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partir da jornada sacra dos Penitentes1 On the images path ... · sacred journey of the Penitents...

Date post: 26-Jul-2020
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1 Na trilha das imagens: ritual de sangue e poética cruel a partir da jornada sacra dos Penitentes 1 On the images path: blood rituals, cruel poetics, from the sacred journey of the Penitents Amanda Barros Melo 2 (UEPA-PPGCR/PARÁ) Resumo O presente estudo é um inicio de jornada, possuindo como objeto de estudos o trabalho poético e imagético do fotografo paraense Guy Veloso, com sua jornada junto aos Penitentes, sendo que o fotografo constatou após mais de dez anos de captação de imagens e pesquisa que esta manifestação cultural e religiosa, existe em todas as regiões do país. O objetivo da pesquisa inicial é compreender como a face performática dos Penitentes atua no momento do rito dinâmico. Problematizo a forma como os grupos de penitentes se tornam performers a partir de suas jornadas sagradas e poéticas, criando desse modo o que chamo de performance da memória. O método utilizado partirá do uso de imagens para possibilitar a compreensão do trabalho imagético desenvolvido pelo fotografo e além disso pesquisa bibliográfica que estará situada entre fronteiras, partindo das dimensões do fenômeno religioso e estudos da performance. Os resultados esperados são as confirmações do que se a priori é constatado sobre a dimensão performática dos penitentes, para deste modo seguir investigando mais sobre esta manifestação cultural e religiosa. Palavras-chave: imagem, performance, sagrado. Abstract This study is a journey of initiation, having as object of study the poetic work and imagery of photographer from Pará Guy Veloso, his journey along the Penitents, and what the photographer found after more than ten years ok images and research that this cultural and religious expression exist in all regions of the country. The purpose of the initial research is to understand how the performative face of Penitents acts upon dynamic rite. Problematize the way Penitents groups become performers from theirsacred and poetc journeys, there by creating what i call memorey performance. The method used departed the use of images to enble understanding of the photographer's imagistic work and borders, based on the dimensions of the religious phenomenin and studies of performance. The expected results are the confirmations of what firstly is found on the performative dimension of penintents, there by to follow investigating more about this cultural and religious expression. Key-words: image, performance, sacred. 1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Latina, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA. 2 Mestra em ciências da Religião, no Programa de Pós-graduação da Universidade do Estado do Pará (2014-2016). Vinculada ao grupo de pesquisa ARTEMI (arte, religião e memória). Graduada em Licenciatura Plena m Ciências da Religião, na Universidade do Estado do Pará (2010-2014).
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Page 1: partir da jornada sacra dos Penitentes1 On the images path ... · sacred journey of the Penitents Amanda Barros Melo2 (UEPA-PPGCR/PARÁ) Resumo O presente estudo é um inicio de jornada,

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Na trilha das imagens: ritual de sangue e poética cruel a

partir da jornada sacra dos Penitentes1

On the images path: blood rituals, cruel poetics, from the

sacred journey of the Penitents

Amanda Barros Melo2 (UEPA-PPGCR/PARÁ)

Resumo

O presente estudo é um inicio de jornada, possuindo como objeto de estudos o trabalho

poético e imagético do fotografo paraense Guy Veloso, com sua jornada junto aos

Penitentes, sendo que o fotografo constatou após mais de dez anos de captação de

imagens e pesquisa que esta manifestação cultural e religiosa, existe em todas as regiões

do país. O objetivo da pesquisa inicial é compreender como a face performática dos

Penitentes atua no momento do rito dinâmico. Problematizo a forma como os grupos de

penitentes se tornam performers a partir de suas jornadas sagradas e poéticas, criando

desse modo o que chamo de performance da memória. O método utilizado partirá do

uso de imagens para possibilitar a compreensão do trabalho imagético desenvolvido

pelo fotografo e além disso pesquisa bibliográfica que estará situada entre fronteiras,

partindo das dimensões do fenômeno religioso e estudos da performance. Os resultados

esperados são as confirmações do que se a priori é constatado sobre a dimensão

performática dos penitentes, para deste modo seguir investigando mais sobre esta

manifestação cultural e religiosa.

Palavras-chave: imagem, performance, sagrado.

Abstract

This study is a journey of initiation, having as object of study the poetic work and

imagery of photographer from Pará Guy Veloso, his journey along the Penitents, and

what the photographer found after more than ten years ok images and research that this

cultural and religious expression exist in all regions of the country. The purpose of the

initial research is to understand how the performative face of Penitents acts upon

dynamic rite. Problematize the way Penitents groups become performers from

theirsacred and poetc journeys, there by creating what i call memorey performance. The

method used departed the use of images to enble understanding of the photographer's

imagistic work and borders, based on the dimensions of the religious phenomenin and

studies of performance. The expected results are the confirmations of what firstly is

found on the performative dimension of penintents, there by to follow investigating

more about this cultural and religious expression.

Key-words: image, performance, sacred.

1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Latina, realizado entre os dias

25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA. 2 Mestra em ciências da Religião, no Programa de Pós-graduação da Universidade do Estado do Pará

(2014-2016). Vinculada ao grupo de pesquisa ARTEMI (arte, religião e memória). Graduada em

Licenciatura Plena m Ciências da Religião, na Universidade do Estado do Pará (2010-2014).

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Introdução

O ato de criação que provém da escrita que desenvolvo é gerado pela vontade de

conhecer que tenho, a partir disso meu contato com as ciências da religião e as artes e

seu cosmos poético.

A pesquisa encontra-se em fase de constante descobertas segue a passos

contidos, o estudo a que me proponho é possível graças a convite feito por Guy Veloso3,

para que sua jornada poética consiga chegar em outros lugares, além do cosmos

artístico, logo ao meio academico, me torno guardiã de caminhadas feitas pelo fotografo

há mais de uma década marcadas por registros imagéticos.

Ao me deparar com dimensão do mundo de ditos, escritos e narrativas visuais,

percebo a priori que assim como em outras manifestações culturais do país e do mundo,

a performance esta presente, está como meio para realizar a experiência em ação, a

partir disso inicio a localização deste ato, ação, ritual dinâmico como algo em estado de

performance, que ocorre nas cinco regiões do país, como já constatado pelo fotografo.

As passagens dos diversos grupos de penitentes registradas por Guy Veloso

demonstram como algo que depende do repasse do legado através da oralidade ligada ao

elo de confiança de quem fornece as informações e o respeito daquele que recebe as

mesmas, a jornada dos penitentes e mesmo existência desses grupos dependem

fortemente desse repasse de conhecimento de mestres para discípulos.

Os registros feitos por meio da linguagem visual é uma forma de eternizar as

caminhadas noturnas desses homens e mulheres sem rosto que seguem durante a noite e

pedem pela alma dos que se foram tragicamente a ação destes é o que move a pesquisa,

pois se a morte é um fator importante durante estes longos trajetos, logo a memória é

outro elemento de suma importância, seria a realização do que chamo de performance

da memória, que constantemente é realizada e atualizada por todos os grupos de

Penitentes. As pessoas ligadas a essa performance da memória seriam então performers

das noites que mantém seu rito através das ladainhas, da caminhada, do uso dos

instrumentos sacros, da organização do grupo, tudo é elemento a ser considerado como

parte da performance. Através dos ritos sazonais de seu altruísmo religioso é que

conseguem acionar a memória de inúmeros (des)conhecidos que fisicamente não

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habitam mais o cotidiano das cidades onde os Penitentes realizam suas ações, seus atos,

ou seja, suas performances.

A presente pesquisa é o primeiro fragmento de algo maior que através da

potencia ritual oriunda da performance, da estética advinda das imagens e das passagens

sacras feitas por penitentes, se tornará mais denso por meio da analise cientifica e

poética que tem seu inicio com este primeiro escrito. Um convite a caminhar junto de

algum modo com os Penitentes.

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Performance da memória: a morte como elemento sacro poético

De uns tempos para cá, parece que a morte anda sumida do

mundo. Estamos sempre tentando nos esquecer dela, correndo,

consumindo cada vez mais coisas e informações.

Ilan Brenman e Heidi Strecker

O moimento realizado por diversos grupos de Penitentes em todas as regiões do

país como já constatado por Guy Veloso, é um ato de fé e resistência, sendo estas

características fortemente ligadas ao catolicismo popular, onde mesmo que exista algo

de sistemático na organização dos atos ainda assim está separado das práxis habituais e

clássicas das instituições católicas em que tudo ocorre entre paredes, com hierarquias

duras e a circulação de conhecimento é cristalizada em demasia.

Os Penitentes são a micro esfera católica que utiliza a fé e o altruísmo religioso e

espiritual para rogar por almas do purgatório, somado a isso os registros fotográficos de

Guy Veloso que percorrem todas as regiões do país confirmando a existência destes

grupos em toda a extensão do Brasil é uma forma de expandir esse ato de resistência dos

grupos de Penitentes a meu ver, haja em vista que atualmente a tendência do movimento

de fé realizados por estes é que muitos grupos acabem por não haver sucessores, boa

parte dos registros feitos pelo fotografo são de grupos que resistem no coração do sertão

nordestino, em pequenas cidades. "A linguagem indica os seres que evoca" (BOSI,

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1983, p.22). Esta soma que há entre o ato e os registros são a fonte poética e religiosa

para que seja possível perceber como estes grupos se comportam, seus elementos

principais, repasse de conhecimento, ou seja, como suas performances sacras são

realizadas. "Desta forma a religião popular seria a expressão de uma resistência das

classes pobres culturalmente marginalizadas" (MESLIN,1992, p. 220). Vale ressaltar

elementos coletados por Guy Veloso no decorrer de sua caminhada junto aos vários

grupos de Penitentes no país, estes são: movimento em geral laico, altruísmo, uso do

corpo, Ritos secretos e oralidade. A soma destes da a base para os grupos existirem e

legitimar-se como mediador em relação as almas liminares (purgatório) e o divino

(transcendente), além disto, cada grupo carrega consigo a identidade de um determinado

povoado, grupo cultural, deste modo há diferenças entre os mesmos.

A jornada noturna realizada por Penitentes é a ação primeira de sua

performance, penso que todo ato, ação em termos de ritual que vai desde a organização

até o ato consumado pode ser considerado performance, algo que pode ou não estar

ligado a questões de fé e religiosas, mas neste caso além de fé ocorre o altruísmo

religioso. "[...] o modelo teatral, em nossa cultura, representa toda poesia, na própria

complexidade de sua prática" (ZUMTHOR, 2014, p. 61), pensemos nesse modelo

teatral a qual Zumthor (2014) evoca como um principio básico para a ação performática,

que seria ter a percepção de que além de performático um ato pode ser considerado

cênico, mesmo por que ontologicamente o teatro deriva de práticas sagradas e

ritualísticas, logo seu braço contemporâneo a performance segue de forma mais direta

esse caminho, partindo do Eu para isto ocorrer. Levar a carga poética da performance

para os atos do catolicismo popular é fazer a soma de elementos de cunho anárquico em

meio contemporâneo, já que ambos são tentativas efetivamente de resistência e

chamamento para o novo. "A maior parte das definições de performance põe ênfase na

natureza do meio, oral e gestual" (ZUMTHOR, 2014, p. 47). A performance em termos

de ação pode estar condicionada a esses elementos como principais, porém orbitando

este espaço há o mundo dos símbolos que os Performers carregam consigo. Segundo

Grotowski (2015) o Performer e performance são:

O Performer,com letra maiúscula, é um homem de ação. Ele não é um

homem que faz o papel de outro. É o atuante, o sacerdote, o guerreiro: está

fora dos gêneros estéticos. O ritual é performance, uma ação realizada, um

ato (GROTOWSKI, 2015, p.2)

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O ato é a performance os atuantes são os Performers, logo o Penitentes que

através de suas ações de suas andanças noturnas realizam seus ritos, carregam seus

símbolos (cruzeiro, mortalhas, matracas etc.), sua fé expande-se por meio dessas vias

materiais que seriam os objetos usados, porém chegam a esfera do subjetivo quando

estas tornam-se símbolos de seus ritos. " Os personagens, homens e mulheres que em

determinadas épocas do ano, em especial na “quaresma” (quarenta dias antes da Sexta-

feira Santa), se transformam [...]" (TRECHO, PROJETO, 2010, p. 2), o catolicismo

popular em seu cerne como ato de resistência dá aos seus participantes a oportunidade

de transformação, onde homens e mulheres de vidas simples em pequenas cidades,com

baixa renda entre outras características, tornam-se mestres, guias, voz forte no grupo

que realiza algum ato, como no caso dos Penitentes. "A religião popular seria assim a

forma pela qual as classes inferiores da sociedade exprimem ao mesmo tempo sua

nostalgia de uma idade de ouro perdida para sempre e sua personalidade viva [...]"

(MESLIN, 1992, p. 220), é nesse ponto em que os participantes dos ritos dos Penitentes

tornam-se Performers e seguem caminhada.

A jornada poética e sagrada (ELIADE, 2010) dos Penitentes tem como cerne a

Morte,elemento fortemente atrelado a fragilidade da vida, através das fatalidades que

ocorrem por meio de acidentes, as ditas mortes prematuras, a estadia das almas no

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purgatório, objetiva-se através da performance feita por Penitentes ajudar as almas que

estão no purgatório a saírem deste e completarem sua passagem, haja em vista que o

purgatório é um lugar de fronteira, onde a alma não se encontra nem no inferno e nem

no paraíso isso ligado a questões ontológicas e míticas do meio cristão. "Todo espaço

sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado

destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna [...] diferente"

(ELIADE, 2010, p. 30)

O que chamo de performance da memória é realizada por grupos de Penitentes,

no momento em que se caminha ao lado da Morte isso é feito em memória das almas

que tragicamente estão estagnadas no purgatório, isso sem haver um tipo de voto

religioso feito, é apenas vontade e empatia, que juntos resultam nesse altruísmo

religioso já constatado por Guy Veloso. "Termo antropológico e não histórico, relativo,

por um lado, as condições de expressão, e da percepção, por outro, performance designa

um ato de comunicação como tal [...]" (ZUMTHOR, 2014, p. 51)

A Morte constantemente ligada ao ato dos Penitentes é o elemento de

chamamento a memória dessas almas, a poética desta performance reside em toda

estrutura sutil e de certo modo dramática criada por esses grupos, para deste modo

realizarem suas performances da memória, pois é nesta que ocorrem as hierofanias

vividas por todos os Penitentes. Os grupos de Penitentes vivem a hierofania por meio

de suas performances, que seria a experiência com o sagrado, isso somado ao seus ritos

reforçam a ideia de que sim é fato que a performance ocorre, logo há inúmeras ativações

de memórias. "Um espaço sagrado assenta a sua validade na permanência da hierofania

que, em dada altura, o consagrou" (ELIADE, 1977, p. 436), a hierofania é a experiência

em ação do grupo, legitima a ação como sagrada. "O lugar transforma-se, deste modo

em uma fonte inesgotável de força e sacralidade [...]" (ELIADE, 1977, p. 436).

A performance da forma com que é realizada por todos os Penitentes o marco de

um tempo maravilhoso em que cada individuo do grupo é de suma importância para o

ato, as almas do purgatório dependem disto, sendo assim, a performance da memória é a

ação do fazer e lembrar, onde a poética reside no caminhar do grupo. " São os

Penitentes, grupos religiosos laicos, que se sacrificam com o objetivo de livrar almas do

“purgatório” (segundo a Igreja Católica, o local onde os espíritos têm que espirar seus

pecados terrenos antes de alcançar o “céu”)" (TRECHO, PROJETO, 2010, p. 2).

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Há na caminhada dos Penitentes algo de poético e sacro, pensemos no sagrado

como algo oposto ao profano (ELIADE, 1977, p. 23 ), o sagrado e o poético estão

diretamente ligados, quando a performance da memória se inicia, desde o uso das vestes

brancas, das ladainhas, o uso de instrumentos, a formação da caminhada em uma ou

duas linhas possuindo a frente um cruzeiro que naquele momento seria um dos centros

de mundo (ELIADE, 1977, p. 23) dos grupos, os atos mais cruéis, os açoites feitos por

Penitentes homens, onde há desde o uso de cilício até a flagelação com laminas em

chicotes a repetição destes atos, deixam suas roupas brancas com tons de vermelho, um

sangue sacrificial feito pelo Penitente em seu momento de altruísmo religioso e

performático. "A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é

simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca" (ZUMTHOR,

2014, p. 35). A memória dos que se foram, é ativada por todos estes elementos, as

almas são colocadas no centro de tudo, a performance da memória é o ato de ativação

da memória, por meio da poética cruel dos Penitentes. "[...] a noção de religião popular

só adquiria sua real consistência quando abrangia um conjunto de crenças e de práticas

que se situava em oposição a um modelo religioso oficial [...]" (MESLIN, 1992, p. 223)

As práticas devocionais contidas no catolicismo popular trazem algo de familiar

e próximo ao praticante, tudo se torna mais empático levando ao próprio altruísmo

religioso. "O Performer é um estado do ser [...] O homem de conhecimento (czlowlek

poznanla) tem à sua disposição o fazer, o doing, e não apenas ideias ou teorias"

(GROTOWSKI, 2015, p. 2), o ato total dos Penitentes é onde resite o estado do ser,

citado pro Grotowski (2015), fazendo com que os Penitentes sejam Performers em ação,

na prática sacra da performance da memória. A empatia é o elemento metafísico que

move as práticas, logo tornando a performance da memória um fato, que vem através

das trocas simbólicas feitas entre os Penitentes e a Morte.

Ritual de sangue e poética cruel a partir da jornada sacra dos Penitentes

Agora que o sangue ainda aquece e que está pleno de vigor, devemos

tender às melhores. Encontrarás, neste tipo de vida, o entusiasmo das

ciências úteis, o amor e a prática da virtude, o esquecimento das

paixões, a arte de viver e de morrer uma calma inalterável.

Sêneca - Sobre a brevidade da vida

O momento vivenciado durante a prática dos Penitentes é impar, um salto dos

ritos cotidianos para algo extra cotidiano, atemporal e não linear. "[...] performance, eu

diria que ela é o saber-ser" (ZUMTHOR, 2014, p. 34). A jornada implica da ativação

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do corpo memória dos Performers através das ladainhas, matracas, cruzeiro, vestes

brancas, açoitamentos, são corpos prontos para o momento do rito de vida morte, que

por meio da poética cruel trás as potências do sagrado o maravilhoso e o tremendo, isso

com a ação da performance da memória. "A palavra crueldade deve ser considerada

num sentido amplo e não no sentido material e rapace que normalmente lhe é

atribuído[...] do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor [...] " (ARTAUD,

1984, p. 131).

A potencia poética contida nos Penitentes mostra que estes de fato são

Performers em um ato, uma ação sacra, poética e cruel, a tríade criada por todos os

grupos no momento da caminhada altruísta realizada para as almas perdidas é o que

serve como constatação para se compreender o ato destes como Performance e além

disto, o chamamento do sagrado por meio destas práticas, o que legitima todo o ato

como sacro. "É assim que aparece a ideia estranha de uma ação desinteressada, mas que

é ação de todo modo e mais violenta por ladear a tentação do repouso" (ARTAUD,

1984, p. 20), nesse ato desinteressado é onde reside a crueldade poética, o que nutre o

espírito (ser). "equivocadamente se atribui à palavra crueldade um sentido de rigor

sangrento, de pesquisa gratuita e desinteressada do mal físico [...] a crueldade é antes de

mais nada lúcida [...]" (ARTAUD, 1984, p. 132).

Por meio do corpo, muitas vezes a crueldade ativada, como é o caso dos

Penitentes que açoitam-se, porém há algo de subjetivo neste que é ativado pela

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passagem do repouso para o acordar a si. "O corpo é o peso sentido na experiência

[...] Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que

determina minha relação com o mundo" (ZUMTHOR, 2014, p. 27), o corpo é o

primeiro elemento por onde a crueldade poética dos Penitentes passa, sendo esta, pelo

chicote usado na autoflagelação ou no corpo de homens e mulheres idosos que

caminham noite a dentro superando o cansaço. "Dotado de um significado

incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para

melhor e para pior" (ZUMTHOR, 2014, p. 27).

A estrutura ritualística criada por Penitentes, tende performática e cruel desde os

seus primórdios, guardam o sagrado maravilhoso e tremendo através de suas jornadas

noturnas. "Como vimos, o sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder,

eficiência, fonte de vida e fecundidade" (ELIADE, 2010, p. 31). Logo o rito concebido

como uma experiência do real em ação, é como o ato primordial de criação, que surge

com fins de mediação. "O importante é crer que todos podem fazê-lo e que para isso é

preciso uma preparação. [...] rejeição das limitações habituais do homem e dos poderes

do homem [...] é preciso acreditar num sentido da vida renovado [...]" (ARTAUD,

1984, p. 22), a crença na ação mostra deque forma se inicia a preparação para o rito, a

vivencia do real, sagrado (ELIADE, 2010), na essência do ritual há a crueldade, pois é a

potencia ativadora dos corpos e das memórias. "[...] são principalmente os rituais mais

elaborados e geralmente mais públicos que modelam a consciência espiritual de um

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povo" (GEERTZ, 1989, p. 129), legitimação por meio do ato e por meio da presença do

elemento sagrado chamado por meio da performance cruel dos Penitentes.

A crueldade da flagelação existe, não há como negar isso, há a dor física, o

corpo violado e dilacerado, porém a superação da dor cotidiana é a chegada dessa

suspensão do tempo e do espaço em que a lucidez do Penitente mesmo que ligada a seu

ego, supera a crueldade cotidiana e a coloca em função do ato, ou seja, da performance

realizada. "Deixai as cavernas do ser. Vinde. O espírito sopra fora do espírito. É tempo

de abandonares vossas habitações [...] O maravilhoso está na raiz do espírito"

(ARTAUD, 1970, p. 253). O dito sobre o espírito é sobre a poética do ser, o momento

de libertar da ação mecânica do cotidiano regida pelas normas, Artaud (1970) nos trás a

ideia de vida ligada a linguagem, a vivencia desta por meio dos ritos cruéis, para fins de

libertar o espírito.

A rigidez do rito dá espaço para a prática cruel, sendo está dolorida e cruel

simbolicamente, quem observa as imagens de Guy Veloso percebe a potencia cruel da

jornada Penitente. Só por meio desta sequencia de atos realizado pelos Penitentes é que

se chega a poética cruel e sacra de sua performance da memória. Logo o ato é

legitimado como altruísta visando a harmonização espiritual das almas liminares.

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Considerações finais

O movimento laico realizado por inúmeros grupos de Penitentes e que foram

poeticamente captados através da fotografia de Guy Veloso é o marco no que diz

respeito a documentação, criação de acervo que marque as sutilezas de um ato que na

prática é forte, cruel e poeticamente performático.

Constato que o que chamo de performance da memória é possível, pode ser

expandido, mas que por agora já marca esse primeiro passo junto a crueldade Penitente.

A jornada dos grupos, o mistério envolvendo suas práticas, motivações para o

açoite de alguns já é um indicio de que ainda há muito a se explicar sobre estes grupos

que fazem parte de algo macro que é o catolicismo popular, fogem a regra atraves da

seus atos do que a igreja enquanto instituição soberana comummente realiza. Logo se

cria uma identidade de resistência espiritual, sendo assim seus ritos são formas de

legitimarem a si, seu altruísmo religioso.

A performance da memória está diretamente ligada a crueldade poética que

evidencio, estes elementos são constantemente ativados por estes grupos, que

caminhando e usando o elemento Morte, acionam histórias, vivencias de tempos outros,

dos que se foram, mas que na visão de mundo dos grupos não completaram a passagem,

a liminaridade incomoda de algum modo.

A crueldade artaudiana é chamada para dar base e suporte a forma com que os

ritos de sangue podem ser percebidos, de modo que, se pense sempre na superação da

dor cotidiana e lucidez espiritual em relação ao ato. Compreender que a crueldade pode

existir em ações mais sutis como a caminhada de homens e mulheres noite a dentro, já é

uma forma de superação da ideia comum que ligamos ao termo.

O ato da escrita que realizo é um modo de perpetuar a prática realizada por estes

diversos grupos, reforço por meio disso a preocupação do próprio Guy Veloso em

relação ao registro destes grupos e quando a continuidade destas atividades. Os eventos

são sazonais, seguem as caminhadas ano após ano, alguns grupos deixaram de existir,

outros ainda resistem e caminham.

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Referências

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ARTAUD, Antonin. Vida e Linguagem. São Paulo: Ed. Perspectiva. 1970.

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1983.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: editora wmf Martins fontes,

2010.

ELIADE, Mircea. "O espaço sagrado: Templo,palácio, << centro de mundo>>". In:

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1977.

GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro. Editora da Guanabara.

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MESLIN, Michel. "Noção de religião Popular". In: A experiência Humana do Divino.

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Tradução: Jerusa Prires Ferreira e Suely Fenerich. 1. ed. cosac Naify portatil. São Paulo,

2014.


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