato, nessa ocasião, usava outro nome), e não nos abandonou até virmos para Londres. Paguei-lhe a conta do hotel e a passagem. Uma vez aqui, afastou-se de nós e, como já disse, deixou-nos em pagamento de seu débito essas jóias completamente sem valor. Se conseguir encontrá-la, sr. Holmes, eu lhe ficarei devendo um favor. — É minha intenção encontrá-la — respondeu Sherlock Holmes. — Darei busca a esta casa até descobri-la. — Tem em seu poder algum mandado? Holmes tirou do bolso o revólver. — Por ora, basta este. — Então o senhor é um ladrão vulgar. — Pode pensar o que quiser — replicou Holmes em tom jovial. — Meu amigo é também um bandido perigoso e juntos pretendemos revirar-lhe a casa pelo avesso. Peters abriu a porta da sala. — Chame um policial, Annie! — gritou. Ouvimos um ruge-ruge de vestido feminino no corredor, e o abrir e fechar da porta de entrada. — Nosso tempo é limitado, Watson. Se tentar deter-nos, Peters, na melhor das hipóteses, ficará ferido. Onde está o caixão de defunto que foi entregue aqui? — Que quer fazer com ele? Está ocupado; há um defunto dentro. — Preciso ver esse defunto.

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— Jamais o consentirei. — Então será sem seu consentimento. Com um movimento rápido, Holmes empurrou-o para um lado e passou para o vestíbulo. Diante de nós havia uma porta entreaberta. Entramos. Era a sala de jantar. Em cima da mesa, sob a luz tênue de um candelabro, jazia o caixão. Holmes acendeu o gás e levantou a tampa do esquife. Quase desaparecida no fundo deste, encontrava-se estendida uma figura emaciada. O forte clarão produzido pela luz de cima iluminava-lhe a face idosa e enrugada. Nem o tratamento mais cruel, nem a fome, nem a gravidade da doença poderiam ter alterado tanto o rosto ainda jovem e belo de Lady Frances. A fisionomia de Holmes traía-lhe o espanto e também o alívio. — Graças a Deus! É outra pessoa. — Ah! Desta vez saiu-se mal, meu caro sr. Holmes — disse Peters, que nos seguira. — Quem é essa morta? — Pois bem! Se quer sabê-lo, trata-se de uma antiga ama de minha mulher. Chamava-se Rose Spender e fomos encontrá-la no Hospital de Pobres, em Brixton. Trouxemo- Ia para cá, chamamos o dr. Horsom, residente em Firbank Villas, número 13 — não se esqueça de anotar o endereço, sr. Holmes —, e cuidamos dela com carinho, como é dever de todo bom cristão. Ao cabo de três dias, faleceu; o atestado de óbito indicou como causa mortis depauperamento senil. Isso, entretanto, é apenas a opinião do médico, e o senhor, naturalmente, saberá melhor. Encomendamos o funeral à firma especializada Stimson & Co., da Kcnnington Road, que fará o enterro amanha de manha, às oito horas. Haverá algo de extraordinário em tudo isso? Enganou-se redondamente desta vez, sr. Holmes, e a culpa cabe-lhe por inteiro. Daria tudo na vida por uma fotografia de sua cara de idiota ao levantar a tampa do caixão na expectativa de ver Lady Frances Carfax, e ao deparar apenas com uma pobre velha de noventa anos. A expressão de Holmes mantinha-se impassível diante do sarcasmo de seu antagonista, mas os punhos fechados revelavam-lhe o intenso aborrecimento. — Vou dar uma busca pela casa — insistiu, — Ah! Chegaram! — gritou Peters, ao ouvir uma voz de mulher e passos ressoando no corredor. — Isso é o que vamos ver agora. Por aqui, inspetor, façam o favor. Estes homens entraram à força em minha casa e não consigo fazê-los sair. Auxiliem-me a pô-los na rua. Na soleira da porta surgiram um sargento e um guarda. Holmes apresentou-lhes seu cartão. — Aí está meu nome e endereço. Este é o dr. Watson, um velho amigo. — Por Deus, sr. Holmes! Nós o conhecemos muito bem — respondeu o

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sargento. — Mas o senhor não pode permanecer aqui sem um mandado oficial. — É claro que não posso. Compreendo-o perfeitamente. — Prenda-o! — berrou Peters. — Sabemos onde encontrar esse cavalheiro se houver necessidade de prendê-lo — replicou o sargento em tom solene. — Contudo, precisa se retirar, sr. Holmes. — Vamos, Watson, temos de sair. Um minuto depois, achávamo-nos de novo na rua. Holmes apresentava-se calmo, como sempre; eu, porém, estava rubro de cólera e humilhação. O sargento havia-nos seguido. — Sinto muito, sr. Holmes, mas é a lei. — Fez muito bem, sargento; não poderia agir de outra forma. — Acredito que tenha havido um motivo justo para sua presença naquela casa. Se lhe puder ser útil... — Procuramos uma senhora desaparecida que supusemos estar ali. Esperamos um mandado de um momento para outro. — Nesse caso, ficarei de olhos abertos, e, se suceder alguma coisa, eu lhe comunicarei imediatamente. Como eram apenas nove horas, continuamos nossas investigações. Dirigimo-nos em primeiro lugar ao Hospital de Pobres de Brixton, onde fomos informados de que efetivamente um casal caridoso ali se apresentara poucos dias antes reclamando uma velha caduca, que diziam ter sido sua antiga criada, e obtiveram permissão de levá-la para casa. Ninguém demonstrou a menor surpresa com a notícia de sua morte. Fomos, em seguida, à casa do médico. Confirmou ter sido chamado para assistir uma mulher prestes a morrer de pura senilidade. Assistira-lhe ao falecimento e passara o atestado de óbito na mais perfeita forma. "Asseguro-lhes ter decorrido tudo normalmente e não é possível suspeitar de qualquer deslize", afirmou. Não tinha notado nada de estranho na casa, se bem que achasse curioso gente daquela classe não possuir nenhum criado. Foi tudo quanto ele pôde informar. Seguimos por fim para a Scotland Yard. Com relação ao mandado, haviam surgido algumas dificuldades processuais. Era inevitável certa demora, pois não seria possível conseguir a assinatura do juiz antes da manhã seguinte. Se Holmes comparecesse lá às nove horas, poderia ir pedi-la, juntamente com Lestrade. Assim terminou o dia. Entretanto, por volta da meia-noite, nosso amigo sargento procurou-nos, a fim de nos avisar que avistara luzes nas

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janelas da casa; no entanto, não vira ninguém sair ou entrar. Só nos restava munir-nos de paciência e aguardar o dia seguinte. Sherlock Holmes estava por demais irritado para conversar, e excessivamente inquieto para dormir. Deixei-o fumando como uma chaminé, as densas sobrancelhas negras contraídas, e com os dedos finos e nervosos tamborilando nos braços da poltrona, enquanto em seu cérebro deviam certamente agitar-se todas as possíveis soluções do mistério. Várias vezes durante a noite ouvi o rumor de seus passos de um lado para outro, através da casa. Por fim, já de manhã, logo depois de eu ter sido despertado, entrou em meu quarto como um raio. Estava de pijama, mas o rosto pálido com olheiras profundas revelava que passara a noite em claro. — Para que horas está marcado o funeral? Às oito, não é? — perguntou ansiosamente. — Pois bem! Agora são sete e vinte. Oh!, céus, Watson, onde eu estava com a cabeça? Depressa, homem, depressa! É questão de vida ou morte... noventa e nove possibilidades de morte para uma de vida. Jamais me perdoarei se chegarmos demasiado tarde! Ainda não tinham decorrido cinco minutos e já nos encontrávamos num fiacre, a todo o galope, ao longo da Baker Street. Mesmo assim, faltavam vinte e cinco minutos para as oito quando passamos pelo Big Ben, e ao soar das oito irrompemos pela Brixton Road. Entretanto, os outros também estavam atrasados. Dez minutos depois da hora fixada para o enterro, o carro fúnebre ainda se encontrava postado diante da porta da casa, e, somente quando nosso cavalo se deteve arquejante, o caixão assomou na soleira, transportado por três homens. Holmes atirou-se como um raio ao encontro dos carregadores e barrou-lhes a passagem. — Para trás! — exclamou, pondo a mão no peito do que vinha à frente. — Voltem com o caixão imediatamente! — Que diabo pretende fazer? Mais uma vez lhe pergunto onde está o mandado — gritou Peters, furioso, surgindo com o rosto vermelho do outro lado do ataúde. — O mandado está a caminho. O caixão ficará retido até ele chegar. O tom autoritário da voz de Holmes produziu efeito nos carregadores. Peters desaparecera subitamente no interior da casa, e os homens obedeceram à ordem do recém-chegado.

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— Depressa, Watson, depressa! Tome esta chave de parafusos! — bradou, enquanto o féretro era recolocado sobre a mesa. — E aqui está outra para você, meu amigo! Dou-lhe um soberano se conseguir retirar a tampa em um minuto! Não faça perguntas... mãos à obra! Muito bem! Outro! Mais outro! Agora façamos força todos juntos! Está cedendo! Ah! Finalmente. Graças a nossos esforços reunidos, conseguimos retirar a tampa do caixão, e, no mesmo instante, um odor estonteante e insuportável de clorofórmio invadiu a sala. Dentro do ataúde jazia um corpo com a cabeça inteiramente envolta em algodão embebido nesse narcótico. Holmes retirou-o com presteza e descobriu o rosto marmóreo e espiritual de uma mulher de meia-idade. Rapidamente, passou o braço em torno da figura inerte e fê-la sentar-se. — Estará morta, Watson? Ainda há esperanças? Não é possível que tenhamos chegado tarde demais! Durante meia hora, pareceu-me que não restava nada a fazer. Sufocada pela falta de ar e intoxicada pelos vapores venenosos do clorofórmio, Lady Frances parecia irremediavelmente perdida. Mas, por fim, graças à respiração artificial, a injeções de éter e a todos os recursos que a ciência sugeria, um certo vislumbre de vida, um tênue vibrar de pestanas, um leve embaciar do espelho indicaram que a vida voltava lentamente. Parara um carro diante da casa, e Holmes, afastando a cortina, olhou para a rua. — Aí vem Lestrade com o mandado — observou. — Vai ficar desapontado quando souber que sua presa fugiu. E eis alguém — acrescentou, ao ouvir passos pesados no corredor — que mais do que nós tem direito de cuidar desta senhora. Bom dia, sr. Green; creio que, quanto mais depressa levarmos Lady Frances daqui, tanto melhor. Entretanto, podem continuar o enterro. A pobre velha que ainda jaz neste caixão poderá ir para seu eterno repouso sozinha. — Se lhe interessa acrescentar este caso a seus anais, meu caro Watson — disse-me Holmes na tarde daquele dia —, ele servirá apenas como exemplo do eclipse temporário ao qual mesmo os cérebros mais equilibrados podem estar sujeitos. Tais deslizes são comuns a todos os mortais, e maior, portanto, é o mérito dos que são capazes de reconhecê-los e repará-los. A esse mérito eu julgo ter algum direito. Passei a noite acossado pela idéia de que um indício, uma frase estranha, uma observação curiosa, me fora apresentado e eu desprezara logo de início. E, de súbito, já no romper da madrugada, as palavras exatas acorreram-me à mente. Tratava-se da justificação apresentada pela empresa funerária, tal como me foi referida por Philip Green. Ela tinha dito: "Já devia ter sido entregue. Levou mais tempo por ser de um tamanho invulgar". Aludia ao caixão. Suas medidas eram fora do normal. Isso só podia significar que tinha sido feito segundo dimensões especiais. Mas por quê? Por quê? Lembrei-me repentinamente do tamanho do ataúde e do corpo franzino

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da velhinha sumido lá no fundo. Por que um féretro tão grande para um cadáver tão pequeno? Para deixar espaço para outro corpo. Ambos seriam enterrados com um único atestado de óbito. Estaria tudo muito claro, se não fosse a momentânea obscuridade mental a que eu estava entregue. Às oito horas Lady Frances seria sepultada; nossa única esperança era chegar a tempo de impedir que o cortejo fúnebre saísse da casa. "Era remota a probabilidade de encontrá-la ainda com vida, mas era sempre uma probabilidade, como o resultado demonstrou. Essa gente, que eu saiba, jamais havia cometido um assassinato; provavelmente evitariam até o fim lançar mão da violência. Poderiam enterrá-la sem deixar o menor vestígio da causa de sua morte e, mesmo em caso de exumação, lhes seria possível escapar à ação da justiça. Esperava que tais considerações prevalecessem sobre o modo de agir deles. Agora lhe será fácil reconstituir com perfeição toda a cena. Você viu o horrível cubículo onde a pobre mulher esteve tanto tempo seqüestrada. Eles atiraram-se a ela, narcotizaram-na com clorofórmio, transportaram-na para baixo, despejaram o anestésico no interior do caixão, a fim de impedir que ela despertasse, e cerraram a tampa com parafusos. Um plano astucioso, Watson. Este fato, para mim, é novo nos anais do crime. Se nossos ex-missionários lograrem escapar às garras de Lestrade, nutro esperanças de que ouviremos falar em breve de outros casos brilhantes em sua futura carreira."

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Arthur Conan Doyle

O pé-do-diabo

Título original: The Devil's Foot Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1910

Sobre o texto em português

Este texto digital reproduz atradução de The Devil's Foot publicado em

As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V,editado pelo Círculo do Livro

e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.

Ao anotar, de tempos em tempos, algumas das curiosas experiências e interessantesrecordações associadas à minha longa e íntima amizade com Sherlock Holmes,defronto-me amiúde com as dificuldades oriundas de sua invencível antipatia por todo tipode publicidade. Seu espírito ríspido e rabugento nutriu sempre o mais profundo desprezopelo aplauso popular, e nada o divertia mais, ao final de um caso habilmente deslindado,que reverter o mérito do êxito a qualquer. agente oficial, e ouvir com um sorriso irônico ocoro geral de congratulações indevidas. Foi de fato essa atitude da parte de meu amigo, enão certamente a falta de material interessante, que me fez apresentar ao público nestesúltimos anos muito poucas narrativas. Minha participação em algumas de suas aventurasconstituiu sempre um privilégio que me obrigava à máxima discrição.

O leitor poderá imaginar, portanto, minha surpresa ao receber na última terça-feira umtelegrama de Holmes — jamais se dá ao trabalho de escrever cartas quando é possívelexpedir telegramas —, concebido nos seguintes termos: "Por que não dar publicidade ao'Horrível mistério da Cornualha' — o caso mais estranho que já tive em mãos?" Não faço amenor idéia do que o fizera lembrar-se do assunto, ou do capricho que o induzira a desejarque fosse entregue ao domínio público; todavia, apressei-me a coligir minhas notas sobre ocaso, antes que outro telegrama viesse cancelar o precedente, e apresento-o agora ameus leitores.

Foi na primavera do ano de 1897 que a férrea constituição de Holmes começou a daralguns sinais de fraqueza diante do trabalho constante e duríssimo, e essa indisposição eratalvez agravada por excessos ocasionais em sua vida privada. Em março daquele ano, o dr.Moore Agar, da Harley Street, cuja dramática apresentação a Holmes eu talvez ainda venhaa narrar, declarou de modo peremptório que o famoso detetive particular devia abandonartoda e qualquer atividade e entregar-se ao mais completo repouso, se quisesse evitar umirreparável esgotamento nervoso. O estado de sua saúde não era assunto que pudessedespertar em Holmes o mínimo interesse, pois seu desprendimento moral era absoluto,mas resignou-se por fim, em face da ameaça de ficar definitivamente impossibilitado detrabalhar, a uma completa mudança de atmosfera e ambiente. Assim, no início daprimavera daquele ano, estávamos reunidos numa pequena casa de campo nasproximidades da baía Poldhu, no limite extremo da península da Cornualha.

Tratava-se de um lugarejo singular, muitopropício ao temperamento sombrio de meupaciente. Das janelas de nossa pequeninacasa caiada de branco, situada no alto deum arborizado promontório, dominávamoscom o olhar todo o sinistro semicírculo dabaía Mount, antiga armadilha mortal paratodos os veleiros, com sua orla depenhascos negros e recifes traiçoeiros,sobre os quais inúmeros navegadorestinham encontrado uma morte trágica.

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Graças à brisa setentrional que ali sopra, abaía parece plácida e abrigada, convidandoo pequeno barco acossado pelastempestades a procurar repouso eproteção. Súbito, muda o vento. Sopramviolentas as lufadas do sudoeste, a âncoraé arrastada, a praia surge a sotavento efinalmente trava-se a suprema batalha comos rochedos espumantes. O marinheirovelho e experimentado evita aproximar-sedesse lugar maldito.

Do lado da terra, a paisagem que nos circundava era tão tétrica quanto a do mar.Consistia numa região de charnecas ondulantes, desertas e de cor pardacenta, onde, delonge em longe, surgia um campanário que assinalava qualquer aldeia abandonada. Emtodas as direções, sobre essas charnecas despontavam vestígios de uma raçadefinitivamente extinta, que deixara como única recordação estranhos monumentos depedra, túmulos irregulares onde se encontravam depositadas as cinzas de seus mortos, ecuriosos trabalhos de cerâmica, índices de lutas pré-históricas. O fascínio e o mistériodesse lugar, com sua atmosfera sinistra de nações desaparecidas, exerciam influênciasobre a imaginação de meu amigo, e ele passava grande parte do tempo em longospasseios e solitárias meditações pêlos campos áridos. O antigo dialeto da Cornualhatambém lhe prendera a atenção, e recordo-me de que Holmes descobrira certa afinidadeentre esse dialeto e o caldeu, a qual derivaria dos traficantes de estanho fenícios. Holmesrecebera uma encomenda de livros de filologia e preparava-se para desenvolver essa tese,quando, de repente, para minha tristeza e sua indisfarçada delícia, nos vimos envolvidos,naquela terra de sonhos, num problema mais emocionante, mais atraente e infinitamentemais misterioso do que os que nos tinham obrigado a abandonar Londres. Nossa existênciasimples, tranqüila, nossa saudável rotina foram violentamente interrompidas, e vimo-nosprecipitados no meio de uma seqüência de acontecimentos que suscitaram a máximaemoção, não só na Cornualha como em toda a região ocidental da Inglaterra. Muitos demeus leitores talvez se lembrem do que veio a ser chamado na ocasião "O horrível mistérioda Cornualha", se bem que à imprensa londrina tivesse chegado uma narrativa demasiadoincompleta dos fatos. Agora, decorridos treze anos, darei a público os pormenores reaisdesse inconcebível acontecimento.

Já disse que os campanários esparsos assinalavam as aldeias existentes nessa regiãoda Cornualha. A mais próxima delas era o pequeno povoado de Tredannick Wollas, onde asmoradias de cerca de duas centenas de habitantes se aglomeravam em torno de umavetusta igreja coberta de musgo. O vigário da paróquia, o reverendo Roundhay, era umaespécie de arqueólogo e, como tal, Holmes estabelecera relações com ele. Homem demeia-idade, majestoso e afável, era dotado de uma notável bagagem de erudição quanto afatos locais. A seu convite, fôramos tomar chá na sede da paróquia, e lá conhecemostambém o sr. Mortimer Tregennis, cavalheiro independente, que ajudava o vigário aaumentar seus parcos recursos, hospedando-se em sua casa vasta e desordenada. Ovigário, sendo solteiro, sentia-se feliz com esse arranjo, apesar de haver muito pouco emcomum entre ele e seu pensionista, homem alto, moreno, de óculos, e cujo andar curvadosugeria uma verdadeira deformidade física. Recordo-me de que, durante nossa curta visita,notamos que o vigário estava muito loquaz, ao passo que seu pensionista se mostravaestranhamente taciturno, com um aspecto triste e pensativo, e deixou-se ficar quasesempre sentado, evitando nossos olhares, aparentemente preocupado com seus própriosproblemas.

Eis que os dois homens irromperamabruptamente em nossa pequena sala deestar, na terça-feira, 16 de março, poucodepois de termos terminado a nossa primeirarefeição, enquanto fumávamos um cigarroantes do passeio cotidiano pêlos arredores.

— Sr. Holmes — disse com voz agitada ovigário —, ocorreu durante a noite o fato maistrágico e extraordinário do mundo. É

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verdadeiramente incrível, e podemosconsiderar sua presença aqui, neste momento,como dom especial da Providência, pois, emtoda a Inglaterra, o senhor é justamente ohomem de que necessitamos.

Encarei o importuno vigário com ar depoucos amigos; Holmes, porém, tirou ocachimbo da boca e endireitou-se na poltrona,como um velho cão de caça que ouve o soardas trompas dos caçadores. Com um gesto,indicou o sofá, onde nosso ansioso visitante eseu perturbado companheiro se sentaram, lado a lado. O sr. Mortimer Tregennis pareciamais calmo que o clérigo, mas o tremor de suas mãos finas e o brilho de seus olhosescuros demonstravam que sentia a mesma emoção.

— Falo eu ou o senhor? — perguntou ele ao pároco.

— Parece que o senhor fez a descoberta, seja ela qual for, e o vigário tomou conhecimentodela por seu intermédio, por isso talvez seja melhor o senhor falar — disse Holmes.

Lancei um olhar ao pároco, humildemente vestido, ao lado de seu pensionista, cujaindumentária era irrepreensível, e diverti-me com o ar de surpresa que a fácil dedução deHolmes lhes havia estampado nas faces.

— Talvez eu deva dizer algumas palavras primeiro — objetou o vigário —, e depois osenhor decidirá se deve ouvir o sr. Tregennis ou se devemos correr imediatamente ao localda misteriosa tragédia. Devo explicar-lhe que nosso amigo, aqui presente, passou a noitede ontem na companhia de seus dois irmãos, Owen e George, e de sua irmã, Brenda, nacasa deles, em Tredannick Wartha, situada junto à velha cruz de pedra no meio da planície.Deixou-os, pouco depois das dez, jogando cartas ao redor da mesa da sala de jantar, comexcelente saúde e bom estado de espírito.

"Hoje pela manhã, como de costume, levantou-se muito cedo, e antes do café saiu empasseio naquela direção, sendo alcançado pelo carro do dr. Richards, que o informou tersido chamado com urgência a Tredannick Wartha. O sr. Mortimer Tregennis, como é óbvio,acompanhou-o. Ao chegar a Tredannick Wartha, deparou com um espetáculo inaudito. Osdois irmãos e a irmã estavam sentados à mesa, exatamente como os tinha deixado, com ascartas ainda espalhadas à sua frente e as velas gastas até o fim. A irmã jazia rígida, mortana cadeira, enquanto a seu lado os dois irmãos riam, gritavam e cantavam, completamentefora de si. Os três, a morta e os dois dementes, tinham estampada nas fisionomias aexpressão do mais intenso horror, um esgar de pavor horrível. Não havia o menor sinal dapresença de alguém na casa, à exceção da sra. Porter, a velha cozinheira e governanta,que declarou ter dormido a sono solto e nada ter ouvido durante a noite. Nada foi roubadoou remexido, e não há qualquer explicação do que poderia ter apavorado uma mulher aponto de the causar a morte, e ter feito dois homens normais perderem completamente ojuízo. Esta é, em resumo, a situação, sr. Holmes; se puder ajudar-nos a esclarecê-la, terárealizado uma grande obra."

Eu esperava, de qualquer modo, persuadir meu companheiro a manter o repouso queconstituía o objetivo de nossa viagem; bastou-me, no entanto, um olhar ao rosto atento e àssobrancelhas contraídas para compreender que seriam vãs todas as minhas súplicas. Elese manteve sentado por algum tempo, em silêncio, com o pensamento absorto naquelamisteriosa tragédia que viera perturbar o sossego das nossas férias.

— Cuidarei deste caso — disse finalmente. — À primeira vista, parece tratar-se de umassunto de natureza excepcional. Esteve no local, sr. Roundhay?

— Não, sr. Holmes. O sr. Tregennis trouxe-me a horrível notícia, e eu me apressei a vircom ele consultá-lo.

— A que distância fica a moradia onde ocorreu tão singular tragédia?

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— A cerca de um quilômetro e meio.

— Então faremos uma caminhada juntos até lá. Antes de irmos, porém, desejo fazer-lhealgumas perguntas, sr. Mortimer Tregennis.

Tregennis permanecera em silêncio durante todo o tempo, mas eu notei que suaagitação, apesar de mais bem controlada, era mais forte do que a emoção patente dovigário. Sentado, com o rosto lívido e abatido, o olhar ansioso fixo em Holmes, torciaconvulsivamente as mãos finas. Seus lábios descorados tremiam ao ouvir a descrição dapavorosa desgraça que desabara sobre sua família, e os olhos escuros pareciam refletirainda o horror da cena que tinham contemplado.

— Pergunte-me o que quiser, sr. Holmes — respondeu prontamente. — É-me penoso falara respeito do assunto; não obstante, contarei tudo o que sei.

— Descreva os acontecimentos da noite passada.

— Pois bem, sr. Holmes. Ceei lá, como o vigário já disse, e meu irmão mais velho, George,propôs, após a ceia, que jogássemos uma partida de uíste. Começamos a jogar por voltadas nove horas. Eram dez e um quarto quando me despedi. Deixei-os sentados à mesa,todos muito alegres.

— Quem o acompanhou até a porta?

— A sra. Porter já fora para o quarto; por isso, saí sozinho, fechando a porta do vestíbuloatrás de mim. A janela da sala em que eles se encontravam estava fechada, mas a cortinaestava aberta. Hoje de manhã, não notei nenhuma mudança, tanto na porta como na janela,e nada fazia supor que um estranho pudesse ter entrado na casa. Todavia, lá estavammeus irmãos enlouquecidos de terror, e Brenda, morta, com a cabeça pendente sobre obraço da cadeira. Enquanto for vivo, jamais poderei esquecer aquela visão dantesca.

— Os fatos, tais como o senhor os narra, são realmente extraordinários — observouHolmes. — Pelo que me acaba de dizer, concluo que não encontra explicação para eles.

— Foi obra do Demónio, sr. Holmes; do Demónio! — exclamou Mortimer Tregennis. — Nãoé coisa deste mundo. Algo deve ter surgido naquela sala, capaz de lhes apagar das mentesa luz da razão. Por meios humanos seria impossível realizar tal coisa!

— Uma vez que o assunto transcende a natureza humana, receio que ele esteja acima deminhas forças. Entretanto, devemos esgotar todas as explicações naturais, antes de aceitartal hipótese. Quanto ao senhor, suponho que se afastou de sua família por algum motivo, jáque seus irmãos vivem juntos, e o senhor não mora com eles.

— Exatamente, sr. Holmes, apesar de que este assunto já é coisa do passado, e foiencerrado há muito tempo. Possuíamos uma mina de estanho em Redruth, mas vendemosnossos direitos a uma sociedade e nos retiramos com o suficiente para levarmos uma vidatranqüila. Não nego que houve certo ressentimento entre mim e meus irmãos no tocante àdivisão do dinheiro, mas tudo foi esquecido e perdoado, e nestes últimos tempos éramosótimos amigos.

— Voltando à última noite que passaram juntos, não se recorda de nada que possa lançaralguma luz sobre a tragédia? Pense bem, sr. Tregennis, pois o mais ténue fio da meada meserá de grande auxílio.

— Não me recordo de nada, sr. Holmes.

— Seus irmãos encontravam-se em seu habitual estado de espírito? — Nunca os vi tão satisfeitos.

— Eram pessoas nervosas? Mostravam-se apreensivos, como quem receia qualquer perigoiminente?

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— Não.

— Nada mais pode acrescentar, então, que me sirva de ajuda?

Mortimer Tregennis refletiu profundamente por alguns instantes.

— Ocorre-me agora uma coisa — disse ele por fim. — Quando estávamos sentados aoredor da mesa, eu estava de costas voltadas para a janela, e meu irmão George, que erameu parceiro, estava de frente para ela. Em dado momento, vi-o olhar fixamente por cimade meu ombro, tanto que me voltei e olhei na mesma direção. A cortina estava levantada ea janela, fechada, mas pude distinguir os arbustos do jardim e, por momentos, tive asensação de ver qualquer coisa mover-se no meio deles. Não saberia dizer se era umhomem ou um animal, mas calculei que fosse qualquer coisa. Quando perguntei a meuirmão para onde estava olhando, sua resposta coincidiu com a minha impressão. É tudo oque posso lhe dizer.

— Os senhores não procuraram investigar?

— Não; não demos importância ao incidente.

— O senhor, por conseguinte, saiu de lá sem o menor presságio funesto?

— Exatamente.

— Ainda não compreendi bem como veio a saber do sucedido tão cedo nesta manhã.

— Sou muito madrugador, e habitualmente saio a passeio antes do café. Esta manhã, malme pus a caminho, fui alcançado pelo médico, que passou por mim de carro. Contou-meque a velha sra. Porter o mandara chamar com urgência por um garoto. Saltei para o carroe seguimos juntos. Logo que chegamos, entramos na sala trágica. As velas e o fogodeviam ter-se apagado muitas horas antes, e eles tinham permanecido sentados, naescuridão, até o romper da manhã. O médico declarou que Brenda devia estar morta hápelo menos seis horas. Não vimos o mínimo sinal de violência. Jazia apoiada sobre o braçoda cadeira com uma pavorosa expressão de terror no rosto. George e Owen cantarolavamtrechos de canções e agitavam-se como dois enormes macacos. Deus meu, que horror!Não pude resistir ao espetáculo, e o próprio médico estava branco como uma folha depapel. Chegou mesmo a cair sobre uma cadeira com uma espécie de vertigem, e, porpouco, não tivemos de tratar dele.

— Estranho... verdadeiramente estranho! — comentou Holmes, levantando-se e pegando ochapéu. — Talvez seja melhor irmos já para Tredannick Wartha. Confesso que raras vezesdeparei com um caso que fosse à primeira vista mais singular.

As operações daquela manhã pouco serviram para que nossas pesquisas progredissem.Estas foram assinaladas, logo de início, por um incidente que me deixou na mente a maissinistra impressão. A estrada que levava a Tredannick Wartha era estreita e sinuosa. Aocaminharmos por ela, ouvimos o ruído de um carro que vinha em sentido contrário, eafastamo-nos para um lado da estrada, a fim de lhe dar passagem. No momento em quecruzou conosco, entrevi fugazmente, através da vidraça da portinhola, um rosto contraídonum horrendo sorriso, e que nos fitava. Aquele olhar insensato, aquele ranger de dentespassaram de súbito por nós como uma visão diabólica.

— Meus irmãos — gritou Mortimer Tregennis,fazendo-se pálido como um cadáver. — Vãolevá-los para Heiston.

Acompanhamos com olhos esgazeados acarruagem negra, que desapareciarapidamente de nossa vista. Volvemos emseguida os passos para a casa fatídica, cujosocupantes tinham encontrado tão estranhodestino.

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Era uma habitação grande e clara, maisuma vila do que uma simples casa de campo,circundada por um vasto jardim que, graçasao ar ameno da Cornualha, já se encontravacoberto de flores primaveris. A janela da salade estar dava para esse jardim, e por ela,segundo as declarações de MortimerTregennis, devia ter entrado aquela coisademoníaca, que por um rápido instantetranstornou a mente de seus irmãos por umsimples efeito de horror. Holmes passeoulenta e pensativamente por entre os canteiros floridos e ao longo do caminho, antes depenetrarmos no portal. Lembro-me de que ele estava tão absorto nos própriospensamentos, que tropeçou num regador cheio de água, despejando-lhe o conteúdo sobrenossos pés e na areia do jardim. No interior da casa, fomos recebidos pela velhagovernanta, a sra. Porter, que, com a ajuda de uma jovem criada, acudia aos arranjosdomésticos. Respondeu prontamente a todas as perguntas de Holmes. Nada ouvira durantea noite. Os patrões tinham apresentado, nos últimos tempos, um excelente estado deespírito, e nunca os vira tão alegres e satisfeitos! Naquela, manhã, ao entrar na sala e aodeparar com aquele quadro sinistro, desmaiara de horror. Mal voltou a si, abriu a janelapara arejar o ambiente e correu para a estrada, onde encontrou um garoto ao qual pediuque chamasse um médico. Se quisessem ver a srta. Brenda, ela estava na cama, no andarsuperior. Foram necessários quatro homens robustos para colocar os dois irmãos no carrodo hospício. Não queria ficar nem mais uma noite na casa, e, naquela mesma tarde, iriajuntar-se à sua família em St. Ives.

Subimos as escadas eexaminamos o cadáver. BrendaTregennis fora uma jovembelíssima, se bem que játivesse atingido a idademadura. O rosto moreno, delinhas perfeitas, eraencantador, mesmo na morte,mas ainda apresentava sinaisda convulsão que provocarasua última emoção terrena. Doquarto da extinta, descemospara a sala de estar onde severificara a incrível ocorrência.Ainda se amontoavam nalareira as cinzas do fogo da

noite anterior. Sobre a mesa, na qual continuavam espalhadas as cartas do baralho,viam-se quatro castiçais com as velas inteiramente consumidas. As cadeiras tinham sidoencostadas à parede; no entanto, tudo o mais estava no lugar. Holmes percorreu a salacom passos rápidos e leves; sentou-se nas diversas cadeiras, aproximando-as da mesa,para reconstituir as posições. Verificou que ângulo do jardim poderia ser visto do interior;inspecionou o pavimento, o teto, a lareira; entretanto, nem por um momento notei aquelesúbito brilho do olhar e aquela contração dos lábios que me fariam pressentir que entreviraum raio de luz naquela densa treva.

— Por que o fogo estava aceso? — perguntou a certa altura. — Costumavam acendersempre a lareira nesta sala, mesmo numa noite de primavera?

Mortimer Tregennis explicou que a noite fora fria e úmida; por esse motivo, tinhamacendido a lareira depois de sua chegada.

— Que pretende fazer agora, sr. Holmes? — perguntou.

Meu amigo sorriu e pousou a mão no meu braço.

— Creio, Watson, que vou voltar ao velho hábito de me intoxicar com tabaco, que vocêtantas vezes e com muita razão tem condenado. Os senhores vão permitir que voltemos

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para casa, pois não acredito que aqui possa se apresentar algo de novo. Vou meditarsobre os acontecimentos, st. Tregennis, e, se me ocorrer qualquer coisa, o senhor e ovigário serão informados. Por ora, desejo a ambos um bom dia.

Só muito tempo depois de nosso regresso a Poldhu Cottage, Holmes quebrou seu longoe obstinado silêncio. Afundara-se na poltrona, com o rosto magro de asceta quase ocultopelas densas espirais de fumo do cachimbo, as negras sobrancelhas contraídas, a frontesulcada de rugas, os olhos absortos vagueando pelo espaço. Finalmente, pôs de lado ocachimbo e levantou-se.

— Assim não dá, Watson — disse, soltando uma gargalhada. — Vamos dar um passeioaté os penedos e procurar setas de pedra. Será mais fácil encontrar despojos neolíticos doque chaves para nosso problema. Fazer o cérebro trabalhar sem material suficiente é omesmo que exigir de uma máquina o que ela não pode dar. Fica reduzida a pedaços. O ardo mar, o sol, e paciência, Watson... o resto virá por si.

— E agora tentemos definir com calma a nossa posição — prosseguiu, enquantocontornávamos os penedos. — Procuremos agarrar firme o pouquíssimo que sabemos, demodo que possamos colocar nos devidos lugares os novos dados que surgirem. Antes demais nada, suponho que nenhum de nós está disposto a admitir intrusões diabólicas emquestões humanas. Principiemos por afastar da mente essa eventualidade. Muito bem.Restam assim três pessoas atacadas com crueldade, consciente ou inconscientemente, porum ser humano. Agora, estamos pisando terreno seguro. Ora, quando se verificou isso?Presumindo que seja verdadeira a narrativa do sr. Mortimer Tregennis, tal fato sucedeulogo depois de ele ter deixado a sala. Este ponto é importantíssimo. A hipótese é de que oincidente ocorreu poucos minutos depois. As cartas ainda se encontravam espalhadassobre a mesa. Já passara a hora em que eles costumavam deitar-se; todavia, não tinhammudado de posição, nem afastado as cadeiras da mesa. Repito, portanto: o fato deve terse verificado logo depois da partida de Tregennis, e antes das onze horas da noite.

"A primeira coisa que devemos fazer é seguir, tanto quanto possível, todos os passosque Mortimer Tregennis deu depois de deixar a sala. Nisso não encontraremos dificuldadealguma, e parece-me que seus movimentos estão acima de qualquer suspeita. Vocêconhece bem meus métodos e, naturalmente, compreendeu o expediente algo desajeitadodo regador, pelo qual obtive do pé dele uma impressão mais clara do que seria permitidoobter por outro meio qualquer. O caminho arenoso e úmido reteve-a de forma perfeita.Como deve lembrar-se, a noite passada também foi úmida, e não me foi difícil, depois deobter um modelo, descobrir-lhe as pegadas no meio das outras e acompanhar-lhe osmovimentos. Ele parece ter se afastado rapidamente na direção da casa do vigário.

"Ora, se Mortimer Tregennis desapareceu da cena e alguém de fora pôde exercer umainfluência letal sobre os jogadores de cartas, como podemos estabelecer a identidadedessa pessoa, e como foi possível criar em torno daqueles três desgraçados tão mortíferaatmosfera de horror? A sra. Porter está isenta de qualquer suspeita. É evidentementeinofensiva. Existirão provas de que alguém subiu à janela do jardim, e, por meios ignorados,horrorizou os três irmãos a ponto de enlouquecê-los? A única hipótese nesse sentido éfornecida pelo próprio Mortimer Tregennis, quando afirma que seu irmão distinguira algomovendo-se no jardim. Isso é, sem dúvida, extraordinário, pois a noite estava chuvosa,enevoada e escura. Quem quisesse assustar aquela gente seria obrigado a encostar orosto à vidraça, a fim de ser visto. Ao lado da janela, na parte exterior, corre um canteirode flores de cerca de um metro de largura; não apresenta, porém, o menor sinal de pés.Por conseguinte, é difícil imaginar como alguém, do lado de fora, poderia ter produzido tãoforte impressão sobre as três pessoas, praticando tão estranho e complexo atentado.Percebe as dificuldades com que nos defrontamos, Watson?"

— Perfeitamente — respondi, cheio de convicção.

— No entanto, se tivéssemos mais alguns elementos, poderíamos demonstrar que elas nãosão insuperáveis — continuou Holmes. — Estou certo de que você encontrará em seu vastoarquivo alguns casos quase tão obscuros como este. Por ora, vamos pôr de lado oproblema até que apareçam dados mais precisos, e dediquemo-nos, durante o resto damanhã, à pesquisa do homem neolítico. Já me referi muitas vezes à faculdade de meuamigo de esquecer momentaneamente as coisas que o preocupam, mas nunca o admirei

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tanto como naquela manhã de primavera, na Cornualha, onde, durante duas horas,discorreu a respeito dos celtas, pontas de flechas e fragmentos de cerâmica, com grandedesembaraço, como se nenhum mistério sinistro aguardasse uma solução. Só à tarde, deregresso à casa, tornamos a falar no assunto. Estava à nossa espera uma visita, e não foipreciso dizer-nos de quem se tratava. Aquele vulto enorme, o rosto duro e sulcado derugas, o olhar arrogante, o nariz aquilino, os cabelos grisalhos que quase vasculhavam oteto da sala, a barba — loura nas pontas e branca junto aos lábios, exceto as manchas denicotina deixadas pelo eterno charuto —, tudo isso era muito conhecido tanto em Londrescomo na África, e só podia estar relacionado à extraordinária personalidade do dr. LeonSterndale, o célebre explorador e caçador de leões.

Sabíamos de sua presença na região, e tínhamos por uma ou duas vezes avistado suafigura gigantesca nos atalhos da charneca. Ele, porém, nada fizera para se aproximar denós, nem nós, por outro lado, jamais sonháramos estabelecer relações com ele, pois suamisantropia era muito conhecida. Nutria um amor tão exagerado pelo isolamento que, nosintervalos de suas viagens, passava a maior parte do tempo numa pequenina casa decampo perdida na solidão dos bosques de Beauchamp Arriance. Aí, entre livros e mapas,dedicava-se a uma existência de absoluta segregação, atendendo às própriasnecessidades, sem parecer interessar-se pela vida de seus vizinhos. Surpreendi-me,portanto, ao ouvi-lo perguntar a Holmes, com voz ansiosa, se tinha feito algum progresso nareconstituição do misterioso acontecimento.

— A polícia do condado está absolutamente tonta — disse —, mas talvez o senhor, com asua experiência mais vasta, consiga sugerir uma explicação plausível. O único motivo queme leva a interessar-me pelo caso é o fato de que, durante minhas numerosas estadiasaqui, travei uma íntima amizade com a família dos Tregennis (aliás, pelo lado de minhamãe, poderia chamá-los primos), e seu trágico destino constituiu, como é natural, umprofundo golpe para mim. Posso dizer-lhes que me encontrava já em Plymouth, rumo àÁfrica, quando soube do sucedido, e voltei no mesmo instante, a fim de colaborar noinquérito.

Holmes arqueou as sobrancelhas.

— Por causa disso, então, o senhor perdeu o vapor?

— Seguirei no próximo.

— Por Deus! Isso é que se chama amizade!

— Como lhe disse éramos parentes!

— De acordo... Primos por parte de mãe. Sua bagagem já estava no navio?

— Alguma coisa; a de maior valor estava comigo no hotel.

— Compreendo. Mas, com certeza, a notícia desse acontecimento não pôde ter sidopublicada pêlos matutinos de Plymouth.

— Não, recebi um telegrama.

— Pode dizer-me quem lhe telegrafou?

Pelo rosto magro e ossudo do explorador perpassou uma sombra.

— É muita curiosidade, sr. Holmes!

— Faz parte de minha profissão.

Com um esforço, o dr. Sterndale recobrou a calma.

— Nada me impede de dizê-lo. Foi o sr. Roundhay, o vigário, quem me telegrafou.

— Muito obrigado — redargüiu Holmes. — Respondendo à sua primeira pergunta, devo

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dizer-lhe que ainda não tenho uma noção clara deste caso, mas nutro fortes esperanças dechegar a uma conclusão. Seria prematuro dizer-lhe mais alguma coisa.

— Suas suspeitas indicam algum rumo seguro?

— Não; sobre isso nada posso afirmar.

— Então, perdi meu tempo, e parece-me inútil prolongar minha visita.

O famoso explorador retirou-se a passos largos, visivelmente irritado, e, ao cabo decinco minutos, Holmes seguiu-o. Não tornei a vê-lo senão à tarde, quando regressou. Pelopasso lento e a fisionomia abatida, concluí não terem sido muito frutíferas suasinvestigações. Passou os olhos por um telegrama que o aguardava e atirou-o ao fogo.

— Do Plymouth Hotel, Watson — explicou-me. — O vigário deu-me o endereço, e eutelegrafei para lá a fim de me certificar se a versão do dr. Sterndale era exata. Parece quede fato passou a noite lá, e parte de sua bagagem já fora embarcada para a África,enquanto ele voltava com o intuito de estar presente durante esta investigação. Que deduzvocê de tudo isso?

— Que o assunto lhe interessa muito.

— Interessa-lhe profundamente... sim. Há um fio, aqui, que até agora não conseguimosagarrar e que talvez nos conduza através da meada. Alegre-se, Watson, pois estou certode que ainda não temos na mão todos os elementos essenciais. Quando tal suceder,nossas dificuldades se dissiparão.

Eu mal sabia que as palavras de Holmes logo se veriam confirmadas, e que estavaprestes a ocorrer um fato estranho e sinistro, que iria dar novo rumo às nossas pesquisas.

Eu me barbeava junto à janela, na manhã seguinte, quando ouvi o tropel de patas decavalo, e, erguendo o olhar, deparei com uma carruagem que vinha em disparada pelaestrada. O veículo estacou à porta, e dele apeou nosso vigário, que entrou correndo pelojardim, Holmes já estava vestido, e ambos nos apressamos ao seu encontro.

Nosso visitante estava tão emocionado que mal podia articular palavra; todavia, apósmuito balbuciar e arquejar, conseguimos ouvir-lhe a trágica notícia:

— Mortimer Tregennis morreu durante a noite, apresentando exatamente os mesmossintomas encontrados nos outros membros de sua família.

Holmes ergueu-se de súbito, vibrante de energia.

— Pode levar-nos em seu carro?

— Certamente.

— Nesse caso, Watson, adiaremos nossa refeição. Estamos ao seu inteiro dispor, sr.Roundhay. Vamos depressa, antes que alguém entre no aposento e tire qualquer coisa dolugar.

Tregennis ocupava dois quartossobrepostos num ângulo da casa. O doandar térreo servia de sala de estar; o decima era o quarto de dormir. As janelas deambos davam para um campo de croque,junto do edifício. Tínhamos chegado antesdo médico e da polícia, de modo que tudose encontrava no lugar. Desejo descrevera cena exatamente como se apresentavanaquela nevoenta manhã de março, cujaimpressão jamais se apagará de minhamemória.

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A atmosfera do quarto estavaincrivelmente sufocante, e estaria aindamais irrespirável se a criada, que tinhaentrado antes, não escancarasse a janela.Talvez isso pudesse atribuir-se a umlampião que estava aceso no centro damesa. Junto a esta estava sentado omorto, reclinado na poltrona, a barba rala

apontada para a frente, os óculos empurrados para a testa, o rosto trigueiro e magrovoltado para a janela e contraído no mesmo espasmo de horror que transtornara as feiçõesde sua pobre irmã. Os membros convulsos e os dedos crispados pareciam indicar quemorrera num verdadeiro paroxismo de medo. Estava vestido, ainda que houvesse sinais deque o fizera às pressas. O leito em desalinho mostrava que dormira ali, e que o fim trágicose dera às primeiras horas da manhã.

Para avaliar a energia ardente, oculta sob a aparência fleumática de Holmes, bastariareparar na súbita transformação que ele sofreu ao entrar na sala fatal. Instantaneamenteele ficou tenso e alerta, com os olhos brilhando, a fisionomia impenetrável, os membrosfremindo de energia.

Saía para o campo de croque, regressava pela janela, rodeava o aposento, subia aoquarto, como um irrequieto cão de caça farejando a presa. No quarto de dormir, fez umrápido giro e terminou abrindo a janela de par em par, o que pareceu fornecer-lhe novomotivo de excitação, pois debruçou-se nela lançando estrepitosas exclamações deinteresse e satisfação. Em seguida, desceu a escada correndo, pulou a janela, atirou-se debruços no relvado, pôs-se de pé num salto e tornou a entrar na sala, tudo isso com aenergia do caçador prestes a apanhar a presa. O lampião, de tipo comum, sofreu tambémum minucioso exame, principalmente no que se referia à sua capacidade. Inspecionoucuidadosamente com uma lente a fuligem que lhe recobria a parte superior, e raspou umpouco da cinza que havia aderido à superfície, guardando-a num envelope, que enfiou nacarteira. Finalmente, ao chegarem o médico e a polícia, acenou ao vigário, e saímos ostrês para o relvado usado para jogar croquê.

— Tenho o prazer de lhes comunicar que minha investigação não foi de todo infrutífera —observou. — Não posso permanecer aqui para discutir o caso com a polícia, mas eu lheficaria grato, sr. Roundhay, se quisesse apresentar meus cumprimentos ao inspetor echamar-lhe a atenção para a janela do quarto e para o lampião da sala de estar. Cada umdesses elementos é sugestivo, e, juntos, acho-os quase conclusivos. E agora, Watson,creio que nosso tempo pode ser mais bem aproveitado em outro lugar.

A polícia, provavelmente, não via com bons olhos a intromissão de um diletante, ou talvezjulgasse que estava seguindo uma pista mais segura. O fato é que ninguém nos procurounos dois dias seguintes, durante os quais Holmes passou parte do tempo em casa,fumando e conjeturando. No entanto, gastou a maior parte do tempo em demoradospasseios solitários pêlos arredores, dos quais voltava sem indicar, de modo algum, ondetinha estado. Uma certa experiência serviu para me revelar o rumo de suas pesquisas.

Ele comprou um lampião exatamente igual ao que ficara aceso nos aposentos deMortimer Tregennis na manhã da tragédia. Encheu-o com o mesmo combustível usado nacasa do vigário, e calculou com exatidão o tempo necessário que ele levava para seesgotar. A essa seguiu-se outra experiência, de caráter tão desagradável que não me seráfácil esquecê-la.

— Você deve ter notado, Watson — observou ele, uma tarde —, que existe um único pontocomum de analogia nas diferentes informações que nos chegaram aos ouvidos. Refiro-meao efeito produzido, em cada caso, pela atmosfera do aposento sobre as pessoas queentraram nele em primeiro lugar. Deve lembrar-se de que Mortimer Tregennis, ao descrevero episódio de sua última visita à casa dos irmãos, disse que o médico, quando entrou nasala, caiu sobre uma cadeira. Já se esqueceu desse pormenor? Eu não me esqueci. Agora,deve lembrar-se também de que a sra. Porter, a governanta, nos declarou que desmaiaraao penetrar na sala e só depois abrira a janela. No segundo caso, o do próprio MortimerTregennis, não pode ter esquecido a impressão horrível de asfixia que sentimos quando

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transpusemos a porta da sala, embora a criada tivesse aberto a janela. Soube depois queessa criada se sentiu tão mal que teve de ir para a cama. Ora, Watson, deve convir queesses fatos são muito significativos. Em ambos os casos, temos provas irrefutáveis deenvenenamento da atmosfera. Por outro lado em cada um deles, deparamos com umprocesso de combustão. No primeiro, o fogo ardia na lareira, no segundo, um lampiãoestava aceso. O fogo era necessário, pois a noite estava fria, mas o lampião... como sepode verificar pela quantidade de combustível consumido, foi aceso muito tempo depois doraiar do dia. Por quê? Sem dúvida porque existia alguma ligação entre esses três fatores: acombustão, a atmosfera sufocante e, finalmente, a loucura ou a morte daqueles infelizes.Está claro, não acha?

— Assim parece.

— Pelo menos podemos aceitar essa hipótese. Suponhamos, então, que em cada um doscasos alguma coisa foi queimada, tendo produzido uma atmosfera de misteriosos efeitostóxicos. Muito bem. No primeiro, o da família Tregennis, essa substância foi colocada nalareira. A janela estava fechada, mas, naturalmente, parte dos vapores foi absorvida pelachaminé, ao menos por certo tempo. Por isso deve-se imaginar que os efeitos do venenoforam menores do que no segundo caso, em que houve menos escape de fumaça. Osresultados parecem indicar isso, pois no primeiro caso apenas a mulher, presumivelmentedotada de um organismo mais sensível, encontrou a morte, enquanto nos outros seapresentou o fenómeno da loucura temporária ou permanente, que é, com certeza, oprimeiro estágio provocado pela droga. No segundo caso, o resultado foi total. Porconseguinte, os fatos tendem a confirmar a hipótese de um veneno que atua porcombustão. Baseado nesse raciocínio, era natural que procurasse no quarto de MortimerTregennis qualquer traço dessa substância, É claro que o primeiro objeto que inspecioneifoi a manga do lampião. E, de fato, encontrei nela certa quantidade de cinza escamosa,com uma franja de pó castanho, que ainda não fora de todo consumida. Como você viu,recolhi metade desse pó e coloquei-o num envelope.

— Por que apenas metade, Holmes?

— Não é meu costume, caro Watson, dificultar as investigações da polícia oficial. Costumodeixar-lhes todas as provas que encontro. Se possuírem habilidade para descobri-lo, boaparte do veneno ainda se encontra lá. E agora, Watson, vamos acender nosso lampião;tomaremos, no entanto, a precaução de abrir a janela, a fim de evitarmos a morteprematura de dois dignos membros da sociedade. Você se sentará numa poltrona junto dajanela, a menos que, como pessoa de bom senso, se recuse a tomar parte estaexperiência. Ah! Prefere ver como vai terminar? Eu estava certo de que conhecia meuWatson. Colocarei esta cadeira em frente à sua, de modo que possamos ficar ambos aigual distância do veneno e face a face. Deixaremos a porta entreaberta. Cada um de nósestá em posição que permite observar o outro e pôr fim à prova se os sintomas serevelarem alarmantes. Está entendido? Muito bem! Tiro, então, nosso pó do envelope, ou oque resta dele, e ponho-o sobre o lampião aceso. Pronto! E agora, Watson, sentemo-nos eaguardemos os acontecimentos.

Estes não se fizeram demorar. Mal me havia sentado, principiei a sentir um odorsufocante, almiscarado, sutil e nauseante. À primeira baforada, perdi todo o domínio docérebro e da imaginação. Uma nuvem espessa e negra baixou-me sobre os olhos, e eu tivea intuição de que ela trazia em seu bojo, invisível ainda, mas pronto a saltar diante de meussentidos dominados pelo pavor, tudo quanto havia de vagamente horrível, monstruoso einfinitamente perverso no mundo. Formas indistintas giravam e flutuavam na escuridão danuvem, cada uma delas trazendo em si a ameaça ou a advertência de qualquer coisaiminente, o aparecimento de algo pavoroso, cuja sombra, só por si, bastaria para mefulminar a alma. Fiquei gelado de horror. Senti os cabelos arrepiarem-se, os olhos saltaremdas órbitas, a boca escancarar-se e a língua pender para fora como um pedaço de couro.Era tal o tumulto em meu cérebro que tive a impressão de que minha cabeça ia estourar.Tentei gritar e apenas percebi, vagamente, um rouco coaxar, que devia ser minha voz, masirreal e infinitamente distante. Nesse momento, num supremo esforço de fuga, irrompiatravés daquela nuvem de desespero e entrevi o rosto de Holmes, pálido, rígido, petrificadode terror — a mesma máscara que eu vira impressa nas feições dos dois cadáveres. Essavisão deu-me um átomo de lucidez e força. Saltei da poltrona, atirei os braços em torno deHolmes e com ele precipitei-me cambaleante para fora da sala. Momentos depois

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estávamos estirados, lado a lado, sobre a relva, cônscios somente do sol radioso, cujosraios diluíam a infernal nuvem de pavor em que nos encontrávamos envolvidos. Lentamente,ela se evaporou de nosso espírito, como a bruma 'dos pântanos, e assim recuperamos acalma e a razão. Sentamo-nos no relvado, enxugando o suor viscoso de nossas testas eolhando apreensivos um para o outro, como querendo fixar os últimos traços da espantosaexperiência a que nos tínhamos submetido.

— Palavra de honra, Watson! — exclamouHolmes por fim, com voz ainda vacilante. —Devo agradecer-lhe e, ao mesmo tempo,apresentar-lhe desculpas. Essa prova, que,para mim só, seria imperdoável, é duplamenteimperdoável porque envolvi nela um queridoamigo. Não sei como devo pedir-lhe perdão.

— Você bem sabe — respondi emocionado(pois jamais me fora dado ver Holmes tãoafetuoso) — que para mim a maior alegria, omáximo privilégio consiste em poder ser-lheútil.

Meu amigo voltou imediatamente ao tomirônico que o caracterizava.

— Seria supérfluo agirmos como loucos,Watson. Qualquer observador desprevenidoafirmaria por certo que já o estávamos aotentar tão temerária experiência. Confesso,porém, que nunca imaginei que o efeitopudesse ser tão violento e instantâneo.

Entrou correndo em casa, reapareceu com o lampião ainda aceso, conservando-o àdistância, e arremessou-o sobre um monte de galhos secos.

— Devemos esperar que a atmosfera do quarto se purifique. Suponho, Watson, que nãoalimente a menor sombra de dúvida quanto à maneira pela qual essas tragédias ocorreram.

— Absolutamente nenhuma.

— A causa, no entanto, permanece tão obscura como antes. Sentemo-nos debaixo destecaramanchão para discutir o assunto. Aquela maldita droga parece ainda me apertar agarganta. Somos obrigados a admitir que, na primeira tragédia, o criminoso foi MortimerTregennis, apesar de ele ter sido a vítima na segunda. Não nos esqueçamos da história dabriga de família, seguida de um apaziguamento. Todavia, não sabemos até que ponto foi olitígio, nem o valor efetivo da reconciliação. Quando evoco Mortimer Tregennis, com aquelacara de raposa matreira, com aqueles olhos redondos e astutos brilhando por trás dosóculos, não o julgo homem suscetível de perdoar alguém. Além disso, deve recordar-se deque a idéia de um vulto movendo-se no jardim, a qual nos desviou momentaneamente aatenção da causa real do trágico evento, partiu dele. Tinha motivos para nos despistar. E,finalmente, se não foi ele quem atirou essa substância no fogo no momento em queabandonou a sala, quem mais poderia tê-lo feito? A coisa sucedeu logo depois da partidadele. Se alguma pessoa tivesse aparecido, a família evidentemente teria deixado a mesa.Por outro lado, neste pacífico condado da Cornualha, não se fazem visitas depois das dezhoras da noite. Portanto, todos os indícios apontam Mortimer Tregennis como o únicoculpado.

— Então sua própria morte foi um suicídio!

— Bem, Watson, à primeira vista tal hipótese não parece impossível. Um homem, sobrecuja consciência pesa a culpa de um crime tão hediondo contra a própria família, poderiamuito bem, levado pelo remorso, infligir a si mesmo idêntico fim. Há, contudo, fortesargumentos contra tal suposição. Felizmente, existe alguém na Inglaterra que tudo sabe aesse respeito, e eu providenciei para que possamos ouvir os fatos, de seus próprios lábios,

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Gilbert Halliday, 1910

ainda esta tarde. Ah! Aí vem ele um pouco antes da hora... Queira vir por aqui, dr. LeonSterndale. Estivemos realizando dentro de casa uma experiência química, a qual reduziunossa saleta a condições absolutamente inadequadas para receber tão ilustre visitante.

Eu ouvira o ranger do portão do jardim e vira surgir na passagem a majestosa figura dogrande explorador da África, que se voltou com certa surpresa para o rústico caramanchãosob o qual estávamos sentados.

— Recebi há cerca de uma hora o bilhete com que mandava me chamar, sr. Holmes, e porisso aqui estou, apesar de não saber por que deveria obedecer às suas ordens.

— Talvez possamos esclarecer a situação antes de nos separarmos — replicou Holmes. —Por enquanto, fico-lhe muito grato pela cortês aquiescência. O senhor vai desculpar-nosesta recepção ao ar livre, mas meu amigo Watson e eu quase fornecemos mais umcapítulo ao que os jornais chamam de "O horrível mistério da Cornualha", e por orapreferimos uma atmosfera mais saudável. Entretanto, como o assunto que vamos discutir ointeressa particularmente de modo bastante íntimo, é melhor que conversemos em lugaronde ninguém nos possa ouvir.

O explorador tirou o charuto da boca e encarou fixamente meu companheiro.

— Não consigo atinar qual possa ser o assunto que me interessa de forma tão pessoal eíntima — respondeu.

— Refiro-me ao assassinato de Mortimer Tregennis — explicou Holmes.

Naquele momento desejei estar armado. O rosto arrogante de Sterndale tornou-se rubrode cólera, seus olhos fuzilaram, as veias da fronte incharam, ao mesmo tempo em que selançava de punhos fechados sobre meu companheiro.

Conteve-se, porém, a tempo, e com um violento esforço recobrou a calma, uma calmarígida e fria, talvez ainda mais ameaçadora do que a explosão colérica.

— Vivi tanto tempo entre os selvagens e afastado dasleis — disse — que me habituei a fazer justiça porminhas próprias mãos. Rogo-lhe que não esqueçaisso, sr. Holmes, pois não é meu desejo causar-lhenenhum mal.

— Nem eu tenho o desejo de molestá-lo, dr.Sterndale. A prova mais evidente disso é que,sabendo o que sei, mandei chamá-lo, e não à polícia.

Sterndale deixou-se cair sentado no banco com umgemido, subjugado, talvez pela primeira vez, em todaa sua aventurosa existência. Da atitude de Holmes,calma e segura, emanava tão grande autoridade quea ninguém era dado resistir. Nosso visitante titubeoupor instantes, abrindo e fechando as enormes mãos,presa de intensa agitação.

— O que o senhor pretende dizer? — indagou por fim.— Se tenciona divertir-se à minha custa, está muitoenganado. Deixemos de rodeios. O que quer de mim?

— Vou já dizê-lo — retorquiu Holmes —, e faço-o naesperança de que minha franqueza sejacorrespondida. Meu próximo passo vai depender damaneira como o senhor se defender.

— Defender-me?

— Precisamente.

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— Mas defender-me de quê?

— Da acusação de ter assassinado Mortimer Tregennis.

Sterndale enxugou a testa com um lenço.

— Com franqueza, o senhor está ultrapassando os limites. Será que todos os seus êxitosdependem dessa prodigiosa capacidade de blefar?

— Se alguém está blefando aqui — observou Holmes em tom severo —, é o senhor, dr.Sterndale, e não eu. Como prova, contar-lhe-ei alguns fatos nos quais baseei minhasconclusões. Nada direi de seu regresso de Plymouth, deixando grande parte da bagagemprosseguir viagem para a África, a não ser que tal atitude me indicou que o senhor era umdos fatores que deveriam ser considerados na reconstituição do drama...

— Eu voltei...

— Já me explicou as razões, mas eu as considero pouco convincentes e inadequadas.Mas deixemos isso de parte. O senhor me procurou para me perguntar de quem eususpeitava. Recusei-me a responder-lhe. Dirigiu-se então à casa do vigário, esperou algumtempo do lado de fora e por fim regressou à sua residência.

— Como sabe?

— Eu o segui.

— Não vi ninguém.

— Pode estar certo de que isso sucederá sempre que eu o seguir. O senhor passou toda anoite em claro, e formulou certos planos que resolveu pôr em prática logo ao alvorecer.Saindo de casa ao romper do dia, encheu os bolsos com pedrinhas avermelhadas quejaziam num monte junto a seu portão.

Sterndale estremeceu violentamente e fitou Holmes, aturdido.

— O senhor venceu, então, a passos rápidos, o quilômetro e meio que o separava da casada paróquia. Acrescentarei que usou o mesmo par de tênis que tem agora nos pés. Aochegar lá, atravessou o pomar e a sebe lateral e colocou-se embaixo da janela do quartode Tregennis. Embora fosse dia claro, o silêncio dentro da casa era completo. Tiroualgumas pedrinhas do bolso e atirou-as contra a janela do pavimento superior.

Sterndale pôs-se de pé num pulo.

— Mas o senhor é o Diabo em pessoa! — exclamou.

Holmes sorriu diante do cumprimento.

— Foi preciso atirar dois ou talvez três punhados de pedras, para que Tregennisaparecesse à janela. Pediu-lhe, então, que descesse. Ele se vestiu às pressas e foi para asala de estar. O senhor entrou pela janela. Seguiu-se entre ambos um rápido colóquio,durante o qual o senhor ficou andando de um lado para outro na sala. Saiu, em seguida,pelo mesmo caminho, fechou a janela e permaneceu no relvado do lado de fora, fumandoum cigarro e observando os acontecimentos. Finalmente, depois da morte de Tregennis,retirou-se como viera. E agora, dr. Sterndale, como justifica tal conduta, e quais os motivosque o levaram a proceder assim? Se tentar lograr-me, por pouco que seja, dou-lhe minhapalavra de honra de que passarei definitivamente o caso para outras mãos.

O rosto de nosso visitante tornou-se lívido ao ouvir essas palavras. Ficou sentado poralgum tempo, silencioso e pensativo, o rosto apoiado nas mãos. Por fim, com um gestoimpulsivo, arrancou uma fotografia do bolso do casaco e atirou-a em cima da mesa rústica,diante de nós.

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— Eis por que fiz isso — explicou.

A fotografia reproduzia o busto e o rosto de uma mulher belíssima. Holmes inclinou-separa observá-la.

— Brenda Tregennis — disse.

— Sim, Brenda Tregennis — repetiu nosso visitante.

— Há anos que nos amávamos. É esse o segredo de meu isolamento na Cornualha, de quetoda gente se admirava. Só assim podia estar próximo da única criatura que me era carano mundo. Não podia casar-me com ela porque tenho uma mulher, que me abandonou hámuitos anos e da qual, por culpa das odiosas leis inglesas, ainda não pude divorciar-me.Durante anos Brenda esperou. Durante anos eu esperei. E eis o resultado de nossaespera.

Um violento soluço abalou-lhe a figura gigantesca, e ele comprimiu a garganta com amão. Depois, num supremo esforço, conseguiu dominar-se e continuou:

— O vigário sabia de tudo. Era nosso confidente. Ele lhes dirá que ela era um verdadeiroanjo na terra. Foi por isso que ele me telegrafou e eu voltei. Que me importavam asbagagens ou a África, diante do que sucedera à minha querida Brenda? Aí tem, sr. Holmes,a explicação que faltava para meu procedimento.

— Continue — solicitou meu amigo.

O dr. Sterndale tirou do bolso um embrulho de papel e depositou-o sobre a mesa. Porfora estava escrito: "Radix pedis Diaboli", e logo abaixo, num rótulo vermelho, lia-se:"Veneno". Empurrou o pacote em minha direção.

— Sei que o senhor é médico — disse. — Já ouviu falar neste preparado?

— Raiz de pé-do-diabo! Não, nunca.

— Isso, aliás, não compromete seus conhecimentos profissionais — acrescentou —, poisacredito que, com exceção da amostra existente em um laboratório de Budapeste, não háoutro exemplar na Europa. Ainda não encontrou lugar nem na farmacopéia, nem nostratados de toxicologia. A raiz tem o formato de um pé, meio humano, meio caprino; daí onome fantástico que lhe foi dado por certo botânico missionário, É usada como veneno, emprovas punitivas, pêlos curandeiros de algumas regiões da África ocidental, que aconservam em segredo entre eles. Foi-me possível obter esta amostra específica na zonade Ubangui, em circunstâncias verdadeiramente extraordinárias.

Abriu o pacote, enquanto falava, e exibiu-nos certa quantidade de um pó castanho-avermelhado, semelhante a rapé.

— E então? — perguntou Holmes em tom severo.

— Vou explicar-lhe tudo quanto de fato aconteceu, pois já sabe tanto que é de meuinteresse que conheça o resto. Já lhe expus minhas relações com a família Tregennis. Porcausa da irmã, cultivava a amizade dos irmãos. Após certa desavença doméstica porquestões de dinheiro, Mortimer afastou-se dos outros, mas parece ter havido umareconciliação, e eu voltei a encontrar-me com ele, como fazia com os demais. Era astuto,sutil, intrigante, e por várias razões chegara a suspeitar dele; no entanto, jamais deumotivos para qualquer desavença séria entre nós.

"Um dia, há cerca de duas semanas, esteve em minha casa, e eu lhe mostrei algumas deminhas curiosidades africanas. Entre outras coisas, dei-lhe a conhecer este pó, e contei-lhesuas estranhas propriedades, a maneira como estimula os centros nervosos cerebrais quecontrolam a sensação do medo e como provoca a loucura ou a morte do infeliz nativoexposto a seus efeitos pelo feiticeiro da tribo. Expliquei-lhe também a ignorância em que seencontrava a ciência europeia a seu respeito. Não sou capaz de lhe dizer como conseguiuapoderar-se dele, pois nem pôr um instante me afastei da sala, mas com certeza deve tê-lo

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feito enquanto eu abria armários ou me inclinava diante de alguma caixa. O fato é quesubtraiu certa quantidade de raiz de pé-do-diabo. Recordo-me perfeitamente de que mecumulou de perguntas sobre a quantidade e o tempo necessário para que produzisse oefeito desejado, mas eu estava bem longe de imaginar que tivesse um motivo pessoal parafazê-lo.

"Não pensei mais no assunto até receber em Plymouth o telegrama do vigário. Aquelemonstro supunha que eu me encontraria em alto-mar quando recebesse a notícia, e que meperderia durante anos no coração da África. Mas, contra sua expectativa, volteiimediatamente. Como é óbvio, mal me inteirei dos pormenores da tragédia,- compreendique alguém usara meu veneno. Procurei então o senhor para ver se por acaso encontraraoutra explicação. Mas não podia haver outra. Estava convencido de que o assassino eraMortimer Tregennis; por amor ao dinheiro e talvez com a idéia de que, se os demaismembros da família ficassem loucos, ele assumiria, sozinho, a tutela do conjunto dos bens,usara contra eles o pó venenoso, enlouquecendo os dois irmãos e matando a irmã Brenda,a única criatura que amei na vida, e que me amava. Aí estava seu crime; qual o castigo quelhe cabia? Deveria eu apelar para a justiça? Onde estavam minhas provas? Eu sabia detudo, mas conseguiria fazer um júri de aldeãos acreditar em tão fantástica história? Apossibilidade parecia-me remota. Contudo, não podia arriscar-me a um malogro. Minhaalma clamava por vingança. Já lhe disse, sr. Holmes, passei tão grande parte da vida longeda lei, que acabei finalmente por ditar eu próprio minhas leis. E assim sucedeu tambémneste caso. Decidi que ele devia compartilhar a mesma sorte que infligira aos outros. Ouisso, ou então eu faria justiça por minhas mãos. Em toda a Inglaterra, não existe nestemomento homem algum que dê menos valor à própria vida do que eu.

"Agora já lhe contei tudo. O resto o senhor mesmo nos deu a conhecer. De fato, comodisse, após uma noite de insônia, saí cedo de casa. Prevendo a dificuldade de acordá-lo,apanhei um punhado de pedrinhas do monte a que se referiu e servi-me delas paralançá-las contra a janela. Ele desceu e fez-me entrar pela janela da sala de estar. Eu oacusei do crime. Afirmei-lhe estar ali como juiz e algoz. O miserável deixou-se cair numacadeira, paralisado de terror diante de meu revólver. Acendi o lampião, despejei-lhe emcima o pó e coloquei-me fora da janela, pronto a executar minha ameaça de matá-lo, casoprocurasse abandonar a sala. Morreu ao cabo de cinco minutos. Meu Deus! Que morte!Meu coração, porém, estava empedernido, pois Mortimer não sofreu nada que minhainocente Brenda não tivesse suportado antes dele. Eis minha história, sr. Holmes. Talvez,se amasse uma mulher, o senhor tivesse feito o mesmo. De qualquer forma, estou em suasmãos. Faça de mim o que quiser. Como já lhe disse, não há ninguém no mundo que receiemenos a morte do que eu."

Holmes permaneceu algum tempo em silêncio.

— Quais eram seus planos? — perguntou por fim.

— Tencionava embrenhar-me no centro da África. Meu trabalho ali ficou pela metade.

— Pois vá terminá-lo — sentenciou Holmes. — Eu, pelo menos, não tenho a menor intençãode impedi-lo.

O dr. Sterndale ergueu seu vulto gigantesco, inclinou-se gravemente e saiu docaramanchão. Holmes acendeu o cachimbo e estendeu-me a bolsinha de tabaco.

— Algumas fumaças não venenosas constituirão um agradável derivativo — observou. —Espero que concorde comigo, Watson, em que este é um caso no qual não devemosinterferir. Nossa investigação foi independente, e independente será também nosso modode agir. Você teria coragem de denunciar esse homem?

— Certamente que não — respondi.

— Nunca amei, Watson, mas, se amasse, e minha eleita tivesse tido semelhante destino,com certeza agiria como nosso destemido caçador de leões. Quem sabe? Bem, Watson,não quero ofender-lhe a inteligência explicando o óbvio. As pedrinhas encontradas nopeitoril da janela estabeleceram, naturalmente, o ponto de partida de minhas pesquisas.Eram em tudo diferentes das do jardim do vigário. Somente quando volvi a atenção para o

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dr. Sterndale e para sua residência é que vi de onde provinham. O lampião aceso em plenodia e os resíduos do pó na manga do lampião formaram um encadeamento fácil de seguir.E agora, meu caro, creio que podemos varrer da mente esse desagradável assunto, eregressar de consciência leve ao estudo daquelas raízes caldaicas, cujos vestígios devemser encontrados com certeza no ramo da grande língua céltica que se fala na Cornualha.

Ilustrações: Gilbert Halliday, cortesia The Camden House

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Arthur Conan Doyle

Seu Último Adeus

Título original: His Last Bow Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1917.

Sobre o texto em português

Este texto digital reproduz atradução de His Last Bow publicado em

As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VI,editado pelo Círculo do Livro

e com tradução de Lígia Junqueiro.

Eram nove horas da noite de 2 de agosto — o mais terrível agosto da história domundo. Já se podia imaginar que a maldição divina caia ameaçadora sobre a humanidadedegenerada, pois na atmosfera parada e sufocante pairava um soturno silêncio e uma vagasensação de inquieta expectativa. O sol já se pusera há muito, e, não obstante, uma faixasangüínea, semelhante a uma ferida aberta, estendia-se ainda no horizonte distante. Noalto, as estrelas brilhavam, e, embaixo, cintilavam na baía as luzes das embarcações. Osdois famosos alemães encontravam-se junto do parapeito de pedra da alameda do jardim,de costas para a extensa casa baixa, ornada de pesados frontões, olhando para a amplacurva da praia que se desenrolava aos pés da enorme rocha calcária, sobre a qual VonBork, como águia errante, há quatro anos tomara o seu pouso. Estavam de pé, com ascabeças quase unidas, e conversavam em tom baixo e confidencial. Vistas de baixo, aspontas acesas dos seus charutos pareciam os olhos flamejantes de algum espírito malignoa perscrutar as trevas.

Homem extraordinário, esse Von Bork — criatura que dificilmente encontraria paraleloentre todos os fiéis agentes do cáiser. Foram os seus dotes particulares que desde, logo oindicaram para a missão inglesa, a mais importante de todas, e, desde o momento em quea empreendera, esses dotes haviam-se tornado cada vez mais patentes à meia dúzia depessoas que, no mundo inteiro, se achavam em contato direto com a verdade. Uma dessasera o seu atual companheiro, o barão Von Herling, primeiro-secretário da legação, cujopossante Benz, de 100 hp, atravancara a estrada, enquanto esperava o seu proprietário, afim de levá-loa Londres.

— A julgar pelo rumo que tomam os acontecimentos, você provavelmente estará deregresso a Berlim dentro de uma semana — dizia o secretário. — Quando lá chegar, meucaro Von Bork, creio que ficará surpreso com a acolhida que lhe está sendo preparada.Estou a par de tudo o que se pensa nas mais altas esferas a respeito da atividadedesenvolvida por você neste país.

O secretário era um homem gigantesco, alto e de compleição robusta, dotado de ummodo de falar pausado e persuasivo, que constituía o principal segredo de seu êxito nacarreira política.

Von Bork riu.

— Essa gente não é muito difícil de lograr — observou. — Não se pode imaginar povo maisdócil e simplório.

— Não diria isso — respondeu o outro, pensativo. — Eles possuem curiosas limitações,que é necessário aprender a observar. É essa simplicidade superficial que induz em erro oestrangeiro. A primeira impressão que se tem deles é de que são inteiramente maleáveis.Depois, subitamente, surge-nos pela frente algo de muito sólido, e verificamos queatingimos o limite e precisamos nos adaptar à realidade. Têm, por exemplo, as suas

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convenções insulares, as quais, por si sós, devem ser olhadas com atenção.

— Refere-se às regras de bom tom e a todo o resto? — suspirou Von Bork, como alguémque sofrera muito.

— Refiro-me aos preconceitos britânicos com todas as suas ridículas manifestações. Atítulo de ilustração, posso lhe citar um dos meus piores descuidos... permito-me falar-lhedos meus descuidos, pois você conhece bem a minha obra para saber dos meus êxitos. Ofato ocorreu na minha primeira chegada aqui. Eu tinha sido convidado para uma reunião defim de semana na casa de campo de um membro do gabinete. A conversa eraextraordinariamente indiscreta.

Von Bork concordou com um movimento de cabeça.

— Eu também estava lá — observou secamente.

— Exato. Pois bem; como era natural, enviei a Berlim um resumo do que ouvira. Porinfelicidade, nosso bom chanceler tem a mão algo pesada nesses assuntos e transmitiuuma nota em que mostrava estar ciente de tudo quanto fora dito. Isso, como é natural, fezcom que eu fosse apontado como a fonte das informações. Não pode imaginar o dano queesse fato me causou. Posso lhe garantir que não houve nada de delicado na atitude dosnossos amigos ingleses naquela ocasião. Suportei dois anos esse estado de coisas. Agora,você, com essa sua pose esportiva...

— Não, não; não a chame de pose, que é coisa artificial; isto é espontâneo. Sou umesportista nato. O esporte me agrada muito.

— Justamente; ainda produz melhor resultado. Você compete com eles em corridas deiate, acompanha-os na caça, joga pólo, rivaliza com eles em qualquer competição, suaquadriga alcança o primeiro prêmio no Olympia. Ouvi mesmo dizer que chega ao ponto depraticar pugilismo com os jovens oficiais. E qual é a conseqüência? Ninguém o leva a sério.Você é considerado "um camaradão", "um tipo demasiado bom para ser alemão", umbebedor resistente, um freqüentador de clubes noturnos, um boêmio, enfim. E, no entanto,esta sua tranqüila casa de campo é o centro de metade das embrulhadas que ocorrem naInglaterra. Quanto ao elegante esportista, é o mais astuto agente de espionagem daEuropa. Isso se chama gênio, meu caro Von Bork...gênio!

— Você me desvanece, barão! Entretanto, posso lhe garantir que os meus quatro anosneste país não foram improdutivos. Mas ainda não lhe mostrei o meu pequeno depósito.Quer entrar um instante?

A porta do escritório dava para o terraço. Von Bork empurrou-a e, tomando a dianteira,apertou o botão da luz elétrica. Tornou a fechar a porta atrás do seu corpulentocompanheiro e baixou cautelosamente a cortina sobre a janela provida de grades. Sódepois de ter tomado todas essas precauções é que volveu o rosto aquilino e queimado dosol para a sua visita.

— Alguns dos meus documentos já seguiram — explicou. — Quando minha mulher e oscriados partiram ontem para Flushing, levaram os menos importantes. Naturalmente,preciso pedir a proteção da embaixada para os outros.

— O seu nome já foi incluído na comitiva. Não surgirão dificuldades para você ou para asua bagagem. Afinal, pode ser que nem precisemos partir. Talvez a Inglaterra abandone aFrança ao seu destino. Sabemos que entre elas não existe nenhum tratado de aliança.

— E a Bélgica?

— Com a Bélgica sucede a mesma coisa.

Von Bork meneou a cabeça.

— Não creio. Existe um acordo determinado. A Inglaterra jamais suportaria tal humilhação.

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— Pelo menos por enquanto, ela se manterá neutra.

— Mas, e a sua honra?

— Ora, meu amigo, vivemos numa época pragmática. A honra é um conceito medieval.Além disso, a Inglaterra não está preparada. Parece inconcebível; no entanto, nem o nossotributo especial de guerra, de cinqüenta milhões, que, julgo, tornou nosso propósito tãoevidente como se o tivéssemos anunciado na primeira página do Times, conseguiudespertar este povo da sua modorra. De quando em quando, surge uma interrogação. Émeu dever procurar responder-lhe. De vez em vez, alguém se irrita; cabe-me acalmá-lo.Não obstante, posso afirmar-lhe que, quanto ao essencial, isto é, reserva de munições,preparativos contra eventuais ataques de submarinos, providências para a fabricação deexplosivos de alta potência, nada disso está pronto. Como se pode, então, pensar numaintervenção da Inglaterra, mormente agora que instigamos essa sarabanda infernal daguerra civil irlandesa e Deus sabe lá que mais para manter-lhe os pensamentos voltadospara si mesma?

— Ela precisa pensar no futuro.

— Ah! Isso é outro assunto. Suponho que, quanto ao futuro, já temos, em relação àInglaterra, planos bem definidos e que as informações proporcionadas por você serão deinteresse vital para nós. Com John Bull, se não for hoje, será amanhã, e, se preferir hoje,estaremos perfeitamente preparados. Se julgar melhor amanhã, vai nos encontrar aindamais prontos. Acho que seria mais prudente ele combater junto de aliados; isso, porém, élá com ele. Esta semana decide-se o seu destino. Mas você falava dos seus documentos...

A luz brilhava em sua vasta calva, e ele sentou-se na poltrona, fumando tranqüilamente ocharuto.

Num canto da outra extremidade da enorme sala, forrada de carvalho e recoberta delivros, havia uma cortina. Von Bork afastou-a, deixando à vista um grande cofre comornatos de bronze. Em seguida, destacou da corrente do relógio uma pequena chave e,após algumas manobras na fechadura, abriu a pesada porta.

— Olhe! — disse, afastando-se para um lado e fazendo um amplo aceno com a mão.

A luz batia em cheio sobre o cofre aberto, e o secretário da embaixada olhou comgrande interesse as fileiras de compartimentos abarrotados de papéis, que o enchiaminteiramente. Cada um desses compartimentos tinha uma etiqueta, e seus olhospercorreram uma longa série de títulos, tais como: "Baixios", "Defesas portuárias","Aviões", "Irlanda", "Egito", "Fortificações de Portsmouth", "Canal da Mancha", "Rosyth" emuitos outros. Todas aquelas divisões regurgitavam de documentos e planos.

— Formidável! — exclamou o secretário, pondo de lado o charuto e batendo palmas comas mãos gordas.

— E tudo isto em quatro anos, barão. Não me parece pouca coisa para um bebedorinveterado, que passa a vida em competições hípicas! Contudo, a jóia mais preciosa daminha coleção ainda está para chegar. Já tem o espaço reservado — observou, apontandopara um compartimento vazio, onde se lia: "Sinalizações navais".

— Mas você já tem uma notável coleção de documentos .

— Papelada velha e inútil. O Almirantado pressentiu qualquer coisa e mudou todos oscódigos. Foi um golpe terrível, barão... grave retrocesso em toda a minha campanha.Graças, porém, ao meu talão de cheques e ao prestimoso Altamont, tudo estará em ordemesta noite.

O barão consultou o relógio e soltou uma exclamação gutural.

— Infelizmente, não posso me demorar mais. Como deve imaginar, os acontecimentosestão se precipitando em Cariton Terrace, e todos nós devemos estar a postos. Esperavapoder levar a notícia do seu grandioso lance, mas vejo que não me é possível. Altamont

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não marcou hora para vir?

Von Bork estendeu-lhe um telegrama:

"Irei esta noite sem falta e levarei novas velas. Altamont".

— Velas, hein?

— Como vê, ele se finge de mecânico, e eu possuo muitos automóveis. No nosso código,tudo quanto possa ter importância é indicado sob o nome de peças de motor. Quando falade "radiador", quer dizer "vaso de guerra"; uma "bomba de óleo" é um "cruzador", e assimpor diante. "Velas" quer dizer "sinalizações navais".

— Foi expedido de Portsmouth, ao meio-dia — observou o secretário, examinando amensagem telegráfica. — A propósito, quanto lhe paga?

— Por este trabalho especial, quinhentas libras; mas, como é natural, pago-lhe também umordenado.

— Que miserável! Não há dúvida de que estes traidores são úteis, mas lamento o dinheiromaldito com que os pagamos.

— Com relação a Altamont, não lamento nada. Seu trabalho é admirável. Se lhe pago bem,pelo menos me entrega a mercadoria, conforme a sua frase pitoresca. Além disso, não éum traidor. Garanto-lhe que o nosso Junker, dotado do mais profundo pangermanismo, éuma pomba inocente nos seus sentimentos contra a Inglaterra, comparado a esse fanáticoirlandês-americano.

— Oh! É irlandês da América?

— Se você o ouvisse falar, não teria a menor dúvida. Algumas vezes custa-me entendê-lo.Parece ter declarado guerra tanto ao rei inglês como ao inglês do rei... Mas precisa mesmoir? Ele deve chegar a qualquer momento.

— Sinto muito, mas já é tarde. Nós o esperaremos amanhã de manhã, e, quando tiver feitopassar esse livro de sinais através da portinhola, pelas escadas do Duke of York, poderápôr um "Finis" triunfal à sua missão na Inglaterra. Que é isso? Um tocai? — exclamourepentinamente, apontando para uma garrafa coberta de poeira e fortemente arrolhada,que se encontrava numa bandeja entre dois copos.

— Aceita um copo antes de partir?

— Não, obrigado. Mas tenho a impressão de que vai haver um festim.

— Altamont tem bom paladar em questão de vinhos e apaixonou-se pelo meu tocai. É umtipo muito sensível, e preciso enchê-lo de pequenas atenções. Tive necessidade de estudarbem o gênio dele.

Eles tinham saído para o terraço e atravessaram-no até o outro extremo, onde, a umtoque do motorista do barão, o motor do enorme carro pôs-se a funcionar.

— Aquela deve ser a iluminação de Harwich, suponho eu — observou o secretário, vestindoo casaco. — Como tudo parece calmo e imóvel! Talvez haja outras luzes no decurso dasemana, e as costas da Inglaterra se tornem menos tranqüilas! É possível que os céustambém não permaneçam tão pacíficos se tudo o que nos promete o nosso bom Zeppelinse tornar realidade. Mas, quem é aquela mulher?

Através da única janela iluminada, via-se um lampião, e, sentada a uma mesa, junto aele, estava uma simpática velhota rubicunda, com uma touca na cabeça. Curvada sobre umbordado, absorta no seu trabalho, interrompia-o de quando em quando para acariciar umenorme gato preto que dormitava numa banqueta ao lado.

— É Martha, a única criada que ficou comigo.

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O secretário riu.

— Quase poderia personificar a Britânia — comentou —, com aquele ar inteiramenteabsorto e seu aspecto geral de sonolência. Bem, até a vista, Von Bork!

Com um último aceno de despedida, pulou para o automóvel, e dali a instantes os doisfeixes de luz dos faróis irrompiam através da escuridão. O secretário recostara-se nomacio encosto da luxuosa limusine, e a sua mente estava de tal modo absorvida pela ideiada iminente tragédia européia que nem percebeu que, quando o seu carro atingiu a entradada cidade, por pouco não abalroou um minúsculo Ford que seguia em direção oposta.

Assim que as luzes do automóvel se dissiparam ao longe, Von Bork pôs-se lentamente acaminho de seu escritório. De passagem, observou que a velha governanta apagara olampião e se recolhera. O silêncio e as trevas em que se achava mergulhado o vastoedifício constituíam para ele inusitada experiência, pois a sua família era grande e acriadagem, numerosa. Sentia, porém, profundo alívio ao pensar que todos se encontravama salvo e que, com exceção da velha criada, a casa inteira estava à sua disposição. Tinhaainda muita coisa para pôr em ordem no escritório, e meteu mãos à obra até o seu rostovivo e atraente se tornar rubro com o calor das chamas dos documentos que ia queimando.Pegando uma maleta de couro, que se achava ao lado da mesa, começou a depositar nela,com todo o cuidado e método, o precioso conteúdo do cofre. Entretanto, mal principiaraeste trabalho, seus ouvidos aguçados perceberam o ruído distante de um automóvel.Soltou, no mesmo instante, uma exclamação de júbilo, fechou a maleta, trancou o cofre eprecipitou-se para o terraço. Chegou exatamente a tempo de ver os faróis de um pequenocarro apagarem-se diante do portão. Um passageiro saltou dele e dirigiu-se a passosapressados em sua direção, enquanto o motorista, homem idoso, de compleição robusta ebigodes grisalhos, se acomodava melhor no assento, como quem se resigna a longaespera.

— Então? — perguntou ansiosamente Von Bork, correndo ao encontro do visitante.

Como resposta, o homem agitou acima da cabeça, num gesto de triunfo, um pequenoembrulho de papel pardo.

— Pode felicitar-me hoje, meu caro. Aqui está finalmente o tão desejado toucinho.

— As sinalizações?

— Como lhe disse no telegrama. Aqui estão todas: sinais semafóricos, códigos delâmpadas, Marconi... as cópias, bem entendido, não os originais. Isso seria demasiadoperigoso. A coisa, porém, é perfeita, pode estar certo — acrescentou, dando com rudefamiliaridade uma palmada nas costas do alemão, que se contraiu com um movimentoinstintivo de repulsa.

— Entre — disse. — Estou sozinho em casa. Estava apenas à sua espera. Naturalmente,uma cópia é preferível ao original. Se dessem pela falta dele, alterariam tudo. Tem certezade que a reprodução é exata?

O irlandês-americano entrara no escritório e atirara-se numa poltrona, estendendo asintermináveis pernas. Era um homem alto e magro, dos seus sessenta anos, de fisionomiaaguda e queixo ornado com uma barbicha de bode que o fazia assemelhar-se vagamente auma caricatura do Tio Sam. De um canto da boca pendia-lhe um charuto meio fumado,meio mastigado. Assim que se sentou, riscou um fósforo para acendê-lo de novo.

— Preparando-se para partir? — indagou, olhando em redor. — Eh! amigo — acrescentou,enquanto o seu olhar pousava no cofre, cuja cortina tinha sido afastada —, não me diga queguarda os seus documentos naquilo!

— Por que não?

— Que diabo! Num lugar tão exposto como esse? E, depois, o senhor é um espião! Ora,qualquer ladrão americano seria capaz de arrombá-lo com um abridor de latas. Se eu

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soubesse que qualquer das minhas cartas iria parar numa coisa assim, jamais asescreveria.

— O mais hábil arrombador não seria capaz de forçar este cofre — retorquiu Von Bork. —Não há instrumento que consiga cortar-lhe o metal.

— Mas, e a fechadura?

— Também não. Possui um segredo duplo. Sabe o que significa isso?

— Macacos me mordam! — redargüiu o americano.

— Não é suficiente formar apenas uma palavra, mas também uma série de algarismos,para que ela funcione — disse, levantando-se e mostrando ao redor do orifício dafechadura um disco de dupla radiação. — Este de fora é para as letras e o de dentro, paraos algarismos.

— Bem imaginado, não há dúvida.

— Não é, portanto, tão simples como você pensava. Mandei fazê-lo há quatro anos. Écapaz de adivinhar a palavra e o número que escolhi?

— Não.

— Agosto e 1914, aí está.

A fisionomia do americano exprimiu surpresa e admiração.

— Com os diabos! Foi bem pensado!

— Sim; na ocasião, poucos de nós poderíamos adivinhar a data. Mas aí está ela, eamanhã de manhã encerro as minhas atividades.

— Bem, acho que vai precisar dar um jeito na minha vida. Não pretendo ficar sozinho nestemiserável país. Pelo que vejo, dentro de uma semana ou menos, John Bull vai se colocarnas patas traseiras e começar o ataque. Prefiro observá-lo do outro lado do canal.

— Mas você não é cidadão americano?

— Ora, Jack James também era, e no entanto o meteram na cadeia em Portland. Nãoadianta a gente dizer aos guardas ingleses que é cidadão americano. "Aqui imperam a lei ea ordem britânicas", afirmam eles. E por falar em Jack James, meu caro, parece que vocênão se preocupa muito em proteger os seus auxiliares.

— Que quer insinuar? — perguntou Von Bork em tom incisivo.

— Bem, é o chefe, não é? Cabe-lhe providenciar que não caiam em desgraça. Entretanto,eles caem, e quando é que você se dá ao trabalho de socorrê-los? James, por exemplo... — Esse era louco.

— Bem, realmente, no fim ele ficou meio maluco. Também não era para menos, tendo detrabalhar dia e noite com uma centena de agentes nos calcanhares, prontos paraalgemá-lo. E agora chegou a vez de Steiner...

Von Bork estremeceu violentamente, e seu rosto bronzeado tornou-se pálido.

— Que aconteceu a Steiner?

— Aconteceu que foi apanhado, eis tudo. Invadiram sua loja ontem à noite, e ele, comtodos os seus documentos, foi parar na prisão de Portsmouth. Você vai embora e ele,pobre-diabo, terá que aguentar o repuxo e ainda se dar por satisfeito se conseguir salvar apele. Eis por que tenciono atravessar o canal tão depressa como você.

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Von Bork era forte e dominava-se perfeitamente; contudo, era fácil perceber que anotícia o abalara.

— Como teriam eles apanhado Steiner? — murmurou. — É o fato mais lamentávelsucedido até agora.

— Ora, por pouco não aconteceu coisa pior, pois tenho a impressão de que já andam naminha pista.

— Não é possível!

— Afirmo-lhe que é. A dona da pensão em que moro, no caminho de Fratton, já foiinterrogada, e, quando eu soube disso, achei que tinha chegado o momento de me pôr asalvo. Mas o que não posso compreender é como a polícia consegue saber dessas coisas.Steiner é o quinto homem que você perde desde que estou a seu serviço, e, se eu nãoescapar a tempo, saberei muito bem quem será o sexto. Como explica isso? Não seenvergonha de ver seus homens desaparecerem deste modo?

Von Bork tornou-se rubro de cólera.

— Como ousa falar dessa maneira?

— Se não ousasse, meu caro, não estaria a seu serviço. Mas vou lhe dizer sem rodeiosaquilo que penso. Ouvi dizer que vocês, alemães, quando um agente já cumpriu sua missão,não se importam com o fato de ele ser posto de molho.

Von Bork pôs-se de pé num salto.

— Você se atreve a insinuar que traí meus próprios agentes?

— Não chego a tanto, meu amigo, mas há algo em tudo isto, e cabe a você desvendá-lo.Seja como for, não quero correr mais riscos. Vou para a pequenina Holanda, e quanto maisdepressa melhor.

Von Bork tinha dominado a sua cólera.

— Temos sido amigos há muito tempo para discutir agora, no momento exato da vitória —disse. — Você realizou um trabalho esplêndido e correu perigos dos quais não posso meesquecer. Vá, pois, sem demora, para a Holanda, e em Rotterdam poderá tomar um vaporpara Nova York. Daqui a uma semana, nenhuma outra linha de navegação oferecerásegurança. Levarei esse livro com o resto dos documentos.

O americano conservava o pacote na mão, mas não fazia a menor menção deentregá-lo.

— E a coisa? — perguntou.

— O quê?

— O cobre? O pagamento? As quinhentas libras? O artilheiro tornou-se exigente à últimahora, e, se eu não lhe tivesse passado mais cem dólares, nada teria conseguido. "Nadafeito!", respondia-me ele, e o fazia com convicção, mas os últimos cem o amoleceram. Abrincadeira me custou ao todo duzentas libras, e por isso é lógico que eu não queira medesfazer da mercadoria sem receber a minha parte.

Von Bork esboçou um sorriso amargo.

— Você não parece ter em grande conceito a minha honra — observou. — Exige o dinheiroantes de me entregar o livro.

— Negócios são negócios, meu caro.

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— Muito bem; como quiser.

Sentou-se à mesa e preencheu rapidamente um cheque, mas, antes de entregá-lo aoamericano, estacou.

— No fim de contas, se são essas as condições, Altamont, não vejo por que deva confiarmais em você do que você em mim. Percebe? — acrescentou, olhando por cima do ombropara o companheiro. — Aqui está o cheque, em cima da mesa. Reclamo o direito deexaminar esse pacote antes de lhe entregar o cheque.

O americano estendeu-lhe o volume. Von Bork desfez o nó do barbante que o amarravae desembrulhou os dois papéis do invólucro. Perplexo, contemplou, em silêncio, o livrinhoazul que jazia à sua frente, em cuja capa se lia em letras douradas: "Manual prático deapicultura". Pouco tempo, porém, sobrou ao célebre espião para contemplar esse títuloestranhamente comum. Um instante depois, sentiu-se agarrado pelo pescoço por mão deferro, enquanto uma esponja embebida em clorofórmio era mantida diante de seu rostoconvulso.

— Outro copo, Watson? — perguntouSherlock Holmes, estendendo a mão para agarrafa de tocai...

O alentado motorista, que tinha se sentadoà mesa, estendeu prontamente o seu copo.

— Bom vinho, Holmes.

— Verdadeiramente notável, Watson. O nossoamigo, ali deitado no sofá, garantiu-me queprovém da adega particular de Francisco José,do Palácio Schönbrunn. Faça o favor de abrir ajanela, pois o cheiro de clorofórmio não é agradável ao paladar.

O cofre estava entreaberto, e Holmes, empé à sua frente, retirava documento pordocumento, os quais, após rápido exame,colocava com cuidado na maleta de Von Bork.O alemão roncava estentoreamente sobre osofá, de pés e braços amarrados.

— Não precisamos ter pressa, Watson. Ninguém nos interromperá. Quer tocar acampainha? Não há mais ninguém na casa, além da velha Martha, que representou deforma admirável o seu papel. Arranjei-lhe emprego aqui, logo que comecei a tratar destecaso. Ah! Martha, pode estar sossegada; tudo correu às mil maravilhas.

A simpática velhota surgira no umbral da porta. Inclinou-se com um sorriso para. Holmes,mas volveu um olhar algo apreensivo para a figura estirada no sofá.

— Não há perigo, Martha. Ele não sofreu absolutamente nada.

— Alegro-me com isso, sr. Holmes. Apesar de tudo, era um bom patrão. Queria que eupartisse ontem com a mulher dele para a Alemanha; isso, porém, não conviria aos seusplanos, não é verdade, sr. Holmes?

— Por certo que não. Enquanto você estivesse aqui eu estaria tranqüilo. Todavia, esta noitetivemos que esperar algum tempo pelo seu sinal.

— Foi por causa do secretário, sr. Holmes.

— Já sei. O automóvel dele cruzou com o nosso.

— Pensei que nunca mais fosse embora. E eu sabia que não estava nos seus planos

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encontrá-lo aqui.

— Claro que não. Bem, isso nos acarretou uma espera de cerca de meia hora até vermosapagar-se a luz, o que nos indicava que o campo estava livre. Procure-me amanhã emLondres, no Hotel Claridge, Martha.

— Muito bem, sr. Holmes.

— Espero que esteja pronta para partir.

— Sim, senhor. Hoje ele expediu sete cartas, e eu, como de costume, copiei os endereços.

— Ótimo, Martha; vou examiná-los amanha. Boa noite. Estes papéis — prosseguiu,enquanto a velha se retirava — não são de grande importância, pois, como é natural, todasas informações neles contidas já foram enviadas há muito ao governo alemão. Trata-se dosoriginais, que não era possível alguém fazer sair impunemente do país.

— Então, são inúteis.

— Não ousaria afirmar isso, Watson. Servirão, pelo menos, para demonstrar à nossa genteo que é conhecido e o que não o é. Muitos destes documentos foram obtidos por meuintermédio, e não preciso acrescentar que são totalmente falsos. Sentir-me-ia satisfeito, nodeclínio da minha existência, se visse um cruzador alemão sulcar as águas do Solentbaseado nos planos das minas submarinas que forneci.

Interrompeu o trabalho e segurou o velho amigo pêlos ombros.

— Ainda não tive tempo de observá-lo à luz, Watson. Como os anos o têm tratado? Vocêparece o mesmo rapaz alegre de sempre.

— Sinto-me vinte anos mais novo. Poucas vezes experimentei maior felicidade do quequando recebi o seu telegrama, no qual me pedia que fosse de automóvel encontrá-lo emHarwich. Mas você, Holmes... mudou muito pouco... a não ser por essa horrenda barbicha.

— São os sacrifícios que a gente é obrigado a fazer pela pátria — explicou, alisando oapêndice piloso. — Amanhã, isto não passará de uma desagradável recordação. Com ocabelo cortado e outras pequenas modificações superficiais, reaparecerei sem dúvida noClaridge tal como era antes de me meter a macaquear o americano... perdão, Watson;receio, porém, que minha fonte de puro britânico esteja definitivamente poluída... depoisdesta empreitada americana.

— Mas você tinha se aposentado, Holmes. Soubemos que vivia como um eremita entre assuas abelhas e os seus livros, numa pequena fazenda de South Downs.

— Exatamente, Watson. E eis o fruto dos meus ócios, magnum opus dos meus últimosanos!

Retirou o volume da mesa e leu em voz alta o título por extenso: — "Manual prático deapicultura, com algumas notas sobre a segregação da rainha". Escrevi-o sozinho.Contemple o resultado de noites de reflexão e dias laboriosos, em que estudei o trabalhodos pequenos enxames como o fazia antigamente com o mundo do crime de Londres.

— Mas como recomeçou a trabalhar?

— Ah! É o que muitas vezes tenho perguntado a mim mesmo. Se fosse apenas o ministrodo Exterior, eu teria resistido. No entanto, quando o primeiro-ministro em pessoa se dignouvisitar a minha humilde morada!... O fato, Watson, é que esse cavalheiro aí no sofá erademasiado astuto para a nossa gente. Pertencia a uma classe à parte. As coisas iam demal a pior, e ninguém conseguia compreender a razão. Agentes eram alvo de suspeitas ouchegavam a ser apanhados; contudo, havia provas de uma força centralsecreta epoderosa. Tornava-se absolutamente necessário desmascará-la. Recebi urgentes epertinazes solicitações para que me ocupasse do assunto. Esta aventura custou-me doisanos, mas foi desprovida de interesse. Quando lhe disser que iniciei a minha peregrinação

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em Chicago, que ingressei numa sociedade secreta irlandesa em Buffalo, que dei sériotrabalho à polícia de Skibbereen, conseguindo assim, mais tarde, chamar sobre a minhapessoa a atenção de um subordinado de Von Bork, que me recomendou a ele comohomem promissor, você perceberá a complexidade do caso. Desde então fui honrado coma confiança do célebre espião, o que não impediu o malogro da maioria dos seus planos ea prisão de cinco dos seus melhores agentes. Eu os tinha debaixo dos olhos e apanhei-osno momento oportuno... Ora, ora, meu caro, espero que já esteja melhor!

Esta última observação era dirigida ao próprio Von Bork, que, após muito resfolegar episcar os olhos, ficara silencioso, ouvindo a explicação de Holmes. Diante dela, irrompeunuma torrente furiosa de invectivas germânicas, com o rosto transtornado pela cólera.Holmes prosseguiu no seu rápido exame dos documentos, enquanto o prisioneiro rugia epraguejava.

— Apesar de pouco melodioso, o alemão é a mais expressiva de todas as línguas —observou quando Von Bork se interrompeu, dominado pelo cansaço. — Caramba! —acrescentou, fitando com mais atenção o canto de um traçado, antes de repô-lo no cofre.— Isto servirá para meter outro pássaro na gaiola. Não imaginava que o tesoureiro doMinistério da Guerra fosse tão velhaco, embora o tivesse há muito debaixo de olho. CaroVon Bork, o senhor irá responder por muitos crimes.

O prisioneiro endireitara-se com certa dificuldade sobre o sofá e fitava o seu captor nummisto de estupor e ódio.

— Ainda ajustarei contas com você, Altamont — disse ele com vagarosa deliberação; —mesmo que leve a vida inteira, haveremos de ajustar contas.

— Sempre a mesma velha cantiga — comentou Holmes. — Quantas vezes já a ouvi emépocas passadas... Era o estribilho favorito do saudoso professor Moriarty. Dizem que ocoronel Sebastian Moran também o aprendera. E, não obstante, aqui estou eu, vivo,criando abelhas em South Downs.

— Maldito, duas vezes traidor! — vociferou oalemão, retesando os músculos num supremoesforço e encarando o adversário com furorhomicida.

— Não, não sou assim tão ruim — disseHolmes, sorrindo. — Como certamente odemonstra a minha maneira de falar, o sr.Altamont, de Chicago, não tinha existênciareal. Servi-me dele e liquidei-o.

— Quem é você, então?

— Para falar com franqueza, não importamuito quem eu seja, mas, desde que issoparece interessá-lo, sr. Von Bork, possoafirmar-lhe que esta não é a primeira vez queentro em contato com membros da suafamília. Trabalhei muitas vezes na Alemanhaem tempos idos, e talvez o meu nome não lheseja desconhecido.

— Gostaria de saber — disse o prussiano em voz ríspida.

— Fui eu quem provocou a separação entre Irene Adler e o finado rei da Boêmia, quandoseu primo Heinrich era o encarregado dos negócios imperiais na Inglaterra. Fui eu aindaquem evitou o assassinato, por parte do niilista Klopman, do conde Von und Zu Grafenstein,irmão mais velho de sua mãe. Fui eu também...

Von Bork esbugalhou os olhos, estupefato.

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— Existe apenas um homem — gritou.

— Exatamente — confirmou Holmes.

Von Bork soltou um gemido e afundou-se no sofá.

— E quase todas as minhas informações foram obtidas por seu intermédio — exclamou. —Que valor podem ter elas? Que fiz eu? Estou completamente arruinado.

— São, sem dúvida, um tanto inexatas — replicou Holmes. — Necessitam de certasverificações, e não lhe sobrará tempo para fazê-las. Seu almirante talvez ache ocalibre dos novos canhões muito maior do que ele imagina, e os cruzadores um pouco maisvelozes.

Von Bork fez um gesto desesperado.

— Há também um grande número de pormenores que, com toda a certeza, virão à luz nodevido tempo. Todavia, você é dotado de uma qualidade raríssima num alemão, Von Bork.Possui espírito esportivo e não me guardará rancor quando compreender que, tendoconseguido iludir tantos outros, acabou sendo iludido por mim. Afinal, você agiu com asmelhores intenções pelo bem do seu país, e eu fiz outro tanto pelo meu. Que pode haver demais natural? Além disso — acrescentou com certa doçura, pousando a mão no ombro doadversário subjugado —, é melhor assim do que cair diante de qualquer inimigo maisignóbil. Os documentos já estão prontos, Watson. Se quiser me ajudar a levar o prisioneiro,creio que poderemos partir para Londres imediatamente.

Não foi fácil retirar Von Bork, que erahomem forte e destemido. Finalmente,agarrando-o pêlos braços, nós doisconseguimos arrastá-lo aos poucos pelopasseio do jardim, que ele percorrera comtão orgulhosa segurança quando, algumashoras antes, recebera as congratulações dofamoso diplomata. Após um esforço final, foialojado, sempre de pés e mãos amarrados,no banco traseiro do pequeno automóvel.

— Temo que não se sinta tão cômodoquanto as circunstâncias o permitam — disseHolmes, depois de tudo arranjado. —Permite-me que acenda um charuto e oponha entre os seus lábios?

Toda a cortesia, porém, não produziuefeito naquele alemão encolerizado.

— Deve lembrar-se, sr. Sherlock Holmes —observou —, que, se o seu governo o apoianeste procedimento, isso será consideradoum ato de guerra.

— E que dizer do seu governo e de tudo quanto aqui se encontra? — retrucou Holmes,batendo com a mão na maleta.

— Não se esqueça de que é um simples indivíduo e não possui nenhuma ordem de prisãocontra mim. Seu modo de agir é ilegal e ultrajante.

— Perfeitamente. — Está raptando um súdito alemão.

— E roubando os seus documentos particulares.

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— Ainda bem que reconhece a sua situação, bem como a do seu cúmplice. Se eu gritassepor socorro ao atravessarmos a aldeia...

— Meu caro senhor, se cometesse uma tolice desse género, iria provavelmente aumentar onúmero bastante reduzido das denominações das nossas hospedarias do interior, dando aalgumas delas o título de "O Boche Amordaçado" ou coisa parecida. O inglês é pacientepor natureza; contudo, no momento atual, seu ânimo se encontra algo exaltado, e seriaprudente não excitá-lo em demasia. Não, sr. Von Bork, é melhor que nos acompanhe comcalma até a Scotland Yard, de onde poderá mandar chamar seu amigo, o barão VonHerling, a fim de ver se ele ainda quer lhe dar o lugar que lhe tinha reservado na comitiva daembaixada. Quanto a você, Watson, ouvi dizer que vai entrar de serviço, e por isso creioque Londres não está fora do seu caminho. Fiquemos um pouco aqui neste terraço, poistalvez seja esta a nossa última oportunidade de conversar comtranqüilidade.

Durante alguns minutos, ambos nos entretivemos em íntimo colóquio, recordando maisuma vez os dias passados, enquanto seu prisioneiro se debatia em vão para se livrar dascordas que o prendiam. Ao voltarmos para o automóvel, Holmes apontou para o mariluminado pela lua e abanou a cabeça, pensativo.

— Está se aproximando um vendaval do leste, Watson.

— Não creio, Holmes. Faz muito calor.

— Meu velho Watson! Você é o único ponto imutável numa era de transformação. Dequalquer maneira, levanta-se um vendaval no leste, vendaval como nunca soprou sobre aInglaterra. Será gélido e pungente, e muitos de nós poderemos perecer sob a sua rajada.Não obstante, é enviado por Deus, e, quando tiver passado, erguer-se-á à luz do sol umapátria mais pura, melhor e mais forte. Ponha o carro em movimento, Watson, pois jádevíamos estar a caminho. Tenho um cheque de quinhentas libras que preciso receber já,porque a pessoa que o passou é bem capaz de sustar seu pagamento, se puder.

Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House

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