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Padrão de política estatal em saúde e o sistema de ...programas "Medicare" e "Medicaid", nos...

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ATUALIZAÇÃO/CURRENT COMMENTS Padrão de política estatal em saúde e o sistema de assistência médica no Brasil atual* The model of state health policy and the system of medical assistance adopted in present-day Brazil Marcos de Souza Queiroz**, Ana Luíza Vianna** QUEIROZ, M. de S. & VIANNA A. L. Padrão de política estatal em saúde e o sistema de assistência médica no Brasil atual. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 26: 132-40, 1992. Pretende-se contribuir para a reflexão em torno da reforma sanitária em processo de implantação no Brasil. Defende-se o ponto de que para compreender os eventos mais recentes nessa área é necessário antes consolidar o referencial teórico que sustenta as conquistas obtidas. Nesse sentido, a reforma sanitária é entendida como uma questão que transcende os aspectos referentes à administração e à gerência do sistema de saúde, uma vez que ela necessariamente envolve um redimensionamento crítico dos conceitos de saúde, de doença e, conseqüentemente, da prática médica definida pelo paradigma mecanicista dominante da medicina. Com esta preocupação, são analisados e criticados os eventos recentes que configuram o sistema de saúde brasileiro. Descritores: Política de saúde. Sistema de Saúde. Programas nacionais de saúde. * Trabalho realizado com apoio financeiro do Conselho Na- cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Processo n o 30.1966/83-4. * Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) - UNICAMP - Campinas, SP - Brasil. Separatas/Reprints: M. de S. Queiroz - Caixa Postal 6166 - 13081-970 -Campinas, SP-Brasil. Publicação financiada pela FAPESP. Processo Saúde Coletiva 91/4994-0. Introdução Embora já se tenha acumulado conhecimento so- ciológico expressivo sobre o sistema e a política de saúde no Brasil, pouco se tem aventado sobre um problema cujos contornos se mostram cada vez mais claros, ou seja, a inadequação do paradigma médico mecanicista dominante baseado no hospital para de- finir saúde e doença e a conseqüente necessidade de se promover uma concepção social da medicina. O presente artigo pretende retomar este tema que se in- iciou de modo promissor com a tese de Arouca (1975), mas que não chegou a ser devidamente apro- fundado diante do desenrolar dos eventos que atu- almente configuram o sistema de saúde brasileiro. A Intervenção Estatal da Saúde no Brasil Como é de conhecimento geral, o processo de intervenção estatal na área da saúde no Brasil ocorreu em três períodos, caracterizando três padrões distintos: o dos governos populistas, o dos governos burocrático-autoritários e o que corres- ponde à transição democrática (Teixeira 11 ,1989). Os governos populistas imprimiram um padrão de política social caracterizada por um corporativis- mo fragmentado que, através das Caixas de Pensão e Aposentadoria, dividia a classe trabalhadora em várias categorias com privilégios diferenciais. O período autoritário-militar caracterizou-se por uma grande centralização política, financeira e oper- acional de todo o sistema de saúde através do IN- AMPS que, pelo repasse de verbas ao setor privado, passou a promover serviço médico a toda a popu- lação trabalhadora afiliada ao sistema. Esta am- pliação do poder de intervenção estatal permitiu um enorme crescimento do setor privado, provedor dire- to ou indireto de equipamentos e de serviços médi- cos, propiciando a mercantilização e a empresari- zação da medicina numa escala nunca antes atingida. Tecnologia de ponta passou a ser introduzida no trat- amento médico oferecido à população trabalhadora, ao mesmo tempo em que a rede básica de serviços de saúde, encarregada do controle das grandes endemi- as e da saúde pública em geral, se deteriorava. O crescimento do setor saúde engendrado por este sistema foi descontrolado, sem conseguir de- senvolver sistemas de referência e mecanismos de integração de seus diferentes níveis, gerando com
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ATUALIZAÇÃO/CURRENT COMMENTS

Padrão de política estatal em saúde e o sistema de assistência médica noBrasil atual*

The model of state health policy and the system of medical assistance adoptedin present-day Brazil

Marcos de Souza Queiroz**, Ana Luíza Vianna**

QUEIROZ, M. de S. & VIANNA A. L. Padrão de política estatal em saúde e o sistema de assistênciamédica no Brasil atual. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 26: 132-40, 1992. Pretende-se contribuir para areflexão em torno da reforma sanitária em processo de implantação no Brasil. Defende-se o ponto deque para compreender os eventos mais recentes nessa área é necessário antes consolidar o referencialteórico que sustenta as conquistas já obtidas. Nesse sentido, a reforma sanitária é entendida comouma questão que transcende os aspectos referentes à administração e à gerência do sistema de saúde,uma vez que ela necessariamente envolve um redimensionamento crítico dos conceitos de saúde, dedoença e, conseqüentemente, da prática médica definida pelo paradigma mecanicista dominante damedicina. Com esta preocupação, são analisados e criticados os eventos recentes que configuram osistema de saúde brasileiro.

Descritores: Política de saúde. Sistema de Saúde. Programas nacionais de saúde.

* Trabalho realizado com apoio financeiro do Conselho Na-cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico(CNPq). Processo no 30.1966/83-4.

* Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) -UNICAMP - Campinas, SP - Brasil.

Separatas/Reprints: M. de S. Queiroz - Caixa Postal 6166 -13081-970 -Campinas, SP-Brasil.

Publicação financiada pela FAPESP. Processo Saúde Coletiva91/4994-0.

Introdução

Embora já se tenha acumulado conhecimento so-ciológico expressivo sobre o sistema e a política desaúde no Brasil, pouco se tem aventado sobre umproblema cujos contornos se mostram cada vez maisclaros, ou seja, a inadequação do paradigma médicomecanicista dominante baseado no hospital para de-finir saúde e doença e a conseqüente necessidade dese promover uma concepção social da medicina. Opresente artigo pretende retomar este tema que se in-iciou de modo promissor com a tese de Arouca(1975), mas que não chegou a ser devidamente apro-fundado diante do desenrolar dos eventos que atu-almente configuram o sistema de saúde brasileiro.

A Intervenção Estatal da Saúde no Brasil

Como é de conhecimento geral, o processo de

intervenção estatal na área da saúde no Brasilocorreu em três períodos, caracterizando trêspadrões distintos: o dos governos populistas, o dosgovernos burocrático-autoritários e o que corres-ponde à transição democrática (Teixeira11,1989).

Os governos populistas imprimiram um padrãode política social caracterizada por um corporativis-mo fragmentado que, através das Caixas de Pensão eAposentadoria, dividia a classe trabalhadora emvárias categorias com privilégios diferenciais.

O período autoritário-militar caracterizou-se poruma grande centralização política, financeira e oper-acional de todo o sistema de saúde através do IN-AMPS que, pelo repasse de verbas ao setor privado,passou a promover serviço médico a toda a popu-lação trabalhadora afiliada ao sistema. Esta am-pliação do poder de intervenção estatal permitiu umenorme crescimento do setor privado, provedor dire-to ou indireto de equipamentos e de serviços médi-cos, propiciando a mercantilização e a empresari-zação da medicina numa escala nunca antes atingida.Tecnologia de ponta passou a ser introduzida no trat-amento médico oferecido à população trabalhadora,ao mesmo tempo em que a rede básica de serviços desaúde, encarregada do controle das grandes endemi-as e da saúde pública em geral, se deteriorava.

O crescimento do setor saúde engendrado poreste sistema foi descontrolado, sem conseguir de-senvolver sistemas de referência e mecanismos deintegração de seus diferentes níveis, gerando com

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isso grande desperdício de recursos. Como con-seqüência, o sistema tornou-se ineficiente e inefi-caz no sentido de promover uma melhora nosníveis de saúde da população.

O período de redemocratização que começou aocorrer ao final dos anos 70, tendo herdado amassa falida de um Estado em processo de desin-tegração, caracterizou-se na área da saúde porum repensar de todo o sistema, tendo em vista opropósito de se estabelecer uma reforma sanitáriaque efetivamente pudesse oferecer melhores con-dições de saúde. Neste novo espaço, a legitimi-zação do Estado passou a depender cada vez maisda satisfação de reivindicações e do preenchimen-to de valores provenientes da sociedade civil, emdetrimento da burocracia e de interesses corpora-tivos de geração de lucros.

Nos anos 80, com a crise econômico-financeirado país em geral e a crise da previdência social emparticular, tanto o planejamento como a gestão dosistema de saúde tornaram-se impraticáveis. O de-scontrole revelou-se na deterioração de um sistemaque, ao servir muito mais aos propósitos das ativi-dades burocráticas e às necessidades lucrativas dasempresas do que as necessidades de saúde da popu-lação, tornou-se corrupto e corruptor.

O colapso do sistema de saúde brasileiro e a ne-cessidade de uma reforma profunda em seu interiorfoi um diagnóstico consensual entre a grande mai-oria dos técnicos do setor. No entanto, se houveconvergência neste diagnóstico mais amplo, quan-do se procurou dar mais especificidade ao proble-ma, ficaram caracterizadas duas propostas diver-gentes: uma que pretendeu dimensionar a criseexclusivamente sob o ponto de vista gerencial e ad-ministrativo; e outra que, além deste aspecto, pro-curou enfatizar a inadequação do paradigma* he-gemônico da medicina no sentido de focalizar osproblemas modernos de saúde e doença. Para o pri-meiro ponto de vista, o problema da saúde e damedicina reside muito mais na irracionalidade ope-racional do sistema do que em qualquer outro fator.Para o segundo, o qual procurar-se-á defender nopresente artigo, a racionalização operativa do siste-ma de saúde seria insuficiente para resolver o pro-blema, uma vez que ele reside numa instância maisprofunda ao nível do "olhar" médico desfocalizadodos verdadeiros problemas de saúde e doença queacometem a sociedade moderna.

* O termo paradigma é entendido ao longo deste artigo nosentido empregado por Khun6 (1975), ou seja, como ummapa que governa a percepção do cientista a ponto deimpedir que ele procure por fatos e perspectivas novos.Desse modo, a ciência procura referendar o já sabido e,apenas em ocasiões especiais sob a influência de fatoressócio-culturais e econômicos, ela se toma inovadora.

A Crise da Medicina e do Setor Saúde emEscala Mundial

A crise do setor saúde não é um fenômeno ex-clusivamente brasileiro. Em países centrais, elaocorreu generalizadamente no interior de duas cri-ses mais amplas: a do estado de bem-estar social ea do paradigma mecanicista da medicina curativa.

Ao se dar conta da impossibilidade do Estadocontinuar financiando os serviços públicos essen-ciais e, dentre eles a oferta sanitária, os países cen-trais procuraram rapidamente promover um novomodelo assistencial e institucional e um novopadrão de financiamento. Os recursos limitadospara financiar os programas sociais, a consumircada vez mais esforços e meios financeiros, exigi-ram uma melhor racionalização dos custos com-preendendo uma melhoria no nível de eficiência eefetividade dos serviços ofertados.

Como lembra Vianna12 (1990), as políticas decontenção da demanda e de redução da ofertasanitária foram implantadas, por exemplo, nosprogramas "Medicare" e "Medicaid", nos EstadosUnidos dos anos 70 (e, posteriormente, de ummodo muito mais drástico, no governo Reagan -anos 80); na reorganização do "National HealthService" inglês em 1974 (e mais recentementeno governo Thatcher - anos 80); na reorgani-zação do serviço de saúde ocorrida na Alema-nha, em 1977, e no da Itália, a partir de 1978, eem muitos outros países. A maior eficiência eefetividade propostas nesses e em outros paísescentrais surgiram, portanto, como uma necessi-dade imperativa de manter as contas públicassob controle e também como a única alternativapara a manutenção do Estado na condução depolíticas sociais e a construção de legitimidadepor parte dos governos.

Para dar uma dimensão numérica à impossibili-dade de manter o sistema de saúde como vinhaocorrendo, basta citar que há trinta anos os gastostotais em saúde (como proporção do produto na-cional bruto), da maioria destes países, era de cer-ca de 4%. Hoje, após um período de grande cres-cimento econômico, a mesma proporção chega,em média, a cerca de 10%, com tendência a umcrescimento cada vez maior se forem mantidas ascondições de funcionamento anterior à reorgani-zação do sistema.

Ao lado desta crise de financiamento do siste-ma, um outro fato se destaca relativo à completaausência de evidências a comprovar que esse au-mento brutal nos gastos com este tipo de medicinatenha revertido em melhores níveis de saúde paraa população (Ehrenreich4, 1978; Powles9, 1973).A conclusão mais importante a se depreenderdesse argumento é que, num nível mais profundo,

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o problema da medicina e da saúde envolve umadimensão social que, por ser muito mais ampla,não pode ser reduzida a uma questão exclusiva-mente administrativa ou financeira.

Em realidade, a incapacidade da saúde humanaresponder favoravelmente a um maior investimen-to de esforços e de recursos financeiros nesta áreamostra que a natureza do problema reside muitomais numa ordem conceitual e epistemológica,presentes numa definição limitada de saúde edoença do que em qualquer outro fator. Esta defi-nição percebe saúde como uma simples ausênciade doença e esta como um problema individual deordem exclusivamente biológica.

Reverter o paradigma dominante no campomédico só pode significar que as causas mais pro-fundas que determinam a saúde e a doença encon-tram-se assentadas no nível social. Embora tendoas suas origens na segunda metade do século XIX(tendo Virchow na Alemanha Bismarkiana comoexpoente), esta idéia foi obscurecida (principal-mente a partir do sucesso de Pasteur em provar aexistência de microorganismos que contaminam omeio orgânico) por uma concepção biologicista emecanicista do ser humano, que concebe a doençacomo uma agressão mono-causal externa. Nestaconcepção, a doença é vista como um problemaindividual, sendo a cura uma questão de mera in-tervenção mecânica no nível biológico.

A reintrodução da questão social na determi-nação da saúde e da doença é, portanto, umfenômeno recente que teve um desenvolvimentomaior a partir da segunda metade deste século.Este novo "olhar" para a questão da saúde e dadoença recolocou a comunidade e seu meio am-biente físico e social numa posição central. Se, noentanto, a hegemonia desta nova concepção é rela-tivamente simples de ser reivindicada no campocientífico e ideológico, na prática, ela depende demuitos outros fatores de ordem socioeconômica,política e cultural.

Esta reversão deve, no entanto, ser inevitávelsimplesmente porque não há outro meio possívelde contornar a crise que envolve não só o sistemade saúde como a própria medicina enquanto ciên-cia. Por esse motivo, a proposta de um novo cen-tro de gravidade para a medicina baseado na saúdee no bem-estar de uma comunidade e não só nadoença que se manifesta em nível biológico, éválida para qualquer tipo de contexto, seja ele rela-cionado com países desenvolvidos ou sub-desenvolvidos, industrializados ou rurais e de eco-nomia de mercado ou planejada.

As tentativas mais expressivas de mostrar a ina-dequação do paradigma dominante da medicinamoderna em conceptualizar o significado de saúdee de doença foram realizadas originalmente por

autores radicais, como, por exemplo, Illich5

(1975) que, em geral, situavam-se numa posiçãomarginal tanto na área acadêmica como na institu-cional. A Organização Mundial da Saúde (OMS),em seguida, defendeu na Conferência Internacio-nal de Alma Ata2 a necessidade de se promoveruma mudança radical na percepção médica desaúde e de doença. A OMS produziu ainda um re-latório, publicado por O'Neal8 (1983), que podeser considerado um marco em que se estabelece deum modo coerente as bases fundamentais de umparadigma social da medicina.

Na conferência de Alma Ata, a ênfase recaiu naoperacionalização do conceito de saúde expressona constituição da OMS, ou seja, um estado decompleto bem-estar físico, mental e social. Comoum direito inalienável de todo o indivíduo, os ser-viços de saúde devem pressupor uma coberturauniversalizada, hierarquizada, integrada, regionali-zada e descentralizada. O aspecto revolucionárioem que se assenta tal proposta é a percepção dasaúde e da doença como numa dimensão que vaialém do organismo biológico individual e penetrana estrutura e organização sociais. Nesse sentido,um papel especial é dedicado à participação e aocontrole da comunidade no planejamento, organi-zação e operação desses serviços.

No relatório de 1983, esta postura é desenvolvi-da mais profundamente, sendo o paradigmabiológico mecanicista hegemônico conferido portodos os lados pelo novo paradigma social da me-dicina. Não se trata evidentemente de abolir amedicina curativa hospitalar centrada no aspectobiológico individual. O que se propõe é limitareste aspecto de um modo tal que ele deixe de serdominante e passe a ser subordinado a uma di-mensão social maior que o envolve e o controla.Trata-se, portanto, não só de uma soluçãoeconômica à crise financeira da medicina comotambém uma solução epistemiológica à crisecientífica da medicina moderna.

A tese de que a manutenção do modelo curati-vo centrado na biologia individual e no hospitalnão é adequada para compreender, interpretar, ex-plicar e, muito menos, resolver amplos aspectosrelacionados com saúde e doença é explicada pelahiperdimensionalização de uma medicina frag-mentada e de um sistema de saúde desintegrado,ambos inteiramente dominados por especialistasdentro de um paradigma que tem como referênciamaior a influência mecanicista e biologicistaprópria de um positivismo sem qualquer conside-ração à dimensão social. Este paradigma levouainda a um desenvolvimento tecnológico descon-trolado resultando num alto custo financeiro enum modelo inadequado para resolver a maioriados problemas que afligem a comunidade.

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Os efeitos adversos produzidos por este tipo demedicina chegam, na análise da OMS, a pesar maisdo que os benefícios. Entre estes efeitos podem sercitadas as infecções hospitalares, as seqüelas prove-nientes de drogas e cirurgias e a redução da auto-confiança da população em administrar a sua vidano sentido de promover a própria saúde.

É um fato inegável que, por outro lado, a tecnolo-gia desenvolvida por este tipo de medicina poucopode fazer diante dos principais problemas de saúdede uma sociedade moderna, que já tenha conquista-do o flagelo das doenças infecciosas. O consumodescontrolado de tabaco, álcool, drogas e medica-mentos, a dieta desequilibrada e inadequada, a ocu-pação sedentária, a violência e o estresse urbanos,os desequilíbrios mentais, os hábitos sexuais peri-gosos, os acidentes de automóvel e vários outros fa-tores que têm a sua origem no modo de vida não po-dem ser controlados ou sequer dimensionados pelatecnologia disponível num hospital. Deslocada dacomunidade e de seus problemas específicos, amedicina hospitalar focaliza e trata apenas proble-mas que se tornaram extremamente sérios e exigemintervenções drásticas no organismo biológico hu-mano tomado isoladamente. Como conseqüência,diante do hiperdimensionamento do hospital, ascausas profundas das doenças, que geralmente têmorigem no modo como a sociedade interage com omeio ambiente e, em seu interior, os indivíduos in-teragem entre si, são deixadas inalteradas. Alocarpara este âmbito a maior parte de todos os recursosdisponíveis para a saúde é, portanto, uma medidainadequada se não irracional diante do propósito dese elevar o nível de saúde de uma população.

Já a medicina social aparece como uma di-mensão capaz de introduzir uma concepção muitomais profunda que permite uma maior compreen-são dos mecanismos que promovem a doença e acura. Um dos aspectos centrais desse novo para-digma é a ênfase na saúde e no controle desta pelacomunidade ao invés da ênfase na doença e no seucontrole pelo médico. Para que este objetivo sejaalcançado, a descentralização dos serviços e o seucontrole pela comunidade são considerados prior-itários pela OMS.

De um modo geral, com diferentes graus deprofundidade, houve tentativas nos países centraisde absorver esta nova proposta, embora seja aindamuito cedo para se dizer que a hegemonia de umparadigma baseado no social esteja, em algum lu-gar, perto de acontecer.

A Medicina Preventiva e Social: A Emergênciano Brasil de um Novo Paradigma da Medicina

Seguindo a recomendação da Organização Pa-namericana da Saúde, as maiores Universidades

brasileiras criaram os Departamentos de MedicinaPreventiva e Social que desenvolveram um pensa-mento crítico da Saúde (principalmente pelo Cen-tro Brasileiro de Estudos da Saúde) e propostasalternativas para a medicina que ganharam corpocom a implantação de vários programas experi-mentais alternativos dirigidos principalmente àspopulações pobres. Somarriba10 (1978) relata commuita sensibilidade uma dessas experiências con-duzidas em Minas Gerais que, como muitas ou-tras, serviu para acumular conhecimentos práticossobre uma perspectiva teórica que já apresentavaum certo desenvolvimento.

A tese de Arouca1 (1975) e o livro de Donnange-lo e Pereira3 (1976) constituíram marcos pioneirosno estabelecimento do paradigma social da medici-na que tem como fulcro o estabelecimento do méto-do histórico-sociológico-cultural na apreensão docampo da Saúde Coletiva. Ao constatarem que estaperspectiva proporciona uma dimensão incompara-velmente mais ampla e profunda sobre saúde,doença e cura do que o referencial positivista, essesautores reivindicam para ela uma hegemoniacientífica e operacional em relação à medicina cu-rativa baseada no hospital.

A emergência do paradigma preventivista e so-cial apontando para a crise do hiperdimensiona-mento da medicina clínica curativa veio no Brasilacompanhada por uma crise financeira do Estadoainda muito mais profunda do que a ocorrida nospaíses centrais. Se, no entanto, estes últimos res-ponderam de um modo rápido à crise do sistemade saúde, ainda que neles a medicina curativa con-tinue a ser superdimensionada em relação à medi-cina preventiva e social, o Brasil tem demonstradouma lentidão muito maior nesse sentido. Isso cons-titui um verdadeiro paradoxo se for consideradoque, neste país, a necessidade de uma reforma pro-funda no sistema de saúde se mostra muito maisurgente, diante da escassez de recursos e do baixonível de saúde da população.

É um fato inquestionável que, no plano dasidéias, o Brasil contribuiu para o campo de saúdecoletiva com valiosa reflexão crítica necessáriapara a construção de um novo paradigma na áreada medicina e saúde. Ao lado do processo dedemocratização experimentado pelo país, houveavanço considerável no estabelecimento de umcerto consenso em como equacionar os principaisproblemas nesta área. A criação de um sistema desaúde numa ordem hierarquizada, descentralizadae universalizada, apesar da lentidão com que setenta resolver seus obstáculos, é uma expressãoimportante deste consenso.

Toda uma década foi necessária para que o pro-blema fosse devidamente focalizado e enquadradotendo em vista um plano prático de ação. Após as

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tentativas de implementação dos projetos PIASS,PREV-SAÚDE E CONASP (planos que propu-nham a implantação de serviços básicos de saúdecomo porta de entrada para um sistema maisabrangente, racionalizando, assim, o planejamentoe gerenciamento de recursos e práticas de saúde),o ano de 1983 assistiu aos primeiros convênios dasAções Integradas de Saúde (AIS), envolvendo oMinistério da Saúde, o Ministério da Previdência eAssistência Social e as secretarias estaduais e mu-nicipais de saúde.

Com as AIS, algumas secretarias de saúde deEstado e de municípios tiveram a oportunidadede efetivamente participar no planejamento e naadministração do setor saúde como um todo,mediante a criação dos órgãos colegiados ges-tores, CIS (Conselho Interinstitucional de Saúde),CRIS (Conselho Regional Interinstitucional deSaúde) e CIMS (Conselho Interinstitucional Mu-nicipal da Saúde).

Em março de 1986, o Ministério da Saúde pro-moveu a oitava Conferência Nacional de Saúde,na qual teve lugar um amplo processo de dis-cussão sobre os principais problemas de gerencia-mento, controle e administração de saúde da popu-lação brasileira, envolvendo todos os setoresorganizados da sociedade. Mais do que uma sim-ples discussão, no entanto, as diretrizes emanadasdesta Conferência serviram como referência e basepara o Decreto Presidencial que criou o SistemaUnificado e Descentralizado de Saúde (SUDS),em junho de 1987.

O SUDS promoveu um efetivo processo detransferência de recursos materiais, humanos e fi-nanceiros para os Estados e, através destes, para osmunicípios, dentro do princípio (necessário à dis-tribuição regional de renda) de complementarie-dade desses três níveis federativos. Nesse esque-ma, o município representa uma instânciaintegradora de todo o sistema de saúde, contribuin-do decisivamente para as funções de organização,gestão, execução e fiscalização das ações e ser-viços disponíveis à comunidade.

A transferência de um considerável grau de res-ponsabilidade ao poder local pretende promoveruma maior racionalidade operativa ao sistema,dentro de um princípio mais justo e eqüânime quepermite a cada indivíduo o direito ao acesso a to-dos os níveis de assistência, como também umcontrole pela população (pela sua participação nasinstâncias colegiadas de decisão), no sentido depromover uma melhor eficácia e eficiência dosmesmos. Além disso, o processo de descentrali-zação permite também adequar o sistema a cadauma das muitas realidades regionais de um país dedimensões continentais como o Brasil,

Todo esse processo culmina com a promul-

gação da nova constituição brasileira em 1988, emque fica explicitada a obrigação do município,com a cooperação técnica e financeira da União edo Estado, em providenciar serviços de atendi-mento à saúde de toda a população através de umsistema único de saúde que passou a ser denomi-nado SUS. No centro desse sistema encontra-seuma rede básica pública de serviços de saúde queatua fora da lógica de mercado, articulando as de-mandas por serviços médicos com o conjunto dosserviços de maior complexidade, de retaguarda.Nesse sistema, é admissível haver uma compo-sição ou associação com o setor privado, o qualnão se cogita erradicar.

Com isso, pretendeu-se dar um sentido orgânicoe hierarquizado a um conjunto de unidades de saúdeque antes eram totalmente divorciadas entre si.Nesse sistema, organizado e administrado em nívellocal pelas várias prefeituras, a tradicional dicoto-mia entre medicina preventiva e medicina curativadeveria deixar de existir, uma vez que o significadode saúde deveria passar a ser muito mais centradonos problemas vividos pela comunidade.

Embora a área da saúde no Brasil tenha embar-cado numa reforma que provavelmente será irre-versível, uma vez que tende a imprimir maior ra-cionalidade, não se pode dizer que o seudesenvolvimento seja rápido e tranqüilo. Os riscose os desafios são inúmeros, principalmente nasregiões mais atrasadas, onde talvez o maiorobstáculo seja o precário nível político traduzidopelo clientelismo ou pela corrupção pura e simples.

Embora mais racional na teoria, a implemen-tação prática dessa nova forma administrativa naárea da saúde pode tornar-se difícil, dependendo decircunstâncias locais imprevisíveis para um planode natureza macropolítica. A disposição de gruposrepresentando certos interesses econômicos ou po-líticos ou mesmo a iniciativa individual de políticaslocais no sentido de promovê-la, manipulá-la emfavor de outros interesses ou mesmo boicotá-la po-dem constituir fatores decisivos para o seu sucesso.

A manipulação do plano pelas forças políticas eeconômicas locais para servir a propósitos dife-rentes de sua natureza deve também ser considera-da um perigo constante a ameaçar a sua integri-dade, principalmente se for levado em conta afraqueza institucional dos mecanismos de controledo mesmo. Enquanto um plano que, entre váriasoutras medidas, visa a impedir a transferência derecursos do setor público para o privado, não émuito provável que ele venha a receber apoio deamplos setores da sociedade, inclusive o de umasignificativa proporção de médicos. Tudo indica,portanto, que o seu sucesso irá depender emgrande medida do grau de maturidade cultural epolítica que o país vier a demonstrar.

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Entre os problemas encontrados, destacam-seainda aqueles referentes a tomar um sistemamúltiplo em sistema único de saúde controlado eadministrado pelo poder local. A transferência derecursos para os municípios tem permitido queestes exerçam uma influência cada vez maior naárea, embora ainda não possam controlar todo osistema. Isso ocorre porque vários aspectos da an-tiga multiplicidade administrativa ainda persistemcomo, por exemplo, o fato de haver funcionárioscontratados por instâncias estaduais ou federaisque atuam junto com os da própria prefeitura. Éevidente que este fato, à medida que implica emsalários e regimes de trabalho diferenciados para amesma função, prejudica a integração do serviço.Além disso, os convênios que, com o repasse fi-nanceiro, permitem a integração e o controle doserviço a nível local, não significam propriamenteum modo seguro e estável para a continuidade edesenvolvimento do processo.

Apesar de todos os problemas e obstáculos, aexperiência desta reforma administrativa chegou aapresentar algum sucesso no Estado de São Paulo.Calcado na experiência de descentralização (oudescontração, para ser mais exato) administrativado governo Montoro, houve neste Estado uma efe-tiva transferência de recursos para a área da saúdede um grande número de prefeituras. Foi vital paraeste relativo sucesso, a disposição do Estado e dasPrefeituras de aumentar consideravelmente oorçamento para a saúde.

A reorganização administrativa da área dasaúde, tendo como base os princípios expostos aci-ma são, portanto, indispensáveis para tornar o pa-radigma preventivista (que traz em si uma novaconcepção de saúde e de doença) hegemônico.

No entanto, ela não é suficiente para que umamedicina social efetivamente controlada pela co-munidade apresente condições de emergir. O de-senrolar mais recente dos fatos sugere efetiva-mente que a municipalização dos serviços desaúde está se mostrando não só incapaz de prom-over o novo paradigma, como introduz, em al-guns aspectos, um reforço adicional para preser-var o domínio da velha concepção positivista desaúde, doença e cura. Neste contexto, a municip-alização dos serviços de saúde surgiria apenascomo uma nova roupagem que permitiria ao vel-ho paradigma condições de continuar exercendo asua hegemonia.

Discussão: Uma Tentativa de Avaliação doSistema de Saúde Atual

A avaliação do sistema de Saúde atual pode seriniciada a partir da análise de sua regulamentação,consubstanciada na elaboração da Lei Orgânica da

Saúde, e de seus desdobramentos em Portarias,Resoluções e Normas Operacionais.

A implementação do SUS, após sua promul-gação pela Constituição de 1988, fêz-se através daelaboração de Lei Orgânica aprovada pelo Con-gresso Nacional, como fruto do Relatório do De-putado Geraldo Alckmin na Comissão de Assis-tência, Previdência e Saúde e dos Projetos de Leido Deputado Raimundo Bezerra (1989) e dopróprio Executivo (1989). A Lei Orgânica foi fi-nalmente aprovada pelo Congresso e sancionadacom vários vetos pelo Presidente da República(8080/90). Em dezembro de 1990, no entanto, oPoder Executivo envia ao Congresso novo Projetode Lei (8142/90) que (após absorver propostas devários segmentos envolvidos no setor) foi, de certaforma, um tentativa de reparar os problemas gera-dos pelos vetos presidenciais ao Projeto original.

Duas ordens de problemas se impuseram no cen-tro das discussões sobre a implementação do SUS:a definição das instâncias gestoras do sistema deSaúde e a adoção de critérios para os repasses dosrecursos do Fundo Nacional de Saúde para os Esta-dos e Municípios. O Projeto original previa a exis-tencia de Conselhos de Saúde, envolvendo a parti-cipação dos diferentes agentes com atribuição deformular, acompanhar, planejar e fiscalizar a im-plementação da política de saúde. A Lei 8080/90veta a existência de Conselhos, e a Lei 8142/90 pre-vê, não só o Conselho, como designa que a partici-pação entre burocracia governamental/prestadoresde serviços/profissionais do setor de saúde/usuáriosserá paritária. A Norma Operacional definiu, ainda,como atribuições dos Conselhos de Saúde, a formu-lação de estratégias e o controle da execução dapolítica de saúde na sua instância correspondente,inclusive nos aspectos econômicos e financeiros. Étambém atribuição dos Conselhos a aprovação dosPlanos de Saúde em cada esfera de sua atuação,bem como a fiscalização da movimentação dos re-cursos repassados às secretarias estaduais e/ou mu-nicipais e/ou fundos de saúde.

Quanto à transferência de recursos, a Lei origi-nal previu o repasse automático, baseado nos se-guintes critérios: população, perfil epidemio-lógico, gasto proporcional em saúde dos Estadose Municípios, capacidade instalada dos serviços,desempenho técnico/financeiro e econômico doperíodo anterior e plano qüinqüenal de investi-mento. A Lei definia um teto mínimo para o re-passe aos Municípios (não inferior a 45% do Fun-do de Saúde) e a abolição da forma Convênio. Osvetos presidenciais extinguiram o repasse au-tomático, o teto mínimo, a abolição dos Convêni-os e definiram os seguintes critérios para repasse:50% dos recursos do Fundo de Saúde, perfis de-mográficos e epidemiológicos, característica da

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rede de saúde, desempenho do sistema e níveis departicipação do setor Saúde nos orçamentos es-taduais. Os outros 50% seriam negociados segun-do Programas e Projetos.

O último projeto de Lei (8142/90), através deregulamentação*, deixou o repasse automáticoem aberto e designou para o ano de 1991 que astransferências sejam feitas com base no critériodemográfico, tendo ainda como parâmetro de rea-juste a unidade de cobertura ambulatorial (UCA).O teto mínimo para o repasse ao Município foiexpandido para 70% do Fundo de Saúde, sendoque a base jurídica das transferências deverão seros Convênios. A regulamentação da Lei defineainda as seguintes exigências para o recebimentodos recursos pelos Estados e Municípios: for-mação de conselhos de saúde (com representaçãoparitária); fundos de saúde e planos de saúdeaprovados pelo conselho e referendado por auto-ridade do poder executivo; programação eorçamentação da saúde; relatório de gestão local;e constituição de comissão de elaboração do pla-no de carreiras, cargos e salários, com prazo de 2anos para implementação.

As novas regulamentações definem, ainda, opagamento da cobertura ambulatorial pública eprivada com base em procedimentos diagnósticos(atos médicos), e o repasse direto para municípiose prestadores privados.

Os problemas que tais resoluções trazem ao sis-tema de saúde são vários, sendo que num âmbitomais abrangente ele impõe obstáculos adicionaissignificativos à hegemonia do paradigma social damedicina e da saúde. Entre os principais proble-mas específicos, é possível destacar os seguintes:

1) O sistema antigo com base nos termos adi-tivos ao convênio SUDS previa o repasse mensalpara o custeio dos centros ambulatoriais muni-cipalizados. Agora esse recurso agrupa-se naUCA/mês, do qual deduz-se as guias de autori-zação de pagamentos dos centros ambulatoriaispúblicos e privados**. O pagamento por pro-dução na rede ambulatorial pública introduz umasérie de inconvenientes, desde a falta de recursos

para os gastos com programas especiais (a redepública desenha uma série de atividades agrupa-das por programas visando ao atendimento de po-pulações de risco) como os de tuberculose, han-seníase, AIDS, hemoterapia, e outras ações tipoeducação em saúde e ações coletivas. Acres-cente-se ainda a falta de tradição do setor públicoem contabilizar as ações curativas e preventivasda mesma forma que o setor privado, o que sig-nifica dizer que as ações públicas em saúde fo-gem da regra oferta/cadastramento e produção/faturamento de atos médicos;

2) o repasse direto para municípios e setor pri-vado esvazia os serviços de avaliação e controledas instâncias regionais do Estado, pois as fichasde atendimento ambulatorial não deverão maispassar por estas instâncias;

3) o repasse através de guia de autorização depagamento(s) desarticula o sistema adotado no Es-tado de São Paulo, justamente onde o processo demunicipalização é mais desenvolvido. Este pro-cedimento não é adotado neste Estado desde 1988quando o pagamento passou a ser peça integrantedo sistema orçamentário (através de programaçãofinanceira mensal com empenho após demons-tração de existência de recurso), sendo todo o sis-tema contabilizado nos moldes da administraçãofinanceira estadual;

4) os recursos a serem repassados em duodéci-mos aos Estados e Municípios serão resultados dasubtração dos gastos com os prestadores privados.Isso significa que os serviços privados serão pri-vilegiados;

5) em estudo realizado pela Secretaria de Saúdedo Estado de São Paulo há demonstração de queos municípios grandes serão agraciados com recur-sos que superam a antiga lógica de pagamento porcusteio, ao mesmo tempo que os municípios pe-quenos serão prejudicados.

Pode-se dizer a partir dos problemas levantadosacima que as bases de sustentação do sistema pas-sam a ser o setor privado especializado e as prefei-turas de grande porte, introduzindo um elementode "inampização" na municipalização, sendo quea saúde coletiva preventiva fica mais uma vez àmercê dos insuficientes recursos oriundos dosorçamentos estaduais e municipais.

A implementação do SUS, mesmo no Estadode São Paulo, onde seu desenvolvimento foimaior, apresentava, antes mesmo dessas novas re-soluções, uma série de problemas decorrentes daincapacidade do nível regional em gerenciar onovo modelo de Saúde. As novas medidas de mu-nicipalização aceleraram o processo de desajustedos níveis regionais, pois quando o município éeconomicamente forte e possui alta capacidade deresolutividade, dificilmente estará estimulado a

* Portarias 1481 de 31/12/90; 15, 16, 17, 18, 20 de 8/1/91; Resolução 250 de 7/1/91 e Norma OperacionalBásica 1/91 de 7/1/91.

** A fórmula do repasse é a seguinte:População do Estado X UCA = RepasseRepasse: 12 = Repasse MensalRepasse - Guia de autorização de Pagamento (Público +Privado) = Y10% de Y = Repasse para a Secretaria Estadual para asações de vigilânciaY-10%(Y) = Zz : População do Estado = WW x População do(s) Município(s) = Repasse Municipal

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promover um entrosamento satisfatório com onível regional.

De um modo geral, ao se tornarem um dos eixosda implementação da política de saúde, osmunicípios distorceram o modelo assistencial emfavor do aumento da cobertura do sistemaconsubstanciado no pronto atendimento. Este pro-cedimento medicalizante já impedia a adequaçãodeste modelo assistencial com o paradigma socialda medicina.

As atuais resoluções só virão confirmar tal ten-dência à medida que o pagamento por produção,tanto para o setor público como para o setor priva-do, induzirão a um desvio produtivista no sistemae um afastamento das questões relativas à quali-dade e ao tipo de assistência prestada.

Quanto às instâncias gestoras, a tendência ex-posta no Estado de São Paulo era de domínio dopoder local (prefeituras) na atuação e composiçãodas comissões interinsíitucionais, sendo que ainstância regional (CRIS) atuava mais como neu-tralizadora dos conflitos municipais, decorrentes,em sua maior parte, das diferenças das faixas sa-lariais adotadas pelos municípios, e das chamadasinvasões de áreas (demanda por serviços de outromunicípio). O princípio de paridade nos Conse-lhos de Saúde talvez neutralize a presença he-gemônica do poder local, porém são inúmeras asformas que as prefeituras terão para impedir umaparticipação que oponha às diretrizes de suaspolíticas locais, sem contar com o baixo grau deorganização da população no que se refere às prer-rogativas de sua cidadania social.

A avaliação atual do SUS evidencia um reforçomuito grande dos municípios na implementaçãoda assistência à saúde, sendo que os mesmos evo-luíram de simples expectadores a prestadores deserviços. Não obstante, eles não podem ainda servistos como co-partícipes do sistema único, masapenas de como ofertantes-contratados, a partir daforma de pagamento definida pelas novas reso-luções. Tal configuração constitui um obstáculode dimensões consideráveis ao poder de decisãoda comunidade de promover saúde; ao mesmotempo, ela dificulta a relocação da dimensãobiológica da medicina num âmbito dependente deobjetivos sociais.

Além disso, o papel de contato permanentecom a comunidade, atribuído à Rede Básica deServiços de Saúde, seria reduzido ao de meraporta de entrada de um sistema unidimensional-mente concentrado na incorporação da assistênciamédica. Esta última, ao realizar uma verdadeiratriagem dos problemas de saúde da população apartir do eixo "queixa/procedimento", dominariatotalmente o cenário, fomentando o risco de im-primir um aumento considerável de medica-

lização da sociedade. Com o domínio da medici-na curativa na rede básica de serviços de saúde(que corresponde a cerca de 80% da totalidadedos serviços prestados), a saúde pública e a me-dicina preventiva e social continuariam a desem-penhar um papel secundário e submisso a umapostura que, ao nível teórico não mais encontrameios de se legitimar.

Ao que tudo indica, portanto, o conjunto dosproblemas apontados acima constitui um reforçoconsiderável ao antigo paradigma positivista do-minante que, ao camuflar a crise como uma meraquestão administrativa/gerencial, ainda dá sinaisde considerável vitalidade na manutenção de suahegemonia. Explicar o motivo desta vitalidade éuma questão que extrapola a sua utilidade e mes-mo a sua consistência epistemológica para pene-trar na sua compatibilidade paradigmática comvários outros componentes de natureza política,social e cultural (Khun6, 1975; Lakatos e Mus-grave7, 1975).

É somente na experiência prática que o paradig-ma social da medicina, ao compor-se com a socie-dade mediante o desenvolvimento de políticas so-ciais apropriadas, pode aprimorar-se, estender oseu domínio e tornar-se real. Esta prática lhe per-mitiria tornar-se uma instância ativa de geraçãocultural que, ao difundir os seus princípios, rece-beria, ao mesmo tempo, suporte da comunidade eda sociedade mais ampla. A municipalização dosistema de saúde em nível administrativo torna-se,sem dúvida, um campo mais fértil para que issopossa ocorrer. No entanto, um verdadeiro saltoqualitativo fica ainda por se realizar para se chegarao ponto de que efetivamente se cumpra o preceitoconstitucional da saúde (entendida como bem-estar físico, mental e social) como direito do cida-dão e dever do Estado.

QUEIROZ, M. de S. & VIANNA A.L. [The model ofstate health policy and system of medical assistanceadopted in present-day Brazil]. Rev. Saúde públ., S.Paulo, 26: 132-40, 1992. A contribution to the analysisof the health reform presently occurring in Brazil is pre-sented. The need to consolidate the theoretical back-ground which supports the advances already achieved inorder to understand recent events in the area is stressed.In this regard, the health reform is understood as a ques-tion transcending the mere administrative and manageri-al aspect of the health system, since it necessarily in-volves a redefinition of the concepts of health, diseaseand the medical practice adopted by the dominant me-chanistic paradigm of medicine. The recent eventswhich delineate the health system in Brazil are analysedand criticised in the light of this concern.

Keywords: Health policy. Health system. Nationalhealth programs.

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Recebido para publicação em 4/7/1991Reapresentado em 11/12/1991

Aprovado para publicação em 7/1/1992


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