+ All Categories
Home > Documents > photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar...

photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar...

Date post: 28-Nov-2020
Category:
Upload: others
View: 0 times
Download: 0 times
Share this document with a friend
195
- 1 -
Transcript
Page 1: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 1 -

Page 2: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 2 -

Page 3: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 3 -

� Trilogia de Imtharien �

O Retrato da Biblioteca

Page 4: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 4 -

Page 5: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 5 -

Edição de Autor

CARINA R. PORTUGAL

� Trilogia de Imtharien �

O Retrato da Biblioteca

Page 6: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 6 -

Edição de Autor

Título: O Retrato da Biblioteca Autor: Carina R. Portugal

Copyright © Carina R. Portugal, 2012 Ilustração: Ana Santo

1ª edição, Lisboa, Fevereiro, 2012

Todos os direitos para a publicação desta obra reservados à autora (Obra registada)

E-mail da autora: [email protected]

Página do livro:

https://www.facebook.com/pages/O-Retrato-da-Biblioteca/178986332126267

Page 7: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 7 -

�*�

Perscruto o mar da incerteza �o canteiro a níveo florido.

Que não carece da ebúrnea beleza, A mais simples flor do jardim.

Traja-se dela a sua própria pele, De veludo e seda contrastante, assim

Lembrando a amizade mais pura, A que é nua de preconceitos,

Tricotada de perfume e candura, Desabrochada em orvalho e condão

De fada, a varinha minha, Que lhe tocou o coração.

“A Mais Simples Flor”

Dedicado à Catarina

e a todas aquelas queridas pessoas que aturam a minha pessoa

�*�

Page 8: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 8 -

� Agradecimentos �

O mais profundo agradecimento aos meus fantásticos amigos, por me terem aturado com aquela sempre repetitiva frase e outras afins de

“não queres dar uma vista de olhos e dar-me a tua opinião?”. Agradeço também pelo apoio incondicional

e pelas críticas construtivas que me auxiliaram na elaboração desta história.

Não podia deixar também de agradecer à ajuda inconsciente que algumas bandas musicais me deram com músicas inspiradoras

que me acompanhavam durante as viagens de metro enquanto escrevia e tentava ao mesmo tempo não sair na estação errada. São elas:

Within Temptation, Rhapsody (of Fire), Blackmore’s �ight e The Lord of the Rings OST.

As suas músicas proporcionaram uma extraordinária banda sonora.

E por último, o meu agradecimento ao urso de peluche que serviu de modelo para desenhar imaginariamente o Yuri

e que está neste momento a apanhar pó na prateleira, enquanto me observa.

Page 9: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 9 -

� Índice �

PRÓLOGO - 11 -

LIRIANA - 12 -

A MANSÃO ADRIÁTICA - 17 -

A SOMBRA - 23 -

FOTOGRAFIAS E ROSAS - 31 -

O RETRATO DA BIBLIOTECA - 40 -

O LIVRO DO SOL E DA LUA - 46 -

O SEGREDO DE LORDE RIARGION - 53 -

O DESPERTAR - 66 -

OS UIVOS DA NOITE - 80 -

NELGADIR - 94 -

A LENDA DO LAGO MIDARVIA - 105 -

O PASSARINHO - 117 -

O VOO FINAL - 130 -

TRAIÇÃO - 143 -

A ESPADA QUEBRADA - 156 -

A MORTE É UM VÉU TÉNUE - 167 -

O JULGAMENTO - 176 -

EPÍLOGO - 189 -

GLOSSÁRIO I - 192 -

GLOSSÁRIO II - 194 -

Page 10: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 10 -

Page 11: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 11 -

Prólogo

Ó sagrada desavença do ser

�ada és num coração de alento, Contudo és dor e perdição �a triste alma esquecida.

�ão condenes então o bem, �ão reclames da vida a essência

Sua por direito de viver. Condena-te que de vil és

O que sempre desejaste ser. Encarcera-te em mil estilhaços

Da alma que te apregoa. Volta para não mais voltares.

“Profecia”

Uma espadeirada de alto a baixo dirigiu-se-lhe, impiedosamente, e ela recuou sem hesitar, deixando atrás de si um rasto de sangue. No entanto, algo correu mal. O pé prendeu-se, sem explicação, e o desequilíbrio assolou-a da forma mais inconveniente que encontrou. Os seus compridos cabelos negros varreram a cinza do chão carbonizado, quando, por um mero acaso, tropeçou numa pedra que, malfadada, cruzara o seu caminho. Na verdade, fora ela que cruzara o caminho da pedra, mas o seu imenso ego nunca a deixaria admitir tal facto. Contudo, o desequilíbrio que interviera na hora certa – ou errada, dependendo dos lados – fora a sua perdição. Com a queda desamparada, o bastão negro rebolou pelo chão e afastou-se irremediavelmente das suas mãos e de qualquer forma que tivesse para alcançá-lo. A sua fonte de poder traíra-a. E onde estavam os seus aliados? Mortos, presos, fugidos, ignorando o seu estado… Todos a tinham traído!

Avançaram então para ela, erguendo sobre a sua cabeça uma grandiosa espada de gume prateado. Iriam matá-la? Não, não seriam capazes os humanos piedosos e fracos, e esse erro seria a perdição de todos os mundos, pois não a manteriam prisioneira para sempre. Encontraria uma forma de regressar, e voltaria mais forte, muito mais forte, de tal forma que se arrependeriam amargamente dos seus actos vãos.

Um sorriso louco invadiu-lhe a face, e os olhos verdes brilharam de maldade, enquanto um outro traidor erguia um colar negro de onde pendia uma pequena gota lilás de cristal mágico. O par murmurou palavras conjuntas que constituiriam um lendário e poderoso feitiço, a Prisão de Cristal, o cárcere vitral e invisível, no reino das sombras, que a impediria de qualquer investida contra o seu mundo, tornando-a pouco mais do que um vulto do que fora.

Que o conjurassem! A sua alma era imortal e esperaria o tempo necessário para se destilar daquele vidrinho matreiro. Pois ela era a Senhora das Trevas, a Senhora do Mal, e o Mal prevalece, mesmo quando os Bons pensam que venceram. Ele volta sempre.

Um brilho inundou a lâmina da espada e a gota de cristal, num branco extenuante que avançou sem piedade sobre os cruéis olhos verdes e sobre todo o céu cinzento e agoirento. Um guincho agudo de animal maléfico fez-se ouvir por todo o ambiente em redor, trespassando os ouvidos dos incautos desprevenidos que nunca saberiam o que se passara no mundo longínquo onde os gritos tirânicos de raiva e frustração foram emitidos.

Quando a luz se dissipou, o supremo mal esvaíra-se, quase desaparecido da face da terra. No entanto, por quanto tempo o calmo mar se iria manter longe da maldade do ser que corrompe o mais inocente humano?

Pois um facto é certo: a persistência da alma é um bem natural que deve prevalecer… quando não usado pelas atemorizantes trevas.

Page 12: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 12 -

I

Liriana

Soa acima de nós Em ventos plácidos de paz Mão de sagrada presença,

Vendo-te, deliciado, A ti brilhar de astro tão belo, Lírio dos céus, que na noite

É luz que incendeia Sonâmbulos sonhos sombrios,

Que esperam escondidos �os recônditos obscuros

(Oh! Daquele bem maldito!) Da essência do ser.

“Brilho”

O luar espreitava timidamente pelo vidro da janela, trespassando o branco puro das cortinas semi-abertas

que deixavam antever um simples aposento – o quarto de uma jovem adolescente não tão simples quanto ele. O seu leito ficava junto à janela e a colcha azul escura, cravejada de estrelas, absorvia todos os efémeros raios lunares que se propagavam pendentes na atmosfera.

Pousadas sobre os lençóis de algodão, duas mãos morenas e irrequietas abriam-se e fechavam-se, torciam os lençóis e continuavam a fazê-lo repetidamente num nervosismo efusivo. Dois olhos castanho-mel olhavam desconfiados para o tecto escurecido pela noite, pensando, pensando e repensando na questão que a atormentava silenciosamente. Não percebia a súbita ideia dos seus pais. Nunca falavam da sua madrinha, nunca a visitavam e ela nunca os visitara. No seu aniversário e noutras épocas festivas oferecia-lhe cinquenta euros dentro de um postal pouco colorido a desejar-lhe Boa Sorte, Boas �otas e mais Boas Qualquer Coisa. Nunca a vira sem ser numa velha fotografia já carcomida pelo tempo, com manchas que mostravam a pouca qualidade dos químicos. O que lhe interessava saber que antes dos cinco anos tinha convivido com ela quase todos os dias? Liriana não se lembrava desses tempos passados. Há dez anos atrás perdera a memória devido a uma queda da janela. Mas as memórias que perdera nem lhe pareciam minimamente importantes. Deixavam-na curiosa, mas não mais que isso. A sua madrinha pertencia a um passado perdido.

E agora aquilo! E sem sequer fazerem o obséquio de lhe pedirem uma única e mísera opinião. Um mês! Um mês em casa de uma pessoa desconhecida no Minho, em Trás-os-Montes ou onde fosse! Não tinham o direito, era inadmissível. Já não era nenhuma criança, tinha quinze anos, quase dezasseis.

Deu uma volta na cama, deitando-se sobre o ombro direito, e abraçou-se a um ursinho azul que tinha desde pequena, um pequeno amigo, o mais secreto amigo, o seu grande confidente. Um confidente que nem na morte divulgaria os mais íntimos segredos. Porquê? Não por ser um ser inanimado, mas porque era o seu ursinho.

‒ Apesar da minha revolta, o melhor seria dormir, não é, Yuri? – perguntou para o urso, apesar de estar a falar mais consigo própria do que com o peluche. – Amanhã falo com o pai e com a mãe, talvez os consiga convencer a não me levar para o fim do mundo. Não quero conhecer a madrinha Alexandrina, não quero…

Por entre todos aqueles pensamentos de conjura contra a ida à afamada mas pouco conhecida terra da madrinha desconhecida, a jovem deixou-se adormecer sem se aperceber, enquanto o luar lhe tocava a face ternamente, num beijo de boas noites.

O subconsciente, como em maior parte das noites, levou-a para um mundo distante de irrealidades e fantasias, que só a si pertencia. Sonhou que estava num monte árido, cravejado de erva amarelada e ressequida,

Page 13: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 13 -

onde ovelhas esbranquiçadas, que faziam um barulho insuportável e que não se comparava a qualquer balir de uma ovelha, pastavam como se nada fosse. Parecia o zumbir de melgas gigantes, aqueles insectos horrorosos que picam as pessoas sem pedirem autorização e deixam uma recordação de alguns dias de comichão e um inchaço. Aquelas ovelhas imitavam-nas na perfeição, devorando a erva doentia, fazendo o estranho zumbido tão pouco característico e ignorando-a por completo, como se fosse um inofensivo microrganismo.

Porém, eram somente pormenores estranhos de um sonho estranho, por isso não podia ficar ali impávida a olhar para elas, decidiu. Começou a abrir caminho por entre os animais farfalhudos sem lhes tocar, erguendo os pés com esforço, como se as ervas daninhas se enrodilhassem à sua volta para a deter no seu avanço. Por fim, após ter andado o que lhe pareceram longas horas no meio da áspera lã dos animais, viu alguém ao longe. Esse alguém possuía duas pernas, dois braços e uma cabeça pouco nítida. Era uma silhueta humana. Aproximou-se mais, com passos que queriam ser apressados mas que contudo não o conseguiam e, ao encontrar-se a menos de um metro de distância da silhueta, os seus olhos deram conta de que não era uma pessoa que se encontrava estática no cume daquele montículo de campo, mas sim o que sobrava da sua passagem, uma mera e frágil sombra. Liriana tentou falar com ela, todavia não foi capaz de tocar naquela essência sobrenatural. Insensível a qualquer palavra, qualquer expressão, a sombra assim continuou, parada, ondulando quando um vento imaginado passava pela sua forma que agora não lhe parecia tão humana quanto isso. Voltou-se para olhar para trás, para as ovelhas-melgas que comiam o pasto na ignorância que lhes era reservada pelo ser Omnipotente. Era tudo tão estranho, tudo tão calmamente distante…

Abriu um pouco os olhos, deixando a ténue luz dos primeiros raios aquecerem-na com uma carícia

amorosa. Bocejou e esticou os braços, distendendo todos os músculos do corpo num estalar de ossos. Voltou-se para o lado da mesa-de-cabeceira e lançou um olhar ao relógio digital de números ofensivamente vermelhos. Faltavam cinco minutos para as seis horas da manhã.

O silêncio instalado em casa era leve e ameno, e deixava-a descansada. Por instantes esquecera-se do facto de ter de ir para casa da madrinha, esquecera-se de tudo o que a poderia incomodar num momento como aquele.

Yuri, o urso azul, repousava ao seu lado, meio amarfanhado por ter sido praticamente esmagado pelos braços da jovem enquanto dormia.

Soltou um suspiro longo. No exterior, os pássaros cantavam felizes com o amanhecer. Seria um bonito dia de Verão, quente e óptimo para a praia. Ah… mas ela não poderia ir para a praia, teria de ir para o campo. Lá no fundo também não gostava de praia, mas isso era um pormenor.

‒ Bah! Empurrou a colcha e os lençóis para trás num repente de aborrecimento e rodou os pés para o chão.

Calçou os chinelos com cerejas desenhadas e levantou-se, voltando a espreguiçar-se como um gato preguiçoso. Ainda teria de fazer a mala e, em todo o caso, tentaria dissuadir os pais.

Passou-se uma hora, a mala estava arrumada e começavam a ouvir-se movimentos no quarto ao lado. Um autoclismo fez-se ouvir, com o seu turbulento despejar de águas e a sua sucção que lhe dava voltas ao estômago ainda vazio.

Teria de esperar alguns minutos até que os pais acabassem de se arranjar e descessem para tomar o pequeno-almoço. Seria nessa breve altura, nesses minutos cruciais, que abordaria o tema polémico que a revoltava.

‒ Mãe, tenho mesmo que ir? – perguntou a jovem, levando à boca uma colher de cereais de chocolate e esperando por uma resposta que a acalmasse.

Anabela Leonor lançou um olhar de esguelha à filha e virou-lhe as costas, levando duas fatias de pão até à torradeira.

‒ Mãe! ‒ Penso que já falámos nesse assunto, Liriana – respondeu, sem a fitar, preferindo analisar um armário de

madeira envidraçado que guardava copos e canecas, muitos deles com desenhos de florinhas multicoloridas. Os olhos de Liriana estreitaram-se de concentração, tentando obter à força alguma desculpa decente.

Page 14: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 14 -

‒ Mas o Cajó não pode ficar sozinho – lembrou-se subitamente, pensando no seu micro-cágado, um animal amoroso que vivia num grandioso aquário na sala de estar. – Quem lhe dará comida? Quem lhe fará companhia? Sabes que ele fica deprimido e sem fome sempre que está só.

‒ A Mariana cuidará dele durante os dias em que estiveres ausente. ‒ Oh… a Mariana… ‒ Sempre disseste que ela adorava o Cajó, e é a tua melhor amiga – manifestou a mãe. – E não tentes

arranjar desculpas. Eu e o teu pai precisamos de um tempo juntos para discutirmos uns assuntos, pensei que compreendesses isso. Só vais ficar em casa da Alexandrina alguns dias.

‒ Um mês! – corrigiu Liriana, deveras aborrecida por o seu plano estar a ir plenamente pelo cano abaixo, como a expressão dizia.

‒ Não é um ano, pois não? ‒ Ó mãe, posso perfeitamente ficar em casa sozinha! Sei tomar conta de mim, não sou nenhuma maluca

destruidora… ‒ Podes tirar o cavalinho da chuva que isso não irá acontecer. Agora acaba o pequeno-almoço para te

levarmos até casa da tua madrinha. – O seu tom de voz era implacável, pondo um total ponto final sobre o assunto, pelo menos durante alguns minutos. – E não te esqueças de levar o medalhão.

A jovem desistiu daquela batalha, era um caso perdido. E depois ainda havia aquele assunto do medalhão! Após terminar os cereais, lavou os dentes e dirigiu-se novamente para o quarto. Abriu a última gaveta da

cómoda e revolteou-a um pouco até encontrar o que queria: uma caixinha de madeira, talhada primorosamente com flores douradas. Abriu-a. No seu interior forrado a veludo vermelho repousava um fio prateado onde se encontrava preso um medalhão com a sua fotografia enquanto bebé. Na imagem a sua mãozinha estendia-se para tentar alcançar a ocular da máquina e o seu sorriso alegre e esperançoso elevava-se até aos olhos que brilhavam entusiasticamente. Tinha de confessar a si própria que, naquela altura, até parecia uma coisa amorosa.

Tirou-o da caixa com cuidado e colocou-o ao pescoço. O grande motivo que levava os pais a quererem que ela o levasse era o facto de ter sido a sua madrinha a oferecer-lho quando fizera um ano de idade. Possivelmente ela nem repararia que o levava, era uma preocupação desnecessária. Revirou o medalhão nos dedos e olhou para a parte de trás onde jaziam algumas palavras que sentia não terem qualquer significado: Para a Liriana com amor, da Alexandrina. Amor… ela nunca lhe chamaria isso. Não via razões para tal.

O carro dos pais, um fiat vermelho, encontrava-se estacionado à porta da entrada de casa. Liriana deixou-

se cair pesadamente no banco de trás, com a face voltada para a janela que dava para o passeio do outro lado da estrada, onde se podia ver um bonito conjunto de árvores, relva, lago e animais vulgares. O jardim que ficava em frente à sua casa trazia-lhe tão boas recordações de infância! As árvores verdes lembravam-na dos dias em que as tentara trepar, dizendo vezes sem conta que era o Tarzan ou o Peter Pan; a relva macia trazia-lhe à memória os dias em que se sentara e rebolara por ela feliz, sem preocupações; onde, por vezes, fizera piqueniques com a Mariana e com o Yuri; em que passeara de mãos dadas com os pais; e o lago… ah! O lago… Os cisnes brancos nadavam por ele, comendo os bocadinhos de pão que lhe atiravam e importunando os peixes vermelhos que por ele passeavam. Era tudo tão perfeito, até começarem as discussões entre os pais. Estavam em vias de se divorciarem e era por isso que queriam o seu afastamento.

O pai era um advogado conceituado que possuía um enorme escritório com imensos empregados, nos arredores de Lisboa. Sempre a adorara e fazia tudo por si, sendo um dos seus grandes amigos, o seu anjo-da-guarda mais afincado. Lembrava-se da vez em que ele a levara à Disneyland Paris. Tinham ido só os dois pois a mãe não pudera tirar uns dias para os acompanhar. Percorreram todos os divertimentos, todas as suas aventuras predilectas e comeram chocolates e algodão-doce até não poderem mais! Fora fantástico.

Ao contrário do pai, a mãe possuía uma personalidade mais calma, não sendo propensa a grandes emoções. Compreendia-a, obviamente, e era sua amiga. Mas Liriana não poderia dizer que gostava mais de um do que do outro, pois amava ambos, eram os seus pais, a sua alma dividida em duas partes. E como gostava que se pudessem voltar a unir.

A mão apertou o medalhão com força, destilando nele a fúria que sentia por ser tão impotente, por não resolver tudo com um estalar de dedos ou com uma varinha mágica, como nos filmes de magia.

Page 15: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 15 -

A porta do lado do condutor abriu-se e o pai sentou-se ao volante, enquanto a sua mãe entrava pelo outro lado, instalando-se ao lado do marido. Possivelmente iria ser uma viagem soturna e Liriana sentiu a tensão no ar, mal o carro se pôs em marcha. Iriam percorrer um doloroso caminho com poucas curvas, uma auto-estrada qualquer que lhes adiantaria a viagem e lhe tiraria um tempo precioso que já não poderia apreciar.

‒ Adeus – murmurou a jovem para o jardim e para a casa, como se fosse uma última despedida e nunca mais os voltasse a ver, passando a habitar, após a viagem, num fim do mundo intransponível. Sabia que estava a ser demasiado dramática, mas não o conseguia evitar.

As árvores corriam para trás de si, abanando os densos ramos numa triste despedida. Sentiu uma lágrima solitária a escorrer-lhe pela face e apressou-se a limpá-la antes que alguém desse conta. Não queria que os pais soubessem que estava tão triste assim. Nem queria que a considerassem uma criancinha chorona.

‒ Para onde vamos mesmo? – perguntou, ao fim de algum tempo, cansada da monotonia de ver carros a passar incessantemente. A paisagem era prática e incorrigivelmente a mesma. As árvores repetir-se-iam sucessivamente, e sabia que, ao fim de algum tempo, veria muitas delas desfolhadas e com a cor agonizante do carvão – os incêndios eram pragas muito piores que os insectos que se propagam sem limites. O céu limpo da manhã tornara-se cinzento e ameaçava-os com forte chuva e uma possível trovoada.

‒ Para Vila Pouca da Beira, uma terra muito bonita – respondeu o pai, sem retirar os olhos da estrada. – Vais ver que te vais divertir, a tua madrinha tem uma casa muito interessante.

Liriana não respondeu, fechando os olhos e ficando com tudo o que pensava da madrinha e da sua estúpida terrinha para si.

‒ Ainda falta muito? – perguntou entediada, cinco minutos depois. ‒ Um bom bocado, cerca de duas horas e meia. Ainda teria de esperar muito. Talvez tentasse dormir um pouco, assim não teria de pensar. A última coisa

que desejava fazer era dar conta do seu inglório destino. No fim do mundo não teria Mariana, nem Cajó, nem Yuri, nem os seus pais ou os seus amigos, nem…

‒ Parem! – gritou num repente, fazendo com que o pai travasse bruscamente. Com agressividade, uma buzina ensurdecedora fez-se ouvir de um grotesco camião TIR que seguia atrás

do carro vermelho e quase o esmagara. ‒ O que foi agora, Liriana? – A impaciência reflectia-se na voz do pai, que se tornara áspera, e algumas

gotas de suor escorriam-lhe pela testa, após ter visto que quase tinham sido esmagados por um veículo de aspecto intimidante.

‒ Esqueci-me dos meus livros! Não posso ir sem eles! A jovem parecia simplesmente desesperada. Os livros eram outros dos seus grandes amigos e sem eles

sentia-se praticamente vazia, sem essência que a animasse. Principalmente num lugar inóspito como uma terrinha perdida no meio da serra, ou fosse onde fosse.

Depois de escutar outro buzinar, o pai pôs o carro a andar normalmente e só respondeu quando o camião os ultrapassou e o seu condutor lhes fez um gesto não muito agradável.

‒ Não podemos voltar atrás, estamos quase a meio do caminho. – Parecia desconcertado com aquele problema da filha. Pensara muito bem naquele assunto e ainda não lhe agradava levar Liriana para casa da sua prima Alexandrina. Tinha medo que a filha se sentisse só.

‒ E além disso – a mãe falou pela primeira vez desde que começaram a viagem cansativa –, a tua madrinha tem imensos livros, não vais necessitar dos teus.

Liriana olhou para a mãe com os olhos muito abertos de espanto, o que fez Anabela sorrir. ‒ Ai tem? – Tudo o que se referisse a livros despertava-lhe um animado interesse. – Que género de livros? ‒ Todo o género de livros. Tem uma biblioteca imensa, recheada com, arrisco dizer, milhares deles. – A

mãe riu-se ao ver o entusiasmo da filha aumentar. – Espera e verás. A partir daí, Liriana fez o resto da viagem com um pequeno sorriso de satisfação nos lábios e um

brilhozinho nos olhos. Imaginava já todos os livros que a madrinha pudesse ter nas imensas estantes. Os mais clássicos – Romeu e Julieta de William Shakespeare ou Os Lusíadas de Luís de Camões, ou mesmo o Drácula de Bram Stoker; os mais modernos, de escritores como Stephen King e Fernando Pessoa; e mesmo os livros fantásticos, como os de Tolkien, ou Robert Jordan, ou outros ainda mais emblemáticos. Maravilhas raras, um universo misterioso de amarelecidas páginas velhas (outras nem tanto), onde cavaleiros lutavam com dragões e resgatavam as suas princesas, onde alquimistas tentavam criar o elixir da vida, onde navegadores corajosos

Page 16: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 16 -

conquistavam os mares revoltos do infindável mundo das descobertas. Tudo perto de si, tudo ao alcance da sua delicada mas ávida mão.

Durante a viagem, Liriana viu passar inúmeras sinalizações que variavam nas suas cores algures

aberrantes. Muitas desejavam boa viagem, entre outras palavras que não lhe chamavam a atenção, e a maior parte indicava nomes de terras suas conhecidas, como Coimbra, por onde passaram vagamente e não pararam, e terras suas desconhecidas que nem no mapa deveriam vir de tão pequenas que deveriam ser, como Vendas de Galizes, Avô e, por fim, Vila Pouca da Beira. Estavam a chegar ao seu destino.

Simples vivendas passaram por si, sem lhe chamar a atenção. Eram normais, como muitas das que via na capital, sem interesse. Contudo, ao longe uma torre cinzenta começou a erguer-se contra o céu, ocupando cada vez mais o horizonte, enquanto o fiat se aproximava. Sentiu-se a encolher no meio das árvores que a rodeavam de um lado e do outro da estrada, e ao princípio não soube bem a razão. Alguma coisa a intimidava, uma sensação que chegava até si e lhe arrepiava a pele.

O carro parou, pouco depois do início da vila, em frente a esse casarão imponente que transmitia uma austeridade arrepiante, e que se lhes vinha a mostrar desde que entraram oficialmente na vila.

Liriana saiu e bateu com a porta distraidamente, enquanto olhava com atenção para aquele edifício espantoso que seria a sua morada durante os próximos trinta dias. Era feito em granito e as janelas estavam sustidas em caixilhos de madeira castanha-escura, contudo nenhum desses materiais a tornava ridícula, muito pelo contrário, impunham-lhe severidade e uma firmeza pouco cativante, mas que lhe despertava a curiosidade. Um telhado de um laranja musgoso dava o toque final, sendo que ainda se observava uma larga torre que se erguia no seu centro até cerca de doze metros de altura: a torre que primeiro vira, antes mesmo de saber que era naquela casa que ficaria.

Ao ver o ar estupefacto da filha, Anabela, sua mãe, explicou-lhe qual a natureza da torre enorme: era a biblioteca. A casa estava também rodeada por árvores quase gigantes, muito maiores do que as do parque que ficava em frente da sua casa. Deveriam ser centenárias ou mesmo milenares. O que interessava? O importante era que estavam ali para a receber com ou sem os braços abertos, como valentes e sérios soldados que guardam a sua fortaleza.

O pai tirou a mala do porta-bagagem e pousou-a, soltando um suspiro de alívio. O que teria a filha posto dentro dela? Chumbo? Bem, definitivamente não compreendia as mulheres e se nalgum remoto dia entendesse, seria um dos mais grandiosos milagres.

Transportou a mala pelos portões abertos, penetrando naquela pequena amostra de bosque que lhes dava as boas vindas, deixando-a cair numa enorme laje que precedia a quatro degraus de pedra muito bem polidos e com pequenos relevos, talvez palavras de uma língua antiga e desconhecida. Levantou a mão e puxou um cordão rústico que fazia um sino de cobre badalar.

Liriana olhou para o lado esquerdo onde, incrustado na ombreira, estava um botão branco: a campainha eléctrica. Não conseguiu evitar um sorriso de divertimento maroto pelo estardalhaço que o pai fizera com o sino. Muito divertida aquela peculiar casa. Alexandrina seria igual? Tinha as suas sérias dúvidas.

Page 17: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 17 -

II

A Mansão Adriática

Que era vasta, sem fim,

Conhecia-se já de olhar; Que de magnânime tinha a vida,

Sabia-lo a morte e fugia. Mas de inato desconhecido

�ada em si se possuía. Era mistério que caminha descalço

Por calçadas de tempos antigos, Cerne de questões irreveladas

De perguntas irresolvidas. Permanece quimera agora, Continuará quimera um dia.

“Quimera”

Esperaram algum tempo, à sombra de um enorme e antigo carvalho dos que ao princípio lhe parecera tão

atemorizador. Liriana continuou a observar o que os olhos conseguiam alcançar. Em frente à mansão, do outro lado da estrada, estendia-se um sem número de frondosos pinheiros bravos, rodeados de fetos que aqueciam as suas longas raízes. Pareceu-lhe ver uma lebre ou um coelho saltitar entre as plantas que cresciam sem cuidados; porventura teria alguma pequena toca por ali, onde tentava viver em paz o tempo suficiente para procriar e deixar descendência.

No preciso momento em que desviou a atenção do bosque, um carro passou junto à casa a uma enorme velocidade e virou numa curva apertada, desaparecendo de vista. A estrada não lhe parecia nada agradável, notou, de sobrancelhas franzidas.

Deixando por fim a estrada escura, Liriana cedeu a sua atenção à enigmática casa que a enfrentava. Por cima da porta principal podia observar-se um emblema em pedra, deliciosamente lapidado, onde duas espadas se entrechocavam acima de dois magníficos cavalos que se erguiam sobre as patas traseiras. Possivelmente seria o brasão da família. Abaixo podia ler-se, também em pedra, numa letra forte e marcante, duas únicas palavras: Mansão Adriática.

‒ Adriática? – estranhou, fazendo uma careta de quem não apreciou o nome. ‒ O apelido da família – esclareceu o pai num murmúrio e sem mais qualquer palavra, como se fosse tabu

dizer tal coisa. Após a espera impaciente, o trinco da porta abriu-se com força, o que lhe fazia prever que seria resistente

e pesado, tal como a porta, para prevenir qualquer tipo de invasão à propriedade alheia. Liriana esperava ansiosamente ver a madrinha, Alexandrina Adriática. Imaginava até como poderia ela

ser: uma senhora loira e gorducha, com uma dezena de gatos de estimação atrás… Não! Tal coisa era impossível, tinha de ser alguém que se interessasse por livros, e essa não lhe parecia a melhor figura para alguém que amasse as páginas das míticas histórias de Tróia. Possivelmente seria alta e magra, com um olhar hostil e pouco simpático. Não que isso lhe agradasse de alguma forma, demasiado rude para o seu gosto. Seria melhor esperar para ver.

A porta abriu-se lentamente, causando uma ânsia excessiva em Liriana. Alguém espreitou, contudo não era a sua madrinha, nem sequer era uma mulher. Um velhote de olhos cinzentos e cabelo branco como a neve sorriu-lhes amavelmente, enquanto abria a grande porta por completo.

‒ Bom-dia, Anderson – cumprimentou o pai, apertando a mão enrugada do senhor idoso.

Page 18: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 18 -

A jovem tentou não abrir a boca, mostrando a sua decepção em não ver a madrinha. Seria o velhote marido dela? Impossível! Nunca imaginara a madrinha como uma velha caduca e decrépita, mas perante as evidências…

‒ Sejam bem-vindos, menino Lourenço, menina Anabela e pequena Liriana. – A sua mão fugiu da do pai para a da sua mãe, chegando à sua própria mão. Era um aperto vigoroso, apesar de Liriana ter pensado o contrário com a simples visão do ancião. – A menina Alexandrina espera-os para o almoço, façam o favor de entrar.

O seu pé pisou um tapete vermelho ao entrar atrás dos pais e, nesse mesmo instante, foi assolada por enumeras sensações, algumas delas que nem mesmo sabia descrever. A primeira impressão que Liriana teve ao penetrar na mansão foi um sentimento de pequenez perante um colosso que a poderia esmigalhar em fina areia, pois o tecto erguia-se muito acima das suas cabeças, numa altura vertiginosa que coroava a moradia. Após esse sentimento se dissipar um pouco, os pequenos pormenores revelaram-se e a jovem sentiu-se maravilhada. Se por fora a achara grandiosa, o que dizer do interior! As altas paredes castanho-escuras estavam pintadas com tinta dourada em floreados divinais, por cerca de um metro acima do chão; quadros e espelhos emoldurados na mesma cor rodeavam as paredes: retratos antigos onde muitos dos ocupantes com trajes de épocas passadas lhe davam as boas vindas com sorrisos amáveis ou ares terrivelmente sérios. A sua madrinha estaria entre todas aquelas pinturas?

Por fim, olhou para o tecto, novamente e com mais atenção. Fazia-lhe lembrar a capela Sistina com as maravilhosas pinturas de Miguel Ângelo: vários anjos rodopiavam pelo céu de tinta azul, descansando em nuvens brancas e tocando harpas. Era lindíssimo, ou ainda mais! Liriana arriscava pensar que era sublime.

‒ Bela, Lourenço – chamou uma voz altiva mas suave, que se propagou por todo o hall de entrada, produzindo um pequeno eco e interrompendo os seus pensamentos de admiração pela arquitectura e pelo interior da casa.

Liriana desviou a atenção dos quadros e das bonitas pinturas e focou-se numa figura alta vestida de negro que surgira não sabia muito bem donde.

Era uma mulher nova, de uma palidez extenuante e dois olhos azuis com a profundeza de fossas abissais. Um comprido cabelo negro caía-lhe até às ancas, emoldurando-lhe a face e tornando-a ainda mais ebúrnea do que na realidade era. Uma aparição ou um fantasma deveras enigmático era o que parecia ser.

‒ Alexandrina! – A sua mãe avançou para a mulher de preto e abraçou-a ternamente. Nunca pensara que fossem tão amigas, tão íntimas, porque basicamente e desde que Liriana se lembrava não se encontravam há imensos anos.

O seu pai também lhe deu um forte abraço e só depois a mulher de preto lhe dirigiu a atenção. ‒ Liriana, como cresceste! Após um choque de primeiro contacto, a jovem aproximou-se da madrinha e depositou-lhe dois beijos

secos na face. Nunca se tinham visto, ou pelo menos Liriana não se lembrava de alguma vez terem convivido. Só tinha aquela foto velha que nem lhe fazia passar pela cabeça a figura que se lhe mostrava.

Ofereceu um sorriso tímido e bem-educado à madrinha e virou o rosto para os pais, tentando receber alguma indicação do que fazer ou dizer.

‒ Já não te via há muito tempo, mas sinto que continuas a mesma. – Liriana escutou-a, admirada. – Tens um olhar sonhador e… desconfiado, se não me engano.

A jovem riu-se e corou um pouco, contudo não negou o que Alexandrina tão perspicazmente notara com uma simples observação.

‒ Mas não fiquemos aqui na conversa, o almoço espera-nos. Penso que gostem de empadão, estou correcta? – perguntou, virando-lhes as costas e encaminhando-se para um enorme salão. Liriana fez uma careta silenciosa e pediu piedade à mãe. Era uma das refeições que mais detestava.

‒ Claro que sim, adoramos! – Anabela advertiu-a com o olhar, enquanto respondia à madrinha de Liriana. O interior do salão era ainda mais belo do que o hall de entrada. As paredes já não eram castanhas mas

sim brancas e o tecto continuava a ter as pinturas dos anjos, contudo pareciam muito mais etéreos devido à brancura que as paredes emanavam em todo o seu redor; dois grandiosos lustres pendiam do céu angelical em tons de prateado, iluminados por um brilho cristalino; o chão… bem, Liriana não percebeu muito bem do que era feito o chão, mas era de um material extremamente brilhante, conseguindo mesmo reflecti-la. O salão possuía também quatro enormes e delicadas vidraças com caixilhos prateados que davam para o jardim das traseiras. Através delas podia-se antever um labirinto de roseiras floridas. Havia uma única cor dominante: o

Page 19: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 19 -

vermelho. Era um requinte que deliciava a alma. Deixou escapar uma exclamação de espanto e corou pois deu-se conta disso, mas pareceu ser a única.

Sentaram-se à mesa, onde estavam poisados cestos de fruta, várias sobremesas de aspecto delicioso e, para o desprazer de Liriana, o desdito empadão.

Cada um dos pais acomodou-se dos lados de Alexandrina, e ela ao lado do pai, preparando-se para se servirem. Contudo, mesmo antes de o fazerem, o velhote que lhes abrira a porta entrou dentro da sala silenciosamente, num fato negro que a jovem notara agora ser de mordomo e não de marido, o que a levou a sorrir perante a ideia sem cabimento que alguns minutos antes a espicaçara.

‒ Menina Alexandrina, o menino Leonardo acabou de chegar – disse. – Peço-lhe para entrar? ‒ Claro que sim, Anderson, convida-o para almoçar connosco, assim apresento-lhe a Liriana e a Anabela. O mordomo fez uma pequena semi-vénia e saiu da mesma forma que entrara, num silêncio sonante.

Liriana ficou a olhar para a porta. Leonardo seria mais algum velhote? Normalmente em vilas como aquela o que havia em demasia era uma quantidade exagerada de idosos com reumatismo, e pensava isto sem querer ser preconceituosa. Simplesmente imaginava os problemas que todos eles poderiam ter e isso entristecia-a.

Dois sapatos fizeram-se ouvir nas tábuas do exterior e um homem espreitou para dentro do salão. ‒ Tens visitas? – perguntou, espantado. Tinha o cabelo castanho de tom escuro e um pouco revolto, e uns

olhos a condizer num rosto entusiasmado. Liriana sentiu-se a corar. Era bonito, muito bonito. Seria o namorado de Alexandrina?

‒ Nota-se assim tanto? – Alexandrina lançou-lhe um sorriso sarcástico. – Senta-te, tens um lugar livre ao lado da minha afilhada Liriana.

A jovem corou ainda mais ao ouvir a ordem da madrinha e paralisou momentaneamente a olhar para o prato ainda vazio que esperava ansiosamente por um pouco de comida.

‒ Oh! Seria uma honra sentar-me ao lado de tão bela donzela – gracejou, dando a volta à mesa e puxando a cadeira de espaldar alto para se acomodar.

Liriana nada disse, sofrendo de um bloqueio total que depois amaldiçoou. Podia ter metido conversa com Leonardo, parecia ser um homem muito simpático e o seu sorriso era irresistível. Não, tinha que acabar com as parvoíces. Ele devia ter perto de trinta anos, o dobro da sua idade!

A madrinha apresentou-o formalmente. O seu nome era Leonardo d’Ávila e morava na excepcional cidade de Coimbra. Detinha a profissão de (e Liriana nunca na sua vida teria imaginado tal coisa) médico legista, um dos melhores do país, segundo Alexandrina.

‒ Quer dizer que faz autópsias? – perguntou Anabela, dando voz às ideias da filha. ‒ E não só, mas as autópsias são sem dúvida o mais divertido. – Leonardo riu-se das caras de confusão e

perplexidade que todos os convidados apresentavam. – Não é tão mau como muitos pensam, e tem um lado muitíssimo positivo. Ao contrário de muitas especialidades médicas, a probabilidade de se matar alguém durante uma autópsia é praticamente nula.

Liriana soltou uma pequena gargalhada divertida. Sob aquele ponto de vista, o Doutor Leonardo d’Ávila tinha toda a razão.

‒ Então e o que desejas ser? – Leonardo voltou-se para Liriana e sorriu-lhe, incentivando-a a responder. ‒ Bem… eu… quer dizer… – Não! Tinha-se atrapalhado outra vez, só lhe faltava começar a gaguejar.

Tentou respirar fundo sem que ninguém notasse, incentivando-se a manter a calma. – Ainda não sei muito bem, tenho mais dois anos para poder escolher.

‒ Hum… isso quer dizer que estás no 11º ano, certo? Em que curso? – perguntou interessado. ‒ Ci-ci-ciências e tec-nologias. – Pronto, estava a gaguejar! Leonardo pareceu aprovar, o que a deixou cem vezes mais contente do que há cinco minutos atrás. Ficou

até com vontade de comer o horrível empadão que a olhava, pedindo piedade, do belo prato de porcelana. Durante o resto do almoço, Liriana ouviu silenciosamente diversas histórias, descobrindo que

Alexandrina era astrónoma e que possuía um observatório na sua mansão. Como já sabia, a madrinha era prima do seu pai e uma grande amiga da sua mãe. Era rica e vivia sozinha naquele palacete, sendo regularmente visitada por Leonardo que gentilmente apelidara por “insuportável chato”.

‒ Merci mademoiselle – Leonardo imitou o melhor que pôde uma vénia trocista e maliciosa do lugar onde estava. – Dou o meu melhor.

Ao fim de algumas pequenas conversas, Anabela tocou no assunto que durante a viagem a entusiasmara tanto e lhe fizera criar mil e uma fantasias.

Page 20: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 20 -

‒ A Liriana adora ler todo o tipo de livros e contei-lhe sobre a tua biblioteca – observou. Nesse mesmo segundo foi notória uma completa modificação no rosto de Alexandrina. O seu sorriso

esvaiu-se e desapareceu, e os profundos olhos azuis tornaram-se sombrios. Uma verdadeira sombra assolara-a. ‒ Já não existe biblioteca. – A voz era áspera e fria, demonstrando que aquele era um assunto sobre o qual

não queria falar. Contudo Anabela insistiu. ‒ Mas não existe como? Mudaste-a para outr… ‒ Ardeu. – Alexandrina fora cortante. Era agora mais que óbvio que aquele assunto a incomodava

excessivamente. Ardeu? Liriana imaginou, horrorizada, todos aqueles fantásticos livros em fogo, as labaredas a

consumirem cada página de Shakespeare, cada verso de Goethe. Era um dos maiores crimes que se podia imaginar. Se um atentado matava centenas de pessoas, o fogo numa biblioteca assassinava biliões delas, personagens que faziam as delicias de outros, teorias que eram o tudo de muitos. Não, era mau demais, e pelo que o coração lhe dizia, a madrinha sabia-o muito bem. Era alguém que vivia para as suas coisas e as amava profundamente. Aquela devastação deveria ter destruído parte de si, fragmentando-a em peças de puzzle que já não se encaixavam e tornavam a união praticamente impossível.

‒ Alexis, porque não nos levas para o jardim? – sugeriu Leonardo, tentando quebrar aquele silêncio incómodo que se instalara entre eles como uma aura maligna prestes a libertar-se.

A pálida mulher de negro ergueu-se da cadeira sem nada dizer, mas numa total aceitação da sugestão do amigo, sendo imitada pelos quatro visitantes. Dirigiu-se a uma das enormes vidraças, com passadas amplas, e abriu-a de par em par dando passagem para quatro degraus de pedra que os levavam directamente para o jardim e para o labirinto de rosas. Seguiram-na sem nada a dizer e, quando chegaram ao jardim, ouviram-na suspirar melancolicamente.

‒ Se a Liriana quiser, enquanto cá estiver poderá ir até ao meu escritório. Tenho por lá alguns livros de que deve gostar – comentou, sem os olhar, e a pequena jovem imaginou que no seu interior Alexandrina deveria chorar lágrimas de sangue pelo destino da biblioteca.

Passaram o resto do dia no jardim, apreciando as bonitas e fragrantes flores de duas faces tão distintas, duas almas contrárias unidas num corpo. De um lado, sorria-lhes uma aveludada beleza; do outro, a amargura e crueldade dos espinhos parecia-lhes implorar por sangue. Sempre considerara as rosas flores imensamente expressivas. No jardim havia também um relógio de sol feito em mármore, no centro do labirinto, um artefacto de uma beleza antiga que situava a mansão num tempo passado. Tudo lhe dizia que era uma moradia diferente do normal.

Liriana vagueou entre as sebes altas. Sentia que aquelas plantas se adequavam ao tão belo e triste local no meio do nada que era a moradia. Definiam a Mansão Adriática melhor que tudo, possuíam a sua aura. Só não descobrira ainda o porquê de achar tal coisa.

Ao fim do dia, e com grande lástima, despediu-se dos pais que teriam de voltar para casa. Passaria o próximo mês naquela mansão entristecida, sem a grandiosa biblioteca que esperara encontrar.

A mãe deu-lhe dois intensos e carinhosos beijos na face, aconselhando-a a não chatear a madrinha e a ficar sossegada, não saindo de casa à noite. Por sua vez, o pai depositou-lhe um beijo terno na fronte com uma única palavra que, contudo, significava muito: Adoro-te.

Viu-os descer os degraus de pedra fria e entrar no carro. Iriam regressar à capital para tratar de assuntos que também lhe diziam respeito. No entanto faziam questão de afastá-la, deixá-la de parte, como se não passasse de uma criancinha inocente e sem consciência para o mundo. O carro afastou-se na estrada do entardecer e Alexandrina pousou-lhe a mão no ombro. Parecia sentir a sua tristeza.

‒ Vamos para dentro? – perguntou calmamente, ao fim de algum tempo. Ainda não lhe tirara a mão do ombro e continuava ali, parada ao seu lado. O veículo desaparecera já numa curva da estrada e nem o motor se escutava. Liriana sentia-se só.

‒ Sim – murmurou a jovem, mas muito baixinho. A madrinha guiou-a para o interior e fechou a porta silenciosamente, sem deixar de a acompanhar. Liriana olhou para os quadros do hall de entrada. Já não emitiam a alegria que pensara sentir. Nesse

momento pareciam apenas e simplesmente antigas pinturas sem vida. E o tecto parecia já não conter anjos, mas pequenos demónios disfarçados que a atormentariam até à loucura durante as infinitas noites que se seguiriam.

Page 21: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 21 -

‒ Vou mostrar-te o teu quarto, o Anderson deve ter levado a tua mala. – Alexandrina sorriu-lhe amavelmente, tentando confortá-la. – Poderás arrumar as tuas coisas, se quiseres, ou deixar isso para amanhã se te sentires demasiado cansada. Mostrar-te-ei também o resto da casa, mas só amanhã.

Começaram a subir as escadas alcatifadas com um tapete persa de desenhos que não lhe significavam nada. Sentia-se mole, as palavras da madrinha pairavam à sua volta e não as conseguia assimilar devidamente.

Pararam defronte para uma porta que Alexandrina se apressou a abrir. Dava para um bonito quarto com vista para o jardim e para todas aquelas rosas que agora lhe causavam apreensão. A sua mala estava em cima de um baú junto aos pés da cama coberta por um dossel branco semi-transparente. Uma escrivaninha esperava-a, encostada à parede, caso sentisse desejo de escrever. Entraram e Liriana pôde ver que, atrás da porta, estava um enorme guarda-vestidos onde um espelho a reflectia.

‒ Bem, espero sinceramente que gostes do quarto, é uma coisa simples. Podes ficar à vontade para fazeres o que quiseres. Eu e o Leonardo esperamos-te lá em baixo na sala de estar para depois jantarmos.

‒ Sim, madrinha – respondeu Liriana laconicamente. ‒ Trata-me por Alexis, não sou assim tão velha, só tenho vinte e sete anos. – Alexandrina piscou-lhe o

olho. – Até já! A jovem viu-a afastar-se com o cabelo negro a adejar atrás de si e, quando sabia que a madrinha já tinha

descido as escadas, dirigiu-se para a cama e deixou-se cair. Sentia-se confusa. Alexandrina parecia ser uma pessoa fantástica e muito generosa mas, ao mesmo tempo, tinha a certeza de que escondia algo. Era obviamente notável no seu olhar, na sua forma de ser, na sua personalidade. Emanava mistério de todos os lados, ela e a enorme mansão que seria a sua morada durante um mês. Como poderia viver sozinha num sítio como aquele? Tinha a certeza que enlouqueceria. Veria fantasmas e espíritos por todo o lado, em cada sala que entrasse. Ganharia, e a um nível grotesco, a chamada “mania da perseguição”. Alexandrina seria assim? À primeira vista não parecia, mas como as aparências podem enganar!

Ao fim daqueles pensamentos, sentiu cócegas suaves na mão e levantou a cabeça, intrigada. Sobre a cama passeava-se um gato preto sem coleira, mas com um aspecto muito bem tratado. Um arrepio momentâneo percorreu-a ao lembrar-se dos presságios que os gatos pretos transportavam às costas. Pobres bichanos.

Estendeu a mão para lhe tocar, mas o animal escapuliu-se suavemente com um salto de acrobata, fugindo até à porta do quarto. Chegado aí, lançou-lhe um último olhar com os seus felinos olhos amarelos e desapareceu no corredor. Liriana não poderia achar aquilo estranho, era só um simples animal e milhões de pessoas teriam um animal de estimação, apesar de ouvir dizer que, na realidade, os gatos nunca eram totalmente domésticos. E, falando em animais domésticos, até ela tinha o seu Cajó!

Soltou outro suspiro e, por fim, levantou-se decidida a arrumar todas as suas coisas nos devidos lugares. A face voltou-se para a janela enquanto o fazia, obrigando-a, instintivamente, a recuar dois passos

súbitos, levando as mãos ao peito. Piscou os olhos, confusa. Por momentos juraria ter visto a sombra de alguém. Avançou devagar e espreitou através dos cortinados semi-abertos. A varanda estava completamente vazia, só o pôr-do-sol a assolava num tom melancólico.

‒ Este clima está a afectar-me – murmurou para si mesma. Preferiu deixar as arrumações para o dia seguinte, quando estivesse mais sossegada, e desceu, esperando

encontrar Leonardo. E assim foi. O jovem doutor estava encostado ao parapeito da janela da sala de estar, porventura mergulhado em pensamentos acalentados pelo bonito espectáculo a que assistia no céu que escurecia.

‒ Alexis? – murmurou, ao ouvir os passos de Liriana. Contudo, ao voltar-se, viu que não era quem ele pensara. – Liriana! Então, já arrumaste as tuas coisas? Gostaste do quarto?

‒ Ah… sim, é muito bonito – respondeu, lembrando-se ainda da sombra que vira fugazmente. Tinha sido tão real…

Leonardo olhou-a de modo meditativo, o que a levou a corar. Teria percebido os seus pensamentos? Não tinha sido totalmente convincente, mas o doutor nunca saberia o que ia na sua mente.

‒ Bem, ainda bem que gostaste. Isto por aqui é um lugar muito calmo, óptimo para passar uns bons dias de meditação ou uns dias românticos ao luar. – Sorriu-lhe, piscando-lhe o olho na brincadeira e Liriana sentiu o rubor intensificar-se cada vez mais. Aquilo quereria dizer alguma coisa? Tentava ele passar-lhe alguma mensagem? Sentia-se uma perfeita idiota ao pôr tais alternativas a si mesma. O ego andava a trabalhar em demasia.

Page 22: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 22 -

Ao jantar, Liriana falou a Alexandrina do gato preto que a surpreendera enquanto descansava. A imagem

do animal ainda não lhe saíra da cabeça, nem mesmo a da sombra. Porém esta última seria somente um produto da sua imaginação, logo não a iria mencionar, não a fossem rotular de maluquinha.

‒ O Zeus? É um mexeriqueiro, anda sempre a meter o nariz em tudo. – Alexandrina encheu o seu copo com água provinda de um jarro. – Mas é muito meigo, não precisas de ter medo dele.

‒ Claro que não, apesar de me ter assustado um pouco. Apareceu de repente, quando estava a descansar. Não estava à espera, foi só isso.

‒ O Pompom? – perguntou Leonardo, erguendo as sobrancelhas, interessado. ‒ O Leonardo gosta de lhe chamar aquilo – observou Alexandrina, revirando os olhos. – Diga-se de

passagem que o Zeus não gosta lá muito de tal cognome. ‒ Fica engraçado – opinou Liriana, rindo-se. – Pompom – repetiu, testando a forma como a palavra fluía

da sua boca. Acabaram o jantar e ainda ficaram a conversar durante uma hora, falando de assuntos que Liriana

considerava fúteis e pouco interessantes. Pensara que os dois conseguiriam ter uma conversa que lhe despertasse o entusiasmo, mas até ao momento nada do que mencionavam era importante.

Ao fim de algum tempo pediu licença e levantou-se, alegando estar cansada, com o intuito de ir para o seu quarto dormir. Alexandrina mostrou-se um pouco incomodada ao princípio, perguntando-lhe se precisava de alguma coisa. A jovem não precisava de nada, além de uma noite bem dormida, sem sonhos que a apoquentassem.

Subiu até ao quarto e tirou o pijama de dentro da mala. Era branco com ovelhas cor-de-rosa. Apesar de não existirem ovelhas de tal cor, Liriana gostava muito daquelas duas peças de roupa, aqueciam-na, não só exteriormente, como interiormente, por serem tão engraçadas e queridas.

Quando se preparava para deitar, uma súbita sede subiu-lhe à boca. O jantar deveria ter mais sal do que estava habituada, ponderou. Bem, não faria mal algum descer até à cozinha e beber um refrescante e saciável copo de água.

Com esse intuito, saiu do quarto descalça, caminhando sobre o longo tapete que parecia percorrer toda a enorme mansão como uma serpente. Era macio e encobria o som dos passos. Pousou a mão no corrimão envernizado, preparando-se para descer as escadas, contudo o seu pé parou quando avançava para o primeiro degrau. Em baixo, na porta principal, Alexandrina despedia-se de Leonardo. Donde estava, Liriana nada conseguia escutar, mas não lhe agradavam os sorrisos dos dois. Por fim, Leonardo fizera o mesmo que o seu pai lhe tinha feito a si. Com carinho e sem dificuldade alguma, por ser dez ou quinze centímetros mais alto, dera-lhe um beijo de despedida na testa e afastara-se. Liriana perdeu toda a sede. Por momentos gostava de estar no lugar da madrinha e ser ela, sim, ela, a sentir aquele beijo que porventura mostrava mais que pura amizade.

Rodou sobre os calcanhares, com o olhar caído preso na alcatifa serpenteante. Os pés ganharam vontade própria e guiaram-na de regresso ao quarto solitário. Era o melhor que tinha a fazer. O que diriam se soubessem que estava a alimentar uma estúpida paixoneta adolescente por um homem muitos anos mais velho que ela? Era uma loucura sem fundamento, ou mais simples que isso, era o seu sentimento de solidão a clamar mais alto naquela mansão tão ampla para tão pouca gente.

Deixou-se cair sobre a cama com um suspiro entristecido. Para grande parte das pessoas, ela não passava de uma criança e só isso conseguiam ver na sua postura e na sua forma de pensar. Levava demasiado em conta os sonhos fantásticos e maravilhosos de um paraíso impossível e utópico. Mas Liriana sabia que já não era uma criança. Percebia e sentia o redor que a vigiava. E isso em nada lhe agradava. Ser criança era infinitas vezes melhor.

Page 23: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 23 -

III

A Sombra

Resvalam suaves na penumbra Para sonhos desencantados, Sussurram murmúrios vazios E esvaziam-se em pecados. Quem as pára? Quem quer

Penadas almas de maldade? Sorvem delinquências, inspiram mentiras,

São demónios e martírios, Que a luz dissolve

�o eterno amanhecer. Contudo aguardam atentas

�os seus intentos escondidas.

“Sombras”

Liriana levantou-se mal o Sol deixou escapar o seu raiar naquela localidade longínqua. Apressou-se a vestir e, apesar de não saber bem o porquê da sua urgência, quando desceu viu que Alexandrina também já estava pronta, talvez para sair, para sua grande surpresa.

‒ Bom dia, minha pequena afilhada – cumprimentou a bela dama, sorrindo-lhe. Liriana esteve tentada a dizer-lhe que não era tão pequena assim, mas acabou por retribuir com outro

bom-dia animado. Alexandrina preocupou-se em perguntar como dormira e se gostara do quarto. Gostara, disso não havia

dúvida. O ambiente era totalmente diferente do da cidade, menos barulhento e mais sossegado. Apesar desse sossego a perturbar, mas não mencionou esse ponto, não queria parecer mal agradecida.

‒ Ainda bem. – Alexandrina concedeu-lhe um sorriso muito bonito e simpático que a fez pensar em tudo o que ocorrera e em tudo o que vira desde que chegara. Apesar de serem poucos os contactos que tivera com a madrinha ao longo da vida, apesar de à primeira vista parecer austera, agora não lhe parecia realmente que o fosse, muito pelo contrário. Mas havia mais. Pelo que conseguia contemplar e interpretar, nos olhos da jovem senhora reflectiam-se a mágoa e a dor da perda de algo, o desgosto de uma traição, de uma forma muito disfarçada, como se tentasse enganar o mundo. E isso intrigava-a. – Bem, esperava por ti para tomar o pequeno-almoço. Vamos, sentemo-nos.

Após o término das deliciosas torradas recheadas com doce de abóbora, Alexandrina convidou-a a ir dar um passeio pela vila. Porém, havia uma pequena contrapartida: teria de fazê-lo sozinha.

‒ Não vem comigo? – Liriana abriu os olhos espantada. Esperava sinceramente ter companhia para o passeio, e tendo em conta que nem conhecia a região um guia também seria de extrema utilidade.

‒ Não, e deves compreender o porquê. A minha forma de vestir é um pouco peculiar e, de certa forma, causa uma sensação incómoda numa pequena vila como esta – respondeu, com um sorriso sincero e um encolher de ombros. – Mas não te preocupes, basta sorrires e dizeres bom-dia que te vão achar a simpatia em pessoa. E talvez arranjes algum amigo giro.

A pequena riu-se baixinho, com alguma ironia, e corou um pouco, ficando com o olhar de uma criança marota. Todavia, ainda não lhe agradava o facto de ir dar um passeio sem companhia por uma localidade que lhe era totalmente estranha.

Page 24: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 24 -

A vila era um local pacato, onde os raios de sol dardejavam sobre as pedras dos muros e dos fontanários. Liriana avançou com um passo moderado, olhando regularmente de um lado para o outro, não perdendo de vista qualquer pormenor que se lhe deparasse.

De cada lado da estrada surgiam duas calçadas serpenteantes que se perdiam em ruas estreitas, por entre as casas. De momento seria melhor não explorar muito mais que a estrada principal. Poderia permitir inadvertidamente que o caminho de regresso lhe escapasse da mente, embora a vila fosse tão pequena. Deixou-se então caminhar pela beira da estrada, ladeada de um lado e do outro por casas que se encostavam umas às outras. Supunha que fossem apertadas e aconchegantes como a do pequeno povo que Gulliver conhecera acidentalmente, em Liliput. Mas isso era unicamente a sua imaginação a trabalhar em demasia. Nos frios Invernos possivelmente teriam uma agradável lareira chamejante onde se aqueceriam, ouvindo o estalar da madeira crepitante. Como gostaria de também passar por essa sensação, sentir o forte calor rodeá-la suavemente, aquecendo-a por dentro e por fora, enquanto bebia uma chávena de chocolate quente. Seria idílico.

De uma das calçadas viu aproximar-se uma senhora de idade, vestida de preto. Disse-lhe bom-dia, quando a senhora passou por si, seguindo todas as instruções da madrinha. Abriu um sorriso encantador que lhe chegou aos olhos, disposta a agradar e não querendo que se espalhassem maus comentários sobre si. A mulher retribuiu-lhe o “bom-dia”, com uma nota bem mais soturna na voz, e ficou a vê-la afastar-se continuamente. Liriana sentiu-se incomodada com o olhar que a senhora tão indelicadamente lhe dispensara para as costas.

Continuou o seu percurso com passos não muito calmos, mas incalculados, até chegar ao que parecia ser o centro da vila. Do lado direito da estrada havia uma correnteza de bancos em pedra, por baixo de várias tílias que, durante o escaldante calor do Verão, deveriam oferecer sombras acolhedoras. Ocupando vários dos bancos encontravam-se alguns idosos a conversarem uns com os outros animadamente. Liriana notou, com algum desagrado, que até poderia adivinhar quais seriam as conversas: a vida alheia do vizinho do lado, porventura. Ou então a rentabilidade dos cultivos, quantas galinhas tinham no galinheiro, o número de ovos que deviam ter posto e não puseram, ou então os que poderiam ter posto a mais. Quase se riu para si ao pensar em tais eventualidades.

Vários foram os olhares curiosos que lhe foram dirigidos, conseguindo mesmo ouvir palavras sussurradas indelicadamente como “estrangeira” e “turista”. Disse bom-dia num tom baixo mas audível e esperava que ninguém lhe dirigisse a palavra para se poder escapar dali o mais depressa possível, contudo a sorte não estava a seu favor. Uma senhora de meia-idade levantou-se, indo ter com ela junto à estrada. A mulher era relativamente obesa, mas movimentava-se rapidamente e segurou-lhe o braço quando a alcançou, para evitar que Liriana se afastasse.

‒ Olá, minha querida – disse, com um sorriso que lhe pareceu a coisa mais falsa que alguma vez vira. – És de onde? O que fazes aqui? A que família pertences?

Sentiu-se baralhada com aquela torrente de perguntas e piscou os olhos, tentando desanuviar o espírito. Aquilo seria alguma partida de mau gosto? Liriana considerou aquela atitude extremamente inconveniente e uma demonstração extraordinária de pouca dissimulação. Contudo, o que poderia fazer sem ser responder?

‒ Bem, eu estou em casa da minha madrinha. – Olhou em volta, pensando numa forma educada de abandonar o interrogatório e continuar o passeio.

‒ Ai sim? E quem é a tua madrinha? Pensou que se respondesse talvez a senhora a deixasse em paz. Mas como se enganava! ‒ É a Alexandrina Adriática, da Mansão Adriá… ‒ Oh! – fez a mulher, não a deixando acabar. – Daquela casa enorme? É verdade que está habitada por

espíritos maléficos? Liriana franziu as sobrancelhas. Aquelas perguntas não lhe agradavam minimamente. ‒ Não sei ao que se refere – respondeu e o seu sorriso desapareceu. – Se não se importa vou continuar o

meu passeio porque tenho que chegar cedo a casa. ‒ Ah! Não quero incomodá-la. – Conteve-se para não dizer que já fora incomodada. – Vá, minha querida.

E não se perca! Aquelas palavras serpentearam até aos seus ouvidos, revestidas de cinismo venenoso. Todavia conseguia

suportar um pouco mais do que palavras maldizentes. Os passos levaram-na estrada abaixo. Uma igreja baixa surgiu no seu caminho, contudo aquela conversa

anterior pesava-lhe no coração e a sua ânsia crescera, fazendo-a ignorar por total esse pormenor. Começava a sentir-se como que perseguida. “Assombrada?” Perguntara a mulher… Olhou várias vezes para trás, mas

Page 25: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 25 -

ninguém a observava ou seguia, como era óbvio. Continuou a andar, sem se deter. Porém em seu redor começavam a soar passos invisíveis e ramos a estalar. Folhas caíam no seu caminho sem avisar, formando um tapete imaginário. O incómodo assolava-a, dando-lhe voltas ao estômago, arrepios generalizados e secando-lhe a boca. Estava a deixar-se levar demasiado… Porque seria ela tão influenciável? Não podia ouvir nenhuma história que se assustava logo. Amaldiçoou-se a si mesma.

Subitamente uma mão tocou-lhe no ombro e Liriana deu um pulo de onde estava. O coração quase lhe saltou do peito. Voltou-se para trás, de repente, com os olhos o mais abertos que lhe era possível, tal era o medo, e deu de caras, para sua surpresa e imensa vergonha, com um rapaz pouco mais velho que ela.

‒ Queres… queres matar-me? – perguntou, segurando o peito com força. A respiração acompanhava o batimento tresloucado do coração que lhe bombeava o sangue sem descanso, enquanto começava a corar. Já não lhe bastava o susto, o constrangimento tinha que se juntar também à festa.

‒ Desculpa, não te quis assustar. – O rapaz levantou os braços, tentando livrar-se da culpa. Os seus olhos castanhos derramavam sinceridade.

Liriana apoiou-se numa parede branca e áspera, tentando ganhar fôlego. Era como se tivesse corrido cinco quilómetros sem descanso.

‒ Estás muito nervosa. Muitas das pessoas ficam assim quando estão perto do cemitério, mas tu ficaste mesmo apanhadinha. – O rapaz ria-se dela!

‒ Muito agradecida. Virou-lhe as costas, irritada. Quem pensava ele que era para a tratar assim? Oh sim, era um morador local,

possivelmente um daqueles que gostava de gozar com os desconhecidos! Olhou para a frente, resignada, mas só viu estrada e casas. Onde estava o cemitério que ele mencionara?

‒ Hey! Espera! Como te chamas? – O rapaz apressou-se a apresentar-se antes que Liriana se afastasse em demasia. – Eu sou Rafael!

‒ Ah… Liriana – disse vagamente a jovem, tentando ainda descobrir onde estava o local dedicado aos mortos. Estaria enterrado por baixo do alcatrão da estrada? – Já agora, onde está o cemitério?

‒ Estás encostada ao próprio. – A simplicidade com que o rapaz falou fê-la dar outro salto e recuar dois passos para a estrada, fixando os olhos, de uma forma apreensiva, nos brancos muros que, pelo que Rafael dizia, pertenciam ao cemitério da vila. Um novo arrepio percorreu-lhe as costas e os cabelos da nuca ficaram tensos.

Caminhou lentamente, passo ante passo, até dois portões em ferro pintado a negro, encimados por uma caveira, que ficavam a dois metros do local onde se encontrava. Espreitou, curiosa, para o seu interior. Várias campas erguiam-se brancas na sua frieza mortal e jazigos desfloridos espalhavam-se pela terra fresca dos mortos. Havia qualquer coisa de muito sinistro naquele local, mesmo tendo em consideração o facto de ser um cemitério, um dos grandes alvos dos contos de terror.

Um carro passou atrás de si e fez os seus cabelos esvoaçarem com rudeza, contudo isso não quebrou o contacto que a ligara àquele lugar tão caracteristicamente melancólico. Mas havia algo mais, o seu coração dizia-lhe, os seus sentidos pressentiam-no.

‒ O que se passa? – Rafael aproximou-se, desfrutando de uma confusão astronómica. ‒ Nad… – interrompeu-se abruptamente, pois viu algo a passar entre os jazigos, um vulto possivelmente.

Esfregou os olhos com força, tentando limpar qualquer nébula que os turvasse. Voltou a abri-los e lá estava novamente! Era demasiado rápido para poder ser uma pessoa e grande em demasia para poder arriscar dizer que era um animal. Assim sendo, o que poderia ser?

Rafael também espreitou para dentro do cemitério, contudo o seu ar de confusão só aumentou e a incredulidade espelhou-se no seu olhar.

‒ É a primeira vez que estás num cemitério? – Não percebia a reacção de Liriana. ‒ Sim… quer dizer, não, mas este é diferente. O silêncio mortuário percorria aquele instante. Os pássaros não cantavam, o vento não corria, as árvores

não ramalhavam. Devagar, como uma corrente fétida que nos chega de longe, dos desertos infindáveis de outro mundo, sentiu um frio percorrer-lhe a alma, como se lhe soprassem, e, entre esse gélido vento, fluíram palavras de uma frieza diabólica de serpente sedutora: Serás minha.

O salto que desta vez Liriana deu levou-a exactamente para a rota de colisão de um carro que só não a atropelou por ter uns óptimos e resistentes travões. Quando o homem os pisou, as rodas chiaram aflitivamente. Todavia Liriana olhou para o condutor possesso de raiva sem mesmo o ver, com aquelas duas palavras a soarem sucessiva e repetidamente na sua mente ao mesmo ritmo do bater acelerado do coração. O que quereria aquilo

Page 26: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 26 -

dizer? Donde tinham vindo? Seria um fantasma? Lembrou-se novamente do comentário da mulher que lhe tinha ido falar com um cinismo desdito: É verdade que está habitada por espíritos maléficos? Respirou fundo perante aquela recordação. Seria verdade?

Rafael teve de a puxar da estrada, pois as suas pernas recusavam-se a dar mais um passo que fosse, como que petrificadas pelo medo, aquele sentimento de acção tão contraditória que desta vez não a impelira a agir.

‒ O que se passa contigo, rapariga? – inquiriu o rapaz, abanando-a para a acordar daquela paralisia. – Dizem que os lisboetas são estranhos, mas nunca pensei que fossem assim tanto. Não estarás a exagerar?

‒ Eu… – A jovem não sabia o que se estava a passar consigo, queria acreditar que estava a enlouquecer, mas aquilo tinha sido demasiado real! Ela sentira, não fora uma ilusão. Sentira o sopro da arrepiante voz diabólica. – Pareceu-me… ver… qualquer coisa…

O rapaz voltou a olhar para o cemitério, mas o seu rosto dizia a Liriana que o jovem nada tinha visto e que deveria estar prestes a considerá-la totalmente maluca.

‒ É possível que tenha sido uma ratazana, um esquilo ou um animal desse género – declarou, encolhendo os ombros.

‒ É… é possível – murmurou Liriana. A sua respiração era lenta, mas o coração voltara a bater indiscriminadamente depressa. – Acho que vou voltar para casa. Por hoje chegou-me.

O rapaz olhou para ela, concentrado, tentando adivinhar alguma possibilidade remota ou esforçando-se por se lembrar de um acontecimento a que não dera muita atenção.

‒ Chegaste ontem num fiat vermelho, não foi? – Ainda a mirava pensativamente, para ter a certeza do que perguntara.

‒ Sim, cheguei. Mas agora tenho que voltar para… ‒ … A casa da Alexandrina – concluiu. – Eu acompanho-te, já não lá vou há algum tempo. Liriana olhou-o, espantada. Não o conhecia de lado nenhum, mas a sua confiança ao falar, a certeza no

que dizia, a força das palavras que utilizava e, principalmente, a sua simpatia, deixaram-lhe escapar um sorriso sincero dos lábios.

‒ Obrigada. O rapaz retribuiu-lhe o sorriso e finalmente, para grande alívio de Liriana, afastaram-se daquele

tormentoso cemitério que a deixara num estado lastimoso de terror. Não voltou a olhar para trás e só muitos dias depois voltou àquele lugar. Contudo, no dia em que o fez já não havia temor, já não havia desconsolados apertos no peito. Mas isso seria muitos dias depois.

Ao abrir a porta a Liriana, Anderson ficou espantando em ver lá também o rapaz, e mais espantada ficou Alexandrina.

‒ Vejam quem se dignou a aparecer – disse, sarcasticamente, quando Anderson os guiara ao escritório onde Alexandrina lia um livro, e abrira a porta. – Se não é o grande artista Rafael!

Olhava-os com os perspicazes olhos azuis que tão bem a definiam e com um sorriso maroto. O rapaz sorriu-lhe também, mas timidamente, como que pedindo desculpa por algum acto feito ou desfeito.

‒ Parece que conheceste a minha afilhada – observou, fechando um livro de aveludada capa vermelha e erguendo-se da sua cadeira almofadada.

‒ Parece que sim – riu-se Rafael, coçando a cabeça para disfarçar o facto de ter ficado corado. – Encontrei-a perto do cemitério.

Alexandrina avaliou a afilhada profundamente. ‒ Bem, é arquitectonicamente interessante – concluiu, encolhendo os ombros. – Vieste trazê-la a casa? ‒ Sim, e vim visitá-la – respondeu o rapaz, olhando para a carpete vermelha escura. ‒ Hum… voltaste ao teu velho emprego? – Alexandrina continuava com o sarcasmo divertido, enquanto

observava o rapaz. – Cheguei a pensar que os dez euros por hora que te pagava era pouco dinheiro e que decidiras fugir com a tua namorada como vingança, ficando a minha pessoa sem jardineiro.

‒ Oh! Não foi nada disso! Só que tive exames e tive de estudar e… e pronto! Não deu mesmo para vir – desculpou-se o rapaz, atrapalhado.

‒ Ai, ai, ai! – Alexandrina caminhou até uma estante e colocou o livro no único lugar livre, entre muitos outros. – Podias ter avisado, ou eu não sou compreensiva?

Page 27: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 27 -

Notava-se agora que o seu tom era de brincadeira e que não estava minimamente irritada com o desaparecimento de Rafael.

‒ Desculpe – lamentou o rapaz. E parecia realmente lamentar. Sendo pago com dez euros por hora, quem é que não lamentaria?

De tarde, Alexandrina decidiu mostrar o resto da casa à afilhada. Começaram pelo andar de cima,

praticamente reservado a quartos, casas de banho e a uma pequena escada que as levou até ao sótão. Este último era um local poeirento, onde se inalava um leve cheiro a mofo, repleto de coisas velhas e caixotes, objectos já não utilizados, muitos deles de antepassados distantes. Mas mesmo nesse local remoto as tábuas do soalho não estalavam, o que provava a resistência da casa, apesar da sua já tão longa idade. No sótão existia ainda uma outra escada, esta já decrépita, que as guiava para uma plataforma onde ficava o pequeno observatório de Alexandrina. Não era muito grande, comparado com os que via na televisão, mas o telescópio era muito maior do que ela, e o material em que estava trabalhado era estranho, tinha um brilho lilás deveras enigmático.

‒ Qual é o material do telescópio? – perguntou, sem pensar. ‒ Hum… uma espécie rara de titânio, revestida de um cristal que atrai a energia do ambiente –

Alexandrina tocou ternamente no aparelho e sorriu. – Um companheiro de muitas noites! Liriana lançou-lhe um último olhar quando se afastaram da plataforma de observação e o telescópio

pareceu brilhar em sinal de despedida. Não havia dúvida de que tudo ali parecia demasiado irreal. Desceram por fim ao rés-do-chão onde ficava a sala de estar, a mesma em que se encontrara com

Leonardo no dia anterior; a sala de jantar ou grande salão, onde almoçara com os seus pais e onde tomara o pequeno-almoço nessa manhã; e a cozinha, um amplo espaço impecavelmente limpo, no qual Anderson lia descansadamente o jornal do dia. Liriana escutava tudo com uma atenção redobrada, tentando captar todos e até os mais pequenos pormenores. Nem os desenhos das carpetes lhe escapavam.

Durante a sua visita guiada, passaram junto ao que parecia ser o centro da casa, a parte que dava continuidade à grande torre que se via do lado de fora da mansão. Duas altas portas de rebordos e maçanetas em dourado quase lhe ficaram com os olhos, que se lhes prenderam firmemente como um peixe a um suculento isco.

‒ Alexandrina, isto é… – murmurou Liriana, vendo que a madrinha passava pelo local sem lhe fazer nenhuma referência.

A mulher de negro parou abruptamente e virou-se para trás, olhando a jovem adolescente como se não tivesse percebido a sua pergunta.

‒ Aquelas portas por onde passámos agora davam para a biblioteca, não davam? Alexandrina olhou-a nos olhos durante longos segundos, pensando talvez no que responder. Mas o que

haveria para pensar? Não seria óbvia a resposta? ‒ Sim, davam. Agora não passa de uma arrecadação. – Virou-lhe as costas, continuando a caminhar em

frente. Era notável o distanciamento que queria ter daquelas desgraçadas duas portas. Liriana olhou para trás. Sentia uma intensa atracção por aquele local, mesmo sabendo que fora feito em

cinzas. Era como se ele a chamasse, como se tivesse algo vivo lá dentro, algo que não deveria ser revelado, mas que, contudo, estava desejoso de se evadir.

À noite, após um suculento jantar e uma conversa sobre literatura e escritores contemporâneos, Liriana

decidiu, por fim, subir ao quarto. Estava cansada do dia. Mal abriu a porta do aposento, deparou-se com um gato preto a saltitar na cama e a brincar com a ponta da almofada de fronha branca.

‒ Zeus? – inquiriu, aproximando-se e sentindo a alcatifa massajar-lhe os pés. O gato virou a cabeça na sua direcção, perturbando-a com os tão penetrantes orbes amarelos, onde Liriana

se sentiu a mergulhar. E, nesse pequeno instante, pareceu-lhe que o felino tentava passar-lhe alguma mensagem, que o gato era mais do que aparentava ser à primeira vista, tomado de uma inteligência superior à sua. E quem poderia pensar o contrário? Quem poderia adivinhar os pensamentos de um animal?

Quebrou o contacto visual e sentou-se à beira da cama, passando a mão sobre o pêlo macio do ventre do pequeno felino. Desta vez, ele não fugiu, continuando parado a observá-la com os seus enigmáticos olhos semi-fechados, enquanto ronronava.

Page 28: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 28 -

‒ Tens alguma coisa para me dizer? – perguntou, puxando um pouco os lençóis e a colcha para trás e entrando para dentro da cama. Passou o olhar pelas vidraças que davam para a varanda e novamente pareceu-lhe ver uma sombra fugaz. Piscou os olhos para limpar a vista e voltou a olhar. Nada. Só a luz da noite entrava no quarto sem ser convidada. Deveria ser do cansaço, do ambiente ou de qualquer outra coisa, porque teria de haver uma explicação lógica para tudo o que estava a acontecer, isso se estivesse realmente a acontecer alguma coisa. A sua imaginação poderia unicamente estar a pregar-lhe partidas de mau gosto.

Aconchegou-se na cama e virou as costas ao labirinto de rosas que se revelava para além da varanda. Não queria que mais nenhuma sombra imaginária a atormentasse. Para seu contentamento e descanso, Zeus enrolou-se ao seu lado, preparando-se também para dormir um sono tranquilo. Era bom ter companhia, mesmo a de um ser sem consciência. Desde pequena que sempre possuíra um tremendo medo de se encontrar sozinha no escuro. Yuri, o urso de peluche azul, fizera-lhe companhia e fora o seu protector quase desde que se lembrava, agora seria a vez de Zeus.

Acordou e abriu os olhos subitamente, em sobressalto. Ouvira o som de algo pesado a cair na alcatifa do

quarto. Levantou a cabeça da almofada e examinou tudo à sua volta, com a desconfiança aumentando a cada segundo, por nada ver. Até o próprio Zeus desaparecera. Instintivamente voltou o rosto para a janela iluminada pelo luar e não se espantou com o que viu. Porém, o medo começou a crescer em catadupa. Uma sombra obscura encostava-se às longas cortinas, vigiando-a. Com um tamanho enorme de, talvez, dois metros e meio, era uma figura que a deixava presa à cama e lhe cortava a respiração, mergulhando-a num terror negro e mudo.

Com uma destreza de quem não tem forma, a sombra deslizou silenciosamente das cortinas e movimentou-se ao longo da parede, numa lentidão destabilizadora que lhe fez vir lágrimas aos olhos. Aquilo era o que bastava para a fazer tomar uma decisão. Deu um repentino salto da cama e correu para a porta inconvenientemente fechada, tropeçando no tapete com a pressa de escapar. Ao abri-la de rompante, ouviu um guincho estridente e diabólico que a ensurdeceu momentaneamente. O que se passava naquela maldita casa?

‒ ALEXIS! – gritou, saindo a correr, e voltando a cabeça para trás no meio da escuridão. Contudo, tinha a certeza de que ninguém a ouviria por mais que gritasse. E, apesar de não a ver, sentia a aura maligna da sua perseguidora cada vez mais perto das suas costas.

Alexandrina acordou com uma má impressão, como se tivesse tido um pesadelo. Parecia-lhe ter ouvido

alguma coisa, todavia não tinha a certeza disso. Os seus olhos cerraram-se, não para voltar a adormecer, mas num típico método de concentração. Os instintos nunca a enganariam e confirmou o que pensara, uma voz chamava-a. Alguma coisa estava a correr mal.

Empurrou os lençóis para trás com brusquidão e dirigiu-se para a porta do quarto, com o cabelo negro a voar atrás de si. Bateu com a porta ao sair e de imediato soube donde vinha o chamamento: do quarto que reservara para Liriana. Dirigiu-se para lá, numa pequena corrida, sem acender uma única luz do corredor. Encostou o ouvido à porta e escutou, agora mais claro que nunca, o seu nome a ser chamado pela criança. Tentou rodar a maçaneta, mas a fechadura não cedeu.

‒ Liriana! – chamou, abanando o entrave que a impedia de ajudar a afilhada. – Raios partam isto tudo! Teria de tentar alguma coisa mais ousada.

Liriana continuava a fugir. Desceu as escadas, saltando os últimos cinco degraus e aterrando como um

gato. Em desespero tentou alcançar a porta da rua, no entanto os pés prenderam-se, como se colados às tábuas de madeira. Puxou-os com força mas sem resultados. Longos e viscosos tentáculos negros, vindos da alcatifa ou quem sabe de uma cave, enrolaram-se possessivamente nos seus joelhos, impedindo-a de dar um único passo que fosse.

‒ Ajudem-me! – gritou, agora chorando de aflição. A sombra rastejava pelo chão, na sua direcção, e no ar pesado soava um risinho maléfico de

contentamento. ‒ NÃO!!

Page 29: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 29 -

Fechou os olhos e tapou a cara com as mãos, esperando que a criatura lhe sugasse a alma ou fizesse outra coisa extremamente dolorosa, como torturá-la até à exaustão, até à loucura ou até à morte.

Todavia não foi isso que se sucedeu. Ouviu, nem um segundo após o seu acto defensivo e inútil, o que parecia ser um gato assanhado. Abriu os olhos a medo e olhou para o que a espantou e, mais tarde, agradeceu eternamente a Zeus. O felino tinha estacado à sua frente e mostrava as garras à sombra que parara no seu avanço possessivo. Teria medo?

Depois de abrir a porta e acender as luzes, Alexandrina debruçou-se sobre Liriana que não parava de se

contorcer e gritar por ajuda, deitada na cama desalinhada por causa dos seus violentos movimentos. Zeus ajudava na confusão, esfaqueando selvaticamente os lençóis com as garras afiadas.

Tentou abaná-la para a acordar, mas de nada valeu. Não sabia o que fazer pois não sabia qual a causa do estado de Liriana. Olhou em volta. A janela estava aberta e as cortinas esvoaçavam fantasmagoricamente com a brisa fria da noite. O espelho do guarda-vestidos reflectia-a, no entanto no reflexo via-se alguma coisa mais. Instintivamente e sem mais pensares lógicos inúteis, Alexandrina pousou a mão sobre a testa da afilhada e murmurou algo incompreensível aos ouvidos dos desatentos. Esperou o que pensou serem eternidades mas que na realidade foram unicamente dois segundos, para que Liriana e Zeus parassem com a agitação. A criança abriu os olhos assustados, devagar, como se temesse que algo lhe saltasse para cima, e duas lágrimas soltaram-se, por fim, resvalando até aos cabelos.

‒ Pronto Liriana, já passou – murmurou-lhe a madrinha, tentando acalmá-la com palavras meigas de consolação.

‒ Ela… ela… ela que-queria matar-me! – Liriana não se conseguia conter e chorava, chorava como nunca antes tinha chorado, tentando contar à madrinha, por entre soluços, qualquer coisa credível, qualquer coisa que não parecesse só imaginação! Sentira demasiado medo.

‒ Ela quem? – quis saber Alexandrina, passando-lhe a mão pelos cabelos castanhos. ‒ A… a Sombra! – Os olhos de Liriana abriram-se imenso para dar ênfase à expressão e voltaram a

encher-se de lágrimas aterrorizadas. – Ela quer-me! Tem estado a vigiar-me e… Lembrou-se subitamente do sonho ridículo que tivera duas noites atrás e da sombra que nele presidia

como guardadora das ovelhas. Era a mesma, não havia outra explicação! Contudo dessa vez nada fizera, tinha-a ignorado por completo. No entanto, perseguia-a agora. Porquê?

‒ Liriana, isso foi só um pesadelo – explicou a madrinha, baixinho, como se não a quisesse assustar. ‒ Não foi, posso jurar-lhe que não foi. O Zeus estava lá, foi ele que me salvou – disse, implorando e

olhando agora para o gato que se mantinha sossegado desde há pouco. Praticamente pedira à madrinha para interrogar o gato. Mas era impossível, o pequeno animal não falava a mesma língua.

Alexandrina soltou um suspiro compreensivo e sentou-se ao lado da afilhada, segurando-lhe nas duas mãos ternamente.

‒ Liriana, pensa comigo e sejamos racionais. Um gato nunca afastaria uma sombra e… as sombras são só e unicamente sombras, nunca atacariam ninguém. – Liriana ia argumentar, todavia Alexandrina continuou. – Sei que o ambiente da casa não é do melhor, que pode chegar a ser aterrorizante para alguns, contudo não te podes deixar levar por esta atmosfera de mistério, tens que ser resistente, implementar a tua razão. Não te deixes influenciar por seja o que for, real ou irreal. Quando o medo chega e se apodera de uma parte de ti, é muito difícil voltar a retirá-lo. Não podes deixar que isso aconteça. Mesmo que fosse real, que essa sombra existisse, o que tinhas a fazer era mostrar-lhe que não a temias, isso levá-la-ia a reconsiderar o que fazer. Compreendes?

Debruçou-se sobre a pequena jovem e depositou-lhe um beijo na fronte. Liriana olhou para a janela, de soslaio. Não se encontrava nenhuma sombra a espreitá-la, nem ali nem em

lugar nenhum do quarto. Mas a realidade do acontecimento martelava-lhe no coração, nunca poderia ter sido um produto elaborado da sua imaginação.

Porém, as palavras de Alexandrina tinham fundamento. Muitas vezes ouvira dizer que o medo alimentava o lado negro, alimentava as sombras de outro mundo. Tudo em ficções que adorava ler, tudo o que ao princípio lhe parecera impossível, tudo o que agora a observava de um canto remoto da sua alma.

Alexandrina levantou-se e piscou-lhe o olho amigavelmente, com um sorriso maternal. ‒ Já volto, minha pequena, vou ali buscar uma coisa para te fazer companhia durante o resto da noite. –

Voltou-lhe as costas e encaminhou-se para a porta de robusto carvalho envernizado. Ao sair e na viagem até ao

Page 30: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 30 -

seu quarto, o rosto da anfitriã modificou-se por completo. Já não era a amabilidade e a bondade que nele se reflectiam, mas uma preocupação turbulenta e uma séria aflição. A testa estava enrugada, as sobrancelhas franzidas e os olhos estreitos. Olhava de um lado para o outro da casa, pesquisando paredes, chão, tecto e todos os objectos suspeitos, em busca de algo pouco consistente… talvez uma sombra.

Liriana olhou em volta do quarto, com olhos vermelhos de chorar. O aposento parecia tão sossegado e tão

normal que se tornava numa fonte de irrealidades. Sentou-se lentamente, deixando a mão cair no dorso negro de Zeus. No sonho, fora ele o seu salvador e agora, em cima da cama, parecia só um pequeno preguiçoso que, de vez em quando, abria os olhos amarelados para espreitar em redor.

Pousou a testa na palma da mão e suspirou, tentando expelir um desafogo da sua débil e abalada alma. A sensação de se sentir perseguida era diabólica e o facto de não ter onde se esconder tornava as coisas piores. No entanto já terminara, a sombra não a voltaria a incomodar. Ou assim esperava o consciente; o seu subconsciente dir-lhe-ia o contrário se pudesse manifestar-se.

Viu a madrinha regressar ao quarto com um isqueiro e cinco pequenas velas nas mãos. ‒ Bem, Liriana, hoje dormirás à luz das velas – declarou, começando a espalhá-las pelo quarto: uma ficou

sobre a cómoda à sua frente; outra sobre o guarda-vestidos; uma arderia junto à janela, do lado oposto ao guarda-vestidos; e as outras duas ficaram junto à jovem, cada uma em sua mesa-de-cabeceira. – Pronto, tens luz suficiente para dormires descansada e para não te preocupares com fantasmas. Ainda assim…

Aproximou-se da janela, fechou-a lentamente, lançando antes um olhar ao exterior, e passou os dedos pela fechadura. Liriana ouviu-a dizer algo, contudo não percebeu e pediu que repetisse.

‒ Disse que a janela deixa passar ar, está mal isolada – declarou, deixando os vidros em paz e voltando para perto da afilhada. – Precisas de mais alguma coisa, minha querida?

Liriana respondeu negativamente e agradeceu a paciência que Alexandrina dispensara para as suas idiotices sem cabimento.

‒ Ora essa, não foi nada. Na tua idade também tinha esses pequenos inconvenientes e nem queiras saber os do Leonardo! – disse, rindo-se baixinho para não a perturbar e beijando-lhe novamente a fronte. – Agora tenta descansar, dorme bem.

Lançou-lhe um último sorriso quando ficou lado a lado com o interruptor da luz e por fim desligou-o, fechando a porta à sua saída.

Liriana olhou para o dossel, no meio da fraca luz das velas. Sentia-se a sossegar, sem compreender como. Nada mais a perturbaria nessa noite e as pálpebras cerraram-se num sono sem sonhos. Talvez as velas tivessem algum calmante na sua composição.

Na manhã seguinte, levantou-se algumas horas após o nascer do sol, contudo não o fez espontaneamente. Zeus começara a andar por cima de si com as suas patinhas almofadadas, pisando-lhe a face e despenteando-lhe ainda mais o cabelo já por si despenteado por causa do reboliço da noite.

‒ Hm… au… – murmurou, levantando os olhos ensonados. – Que foi? O bichano continuou a andar sobre si, parecendo divertir-se imenso, e finalmente decidiu-se em saltar

para o chão, começando a miar num canto pouco sinfónico. ‒ OK, OK, já percebi a ideia. – Liriana puxou as pernas para fora da cama e caminhou descalça até à

porta. Mal a viu abrir-se, Zeus esgueirou-se, fluindo através da estreita fresta que a jovem tinha aberto. – Nem te despedes!

Riu-se e voltou a fechar a porta, começando a vestir-se, enquanto meditava no que se sucedera na noite passada. Como poderia ter pedido à madrinha para acreditar nela? Parecia simplesmente uma história fantástica tirada de um livro igualmente fantástico. Não havia provas que sustentassem o que se tinha passado. Mas elas haveriam de chegar, mais cedo ou mais tarde. Pura e simplesmente, tinham que surgir! Era assim que sempre acontecia, era assim que Liriana queria que acontecesse. Ou estaria enganada?

Desta forma, desceu para tomar o pequeno-almoço, por entre a sua indecisão e no meio de pensamentos que a irritavam por não os poder divulgar sob pena de a considerarem maluca.

Page 31: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 31 -

IV

Fotografias e Rosas

Em tons de castanho, melancolia, E num brilhar de Sol silencioso,

Permanece murcho o mundo �o seu decaído absurdo.

O verde espontâneo levou-se, Do despontar etéreo que restou?

Oh! Cai tudo, nada fica. Dormem sós, dormem esperando, Braços despidos e entristecidos.

Dormimos assim nós, Aguardando, de olhares atentos,

O renascer da vida.

“Outono” Alexandrina esperava-a sentada à mesa e sorriu-lhe quando a viu aproximar-se. Liriana olhou a madrinha

de cima a baixo e perguntou-se o que os habitantes da vila pensariam da sua forma de vestir. Se nos dois dias anteriores a poderia comparar a uma personagem do filme Matrix, nesse dia parecia saída de um elegante livro de vampiros. Tinha o cabelo entrançado, caindo-lhe para trás das costas; vestia uma camisa negra de seda e, por cima, um colete justo em vermelho sangue. As calças eram também pretas, assim como umas bonitas botas de salto alto. Um emblemático crucifixo negro pendia-lhe do pescoço sobre o decote e balançava de vez em quando ao sentir a sua proprietária movimentar-se. Era uma visão enigmática.

‒ Terei de ir à cidade fazer umas compras. Não te importas de ficar em casa com o Anderson? Poderás ficar no meu escritório a ler um livro ou outro. Escolhe o que quiseres, eles estão ao teu eterno serviço – declarou a senhora, servindo-se de leite com café.

Liriana ficou tensa. Não esquecera o que acontecera nessa noite. Ainda sentia o medo a correr-lhe como seiva paralisante nas veias, sentia o toque daquela substância fria nas suas pernas que estremeciam sem se conter. Ficar sozinha em casa não era um requinte para a sua alma perturbada.

‒ Claro. – A jovem baixou os olhos para as torradas, num desânimo convalescente. ‒ Liriana, não fiques com essa cara, eu venho o mais depressa possível. E, por favor, não penses no teu

pesadelo de ontem, já desapareceu. É passado. – Alexandrina tentava convencê-la e a pequena queria acreditar, contudo existiam demasiadas evidências. Ou era isso, ou tinha definitivamente enlouquecido.

Acabaram o pequeno-almoço em silêncio e a anfitriã partiu no instante a seguir. Liriana viu-a afastar-se num Mercedes-Benz preto a uma velocidade pouco recomendável a condutores experientes, quanto mais a inexperientes. Os pneus pareciam deslizar como patins sobre água gelada numa estrada repleta de curvas.

Voltou para dentro, quase esmagando Zeus pelo caminho que sorrateiramente se viera instalar perto dos seus pés para também ver Alexandrina ausentar-se. Iria seguir o conselho da madrinha e procurar algum livro interessante para ler que a fizesse esquecer os acontecimentos dos dois dias anteriores, caso fosse isso possível.

Os circunspectos retratos espalhados pelas paredes do hall de entrada viram-na encaminhar-se para o aposento, com um olhar de quem sabe mais do que deseja. Mas Liriana nem por sombras imaginava o que poderiam eles saber.

O escritório de Alexandrina estava modelado em tons de castanho, cor-de-vinho e um pouco de dourado para subtis acabamentos e, tal como o total da mansão, o efeito era encantador. As duas altas portas de entrada ficavam em frente a uma lindíssima secretária de ébano negro, em que as quatro pernas pareciam uma fusão de troncos de árvores com caules de folhas singelas. Sobre a secretária encontrava-se um pequeno candeeiro com franjinhas; um copo negro, pintado com flores douradas e com várias canetas no seu interior; o que lhe pareceu

Page 32: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 32 -

ser um frasco de tinta permanente; e uma pena branca, tal como as que eram usadas em séculos passados por copistas e pessoas que soubessem escrever.

De um outro lado do pequeno aposento podia ver-se uma lareira com duas poltronas de cor vermelha escura voltadas para ela e uma mesa pequena com um tabuleiro de xadrez e as suas respectivas peças em cristal, entre as duas. Parecia que a madrinha gostava desse complicado jogo de estratégia.

Por cima da lareira apagada, para seu grande espanto, apesar de não considerar o facto totalmente descabido, erguia-se uma espada de perfeição incontestável num suporte de um material negro que Liriana não sabia dizer o que era. A espada tinha uma lâmina fina e comprida, de um metal intocado pelo tempo; nela podia ver-se uma palavra escrita em toda a sua largura, numa letra esguia e suave. Era ela �iarda. O punho, em negro, tinha espaço para ser seguro por duas mãos e estava cravejado com pequenas jóias lilases em forma de pepitas; o pomo possuía um perfeito cristal na mesma cor, rodeado por prolongações negras do punho que abraçavam a pedra preciosa. Era uma arma magnífica que possivelmente nunca fora utilizada. E, nos tempos que corriam, para que serviria uma espada? Para cortar lenha? Não, para isso utilizar-se-ia um machado, não uma obra de arte.

Após a contemplação da arma invulgar, dirigiu-se para uma das estantes envidraçadas e correu os olhos sobre todos os livros. Havia, definitivamente, géneros muito diferentes. Sentia-se dificultada na escolha. Muitos dos livros tinham sido encapados pelo próprio dono de forma a preservar as capas originais do ataque dos bichinhos incómodos que gostariam de ter aquela delícia para devorar. Alguns encontravam-se na versão original, isto é, inglês, francês, alemão ou russo, notou, com espanto. Era o que Liriana esperava, a madrinha era uma autêntica caixinha de surpresas.

Retirou um livro preto de letras douradas da estante envidraçada. O seu título era Alice do outro Lado do Espelho, por Lewis Carrol. Já lera aquele. Dessa forma voltou a colocá-lo no seu lugar. Tirou então outro, com uma capa parecida: A Divina Comédia, de Dante. Decididamente seria aquele o seu escolhido. Já ouvira falar do escritor e da história em si, contudo nunca lera o livro e o título chamava-lhe a atenção por alguma razão desconhecida.

Seguro entre as duas mãos, o livro foi transportado até uma das poltronas e aí Liriana abriu-o reverentemente. Passou a primeira página em branco seguindo para a folha subsequente onde se manifestavam o título, o nome do escritor e a editora; uma pequena biografia fazia-se marcar nas quatro folhas seguintes e, por fim, começava a narrativa.

�*� Um vulto avançou, sorrateiro, por entre as sombras das árvores frondosas que nasciam junto à Mansão

Adriática. O vento fraco e mesquinho atirava-lhe partículas de terra seca para o corpo, rudemente, mas isso pouco lhe interessava – mal as sentia, e como gostaria de senti-las! Contudo isso agora era o menos, a rapariga estava acima de qualquer fino grão de terra argilosa, a sua vida dependia desse ser humano reles e fraco onde a coragem decaía a pouco e pouco. Consumi-la-ia até à última essência da sua alma e aí, o que restasse dela, se restasse, não mais pertenceria a este mundo.

Viu os cabelos ondulados da rapariga repousarem sobre o ombro, enquanto folheava um objecto que lhe causava náuseas e lhe fazia lembrar alguém que lhe causava uma indisposição triplicantemente maior. Vingar-se-ia mais cedo do que esperavam e, nesse dia, arrepender-se-iam por a terem enclausurado. Não mais veriam a luz do contentamento, do prazer ou da generosidade. A crueldade tinha contas inimagináveis a ajustar com eles. Não mais feiticeiros a controlariam e lhe destituiriam o poder, não mais necromantes a baniriam para mundos distantes, não mais.

�*�

Liriana teve um arrepio e levantou os olhos do livro. Como que sentindo o movimento do seu olhar, um dos livros desmaiou da estante, caindo com um barulho apagado sobre a alcatifa. Seria melhor apanhá-lo e colocá-lo no lugar. Marcou a página do livro com uma fita vermelha, para continuar a leitura mais tarde. Pousou-o sobre a mesinha ocupada pelo tabuleiro de xadrez e ergueu-se. A poltrona fez o seu típico chiar, enquanto o assento retomava à forma original e Liriana se aproximava do livro caído. Tinha uma capa azul

Page 33: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 33 -

timbrada a letras prateadas onde se podia ler o nome do escritor: Neil Gaiman. Pegou-lhe e ia voltar a pô-lo entre dois livros de capa idêntica, mas um brilho chamou-lhe a já tão atenta atenção. Havia algo mais no local onde o livro se devia instalar. Não percebera como não vira isso antes, tendo em conta que sete dos livros da prateleira se prolongavam um pouco mais para diante. Logo, haveria algo com um pouco de volume por trás deles.

Tirou-os um por um, formando uma coluna equilibrada ao seu lado. Assim, pôde ver o que se ocultava atrás deles. Uma bonita capa de tom verde-seco, com pequenos ramos de arbusto como ornamento, deixavam antever o que poderia ser um livro, se duas palavras não revelassem o seu conteúdo. Álbum Fotográfico era o que diziam em letras delicadamente delineadas.

Estendeu a mão para o retirar do seu recôndito esconderijo, contudo um bater de porta distante cortou-lhe o movimento, e duas vozes conhecidas fizeram com que começasse a pôr o mais depressa possível todos os livros no respectivo lugar. Alexandrina tinha chegado e não vinha só, a voz de Leonardo fazia-se ouvir no hall de entrada.

Liriana voltou a sentar-se na poltrona e pegou no livro que tinha estado a ler durante duas horas, abrindo-o numa página ao calhas, esquecendo-se mesmo do facto de ter marcado a página onde se encontrava. Fingiu lê-lo, enquanto ouvia os sapatos de Leonardo d’Ávila dirigirem-se para o escritório. Apesar de perceber a razão, fazia-lhe impressão nunca ouvir as botas de Alexandrina. A madrinha andava de um lado para o outro como um anjo…ou uma sombra.

Ouviu uma das portas do escritório abrir-se e os dois entraram, vendo-a mal penetraram naquele espaço sossegado.

‒ Liriana! Estimo muito o facto de teres seguido a sugestão que te ofereci. – Alexandrina lançou-lhe um sorriso amoroso, enquanto retirava as luvas de pele negra que utilizava para conduzir o seu belo automóvel. As mãos tinham a mesma delicadeza das pétalas suaves das rosas e as palmas eram de um leve tom rosáceo condensado com uma brancura cândida. Alexandrina podia ser tudo menos um ser das trevas.

‒ Sim – respondeu Liriana, retribuindo-lhe o sorriso. Por sua vez, Leonardo dirigiu-se-lhe com amplos passos e um sorriso engraçado, fazendo-lhe uma vénia

rasgada. ‒ Bom-dia, Lírio do Campo! ‒ Ah… bom-dia, doutor Leonardo. – Liriana corou e sorriu-lhe timidamente. ‒ Na, na, na! É só Leonardo. Doutor é um apêndice que se pode dispensar, assim como essas

formalidades de “senhor”. Para si, delicada donzela, é “Leonardo, podes servir-me o café da manhã?”, e o mesmo serve para ti, Alexis.

‒ Ai sim? Então posso pedir-te para me engraxares as botas? – O seu tom era inocente, mas o sorriso era debochado e muito sarcástico.

‒ Não era bem a isso que me referia, gótica de segunda categoria. – Leonardo deitou-lhe a língua de fora num gesto infantil e sentou-se sobre o braço da poltrona onde Liriana estava instalada. – Estes oportunistas são incríveis, não achas, Liriana?

Alexandrina revirou os olhos, mostrando que a paciência que a habitava estava prestes a atirar-se do primeiro andar a contar de cima de um arranha-céus, e dirigiu-se para a sua secretária.

‒ Ah… Liriana, não te queria expulsar, mas podias conceder-nos uns momentos a sós? A madrinha obviamente não esperaria um não e a jovem depressa pegou no livro e levou-o consigo até à

sala de estar. No entanto, daria tudo o que tivesse para poder ouvir a conversa entre o doutor Leonardo d’Ávila e Alexandrina Adriática.

Deixou-se cair num sofá de pele falsa e olhou pela janela. O Sol ainda não chegara a esse ponto remoto da casa. Arbustos e árvores tomavam conta da paisagem oferecendo-lhe um verde bonito.

Sentiu alguma coisa a saltar levemente para cima do sofá e uma pelugem passou-lhe junto à mão. ‒ Então Zeus, meu grande salvador, vieste fazer-me companhia? – perguntou, pegando-lhe

cuidadosamente e começando a embalá-lo como se se tratasse de um bebé. O gatinho soltou um miado amigável e fechou um pouco os olhos, muito agradado com o tratamento que

Liriana lhe conferia. Por fim, a jovem parou, perdida nas lembranças dos últimos dias. A conclusão a que chegava era sempre e irritantemente a mesma. A sua imaginação não lhe pregaria nenhuma partida de mau gosto, a sombra não era fruto do seu subconsciente, não. Era mais real que muitas realidades que hoje

Page 34: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 34 -

perpassam os sentidos humanos. A ciência podia não a prever, podia não a explicar, mas ela estava ali e queria-a. O desconhecido revelava-se a pouco e pouco.

Sentiu uma súbita necessidade de escrever todos os acontecimentos da última noite. Se alguma coisa lhe acontecesse, pelo menos teria tudo documentado… nunca poderia pôr totalmente de lado essa ideia, tendo em conta a veracidade dos últimos acontecimentos. Levantou-se. Iria buscar uma caneta e folhas ao escritório de Alexandrina.

Deixou Zeus no sofá tão preto como ele, uma camuflagem perfeita, e encaminhou-se para o escritório. Ergueu a mão fechada para bater, mas parou o movimento. Apercebera-se de que conseguia ouvir

Alexandrina e parecia muitíssimo alterada. Era a única voz que se fazia implementar no local. Infelizmente não era capaz de perceber ao que se referia, mas deveria ser grave.

Bateu à porta três vezes, todavia não foi escutada, tal era a excitação que se apregoava no até então sossegado escritório. Decidiu entrar, vê-la-iam com certeza.

Abriu a porta rapidamente e, nesse preciso instante, voaram até si palavras irritadas, mas que não lhe fizeram muito sentido.

‒ … mante! Ela quer voltar e… – Alexandrina virou a cabeça na sua direcção e viu-a, deixando a boca semi-aberta no que seria uma torrente violenta de palavras.

Confusa, Liriana deixou cair o olhar sobre a mesa onde antes se encontrava o tabuleiro de xadrez. Inexplicavelmente, no seu lugar estava uma espécie de tecido aveludado de tom lilás, repleto de terra seca. A sua face possivelmente teria transparecido a confusão que navegava livremente por si, pois Leonardo dirigiu-se-lhe.

‒ Passa-se alguma coisa, Liriana? – perguntou, olhando-a da poltrona, inocentemente, como se não escutasse os argumentos furiosos de Alexandrina alguns segundos antes.

‒ Ah… não, não. Só queria pedir uma caneta e folhas, por favor – explicou, atravessando o seu estado de paralisia, numa tentativa de disfarçar a estupefacção.

Com estas palavras, Alexandrina pareceu recuperar da surpresa momentânea da entrada de Liriana, piscando os olhos azuis e apressando-se a ajudar de imediato a afilhada.

‒ Claro. – Dirigiu-se para a secretária e abriu uma gaveta donde retirou várias folhas de uma só vez. – Aqui tens – disse, estendendo-lhe os papéis.

O estado de desconcentração de Alexandrina era tão elevado que praticamente não ouvira metade do que Liriana lhe pedira, o que a fez estranhar. Era um comportamento completamento inverso à natural personalidade que lhe fora dada a conhecer.

‒ Ah… uma caneta também, se não se importar. ‒ Toma a minha, podes ficar com ela. – Leonardo tirou uma caneta do bolso da camisa e levantou-se para

lha entregar. Alexandrina soltou um suspiro e passou a mão pelos olhos. Tinha um aspecto cansado, muito contrário ao

da manhã. Duas olheiras marcavam-se como covas por baixo dos seus profundos olhos azuis e o sorriso que tentava transparecer era fraco, como uma flor prestes a murchar.

‒ Passa-se alguma coisa? – O aspecto da madrinha estava a preocupá-la e fez surgir-lhe uma ideia na mente. – Foi a sombra? Também a atormentou?

A misteriosa senhora piscou os olhos durante alguns segundos. Parecia incrédula com a sugestão de Liriana, mas seria unicamente isso? Ou algo mais se escondia entre uma torrente de sentimentos tão estranhamente interligada que a jovem chegava a suspeitar que lhe faltava um elo?

‒ Estávamos a falar de um caso mórbido que me apareceu na sala de autópsias – interveio Leonardo, tentando desculpar o estado da amiga. – Era deveras chocante. Eu descrevia-to, mas os pormenores são mesmo… enfim, de causar náuseas. Vê só o estado em que a tua madrinha ficou! E ela nunca se importou muito com os pormenores das minhas autópsias.

A jovem olhou Leonardo com atenção. Poderia até ser uma óptima desculpa, mas para uma pessoa que não se encontrasse já tão aprofundada no que acontecera na noite passada. De momento aceitá-la-ia, até conseguir apurar um pouco mais do que se passava na mansão.

‒ É melhor nem ouvir, sou sensível a essas coisas – disse, com um sorriso inocente que os pareceu convencer.

Page 35: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 35 -

Sempre considerou incrível a forma como os adultos subestimavam os mais novos, mesmo os que supostamente têm todo o porte para não o fazer, aqueles que provavelmente na sua infância e adolescência viam para além do que se lhes desvendava superficialmente.

Subiu então para o quarto, deixando os dois entregues às conspirações que enlaçavam o espírito humano. Porém, como daria todo o ouro do mundo para saber do que falavam! E… donde viera toda aquela terra que se apresentava impunemente sobre a mesa de xadrez? Não estava lá quando saíra e ninguém seria suficientemente idiota para colocar aquilo ali sem uma intenção prévia, a não ser que fosse completamente destituído de senso comum, isto para não se dar mais ênfase. Havia ali um propósito escondido, todavia Liriana não alcançava uma única razão para a presença da terra num local tão despropositado.

Deixou cair as folhas em branco sobre a escrivaninha do quarto e puxou uma cadeira, sentando-se. Trouxera A Divina Comédia consigo e pousou-a também na mesa, enquanto dirigia um olhar pensativo às cortinas abertas. O céu azul imiscuía-se, ao longe, com a copa dos pinheiros, num conjunto que simplesmente a oprimia. Pareciam espinhos erguendo-se até onde a vista alcançava.

Soltou um suspiro, enquanto destapava a caneta, e pousou a ponta dourada sobre uma folha. A sua intenção era escrever algo, contudo, a última ocorrência destabilizou-a por completo. Assim, fez exactamente o contrário, num impulso invulgar e sem qualquer explicação sem ser um instinto não fundamentado. Pousou a caneta e olhou para a página. Um acto idiota. Mas o que mais poderia fazer?

A pouco e pouco notou algo de estranho na página supostamente em branco. Baixou a cabeça e os olhos estreitaram-se de atenção, focando-se em vários pormenores próprios. O papel parecia-lhe negro demais, mas não apresentava sujidade. Ergueu-o então contra a luz, para ver melhor, e isso foi o que bastou para perceber qual o problema. Voltou a folha.

Na realidade não estava em branco, tinha algo escrito por trás. Versos esquivos, numa bonita letra floreada, revelavam-se aos seus olhos. Alexandrina, na sua pouca concentração, enganara-se e dera-lhe a folha errada.

A primeira ideia que teve foi de guardá-la para lha devolver mais tarde. Mas como a curiosidade martiriza uma pessoa para conseguir os seus fins!

Os olhos decaíram sobre o poema e leram-no verso por verso, após uma pequeníssima hesitação da sua consciência que, no final, se afastou para um canto obscuro, onde ficou sossegada por alguns segundos.

“�ão, não me deixes tu, Tépida esperança do Viver, �ão apartes para as distâncias Que essas vis te destroçam, E mais que tudo te quero, Para outros querer. Pois ânimo és tu, o meu, �as reentrâncias da Vontade. Oh! �inguém crê, mas tu crês, Que nada mais é a loucura Que devaneios da verdade De essência sua a mais pura Esquecida do cego mundo Que de tudo já nada vê. Sopra que te oiço, Sopra para outros te ouvirem �este cansaço meu. Que soprei sem que me ouvissem, Soprei em vão.

Page 36: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 36 -

Resta-me tudo, mas nada tenho. Só tu me esperas agora �a indíspar solidão.

Alexandrina R. V. Adriática” Eram versos tristes, disso não tinha dúvida. Diziam o que para si era uma verdade incontestável e

extremamente desagradável. O mundo desfazia-se, tão repleto de humanos que não o valorizavam, tão cheio de sombras como a que a atormentava repetidamente. Declinava cada vez mais, não ultrapassando as tragédias que o assolavam. Seria tão difícil tornar tudo melhor. Ninguém fazia questão de ajudar, recusavam unir-se por uma causa valorosa – a paz, não só entre si como com a Natureza.

Pousou o poema na escrivaninha, soltando outro suspiro, em parte por cansaço, em parte por desgosto. Não lhe agradava pensar no estado decadente que regia o planeta outrora tão belo. Por vezes pensava que conseguia sentir o seu profundo sofrimento. Mas seria isso possível? Lera algures que alguns dos povos antigos conseguiam estabelecer ligações com a Mãe Terra. Há muito que essas ideologias tinham sido ultrapassadas, sendo que eram raras as pessoas que ainda acreditavam em tal coisa. No entanto, Liriana sentia-se ligada a algo desde sempre.

Ergueu-se e encaminhou-se para a cama. Parecia-lhe tudo tão diferente naquele local. Além da sombra negra, algo mais havia. Existiam atmosferas desiguais, como se várias auras actuassem com fins divergentes. Ao contrário do que pensava, parecia que o mistério se tornava cada vez mais denso. E caber-lhe-ia a si resolvê-lo? Não sabia, mas só o descobriria se tentasse. E não obstante o medo, a mansão, Alexandrina e talvez até Leonardo, traziam-lhe uma certa nostalgia por explicar.

No dia seguinte a madrinha teve que sair novamente e Liriana não perdeu tempo. Entrou no escritório e

dirigiu-se directamente à estante dos livros, retirando-os um a um do seu apertado lugar e pousando-os no chão de madeira. Viu-o, finalmente, o álbum de fotografias, no seu tom verde-seco e com os seus peculiares feitios tão efémeros.

Levou-o até uma das poltronas e acomodou-se. Não sabia porque ainda não o abrira, contudo esperava encontrar alguma coisa, alguma revelação que incluísse Alexandrina e a própria mansão, ou mesmo aquela sensação tão pouco característica que tomava conta de si desde que chegara. Respirou fundo para ganhar coragem e abriu a capa.

As folhas onde se encontravam presas as fotografias eram pesadas e tinham um tom amarelado e a textura de pergaminho antigo. Eram também ásperas, com pequenas elevações que se tornavam regalos para as pontas sensíveis dos seus dedos, mas que ao mesmo tempo lhe causavam arrepios. Na primeira folha estava presente uma única fotografia a preto e branco, aquelas cores tão características que conseguiam dar mais vida às fotos do que muitas das que exibem mil e uma cores. A fotografia ostentava uma rosa repleta de cristais de orvalho nas suas delicadas pétalas. Com a mesma letra da capa podia ler-se: Ao jardim das nossas vidas…

Liriana sorriu, pensando na nostalgia que aquele álbum podia representar para um casarão de tais dimensões espíritas. Passou para a próxima página. Duas fotografias davam a conhecer uma criança de aspecto amoroso ‒ Alexandrina, possivelmente. Numa delas estava montada num cavalo negro de imponência real, um típico corcel de competição, elegante e de músculos firmes, em contraste com a menina que o montava de mão erguida, acenando animadamente. Na fotografia de baixo a sua madrinha, em pequena, segurava um gato preto que se parecia incrivelmente com Zeus, ostentando a mesma expressão enigmática no olhar.

Foi passando as folhas. Todas elas tinham fotografias de Alexandrina, sem excepção. Como sentia tão profundamente a estranheza daquele facto. Voltou a última página por fim e, acto feito, os seus olhos praticamente se esbugalharam com o que viram. Num retrato maior que os anteriores duas faces sorriam dois sorrisos alegres. Estavam vestidas da mesma forma, tinham o mesmo cabelo comprido e se alguma particularidade diferente detinham possivelmente não seria o exterior. Por cima da foto podia ler-se numa continuação da frase que dava início ao álbum: …e às nossas duas filhas, Alexandrina e Laura.

Liriana levantou a cabeça, sofrendo de um atordoamento com justa causa. Alexandrina tinha uma irmã gémea?

Page 37: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 37 -

Voltou a olhar para o retrato donde as duas lhe sorriam de um banco de jardim. Contudo, no segundo olhar dispensado à foto, viu-as, as diferenças que viviam escondidas nos olhares e nos sorrisos. Eram leves e praticamente despercebidas, mas estavam lá, perante o olhar dos atentos.

A jovem desprendeu a fotografia das fendas que a seguravam à página e levou-a até perto de uma janela, para a observar com a plena luz do dia. Sim, era verdade, os seus olhos não a enganavam. O sorriso e o olhar da gémea do lado direito da imagem formavam um conjunto banhado em cinismo, como se fosse forçada a tirar a foto. Era óbvio agora que nem todos os retratos que vira eram da sua madrinha, possivelmente metade pertenceria a Laura, a outra gémea. Mas as perguntas mais importantes esvoaçavam em seu redor: qual das gémeas era Alexandrina e o que acontecera a Laura? No entanto tinha a certeza do que responderia se lhe fosse a si feita a primeira questão.

A jovem olhou para fora, para o labirinto de rosas. A fotografia fora tirada naquele local. Imaginou então duas Alexandrinas em ponto pequeno a correrem felizes de um lado para o outro, cheirando as fragrantes e belas flores sem tocar nos espinhos. Não tinha dúvidas, Alexandrina tinha o carácter das pétalas de rosa, era suave e delicada, com um tom de mistério, mas nunca cruel. Não queria sequer pensar no que estava realmente a pensar, mas na verdade parecia-lhe tão óbvio que era impossível afastar essa ideia do pensamento. Laura estaria então personificada nos espinhos afiados, era uma criança de sorriso e olhar maldoso, era…

‒ Au! – exclamou, subitamente, sentindo alguma coisa a queimar-lhe os dedos e deixando cair instantaneamente a fotografia, junto à secretária. Olhou para a mão e viu que tinha três dedos vermelhos de inflamação. Podia culpar a qualidade dos químicos fotográficos, mas isso seria tomar-se por parva.

Baixou-se para apanhar a foto, contudo não conseguiu tocar-lhe. O papel fotográfico estava a uma temperatura elevadíssima. Como acontecera aquilo? Definitivamente era estranho.

Decidiu então tentar outro método, possivelmente muito mais eficaz e, à primeira vista, perfeito. Foi até à secretária da madrinha para tentar encontrar alguma coisa com que pudesse pegar na fotografia. Na terceira gaveta encontrou um agrafador. Para a ocasião tinha de servir.

Cuidadosamente, aproximou-o do retrato, sem que a sua pele entrasse em contacto com aquela coisa. Porém o que aconteceu depois deixou-a decididamente certa de que o aquecimento da foto não era normal. Mal o agrafador lhe tocou, um cheiro a metal derretido começou a penetrar-lhe no nariz, retirando-lhe o ar dos pulmões. O que parecia impossível aconteceu. O metal do instrumento escorria para o chão de madeira como se se tratasse de água prateada.

Liriana abandonou o que restava do bocado de metal e recuou, com a mão sobre o nariz e a boca. Estava assustada, e dizer isso era pouco para descrever a confusão que percorria o seu espírito. Tinha que se afastar daquele local imediatamente.

Correu para a porta e abriu-a num repente impulsivo. Tinha medo de que porventura a foto ainda se erguesse para a perseguir. Já não se importava que a madrinha descobrisse que andara a mexer nas suas coisas, não lhe importava que alguém lhe tentasse passar alguma mensagem. O medo vencera-a, queria voltar para casa de imediato, aquele lugar estava amaldiçoado.

Subiu ao quarto e começou a arrumar as suas coisas sob o olhar atento de Zeus que surgira num deslize pela pequena fresta que deixara aberta. Mal Alexandrina chegasse, pedir-lhe-ia para a levar de regresso a casa e nada fá-la-ia mudar de ideias, nem mesmo que a madrinha lhe implorasse para que ficasse. Mas tinha a certeza de que ela não o faria.

Durante as suas atarefadas e furiosas arrumações, passou junto à escrivaninha e os seus olhos pousaram sobre o poema que Alexandrina lhe dera junto com as outras folhas. Navegou de verso em verso sem querer, absorvendo cada significado escondido entre as tão bonitas e sinceras palavras.

“Resta-me tudo, mas nada tenho,

Só tu me esperas agora �a indispar solidão.”

Fechou os olhos, agora repletos de lágrimas, deixando fluir as palavras pelo seu espírito atormentado que

só desejava fugir. E tomou noção de si. O que estava a fazer era uma loucura, uma cobardia… Não fugiria como uma fraca, pois não o era; não

poderia voltar a temer as demonstrações pouco naturais que se lhe revelavam. Alexandrina não ficaria só naquela fria mansão, não novamente. Fora e era sua amiga, e ela nunca a abandonaria. Liriana tinha a certeza de

Page 38: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 38 -

que não era a única que sabia da existência daquela maldita sombra. A paciência que a madrinha demonstrara para consigo fora por isso mesmo, por também saber da sua presença. Contudo Alexandrina queria protegê-la, mas estava a escolher o método errado ao não lhe contar toda a verdade.

Levou a mão ao pescoço e retirou o fio donde pendia o medalhão, observando a sua imagem quando bebé. Não podia ser egoísta ao ponto de pensar só em si. Alexandrina não o fizera, logo ela não o iria fazer.

Ouviu o súbito motor de um carro dentro da propriedade. Alexandrina chegara. Decidiu descer e falar com ela, e desta vez não choraria pois não tinha razão para isso. Tentaria fazê-la ver como tinha razão, pedir-lhe-ia para contar toda a verdade oculta.

Limpou as lágrimas com as costas das mãos e abriu a porta do quarto, preparada para a sua missão. Do ponto em que estava, viu Alexandrina a dirigir-se até ao escritório. Seria um óptimo local para a confrontar, emanava racionalidade e conhecimento de todos os livros, apesar de a lógica por vezes não ser uma grande ajuda.

Os pequenos anjos do tecto observaram-na com uma expressão séria, enquanto Liriana se dirigia novamente para o escritório, com passos decididos. Os espelhos reflectiam o seu olhar apreensivo e toda a coragem que a preenchera no momento da decisão. Por fim, estacou junto à porta e ergueu o braço, batendo três vezes na madeira negra. Não obteve resposta. Voltou a bater, desta vez com mais força, contudo aconteceu o mesmo. Decidiu abri-la e entrar, Alexandrina tê-la-ia de ouvir. Rodou a maçaneta e empurrou lentamente a porta para trás.

Alexandrina encontrava-se de costas para ela, encostada à janela onde Liriana estivera minutos antes. Na sua mão fechada podiam ver-se as pontas da fotografia que a jovem abandonara receosa. O retrato estava pior que amarfanhado, tinha sido completamente esmagado.

‒ Madrinha? – chamou, meia encolhida, esperando levar uma descompostura das grandes. No entanto Alexandrina não lhe respondeu, pareceu até nem ouvir. Liriana notou que a anfitriã estava a ser assolada por pequenos mas regulares estremecimentos. – Alexandrina, está bem?

Aproximou-se da senhora com passos temerários e tocou-lhe no braço timidamente. Como se encontrava suficientemente perto, dirigiu-lhe um receoso olhar de esguelha. Alexandrina não parecera notar a sua presença, mas isso não era o mais chocante. O seu rosto estava completamente banhado em lágrimas e um esgar de raiva escapava-lhe da boca. Os olhos azuis não se desviavam da janela envidraçada.

Liriana seguiu-lhe o olhar e sentiu uma punhalada áspera e dolorosa no coração com o que os seus olhos viram. As próprias lágrimas encheram-lhe os olhos rapidamente e escorreram-lhe pelo rosto perante aquele crime inexplicável. Todas as sebes do labirinto de rosas, todas aquelas pétalas de veludo rubro tinham desaparecido. Toda a beleza fora banida para um mundo inexistente, desaparecera da realidade. No seu lugar erguiam-se folhas ressequidas num castanho alaranjado de fim de Outono e, o mais desprezivelmente notável, o que se cravava mais fundo no seu espírito, eram os espinhos negros que floresciam na crueldade do feito e se erguiam imponentes.

Voltou a olhar para Alexandrina. Era raiva da mais pura o que percorria as veias da anfitriã, uma vontade de retalhar o malfeitor que lhe retalhara o jardim com maldade e o voltara a erguer numa perfeição maléfica. Na sua mão o retrato continuava a ser esmagado com uma força avassaladora.

‒ Como é que alguém consegue ser tão pérfido? – Falava sozinha e cada palavra estremecia nos seus lábios. Todas elas formavam uma questão que muitos faziam sem obter resposta. – Como?!

Voltou-se para trás repentinamente e atirou a fotografia amarrotada para longe de si. Liriana queria pedir-lhe para que se acalmasse, conceder-lhe palavras de consolo, contudo a língua

prendera-se e, mesmo que assim não fosse, não sabia o que dizer. Aquilo fora a destruição do trabalho de uma vida e de um consolo para o espírito. Fora destruído e, com ele, outro pedaço da alma de Alexandrina. Era um crime sem perdão.

Soltou um suspiro sofrido. Nada estava a fazer ali, o melhor seria voltar ao seu quarto. Alexandrina quereria ficar sozinha para sofrer a sua dor em paz. Mais tarde, talvez no dia seguinte, ou no outro que lhe prosseguiria, pudesse tocar-lhe no assunto da sombra, da fotografia das duas gémeas e das rosas queimadas por um fogo invisível.

Subiu as escadas com passos lentos, não retirando os olhos da carpete vermelha. Ainda sentia o rosto húmido das próprias lágrimas e os pensamentos pareciam ter sofrido um bloqueio com o que vira.

Page 39: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 39 -

Quando chegou ao quarto os olhos recaíram novamente sobre os três últimos versos do poema que agora significavam o que nunca lhe tinha passado pela mente: a perda sucessiva de bens queridos e uma decadente solidão perdida que se aproximava cada vez mais de Alexandrina.

Page 40: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 40 -

V

O Retrato da Biblioteca

Bela, como é bela, Pintura de mil cores febris. Só algures, porque será? Olha-nos bela imperatriz

�o inanimado incerto Do seu retrato de mistério.

E espera, porque espera ela? �ada diz a suserana.

Só nos olha com o olhar dela, Sorvendo lenta a emoção E a alma que não é sua

A bela dama sem coração.

“Bela” Um silêncio inquebrável percorria toda a Mansão Adriática, governando sobre os governantes que se

tinham deixado cair numa abolia decadente. Alexandrina recusava-se a sair do escritório onde se fechara com as suas mágoas. Nem ao próprio doutor Leonardo d’Ávila fora permitida a entrada.

‒ Não a podemos deixar ali fechada – murmurou para Liriana e Anderson. Estavam os três reunidos na quietude da sala de estar, não se conseguindo distinguir qual deles estava

mais preocupado: Anderson de pé, muito direito, um facto que lhe conseguia subtrair vários anos, com um trejeito sério no rosto; Leonardo, sentado numa poltrona negra de costas altas, de olhos fechados e um aspecto mais que cansado; e Liriana, de braços cruzados, num sofá de três lugares, esperando sem saber bem o quê.

‒ O senhor gosta muito dela? – deixou escapar a jovem sem querer, corando de imediato pela sua insensatez, contudo não voltou com a sua pergunta atrás.

Leonardo não se demorou a responder num tom que mostrava todo o seu desespero. ‒ Gosto, claro que gosto. Somos amigos há muito tempo, desde crianças. Quase irmãos! – O homem

debruçou-se e apoiou a cara nas mãos. – E, pela segunda vez na vida, não sei o que fazer. Era óbvio que o amor que sentia por Alexandrina ascendia muito mais do que o que afirmava. A sua

preocupação era comovente. ‒ E se tentasse entrar pela janela? ‒ Não, nunca iria resultar. Só serviria para a enervar ainda mais. Não a conheces suficientemente bem… –

Levantou-se e caminhou de um lado para o outro como uma fera sem liberdade. ‒ E se lhe escrevesse uma carta? – A voz de Anderson fez-se ouvir e os dois olharam espantados para ele.

Não esperavam que o antigo mordomo sugerisse tal coisa. – Será muito mais fácil expressar os seus sentimentos sem que diga alguma palavra precipitada que possa causar ainda maior dor à menina Alexandrina.

Um sorriso súbito iluminou o olhar triste de Leonardo, conferindo-lhe um novo brilho à vida. ‒ Como não pensei nisso antes? Pode não resultar, mas… Podia arranjar-me uma folha? Quando recebeu a folha, Leonardo afastou-se, de forma a escrever a carta a sós. Liriana imaginava o que

iria no espírito do jovem doutor, o típico apaixonado sem coragem para se declarar com medo de quebrar uma amizade de longa existência. Se alguma vez invejara Alexandrina, já não o fazia agora. Mereciam-se um ao outro.

Respirou fundo, irrequietamente. Gostaria de também dar um pequeno recado à madrinha. Ergueu-se e foi procurar o jovem médico ao local onde possivelmente estaria, no grande salão, sob o

olhar dos céus que cobriam o tecto por completo. Não se enganara. Quando entrou, viu-o, com a ponta da caneta a tocar nos lábios num acto meditativo.

Page 41: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 41 -

Liriana ia chamá-lo, pedir-lhe para dar o seu recado a Alexandrina mas, segundos antes de o fazer, passou os olhos pelas altas vidraças e viu-a, passeando entre os restos decadentes do roseiral. Viu-a como uma miragem ao longe, num retrato pouco nítido de Van Gogh. Alexandrina vagueava lentamente como um fantasma de outro século que se desorientara do seu rumo.

‒ Leonardo, a Alexandrina está lá fora. – Liriana aproximou-se da vidraça, como que hipnotizada por aquela cena transcendente. A atmosfera adensara-se naquele local, pesando cada vez mais. Passava-se alguma coisa de estranho.

Leonardo ergueu-se da cadeira e aproximou-se também, com intenção de abrir as altas e frágeis paredes de vidro e ir ter com ela.

‒ Mas o que… – Parecia que Leonardo também tinha reparado na estranha anomalia que os seus olhos captaram. Uma substância vermelha cobria as sebes desfolhadas, espalhando-se à medida que Alexandrina Adriática lhe passava a mão por cima. – Ela endoideceu?!

Abriu as vidraças num repente violento e correu até à bela dama angustiada, agarrando-a à força por um braço. Liriana observou tudo de onde estava. O sangue corria abundantemente da já não pálida mão esquerda, mas escarlate de dor e sofrimento. Da distância a que se encontrava não conseguia ver a expressão de Alexandrina, contudo a voz de Leonardo chegava até si, furiosa, revelando um descontentamento retumbante.

Como lhe custava ver serem desferidos golpes tão baixos contra uma boa pessoa. Um demónio era o que aquela sombra possuía em si, o mais vil e cruel dos demónios. Mas qual a sua intenção? Por um lado atacara-a nos sonhos, tentando matá-la; por outro, desfazia aos poucos a alma de Alexandrina. Devastação… era a destruição o seu móbil, era a desgraça o seu fim.

Leonardo arrastou-a por um braço e esta deixou-se guiar, como um corpo desamparado e sem espírito. Os orbes azuis tinham-se apagado, o brilho desaparecera. Dizer que a senhora da Mansão Adriática estava abatida era mais que um eufemismo, quase que uma mentira, por amenizar colossalmente uma verdade tão desgostosa.

Passaram os dois por si sem mesmo a verem. Várias gotas de sangue deixaram um rasto soturno que levava até à cozinha onde Leonardo porventura tratava dos ferimentos da amiga.

A jovem subiu por fim ao seu quarto, onde Zeus a esperava aninhado na cama de dossel, de olhos fechados. Sentou-se ao seu lado lentamente, tal como o seu espírito, que lentamente associava todos aqueles estranhos acontecimentos: o sonho, quando ainda se encontrava em sua casa; o encontro no cemitério que tanto a assustara; o seu segundo sonho, agora mais real que nunca; a fotografia das duas irmãs gémeas que quase lhe queimara gravemente as mãos; e, finalmente, o labirinto de rosas que secara de uma hora para a outra, inexplicavelmente. Estava tudo envolvido e com certeza mais acontecimentos se juntariam a esses, ou talvez houvesse ainda alguma coisa pela qual não dera conta.

De súbito, uma ideia perpassou-lhe a mente, algo tão óbvio que nem conseguia imaginar como não se lembrara antes. Eram tão nítidas as reacções de Alexandrina aquando se mencionava o assunto da biblioteca que fora feita em cinzas. Esse incidente teria sucedido há quanto tempo? Era impossível não estar relacionado, ninguém deixaria arder uma grandiosa biblioteca, as precauções eram imensas.

Deixou a sua mão acariciar a cabecinha do felino por puro instinto.

�*�

Por entre fachadas obscuras, a sombra chegou, no seu deslize arrepiante, atravessando o corredor repleto do escuro da noite. Era noite de luar, mas a melancólica e bela luz deste astro não chegava àquela parte da casa. A sombra aproximou-se das duas altas portas e penetrou-as rudemente por todos os pequenos interstícios microscópicos, num acto profano e imperdoável. Lenta e inexoravelmente, deixou-se desvanecer para o templo sagrado, escorregando para o chão como um negro veneno mortífero, e cresceu, cresceu das sombras num ser humanóide, imiscuindo-se na noite. �esse aposento, o luar entrava por altas janelas de vitrais escurecidos, deleitando os livros.

Perante esse tão idílico espectáculo, a sombra sorriu para si, apesar de ninguém mais conseguir testemunhar esse acto pérfido, e ergueu uma mão negra, rarefeita e disforme num gesto mórbido e mole. Ao princípio, pareceu nada acontecer, mas num olhar mais atento, notava-se algo pouco característico. Erguia-se um fumo negro dos locais onde o luar tocava, fossem eles livros, estantes ou mesmo o chão feito do mesmo

Page 42: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 42 -

misterioso material reflexivo do grande salão. Em cada livro uma pequena chama negra erguia-se, contagiando outro e outro, numa doença mortal que consumia rapidamente as suas entranhas desafortunadas.

Desta vez a sombra soltou uma gargalhada diabólica de divertimento que se repercutiu por toda a mansão. O seu magnífico trabalho estava feito. �ão sobraria nada daquele consagrado lugar.

�*�

Liriana acordou com um salto e olhou em volta. A noite começava a clarear deixando o quarto com um tom azul acinzentado. As velas que Alexandrina colocara no quarto, alguns dias antes, estavam acesas e derramavam uma luz fraca. Perguntava-se vezes sem conta sobre quem seria a pessoa que lhe acenderia as velas durante a noite, enquanto dormia. O certo era que a sombra não lhe voltara a perturbar os sonhos, pelo menos até um momento antes. Contudo, o que vira era uma amostra do passado, não uma investida contra a sua alma. Ter-se-ia passado dessa forma, ou o seu subconsciente estaria a fazer das dele?

Empurrou os lençóis para trás e deslocou as pernas para fora da cama. Foi descalça até às grandes vidraças que davam para o exterior e abriu-as de par em par, caminhando até à ponta da varanda. O labirinto ressequido revelava-se para si num acto cruel de discórdia.

No céu alguns morcegos misturavam-se com andorinhas, tentando fugir para os esconderijos negros, enquanto as aves captavam pequenos insectos. A Natureza parecera não notar no profundo golpe sem misericórdia que fora infligido no coração de um ser humano. Como a vida era injusta para os justos.

Regressou ao calor do quarto e sentou-se na cama, passando a mão pela suavidade branca do dossel aberto. A sua mente estava agora às portas da biblioteca, revendo a cena dramática da sombra a penetrá-la. Se aquela coisa podia entrar, ela também poderia, era só saber como e escolher a altura certa, ou seja, quando Alexandrina não estivesse em casa.

Deixou-se cair para trás, de braços abertos, e inspirou profundamente. Faria o que teria de ser feito, apesar de não saber bem o que isso era. Sentia que havia qualquer coisa dentro daquele santuário que queria sair e não podia ser a sombra, pois essa andava impunemente à solta na mansão e arredores.

O dia amanheceu quente e Liriana desceu para tomar o pequeno-almoço no grande salão, como normalmente. Alexandrina já lá se encontrava e lançou-lhe um sorriso amável, mas o esforço que usou para o fazer foi surpreendente, como se a tristeza a tivesse parcialmente consumido.

‒ Bom-dia – cumprimentou a jovem, tentando passar um pouco da sua energia para a madrinha que tão débil parecia agora.

Sentou-se e serviu-se de cereais de chocolate que possivelmente teriam sido comprados especialmente para si. Ergueu os olhos e examinou Alexandrina. A sua atenção perdia-se numa torrada que ainda não começara a comer e cada canto dos seus lábios estava descaído, num trejeito desgostoso. Os olhos pareciam quase baços, destituídos de vida. Aquilo tinha que acabar.

‒ Alexandrina, desculpe a intromissão, mas posso dizer-lhe uma coisa? – Liriana estava decidida a tirá-la daquele estado de torpor e latência.

‒ Claro que sim, Liriana. A jovem ganhou fôlego para dizer tudo o que tinha a dizer. Não tinha previsto ou feito algum discurso,

mas alguém tinha que elucidar Alexandrina de que perder-se no vazio era desistir de tudo o que o mundo lhe dera, era desistir da vida.

‒ Alexandrina, posso não poder sentir as emoções de tristeza que sente, posso ser só uma criança que vive no seu mundo encantado. No entanto, a verdade é que nunca conheci um olhar mais inteligente e enigmático do que o seu. A senhora fascinou-me com a sua delicadeza, com as suas paixões. Mas tudo isso se está a apagar e a madrinha nada faz para as impedir de partir, não luta por elas, não as tenta reconstruir. Uma vez disse-me que o medo alimenta a escuridão e o mal, penso que a tristeza também o faz. São sentimentos negativos, tal como o ódio e a raiva. – Fez uma pausa para observar as reacções de Alexandrina. Não olhava para Liriana, contudo ouvia as palavras que a embalavam. – Quando perdemos alguma coisa, temos de continuar em frente, para não perdermos o que nos resta.

A senhora de negro soltou um longo e profundo suspiro de desabafo e sorriu, numa reacção às palavras de Liriana.

Page 43: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 43 -

‒ Não é irónico o facto de me estares a dar conselhos quando deveria ser eu, como mais velha, que o deveria realmente fazer? – perguntou, continuando a olhar para as torradas já frias. – Mas tens razão, a minha decadência é imperdoável e deplorável.

Desta vez olhou-a nos olhos e pareceu-lhe ver que um pouco do fulgor de Alexandrina tinha regressado. ‒ Não voltará a acontecer, Liriana, pelo menos vou tentar impedir que a escuridão me corrompa. ‒ Isso seria impossível de acontecer, a senhora é uma pessoa pura de coração, honrada e forte. Nunca se

tornará má. ‒ Não foi isso que quis dizer, mas tens razão, temos de ter fé em nós próprios e não podemos deixar que

os outros nos atinjam, principalmente com golpes baixos. – Levantou-se, aproximou-se da afilhada e deu-lhe um beijo no cabelo. – Tenho que ir à cidade receber uma encomenda, queres vir comigo?

Liriana sentiu-se resplandecente com o convite da madrinha e prontamente diria que sim, não se lhe interceptasse outra ideia, e a ausência da madrinha era a altura ideal. No entanto, o coração dizia-lhe que devia ir com Alexandrina, a anfitriã precisava de uma mão amiga que a ajudasse a suplantar a dor. Mas podia não ter outra oportunidade…

‒ Não estou com muita vontade de ir, dói-me um pouco a cabeça – respondeu, fingindo um ar adoentado. ‒ Oh! Precisas de alguma coisa? Um medicamento, talvez? – Os seus olhos brilharam de preocupação e

Liriana sentiu um aperto no peito por contar uma mentira tão mesquinha como aquela. ‒ Não, obrigada. Prefiro que passe sozinha. ‒ Tens a certeza? Isso pode piorar e não quero que… ‒ Não se preocupe, madrinha. Passará – declarou Liriana, sorrindo-lhe amavelmente e descansando o seu

espírito desgastado. ‒ Como quiseres, então. Partirei já, para regressar o mais depressa possível. Afastou-se em direcção ao hall de entrada recheado de espelhos e retratos, e Liriana apressou-se a

acompanhá-la, alcançando-a numa pequena corrida, sob o olhar atento dos anjos do tecto. Quando Alexandrina se afastou no horizonte, a jovem fechou a porta, decidida a executar a sua tarefa. Avançou com passos seguros pela carpete vermelha, parando por momentos em frente a um espelho, num

inexplicável e típico acto de vaidade. Sorriu para si própria, pensando na proeza que iria fazer e que, no final de contas, nada tinha de significativo. Estranhamente, a imagem não lhe retribuiu o sorriso. Liriana não reagiu de imediato àquele fenómeno estranho, tantos eram os que já se lhe tinham desvendado. Contudo os olhos castanhos do reflexo começaram a transformar-se lenta e sucessivamente, sem qualquer hesitação, misturando-se com outra cor, devorando-a vorazmente. Um verde-esmeralda fitou-a do espelho e Liriana afastou-se com um grito estrangulado de medo. Olhou em volta. Todos os quadros pareceram modificar-se, exibindo aqueles belos e atemorizantes olhos.

Voltou-se de costas para todos os retratos e espelhos e baixou os olhos para as tábuas do soalho, evitando qualquer cruzamento que a intimidasse ainda mais.

Correu então até à biblioteca, parando unicamente em frente às magníficas portas com talha dourada, ofegante e meia a tremer.

Pousou a mão na maçaneta e rodou-a, mas a porta não abriu. Devia ter imaginado, estava trancada. Portanto não haveria forma de entrar sem chave, e onde a iria arranjar?

Virou as costas à porta, dando alguns passos em frente, decidida a perpetrar uma busca longa e, se fosse necessário, dolorosa (apesar de nada ver de doloroso na busca de uma pequena chave).

Todavia, sem aviso prévio, o rodar de uma fechadura fez-se ouvir. Um arrepio no mínimo incómodo percorreu Liriana. Não queria saber, nem mesmo imaginar, quem teria aberto as portas, atendendo aos seus anseios.

Regressou hesitantemente para perto da entrada da biblioteca. Inspirou e expirou o mais profundamente possível, num acto de angariar a pobre coragem que deambulava pelo ar, sem destino, e rodou a maçaneta de forma vagarosa, com medo que esta lhe pregasse alguma partida e chiasse vingativamente pela sua intromissão. Empurrou a porta para trás e uma etérea luz escapou-se pela pequena fresta, deixando-lhe antever pequenos grãos de pó a flutuar amigavelmente.

Respirou fundo de novo, e abriu a porta até esta bater na parede, banhando-se com uma incrível luz dourada. Conteve a respiração quando os seus olhos se depararam com o preenchimento do aposento.

Nunca antes vira nada assim, nem nos seus sonhos mais remotos. O local era enorme e parecia abarcar toda a casa. Encontrava-se dividido em duas zonas: a entrada, que se prolongava por cinco metros e

Page 44: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 44 -

desembocava numa segunda parte, um enorme aposento circular, tão alto que parecia tocar no infinito de uma abóbada de vidro que deixava entrar até os mais discretos raios de sol, conferindo-lhe uma atmosfera de cortar a respiração. Cada centímetro da parede estava forrado com livros de todo o género e, se assim não fosse, eram janelas cristalinas de belíssimos vitrais com rosas e fénixes que se faziam antever, não deixando visualizar o exterior, mas que permitiam a entrada da luz e a ampliavam. Em frente à entrada e recortada entre livros de história medieval, erguia-se uma tela, emoldurada em madeira de ébano. Num sofá verde-seco, com um olhar imponente e sério, Alexandrina, numa versão claramente mais nova, olhava para algures, completamente vestida de negro, num vestido decotado, mas que contudo não lhe deixava escapar a seriedade e talvez uma leve preocupação. O cabelo negro, que por vezes parecia ter reflexos azuis-escuros, estava amarrado num rabo-de-cavalo alto, deixando cair algumas madeixas sobre a testa. Tinha um tom divinal, mas assombroso.

Avançou um pouco mais para o interior, para poder observar melhor os livros e o retrato. Alexandrina dissera-lhe que a biblioteca ardera. Mentira-lhe. Mas porque razão? Voltou a olhar para o enorme retrato, tentando ler na expressão de Alexandrina algo mais que lhe

revelasse um pouco da sua vida. Mas não foi isso que viu. Recuou, quase tropeçando em si mesma. Lá estavam os diabólicos olhos verdes, a observá-la, a tentar devorá-la com o olhar. Sentiu cada fibra dos seus músculos a retraírem-se numa paralisia horrível. E o que mais detestava era ter a certeza de quem lhe fazia aquilo.

‒ Não… pára… ‒ murmurou, olhando em volta sem saber o que fazer, completamente desorientada. – Deixa-me em paz, demónio!

Mal o disse, a força que a oprimia libertou-a num repente que a fez desequilibrar-se e quase resvalar para o chão.

Conseguira… contudo os olhos verdes continuavam ali, sem hesitarem fitá-la com descrença. Um sorriso sarcástico abriu-se nos lábios do retrato. Parecia estar a fazer troça de si, mas porquê?

Inesperadamente e parecendo nascer do nada, Liriana ouviu um som que a arrepiou, um som que se propagou por toda a biblioteca, penetrando nas páginas mais profundas que rodeavam aquele santuário. Era o som preciso e pontual das teclas de um piano.

Voltou-se para trás, receosa do que poderia encontrar, e viu-o, um desmedido piano de cauda, negro, onde as teclas se erguiam e baixavam a um ritmo constante de uma peça dramática. E ele não estava ali quando entrara.

Olhou para a porta. Estava fechada, mas ela não se lembrava de tê-lo feito. O seu sentimento de medo cresceu desmesuradamente. Queria gritar, fugir dali! Todavia nada disso conseguiu fazer, muito pelo contrário. Os seus olhos castanhos foram atraídos para o instrumento musical. A força gravítica à sua volta era magnânime e obrigou os seus pés a avançarem sucessivamente pelo chão de madeira envernizada, trespassando a fronteira entre o tapete persa e o chão morno, aquecido pelo sol que penetrava através da cúpula de vidro. O seu batimento cardíaco aumentou quando tocou no banquinho comprido do piano e se sentou com uma delicadeza forçada. A mão direita flutuou até uma tecla e pressionou-a suavemente. Um Ré fez-se ouvir, ecoando por toda a biblioteca, seguindo-se enumeras notas musicais, agora com as duas mãos a fluírem pelas teclas brancas e pretas, manipulada como uma marioneta sem fios.

A fechadura da porta principal rodou, e uma bota negra pisou o chão, sem que nenhuma tábua estalasse. Um pressentimento não muito simpático fizera-a repensar a sua ida à cidade, a meio do caminho.

Alexandrina parou com os ouvidos à escuta. O som longínquo de um piano flutuava até si, o som diabólico de um piano negro que repousava adormecido na biblioteca. Ou antes o fizera.

‒ Não… ‒ murmurou, começando subitamente a correr, sem se importar que a porta se fechasse ou não, em direcção ao espaço que tão zelosamente guardara de todos, para que o mal nele contido não se escapasse ou atraísse alguém para o seu inato pintado de trevas.

Os seus dedos doridos continuavam a escorregar levemente de tecla para tecla numa melodia detestavelmente bela que a prendia cada vez mais. As pálpebras começaram a descer com um ganho de peso sem entraves. Sentia-se tonta, zonza daquela música profunda.

A escuridão começou a tomar conta de si, por mais que a tentasse afastar. Sentiu-se a cair num abismo sem fundo ou destino, enquanto os dedos dançavam um bailado demoníaco sobre as teclas do piano de cauda.

Page 45: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 45 -

A porta da biblioteca abriu-se abruptamente e Alexandrina olhou para Liriana, totalmente estupefacta e, acima de tudo, numa aflição que lhe fazia dilatar a pupila dos olhos.

Correu para a criança, envolveu-a com os braços e puxou-a com toda a sua força, para a libertar daquele jugo demoníaco. Contudo não obteve resultados, era como se a afilhada estivesse colada ao banco, era como se os seus músculos treinados tivessem perdido toda a energia. Voltou a tentar, num acto desesperado, convocando de todos os mais profundos lugares do seu corpo forças escondidas que a auxiliassem sem que tivesse de magoar a afilhada, mas nada. Largou-a por fim, arfando de cansaço. Não sabia o que fazer, parecia estar tudo perdido ao som daquela música.

Liriana parou de tocar quando Alexandrina a soltou, rodando a cabeça na sua direcção. A boca abriu-se num sorriso repleto de maldade e os seus olhos, inicialmente inocentes, passaram rapidamente de castanho-mel a um verde-esmeralda.

Alexandrina recuou três passos, olhando-a horrorizada. Aquela já não era a sua afilhada, aquela era… ‒ Minha querida Alexandrina! Só passaram dez anos e já não me reconheces? – perguntou a nova Liriana

com sarcasmo. A anfitriã não respondeu e recuou passo a passo em direcção às duas altas portas, sem deixar de olhar

para a jovem adolescente tão modificada e tentando ignorar o aperto desesperado que se lhe formara no coração. ‒ Foges de mim, Alexandrina? Não tens por cá os teus dois amigos para te defenderem, é? – Soltou uma

gargalhada que fez estremecer perigosamente todos os belos vitrais, num acto mais que ameaçador. A jovem dama fechou a porta atrás de si quando saiu, deixando aquela coisa lá fechada. Ouviu uma mão

correr todas as teclas do piano e uma nova gargalhada enlouquecida soou pela sua mansão, provinda da biblioteca. Como pudera permitir que aquilo acontecesse?

Encostou-se à porta, levando a mão ligada à face que parecera empalidecer para lá da morte. O desespero invadiu-a a pouco e pouco. A culpa fora sua, toda sua.

Duas lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Como pudera envolver Liriana naquilo? Como a pudera deixar sozinha em casa? E onde estava Zeus? Onde estava Anderson? Onde estaria agora a sua Liriana? Onde?!

Page 46: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 46 -

VI

O Livro do Sol e da Lua

�um radioso ardor alumiado Diurna estrela formosa

Reluz encantos dourados de beleza. Mas o negro possui no profundo,

Pálida em si de tristeza, A melancolia que brilha branca

E delicada se menospreza. Radiam ambos no seu amor, Radiam na sua divina magia;

Ora nos enfeitiças, astro da dor, Ora nos encantas, astro da vida.

Sois deuses, pais do mundo.

“Sol e Lua”

Alexandrina limpou as lágrimas com as costas das mãos e voltou-se determinadamente para as portas que a separavam da sua querida biblioteca e onde se encontrava encerrado um espírito de aura mais que maléfica.

‒ Dyriam ceri der ordiria, milne amarion liam rinfil – murmurou profundamente, após pousar a mão sobre a fenda que separava as duas portas. – Dyriam ceri der ordiria, merian ê sird ceri truense. Dyriam ceri der ordiria, milno ére, Lirdian sise Thelerse.

Num instante de segundo, uma vaga luz azulada percorreu toda a chaga entre as portas, fazendo-as estremecer suavemente e soltar pequenos vapores como se respirassem num dia de intenso frio. Alexandrina afastou-se da porta, receosa, para poder observar melhor a extensão do feitiço lançado. A luz azul que perpassava todas as pequenas frestas começava a desvanecer-se, interiorizando-se nos minúsculos interstícios.

‒ Alexis… – chamou uma voz divertida de dentro da biblioteca, uma voz serenamente mortal, uma voz tão diferente da de Liriana. – Achas que os teus feitiços medíocres me detêm? Mais cedo ou mais tarde apanhar-te-ei, é só uma questão de tempo, e acredita que não serão novamente dez anos. Admite, perdeste. Ajoelha-te perante mim e pede perdão.

Alexandrina afastou-se da porta com os punhos cerrados. Não se podia deixar intimidar, tinha que agir, por Liriana. Fechou os olhos e respirou fundo para ganhar energia. Ainda nem tudo estava perdido.

Dirigiu-se para o seu escritório rapidamente, abrindo a porta de rompante. Ao fazê-lo, um olhar amarelo e fendido dirigiu-se-lhe. Um homem, completa e totalmente vestido de preto, pálido como a morte e com um cabelo extremamente comprido que lhe chegava quase aos joelhos, preso com uma fita da cintura para baixo, observava-a, encostado à sua secretária. Duas orelhas pontiagudas sobressaiam do cabelo, revelando uma origem não humana.

‒ Já sei o que aconteceu – declarou, perscrutando-a. – Ela está fraca, ainda podemos… ‒ Onde estavas? – cortou Alexandrina com uma frieza estrepitante que quase deitava faíscas. – Porque a

deixaste? O homem, com uma aparência nova de não mais de vinte e cinco anos, olhou-a firmemente, contudo

notava-se uma certa atrapalhação mal disfarçada. Não sabia o que lhe responder, pois sabia o erro que tinha cometido.

‒ Porquê?! Tinhas uma missão, incumbi-te dela! Agora o pior aconteceu. E não iremos combatê-la, não agora. – Alexandrina dirigiu-se até à lareira e examinou a espada que repousava alguns centímetros acima dela.

‒ Vamos sentar-nos e esperar? Enlouqueceste? – O ultraje espalhava-se pela face sem cor do estranho homem.

‒ Vamos salvar uma inocente.

Page 47: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 47 -

Alexandrina Adriática estendeu a mão direita para o punho da espada e retirou-a do seu pedestal. Deu-lhe uma volta na mão para testar o seu equilíbrio e levou-a à altura dos olhos. Cada letra do primeiro nome da arma brilhava a prateado. �iarda Liduine, ou Estrela Poente, estava na sua família há imensas gerações. Um instrumento sagrado sem igual, feita na mesma forja que os mais magnânimes e poderosos instrumentos, pelos mesmos forjadores. Só ela poderia destruir por completo a maldita feiticeira, mas antes tinham que trazer Liriana do lugar para onde fora enviada.

‒ Diz ao Leonardo que o quero aqui e agora. O homem fez uma careta de desagrado, mas saiu do escritório de imediato. Alexandrina voltou-se e empurrou bruscamente para o lado a mesa de xadrez que se encontrava à sua

frente. Enrolou a carpete e baixou-se. No soalho de madeira podia ver-se um recorte quadrangular. Passou os dedos pela fenda e, por fim, ergueu o que pareceu ser a porta de um alçapão, revelando uma cavidade em pedra, pouco profunda. No fundo amontoavam-se vários objectos contudo, de entre eles, Alexandrina só retirou uma velha mala de couro; uma bainha prateada, cravejada com jóias lilases; e um livro negro onde, implantada no centro da capa de rebordos em bronze, repousava uma semi-esfera branca detentora de um brilho enigmático. Por cima dela jazia um pequeno sol em dourado e, por baixo, uma lua prateada. Podia ler-se ao fundo da capa: Desthin si Thornigan in sa Midarvia.

Colocou �iarda dentro da sua legítima bainha com um golpe seco e rápido, pendurou a mala de alça comprida no ombro e levou o pesado livro para cima da secretária. As suas páginas estavam guardadas por prolongações acastanhadas, que, como raízes, se fundiam com a capa e a contracapa, impedindo que indesejados penetrassem na sua intimidade.

‒ Kirdanl der manir i lia minial nerdy – disse lentamente, afagando a semi-esfera branca em três lentos círculos de voltas contrárias, o primeiro feito com a mão esquerda repleta de ligaduras, no sentido dos ponteiros do relógio; o segundo com a mão direita, no sentido inverso; e o terceiro, novamente com a mão esquerda, no mesmo sentido que a primeira volta.

A semi-esfera emanou uma leve luz branca que lhe banhou as mãos. As raízes que encerravam o livro serpentearam para dentro da própria capa e libertaram-no. Alexandrina abriu-o lentamente, observando uma primeira página amarela, de apresentação, preenchida numa floreada letra de cor negra. Essa página e as seguintes, a introdução, falavam de tempos antigos, mais do que muitos se podiam lembrar; falavam de uma ilha perdida, um local lendário e sagrado guardado por sacerdotes gnomos; falavam de uma magia ancestral, de poderes secretos e inexplorados, falavam dos poderes contidos nos cinco elementos, nos poderes inimagináveis do Deus Sol e da Deusa Lua. Era um livro precioso utilizado por pessoas de bem, por elfos, anciões e feiticeiros. Uma fonte de conhecimento e poder.

A porta do escritório abriu-se. O homem pálido de orbes amarelos e Leonardo d’Ávila entraram num passo apressado, lançando um pequeno olhar à cavidade ao fundo do escritório, junto à lareira.

‒ Alexandrina, o que aconteceu? – perguntou com urgência, pousando-lhe as mãos nas costas, porque a senhora não se voltara com a sua entrada.

‒ Ela voltou… – murmurou Alexandrina sem tirar os olhos do livro, enquanto passava cada página atentamente com a mão que não se encontrava ferida.

‒ Não… ‒ E pior, ela está no corpo da Liriana. E isso nunca deveria ter acontecido. Sabes o que significa, não

sabes, o facto de ela se ter apropriado em particular da Liriana? Leonardo soltou um palavrão a que ninguém deu atenção, num desafogo enervado. Aquela notícia não o

acalmava de forma alguma. ‒ Mas isso quer dizer que a alma da Liriana… se foi? Esvaiu-se para o outro mundo? ‒ Depende de que mundo estás a falar. Se estás a querer dizer que ela morreu em espírito, a resposta é

não. Daí a esperança de a podermos voltar a encontrar e de remediar o mal feito. Se isso tivesse acontecido, a Vinyriah já nos tinha morto a todos. O que a prende naquela biblioteca é o facto da Liriana ainda se encontrar sã e salva, por agora – declarou, sem levantar a cabeça para qualquer um.

‒ Isso quer dizer que ela está… ‒ Em Imtharien, sim. Porquê tantas perguntas se já sabes as respostas? – perguntou o homem pálido,

agrestemente.

Page 48: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 48 -

‒ Acabem com a discussão – ordenou Alexandrina, lançando-lhes desta vez um olhar gelado. – Temos de nos apressar. Neste momento os cúmplices da Vinyriah podem ir no encalço da Liriana para acabar o que foi começado. A própria Vinyriah o poderá fazer, mas não deixarei que a magoem, não se o puder impedir de todo.

A sua expressão era resoluta. Levaria a missão até ao fim, mesmo que isso lhe custasse a vida. Voltou a pegar no livro negro e levou-o para o centro do escritório. Os seus olhos seguiam cada letra de

cada palavra do feitiço que os transportaria para outro mundo, muito diferente daquele onde viviam. ‒ Dêem-me as mãos – pediu Alexandrina, enquanto guardava o livro na mala negra. – Vou invocar o

feitiço que nos levará. Precisarei de um pouco da vossa energia e necessitamos de estar unidos, para sermos os três transportados para Imtharien. Estão prontos?

Nenhum deles lhe respondeu com palavras, mas deram-lhe as mãos, formando uma circunferência. Alexandrina fechou os olhos, respirando fundo enquanto se concentrava e chamava até si todas as forças que residiam à sua volta e em si própria.

‒ Cisladen ceri niman sorulin, oraia i norlin ceri truense. Donor der lnimar Imtharien. Ao princípio nada aconteceu. O silêncio dentro do escritório e o cantar das aves no exterior contrastavam,

sussurrando-lhes ao ouvido. Sem avisar, o chão começou a tremer levemente, assolado por forças desconhecidas e incompreensíveis. O estremecer aumentou sucessivamente, levando os três a apertarem cada vez mais as mãos para não se soltarem e para não quebrarem a ligação que conferia a energia necessária para que Alexandrina invocasse a passagem para o outro mundo. Um estrondo fez-se ouvir quando o tabuleiro de xadrez se estilhaçou no chão, mas nada os perturbou, mesmo quando ouviram cair coisas bem maiores que objectos de tamanho irrisório. Cada pedaço do chão, cada tábua encerada quebrava-se, resvalando sobre os alicerces da casa que prodigiosa e assustadoramente desapareciam num buraco negro infinito que os devorava.

Os cabelos de Alexandrina perderam o seu peso naquele poço de energia, flutuando em redor. Os seus pés deixaram o chão desintegrante, e consigo Leonardo e o homem pálido. Uma luz esbranquiçada elevou-se do infinito negro das profundezas do mundo, iluminando os rostos enrugados de preocupação. A luz foi aumentando, até lenta mas inexoravelmente os absorver na sua imensidão. Quando se dissolveu, todos os pormenores se encontravam no mesmo local de sempre: as tábuas do soalho estavam intactas, o tapete escarlate encontrava-se sobre a cavidade onde antes repousara a bainha de �iarda e o Livro do Sol e da Lua. Só duas coisas se tinham modificado: �iarda desaparecera do seu suporte por cima da lareira e o tabuleiro de xadrez encontrava-se estilhaçado sobre o tapete, onde se podiam ver pedaços de cristal, marcando o acontecimento como um padrão deixado há muito na passagem do tempo.

Uma vastidão cinzenta cobria todo o horizonte num augúrio hostil. O grasnar negro de um corvo sobrevoou toda a imensa planície ressequida. As plantas estavam amarelas, mortas de desidratação e, além do grasnar, não se ouvia ou via um único sinal de vida na paisagem desolante. Os insectos tinham sido banidos, os répteis viviam escondidos e os mamíferos teriam sido mortos e queimados, só sobrando pequenos roedores que lutavam pela sua miserável existência. Quanto aos humanos, viviam a vários quilómetros de distância, talvez a cinco horas de caminhada apressada.

Foi nesse local remoto que os três surgiram, num relâmpago que iluminou por quilómetros a vastidão acinzentada.

Alexandrina abriu os penetrantes olhos azuis, assim como os outros dois homens, ao sentir a magia a desvanecer-se gradualmente.

‒ Alexis… ‒ murmurou Leonardo, fechando os olhos após ter olhado à sua volta. – Não sinto o chão debaixo dos pés.

Mal Alexandrina baixou os olhos para as ervas secas, a força que os prendia quatro metros acima do solo quebrou-se de repente e a gravidade puxou-os para o chão, num choque dolorido que só por sorte não lhes partiu nada, deixando unicamente algumas nódoas negras.

‒ Esse teu feitiço é criminoso – observou Leonardo num gemido. – Livrinho matreiro… ‒ Pára de ofender o Livro Sagrado – ripostou o homem pálido que pareceu ser o único que aterrara de pé.

Os seus olhos reflectiam um tom felino de agressividade assanhada. Alexandrina não fez qualquer comentário. Levantou-se lentamente, esfregando com força o ombro sobre

o qual caíra. Os olhos atentos percorreram as redondezas. �iarda encontrava-se pousada ao seu lado, dentro do seu leito protector, esperando que as mãos da mestra lhe pegassem, mas foi Leonardo que o fez.

Page 49: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 49 -

‒ Para que lado devemos ir? – perguntou o jovem médico com delicadeza. Os olhos castanhos tinham um brilho puro de generosidade e Alexandrina sorriu-lhe amavelmente.

‒ Iremos até à casa da Aldara, precisamos de dois cavalos e de um vestuário mais adequado. A partir daí… bem… ‒ Voltou-se para trás, observando o outro homem. – Landar, poderei pedir-te para que procures a Liriana, independentemente de nós os dois? A tua rapidez e precisão poderão ser a nossa grande esperança. Os teus sentidos são superiores aos nossos e…

‒ Com o devido respeito, Alexandrina, mas não seria melhor ficar contigo? A Vinyriah pode tentar algo contra ti e isso seria o nosso fim – declarou o homem pálido, cujo nome era Landar, olhando-a alguns dez centímetros acima da sua altura.

Alexandrina sorriu-lhe e pousou-lhe a mão sobre o ombro num gesto carinhoso. ‒ Agradeço a tua preocupação, Landar. Contudo a Liriana precisa de nós, precisa especialmente de ti. Não

és obrigado a nada, sabes bem, mas por favor ajuda-a. Se a Vinyriah a encontra primeiro pode muito bem matá-la e fá-lo-á… e a culpa será minha. Não o posso permitir, nenhum inocente morrerá por causa da minha incompetência enquanto eu estiver viva. Farei tudo para que assim seja.

Landar desviou os olhos amarelos para o céu. Os lábios formavam um esgar contrariado e as mãos cerravam-se com força, porventura mal contendo um qualquer sentimento que se queria evadir.

‒ Como queiras, vivo para te servir. – Baixou a cabeça e, de seguida, as costas, numa vénia de submissão, fitando a erva ressequida num rancor apaziguado friamente. – Não insistirei se consideras a companhia do necromante melhor do que a minha.

Leonardo revirou os olhos e bateu com a mão na testa, contendo um qualquer comentário pouco simpático.

‒ Landar, por favor, não tem nada a ver com isso. A minha confiança em ti ultrapassa todos os limites, e é inabalável. É por isso que quero que vás só, és independente, cauteloso e, acima de tudo, discreto. Imploro-te que a encontres e… pára de ser cínico. Deixa as vénias de lado e as frases já feitas. Não me deves vassalagem, não és meu criado; és meu amigo, um grande amigo. É por isso que te faço este pedido. – Segurou-lhe na mão fria, enquanto Leonardo se afastava para explorar o local onde tinham surgido. – Ou estarei enganada?

Landar soltou um suspiro e sorriu-lhe. Os seus lábios tinham um tom melancólico, no entanto o cinismo partira para longe.

‒ Se o dizes, Rithirian Alexandrina… Soltou-se das mãos da mulher e avançou sob o estalar das ervas, sem olhar uma única vez para trás.

Alexandrina desviou o olhar do homem de cabelo comprido quando este, miraculosamente, pareceu evaporar-se no ar e alcançou Leonardo que se distanciava já alguns metros.

‒ Apressemo-nos, o mundo está nas nossas mãos – declarou, com algum sarcasmo, dando-lhe uma pequena palmada nas costas e ultrapassando-o.

‒ Sim, madame, vou o mais depressa possível, só me falta correr. As plantas amarelas raspavam-lhes as roupas enquanto passavam por elas como que perseguidos. Os seus

passos eram um aproximado do correr e, por vezes, olhavam para trás, esperando ver algum inimigo, mas tudo o que a sua vista alcançava era a vazia linha do horizonte onde se misturavam o céu e os elementos da terra.

Algum tempo após começarem a caminhada, a paisagem começou a modificar-se lenta mas gradualmente. Os arbustos, que antes pareciam mirrados e enfezados de doença, começaram a fortalecer-se e as folhas, anteriormente amarelas, deram lugar a ramagens um pouco mais esverdeadas ali e acolá, contudo numa quantidade deprimentemente escassa.

Finalmente uma pequena casa ergueu-se no horizonte, sob o céu agoirento. Um fumo esbranquiçado fugia da sua chaminé improvisada com uma massa sólida e pedras rústicas, assim como todas as paredes que sustinham a habitação. A pobreza deixava-se escoar por todas as fendas que permitiam que o frio e o vento penetrassem durante as noites tempestuosas.

A alguns metros de distância outra casa solitária surgia, provinda da desolação daquele local. Tinha um cercado à sua volta onde algum gado descansava de nada fazer.

‒ A última vez que cá estivemos isto não estava assim – murmurou Leonardo arrepiado pela miséria que se lhes revelava. – O que aconteceu a Rotherm?

Alexandrina soltou um suspiro entristecido e passou as mãos pelos olhos, detendo as lágrimas que insistiam em escapar-se. Como em dez anos tudo se modificara… Antes, Rotherm era um paraíso salpicado de cores e sorrisos, vivo e alegre. As crianças corriam pelos prados, rebolavam por eles enquanto brincavam juntas

Page 50: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 50 -

numa felicidade comovedora. Os pequenos pássaros cantavam uma melodia dos deuses, nuvens brancas passeavam-se livremente pelo céu sempre azul e, durante a noite, aqueles pontos dourados que eram as estrelas eram o regalo de muitos. Onde estaria tudo isso agora? O que acontecera ao divertido riso das crianças? Para onde partiriam as aves delicadas? Onde estava o etéreo azul do céu e as nuvens com sabor a algodão doce? E as estrelas, ter-se-iam apagado eternamente?

‒ Mesmo sem o seu bastão, Vinyriah espalha o mal e a desgraça por onde passa, só nunca compreendi porquê. – Alexandrina levou a mão à cintura, procurando algo.

‒ Sou eu que tenho a �iarda – informou Leonardo prontamente, percebendo de imediato o que Alexandrina queria mas não encontrava.

Com a ponta dos dedos, a jovem dama tocou no punho da espada cravejada com pepitas lilases, sentindo todos os seus invisíveis pormenores, todo o seu poder, todas as palavras que remontavam a uma idade antiga, mas uma idade em que o mal tentava já conquistar o que se fazia de maravilhoso no mundo. Ela sobrevivera à discórdia, dizimara entes malignos e sentira o sabor do sangue na sua lâmina imutável, mas resistira a qualquer corrupção. Era ela �iarda Liduine, a Estrela Poente.

Envolveu o punho da espada com delicadeza, e desembainhou-a sob o olhar atento de Leonardo. O seu nome brilhou a prateado na devastação que os rodeava, como estrela que era, uma estrela de esperança.

‒ Leonardo, o mal voltou a assolar os mundos, apesar de nunca ter saído deles. Contudo este mal que se libertou faz-me temer, e temo muito mais que antes. Sinto-me culpada, meu amigo, o peso no meu coração cresce a cada minuto que passa – murmurou, voltando a guardar a espada na sua bonita bainha. – Não sei o que fazer, não percebo o porquê dela ter voltado para nos atormentar, não percebo.

‒ Se a cada minuto que passa te pesa mais o coração, a nossa pressa aumenta, pequenina. – Leonardo depositou-lhe um pequeno mas significativo beijo nos cabelos negros. – E o mal não necessita de porquê para se espalhar, essa é a sua felicidade, o seu móbil, o seu fim. Só o mal justifica o mal, e só isso lhe diz respeito.

Alexandrina não pareceu muito convencida, mas o que poderia dizer mais? Os pensamentos que durante a noite a perturbavam em pesadelos terríveis? Não, era algo íntimo em demasia, algo de que se envergonhava, apesar de ter dito a si mesma, vezes sem conta, de que a culpa não fora sua.

Continuaram o seu caminho por entre casas desordenadas e que mal se aguentavam erguidas, numa confusão de pedra, areia, massa argilosa e ervas daninhas. Após uma caminhada por entre lixos pestilentos que se espalhavam pelo solo e animais domésticos com um aspecto adoentado, pararam defronte de uma humilde casa, decrépita como todas as outras. Um fumo acinzentado erguia-se da chaminé enfezada, assinalando a hora do jantar, possivelmente constituído por meros vegetais num caldo aguado que deixaria um fundo ainda mais vazio no estômago dos seus habitantes.

Alexandrina ergueu o punho fechado e, com os nós dos dedos, bateu na porta de madeira carcomida por térmitas, de uma forma audível e por três vezes consecutivas. Nada aconteceu durante minutos, a casa parecia vazia, não fosse o fumo que se erguia em lufadas da chaminé. Voltou a bater, não alterando a intensidade, como se a sua paciência fosse um longo túnel infindável. O mesmo aconteceu: só o silêncio teve como resposta.

‒ Não estarão? – Leonardo olhava duvidosamente para a casa, como se esta escondesse algo obscuro e tenebroso.

‒ Estão, mas nestes tempos difíceis é perigoso abrir a porta. Muitas vezes não se sabe o que nos aguarda do outro lado.

Ia bater novamente, mas uma sensação ao meio das costas fê-la parar o seu gesto. ‒ Quietos, ou não terei piedade – ordenou uma voz áspera e dura. O objecto que lhe era apontado às

costas parecia ser um gume de espada, possivelmente um trabalho rude de um ferreiro vulgar. Leonardo olhou de lado para Alexandrina, esperando receber qualquer sinal que lhe indicasse o que fazer,

mas Alexandrina parecia estar com outras ideias. ‒ Os tempos são difíceis, sei-o bem. No entanto, isto é forma de se tratar as visitas? – perguntou, fitando

um ponto distante, para lá da porta. ‒ Visitas que vêm armadas? – A ironia balançava-se na ponta da língua do homem. ‒ Alexandrina Adriática não transporta uma simples arma, mas �iarda Liduine, uma grandiosa espada,

sua fiel companheira, uma das mais belas artes do povo dos elfos. Leonardo fez-se ouvir, no seu timbre suave mas marcante, sempre pronto a defender a honra da amiga. ‒ Ai sim? E tu quem és? ‒ Sou também um fiel companheiro, Leonardo d’Ávila.

Page 51: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 51 -

‒ Hum… e o que te faz não vir armado? Uma confiança inconscientemente cega na tua dama, ou servirás de escudo quando necessário? – perguntou secamente o homem que segurava a espada.

‒ Chega de palavras idiotas. – A voz de Alexandrina era agora cortante, e nada tinha de acolhedora. Dobrou-se, num gesto rápido, e a mão direita voou até ao punho da sua espada mortal.

O homem, que não passava de um rapaz a quem fora roubada a infância, não conseguiu angariar tempo para evitar que a sua arma lhe fugisse da mão e que �iarda lhe fosse apontada directamente ao pescoço.

‒ Como cresceste, Arden Sacrir – comentou Alexandrina, simplesmente, vendo o rapaz engolir em seco ao sentir o gume da espada junto ao maxilar inferior. – Em dez anos tornaste-te um bonito rapaz, corajoso e audaz.

Baixou a espada e os seus olhos dirigiram-se para a rapariga que apontava um bonito punhal a Leonardo, possivelmente também uma obra do povo élfico.

‒ Cisdahen, baixa o punhal, por favor. Viemos em paz, a nossa intenção é ajudar-vos. ‒ Ajudar-nos?! – inquiriu Arden, ultrajado, avançando um passo e ficando a centímetros de Alexis. – Já

nos ajudaram em demasia, mandando para cá Vinyriah, enclausurando-a no nosso mundo. Trouxeram-nos a perdição. – Os olhos do rapaz coriscavam de fúria e ódio.

Alexandrina baixou o olhar, fitando a terra seca que as botas negras pisavam. O rapaz tinha razão, a culpa fora sua se Vinyriah sobrevivera. Mas o que poderia ter feito? Apesar de tudo, ela era sua irmã, irmã gémea, sangue do seu sangue. Não a poderia matar, não podia executar tal crime.

‒ Peço que me perdoem… ‒ A humildade soou na sua voz, mas não comoveu Arden que a esventrou com um olhar do mais puro ódio.

‒ Perdoar? A minha mãe foi morta há três meses por aqueles monstros horríveis por sua causa, Rithirian Alexandrina. – As duas últimas palavras soaram numa ironia cruel. – Mandaram-nos cá para visitar a casa, procurando algo seu, a mando da feiticeira. Não encontraram nada e quiseram então deixar a sua marca de terror. Foi aqui, neste mesmo sítio que pisais… ‒ a sua voz começava a tremer com uma raiva mal contida. – Eles arrastaram-na pelos cabelos, ignorando os seus gritos, ou gostando mesmo de os ouvir e depois… cravaram-lhe uma espada no peito para a seguir… ‒ as palavras tentavam fugir-lhe da boca, enquanto as lágrimas lhe banhavam o rosto. – Um deles rasgou-lhe o vestido a partir da fenda que aquela espada nojenta fizera e debruçou-se e… e… começou a beber-lhe o sangue e eu não pude fazer nada! Eles mataram-na, profanaram-na… e eu só salvei um corpo vazio, sem vida! Tinha saído, viajado até à cidade mais próxima com Cisdahen para vender umas coisas e quando vinha a chegar… vi tudo à distância, vi-os arrastarem-na, matarem-na e, por fim, banquetearem-se, tocarem-lhe com aquelas garras malditas. Corri o mais que pude, corri para a salvar, mas só consegui uma vingança incompleta. Matei os seis, mas a feiticeira continua à solta… e a culpa é sua!

O choque reflectiu-se nos rostos e nos corações de Alexandrina e Leonardo, como se tivessem sido acabados de esfaquear sem tempo para se defenderem. Aldara era uma grande amiga de ambos, uma mulher audaz e forte que desde muito nova sustentara os filhos sozinha pois há muito que o marido fugira, não se sabendo se ainda continuava vivo. Combatera ao seu lado, empunhando um machado de guerra, muito mais leve que o normal por ter sido feito por mãos élficas e não nas forjas dos antigos anões e, gloriosamente, derrotara um sem número de zunaris. Mas o mal estendera os seus tentáculos irremediavelmente, apanhando-a com certeza desprevenida e, assim sendo, desarmada, no que pensava ser o seu seguro lar. Deixara, então, dois pobres órfãos à sorte, obrigados a lutarem para sobreviver, contagiados pela desconfiança.

Tinha que tomar uma decisão. ‒ Não sabes como lamento a sua perda, mas não poderei chorar agora por ela, outras vidas correm perigo

e não as podemos abandonar – declarou, seriamente. – Juntas-te a nós nesta causa, Arden? ‒ Quer que a ajude a defrontar a feiticeira? – O rapaz parecia incrédulo no meio das acusações proferidas. ‒ Quero, e quero que Cisdahen parta connosco para o território dos elfos, é necessária a sua segurança,

tanto como para os outros inocentes apanhados no meio desta horrível tempestade. Agora gostaria de saber onde está Gladhari, assim como algumas roupas que pedi à vossa mãe que guardasse, e as nossas armas. Penso que ainda as tenham…

‒ Espera aí, Alexandrina – interrompeu Leonardo, olhando-a preocupado. – Vamos para a terra dos elfos? Mas isso não é também o local onde mora… quer dizer, não é demasiado arriscado? A nossa intenção é encontrarmos a Liriana, não cedermo-nos de livre vontade ao inimigo. Ele vive antes da Cordilheira de Dordar, os elfos muito depois, porventura terá sob guarda todo o vale!

Page 52: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 52 -

‒ É verdade, mas se temos de começar por algum lado, começamos por aí, não é um vampiro que nos irá parar, apesar daquele ser um caso à parte por certos motivos que respeito – declarou, categoricamente. – Eu estava a falar dos nossos pertences. Em que situação estamos, Arden?

‒ Já não os temos… ‒ disse o rapaz, olhando em volta atentamente, como se esperasse ver alguém espreitar por detrás de alguma parede ou arbusto depois de escutar a pequena discussão entre os dois amigos ‒ … por aqui. Levei-as para um lugar mais seguro, tal como os seus dois cavalos. Temos também algumas coisas nossas por lá, para o caso de surgir alguma emergência, como esta, por exemplo.

Alexandrina imitou-o, passando os olhos pela vegetação mirrada. Seria normal estar sempre tudo tão silencioso e calmo como a mão pálida da morte? Aquele sossego era, definitivamente, um facto anómalo que levantava sérias suspeitas. Sentia-se vigiada por olhos invisíveis.

Page 53: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 53 -

VII

O Segredo de Lorde Riargion

Oh! Diz-me tu quem és, Pois a mim és-me nada; Fala mundo que te oiço,

Atento a pormenores ocultos, A estranhas essências floridas E não por mim desfolhadas.

Pois deram-te luz e vida, Deram-me a vil sede de saber.

Quero-te, revela-te a mim, �esta alva angústia minha, �este olhar que te percorre

E não percebe o que vê.

“Desconhecido”

Ergueu a cabeça pesada e piscou os olhos, mas foi como se não o tivesse feito, pois o que via resumia-se a algo tão diferente e assustadoramente irreal que a levava a pensar que estaria num pesadelo.

Tudo o que a rodeava, ou tudo o que a pudesse rodear, estava encoberto na mais indistinta escuridão. O que via era um nada distante e sentia-se mais só do que nunca. A respiração pesava-lhe e cada vez mais lhe custava erguer o peito nesse acto moroso que era viver. Era como se sobre ela estivesse pousada uma forte mão que a pressionava cada vez mais, de uma forma mortal.

Lutou para se libertar dessa opressão maligna, dessa sombra que a aprisionava dentro de si, tentando sufocá-la, mas o esforço parecia vão. No entanto tinha que ser mais persistente, a sua força, estivesse onde estivesse, tinha que brotar do seu interior e fazê-la recuperar daquela lassidão.

Olhou em volta repetidamente, tentando vislumbrar algo mais do que o véu negro, e quanto demorou a encontrar o que queria! Segundos de desespero que pareciam horas, minutos que pareciam milénios que nunca chegaria a viver.

Por fim, perpétua, mas vagarosamente, os seus olhos captaram uma pequena luz na escuridão. Alguém se aproximava de si inesperadamente, pois, por mais que procurasse algo, não esperava que ele se lhe revelasse. Um vulto branco, que ondulava à medida que avançava, parecia querer comunicar consigo, talvez ajudá-la. E uma luz na escuridão era para si uma salvação.

Liriana caminhou na sua direcção por entre o que não via, crendo nessa hipótese remota de auxílio vinda da obscuridade que se apoderava mais e mais de si, sem compaixão.

As formas do vulto foram-se-lhe revelando com a aproximação. Possuía o delicado delineamento de uma mulher. Os cabelos eram negros e muito compridos, ondulando atrás de si, vagueando por proximidades íntimas. No entanto, a jovem não sentia vento algum que os fizesse flutuar. Era uma forma esbelta, mas a distância não lhe deixava distinguir feições, porém, sentia algo de familiar que a aquecia e ajudava a suportar aquele lugar frio.

‒ Alexandrina… – chamou num murmúrio. A sua voz soou com hesitação, ecoando no negrume que a rodeava apesar de ser só um sussurro. Tinha a certeza de que era ela, ninguém mais poderia ser. Mas o que faria ali? E que lugar era aquele?

Olhou para baixo. Não via o chão que pisava, era como se estivesse suspensa no espaço. Seria mesmo capaz de jurar que se movimentasse os braços conseguiria nadar até ao vulto branco que o seu espírito lhe dizia ser a senhora da Mansão Adriática.

Subitamente, um peso abateu-se sobre si, deixando-a instintivamente petrificada. O vulto parara o seu lento avanço e parecia começar a desvanecer-se na escuridão, sem qualquer aviso prévio.

Page 54: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 54 -

‒ Não… – A ideia de voltar a ficar sozinha assaltou-a, e era demasiado dolorosa para se conseguir suportar. – Não me deixes! Por favor! – gritou em aflição, iniciando uma corrida desesperada em direcção àquele ser que se esfumava cada vez mais, esquecendo-se de qualquer precaução e de que nem tudo o que luz é ouro, ou neste caso, uma entidade benigna. – Espera, imploro-te. Não vás!

Corria a toda a velocidade mas, para seu tormento, parecia não sair do sítio onde se encontrava. Aquele espaço fazia-lhe lembrar um qualquer filme de ficção de muito mau gosto, e alguém fizera questão de a prender no seu interior.

Por fim a sombra nívea dissipou-se completamente, deixando apenas uma leve névoa esbranquiçada atrás de si. No entanto, Liriana não parou a sua corrida desesperada. Todos os locais tinham que ter um final e aquele não podia ser uma excepção. E isto era o que o seu espírito tentava firmemente acreditar. Seria aquilo o vazio? O seu mundo incontestado?

Errantemente, um som fez-se ouvir, como se alguma coisa caísse desamparada no chão que parecia não existir, e só isso fez Liriana parar, arfando de cansaço e sentindo o suor a formar-se junto às têmporas. Olhou em volta, confusa, sem saber donde viera o som, tendo em conta que o negrume tomava cada vez mais partes de si. Sentia as mãos, mas não as via; sabia que pisava um chão, mas abaixo dos joelhos só a escuridão se revelava. Parecia que a devorava aos poucos, consumia a luz que ela transportava e, por fim, dentro de algum tempo, engoli-la-ia.

No meio daquela vastidão terrível, algo pareceu ouvir os seus pensamentos, para bem da sua salvação. Uma luz branca, a poucos centímetros de si, inundou algum espaço, apesar de continuar a parecer-lhe que a escuridão era tudo o que ali havia.

Liriana aproximou-se da luz com passos receosos, observando aquela claridade que a ofuscava. Ajoelhou-se ao pé da pequena alumiação e estendeu-lhe as mãos, tocando-lhe. Tinha um toque denso de frio, mas a luz era tão forte que, apesar de não a deixar ver qual o objecto que tão bondosamente a auxiliara, lhe parecia uma amiga.

Pegou-lhe suavemente e aproximou-a do peito num gesto de carinho e aconchego a si mesma. Fechou os olhos, tentando sentir a própria luz dentro de si, contudo não foi isso que aconteceu.

Vozes soaram distantes e ecoaram nas finas paredes do seu espírito. Ao princípio pareciam-lhe indistintas, o que a levou a redobrar a atenção e apertar ainda mais contra si aquela luz. Conseguiu assim distinguir palavra por palavra o que era dito, apesar de não saber ao que se referiam, nem o que significavam.

‒ Temos de a tirar daqui! Se Lorde Riargion a descobre é o seu e o nosso fim. ‒ Mas a criança não está bem, está a ser consumida pela febre, não a podemos abandonar agora. ‒ Se o Senhor a descobrir, seremos nós os consumidos, e por zunaris! Por isso… Liriana franziu as sobrancelhas e encostou a luz ainda mais a si, como se fosse ela a projectora das vozes.

Talvez conseguisse obter alguma forma de comunicar com elas. Abriu os olhos lentamente. Sentiu os lábios formarem um leve mas reluzente sorriso de alento com o

pouco que viu. Várias luzes pareciam misturar-se no ar, dando um tom alaranjado ao ambiente. A escuridão desvanecera-se, apesar da sua visão se encontrar agora turva. Nada mais conseguia ver para além de tons e vultos indistintos. E, apesar de a esperança ter regressado, continuava a sentir-se mal, como se tivesse sido atirada a rebolar por uma ravina abaixo. Todos os locais do corpo lhe doíam, alfinetes espicaçavam-lhe os membros doridos.

‒ Rorin, ela está a acordar, os seus olhos… ‒ Ela está a acordar e o cavalo de Lorde Riargion acabou de chegar. E adivinha quem vem montado nele?

O próprio Lorde Ardanir Riargion. Será coincidência ou é por esta residência ser o seu palácio? As vozes troavam dentro da sua cabeça, fazendo-lhe crescer cada vez mais uma dor horrível e

martirizante. Porque teriam de falar tão alto? Parecendo acudir ao seu sofrimento, as duas vozes silenciaram-se por instantes, instaurando-lhe um alívio

que a conseguiu relaxar um pouco, mas por um ínfimo tempo. Uma porta bateu de súbito, e novamente a voz irónica, reconhecida agora como masculina, se fez ouvir,

no entanto a ironia deu lugar à aflição. ‒ Nalir, temos de tirá-la daqui, Riargion vem para o nosso quarto, já deve suspeitar de algo. Por favor,

mulher! – A exasperação na sua voz aumentava de segundo a segundo.

Page 55: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 55 -

‒ Já não há saída possível, não temos onde esconder a pobre criança, e a única saída leva-nos directamente ao Lorde – declarou a voz feminina sucintamente. Havia um certo tom vitorioso. – Resta-nos implorar pela piedade do nosso amo, não é assim, meu querido e tão corajoso esposo?

Liriana voltou a fechar os olhos, enquanto a voz masculina respondia num tom áspero. Agora a escuridão parecia-lhe muito mais agradável e convidativa do que há minutos atrás, perante o peso e as dores que se abatiam sobre si.

Ouviu o trinco de uma porta abrir-se com brusquidão e uma voz suave mas fria soou pelo aposento onde se encontrava e que ainda não tivera oportunidade de examinar por culpa do seu cansaço.

‒ O que se passa aqui, Rorin? A voz da pessoa que acabara de chegar causou-lhe um calafrio que a fez estremecer visivelmente no local

onde se encontrava deitada. ‒ A culpa é minha, senhor – interveio a voz feminina que parecia pertencer à pessoa cujo nome era Nalir.

– Encontrei esta pobre criança perto daqui, abandonada por alguém e a arder em febre. Pareceu-me de bem ajudá-la, meu Senhor.

Fez-se um novo silêncio a que Liriana repetidamente agradeceu. Não sabia o porquê da sua presença naquele local, nem sequer se lembrava do que lhe acontecera antes de toda aquela escuridão tomar conta de si. Não sabia como lá tinha ido ter, e se saíra devia-o àquele misterioso brilho. Só tinha a certeza de uma coisa, de como gostava que Alexandrina estivesse ali, fazendo-lhe companhia, em vez de três desconhecidos.

O som de passos voou até si e sentiu a passagem de ar junto à face. Alguém se aproximara. ‒ Sabes quem possa ser? – perguntou a voz fria. Inevitavelmente, mesmo sem saber o que acontecia,

Liriana sentiu dois olhos penetrantes percorreram-na, como se a examinassem. ‒ Não, meu senhor. É uma jovem com uma estranha forma de vestir, penso que não será desta região –

respondeu a voz feminina, baixinho, tentando não perturbar a convalescente. Outro novo silêncio deu lugar naquele aposento, um silêncio de reflexão. ‒ Muito bem. – A decisão estava tomada. – Quando acordar e se se sentir melhor, gostaria que me

avisassem, pois quero interrogá-la e saber quem é, o mais depressa possível. Poderá ser uma informação de extrema importância.

Os mesmos passos voltaram a afastar-se em direcção à porta, contudo Liriana já não dera conta disso. Acabara por adormecer no seu cansaço extremo e na confusão que a fazia perder-se cada vez mais. Nesse momento só de uma coisa necessitava: descanso.

O toque de algo frio fê-la despertar. Os olhos turvos conseguiram habituar-se rapidamente à semi-

escuridão enquanto se abriam de modo gradual, e Liriana pôde ver finalmente quem a ajudara. Uma senhora, perto da meia-idade, sentava-se ao seu lado, passando-lhe uma toalha húmida e gelada pela testa.

‒ Onde estou? – Não se lembrou de nada mais útil para perguntar. O seu espírito ainda não associara absolutamente nada, e aquilo bem que podia ser uma alucinação matreira. Do que se lembrava, nunca tinha visto aquela mulher na vida, nunca tinha entrado naquele quarto.

Era uma pequena área, de tom pobre mas acolhedor. Não vira aquilo com os olhos, que estavam ainda demasiado cansados para explorar, mas sentira-o com o coração. Para si, tudo era possível de se sentir, pois tudo emanava uma atmosfera, por mais ténue que fosse, e aquele quarto não era excepção. Estava recheado de algo que Liriana pensava conhecer, mas ainda não identificara.

A mulher sorriu-lhe com alegria por a ver acordar e só não a abraçou porque Liriana era uma total estranha.

‒ Minha pequena, estás no palácio de Lorde Riargion. Encontrámos-te desfalecida no bosque aqui perto e trouxemos-te.

‒ O quê? – Aquela conversa não fazia qualquer sentido e só serviu para a confundir ainda mais. De que bosque estaria a falar? E que Lorde era aquele? E donde surgira um palácio?! – Não compreendi.

A confusão de Liriana não pareceu surpreender a mulher. Voltou a passar-lhe a toalha pela testa, contudo a jovem afastou-lhe a mão e o seu sorriso diminuiu.

‒ É para o teu b… ‒ Quem é a senhora? – perguntou, tentando levantar-se, mas uma tontura atacou-a obrigando-a a vacilar e

a senhora que cuidava de si ajudou-a a voltar a deitar-se.

Page 56: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 56 -

‒ Descansa, por favor, e não te preocupes por agora, ou tenta não te preocupares – murmurou-lhe amavelmente, afastando-lhe os cabelos da fronte. – Chamo-me Nalir, mas isso agora não interessa, minha querida. Descansa, para teu bem.

Liriana soltou um suspiro atormentado e voltou a fechar os olhos. �alir era um nome estranho, talvez asiático ou africano. Contudo, aquela senhora parecia ocidental. E as suas vestes eram tão atípicas, tão fora do comum, tão… medievais.

Que enredo enorme se formava na sua vida! A única coisa que gostava de fazer era poder voltar para casa e estar junto dos seus pais, mas parecia que estava tudo contra si. As duas pessoas que mais amava estavam prestes a separar-se, fora empurrada para um canto longínquo para não atrapalhar, um maldito ser perseguira-a insistentemente e, agora, ou estava a delirar, ou algo de muito inexplicável tinha acontecido. Só não sabia qual das hipóteses seria a mais correcta, ou se ambas se entrelaçavam numa junção de tormento para o seu espírito.

Ouviu uma porta abrir-se sem autorização prévia e voltou a entreabrir os olhos. Um homem tinha acabado de entrar no quarto, fechando a pesada porta atrás de si. Tinha uns fortes olhos cinzentos que a perscrutaram indefinidamente. Eram profundos e pareciam-lhe tão frios…

‒ Sai, Nalir, deixa-nos a sós – declarou rispidamente, sem deixar de fitar os olhos de Liriana. ‒ Sim, meu senhor. Mas a pequena ainda não está recuperada, continua muito frac… ‒ Sai. – O seu tom era cortante, tal como o seu olhar, não deixando espaço para dúvidas. Nalir fez uma vénia prostrante e apressadamente se encaminhou para fora do quarto, de cabeça baixa em

sinal de submissão. Lançou um último olhar a Liriana, quando estava a sair, olhar esse que lhe deu muito que pensar. Era um aviso de cautela.

O homem desviou a atenção de si e deu uma volta pelo quarto com passos lentos, como que meditando nalgum assunto que se remexia sem parar na sua mente. Apesar do seu olhar revelar um relevante grau de sabedoria, o rosto era jovem, mais novo do que Alexandrina; tinha o cabelo de um tom loiro, quase branco, e um pouco encaracolado, atado com um laço negro; vestia uma casaca verde-escura de veludo, calças brancas dentro de botas negras de montar e luvas na mesma cor. A sua estatura alta e elegante em conjunto com o seu gélido olhar, conferia-lhe uma enorme altivez.

‒ Sabes quem sou? – perguntou bruscamente, voltando-se para a rapariga e estudando a sua reacção. Aquela pergunta não fazia sentido para si, era óbvio que não sabia, nunca o vira antes. Estava a ficar cada

vez mais assustada. Sentia-se perdida dentro doutro mundo, um mundo que desconhecia. ‒ Ouviste o que te perguntei? – insistiu o homem. ‒ Sim… quer dizer, não! Quer dizer, ouvi o que me perguntou e não, não sei quem é – respondeu a

jovem, atrapalhando-se cada vez mais. Aqueles olhos perturbavam-na. O homem estudou-a novamente e Liriana sentiu-se tentada a fazer um qualquer comentário pouco

simpático, mas não o fez, não queria piorar a sua situação sem saber com o que poderia contar, ou não. Viu-o aproximar-se e ocupar a decrépita cadeira onde Nalir antes se sentara. Cruzou as pernas

indolentemente e sorriu-lhe. ‒ Chamo-me Ardanir Riargion, sou senhor do palácio Estherel, onde te encontras por bondade dos meus

serviçais. Posso saber qual o teu nome? – O tom tornara-se um pouco mais amável e talvez compreensivo, no entanto, e por mais que tentasse disfarçar, aquilo nunca seria um pedido, mas uma ordem.

Apesar de não sentir todas as suas energias restabelecidas e de continuar a parecer-lhe tudo um poço de mistério, não era ingénua o suficiente de forma a dizer o seu verdadeiro nome. A pouca amabilidade do homem não lhe inspirava confiança alguma.

‒ Chamo-me Ana. E onde estou? ‒ Já te respondi a isso, estás no meu palácio, em Ranar, uma pequena vila de Selnar Irgir, a grande terra

dos seres do Ar. – As palavras proferidas pelo homem pareceram-lhe um pouco sarcásticas, quando se referira aos seres do ar. Estaria a falar de alguma espécie de aves? E, mais importante, que terra seria aquela?

A sua face devia ter reflectido a confusão que a preenchia, pois um sorriso abriu-se nos lábios de Riargion, mostrando uns dentes brancos e de brilho frio. Passou a mão pela face sem rugas, rindo-se para si e fazendo Liriana corar. Estava a troçar da sua ignorância.

Levou as mãos aos bolsos das calças num acto instintivo de amuo, contudo estremeceu ao fazê-lo. Tinha alguma coisa dentro do bolso esquerdo, algo duro e frio que não se lembrava de lá ter colocado. Examinou-o com a ponta dos dedos, despercebidamente. Tinha um toque grosseiro e rugoso de um objecto por lapidar e em

Page 57: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 57 -

alguns pontos chegava mesmo a ser afiado. Queria tirá-lo do bolso e observá-lo, no entanto o homem parecia não querer sair dali tão cedo.

‒ Posso saber como vieste aqui ter? – perguntou, quando o risinho o abandonou, mostrando um ar bem mais sério e voltando a encará-la com aqueles olhos tão incaracterísticos.

Liriana abriu a boca, pronta a responder, no entanto a tão grande certeza que a assolara desvaneceu-se a pouco e pouco, e os seus lábios premiram-se num esforço de reunir todos os pensamentos dispersos. Só se lembrava daquela escuridão aterradora que a rodeara e da luz que a ajudara a escapar. Antes disso, por mais que tentasse recordar-se, era tudo difuso. Uma barreira tinha-se erguido, impedindo-a de atravessar para o outro lado, deixando-a apenas visualizar certos pormenores. Lembrava-se de Alexandrina, de estar a passar férias em sua casa. E que mais? Uma sombra erguia-se sobre a sua cabeça, e dessa Liriana lembrava-se bem, perseguira-a até não se sabe onde, talvez até ali.

‒ Não sei – respondeu por fim, retirando as mãos dos bolsos e brincando com os lençóis amarelos de velhice. – Não me lembro de nada, parece que tudo se apagou… – Sentiu os olhos encherem-se de lágrimas indesejáveis. Aquilo não lhe podia estar a acontecer.

Riargion baixou os olhos pensativamente, ao deparar-se com o estado lamentável da jovem. Devia ponderar no que fazer com ela, se a deixaria ficar ou a expulsaria. Mas Liriana não esperaria caridade daqueles olhos cinzentos despidos de sentimentos.

A porta estremeceu um pouco quando alguém lhe bateu, assustando Liriana que deu um pequeno salto estremunhado.

‒ Entre! – A voz de Riargion fez-se ouvir forte e precisa, deixando que a porta se abrisse. Era Nalir. ‒ Perdoe-me a interrupção, meu Senhor, mas pensei que algumas flores alegrariam um pouco o quarto –

disse, deixando escapar um sorriso tímido, numa tentativa de apelar à boa vontade do seu amo. Riargion estudou-a durante uns segundos e por fim ergueu-se, lançando um último olhar a Liriana. ‒ Espero que melhores – declarou e, para espanto da jovem, abriu-se-lhe um sorriso amável que a fez

repensar no carácter do jovem homem. – Nalir, cuida bem dela. Se precisar de alguma coisa, não hesites em comprar. Passarei por aqui de vez em quando para saber como se encontra a agora minha nova convidada.

Nalir, que ainda não entrara, recuou para dar passagem ao seu mestre, que saiu com passadas longas e com o casaco comprido a adejar atrás de si, e só depois a serviçal penetrou no antigo quarto, com uma jarra nas rechonchudas mãos.

O coração de Liriana deu um salto quando a sua visão pousou sobre as flores que repousavam na jarra. As suas pétalas aveludadas eram vermelhas, num tom escuro como o sangue; vários e pequenos espinhos rodeavam os caules verdes que se erguiam da água. Era impossível os sentidos enganarem-na, as flores assumiam características únicas. Eram rosas.

Várias lembranças assolaram-na em catadupa, fazendo os seus olhos abrirem-se mais e cada vez mais de elucidação. Aquele muro que lhe toldava a mente fora derrubado. Lembrava-se de tudo, agora. Lembrava-se do que fizera, das estupidezes que, possivelmente a teriam levado até ali. Lembrava-se da sua maldita curiosidade, e do malfadado ego heróico, que a levaram a mergulhar de cabeça em assuntos que não lhe diziam respeito. Tudo graças a uma pequena flor perfumada de mistério e recordações.

‒ Alexandrina… onde está a Alexandrina? – perguntou nervosa, sem se conseguir deter, não percebendo até que ponto aquela pergunta era irrelevante e, acima de tudo, ilógica.

Nalir pareceu empalidecer um pouco, sem explicação aparente. Pousou a jarra de rosas sobre a mesa-de-cabeceira e mirou-a, preocupada. Liriana não conseguia desviar o olhar das rosas. Eram como uma iluminação que revelava um panorama pouco simpático.

‒ O que queres dizer com “Alexandrina”, querida? Sentes-te bem? – A senhora pegou-lhe nas mãos e afastou-lhe os cabelos da face, maternalmente. Tinha as mãos gastas e ásperas, mas o seu calor aprazível conseguia apaziguar o nervosismo da pequena.

Liriana examinou novamente os lençóis encardidos e as lágrimas que se amontoaram nos olhos escorreram uma vez mais. As suas mãos escorregaram das de Nalir e taparam o rosto, abafando um pouco os soluços estremunhados.

‒ Ó minha pequena… – murmurou a serviçal, envolvendo-a nos braços, como se fosse a sua filha mais jovem. – Isto passará, acalma-te, por favor. Não podes desesperar.

‒ Mas… estou sozinha… – A angústia crescia cada vez mais dentro de si. – Todos me abandonaram.

Page 58: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 58 -

‒ Eu estou aqui contigo, e não te abandonarei, nunca! Nós acolhemos-te quando precisaste, e estaremos aqui, não vamos fugir – um sorriso amável formou-se na sua face. – Não te deixes levar pela melancolia, não a deixes conquistar-te. Quero ver-te recuperada, quero-te firme e feliz. – Depositou-lhe um beijo na cabeça. – Pensa muito bem nisso, pensa no que é melhor para ti e… põe de parte o que te faz sofrer.

Cada palavra proferida por Nalir fluía pelos seus sentidos, entranhando-se fundo. Pôr de parte o que a fazia sofrer… porque não? Os pais não a queriam, tinham-na abandonado num local remoto às mãos de uma madrinha que nada fizera para a proteger da sombra, e era um incómodo para todos, um encargo que eram obrigados a carregar às costas. Talvez a ideia deles até fosse aquela, que ela desaparecesse para não mais verem a sua face insuportável que só lembrava despesas, afazeres e preocupações. Ficariam livres para viver a sua vida de uma forma plenamente agradável.

Todos aqueles tão pouco atractivos pensamentos fizeram a tristeza dar lugar à raiva. Agora, via tudo claramente. Como pudera pensar que Alexandrina se preocupava com ela, que poderia ser sua amiga?

‒ Lorde Riargion permitiu que ficasses aqui, talvez cá possas ficar permanentemente. – A voz de Nalir soou como um apoio aos seus pensamentos, apesar desta não ter a capacidade de lhe perscrutar a mente.

E sim, talvez pudesse, porque não? Limpou as lágrimas às mangas compridas do casaco e tentou sorrir para Nalir. O resultado foi um esgar

não muito feliz, contudo foi um esforço para afastar todas as más recordações, mesmo que fosse um afastamento momentâneo. Nalir pareceu aprovar e voltou a beijá-la ternamente, desta vez na bochecha um pouco vermelha da excitação que o seu choro provocara.

Subitamente, e interrompendo aquele tão entristecido momento, um barulho fez-se ouvir, um roncar vindo do seu próprio corpo. O estômago vazio queixava-se alto e a bom som, pedindo algo que o contentasse.

‒ E parece que a nossa conversa acaba aqui, por me parecer ouvir um malandro a chamar – concluiu Nalir, sorrindo-lhe e erguendo-se da beira da cama. – Já volto, penso que necessitas de comer alguma coisa que te devolva o ânimo e te faça sorrir decentemente.

Quando Nalir saiu, Liriana voltou a olhar em volta. O quarto onde estava era muito diferente do quarto onde dormira, enquanto estivera na Mansão Adriática. Não tinha a mesma claridade, a mesma luz inovadora. Contudo, como as aparências enganavam! Fora ali acolhida como uma filha há muito não vista e que se pensara perdida. E não o era? Uma filha perdida que porventura não mais veria os seus pais, ou os seus amigos. E a culpa fora de Alexandrina que a deixara sozinha na mansão, que a deixara ir para lá e entrar em contacto com aquele ser maléfico.

Uma nova lágrima afluiu-lhe aos olhos e, de imediato, a sua mão fugiu até ao bolso, procurando um lenço, mas não foi isso que encontrou. Um toque frio lembrou-lhe do objecto que tinha ali guardado.

Retirou-o rapidamente para o examinar, antes que alguém chegasse. Era uma pedra, ou melhor dizendo, um cristal. Detinha um brilho muito bonito e refrescante e os seus contornos diziam que nunca antes fora lapidado, ou seja, apesar de ser do tamanho da sua mão, estava em estado bruto. No entanto, havia algo mais.

Liriana aproximou-o do olhar, examinando o inato do cristal. O mais fantástico revelava-se aos seus olhos. Um pequeno brilho branco, um coração de uma estranha mas maravilhosa energia, pulsava dentro da pequena pedra preciosa.

Sorriu para si, recordando algo que se passara há pouco mais de um dia. Deveria ter sido aquela luz que a ajudara a sair das trevas em que tão aflitivamente se encontrara. Mas como teria aquilo ido parar ao seu bolso?

Ofereceu-lhe um terno beijo de agradecimento e juntou-a ao peito como se quisesse unir o bater do seu coração ao pulsar da pequena pedra desnuda. Nesse momento era aquela a sua salvadora e a sua esperança. Desconfiava de que um dia ainda haveria de a ajudar novamente.

Na manhã seguinte, Liriana despertou com o sol a acariciar-lhe a face num gesto gentil. Não tinha ainda reparado que a cama estava ao lado de uma janela. Esfregou os olhos e bocejou, tentando afastar o sono insistente. Há muito tempo que não se sentia bem, mas naquela noite pareceu recuperar todas as forças que antes se tinham escoado do corpo. Afastou os lençóis para o lado e pousou os pés sobre um pequeno tapete junto à cama. Tinham-na descalço e pôde sentir o quão áspero ele era em comparação com os da Mansão Adriática.

�ão! Tinha de esquecer aquela maldita casa. Procurou os sapatos e as meias e não os demorou a encontrar, estavam alojados debaixo da cama,

arrumados, um junto ao outro, com as meias no seu interior.

Page 59: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 59 -

No exacto momento em que se estava a calçar, a porta do quarto abriu-se e Nalir entrou com um tabuleiro de madeira nos braços.

‒ Já estás acordada? Mas não deverias estar ainda deitada? Não recuperaste totalmente – advertiu, pousando o tabuleiro sobre a mesa-de-cabeceira e levando as mãos à cintura.

Nalir era uma mulher baixa e bem constituída, com um sorriso simpático e uns olhos castanhos-escuros marejados de generosidade. Trajava um vestido comprido mas simples, em tons de pastel, e o cabelo preso num carrapito com uma rede. Não era uma típica donzela de um conto de fadas, mas se lhe dessem uma varinha de condão podia ser, talvez, uma amável fada madrinha.

Nesse instante a imagem de Alexandrina assolou-lhe novamente o espírito ao imaginar Nalir na forma de uma fada madrinha. Alexandrina também daria uma óptima fada, sob outro ponto de vista, isso se não a tivesse abandonado ali…no entanto, a verdade era que sempre existira fadas benfeitoras e outras que nem tanto.

Abanou levemente a cabeça para afastar a madrinha da sua alma e respondeu a Nalir. ‒ Já me sinto muito melhor – disse, sorrindo-lhe, para apaziguar a sua preocupação. Dirigiu então a atenção para o tabuleiro velho e examinou atentamente o que ele transportava. Num prato

repousavam uma suculenta maçã verde e duas fatias de pão com doce, e num cálice prateado fumegava uma quantidade substancial de leite que a fez estremecer. Definitivamente aquele lugar distante parecia-lhe muito mais frio do que o seu mundo.

‒ Mas mesmo assim prefiro que não te canses ou podes voltar a piorar – asseverou a senhora, sem notar no estremecimento da jovem. – Bem, trouxe-te o pequeno-almoço. Não é muita coisa, mas espero que gostes.

‒ Vou adorar – assegurou a jovem. Nalir sentou-se ao seu lado, enquanto Liriana comia, alisando o vestido de vez em quando, num gesto

nervoso de quem tinha algo para dizer mas não sabia como iniciar a conversa. ‒ Desculpa se te incomodo com este assunto, mas gostava de saber o teu nome – declarou. Liriana levantou a cabeça para a fitar, engolindo o saboroso pão com doce antes de lhe responder, e, com

ele, o primeiro nome que lhe viera à boca mas que não chegou a sair: Liriana. ‒ Chamo-me Ana. – Respondeu o mesmo que respondera a Lorde Riargion e o mesmo diria a todos os

que não conhecesse ou em quem não confiava. – Depois de comer deixa-me sair e dar uma volta por aí? Estou cansada de ficar aqui deitada sem fazer nada… e gostava de conhecer a região.

A senhora fitou-a com uns olhos castanhos-escuros brilhantes, quase pretos, e passou-lhe a mão pelo cabelo.

‒ Sabes, em muito me fazes lembrar a minha falecida filha – murmurou nostalgicamente, sem lhe responder à pergunta, desviando o olhar. Liriana viu uma lágrima solitária escorrer-lhe pela face e parecia que aquela lágrima há muito que se queria escapar, mas fora impedida durante um longo tempo.

O seu coração pareceu parar ao ouvir aquelas palavras. Bastava-lhe já o seu sofrimento para a preocupar. Mas Nalir auxiliara-a, era bem verdade. No entanto, para seu desgosto, via agora a grande razão da sua disponibilidade. Comparava-a com uma filha perdida.

Formou-se-lhe um nó doloroso no estômago que a fez pôr de lado todo o resto da comida, e mordeu o lábio inferior, sem saber o que dizer.

‒ Eu lamento… – murmurou. Ergueu a sua mão com hesitação e, por fim, pousou-a sobre o ombro da senhora. – Desculpe, não era minha intenção lembrar-lhe de qualquer tristeza.

Nalir sorriu com amargura, sem lhe dirigir o olhar. ‒ A culpa não é tua, é minha. – Liriana encolheu-se, esperando ouvir a mulher censurar-se por a ter

acolhido, mas não foi isso que ouviu. – Fui eu que lhe ordenei para ir buscar o leite à noite e sozinha, fui eu a culpada da sua morte. Ela estava a demorar muito, saímos para a procurar, mas não a vimos em lugar algum. Nessa noite não dormi. Rezei sem fim à Deusa Mãe, esperando que me trouxesse Ghanir sã e salva, mas não foi isso que aconteceu. O mal tinha já agido de uma forma demasiado cruel para uma alma tão pura. – Fez uma pausa para ganhar fôlego e limpar as lágrimas e só depois continuou. – De manhã alguém bateu à porta e corri para abrir, pensando ser a minha querida filha, mas não, era o fazendeiro da quinta mais próxima e trazia uma notícia que quase me levou à loucura durante os dias seguintes. Tinha-a encontrado entre as ervas mais altas, quando ia plantar algumas sementes, pela manhã. O seu corpo não tinha sinais de violência, a única anomalia era uma palidez fora do normal. Quando a vi, foi como se morresse também. Lá estava ela, com os olhos ainda abertos, a olhar para o nada. Já não tinham o seu brilho, estavam definitivamente mortos.

Page 60: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 60 -

Liriana estremeceu com tais constatações do passado e sentiu as suas próprias lágrimas encherem-lhe os olhos de uma forma tal que lhe dificultavam a visão. Não queria que Nalir a visse chorar, a sua perda já seria o suficiente para a deixar entristecida. Limpou-as o mais depressa possível, mentalizando-se que deveria ser ela, desta vez, a apaziguar a dor da senhora.

‒ Não se pode culpar por isso, nunca o poderia ter imaginado. Se assim não fosse, não a teria mandado, com certeza – declarou, calmamente. – Por vezes não conseguimos deter a mão traiçoeira do destino.

Nalir endireitou as costas lentamente, como quem ganha coragem para dizer alguma coisa que há muito deveria ser dita, e dirigiu-lhe o seu olhar, perscrutando-a atentamente, porventura pondo em causa a sua discrição.

‒ Não foi mão alguma do Destino, foi um monstro, um ser desprezível que não deixa vestígios dos seus crimes. – Liriana esperou ansiosa a revelação da pobre mulher. Que ser poderia conter tal maldição? – Foi um sugador de sangue, um vampiro, um margar ngal.

A jovem tinha a certeza de que se engasgaria se estivesse a engolir alguma coisa. Um vampiro? Que história miraculosamente terrível seria aquela? Nalir teria enlouquecido? Os vampiros eram seres imaginários, nada mais, fantasias inexistentes. Assim sendo, nunca poderiam atacar pessoas… ou estaria enganada?

O seu espírito recordou-se da quase fatídica noite em que Zeus a salvara. Não fora ela perseguida por uma sombra nesses instantes impossíveis? E não estava o seu paraíso encantado a desmoronar-se cada vez mais, revelando prodígios e desgostos inimagináveis que se entrelaçavam com irrealidades de mundos passados que surgiam do nada?

Passou a mão pela face, afastando qualquer gota de suor que o seu nervosismo tivesse formado. ‒ Mas deixemos estas conversas tristes. – Nalir parecia decidida a colocar um ponto final na conversa que

ela mesmo iniciara; as recordações de cada um eram, por vezes, demasiado dolorosas. – Então, não comes o resto?

A jovem mirou o tabuleiro abandonado sobre a mesa-de-cabeceira e encolheu os ombros, não se lembrando de nada imaginativo para responder.

‒ Já estou cheia – disse, sorrindo timidamente. – Já posso ir dar uma volta por aí? ‒ Ah… podes, marota. – A jovem ergueu-se rapidamente, com o entusiasmo de criança a crescer cada vez

mais, fazendo as molas do colchão da velha cama chiarem ruidosamente. Tinha quinze anos, quase dezasseis, mas sempre gostara de saborear uma aventura razoável, e a

exploração de uma terra misteriosa fazia parte dessa “aventura razoável”, mesmo que no profundo do seu ser fosse unicamente uma desculpa para tentar esquecer os últimos acontecimentos. – Por hoje não poderei ir contigo, por isso peço para que não te afastes. Explora o palácio se quiseres, tens muito por onde ver. Talvez até encontres alguma passagem secreta, ouvi dizer que existem imensas.

Liriana agradeceu, mas uma dúvida perpassou-a antes de sair, e olhou indecisa para Nalir. ‒ O que se passa querida? ‒ Lorde Riargion não se importa que ande a vaguear pelo palácio? O que acontecerá se me vir? –

perguntou, preocupada. Não se esquecera da forma intimidante como o senhor do palácio a mirara. Aqueles olhos cinzentos (era até capaz de afirmar que possuíam reflexos prateados) não lhe saíam da cabeça.

‒ Lorde Riargion não está, nem estará até ao anoitecer. E, apesar de não parecer, apesar de por vezes ser frio, o senhor lá bem no fundo é uma óptima pessoa. O seu único problema é igual ao de meio mundo, sofre de amor. Mas não gosto de falar da vida dos outros, só não quero que o julgues pela sua atitude pouco amável. – Soltou um suspiro, levantando-se também. – Mas não te preocupes, vai lá esticar as pernas. Talvez nos encontremos mais cedo do que esperas.

Se algum dia se espantara com o tamanho da Mansão Adriática, isso parecia-lhe um passado remoto,

comparado com a imensidão do palácio de Lorde Riargion. Contudo, não era essa a única diferença. A aura que habitava cada um dos edifícios cobria-os de uma forma muito diferente; a da Mansão Adriática instaurava uma solenidade melancólica que se conseguia inspirar e sentir junto à pele – era densa; a do palácio era leve e suave, mas fria, quase impalpável e fugidia, como que inabitada. As suas diferenças tão profundas convergiam num único sentimento para a sua alma, a prostração. Eram dois extremos e, como todos os extremos, estavam repletos de aspectos negativos que dificilmente se alteravam.

Page 61: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 61 -

Caminhou pelo corredor de pedra fria. Quadros antigos, delicadas tapeçarias ou armas de magnífico porte ornamentavam as paredes lisas, no entanto não chegavam para ocultar o que nelas estava cravado em profundidade. Parecia que a sua pessoa atraía aqueles locais marcados pela passagem do tempo.

Após caminhar um pouco, parou junto a uma janela. Para lá dela pôde ver a região onde se encontrava. Era vasta, salpicada por pequenas casas de aspecto velho e suas devidas propriedades. Vários campos de cereais ondeavam ao vento da manhã, conferindo alguma serenidade à sua alma com todo o sossego emanado. A alguns metros de distância, um homem levantava e deixava cair sucessivamente a enxada, cultivando a terra. O céu estava tenebrosamente cinzento, apesar de se conseguir vislumbrar o Sol e os seus raios. Mas, o mais esplêndido, e ao mesmo tempo atemorizador, era o colosso que se erguia do lado direito do palácio.

Não uma, não duas montanhas, mas uma cadeia montanhosa inteira, prolongava-se até onde a vista alcançava. Erguia-se muito acima do palácio, ocultando-o com a sua sombra. Muitos dos picos estavam adormecidos sob mantos brancos de neve e os mais altos nem sequer eram visíveis, cobertos por nébulas profundas que nada deixavam descortinar. Era sem dúvida uma paisagem lindíssima, digna de uma pintura dos mais audazes e sensíveis artistas, pois para a pintar era preciso coragem, coragem para a olhar de baixo e não temer ser esmagado.

Um movimento fê-la desviar os olhos da janela. Olhou o corredor até ao fundo, no entanto não viu nada nem ninguém. Franziu as sobrancelhas. Tinha a certeza de que vira passar alguma coisa. Acelerou os passos até ao local onde o corredor se bifurcava e olhou de um lado para o outro. Estava completamente vazio.

Queria encolher os ombros e deixar o acontecimento de lado, mas com tudo o que ocorrera desde o primeiro dia de Agosto, o seu espírito não a deixava ignorar alguns factos mais estranhos. E se fosse a sombra, novamente? Abanou levemente a cabeça para expulsar aquela ideia. Se ela a quisesse apanhar, tivera hipóteses suficientes enquanto se encontrara acamada.

Ocorreu-lhe então uma ideia tão lógica que considerava pouco imaginativo não se ter recordado antes. Nalir referira-se a passagens secretas, mesmo antes de Liriana sair do quarto. A pessoa que vira, pois não poderia ser outra coisa, podia ter-se escondido num desses locais misteriosos.

Imaginou-se a palpar todas as pedras da parede. Qualquer uma poderia abrir a passagem que a levaria a lugares inexplorados. Correu a mão pela parede, com um sorriso travesso. Era divertido que isso acontecesse, descobrir algum segredo dos grandes amores de Lorde Riargion.

Soltou um suspiro, seguido por uma pequena risada da insanidade que todos possuímos, enquanto pensava em como o seu comportamento estava a ser infantil. Contudo, o próprio foi subitamente interrompido, quando o olhar decaiu no cruzamento entre a parede e o chão, num simples pormenor fugidio. Algumas pedras sobressaíam, alongando-se vários milímetros, ao longo de todo o comprido corredor, lapidadas com flores pequenas e simples, tão deslocadas daquele local, mostrando algo mais do que se revelava à primeira vista.

Franziu as sobrancelhas, intrigada. Deu alguns passos atrás e espreitou o corredor onde estivera antes de ver o vulto. Pareciam semelhantes, contudo tinham aquela pequena diferença. A ala onde observara os campos e a grande cordilheira era totalmente lisa, sem qualquer ornato próprio da pedra.

Aquela diferença era irregular, seria até capaz de jurar que existia uma certa quebra nas duas atmosferas, como se tivesse passado para um outro mundo ainda mais diferente. Mas porventura isso seria apenas a sua imaginação.

Obrigou os pés a andarem, apesar de o fazerem de uma forma meia rastejante. Os orbes de mel seguiam aquelas singelas mas perfeitas flores, apreensivamente. Não faziam sentido, pareciam distantes, ou ainda mais, transcendentes, acima das mediocridades dos mortais. Estranhamente, naquele local conseguia sentir um pouco de Alexandrina.

O corredor finalizava-se em duas altas e austeras portas de tom escuro, no entanto eminentes. Numa delas, para além dos pormenores requintados, estava talhada uma metade do Sol em todo o seu esplendor; noutra, de igual modo repleta de minúcias, a Lua delicada revelava-se. Mas até aquelas imagens pareciam distantes do local.

Tocou nas formas cravadas suavemente na madeira, sem qualquer imperfeição. Os raios do Sol propagavam-se em curvas, emanando um calor mágico que a envolvia. A Lua encontrava-se em quarto crescente e, apesar de a sua luz não estar talhada na madeira escura, Liriana tinha a certeza de que sentia a sua força, aliás, a energia de ambos os astros conjugados.

Baixou a mão para a maçaneta dourada, na porta em que o Sol descansava. Estava, inacreditavelmente, quente. Sem hesitação levou a mão direita à maçaneta da porta da Lua. O frio tocou-lhe pele, contudo não

Page 62: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 62 -

retirou nenhuma das mãos dos seus respectivos lugares. Um sorriso ampliou-se na sua face ao sentir aquelas duas sensações tão distantes, duas energias de graus iguais mas de essências diferentes. Ao contrário do que esperara, não se atemorizara com aquele fenómeno incrível. Não tinha explicação aparente, mas fazia-a sentir-se plena. Arriscava-se a pensar que aqueles dois astros lhe transmitiam a sua energia.

Afagou-as, tratando-as como seres vivos sensíveis que aparentemente nunca seriam, preferindo não pensar no que imaginaria alguém que a visse apalpar maçanetas de portas.

Por fim rodou cada uma em sentido contrário numa lentidão razoável, sentindo as hesitações que lhe faziam estremecer as mãos. Aquelas duas místicas portas guardavam algo de muito precioso para Riargion, e isto diziam-lhe ambos, o coração e a cabeça, que em tão poucas oportunidades se encontravam em concordância mútua. No entanto, havia uma advertência camuflada em cada um deles.

Empurrou-as para trás e, quando o fez, foi encandeada por uma fortíssima luz que a obrigou a cerrar os olhos sem hesitação. Aos poucos abriu-os, receosa. Os raios solares entravam por uma simples janela envidraçada, rodeada por duas cortinas brancas, abertas.

No entanto não era unicamente sobre a sua pessoa que os raios solares se precipitavam. No centro do não muito extenso aposento encontrava-se uma espécie de pequeno altar de um branco-pérola, onde, sem dúvida alguma, repousava um corpo coberto por um comprido lençol branco onde o Sol colidia com precisão, o que lhe conferia um extraordinário tom solene.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo, retesando-lhe alguns cabelos da nuca. Tudo aquilo lhe parecia extremamente mórbido.

Aproximou-se, examinando atentamente o mármore onde o corpo estava pousado. Encontrava-se também lapidado com aqueles tão magnificentes astros, os supremos conjugues de todos os mundos, o Sol e a Lua. Contudo existiam palavras a que Liriana não conseguia atribuir significado, uma língua desconhecida e que nunca lhe tinha perpassado a visão. Eram formadas por letras esguias e compridas, uma escrita elegante, e pareciam dar origem a uma frase, era ela: Inlehar adar ê origir sise Fnagohor. Não fazia qualquer sentido, mas criava um profundo e intenso pulsar dentro de si.

Deu a volta ao altar, lentamente e sem se aproximar muito. Surgiam mais frases naquela língua estranha, num dos quatro lados, numa estrutura que lhe levava a pensar que seria talvez um poema, ou algo do mesmo género. Os versos causavam-lhe ainda mais arrepios, apesar de não os temer:

Inlehar Rithirian adian, Ceri der thomid ye peri lndori; Inlehar ye rlyrise lios, Maiar ye adian devirian; Inlehar ceri der imyari, Ye amharse cil mathese se �iadin; Inlehar bian olorise, Ceri der irlodar milno heligirese. Por fim dirigiu a atenção para a pessoa que se encontrava coberta pelo etéreo véu branco, a quem

possivelmente seriam dedicadas aquelas palavras que não compreendia. Através daquele suave tecido que a ocultava, pouco conseguia saber, mas os contornos voluptuosos diziam-lhe que, fosse quem fosse, era do sexo feminino.

A mão precipitou-se para o véu num repente de coragem. Queria conhecer a face encoberta. Seria aquele o grande amor de Riargion, ou a sua mente já criava demasiadas fantasias?

Tocou no véu que por um lado lhe sossegava a alma, mas por outro a fazia sentir hesitante. Pairavam contradições em seu redor, intensos sentimentos de índoles opostas que duelavam entre si para se imporem. Mas quem seriam? De quem proviriam?

Engoliu em seco e desviou o véu, pondo à vista uma face muito pálida, emoldurada por compridos e ondulados cabelos negros. As mãos repousavam cruzadas sobre o peito, extremamente enrugadas, contrastando com o rosto jovem e perfeito, um rosto deveras seu conhecido.

Um grito estrangulado prendeu-se na sua garganta. A jovem dama parecia um clone exacto de Alexandrina, só as mãos lhe diziam o contrário. As da mulher que se encontrava deitada à sua frente faziam-lhe

Page 63: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 63 -

lembrar as garras das bruxas dos contos de fadas: enrugadas, magras e com unhas compridas e encurvadas. Eram, simplesmente, hediondas.

No entanto pairavam agora duas dúvidas no seu espírito: quem seria aquela mulher e se estaria viva ou morta. Se não era Alexandrina (e Liriana sabia que não era pois era-lhe um facto inimaginável e, no mínimo, aberrante) só haveria outras duas hipóteses: ou seria uma sósia, ou…

Estremeceu. Aquela segunda hipótese parecia-lhe destituída de senso, tão impossível que lhe dava um nó na garganta.

Esticou o braço hesitante em direcção ao corpo da estranha dama. Era uma loucura pensar que aquele pálido ser poderia estar vivo, a sua imobilidade e pose diziam o invés, e as suas mãos mirradas e ressequidas…

Recuou o braço impulsiva e instantaneamente, com um esgar enjoado. Arrepiava-a aquelas duas faces, aquele reflexo do espírito. Muitas vezes a mãe lhe dissera que nunca deveria julgar uma pessoa pela aparência do seu rosto, mas pelas mãos, pois elas eram o espelho da alma que habita o corpo. Sempre achara aquilo idiota, mas o que Liriana via naquele altar de mármore não eram mãos, mas garras de um elevado teor assassino. Uma face tão bela não teria mãos tão horríveis. Aquilo não era uma pessoa, era um monstro.

Respirou fundo. Apesar de tudo, continuava a querer saber se aquele ser estava vivo ou morto. A sua malfadada curiosidade falava sempre mais alto, interpondo-se ao bom senso.

A mão voltou a dirigir-se para a dama aparentemente adormecida, estremecendo de nervosismo. Esperava um toque frio numa pele húmida, apesar daquelas ideias não terem fundamentos que as sustentassem, sem ser a tez ebúrnea tão igual à de Alexandrina.

Contudo, não foi isso que sentiu. Quando as pontas dos dedos tocaram na pele lisa do pescoço, com intenção de apanhar a pulsação da veia jugular e sentir o batimento cardíaco, uma paralisia percorreu-a por total.

Em aflição, os seus olhos abriram-se desmesuradamente. Sentiu o próprio coração falhar e, por mais que tentasse, os pulmões recusavam-se a receber mais ar.

Nesse mesmo momento um grito agudo preencheu-lhe a cabeça, estremecendo todo o seu interior, como se de uma descarga eléctrica se tratasse. Mas não seria antes o terrível guincho de surpresa de um qualquer ser maléfico? Não sabia.

De forma incompreensível, o seu corpo foi empurrado para trás e caiu desamparado nas pedras frias do palácio. O grito ensurdecedor tinha cessado e, se continuava paralisada, era só exteriormente, por medo e por desentendimento. O coração batia como nunca antes, restaurando ao corpo a momentânea falta de oxigénio, e a sua respiração era a de uma pessoa inundada pelo cansaço, quase a desfalecer por falta de ar.

Liriana estava agora na posse de todas as informações que resolviam algumas das dúvidas que a tinham assaltado desde que saíra da escuridão em que mergulhara, apesar de continuar confusa. Não conseguia unir aquele palácio e Riargion àquela coisa ali deitada que, bem no fundo, sabia ser uma entidade sua conhecida.

Lentamente levantou-se, sem tirar os estupefactos e aterrorizados olhos do altar de mármore. O que aconteceria se ela se erguesse e a visse ali? Isso se já não soubesse da sua presença. Aquele grito revelava algo que o seu espírito estava com dificuldade em ignorar. Não era o som de aflição de alguém em apuros, era uma exclamação violenta de uma imensa raiva, de quem descobre que algo está extremamente errado e não vê forma imediata de o remediar.

Liriana mordia o lábio inferior com tanta força que quase o fazia sangrar. Ele tremia, descontrolado, implorando lágrimas dos seus olhos, lágrimas essas que a jovem não queria oferecer. Já se tinham vertido demasiadas por causa daquela coisa. Não lhe daria esse prazer, nem essa força. Dessa vez não iria ceder.

Como que vinda de uma distância imensa, ouviu a voz de alguém, desta vez sim, um grito preocupado, chamando por “Ana”. Ao princípio não associou o nome a nada, devido aos acontecimentos tão recentes que a perturbavam, mas um novo chamamento fê-la vir a si.

Olhou em volta e a visão vagueou por todo o corredor que a sua curiosidade obrigara a percorrer. No local onde ele se cruzava com outra ala, encontrava-se Nalir que, desorientada, olhava de um lado para o outro, inexplicavelmente sem a ver.

Liriana viu na senhora uma luz, uma salvação que se aproximava. ‒ Nalir! – Encolheu-se e olhou para a mulher deitada no altar, temendo acordá-la, mas ela não pareceu dar

pelo seu grito. Então chamou novamente, baixando um pouco mais o tom, mas sem desistir de sair dali. – Nalir, estou aqui!

Page 64: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 64 -

A sua voz ecoou no aposento e por todo o corredor, contudo Nalir não se voltou na sua direcção. Parecera não ouvir e isso era um facto mais que improvável. A jovem franziu as sobrancelhas e deu um passo em direcção à porta. A amável mulher continuava a chamar o seu nome, olhando de um lado ao outro do corredor, no entanto, sem a ver, apesar de Liriana se encontrar de frente para ela.

Lançou um último olhar ao altar branco. Talvez aquela cor conseguisse purificar o ser que nele se encontrava, mas a dúvida assaltava-a sem qualquer comiseração. E aquela atmosfera contraditória que a rodeava não era um consolo, mas um aperto que a sufocava.

Fechou as portas guardadas pelos astros, lançando-lhes um último olhar, algo implorativo, pedindo conscientemente para que eles não deixassem sair a donzela adormecida, e correu atrás de Nalir que seguia na direcção contrária à que ela acabava de vir.

‒ Estou aqui! – declarou, abanando o braço no ar, num aceno exasperado. Nalir voltou-se para trás e olhou-a aliviada mas, acima de tudo, com um trejeito intrigado que lhe formava

pequenas rugas na testa. ‒ Onde estavas, Ana? Corri todo o palácio à tua procura – disse, mas não parecia ser uma advertência, só

uma questão curiosa que adoraria ter uma explicação. Contudo, deveria Liriana dar-lha? Não lha poderia negar. Já lhe mentira uma vez, seria incapaz de o fazer uma segunda.

‒ Estava naquele quarto, ali ao fundo. – Fez um gesto com a cabeça em direcção às duas portas altas, mas Nalir pareceu não compreender, exibindo uma expressão expectante. – Onde está deitada uma mulher, numa espécie de altar. Ao fundo do corredor, onde estão o Sol e a Lua talhados nas portas, e no altar de mármore também.

‒ Minha querida, nunca vi esse lugar antes e já trabalho no palácio há anos. – Tentou levar-lhe a mão à fronte, numa tentativa de verificar se a febre voltara, mas a jovem esquivou-se.

Como seria possível que Nalir nunca tivesse entrado na sala? E, acima de tudo, como não poderia saber da sua existência? Estavam ambas defronte para aquelas majestosas portas, não havia forma de não reparar nelas!

‒ Mas as portas estão ali, ao fundo do corredor, a olhar para nós! Como pode não as ver? – perguntou Liriana, dando forma aos seus pensamentos, com os olhos abertos de uma forma implorativa.

‒ Ana, o corredor não tem saída, ali não existe porta alguma – afirmou num tom amável e quase piedoso, mas categórico.

Liriana abriu a boca para protestar, ofendida pela pouca confiança que Nalir lhe cedia, contudo a consciência fê-la tomar noção do ridículo da situação. Encontrava-se na moradia de um desconhecido, acolhida como uma mendiga, apesar de ser tratada como uma convidada, e afirmava ter visto algo em que ninguém acreditava. O que pensariam de si? Que era insana, provavelmente. Mas sabia o que tinha visto, e a certeza não lhe poderiam tirar.

Baixou os olhos e fitou as lajes frias, ressentida. ‒ Vamos, deves estar com fome e o almoço espera-nos. – Pousou o seu braço rechonchudo sobre os

ombros da jovem. – Não penses mais nisso. E vou-te dar um conselho… ou melhor, propor-te um desafio. Quero que imagines uma borboleta de cores alegres a voar sobre um enorme e verde campo florido.

Liriana olhou incrédula para Nalir. A sua proposta não tinha lógica alguma. E como conseguiria pensar em borboletas numa altura daquelas? Corvos talvez, animais obscuros, associados a lendas de terror e a seres malignos, mas nunca borboletas.

Mordeu os lábios. Sentia-se presa no seu próprio mundo, um mundo que criara e elaborara atentamente, manipulando um sem fim de pormenores, para que todos eles se voltassem contra si. E a sua manipulação fora manipulada por outra mão que não a sua, uma garra de fins tenebrosos. Mas o que estava a fazer? Porque não conseguia largar e destruir as influências da Sombra? Porque a continuava a alimentar cada vez mais, fortalecendo-a? Mesmo tendo alguém que se importava consigo, o seu espírito queria ignorar esse facto com todas as forças.

‒ Ana, por favor, pensa no que te pedi, deixa a tua imaginação correr livre. Não te massacres mais com esses pensamentos. Se não o fazes por mim, fá-lo por ti – pediu, com os seus tão maternais olhos. – É para teu bem. E, até chegarmos à cozinha, pensa na pequena e delicada borboleta bruxuleante. – Depositou-lhe um beijo na cabeça e empurrou-a levemente na direcção contrária à das duas altas portas onde brilhavam silenciosamente o Sol e a Lua.

Page 65: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 65 -

Liriana olhou para trás. Ao longe conseguiu ver uma luz branca rodopiar junto à porta em movimentos ziguezagueantes e um pouco desordenados. Seria aquela a sua esperança? A borboleta que ainda sobrevivia a muito custo nos seus recônditos inatos? Deveria ser, tinha fé que assim fosse e, se assim era, um facto era certo: a sua esperança ainda existia.

Page 66: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 66 -

VIII

O Despertar

Como sorria bela aos deuses ousados �a persuasão das prometidas! Mas, débil descuido não era,

�em difusos pedidos prostrados. O sorriso era um vil vale de mentiras

Oculto em beijos de rosas �o engano aos amados.

E brincava num jogo perigoso, Deliciava-se em fogos cruéis!

Ser desprezível que se embala ocioso �os distúrbios que corrompem

As bem amadas almas do desdém.

“Sorriso”

Lorde Riargion comia descansadamente num bonito prato de porcelana, repleto de uma espécie de estufado de legumes com carne. A única palavra que dirigira a Liriana desde o início da refeição, num murmurar suave e pouco audível, fora “boa-noite”. A jovem sentava-se do lado oposto ao senhor do palácio voltando, hesitante, os olhos para o homem e tentando descortinar qualquer tipo de emoção no seu rosto sem rugas.

Mirou os pequenos pedaços de feijão verde a flutuarem num pouco espesso líquido acastanhado, chocando placidamente uns com os outros, enquanto o garfo passeava entre eles empurrando as pequenas ervilhas sem destino.

Os seus pensamentos tentavam elaborar palavras para dizer, mas sentia um nó na garganta que a impedia de fazer fosse o que fosse. Soltou um suspiro e levou um pouco de carne à boca, mastigando lentamente, sem apetite.

‒ Ana, lembraste-te já de algo importante que nos possa ajudar na localização da tua família? – A voz de Riargion ecoou pelas paredes frias e fez a sua alma estremecer. Os seus olhos fitaram os do senhor, enfrentando aquele denso mar de cinzas.

O quanto gostava de poder mergulhar naquele contemplar e saber o que tão densamente escondia, o porquê de todo aquele gelo que se infiltrava por múltiplos interstícios, provindo daquele jovem homem. Mas haveria uma razão certamente.

‒ Lamento, mas não – mentiu, voltando a atenção para uma ervilha especialmente grande que trespassou com o garfo.

Um novo silêncio palmilhou toda a sala e Liriana voltou-se para a lareira acesa, recebendo algumas ondas de calor que lhe amaciaram a face. A sala de jantar era um aposento amplo do primeiro andar, com várias janelas que deixavam antever uma noite tenebrosa por entre uma forte e fria chuva.

Um relâmpago rompeu a escura imensidão, envolvendo toda a sala. Antes de o trovão se fazer anunciar não foi quebrada aquela calma repressiva. Não se ouviu uma exclamação, nem mesmo um brusco gesto de espanto. Momentaneamente tudo pareceu vazio e inabitado pelas almas da vida.

‒ É lamentável, realmente. Mas o que fizeste durante o dia? Divertiste-te? ‒ Eu… – murmurou, sem tirar os olhos da lareira em chamas, vendo o dançar daquele fogo hipnotizante.

Não lhe saía do espírito aquelas duas mãos secas de amor, encarquilhadas de maldade. Imaginava sucessivamente aquele aperto no peito, aquela falta de ar que quase a matara.

Page 67: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 67 -

Riargion pareceu notar na sua hesitação que era, já por si, bastante óbvia, e estudou-a com mais atenção. O seu perfil aparentava ser débil, o de uma criança desamparada e perdida, sem saber em quem poderia confiar. Sentia-se abandonada, à beira de um abismo. E que poderia ele fazer? O que lhe poderia dizer?

‒ Passou-se alguma coisa, mesmo que te pareça deveras insignificante, de que deveria tomar conhecimento? – perguntou, perspicazmente.

‒ Não, claro que não. – A resposta rápida não se fez esperar, tão brusca que só levantou ainda mais suspeitas.

O senhor ergueu-se do lugar, arrumando a cadeira no respectivo sítio e aproximou-se da jovem com passos calculados. Se comera, fora muito pouco, pois o prato não evidenciava falta de ensopado.

Um novo relâmpago rompeu a semi-escuridão do aposento e Liriana sentiu, nesse preciso momento, a mão de Riargion pousar-lhe no ombro como um reflexo da luz fria. Deu um salto assustado, olhando-o surpreendida. Novamente teve a leve impressão de ver o prateado e não o cinzento nos seus olhos, com aquela forte e repentina fonte de luz, mas tudo se esvaiu depois de poucos segundos, quando o relâmpago se propagou e acabou por desaparecer.

‒ Minha pequena, sei que não estás bem, não precisas escondê-lo. Penso que mentir não é a tua especialidade. – A afirmação era calma e até amável, com um mal disfarçado tom de piedade.

Liriana obrigou a sua atenção a voltar-se insistentemente para o belo fogo da lareira. O rosto aquecia gradualmente, mas a jovem sabia que nada tinha a ver com as chamas. Era o seu constrangimento e atrapalhação misturados de uma forma volátil com uma desmesurada vergonha por estar sozinha perante um belo e misterioso homem que desconfiava de si, que a faziam mergulhar naquele incómodo estado. Se abrisse a boca para dizer fosse o que fosse, gaguejaria sem parar, com certeza.

‒ Ana, temes-me? A pergunta surgiu inesperadamente, obrigando-a a fitá-lo, estupefacta. Contudo, a resposta fluiu-lhe dos

lábios sem pensar, provinda daquele seu sexto sentido que tão poucas pessoas possuíam: a intuição. ‒ Não. Levou a mão à boca, assustada consigo própria, o que levou Riargion a rir-se e desta vez um riso

realmente divertido, livre das amarras cruéis da ironia e do cinismo. Após aquela pequena abertura, ficaram novamente em silêncio, admirando o bailar elegante das labaredas

avermelhadas. À sua volta as sombras tornavam obscuros todos os recantos ocultos, onde qualquer coisa poderia espreitar sem ser vista, principalmente os seres que pareciam fazer parte delas. Se algum deles se voltasse repentinamente para trás, teria visto dois olhos a espiá-los, por entre a chuva da noite.

‒ Porque não me temes? – perguntou Riargion, cruzando os braços sobre o peito. Liriana olhou-o de soslaio. A sua expressão facial era algures melancólica. As palavras de Nalir

ressoaram-lhe na consciência. Riargion nutria um desgosto de amor que o consumia aos poucos, sem compaixão.

Antes que o senhor do palácio Estherel lhe exigisse uma resposta, alguém bateu à porta que se abriu sem esperar por autorização. Era Rorin, o marido de Nalir. Liriana conhecera-o à hora de almoço e bastara-lhe alguns minutos para descobrir que era um homem soturno, pouco prendado para longas conversas, ao contrário da sua esposa.

‒ Senhor – começou, urgentemente. – Acabou de chegar este pergaminho, foi Liong que o trouxe e pareceu-me muito nervoso, mas não me adiantou nenhuma informação.

Liriana viu Riargion franzir as sobrancelhas e aproximar-se de Rorin com passos largos, recebendo o pergaminho lacrado que desenrolou com calma, sem dar muita atenção aos comentários do homem. Poucas modificações alteraram as suas feições duras, no entanto notava-se uma leve mas tenaz preocupação. Dobrou o pergaminho em quatro, após a leitura, e dirigiu-se-lhe cortesmente.

‒ Perdoar-me-ás, Ana, mas terei de me ausentar por algumas horas. Nalir guiar-te-á ao teu novo quarto, onde penso que te esperará uma confortável cama e roupas lavadas, assim como um descanso merecido.

Não esperou pela sua resposta e saiu de imediato, deixando-a sentada na cadeira de costas altas, ainda a pensar no porquê de não o temer se todas as evidências decaíam numa suspeita cada vez maior.

Page 68: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 68 -

A chuva não cessava, intensificando-se de minuto a minuto, enlaçada nos raios que rasgavam os céus, iluminando-os impiedosamente. Os vidros mergulhavam naquela água do céu, desfocando todo o exterior em manchas indefinidas.

Liriana ergueu-se da cama, habituando-se ainda ao que Nalir lhe disponibilizara para vestir: uma camisa de noite até aos pés, justa na cintura. Era verde-clara e branca, bordada em simples pontos dourados, com um bonito cordel nessa mesma cor que a apertava sobre o peito, acabando num amoroso lacinho no decote. A serviçal dissera-lhe que o vestido pertencera à filha. Com esse mero conhecimento, Liriana sentia a nostalgia tomar conta de si, aquecendo e envolvendo-a, qual a peça de roupa. Em cada malha sentia o amor com que fora vestido, os bonitos sonhos que acompanhara de tão fiel ser.

Abraçou-se, apertando-se e unindo-se consigo própria. Se estava só, tinha de se acompanhar; se estava triste, teria de se consolar; e se a noite estava negra e não a podia alumiar, teria de fechar os olhos e esperar que clareasse, rezando que nascesse nos céus um astro venerado por muitos, que espalhasse a sua energia e alimentasse a vida dos adormecidos.

Foi até à janela sem se largar, fechou os olhos cansados com um longo suspiro e encostou a fronte àquela frieza que um dia teria sido quente, um dia em que nascera para aquela forma, e talvez antes, quando nascera uma primeira de inúmeras de vezes, num estado e aspecto muito diferentes, impossíveis de associar ao que agora era. Considerava incrível o facto de ainda pensar em pormenores tão profundos quando devia preocupar-se com aqueles enigmas inexplicáveis que a rodeavam.

Por fim dos seus pensares e pensamentos, abriu os olhos com intenção de voltar a si e à vida real que a esperava. No entanto foi percorrida por um choque momentâneo quando o fez. Por entre a torrente infindável de água que se abatia na janela, um denso olhar amarelo de pupilas fendidas mirava-a.

‒ Zeus? – O nome aflorou-lhe aos lábios como uma flor que desabrocha espontânea e inesperadamente, quando tudo parece inverosímil. E se não era! Um gato totalmente ensopado e de orelhas descaídas de desânimo encontrava-se sentado sobre o parapeito de um quarto andar de impossível acesso exterior.

Liriana abriu a janela e de imediato o vento desferiu-lhe uma forte estalada na cara, fazendo o cabelo esvoaçar desordenadamente à sua volta e a chuva entrar sem direcção prévia ou mesmo autorização.

Com a repentina entrada da tempestade no quarto os seus olhos fecharam-se por leves segundos e, quando os voltou a abrir, o gato negro desaparecera sem deixar rasto.

A jovem entreabriu a boca, completamente estupefacta. Debruçou-se na janela, penetrando na chuva que depressa a encharcou, tentando ver para além daquele manto húmido e negro. Contudo nada mais havia que aquilo, nem mesmo o luar tão esguio que antes a embalara da janela do seu quarto, quando estava ainda com os seus pais, o seu pequeno urso de peluche, a sua tartaruga, os seus amigos. Nessa altura pensava que tudo era pleno na sua vida, que seria feliz, e porventura uma eterna criança dentro do seu mundo encantado, apesar da consciência inevitável de que a desgraça habitava o mundo em que supostamente vivia, tentando dominá-lo a todo o custo. Mas agora que se via noutro mundo, só queria de volta o seu, com todos os defeitos que possuía. Tentaria melhorá-lo, cuidaria dele. Era o seu dever, a sua missão há muito negada, pois era o seu mundo.

Um novo relâmpago rompeu os céus, infligindo-lhes uma brilhante cicatriz momentânea. Como já estava demasiado molhada para o seu gosto, Liriana fechou a janela, voltando para dentro. O olhar ainda se demorou no exterior, esperando ver o felino que lhe era tão familiar, apesar de nunca poder ser Zeus. Esse estava na Mansão Adriática, possivelmente deitado confortavelmente no sofá, sem nada mais interessante para fazer do que limpar o pêlo negro. Contudo, e apesar daquele seu ar tão inocente e macio, salvara-a um dia da sombra que ainda a perseguia e, nesse ponto, tinha sido mais do que um simples animal doméstico, fora um verdadeiro amigo, e disso Liriana nunca se esqueceria.

Deixou as velhas recordações de lado e afastou-se da janela, cansada de tudo aquilo e preparada para dormir para toda a eternidade, se fosse preciso. Mas novamente um olhar amarelo fê-la desviar-se do seu intento. Sobre a cama, sentado numa posição serena e atenta, encontrava-se um gato terrivelmente molhado e de pêlo colado ao corpo.

‒ Ó pequenino matreiro, como foste aí parar? – Perguntou, com um sorriso surpreso. Avançou para o bichano e sentou-se ao seu lado, pousando-lhe a mão na cabecinha e deslizando-a ao

longo do dorso encharcado. O gato fechou os olhos e ronronou, enquanto sentia as mãos de Liriana. Por fim parou e os dois olharam-se pensativamente: Liriana lembrando-se de acontecimentos passados e o gato a pensar em alguma coisa que ninguém poderia adivinhar.

Page 69: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 69 -

‒ Bem, parece que precisas de uma toalha para te secar – declarou finalmente, levantando-se de um salto brusco, muito mais animada por ter alguém por companhia. – Não te vás embora, acho que a Nalir deixou qualquer coisa por aqui.

Virou-lhe as costas e deslizou pela semi-escuridão até aos pés da cama onde, despercebidamente, descansava uma arca em madeira negra. Sobre ela, dobradas em quatro de uma forma perfeita, encontravam-se duas toalhas.

Liriana olhou para trás, certificando-se de que o pequeno felino ainda ali se encontrava e escolheu a tolha mais pequena.

A princípio o gato não se sentiu muito contente com a secagem vigorosa, tentando escapar-lhe, mas acabou por se submeter, olhando-a de vez em quando, ofendido por aquele tratamento pouco honroso.

Após deixar o pequeno animal com o pêlo totalmente em pé, abandonou a toalha sobre a colcha da cama e pegou-lhe ao colo, fitando os seus olhos amarelos e o seu pequeno nariz também negro, tal como toda a pelagem.

‒ Sabes, fico tão contente por ter companhia, principalmente a de um ser tão interessante como tu – disse. Deu-lhe um beijo entre as orelhas e pousou-o na cama, onde ele se enroscou de imediato sem esperar por

mais nada. Estava também na sua hora de dormir. Depois de trocar de camisa de noite, porque a que usava ficara encharcada, puxou a colcha pesada para trás e enfiou-se rapidamente dentro dos lençóis ainda frios. Encolheu-se um pouco e, sem entraves, deixou a sonolência chegar apressadamente e tomar conta de si, envolvendo-a em sonhos amenos.

Na manhã seguinte sentiu qualquer coisa a pisá-la levemente e ergueu a cabeça da almofada perscrutando o quarto, com os olhos semi-abertos. O gato preto passara por cima das suas pernas e preparava-se agora para saltar para o chão, dobrando as patas num pequeno impulso.

‒ Onde vais? – murmurou num tom pachorrento e ainda pouco consciente de que já era um novo dia e de que o Sol brilhava num céu azul, desanuviado da tempestade que o enfurecera na noite anterior.

O gato lançou-lhe o seu olhar amarelo de soslaio e escapou-se pela porta semi-aberta, deixando-a só. Liriana deixou cair a cabeça pesadamente na almofada e voltou a cerrar os olhos, entrando num estado de semi-consciência em que conseguia ouvir os pássaros madrugadores cantarem felizes com o esplendor do dia. A musicalidade fluía para o seu interior em lufadas de uma brisa calma, alimentando-a.

Voltou a abrir os olhos e ergueu-se por fim, decidida a pôr de lado a preguiça. Vestiu as suas roupas velhas que não queria trocar por nada, por serem os únicos objectos que a ligavam ao seu mundo, fez a cama o melhor que pôde e saiu do quarto, descendo até ao andar térreo com esperança de encontrar Nalir, ou talvez o gato preto que em tanto lhe fazia lembrar o seu pequeno e querido Zeus.

As escadarias que levavam ao andar térreo eram amplas e não tinham qualquer tapete que ocultasse a sua nudez, mas em compensação os seus corrimãos estavam lapidados com pequenos e leves nós entrelaçados uns nos outros, numa cadeia que parecia não acabar, tão longas eram as escadas, sustentadas por colunas em espiral.

O palácio parecia estar vazio. Desde que chegara que só vira quatro pessoas: Nalir, o marido, Ardanir e a donzela adormecida, ou o que parecia ser uma mulher com as mesmas feições de Alexandrina e, no entanto, com um aspecto assustadoramente calmo e ao mesmo tempo maléfico. Era estranho.

Vários passos interromperam-lhe os pensamentos e a sua atenção fugiu para o lado esquerdo. Nalir saía por uma porta em forma de arco, trazendo um tabuleiro nas mãos. Quando a viu, sorriu-lhe de contentamento. Liriana dirigiu-se-lhe com passos rápidos e parou junto à senhora, cumprimentando-a com um sorriso alegre e um bom-dia animado.

‒ Fico contente por te ver assim, pequenina – disse, depositando-lhe um beijo na têmpora direita. – Muito mais bonita, um sol nascente. A minha filha…

A jovem esperou um resto de frase que não chegou, ficando pendente numa lembrança anteriormente feliz, mas agora possível e nostalgicamente dolorosa.

‒ Ia levar-te o pequeno-almoço, mas como já descestes podes comer na sala de jantar – declarou, mudando de assunto rapidamente.

A sala parecia agora um local muito mais acolhedor e agradável, clareada pela luz da manhã que nada mais queria do que se fazer conhecer, dançando nas paredes e nos objectos nelas colocados, afagando a agora lareira apagada repleta de cinzas.

Page 70: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 70 -

Ao sentar-se na cadeira onde estivera na noite anterior, Liriana recordou-se do senhor do palácio e dos seus tão estranhos modos, assim como da conversa interrompida por um véu de preocupação. Não o vira desde então, assim como quase nunca o vira nas noites passadas. Deveria ser um homem deveras ocupado.

‒ Lorde Riargion ainda não chegou? – perguntou, curiosa como sempre, sem dar grande atenção à comida. – Passa sempre os dias fora de casa?

‒ Ai, minha pequena… – suspirou a serviçal, sentando-se ao seu lado. – Lorde Riargion tem enormes responsabilidades em mãos e não há muito tempo que vive por cá, talvez dez anos. – Liriana abriu os olhos espantada. – Não sabemos muito dele, só que chegou um dia, com provas de que era herdeiro deste palácio há muito inabitado, e por cá ficou, apesar de muitas vezes se afastar e de ter no seu exército uma horda de zunaris.

Aquilo pareceu-lhe uma confidência. ‒ O que são zunaris? – perguntou a jovem, franzindo as sobrancelhas. Tinha a certeza de que não era a

primeira vez que escutava aquele nome. ‒ Os zunaris são uma espécie de vampiros que vivem da sua própria maldade e do sangue humano. – A

sua face tornou-se sombria, marcada por um medo que pairava à distância, mas que mesmo assim se fazia sentir. – Diz-se que provêem da Ilha da Morte, Vorgan, nascidos das profundezas mais imundas do mundo, algures entre o Anel de Fogo, a poente de Rotherm. É um lugar inóspito, cravado de cinza e fogo vulcânico, rodeado de um miasma assassino onde só essas vis criaturas vivem, pois há muito que os grandiosos seres do fogo se extinguiram ou, se isso não aconteceu, há muito que não são vistos.

‒ Seres do fogo? – inquiriu, confusa. ‒ Dragões – esclareceu Nalir, com um sorriso amável. Os olhos de Liriana abriram-se de espanto ao ouvir dizer que, na realidade, tinham existido mesmo

dragões. Era-lhe tão difícil acreditar naquelas tão fascinantes afirmações, mas ao mesmo tempo gostaria de aprofundar ainda mais o assunto, conhecer aquele mundo construído de lendas e mitologia antiga.

Olhou para o céu. Uma ave branca planava nele, deixando a brisa insuflar-lhe as asas delicadas. Saboreava a sua liberdade, imiscuía-se nela. Um golpe de pureza entre o demais mundo dos vivos e daqueles que, em espírito, são impossíveis de ver mas que vivem junto do coração. E dizia Nalir que Riargion tinha uma ordem de terríveis monstros! Parecia impossível quando se assistia ao voo da eternidade.

‒ Não viu nenhum gato preto por aí? – perguntou, lembrando-se subitamente dos olhos amarelos que a fitaram da janela chuvosa na noite passada. O gato lembrava-lhe a sombra, toda a Mansão Adriática e a madrinha Alexandrina, com o seu sorriso generoso e o seu olhar meigo em conjunto com uma pose austera que ocultava o que não se queria revelar.

‒ Não minha querida, não temos animais de estimação dentro do palácio. Mas porque perguntas? – quis saber Nalir, interessada naquela descontextualização.

‒ Ah… por nada, foi só mera curiosidade, só isso – murmurou, encolhendo os ombros de uma forma pouco concisa, pegando na fatia de pão e dando-lhe uma dentada. Sabia que Nalir percebera parte da intenção da pergunta, que a curiosidade era já uma desculpa demasiado usada para justificar as suas questões. E o “demasiado usado” torna-se suspeito.

Acabou de comer, ouvindo histórias sobre Selnar Irgir e a população que habitava em volta do palácio. Nalir falou-lhe de estalagens e tabernas, e de variadíssimas pessoas suas conhecidas. Parecia que Ranar era uma vila não tão pequena assim, talvez fosse melhor chamar-lhe “pequena cidade”, perante toda a entusiástica descrição de Nalir. O que no dia anterior vira fora pouco mais que uma amostra escondida sob as sombras de Dordar, uma imensa e quase infindável cordilheira que atravessava toda a região, segundo as palavras da amável senhora. Era aí que muitos dos crentes, ou intrujões, juravam ter visto uma asa de dragão rasgar as nuvens densas nos dias sagrados, aqueles em que veneravam Thornigan – que, pela explicação, parecia ser o Sol – e Midarvia, que seria a Lua. Para Nalir foi mais do que um espanto o facto de Liriana não fazer a mínima ideia de quem eram os seus muitos deuses, entre eles os principais, os deuses pais, Thornigan e Midarvia, os grandes criadores do Tudo e do Nada de que eram compostos os mundos, dos senhores dos Elementos, da Vida, da Morte e das Almas.

Em resumo, a jovem fascinava-se cada vez mais com aqueles pormenores pagãos que envolviam um sem número de crenças maravilhosas. Se Nalir não lhe lembrasse de que tinha que acabar o pequeno-almoço para depois poder almoçar a horas devidas, continuaria ali a escutá-la eternamente ou, na pior nas hipóteses, até a serviçal esgotar todos os mitos, lendas, rituais e histórias que tinha para contar e que abriam cada vez mais o apetite da sua curiosidade esfomeada. Simplesmente, queria saber mais e mais.

Page 71: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 71 -

Após uma insistência desmedida para conhecer de perto o que ouvira dos lábios de Nalir, a amável

senhora, nessa mesma tarde, levou-a a dar um passeio por Ranar. Atravessaram dois altos portões negros que impediam a passagem para o palácio, somente pela aparência

obscura. Ao fazê-lo, Liriana olhou para trás admirando a solenidade do palácio construído ao lado de Dordar. Impressionava-lhe que a grande moradia não tivesse uma única pétala de flor, apesar de Nalir lhe ter levado as rosas que lhe devolveram fragmentos de recordações. Era como se estivesse seca, incapaz de dar vida. Não se espantaria se a visse rodeada de espinhos.

Visto de fora, formava um sentimento de liberdade extraordinário, mas a sua alma apertava-se ao pensar em Riargion enclausurado naquele local à mercê dos demais monstros do espírito. Mesmo que raramente lá se encontrasse, a alma do jovem homem sentia-se presente, incapaz de fugir.

Um arrepio percorreu-lhe o corpo e, não querendo pensar mais naquele assunto, o olhar voltou-se para o caminho bem tratado e calcetado de pedras esculpidas com padrões desgastados pelo tempo, que talvez as levaria até ao centro da vila.

A princípio a povoação pareceu-lhe um local sossegado, onde os pássaros esvoaçavam de telhado para telhado com as suas patas débeis a saltitarem de telha em telha ou talvez para um qualquer orifício escondido onde teriam o seu ninho resguardado.

As casas variavam entre o pequeno e o médio, de tom muito rústico e carenciado. As portas eram compostas por várias tábuas fendidas, interligadas com pedaços de metal enferrujados e estavam repletas de pequenos buracos, obra de térmitas que também procuravam um abrigo minimamente acolhedor. Contíguas aos pedaços de madeira que tentavam proteger as casas das intempéries, erguiam-se as paredes que pareciam construídas de uma espécie de cal que se desfazia aos poucos. Muitas das habitações nem janelas tinham, limitando-se a uma porta aberta para que um pouco de luz entrasse.

Liriana espreitou para o interior de uma dessas habitações com os olhos a percorrerem cada centímetro a descoberto. O chão era também de madeira enegrecida e, sobre ele, poucos objectos estavam pousados, segundo o seu raio de visão: uma pequena mesa rectangular de quatro pernas, vazia e despida e, sobre ela, uma vela apagada e vários objectos que não conseguiu distinguir, pois a sua atenção foi desviada para outra entidade, ao primeiro olhar.

Dois olhos azuis espreitavam por detrás da porta, emoldurados por vários cabelos loiros curtos e revoltos. Uma criança, com talvez cinco anos, não mais, lançava a sua curiosidade para a pessoa de Liriana, a quem nunca vira naquelas redondezas e que se trajava de maneira tão irregular.

‒ Bom-dia, Nyan! Hoje não me falas? – perguntou Nalir, após notar na presença da criança, sorrindo-lhe amavelmente e deixando descair a cabeça um pouco para o lado.

A criança lançou-lhe a sua atenção por poucos segundos, mas voltou, imediata e novamente, o seu olhar tímido para a desconhecida.

Liriana piscou os olhos sem saber muito bem o que fazer ou como agir e, hesitantemente, ergueu um pouco o antebraço e acenou-lhe, insegura. A pequenina imitou-a, sem sair do mesmo lugar, num gesto amoroso, que obrigou Nalir a soltar uma pequena risada não contida.

‒ Parece que gostou de ti – afirmou, começando a avançar para a pobre casa carcomida pelo tempo. – Nyan, chega aqui, não tenhas medo. Vem conhecer a Ana.

A criança aproximou-se um pouco mais da entrada, sem tirar a mãozinha da porta, como que por segurança.

‒ �ialian, Nalir – disse, numa vozinha frágil e um pouco aguda, ainda indecisa do próximo passo a dar. A amável senhora chegou à porta de casa da criança e estendeu-lhe uma mão acolhedora, chamando-a a

si. Liriana sorriu-lhe em encorajamento, tentando ser o mais sincera possível sem se sentir afastada, ou mesmo desligada do que a rodeava, num gesto a alguém que poderia ser uma mera fantasia. Pois quem lhe dizia que aquele mundo era real? Talvez fosse um longo sonho sem sentido.

Uma nova voz fez-se ouvir, algo preocupada, chamando pela criança do interior da casa. A pequena olhou para trás e das sombras surgiu uma mulher muito nova, mas que contudo apresentava um aspecto extremamente doente. Os olhos encovavam-se nas profundezas das órbitas e a sua face sobressaía numa magreza impressionante. Os cabelos eram de um loiro mais escuro, em comparação com os da criança, e permaneciam atados num pequeno rolo.

Page 72: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 72 -

‒ Valmiamar, a Nalir está aqui – informou a pequena, fitando a jovem senhora com os fortes e expressivos olhos azuis.

A mulher olhou tanto para Nalir como para a desconhecida, levemente curiosa, e por fim sorriu. O aspecto da dama era tão decrépito que, sem aquela demonstração de contentamento, possivelmente lhe pareceria um corpo sem alma.

‒ Que bom ver-te Nalir, vieste ao mercado? – perguntou, sem que o sorriso se lhe esvaísse dos lábios. No entanto o olhar era infeliz, como se fossem poucas as razões que a mantinham viva. Mas por pouco que fossem, eram fortes. Uma delas seria, porventura, a filha.

‒ Para ser sincera vim mostrar a vila à Ana – disse, olhando para Liriana que ainda se encontrava afastada mas que se apressou a aproximar. – Ela é nova por aqui, chegou de uma terra distante há pouco tempo.

Liriana perguntava-se se Nalir acreditava no que ela própria dizia, tendo em conta que nada lhe tinha contado ainda. E, mesmo que contasse, Nalir não acreditaria. Era tudo demasiado fantástico, demasiado irreal.

‒ Ah! Sê bem-vinda, então – disse a mulher, fazendo um assentimento de cabeça como uma forma de cumprimento e de mostrar agrado na sua presença. – Eu sou a Arinorin, e esta é a minha filha, Nyan. Fala à menina, Nyan – ordenou a mãe.

‒ �ialian – disse a menina, baixinho, olhando para o chão. Liriana estava tentada a perguntar o que quereria dizer “�ialian”, mas pensou que não seria a melhor

altura, já que a sua presença era já demasiado estranha. ‒ E donde veio a jovem? – quis saber a senhora. – E porque veio se… A questão ficou pendente, o que levantou algumas suspeitas em Liriana. O que quereria ela dizer com

“se”? Haveria alguma coisa que Nalir supostamente lhe deveria ter contado? ‒ Veio de Rotherm, é da família de Lorde Riargion, uma prima em segundo grau – mentiu Nalir, contudo

não fez questão de esclarecer a dúvida de Arinorin. – Bem, nós vamos andando, minha querida e, um dia destes, passa pelo palácio para conversarmos um pouco. Quero saber como andas e… tenho por lá umas coisas para ti.

‒ Oh Nalir! O que era eu sem ti? – murmurou Arinorin, segurando-lhe ambas as mãos precipitadamente. – Mil vezes obrigada!

A criança olhou para as duas mulheres, curiosa e, por fim, tomou uma decisão. Saiu de dentro de casa e avançou até Liriana, agarrando-lhe numa das mãos com as suas mais pequenas.

‒ Vais ficar cá até quando? – perguntou, com o azul dos olhos a brilhar de enorme interesse. A questão vibrou dentro de Liriana, retinindo na sua mente. “Vais ficar cá até quando?”, “… até

quando…”. Olhou em volta para os poucos transeuntes com roupas de uma época passada. Não pertencia ali e não sabia como regressar ao seu mundo. Sentia-se mais que perdida. Respirou fundo. Tinha a sensação de que se aqueles pensamentos a continuassem a assolar, recomeçaria a chorar e cairia numa depressão de que não sairia tão facilmente como da última vez.

‒ Ana? – chamou a menina, puxando-lhe a manga do casaco. ‒ Ah, desculpa – murmurou Liriana, sorrindo-lhe perante a sua inocência. – Não sei, mas devemo-nos ver

mais vezes. A pequena pareceu feliz ao ouvir a notícia e voltou para ao pé da mãe que já tinha acabado com todos os

agradecimentos possíveis de encontrar para com Nalir. Despediram-se com sorrisos e acenos e afastaram-se, sob o olhar de Nyan e da mãe, continuando a

caminhada pelas ruas semi-desertas, até se entranharem cada vez mais na pequena cidade que, de súbito, parecia crescer em população, habitações e, acima de tudo, movimento.

Porém, antes de tudo isso, enquanto se dirigiam para o centro da confusão, passaram junto a um gradeamento enferrujado em volta de um terreno que parecia demarcar uma barreira: a fronteira entre a pobreza e a riqueza. A área estava repleta de terra, em alguns lugares revolvida, por onde se espalhavam pedras tumulares desgastadas e cruzes com uma rosa incrustada no centro, ora de metal, ora de madeira semi-apodrecida, ou mesmo granito. Era o cemitério da vila.

Apesar de associado ao mundo dos mortos, aquele era um lugar calmo. Sentia a plenitude fluir mais do que alguma vez sentira na Mansão Adriática ou no palácio Estherel.

Mesmo quando lhe pareceu ver um vulto passar, esguio, junto a uma tumba, essa impressão esvoaçou com a brisa, não lhe deixando preocupação nenhuma, para sua surpresa. Era como se, de repente, uma bem-vinda lufada de paz a tivesse invadido sem razão.

Page 73: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 73 -

Respirou fundo num acto impensado, o que levou Nalir a olhá-la incrédula. Nunca fora normal uma pessoa sentir o alento correr em si quando se encontra junto a um cemitério, muito pelo contrário. Mas a verdade era essa, Liriana sentia-o em cada partícula do ar.

‒ Estás bem? ‒ Sim, estou óptima, não precisa de se preocupar. Só estava a pensar no sossego que reina aqui –

murmurou, voltando a olhar para as campas. Lembrou-se do dia do seu primeiro encontro físico com a Sombra: junto a um cemitério, tão calmo como aquele e como qualquer outro. Voltou a respirar fundo, desta vez para retirar essa imagem da cabeça e sorriu para Nalir.

‒ Sossego? Talvez, mas é um sítio bastante mórbido, principalmente durante a noite, quando se ouvem os espíritos clamarem lamentos de agonia eterna.

Liriana sentiu um arrepio percorre-la. Seria verdade o que Nalir lhe dizia, ou eram só histórias para assustar os visitantes?

‒ Oh sim, são muitos os espíritos dos que não conseguem penetrar no mundo das almas, regido por Scanethum. Esses vagueiam por aí, reunindo-se frequentemente aqui e noutros cemitérios, até que alguém os consiga mandar definitivamente para o seu legítimo mundo.

‒ Mas quem consegue fazer tal? – perguntou a jovem, pasmada. ‒ Existem feiticeiros especializados em almas que o podem fazer, mas preferem utilizá-las para outros

fins, esses muito maléficos – declarou Nalir, observando também as campas. – Mas, para ser sincera, talvez seja por o teres dito… o facto é que hoje não parece tão perturbador.

O silêncio instalou-se entre ambas, deixando que cada uma delas absorvesse aquela sensação. Por fim deixaram o local sem proclamarem uma palavra, pensativas.

Após caminharem alguns metros entraram na zona mercantil da cidade, que consistia numa composição de variadíssimas tendas e bancas onde se vendia de tudo. Havia mesmo esplanadas do que pareciam ser tabernas, por sinal frequentadas em demasia, onde se amontoavam homens já com aspecto de ébrios, estranhos que se recusavam a mostrar a face, encapuzados com compridos mantos negros, e alguns que nem ao trabalho se davam de se disfarçarem, ostentando poses atemorizadoras e cicatrizes profundas que marcavam uma experiência de vida deveras violenta.

A passagem de ambas pouco ou raramente foi notada, sem ser por pequenos vendedores que viam em Nalir uma potencial compradora. Mas como fora grande a decepção de muitos! Ao tentar vender-lhe um grande pedaço de tecido carmim, um dos vendedores ficara mais decepcionado do que um porta-moedas sem dinheiro. A serviçal de Lorde Riargion lançou-lhe um olhar severo e afastou-se com passos largos, levando Liriana pela mão, semi-arrastada. O comerciante seguiu o seu afastar, possivelmente lançando-lhe impropérios desconexos, esses que, escutados por Nalir, lhe fariam ferver o sangue, talvez tornando-a um pouco agressiva.

‒ Por vezes Ranar é um lugar conflituoso, e o Senhor permite que ocorram acontecimentos que não me agradam – declarou em tom baixo, após terem já uma distância de vários metros do homem.

Liriana não via mal algum no comércio de rua. No seu mundo havia coisas muito parecidas, feiras onde se reuniam num aparato por vezes desagradável, mas que não deixava de ser algures engraçado, como um imenso formigueiro desorganizado onde os pequenos insectos se acotovelavam sem mesmo notarem, perante tão vasto número de produtos.

‒ Mas as pessoas têm que sobreviver, não é? O comércio é uma forma de todos ganharem algo, se for feito de uma forma justa – observou a jovem, com toda a certeza no que dizia.

Um sorriso irónico abriu-se nos lábios de Nalir, mas não era um trejeito que censurasse a opinião da jovem, mas sim a civilização em geral.

‒ Os negócios raramente são justos, todos querem ganhar mais do que perder, o que transforma tudo numa guerra aberta. Mas não me referia a isso. Existem formas variadas de se ganhar dinheiro e muitas delas não implicam vender, nem mesmo roubar, mas sim jogar, fazer apostas para ser mais precisa. – A ironia desapareceu e a sua expressão tornou-se obscura. – Riargion permite que se organizem combates na praça principal da cidade, onde todos participam por prémios monetários, mas na maior parte das vezes só uma coisa ganham: a morte. Não olham a meios para obter o que querem e, se tiverem de matar o adversário, assim será. Só forasteiros, assassinos e inconscientes participam nessas lutas, e deves imaginar quem sofre as consequências fatais.

‒ Os inconscientes… – A voz de Liriana soou num tom baixo, como se temesse que as almas dos falecidos a escutassem.

Page 74: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 74 -

‒ Já referi este facto ao Senhor, mas ele insiste em afirmar que cada um é senhor de si e que se querem pôr a única vida que possuem em risco isso só a eles diz respeito. No entanto nunca conseguirei concordar com isso, não agora que perdi o meu mais amado tesouro, e penso que antes também não conseguiria. São muitos os segundos que sofrem com a perda de um único ente.

Apesar de nada dizer, Liriana concordava plenamente. Se soubesse que um dos seus pais morrera, sentiria falta de um próprio pedaço da sua alma. Poderia mesmo enlouquecer se não tivesse ninguém que a auxiliasse, alguém que a acompanhasse nas horas mais difíceis e lhe desse o seu apoio e força, alguém querido e amado.

‒ Não te importas que passe por um desses lugarejos desprezíveis? O meu marido tem a péssima tendência de ir assistir aos combates. Não consigo imaginar como alguém consegue gostar do sofrimento dos outros, do derramar de sangue dispensável. É horrível… abominável!

‒ Mas é o que normalmente acontece neste mundo – murmurou a jovem, mais para si do que para Nalir, lembrando-se de alguns desportos pouco agradáveis, assim como de muitas cenas de violência que davam presença nos jornais, esquecendo-se de que aquele nem era o seu mundo.

Avançaram por entre as pessoas atarefadas que se abeiravam das muitas bancas olhando-as de lado, duvidosas de um preço demasiado elevado e de uma qualidade talvez não muito agradável, e percorreram talvez um terço da vila numa hora, até se aproximarem por fim da praça central.

O local estava apinhado de gente, principalmente homens que se acotovelavam fervorosamente para se chegarem mais à frente e terem um melhor ponto de vista do que se passava no centro.

‒ Incrível – murmurou Nalir desgostosa, lançando um olhar de advertência a todo o grupo. Daquele ponto nenhuma delas conseguia saber o que se passava e, apesar de Liriana ser da mesma

opinião que Nalir, a curiosidade chamava-a cada vez mais alto. ‒ Talvez nos devêssemos separar, assim iríamos encontrá-lo mais depressa. Não concorda? – perguntou,

esperançosa. ‒ Nem penses que te deixarei sozinha entre estes brutos asquerosos. Ficarás ao meu lado – declarou

categoricamente Nalir, num tom ríspido. – É demasiado perigoso. Liriana disfarçou o seu amuo e ainda se colocou em bicos de pés para tentar ver por cima de todas aquelas

cabeças desgrenhadas, mas os resultados foram nulos. O entusiasmo geral era tão grande que qualquer aproximação feita por si não sairia incólume.

Deram mais uma volta em redor do amontoado de gente que envolvia os combatentes, sem encontrarem o marido de Nalir. Era pior do que procurar uma agulha num palheiro. A praça parecia um antro de fanáticos delirantes que causavam o caos com os seus gritos e apupos.

A jovem tentou ver mais, para além de todos aqueles seres devorados pela violência. Os olhos semicerraram-se, trespassando cada pé que se pisava sucessivamente sem se desculpar. O solo estava protegido por lajes brancas e extremamente bem polidas, tendo em conta aquela descomunal confusão. Pareciam indignas da manifesta falta de civismo que ali se revelava, pois possuíam uma mácula de pureza em todos os seus pontos.

Subitamente viu algo saltar do meio da praça para o público entusiasta, sem um único aviso prévio. Todos se afastaram instantaneamente, segundos antes de o corpo atingir as suas cabeças e os esmagar contra o chão. Liriana abriu a boca para gritar de terror ao ver o estado da pessoa. Cada centímetro do corpo estava lavado em sangue, repleto de chagas abertas por todos os membros. A cabeça estava presa por poucos centímetros de músculo avermelhado e do pescoço escorria cada vez mais e inesgotavelmente aquela substância que detém a vida.

Com dificuldade, a jovem ergueu os olhos aterrorizados do corpo do morto, e fitou o causador de toda aquela carnificina. Da sua mão pendia um enorme machado marchetado de pintas carmins frescas e a ponta da sua lâmina deixava gotejar pingos ainda mornos. O dono do machado, esse era descomunal. Vestia uma espécie de calças, largas e totalmente sujas, e uma camisola sem mangas que pareciam ter sido pura e simplesmente arrancadas, donde saíam dois braços desenhados com músculos desenvolvidos em demasia, com algumas veias a palpitar à superfície. O pescoço lembrava um maciço cepo de árvore, envolto também naquele ramificado capilar, onde juraria ver a veia jugular sincronizada com o coração. Sem dúvida alguma, a parte mais horrenda fora a que os seus olhos por último alcançaram. Uma enorme cicatriz rompia de uma cavidade sem olho, atravessando a cana do nariz e irrompendo em dois lábios tortos e semi-decepados. O único olho bom mirava a plateia temporariamente incapacitada de reacção e os lábios formavam um esgar que talvez se assemelhasse a um sorriso de escárnio. Num repente inesperado, o homem soltou um grito vitorioso e, dessa forma, o público pareceu acordar da sua letargia e gritou também, num uníssono som arrepiante.

Page 75: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 75 -

Liriana sentiu-se também a despertar daquele cenário sanguinolento e olhou em redor, com a tensão a marcar-lhe cada músculo do corpo, não sabendo bem como não desmaiara. Premiu os lábios e engoliu em seco sem mesmo notar. Nalir desaparecera no meio da confusão. Um enorme sentimento de desorientação cresceu-lhe subitamente no peito, esmagando-lhe o coração e produzindo-lhe um índice de falta de ar. Era tal o seu estado de espírito que, ao sentir algo tocar-lhe na perna, deu um salto para o lado por reflexo e olhou o chão como se este fosse seu inimigo, com ambas as mãos junto ao peito. Um pequeno felino negro olhava-a fixamente com os densos olhos amarelos, de certa forma curioso.

‒ Oh meu Deus… – murmurou a jovem, ofegante, como se tivesse corrido uns bons metros. Fechou os olhos e respirou fundo. Tinha de se acalmar, tomar consciência de que aquele não era o seu mundo mas outro totalmente à parte, nascido num medieval e assim mantido por séculos, se não mais se, pelo contrário, tivesse o medieval nascido dele.

Voltou a contemplar o gato que, por sua vez, colocara toda a atenção no centro da praça. Liriana observou também. Um indivíduo envolto numa comprida capa negra e com o capuz sobre a cabeça, de forma a ocultar a face, aproximara-se do colossal homem, isso se a palavra homem se pudesse aplicar a um assassino a sangue frio. Fez-lhe uma vénia que a jovem notou ser algo trocista e afastou-se dois metros, esperando uma qualquer reacção. E teve-a.

Uma gargalhada sorumbática soou da boca deformada do assassino, seguida de algumas palavras grosseiras.

‒ Desejas então morrer p’lo que parece, idiota! O indivíduo não identificado nada disse, limitando-se a baixar-se e a retirar, algures de cada fivela das

botas, duas facas compridas e de brilho mortal, e esse conjunto de gestos disse tudo. O homem do machado ergueu-o bem alto e tentou alcançar o encapuzado numa pequena corrida. Liriana

fechou os olhos. Não queria ver o que se iria suceder, não queria ver o sangue brotar de uma ferida cruel desferida por um louco.

No entanto, várias exclamações impressionadas fizeram-na abrir um dos olhos e espreitar receosa. Por mais incrível que parecesse, o indivíduo esquivara-se ao golpe e apontava uma das facas ao homem do machado, incentivando-o a atacar. Era novamente visível que o homem não gostara minimamente deste seu falhanço, enquanto soltava um rosnar furioso. O ser oculto pela capa fez algo que impressionou ainda mais o público atento: pousou cada uma das facas no chão, afastou as pernas e dobrou um pouco os joelhos, colocando-se numa posição típica de algumas artes marciais, pronto a atacar ou a defender-se. O homem do machado não se fez prezado. Com outro rosnar típico de animal, que por momentos pareceu a Liriana mais um grunhir do que outra coisa, partiu para o ataque, lançando um golpe da esquerda para a direita. A capa do “não identificado” voou junto ao machado, mas este nem sequer lhe tocou. Fora um salto extraordinariamente alto para qualquer um, tão alto assim que muitos soltaram murmúrios que fizeram Liriana aguçar a audição. Todos tinham a mesma opinião. Afirmavam que o encapuzado era um elfo.

Contudo o indivíduo não se ficara por um mero salto. Ao fazê-lo, a sua perna distendera-se bruscamente disparando um pontapé no queixo do homem do machado que recuou, perplexo, furioso e talvez disfarçadamente assustado. O indivíduo que agora todos clamavam ser um elfo deixou-se ficar no seu lugar, esperando um novo ataque do homenzarrão que parecia agora bastante mais calculista, medindo-o e dando muita atenção ao que os outros diziam. Liriana não queria admitir, mas estava a gostar do estado em que o suposto elfo estava a deixar o homem. Ele merecia-o.

‒ Desistes, Karnaugh Eifmar? – perguntou uma voz de entre o público, a quem a jovem não viu o dono. O homem de machado ficou vermelho à menção de “desistência”. Colocou novamente a arma em riste,

mas não atacou, limitando-se a esperar que fosse o elfo a fazê-lo. E o elfo fê-lo, de forma pouco vulgar. Num passo propositadamente lento destinado a enervar o opositor, aproximou-se. A sua calma

desvendava uma previsão adiantada de todos os golpes, mortais ou não. Parou a pouco menos de um metro de Karnaugh e, indolentemente, cruzou os braços.

Eram imensos os olhares admirados que voavam de um para o outro, esperando que algum deles desse o primeiro passo e, como todos já esperavam, foi Karnaugh quem o deu. Num acto impensado perante a agilidade já demonstrada por parte do elfo, desferiu de um golpe direito ao pescoço. Com a sua flexibilidade indescritível, o elfo dobrou-se totalmente para trás, apoiando as mãos no chão. Após a passagem precipitada do machado, lançou ambos os pés ao queixo de Karnaugh, derrubando-o de forma inesperada e fazendo com que o machado, agora sem dono, se afastasse alguns metros.

Page 76: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 76 -

Estava decidido o fim da batalha pois o elfo acabara de retirar outra faca, agora do cinto, onde também pendia uma espada, e, na incapacidade momentânea do assassino, tinha-a apontado à sua garganta.

‒ O combate acabou, e o vencedor é o Senhor do Norte. Está nas suas mãos a vida de Karnaugh Eifmar – declarou uma voz de entre o público, esse que agora se tornara subitamente silencioso. – Há muito que Karnaugh combate, vence e mata nestes torneios, é hora de ser alguém a decidir pela sua vida.

Todos esperavam na expectativa. Sem avisar, Liriana sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Não fora de frio, nem mesmo de medo,

apesar de o sentir agora. A Sombra estava ali, sabia-o. Um nevoeiro negro começou a adensar-se à sua volta, vindo de entre os pés dos espectadores à sua frente,

tentando prende-la nele. Olhou em volta dos próprios pés, desorientada. Subia-lhe lenta e inexoravelmente, pelas pernas acima, acorrentando-a ali, de uma forma inescapável.

‒ Nalir! – gritou aflita. Precisava de ajuda e o mais depressa possível. – Alguém!! Negro… estava tudo cada vez mais repleto de trevas que engoliam a luz, como dias atrás, logo após ter

sido raptada para aquele mundo. Encontrava-se no antro daquela negrura densa, só consigo própria. Desorientada, levou a mão ao bolso. Estava vazio, a pedra de brilho branco não se encontrava lá. Deu uma volta sobre si, olhando os horizontes tão iguais, tão mergulhados naquela sombra. Aquilo sim, era impossível. Estava há menos de segundos entre a multidão, entre a vida de muitos. Alguém tinha que ser suficientemente poderoso para a auxiliar. Deveriam pelo menos ter visto o que se passava…

Um pequeno aperto encheu-lhe o peito que pareceu explodir em estilhaços quando este se desvaneceu inexplicavelmente. A luz invadiu-lhe os olhos, encadeando-a de uma forma que pareceu milagrosa. Quando esta se dissipou, deu-se conta de que ninguém reparara no seu momentâneo e aparatoso estado de aflição, ninguém excepto um ser.

De algures do centro da multidão, dois olhos azuis fitavam-na perscrutadoramente. O elfo tinha-se erguido de sobre o corpo de Karnaugh que ainda estava vivo, e fitava-a de uma forma no mínimo intrigante. Estudava-a. Só lhe conseguia discernir os olhos, pois todo o restante rosto estava tapado por um lenço.

A jovem sentiu uma mão pousar-lhe no ombro e olhou para trás. Nalir fitava-a preocupada e trazia o marido colado aos calcanhares, com um ar extremamente contrariado.

‒ Onde ficaste, Ana? Procurei-te por todo o lado – murmurou, preocupada. ‒ Eu, eu… perdi-a de vista – desculpou-se Liriana, contudo não tomava muita atenção à conversa, o seu

olhar desviava-se sucessivamente para o elfo que a deixara de fitar e falava agora com outro homem jovem, enquanto avançavam naquela direcção com um pequeno saco de cabedal negro nas mãos enluvadas.

Quando se cruzaram, o elfo de face coberta lançou-lhe outro olhar, mais vago agora, e afastou-se, penetrando no meio da multidão.

A jovem olhou ainda para os seus pés, procurando o pequeno felino, mas este também desaparecera, como sempre.

Liriana jantava em frente de Riargion, como na noite anterior. A lareira emitia o seu fulgor alaranjado,

enquanto o silêncio se propagava solene em cada inspiração. A face do senhor de Estherel estava diferente, algo o perturbava.

O badalo de um sino soou pela atmosfera fria e a jovem estremeceu. Um brilho prateado perpassara o olhar do anfitrião nesse mesmo momento, e um sorriso gélido e irónico despontou levemente nos seus lábios. Poucos minutos depois, Nalir apareceu à porta com um ar preocupado.

‒ Senhor, está alguém lá fora a pedir para falar com… a Ana… O sorriso de Riargion redobrou, e o olhar tornou-se algo malicioso. Ergueu-se lentamente e pareceu a

Liriana que murmurara algo como “finalmente”. ‒ Talvez sejam parentes teus – declarou simplesmente. – Será melhor descermos e termos certezas. Não

quero que ninguém indesejável se aproveite da tua falta de memória precária. Liriana engoliu em seco. Quem poderia ser? E porque teria Riargion reagido com um contentamento tão

pouco habitual? No entanto, que mais poderia fazer senão segui-lo? Se não o fizesse, levantaria suspeitas. Levantou-se do lugar pousando os talheres e respirou fundo. Olhou para Riargion tentando sorrir, mas foi

incapaz. O seu olhar desviou-se por momentos para a janela e dela brilhavam dois fugazes relâmpagos amarelos

Page 77: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 77 -

que depressa desapareceram. Nunca acreditara em maus presságios, mas aquele gato acabara de tornar o seu desassossego duas vezes maior.

Desceram as escadas, iluminadas por vários archotes, que os levaram ao amplo hall de entrada. Riargion ia à frente, esboçando ainda aquele sorriso pouco vulgar que deixava pairar uma mensagem ainda incompreendida.

Rorin esperava à entrada, onde dois estranhos encapuzados aguardavam, do lado de fora. Liriana sabia quem eram, conhecia-lhes o perfil, e aqueles olhos azuis não enganariam ninguém. Tinha-os visto nessa mesma tarde e eles tinham-na fitado tão profundamente que juraria que lhe teriam lido os pensamentos.

‒ Boa-noite meus senhores – cumprimentou Riargion com um aceno de cabeça. – A minha serviçal disse-me que vieram em busca desta pequena. – Pousou a mão sobre o ombro de Liriana, impedindo-a de avançar fosse de que forma fosse.

‒ E viemos sim – declarou o outro indivíduo seriamente. ‒ A pergunta pode ter sido feita no plural, mas não te foi dirigida. – A voz de Riargion tornara-se álgida. –

Recuem vinte metros, imediatamente. O encapuzado interpelado olhou indeciso para o elfo, mas este limitou-se a fazer exactamente o que

Riargion ordenara sem lhes virar as costas. O senhor de Estherel guiou Liriana pelo ombro até fora da enorme porta, sem a largar por um segundo. A

jovem começava a sentir-se como uma refém. ‒ Infelizmente para ti, não poderei deixar a Ana… perdão, a Liriana partir. Tenho impressão que dentro

deste palácio existe alguém desejoso de a encontrar. A jovem estremeceu à menção do seu verdadeiro nome. Como poderia ele saber? Contudo a resposta

pairava à sua frente e o “alguém” que a queria encontrar só poderia ser aquele ser deitado no altar de mármore que encontrara.

Finalmente a voz do elfo fez-se ouvir e foi como uma inesperada surpresa para Liriana ao descobrir que na realidade não era nenhum elfo que se escondia sob aquele capuz.

‒ A Liriana virá connosco. ‒ E serás tu que a virás buscar, Alexandrina? Penso que a tua amada �iarda Liduine, ou mesmo as armas

do teu amigo, não estarão à altura dos meus dentes, que se encontram bastante próximos do seu alvo. Ou seja, se me tentares atacar, a Liriana morre aqui.

A pequena indefesa sentiu o sangue gelar-lhe por todo o corpo. A mão de Riargion no seu ombro parecia agora como uma garra de aço. E o que queria ele dizer com “dentes”?

‒ Foi… foi o senhor! – exclamou a voz chocada de Nalir, da entrada da porta. – Foi o senhor que matou a minha filha!

Ninguém soltou uma palavra, nem mesmo Riargion. Só a sua mão apertou um pouco mais o ombro da jovem, como que contendo algum pensamento.

Um suspiro longo e cansado percorreu a noite e por fim Alexandrina tirou o capuz da cabeça, revelando a face e os longos cabelos de ébano presos numa única trança. Os orbes fitaram primeiro Liriana, lançando-lhe um sorriso amável e deveras consolante e, de seguida, caíram sobre Riargion.

‒ Não foste tu que a mataste, pois não, Ardanir? – perguntou calmamente. ‒ E porque não? Eu sou um vampiro, um assassino a sangue frio. ‒ Eu sei que não eras capaz, conheço-te de há muito. Apesar das evidências serem claras do contrário, Liriana acreditava em tudo o que Alexandrina dizia.

Lorde Riargion não era um assassino, nem mesmo má pessoa. Mas algo o fazia agir contra a sua fé, algo que suportava como um cargo.

‒ As coisas mudam Alexandrina… ‒ Algumas talvez, não todas. E eu não mudei, nem tu. Nem mesmo a Vinyriah. E, como sempre, fazes

tudo por ela, mesmo encobri-la quando toda a gente sabe o que é. Não o negues, Ardanir, desta vez o óbvio é forte.

Do nada, uma gargalhada rompeu a noite sem piedade. Porém não fora dada por nenhum dos presentes. Liriana olhou receosa para a sua madrinha, preferindo não dar asas à imaginação, mas esta olhava para algo mais, por de trás das suas costas, com um aspecto endurecido e preocupado, deveras preocupado.

‒ Sempre pronta a difamar-me, não é, minha irmã? – O sarcasmo revibrou na noite, avançando cada vez mais para si. E Liriana sabia o seu significado e as possíveis e derradeiras implicações. A dama que vira no final

Page 78: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 78 -

do corredor, por detrás daquelas tão sagradas portas, erguera-se e, agora sim, temia por si e por todos. A maldade soltara-se dos seus domínios encarcerados.

A mão de Alexandrina voou para o punho de �iarda, pronta a desembainhá-la, mas a mulher deteve-a, limitando-se a pousar uma mão sobre o ombro livre de Liriana, já de si aterrorizada.

‒ Na, na, na! Ouviste o que o meu querido Ardanir disse, e duvido que queiras ver a tua pequena afilhada morrer, seria um desperdício.

A ironia das suas frases era tão densa que revolvia as entranhas a qualquer um. Liriana viu como Alexandrina mal continha a fúria e a vontade de atacar, e isso divertia Vinyriah mais do que qualquer coisa.

‒ Nenhum feitiço teu me voltará a aprisionar, o cristal quebrou-se, poderás confirmá-lo se algum dia chegares a Nelgadir, o que me parece deveras improvável.

A mão de Alexandrina continuava a apertar o punho cravejado de pequenos cristais lilases da sua preciosa espada. Nunca lhe parecera que a madrinha fosse capaz de odiar alguém, mas aquela expressão dizia-lhe que estava enganada.

‒ Não é tão delicioso sentir a morte pender sobre a nossa cabeça? – Dirigiu-se desta vez a Liriana, num murmúrio ao ouvido. – Uma experiência muito instrutiva, quando a corda que a segura não se desfia subitamente e nada nos pode salvar. Mentiria se dissesse que lamento, pequenina.

Liriana sentiu os lábios da mulher tocarem-lhe na face num beijo frio, sem afecto, de uns lábios mais que glaciais – mortos. Uma lágrima escorreu-lhe lentamente pelo canto do olho, provocando uma sensação incómoda de cócegas, mas nenhuma das suas mãos se moveu para a limpar. O seu íntimo dizia-lhe que, se se mexesse, algo de muito mau aconteceria.

‒ Chega, Vinyriah – declarou Alexandrina, categoricamente, num tom tão ríspido que ninguém soubera donde surgira.

‒ Chega, dizes tu? – riu-se a feiticeira. – Minha querida, nada podes fazer contra mim! Sempre foste a mais fraca, sempre precisaste da ajuda dos outros. Mas agora não tens essa ajuda. – O seu tom era vitorioso, mas algo no olhar azul de Alexandrina lhe disse que podia esperar algo diferente do planeado.

‒ Tens a certeza de que não tenho? – Alexandrina não a desafiava, contudo o silêncio que se instalou disse a Liriana que aquela questão fora levada muito a sério por Vinyriah.

Um súbito largar dos seus ombros por parte de Riargion e Vinyriah disse-lhe que se sucedera um imprevisto. Olhou para trás sem querer acreditar: a feiticeira jazia no chão, descomposta, e um rosnar fazia-se ouvir da sua fúria, enquanto levantava a cabeça.

‒ Achas bonito atacar pelas costas, enviando os teus fracos espíritos, Leonardo?! – gritou para a noite com os olhos verdes a coriscarem em volta, sem se importar com mais ninguém, nem mesmo com Riargion que se debruçara ao seu lado, preocupado.

A jovem não perdeu tempo. Percorreu todo o caminho numa pequena corrida desesperada, juntando-se à madrinha e ao desconhecido.

‒ Vamos, o Leonardo está à nossa espera com os cavalos – disse, depositando-lhe um beijo rápido na fronte e envolvendo-a num abraço. Após isso, desembainhou a espada, a que Liriana vira no escritório por cima da lareira. A lâmina brilhou reflectindo um alumiar branco, e só dessa forma Liriana reparou que a Lua se erguia pálida nos céus. Estava lua cheia.

‒ Foge, Alexandrina! – gritou Vinyriah, furiosa. – Pois podes fugir que eu apanhar-te-ei! Liriana viu-se puxada pela mão suave de Alexis, numa pequena corrida, e depressa chegaram a um dos

portões de Estherel, possivelmente o das traseiras do palácio, que desembocava na orla de um bosque denso. Esperavam-nos duas pessoas montadas, uma jovem e um homem que Liriana reconheceu de imediato.

‒ Boa-noite, Lírio do Campo – cumprimentou com um sorriso alegre ao aproximarem-se, como se nada se tivesse passado. – Estava com saudades tuas.

Liriana corou e retribuiu o sorriso, contente por vê-los e, acima de tudo, por saber que tinham ido tão longe por si, para a resgatarem. Se alguma vez pensara que odiava Alexandrina, enganara-se drasticamente. Não se culpava pela sua forma de pensar, mas fora insensata ao não querer acreditar que ela se preocupava consigo.

‒ Vamos, temos de sair deste local e atravessar o vale de Dordar antes que venham em nosso encalço. A Vinyriah não irá esperar e o Ardanir suspeitava já da nossa presença, deve ter os caminhos mais que vigiados, logo temos de ir pela floresta.

‒ Mas ele apanha-nos de surpresa! – manifestou-se o médico, fitando a amiga com alguma advertência.

Page 79: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 79 -

‒ Não totalmente. Temos algo que eles não têm, o poder ancestral dos elementos. – Alexandrina parecia confiante. – E hoje está lua cheia.

Liriana lançou um último olhar ao palácio Estherel. Nalir e o marido tinham permanecido naquele local, à mercê daquele ente maligno. Temia seriamente por eles, principalmente por Nalir, que tão amável fora para com ela. Uma mãe, durante escassos dias.

Page 80: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 80 -

IX

Os Uivos da Noite

Resisto mais que o sentido Algures em almas do ser.

Solto, corro, mas por onde? Pelo fugitivo que me encalça

�o meu interrupto correr. E oiço-te ao longe, soas perto

�o medo vil que disturbas. Só num mar deserto

Fujo mais que o derradeiro Sopro da vida no augir sublime

Que por nada se derrama Em ilusões que a morte clama.

“Fugitivo”

‒ Seu incompetente! – rosnou Vinyriah, olhando para o local por onde tinham desaparecido os três. As

suas mãos envelhecidas apertavam-se de raiva e começavam a ver-se gotas de sangue a escorrerem de feridas que a mulher infligira a si própria com as unhas compridas. – Quero que os chames e que mandes matar todos eles, exceptuando a Liriana. Quero a Alexandrina retalhada.

Riargion nada disse, ouvindo cada palavra com uma expressão neutra de servo que faz qualquer coisa pela sua amada senhora. Depois deu um passo em frente, erguendo não só os olhos prateados, como os braços, para a Lua e, num tom calmo, lançou um apelo, uma invocação que encheu a noite.

‒ Vinde a mim, uivo que te percutes na imensidão da noite. Vinde, que vos ordeno. Que nada detenha as vossas presas nem o vosso saciar. Procurem e encontrem. Quero o sangue dos que fogem, mas que isentem o da pequena flor do luar. Libertem o vosso espírito, quero ouvir-vos sob Midarvia, nossa deusa do amar, clamar a vossa vitória.

�*�

Alexandrina retirara a capa que a cobria e entregara-a a Liriana, ajudando-a a colocá-la correctamente e a ocultar a face. Só nessa altura a jovem se apercebeu por completo da imponência que Alexandrina emanava. Parecia mais alta que de costume, apesar das botas que calçava serem rasas. Nada lhe fazia crer que aquela era a senhora da Mansão Adriática, a não ser os seus preocupados olhos azuis que rasgavam a noite como safiras acesas.

Ajudou-a a montar no seu próprio cavalo, um magnífico equídeo de pelo negro e, se algum dia lhe dissessem que iria cavalgar e sentir o vento forçar as suas lágrimas a escorrerem, enquanto a cara lhe gelava como nunca aconteceria se dormisse na rua em pleno Inverno, não acreditaria, mas foi isso que se sucedeu. Depois de acomodada, Alexandrina montou atrás dela, e incitou o início da fuga.

Os cavalos corriam por encruzilhadas agrestes de árvores antigas e frondosas que impediam o luar de lhes iluminar o inexistente trilho. Liriana sentia quando o corcel parecia prestes a escorregar nos ramos e folhas secas que se amontoavam sobre o musgo das pedras. Contudo, o cavalo não temia que isso lhe sucedesse. Apesar da forma incansável como corria, o seu espírito era confiante, o que se tornava inacreditável. Alexandrina conseguia oferecer esperança a qualquer ser, nos momentos mais críticos, com a sua perseverança, e ela própria o sabia, pois desde que continuasse ao lado da madrinha, nada temeria, principalmente agora que começava a ter consciência do que enfrentava. No entanto alguém lhe explicaria o resto, aquele fragmento que escapava à compreensão e que era essencial. Exigi-lo-ia.

Page 81: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 81 -

Alexandrina puxou as rédeas subitamente, fazendo Liriana agarrar-se à crina do cavalo, o que o deveria ter magoado, no seu entender. Os cavalos que a seguiam pararam também.

‒ O que se passa? – perguntou a voz de Leonardo, mas Alexandrina levantou uma mão, pedindo silêncio. Era audível o resfolegar dos cavalos, cansados da intensa corrida, aquando o silêncio se instalou, assim

como o vento da noite a revolver as altas ramagens. Mas não só. Algo mais se espalhava pelo sossegado ambiente da floresta, ecos que a arrepiavam com a sua profunda malvadez.

‒ Uivos… – murmurou o indivíduo que acompanhara Alexandrina no seu resgate, e que agora tinha o capuz caído, podendo ver-se um rapaz pouco mais velho que ela. – O Riargion invocou os Iaminarse sa Rianor.

‒ Os quê? – perguntou Liriana confusa, sem se conseguir deter. ‒ São lobos… lobos de proporções maiores que o normal e que só obedecem às ordens dos seus amos ou

dos seus criadores. E quando Vinyriah está por detrás das ordens dadas, o melhor é acautelarmo-nos, porque não devem passar pela parte de nos manterem vivos – murmurou Alexandrina desmontando do cavalo com um pequeno salto. – Sozinhos não conseguiremos escapar, precisamos de ajuda poderosa, de algo que os assuste derradeiramente, que contenha a mesma essência provinda de Midarvia, por quem também foram criados.

Por entre as sombras, Liriana viu Leonardo sorrir, num sinal de compreensão e também ele deixou o seu cavalo.

Todos, excepto o médico, olharam espantados para o que Alexandrina fez de seguida. Baixou-se e desapertou os cordões das botas, descalçando-se. Depois ergueu-se, muito direita, e inspirou profundamente, inalando toda a energia pendente em seu redor num acto de concentração. Só os uivos se ouviam ao longe. Fechou os olhos lentamente, deixando descair os ombros, numa total descontracção. Por fim, estendeu a mão esquerda aberta, à sua frente, e fechou-a como se agarrasse algo que realmente existia. Com a outra, fez o mesmo.

‒ Dir-vos-ia sagrados, mas são essências que se sublimam e o ultrapassam. Dir-vos-ia benditos, mas são o tudo e não o pouco que se reflecte no inato do mundo. Dir-vos-ia belos, mas palavra superior deveria existir para descrever a vossa grandiosidade, pois são honrados e odiados, venerados na omnipotência do que está por existir. Eis-me então aqui, serva de coração, mortal vossa e dos vossos infinitos poderes que subjugam o universo. Incendeiem-me, sustenham-me em vós que vos imploro, Elementos Sagrados – Fogo, que arde na insanidade da dor; Ar, que respira os ventos do Tempo; Água, que vive no profundo cristalino da Eternidade; Terra, que floresce no �ada a que nós sobrevimos. Imploro-vos que me auxiliem, que na vossa generosidade nos acolham. Cedam-me o que é vosso, para por vós falar ao mundo e lembrar que sois os poderosos, que sois vós que nos guiam pela voz de Midarvia, Mãe do Tudo, e Thornigan, o Deus Dragão. Peço-vos, por clemência, um pouco das essências que nos criam e sustêm, para manter um equilíbrio desejado e deter aqueles que vos contestam, no fugaz tempo que é vosso. Ouçam-me. �ada vos significa a minha gratidão, mas tê-la-ão para a eternidade.

Nenhum deles tirou os olhos de Alexandrina, enquanto a ouviam proferir, num tom alto e profundo, aquelas palavras que tão simples pareciam mas que detinham um poder que poucos conheciam. Quatro luzes, de quatro cores diferentes, emergiram do nada, rodando lentamente sobre a mão de Alexandrina, e iluminando-lhe a face, na escuridão. A rotação aumentou a cada segundo, incessantemente, até que nas suas mãos surgiu uma bola brilhante de cores solúveis que não se conseguiam distinguir, numa mistura que no seu total tão depressa parecia negra, como com reflexos de vermelho, branco, amarelo ou azul, que se enrolavam sobre si numa dança singela e eterna no seu poder inimaginável. Aquilo era magia em estado puro, essências fundidas num concentrado por destilar, num estado bruto.

De seguida, Alexandrina deixou a bola cair e Liriana assustou-se com o simples gesto desse procedimento. No entanto a estranha esfera flutuou lentamente, sem se afectar com a gravidade, e tocou com a suavidade de uma pluma no solo coberto de vegetação, equilibrando-se perfeitamente nele por instantes de segundo e, por fim, deixando-se imiscuir pelas pequenas fendas indistintas, até desaparecer por completo, como que sugada pela terra.

Após este processo solene, foi a vez de Leonardo. O jovem homem tirou com rapidez, mas cuidadosamente, um colar do pescoço. Nele balançava-se

indolentemente um talismã seu conhecido, ligado ao Antigo Egipto. Não recordava o seu nome, o seu significado, ou para que servia, mas o brilho dourado que emitiu, quando Leonardo o ergueu acima da cabeça, conferia-lhe um tom místico e poderoso.

Page 82: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 82 -

‒ Vinde a mim almas do destino, do descrever fluído do tempo. Vinde poderosas, pois eu vos ordeno e comando, ó servas da minha vontade, do ímpeto que vos aguarda na salvação. Pois sois precisas na justiça, no derrotar da perdição que vos aguardaria se a mim não viessem, �ecromante de vontade e até à morte, se ela por minhas ordens se aportar no vale da vida. A mim me deveis a grandiosa eternidade que deténs e venho assim exigir o que meu é de direito, a divida infinita por cobrar da salvação que agora é vossa, ó espíritos milenares!

Liriana sentiu um arrepio profundo percorrê-la. Algo se modificara no ambiente em redor. Uma qualquer magia percorria cada partícula de ar, insuflando-a de vida. Parecia-lhe até ouvir as vozes da floresta murmurarem-lhe palavras indistintas. A floresta acordara do seu sono, assim como entes mais ténues, mas profundos. Sentiu algo tocar-lhe na face e olhou em volta. Perpassara-a uma leve corrente de ar, de uma consistência pouco credível. Seria aquilo um dos espíritos invocados por Leonardo? Um fantasma, como vulgarmente se chamava?

‒ E o Landar? – inquiriu o necromante, indeciso, após ter baixado o braço, como se se tivesse lembrado repentinamente daquilo.

‒ Ele sabe o que fazer. – À simplicidade da sua resposta, seguiu-se um tremendo uivo de proximidade. – Liriana, vais sozinha no meu cavalo, ele guiar-te-á da forma mais segura e célere possível, confia nele. E, por favor, se vires alguém não pares, seja quem for.

A jovem abriu a boca para protestar, mas já o animal começara a trotar rapidamente com uma leve palmada da sua dona, e os outros quatro rapidamente ficaram para trás. Os olhos de Alexandrina seguiram-na até a escuridão ser tal que o seu brilho se perdeu.

Liriana deu-se conta que estava novamente só e desprotegida, num ambiente que em nada lhe parecia acolhedor. As sombras aumentavam em seu redor e os ramos das árvores debruçavam-se para a agarrarem e prenderem. Uma coruja levantou voo de um dos ramos, rasando-lhe junto à cabeça com um pio pouco inspirador. No alto, a Lua continuava a brilhar na sua brancura, enchendo o espírito da noite de magia. Perguntava-se se aquele dia teria algo de especial no calendário daquele mundo, ou se todos os acontecimentos sucedidos teriam sido pura e fatal coincidência. No entanto, o que eram as coincidências senão acasos inevitáveis do destino?

Ao fim de algum tempo o cavalgar tornara-se mais lento sem a jovem dar conta. Tinham penetrado num lugar mais cerrado onde pouca ou nenhuma luz se antevia. Mas não era isso que a sua alma considerava pior. O silêncio, esse sim, era o maior presságio que se abatia sobre a floresta, pois isso era anormalmente estranho. Não se escutavam insectos, aves, roedores, ou mesmo o vento nas fortes folhas das árvores frondosas. Diria que estavam adormecidos, se o acreditasse, no entanto, algo mais se estendia por aquelas distâncias.

Subitamente o cavalo parou, com uma perna pendente e as orelhas arrebitadas, estremecendo de atenção. A jovem endireitou as costas sem largar as rédeas e olhou em volta, tentando conter o medo, pedindo auxílio a toda a sua razão.

Os ramos dos arbustos estalaram à sua frente e, por entre eles, surgiu um brilho prateado, e um rosnar contínuo que quebrou aquele monótono mas destabilizante silêncio. O cavalo recuou vários passos, desorientado, ao ver que aquele não era o único lobo que se aproximava. Os cabelos da nuca de Liriana arrepiaram-se, enquanto olhava à sua volta, sem largar as rédeas. Eram quatro lobos ao todo, cada um vindo do seu ponto cardeal, ou assim parecia. Liriana sentiu a vontade de fuga desvanecer-se num acrescento ao medo, por se ver cercada. E os lobos também o sentiram, e isso deliciou-os.

Vendo-se sem saída, tomou então uma decisão, decisão essa que desorientou o corcel, ainda mais. Desmontou-o com precaução, evitando gestos bruscos que assustassem mais o cavalo ou incitassem os lobos a atacar, e fitou cada uma das feras sem saber o que a levara a fazê-lo. Mesmo assim, o equídeo ergueu-se nas patas traseiras, tentando afugentá-los, mas os dentes afiados que se exibiam através dos lábios arreganhados diziam-lhe que não se intimidariam minimamente. Um deles teve até a ousadia de, com um salto vertiginoso, atacar o cavalo e desferir-lhe uma dolorosa dentada na pata direita. O pobre animal recuou sem saber o que fazer e, desorientado ao ver que mais dois dos lobos avançavam para si, fugiu, passando por Liriana num galope precipitado e sem rumo, quase derrubando-a pelo caminho, sendo perseguido por três dos lobos, enquanto desaparecia por entre as árvores.

A jovem viu-se então só, de frente para o enorme animal de pelo cinzento e revolvido, com o seu olhar assassino. A vontade de a atacar espelhava-se-lhe nos olhos, mas por alguma razão hesitava. No entanto Liriana

Page 83: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 83 -

tinha a certeza de que se tentasse fugir a sua hesitação desapareceria por completo, levada pela brisa do apetite voraz que o definia. Mas o que mais poderia fazer? E porque esperaria o lobo? Atacá-la-ia mesmo que fugisse?

Mordeu os lábios revoltada com a sua indecisão e com o facto de, lá bem no fundo, não passar de uma criança indefesa.

Por entre os arbustos, um novo rosnar fez-se ouvir, desta vez mais suave, mas mesmo assim intimidante, revelando uma nova presença para além daquela que a enfrentava com sede do seu sangue.

O lobo desviou a atenção da sua pessoa e olhou para um ponto escondido à sua esquerda, igualmente intrigado.

Dois olhos amarelos brilhavam na escuridão, tão ferozes e fulminantes que, nesse mesmo momento, Liriana teve realmente vontade de fugir, não fosse aquele olhar se desviar para o lobo, começando a aproximar-se gradualmente. Quanto mais os olhos se achegavam, mais arrepiada Liriana se sentia. Dava a parecer que não tinham dono, que pairavam nas trevas como a legítima visão da escuridão.

O lobo recomeçou o seu rosnar ameaçador e ladrou para o ser que se aproximava. Depois, olhou para Liriana e um laivo de fúria perpassou-o da forma mais irracional possível, como se fosse ela a culpada.

O animal lançou um enorme salto na sua direcção, com a boca aberta, mostrando todos os dentes. Um grito de inevitável terror soltou-se dos lábios da jovem, enquanto tapava a cabeça com os braços e se baixava de olhos fechados, esperando o impacto. Mas um rosnar fino de felino fez-se ouvir nesse preciso momento, assim como o guincho de um animal que, desprevenido, apanhara um golpe violento.

Liriana deixou os braços baixarem-se um pouco, amenizando a tensão, e perscrutou a escuridão. O que viu foi mais do que inesperado. O ser que se escondia no negrume e enfrentava agora o enorme lobo, que já não parecia tão confiante do que haveria de fazer, era uma pantera negra.

Um golpe macabro no focinho do lobo deixava espalhar-se pelo chão uma substância quente de tom escuro, e fora o suficiente para lhe recomendar cautela.

Sem mais pensar, a jovem tomou uma decisão ao ver aquela cena. Recuou dois passos antes de executá-la, observando ainda os dois guerreiros, vendo se algum deles lhe dispensava atenção, mas estavam mais preocupados um com o outro do que com ela. Dessa forma, virou-lhes as costas e correu por entre a vegetação cerrada. Não queria ser a ceia de nenhum deles.

À medida que avançava na sua corrida, os ramos mais baixos e as silvas foram-lhe deixando arranhões na cara e nas mãos. Os olhos corriam a paisagem enegrecida, tentando escolher o melhor caminho por locais sem ele. Liriana e os outros estavam cercados num labirinto e alguém os tentava caçar, começando primeiro por torná-los completamente cegos, para que não vissem o que se passaria a seguir.

Parou um pouco, exaurida. Os olhos cerraram-se e uma lágrima solitária soltou-se, não por si, mas pelos envolvidos em todo aquele panorama desastroso, por sua e só sua culpa, por ter sido metediça o suficiente para penetrar nos segredos dos outros, acordando algo perpétuo e que assim deveria continuar. Definitivamente a culpa fora sua e nada via que o pudesse remediar. E porquê? Por ser fraca, uma menina mimada da cidade.

Mordeu o lábio que começara a estremecer e respirou fundo. Não se podia deixar levar por aquelas ideias, apesar de serem a verdade mais pura. O importante era sair dali e encontrar alguém que a ajudasse e guiasse.

Amenizou o passo e, desta vez, não correu. Tinha de manter a calma a todo o custo e tomar atenção suficiente a tudo o que a rodeava, mesmo que fosse um pequeno e esguio pássaro. Só assim surgiria a mínima hipótese de escapar. Se ao menos possuísse uma arma com que se pudesse defender…

Levou as mãos aos bolsos, procurando algo que sabia que lá estaria, um pequeno objecto que a ajudara, outrora, e não há muito tempo, numa situação levemente parecida. E lá estava ele, com o seu toque frio e irregularmente ameno. Retirou-o das calças e, ao fazê-lo, uma luz de tonalidade esbranquiçada mas não muito forte propagou-se pela floresta, aliviando as sombras do seu tom de penumbra.

‒ Obrigada – murmurou-lhe Liriana com um sorriso de agradecimento, como se o cristal tivesse capacidade de escutá-la.

Ergueu-o um pouco acima da cabeça para a luz lhe dar um ponto de visão mais amplo do que realmente a cercava, e não soube se isso a aliviou ou não. Estava numa espécie de clareira coberta por pouca erva. Era sinal de que alguém, ou alguma coisa, permanecia naquele sítio tempo suficiente para deixar as suas irremediáveis marcas, o que era também motivo de cautela. Ficar ali poder-se-ia tornar perigoso.

Olhou em volta, tentando captar marcas mais específicas do que habitaria no pequeno espaço, mas não teve grandes resultados. Sem querer meditar muito no assunto, apesar de o dever fazer, aproximou-se de uma das árvores que se espalhavam por ali, no entanto a maior de todas, e tocou-lhe. Estava marejada de pequenas

Page 84: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 84 -

rugas que formavam labirintos imperceptíveis por todo o seu tronco e ramos. Alguns nós punham fim a esses labirintos, mas não os tornavam menos infindáveis. Nunca antes dera atenção a esses pormenores de certa forma tão floreados e característicos, tão ásperos e encantadores ao mesmo tempo. Mas havia mais, o seu coração sentia-o, algo por detrás daquela armadura castanha e enrugada. No entanto nesse momento não pôde pensar muito no assunto, pois escutou uma voz inesperada que lhe fez brilhar os olhos de alegria. E essa voz chamava-a ao longe. Era Alexandrina.

Liriana olhou para as árvores à sua volta. Nenhuma delas lhe indicava o caminho a seguir, nenhuma delas parecia querer a sua salvação.

A voz voltou a soar, agora mais forte, mais próxima, e a jovem resolveu corresponder ao chamamento. ‒ Alexandrina! – gritou, o mais alto que podia, não deixando de observar todas as sombras, temendo ver

surgir algures outro animal feroz. Guardou o cristal no bolso, não iria precisar dele de momento, e esperou, ansiosa, pelo seu anjo da

guarda. A vegetação remexeu-se desordenadamente à sua frente e surgiu alguém de entre ela, com um manto a

envolver-lhe o corpo e o capuz puxado para baixo, revelando dois olhos azuis, uma face de tez ebúrnea e o cabelo tão negro quanto o ébano. Definitivamente, era a sua madrinha.

‒ Graças aos deuses que te encontrei! – declarou a mulher, com um suspiro aliviado, aproximando-se rapidamente. – Anda, vamos, temos de sair daqui o mais depressa possível, eles são em demasia.

Estendeu-lhe a mão enluvada, esperando que Liriana lhe desse a sua, mas algo a fez hesitar, talvez palavras que lhe soaram remotas, ou algo que o seu sexto sentido perturbado estava a tentar transmitir em réplicas de cautela. E isto fez os seus outros cinco sentidos aguçarem-se, lançando um olhar atento a Alexandrina. Já não sabia em quem confiar, tudo lhe parecia diferente e, no mínimo, estranho.

‒ Onde arranjaste esse manto? – perguntou, franzindo as sobrancelhas. Era uma questão simples, de resposta ainda mais simples, uma estupidez de alma perturbada. Mas se não o fizesse, a sua consciência chamar-lhe-ia incauta, desprevenida, como sempre fora.

‒ Então… é meu, Liriana – respondeu Alexandrina, olhando-a espantada. ‒ Mas deste-mo – observou a jovem desconfiada. ‒ Tinha um a mais, obviamente. Trouxe esse a contar contigo. Agora, por favor, vamos – pediu, num tom

que lhe pareceu mais que implorativo, uma necessidade que deveria ser cumprida. Liriana mordeu o lábio inferior sem saber o que fazer. Queria aceitar, queria com toda a força do mundo

sair dali. No entanto, havia algo de muito errado com Alexandrina, nem que fosse o tom da voz e, apesar de não perceber o porquê, esse facto revolvia-lhe o estômago.

‒ Onde está a tua espada? – perguntou, subitamente, após os seus olhos terem corrido toda a indumentária da madrinha. – Não tens armas?

Aquela pergunta pareceu apanhá-la desprevenida de início, de tal forma que levou a mão à cintura, impressionada.

‒ Ah! Tinha-me esquecido completamente e tu conseguiste assustar-me – sorriu, baixando as mãos. – Emprestei-a ao Leonardo, consigo fugir aos ataques dos lobos sem ela – respondeu, voltando a estender a mão. – Vamos.

‒ Não. – A resposta de Liriana era firme. Apesar de muitas vezes a sua curiosidade fazer das dela, tinha a certeza de que havia ali qualquer coisa muito mal contada. Fitou a mão que lhe era estendida. Alexis não tinha luvas, quando a resgatara. Lembrava-se de sentir a sua pele, de ver as mãos pálidas segurar as rédeas do cavalo, antes de a deixarem sozinha. – Tira as luvas.

‒ Desculpa? – inquiriu a mulher incrédula. – Liriana, por favor… ‒ Tira as luvas – ordenou, recuando alguns passos, até sentir as raízes da árvore sob os pés. Alexandrina deixou cair o braço estendido e endireitou-se, em todo o seu tamanho. A face modificou-se.

Nos lábios formou-se um sorriso irónico e os seus olhos, agora de brilho pouco simpático, começaram a sofrer uma descoloração arrepiante. O azul era sucessivamente devorado por um verde ácido e agressivo, muito seu conhecido, que a escarnecia.

‒ Inacreditável… o que as influências da Alexandrina te fazem! – exclamou com uma risada divertida, fitando-a. – Ficaste um bocadinho mais inteligente, desde o nosso último encontro há um dia atrás. O problema é que eu gostava mesmo muito que viesses comigo a bem, ou a mal, porque, com toda a humildade, preciso de

Page 85: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 85 -

ti. Num tom um pouco melodramático, tu és a minha salvação. Achas que consegues ter piedade de uma pobre alma como a minha?

Nada a preveniu para a raiva que aquela hipocrisia despertaria no seu ser, a revolta ao saber até que ponto um ente maligno conseguia chegar na sua malvadez e crueldade. No entanto, essa raiva conseguiu afastar-lhe o medo para um canto distante e fitou aquela cujo nome era Vinyriah, firme e corajosamente.

‒ Não passas de uma alma frustrada – declarou. Muito mais tarde, perguntar-se-ia sucessivas vezes donde surgira tanta ousadia para enfrentar alguém que tão facilmente a mataria.

O sorriso da mulher murchou um pouco, mas não desapareceu. ‒ A frustrada, minha pequena, não sou eu, é a querida Alexis – riu-se, revirando os olhos num acto que

deveria mostrar o óbvio da questão. – Ela é a mais fraca, sempre o foi, e sempre o será. E parece que a pobre idiota nunca percebeu isso.

‒ Não é ela que precisa de mim. – A verdade da afirmação propagou-se pela clareira, fazendo desta vez o sorriso de Vinyriah desaparecer. – És tu.

‒ Criança atrevida e impertinente… – rosnou, erguendo a mão pronta para lhe bater. No entanto, não foi isso que aconteceu. A rapidez com que se entrelaçaram os acontecimentos foi tal que

Liriana lhes perdeu a conta. No preciso momento em que a mão de Vinyriah se erguera, uma outra agarrara-lhe o pulso, mas ao mesmo tempo que isso aconteceu, um toque peculiarmente estranho envolveu os braços da jovem, arrastando-a para trás. Liriana voltou a cabeça e os seus olhos abriram-se num choque de cortar a respiração. O tronco da árvore que estava nas suas costas abrira-se como uma boca sem dentes, mostrando um interior negro, e tentava agora puxá-la para o seu interior, ajudado por alguns ramos.

Contorceu-se, tentando libertar-se daqueles tentáculos rústicos. Contudo estes limitavam-se a ranger qual madeira velha que era, arrastando-a. A abertura da árvore foi-se encerrando em seu redor e, poucos segundos depois, já nada via, além de uma escuridão diferente do normal.

Encontrava-se num lugar apertado e húmido, no entanto, suave. Todos os ruídos se tinham extinguido e tudo o que ouvia podia bem ser fruto da imaginação: murmúrios quase indistinguíveis de uma voz profunda e antiga que não compreendia. Estaria a falar com ela? O que lhe diria? Talvez para esperar, para não temer ou mesmo para se acalmar.

Fechou os olhos. Sentia-se cansada, queria dormir e não mais acordar, e parecia que aquele espaço acolhedor lhe dizia a mesma coisa numa língua muito remota, dizia-lhe para que abandonasse as preocupações e se deixasse levar. Talvez tudo aquilo fosse fruto do feitiço que Alexandrina lançara, durante o pedido de auxílio aos elementos.

Liriana encostou a fronte àquela substância de toque invulgar, sentindo o murmúrio distante mergulhar dentro de si. Sentia-o perto do coração e, apesar de não perceber as palavras ditas, o seu significado era agora tão claro como a pureza da inocência. Um sorriso aflorou-lhe aos lábios, ao mesmo tempo que a plenitude a inundou. A árvore falava-lhe num tom de anciã, oferecia-lhe ajuda, e mais, aconselhava-a. Queria que a sua pessoa se deixasse imiscuir nela e conhecesse algo distante, algo para além do que um dia pensara saber. Falava-lhe de sentimentos de orgulho, da nobreza da compaixão, do amor que a Terra Mãe sente pelos seus filhos que se abandonam a si próprios, acusando-a injustamente. E mais, queria oferecer-lhe os segredos da natureza, mas não de momento. Insurgiam coisas de maior importância e que precisavam de resolução urgente, e… ela era ainda demasiado jovem, demasiado pequena.

Liriana não se importou. Nunca imaginara ouvir uma árvore falar consigo, muito menos acolhê-la em si, como uma mãe ao seu filho, protegendo-a do mundo inóspito.

Uma lufada de ar fresco inspirou-a e ela abriu os olhos cor de mel. Já não estava dentro da árvore, mas não dera conta de sair. Teria adormecido e tudo aquilo não passara de um sonho? Piscou os olhos. À sua frente encontrava-se um homem de olhos peculiares – eram de tom amarelo com pupilas fendidas – e orelhas compridas e pontiagudas o suficiente para o considerar como sendo de outra espécie.

O impacto de ver alguém tão diferente fê-la recuar e cair ao tropeçar numa das raízes da árvore. O homem continuava a fitá-la e Liriana não conseguiu desviar os olhos daquele profundo e denso amarelo.

‒ A Vinyriah não volta tão cedo, podes estar descansada, Liriana. Em cada uma das mãos segurava um sabre, tão peculiares quanto o dono, de lâminas negras e compridas,

e brilho mortífero. Pareciam de cristal, apesar dessa ideia parecer mais que inverosímil. Ao longo de toda a lâmina delineava-se uma inscrição a prateado que a sua mente não compreendia.

Page 86: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 86 -

‒ Eu conheço-o? – perguntou, franzindo as sobrancelhas pensativamente. Apesar de nunca o ter visto, a sua postura era-lhe familiar. E aquele olhar…

‒ Pode-se dizer que sim, mas o melhor será a Alexandrina explicar-te tudo, a seu tempo, quando estivermos num lugar seguro.

Liriana ergueu-se, apoiando uma mão no chão e sentindo, ao mesmo tempo, uma dor aguda e pontual. Ao cair uma pedra fizera-lhe um corte nada simpático que lhe deixara a mão ensanguentada. O homem não pareceu ligar muito ao caso e virou-lhe as costas, lançando um olhar à floresta.

‒ Vamos, quanto mais depressa sairmos daqui melhor. ‒ Mas… e a Alexandrina? ‒ Encontrá-los-emos mais cedo ou mais tarde, vamos para o mesmo sítio, logo os caminhos não serão

muito diferentes. – O seu tom frio era intimidante, impondo um silêncio que a constrangeu. O facto é que o seguiu sem dizer uma única palavra, sem mesmo questionar se seria seguro fazê-lo, ou se

o estranho ser não seria aliado de Vinyriah. Acompanhar o seu passo era um prodígio deveras difícil e muitas foram as vezes que Liriana tropeçou no

que não via. Em nenhuma das ocasiões o homem se voltou para trás para se certificar de que ela estava bem, nem mesmo falou, como faria Alexandrina numa forma de consolação. Era como se não estivesse ali.

‒ Como se chama? – perguntou, decidida a quebrar o silêncio incómodo que pairava qual alma penada. Não obteve resposta e isso, além de deprimi-la um pouco, irritou-a, o que a levou a repetir a pergunta. O homem olhou para trás de soslaio e a jovem sentiu-se encolher sob o severo olhar de íris amarela. ‒ E para que te serve sabê-lo? – inquiriu. ‒ Bem… o senhor sabe o meu nome, penso que seja justo – observou. Não se lembrava de explicação

melhor a dar, sem ter que dizer toda a verdade, de que o silêncio a atormentava em demasia. Os olhos amarelos reviraram-se com pouca paciência e ele continuou a caminhada por entre as

sinuosidades do trilho que nem sequer existia, deixando Liriana boquiaberta de estupefacção. ‒ Landar. A jovem piscou os olhos sem saber ao que ele se referia. ‒ O quê? ‒ O meu nome é Landar – repetiu friamente. – Landar se Phanir. Sou um elfo, já agora. Liriana sentiu-se tentada a responder-lhe “é um prazer” mas não tinha a certeza de que fosse. Nunca vira

um elfo assim… de facto, não se podia dizer que tivesse visto algum elfo na vida, sem ser na sua própria imaginação e em alguns filmes de fantasia. Definitivamente havia qualquer coisa de muito estranho no homem, e não eram as orelhas pontiagudas, ou mesmo o amarelo dos olhos, ou as pupilas fendidas.

O silêncio perseguiu-os durante horas, porém nada os voltou a atacar, apesar de alguns uivos, muitos deles sofridos, se escutarem à distância. A escuridão da noite começou a diluir-se, o céu ganhando um leve tom mais claro, enquanto as estrelas desapareciam. As pernas e os pés doíam-lhe, e já era em vão tentar manter o passo de Landar, que por vezes perdia de vista, para depois voltar a encontrar, esperando-a, parado e com aquela expressão sempre gélida. De facto, era mais do que isso. Ele parecia estar a fazer aquilo por obrigação, contra a vontade.

Pararam por fim, quando o Sol já era visível no horizonte, lançando os seus raios para iluminar a floresta, tornando-a apelativa e não sombria. Deixara de escutar os lobos para poder ouvir as aves chilrearem. Todavia uma questão revolvia-lhe a mente: como estariam os outros?

‒ Senta-te e descansa um pouco. Vou ver se arranjo alguma coisa para comeres. Levantou a cabeça para ele, mas já o elfo lhe voltara as costas e desaparecia por entre a vegetação. Fez

então o que ele sugeriu ou ordenou, não tinha bem a certeza de qual dos termos seria mais correcto, devido ao tom utilizado. Encostou-se ao tronco de uma árvore e descalçou os ténis, esticando depois as pernas doridas, com um suspiro. Manteve-se em silêncio, não querendo chamar as atenções de nenhum ser vivo, enquanto pensava em tudo o que acontecera. Desde o princípio de Agosto que não fazia mais nada na vida sem ser pensar no que lhe acontecia dia após dia. Pegou num graveto e começou a fazer riscos no chão, tentando distrair-se enquanto aguardava o regresso de Landar. Esperava sinceramente que ele fosse um amigo da madrinha e não o contrário. Pelo menos parecia-lhe que ele a ajudara contra aquela mulher demoníaca…

Escutou um crocitar e ergueu a atenção para o ramo de uma árvore, onde um corvo a observava atentamente. A ave inclinou um pouco a cabeça, quando os olhares se cruzaram e esvoaçou pouco depois, mas não por sua causa. O olhar saltara da jovem para alguém acabado de chegar. Liriana quase que deu um salto,

Page 87: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 87 -

quando olhou em frente e viu o elfo que, de sobrancelhas franzidas, observava o afastar do corvo. Não escutara a sua chegada.

Com um gesto brusco, ele lançou-lhe duas maçãs amarelas. Não conseguiu apanhar nenhuma delas no ar, o que a levou a receber um olhar de desprezo por parte de Landar, que se foi encostar a um tronco, a uns bons metros de si, fechando as pálpebras.

‒ Quando te sentires suficientemente recuperada, continuamos. ‒ Sim… obrigada – murmurou, recuperando do chão ambas as maçãs e pousando-as sobre o colo. Deu

uma dentada na primeira, fazendo uma careta logo a seguir. Não eram propriamente doces, mas nada mais havia para comer, por isso mastigou-as, sem se manifestar verbalmente.

Quando acabou a refeição, pensou que seria melhor continuarem, mesmo que se sentisse de rastos. E por isso calçou-se e levantou-se, sacudindo as calças. Queria alcançar Alexis e Leonardo o mais depressa que fosse possível. O elfo abriu um dos olhos, observando-a, antes de se levantar também, de forma graciosa e invejável. Ainda não dera muita atenção às vestes que ele trajava, mas agora reparava que estava totalmente vestido de negro – botas, calças, camisa… tudo da mesma cor, combinando com o cabelo comprido e liso, que lhe dava um pouco abaixo da cintura, preso com uma fita, adivinhe-se, também ela negra. Tudo isso enfatizava a pele que a roupa deixava a descoberto, sendo o rosto um pouco mais pálido do que o de Alexandrina.

Partiram logo de seguida, caminhando até ao anoitecer. Liriana não tinha a certeza de como ainda conseguia manter-se de pé. Aquelas maçãs deveriam ter algum elixir revitalizante que a impedira de cair num qualquer buraco escondido pelas silvas, no meio da floresta. Descansaram mais um pouco, mas Landar parecia não estar disposto a parar enquanto ela não desmaiasse, o que não deveria demorar muito para acontecer.

Quando os seus pés pareciam não aguentar mais, parou de andar, apoiando-se com um braço de encontro a um tronco retorcido. Sem aviso, um novo arrepio percorreu-a (e malditos fossem aqueles constantes arrepios), fazendo-a olhar em volta para os ramos que se abanavam ao vento. Passava-se alguma coisa que os seus olhos não alcançavam.

Como um sinal de confirmação à sua sensação de perigo, uma voz soou no ar. Era masculina e tinha um tom de insanidade e fúria.

‒ Vem a mim, elfo maldito. Aparece se tens coragem para tal e enfrenta-me como um homem, rato do lixo!

Era a voz do homem que vira, na tarde do dia anterior, a combater contra Alexandrina e que saíra derrotado: Karnaugh. Mas donde surgira e porque se encontrava ali? Teria seguido Alexandrina? Assim sendo, onde se encontrava ela?

Liriana olhou para Landar, esperando alguma preocupação da sua parte, mas a única coisa que viu foi um sorriso frio. Ele olhava para um dos lados da floresta indistinguível, esperando. E não foi preciso fazê-lo por muito tempo.

A jovem vislumbrou um brilho estranho erguer-se no ar e, quase no mesmo instante, um enorme ramo cortado resvalou a poucos metros de si, permitindo que o luar iluminasse parte daquela área. Liriana saltara do sítio onde estava, recuando alguns passos, mais do que assustada. Karnaugh apareceu pouco depois e havia algo de diferente nele, no entanto nada que o tornasse menos abominável. Não trazia um, mas dois machados enormes e de lâmina perigosamente mortal, uma cota de malha que à primeira vista parecia estar enferrujada, mas que, com mais atenção, revelaria estar marejada em sangue seco, e os olhos mais maníacos que um dia lhe foram dados a conhecer.

A primeira pessoa que o homem viu foi Liriana, mas depressa o seu olhar caiu sobre Landar, aumentando nele a fúria e em Landar o sorriso.

Para alimentar ainda mais o medo de Liriana, um uivo soou não muito longe dali, prometendo uma aproximação veloz. Alguém os queria ver mais do que mortos, se isso fosse alguma vez possível. No final de contas, o que viria depois da morte? Isso só os próprios mortos poderiam responder… Abanou a cabeça para afastar as ideias idiotas.

‒ Chamas por um elfo? Eis-me aqui, penso que já notaste. Vieste porque a piedade deixou vivo o que não viveria se um assassino o matasse. Eu sou a pessoa certa para resolver o assunto que ficou pendente. A mim não me ensinaram a piedade para com atrocidades da natureza e, apesar de me parecer que a inteligência não te foi concedida à nascença, penso que percebeste ao que me referia. – O sorriso sarcástico de Landar bailava-lhe nos lábios enquanto observava uma das próprias espadas negras, como se dialogasse com ela e não com o homem. Os olhos do elfo ergueram-se de repente, fitando Karnaugh, e um novo arrepio percorreu Liriana, assim como o

Page 88: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 88 -

homem. Estava com medo, pois aquele olhar não poderia ser mais explícito… e era tão diferente do de Alexandrina. Era óbvio para todos o que se iria passar nos próximos segundos. – E tempo é algo que me falta, por isso farei questão de ser rápido.

O que se passou a seguir sucedeu-se a uma tal velocidade que o próprio Karnaugh mal se apercebeu da aproximação da morte. Landar, numa pequena corrida e num movimento rápido de uma das suas armas mortais, degolara-o. A cabeça caiu para a frente e o resto do corpo para trás de uma forma que lhe pareceu horrivelmente lenta, marcada por um esguicho de sangue.

Liriana fitou o corpo, totalmente incapacitada de reacções pelo horror presenciado. Era demasiado para uma simples humana e Landar não percebera isso. Vivia do seu gelo interior, da sua impiedade.

O elfo virou as costas ao corpo sem vida, embainhando as espadas e voltou a encaminhar-se para um qualquer sítio que Liriana desconhecia, mas foi obrigado a parar, pois ela não o seguia.

‒ Vamos? ‒ Porque o matou? – perguntou, sem tirar os olhos do corpo sem vida que se deixava arrefecer naquele

ambiente assombrado. ‒ Porque, se não o fizesse, ele matava-nos a nós, é simples. E, pelo que sei, ele já o merecia há muito

tempo. A Alexandrina tem a mão demasiado leve e… ‒ Mas nem lhe deu tempo para que se defendesse! O senhor matou-o a sangue frio, sorriu quando o fez! Era agora óbvia a sua indignação, e o olhar que pousou em Landar não acalentava bondade ou qualquer

género de sentimento acolhedor, somente pura repulsa. ‒ Isso são pormenores irrelevantes e de pouco significado que a ninguém interessam – declarou friamente. ‒ A mim interessam. Interessam a qualquer pessoa que possua consciência. A Alexandrina concordaria

comigo. ‒ Mas a Alexandrina não está aqui para concordar ou discordar. – O seu tom dizia-lhe que a paciência de

Landar estava a esgotar-se. – Agora vamos embora antes que o sangue alcance o faro dos lobos. ‒ Não vou a lado algum com um assassino. Os olhos de Landar estreitaram-se na escuridão. A resposta não lhe agradara. ‒ Não acredito que me queira levar de encontro a Alexandrina. O senhor deve ter sido mandado pela…

pela… bruxa! O elfo nada disse e a jovem percebia que ele meditava nalgum pensamento profundo, pois a sua expressão

fria suavizara-se e o olhar tornara-se pouco nítido, até que, por fim, regressou a si. ‒ Talvez eu seja um assassino, talvez. Mas não desconfies da minha fidelidade para com a tua madrinha.

– O seu pedido era sincero e, apesar de tudo, sossegou um pouco Liriana. Os dois fitaram-se durante algum tempo, medindo-se mutuamente e, por fim, foi Landar que sorriu. ‒ Julguei-te mal, Liriana – disse, simplesmente, deixando a jovem a meditar a que julgamento se referiria. Vários passos quebraram o silêncio entre a sua conversa e os uivos inconstantes dos lobos. Uma luz

alaranjada começou a propagar-se até eles e, poucos segundos depois, surgiram os seus portadores, por entre a vegetação que se prolongava por locais que Liriana nunca conseguiria imaginar.

Alexandrina trazia na palma da sua mão uma bola de chamas que lhes iluminava o caminho de uma forma quente e acolhedora e, atrás de si, caminhava Leonardo, com o objecto dourado ainda na mão, que se lembrava agora ser um Ankh, a antiga cruz egípcia; os outros dois desconhecidos seguiam-nos. Traziam os cavalos pelas rédeas e o garanhão negro estava novamente com a legítima dona, não parecendo estar magoado.

Os olhos azuis da sua madrinha passaram primeiro por si, depois por Landar e caíram por último sobre o corpo de Karnaugh. Pareceu não se importar com o facto de o homem jazer decepado entre as ervas, mas o seu olhar era sério.

‒ Nós ouvimo-lo e seguimos-lhe a voz – declarou para Landar. – Está tudo bem com vocês? ‒ Não podíamos estar melhor – respondeu o elfo, olhando também para o corpo. – Mas agora penso que a

Liriana ficará melhor contigo. Eu vou ver o que se passa nas redondezas. Se alguma coisa fora do normal acontecer, aviso de imediato.

‒ Muito bem, mas tem cuidado. ‒ Eu não preciso de ter cuidado, os outros é que precisam de o ter em relação a mim – declarou com um

sorriso, e virou-lhes as costas, desaparecendo por entre a vegetação. ‒ O pompom anda muito convencido, não anda? – Leonardo riu-se, divertido, como se estivessem

unicamente a acampar e aquilo fosse um jogo muitíssimo interessante.

Page 89: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 89 -

‒ O pompom? – inquiriu Liriana, franzindo as sobrancelhas. A imagem que lhe surgira na mente não poderia estar correcta, não tinha o mínimo cabimento, era impossível. Mas aqueles orbes felinos…

Alexandrina lançou um olhar reprovador ao amigo, dando-lhe conta de que tinha falado demais. ‒ Porventura não me enganarei ao confirmar o que estás a pensar – murmurou para Liriana, contemplando

a densa bola de fogo pensativamente. – Mas precisava de te ter sob vigia, para que nada de mal te acontecesse. No entanto, falhei. E o resultado dessa falha está bem à vista.

Liriana sentia o desprezo que Alexandrina transmitia por si própria, e via-o nos seus sérios olhos azuis, onde bruxuleavam aquelas labaredas vivas da sua mão.

‒ Ninguém teve culpa, o mal tem uma tendência grotesca para se infiltrar por qualquer fresta, por mais pequena que seja. E está sempre à espreita. – Leonardo tentava suavizar a situação, num tom calmo. – Vê o lado positivo, foi bom a Vinyriah ter regressado agora e não daqui a cem anos, porque agora podemos detê-la. Daqui a cem anos não cá estaríamos para o fazer.

‒ E se não… – deteve-se, como se tentasse afastar esse pensamento, e ergueu os olhos para as poucas estrelas que se mostravam timidamente por entre a folhagem densa. – Tens razão, Leonardo. É melhor continuarmos o nosso caminho, a segurança de Nelgadir espera por nós. Só não sei por quanto tempo mais.

Liriana piscou os olhos, mentalizando-se da informação que lhe tinham arremessado. Estava impávida. O significado de tudo aquilo era espantoso, mas ao mesmo tempo…

Sentiu-se corar. Ela andara com um suposto gato preto ao colo, mais do que uma vez; fizera-lhe festas e, inclusive, tinha dormido na mesma cama que ele, sempre pensando que não passava de um inocente animal de estimação, mesmo que aqueles olhos amarelos lhe segredassem muito mais.

‒ Não penses nisso por agora – pediu Leonardo, pousando-lhe a mão no ombro. – O importante é que estás bem e junto a nós. Vá, desta vez vens no meu cavalo que a tua madrinha precisa de pensar um pouco nos últimos acontecimentos. E está descansada que eu não me transformo nem em gato, nem em pantera, nem em nenhum animal que me valha. – O seu tom continuava sempre divertido e Liriana sentiu-se a sorrir. Definitivamente Leonardo tinha uma paciência de santo. – Isto é, se não te importares de viajar com o Senhor dos Mortos.

‒ Senhor dos Mortos? ‒ Acabei de me auto-intitular. Já me imaginaste com um exército de zombies e esqueletos? Era

fenomenal, não era? Liriana riu-se mesmo sem querer e reparou que Alexandrina também mostrara um sorriso que lhe

suavizara a expressão de auto-censura. ‒ Acabou-se a pausa – ordenou, sem largar as rédeas do cavalo. – E a Liriana vem comigo. ‒ Não, o Lírio do Campo vem comigo. Não sejas uma madrinha possessiva, porque eu também me auto-

intitulei padrinho por alguns dias. Logo, é a minha vez de levá-la. Alexis revirou os olhos e virou-lhes as costas com um encolher de ombros, montando o seu cavalo,

enquanto os outros esperavam que Liriana e Leonardo fizessem o mesmo. Os uivos continuavam a persegui-los, mas nenhum lobo se aproximou deles, e isso era realmente um

enigma para Liriana. Que feitiço os poderia afastar? Cavalgaram a uma velocidade constante até se começar a ouvir o barulho de água corrente por entre a

noite silenciosa, penetrando-a com uma lufada de ar fresco. ‒ Devemos estar perto de Thornigan – disse-lhes Alexandrina. – A ponte Ehlenia não deve estar muito

longe, temos que nos acautelar. ‒ Onde foi o Landar? – quis saber Leonardo. ‒ Provavelmente buscar ajuda, o mais depressa possível. Uma horda de zunaris espera por nós na ponte.

O Ardanir está com eles. Nós somos cinco, por isso por mais magia que utilizemos, eles vencer-nos-ão. Liriana olhou espantada para Alexandrina. Como poderia ela saber tudo aquilo se a única coisa que

conseguia ver donde estava eram ramos de árvores? ‒ Mas como podes ter a certeza de que ele o fez? Às vezes confias demasiado no Landar. ‒ Leonardo, eu conheço-o, e sei que o fez. – A resposta de Alexandrina fora categórica e colocara fim à

conversa. O efeito do silêncio, só quebrado pelo som da água que corria com força não muito longe dali, fez Liriana

estranhar ainda mais o ambiente em redor. Aquela cavalgada teria um fim? Olhou para o alto pouco distante das copas das árvores. Alguns olhos amarelados espreitavam-nos, vigilantes.

Page 90: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 90 -

‒ Arden, Cisdahen, tenham cuidado, olhos bem abertos pois vou apagar a chama. Temos de passar despercebidos o maior tempo possível.

Os irmãos acenaram em concordância com um ar sério. ‒ Sabes o que fazer se não forem só zunaris a estarem presentes – declarou, lançando um olhar ao amigo.

– E, Liriana, não tenhas medo. Parece um pouco imoral pedir-te isto, tendo em conta a situação em que nos encontramos, mas já te expliquei alguns dos porquês uma vez. Talvez daqui a umas horas te explique os que faltam para utilizar a palavra “todos”.

A pequena sorriu-lhe, sentindo de que forma expoente Alexandrina era diferente de Vinyriah. Como poderiam ser irmãs gémeas?

‒ Precisam que faça alguma coisa? – voluntariou-se. Queria ajudar, apesar de não saber bem no quê. No entanto estava cansada de se sentir um fardo inútil, isso caso fosse possível os fardos serem úteis. Queria mudar essa situação.

‒ Não é preciso, mas talvez mais tarde o possas fazer. E nessa altura terás todo o meu apoio. Por enquanto só quero que te mantenhas segura.

Após aquela resposta continuaram o seu caminho por entre a noite, agora com a pequena esfera de chamas apagada. A floresta tornava-se menos densa a cada passo que davam e o luar chegava até eles de uma forma cautelosa e fria. Pressentia-se algo no ar, e esse algo nada tinha de convidativo.

Finalmente conseguiram ver o rio. Liriana tinha a certeza de que nunca antes contemplara nada assim, ao vivo e a cores. Uma extensão grandiosa de água prolongava-se turbulentamente até à outra margem distante. O leito do rio, em toda a sua largura, parecia constituído por quilómetros de água revolta. Era impossível atravessá-lo a nado.

A menos de três quilómetros à sua frente conseguiu discernir os contornos de uma enorme ponte que cruzava o rio de um lado ao outro, ou assim se fazia crer, pois poucos metros depois do seu início estendia-se uma bruma densa que impedia qualquer um de saber onde poderia acabar, isso se acabasse.

Um piar agudo e baixo fê-la olhar para cima, para o veludo azul-escuro do céu. Um falcão peregrino voava por cima das suas cabeças. A ave olhou cada um atentamente e afastou-se por cima do rio, sem mais delongas.

‒ É o sinal, eles chegaram – disse Alexandrina num tom baixo, mas audível. Parou o cavalo e olhou pensativamente para Liriana e Leonardo. – Talvez fosse melhor…

‒ Esquece isso, nada de mal acontecerá à Liriana. Todos e os mais poderosos espíritos defendê-la-ão. E Midarvia está do nosso lado – garantiu Leonardo com um sorriso.

‒ Espero sinceramente que tenhas razão, meu amigo – suspirou. – Não percamos tempo, eles já sabem que estamos aqui. Esperam-nos à entrada da ponte e lá ficarão até chegarmos.

‒ Não te preocupes – murmurou Leonardo à pequena jovem. – A maluca da tua madrinha sabe o que faz. Liriana acreditava no que ele dizia. No entanto o medo continuava consigo: medo pelos outros e por si

também, medo por não voltar a ver os pais, ou mesmo por não se poder despedir da enigmática Mansão Adriática.

A ponte de Ehlenia começou a aproximar-se cada vez mais, crescendo em tamanho e beleza. Mas uma negritude preenchia a base da entrada, no que lhe parecia ser uma barreira intransponível. Engoliu em seco, respirando fundo para se acalmar. Não se poderia deixar levar novamente, não agora que estava junto de quem a poderia ajudar.

A negra escolta foi-se tornando mais visível. Era constituída por seres desgrenhados, de pele que lhe parecia carbonizada de tão preta ser e olhos intensos, cor de sangue. Alguns trajavam uma armadura também na mesma cor que a sua pele, outros, cotas de malha enferrujadas, e nas mãos de dedos e unhas compridas, traziam armas prontas para matar.

À frente daquela escolta encontravam-se Ardanir Riargion e Vinyriah, esperando-os pacientemente, cada um com sua expressão cravada no rosto. A feiticeira exibia um típico sorriso irónico de quem tem a vitória nas mãos, contudo Ardanir parecia não pensar da mesma forma. Estava sério, e mais haveria para descortinar na sua expressão.

‒ Sejas bem aparecida, querida irmã – manifestou-se a feiticeira quando os quatro cavalos pararam a quinze metros de distância deles. – Estávamos ansiosos por vos ver e ter uma pequena conversa.

‒ Isso Vinyriah, é coisa de que não me convences, nem a ninguém – volveu Alexandrina, de forma rude e fria.

Page 91: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 91 -

‒ Foi essa a educação que os pais te deram? Pelo que parece, precisavas deles durante mais uns tempos. Desculpa, querida, não fazia a mínima ideia. Se soubesse, a nossa biblioteca não se tinha tornado a cena de um crime, tão cedo – declarou, denotando um falso tom lamentoso. – É uma pena, sinceramente.

Liriana olhou de lado para Alexandrina, os olhos derramando compaixão. Era então essa a grande razão que a levava a não penetrar na biblioteca. Vinyriah era realmente detestável. Não compreendia como poderia haver no mundo alguém tão horrível.

‒ Alexandrina, não oiças essa coisa – pediu Leonardo, dando voz aos pensamentos da jovem. ‒ Coisa? – inquiriu Vinyriah, franzindo as sobrancelhas. – Leonardo, meu amigo, isso foi extremamente

ofensivo. Cada pedaço do meu coração ressentiu-se deveras com essas palavras impensadas. ‒ Que coração, Vinyriah? O que não possuis? ‒ Com quem aprendeste essas palavras tão sagazes, necromante? Espantas-me bastante. Em dez anos

como as pessoas evoluem! Tornam-se mais bífidas. Se esperasse mais, veria um conjunto de magos negros a ocupar o meu lugar. Agradeço-te sinceramente, Liriana. Sem ti eu não estaria aqui, mas antes a vaguear algures pelas sombras. E que agradáveis elas são, uma companhia adorável. É pena nem todos as poderem experimentar, por agora.

As palavras afectavam cada um num nível de intensidade diferente. Mas os que sofriam de consequências mais recentes ressentiam-se mais.

‒ Nem devias ter saído de lá, elas deviam ter-te aprisionado na morte, pois deveria ser esse o destino dos assassinos! A morte! – Arden parecia prestes a fazer uma imprudência. A sua mão segurava firmemente o punho da espada embainhada que estremecia a cada palavra que o rapaz dizia.

‒ Não sei quem és, rapazito, mas a minha pessoa é imortal, não conhece essa divina oferenda dos deuses. E aprende uma coisa, todos vivemos da morte dos outros. Ah! E lembra-te também disto: a vida é só o longo, inexorável e inglório caminho que todos vocês percorrem até à morte. Vocês, não eu.

Arden soltou um rosnar de fera enfurecida, mas Alexandrina implorou para que ele se acalmasse. ‒ Não vale a pena gastares os teus argumentos com ela, nunca os compreenderia. Nada mais foi dito, após isto. Mas o que haveria a dizer? Eles queriam passar para o outro lado da ponte e

estavam em minoria, os outros não queriam que eles passassem e estavam em maioria. Era fácil de prever que um dos grupos esperava um milagre para poder ultrapassar o seu problema.

‒ E se nos deixássemos de esperas vãs? Eu quero a Liriana, nada mais. Cedam-ma de livre vontade e correrá tudo bem.

‒ Minha querida irmã, nunca te imaginei tão ingénua. Desde quando trato a minha afilhada como um objecto inanimado? E porque haveria de entregá-la quando sei que não passas de um ser pérfido e mesquinho? Julgas-me mal, eu não sou tão idiota quanto isso. Confesso que fui um pouco irrealista ao não te matar fisicamente, ao enviar-te só para o mundo das sombras. Mas não o farei novamente.

‒ Pois não, porque desta vez serei eu a fazê-lo e, ao contrário de ti, não possuo piedade. Não preciso dessas futilidades sentimentais.

A jovem mordeu o lábio inferior. Aquela discussão não lhe agradava minimamente. Perguntava-se qual a ideia de Alexandrina ao alimentá-la cada vez mais.

‒ Sim, Vinyriah, já todos sabem dessa tua virtude grandiosa do desamar. Também o sabes, não é assim, Ardanir? Que esse ser só é capaz de odiar tudo e todos? – Alexandrina dirigiu-se-lhe num tom irónico, mas havia um apelo à razão na sua voz, para que o vampiro acordasse.

Este olhou para ela, mas não se atreveu a abrir a boca. Vinyriah fê-lo por ele. ‒ A barreira entre o ódio e o amor é ténue… ‒ Mas intransponível para alguns. – A voz de Liriana fez-se ouvir. A madrinha olhou para trás e lançou-

lhe um sorriso de apoio. A sua frase fora um ponto vital da razão. Vinyriah mostrou um esgar de ironia. Toda aquela conversa estava a enjoá-la, e aquela impavidez

irritava-a. Tinham de agir. Ela queria os seus poderes de volta e iria tê-los. ‒ Alexandrina, entrega já a rapariga ou ordeno que os zunaris ataquem – ameaçou. ‒ Nunca te entregarei a minha afilhada… ‒ E desde quando te importas com a tua afilhada? Nunca quiseste saber dela! De um momento para o

outro acordaste para a vida, foi? Ou existe algo mais que lhe devas contar? O teu inexplicável interesse deve ter uma razão. – As palavras de Vinyriah eram corrosivas e, apesar de se dirigirem a Alexandrina, eram destinadas a atingir Liriana, incutindo-lhe dúvidas. Mas se esta última lhe deu ouvidos, não o fez notar.

Page 92: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 92 -

‒ Isso só a mim e à Liriana diz respeito, por isso deixa de te meter nas vidas alheias, que é má educação. ‒ Sabes que a vingança é um defeito bem maior do que o assassinato, principalmente vinda de uma mártir

que espalha moral e ética pelos sete cantos do mundo? – observou, mudando de assunto sem razão aparente. – Sempre me quiseste matar, mas nunca conseguiste, porque sou melhor, muito melhor que tu que nada vales. Viste o que fiz à tua vida? Retalhei-a aos poucos, e um dia nada sobrará além de estilhaços de agonia. E aí sim, pedirás piedade pela tua alma destroçada, pedir-me-ás que te mate. E eu fá-lo-ei, com um sorriso nos lábios, lembrando-te repetitivamente todas as mortes, todo o sangue derramado. E sentir-te-ás culpada por todo ele, pois o és.

‒ Não, não é, ser desprezível! Porque não te calas?! – perguntou Liriana, sentindo a irritação consumi-la. Aquela mulher era definitivamente um demónio nascido para levar tudo à desgraça. Tinha que ser detida.

‒ É, talvez a Liriana tenha razão, por vezes o silêncio fala mais do que as próprias palavras. Escutem o silêncio… Não vos transmite o meu eco? – Vinyriah deu uma gargalhada divertida. – Vocês são mesmo muito engraçados, diga-se de passagem. A vossa cara… ó deuses! Dá-me pena até de vos matar.

‒ Será pena? Ou medo? – perguntou Leonardo. – Medo de que te voltemos a enviar, desta vez permanentemente, para um mundo amaldiçoado.

‒ Não vale a pena, Leonardo, já estou num, e amaldiçoado por mim. Por isso o vosso trabalho será vão e, por fim, perecerão. Ora, que engraçado, fiz uma rima com a vossa morte! – Do seu sorriso repercutia-se o sabor do fel, tão azedo que arrepiava a pele de cada um deles. E aqueles olhos davam-lhe a cor de um veneno mortífero.

Liriana fechou os olhos, tentando varrer aquela imagem horrenda da consciência. O unguento frio e assassino que se vertia sobre eles parecia infindável e prestes a corroê-los. Conseguiriam suportá-lo por mais tempo? Ou ele cobri-los-ia, sufocando-os?

No entanto, as palavras que Alexandrina disse a seguir fizeram Vinyriah sorrir ainda mais, não de contentamento, mas da sua típica e pura ironia, algo em que conseguia ser terrivelmente sublime.

‒ Porque não atacas já e acabas com isto de vez? Não é isso que queres? ‒ Maninha… eu sei que tens alguma escondida na manga e até pressinto o envolvimento do Landar. Não

sei se deva esperar para ver alguma tentativa desesperada de salvamento. O que achas Ardanir? O vampiro olhou para cada um deles, e agora Liriana tinha a certeza do prateado dos seus olhos, tão

impenetrável e cortante. ‒ O que eu acho são meras suposições, mas se queres saber, Nelgadir fica a um passo daqui e o seu

exército está bem preparado. Se o Landar não se encontra presente a ajudar os amigos é porque se passa algo e deveremos acautelar-nos. Agir antes que seja tarde.

‒ Seriam tão audazes ao ponto de fazê-lo? Aqueles elfos cobardes? Aqueles bichinhos do mato que veneram as árvores? – perguntou, olhando para a Lua com um sorriso torto. – O que achas, Midarvia? Os loucos dos teus filhos fariam isso? Bem, provavelmente sim, são loucos – concluiu, com um encolher de ombros. – E totalmente cegos. Pobres idiotas.

Os segundos pareciam passar cada vez mais lentamente. A brisa da noite varria-os, remexendo-lhes no cabelo com leveza e tornando a espera ainda mais penosa. No entanto, o vento fraco trazia uma atmosfera mais densa. Liriana olhou também para o céu escuro. A Lua reflectia-se pálida na escuridão, mas uma pequena mancha negra tingiu-a por um segundo, mancha essa que depressa se esquivou da luz num voo rápido e cortante. O falcão tinha regressado. Soltou um pio grave de aviso.

‒ Bem, como sempre me pareceu, os Nelgadirs são loucos em me enfrentar, agora que voltei… ‒ Que voltaste fraca, sedenta de algo que dificilmente terás: a vida da Liriana, da Alexis, ou dos teus

desgraçados poderes enclausurados dentro de um bastão e guardados em Nelgadir? – inquiriu Leonardo. – Combaterás elfos, espíritos, e os próprios Elementos da Terra Mãe! A louca aqui és tu, e o Ardanir cego. E os vossos seguidores não passam de monstros que vos ignoram e desprezam. Querem sangue, e se um dia for o vosso, não me espantarei.

Vinyriah deixou escapar um esgar de desagrado. As mãos enrugadas cerravam-se com força, mas tentava não transmitir a fúria para a face suave e quase sem mácula de maldade, não fossem as pequenas e desagradáveis rugas que rodeavam os recantos dos lábios avermelhados e o cruel verde dos olhos.

Sem aviso, cortando o ar com rapidez e parecida vinda dos céus, chegou uma flecha que se cravou aos pés da feiticeira.

Page 93: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 93 -

‒ Que impertinência… – rosnou Vinyriah, baixando-se para a apanhar. Segurou-a entre os dedos e observou-a, como se não passasse de um objecto desprezível. – Todos vós morrereis, mais cedo do que alguma vez imaginastes. Fazer-vos-ei em cinzas!

Ao proferir estas palavras fechou a mão com força e a flecha incendiou-se de repente, com um fervilhar arrepiante. Em menos de segundos, sobravam unicamente as suas cinzas, pedaços poeirentos de tom cinzento-escuro. Nada mais ficara, nem mesmo a ponta em metal. Fora consumida pela sua fúria.

Se sem o tal dito bastão Vinyriah fazia aquilo, Liriana preferia nem imaginar o que aconteceria se o possuísse.

‒ Ataquem-nos – ordenou num tom de voz baixo. Mal os monstros negros deram um passo em frente para obedecer à ordem, uma chuva de flechas vinda

do nada, abateu-se sobre eles, liquidando quase todos os membros da primeira fileira, sem hesitação. Liriana fechou os olhos ao ver a primeira flecha penetrar mortalmente nas costas de um zunari, por entre

os anéis de metal da sua suja e gasta cota de malha. A morte era dolorosa para si, mesmo entre monstros sanguinários. Ouvia os seus gritos agrestes que se infiltravam no coração, ferindo-o com malvadez.

‒ Virão mais donde aquelas vieram, se não estou totalmente errada – declarou Alexandrina, com um encolher de ombros. – Acho que estás em desvantagem numérica e estratégica. Estás cercada. Pensa bem antes do teu próximo passo.

Vinyriah correu os olhos por todos, trespassando-os com o ódio da sua alma ressequida. ‒ Isto não fica assim, Alexandrina. Arrepender-te-ás por tudo o que me fizeste passar. Ao fazer esta ameaça, o seu corpo desfez-se numa mistura de pó e fumo, sendo levada pela brisa que a

transportou para um qualquer lugar, num sopro em que se podia inalar a repugnância do seu espírito. Riargion limitou-se a imitá-la, esfumando-se na noite e deixando-os a sós com os zunaris raivosos,

sedentos do seu sangue como vampiros esfomeados. O som preciso da morte rompeu o ar e disse a Liriana que um novo ataque fora executado fria e

calculadamente, tendo como objectivo a total dizimação da horda de zunaris. E não foram precisos mais do que segundos para que todos estivessem caídos na terra húmida da noite. Os muitos que tentaram fugir jaziam igualmente mortos, trespassados sem piedade, pois não a mereciam. E o único que os tentara atacar fora decapitado pela espada de Arden que se adiantara a qualquer um, com a sede de vingança ainda a pulsar em si.

A ponte estava assim livre de entraves, exibindo toda a sua magnificência de granito branco, polida para ser uma perfeita passagem para outro mundo. Liriana não acreditava que mãos humanas a tivessem construído. No seu alto arqueado erguia-se uma lua prateada em quarto crescente. Emanava a mesma sensação que as portas que outrora guardavam e aprisionavam Vinyriah, talvez um pouco mais melancólica, mas mesmo assim de serenidade.

‒ Nelgadir espera por nós – afirmou Alexandrina, voltando o corcel negro, de forma a olhar todos os presentes. – Mantenham-se unidos durante a travessia, não quero que ninguém se perca no nevoeiro. Se o fizerem, podem não voltar a ver a luz do dia.

Aquelas palavras dirigiam-se a Arden e Cisdahen, contudo Liriana sentiu que também eram um aviso feito a si, um aviso de cautela para que não se deixasse enganar pelo que aparentemente seria vulgar.

Um assentimento mudo propagou-se entre eles. Ninguém duvidava do misticismo que envolvia o seu mundo e, apesar de aquele mundo não ser o seu, Liriana também não duvidava.

Page 94: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 94 -

X

Nelgadir, A Terra dos Elfos

Que resguardam as brumas somente tuas,

Deusa minha do alumiar? Que escondem no seu envolver, �o seu latente modo de embalo?

Um brilho distante que se empluma �um erguer ascendente de Deus? Oh! Mas vejo-o ao meu alcance.

É o amanhecer; é ele! Que me espera de braços abertos

�um sôfrego abraçar. Vou a ele e deixo-te, por fim,

Para talvez um dia a ti retornar.

“Lua”

Os cavalos pisaram a ponte sem receio, penetrando naquela leve nébula inicial que se foi adensando a cada metro que avançavam. Galopavam juntos, não deixando que Arden e a irmã se afastassem mais do que cinquenta centímetros de algum deles. Porém, se era tão possível que se perdessem, Liriana perguntava-se como seria que Alexandrina e Leonardo se guiavam sem pistas por entre a palidez do que nada viam.

Soltou um suspiro inaudível. Resumido e concluindo, nas suas mãos só pendiam perguntas e mais perguntas. Eram unicamente esses os fragmentos impalpáveis onde se podia agarrar, e não lhe pareciam salva-vidas muito fiáveis. Não tardaria nada a ter dúvidas sobre a sua própria identidade se assim continuasse.

“E o que guardaria aquele nevoeiro?” “�ão, outra pergunta não!” Naquela atmosfera, Liriana sentiu os cabelos humedecerem com as pequenas gotinhas de água que se

sustinham pendentes no ar e que começavam a gelar-lhe o corpo, apesar da capa que a sua madrinha lhe oferecera ser resistente e quente. Tinha a sensação, ou talvez mais que isso, de que aquilo era mais do que um mero fenómeno da natureza.

Continuaram a avançar vagarosamente. Pareciam não querer pôr um pé em falso, não se perderem de um caminho demarcado. O que aconteceria se o fizessem? Ficariam somente perdidos ou algo os esperava pronto para os devorar?

Um arrepio percorreu-a ao imaginar dois olhos esbranquiçados que se confundiam nas brumas, espreitando-os, ávidos das suas vidas.

Não! Lá estava ela novamente a dar demasiadas asas à sua imaginação. Definitivamente, nada poderia esconder-se ali, somente aquele tom esgazeado. Tinha que se manter firme nesse pensamento. Navegar pela surrealidade não a levaria a lado nenhum.

‒ Parem – ordenou Alexandrina. – É aqui a passagem. Liriana olhou em volta. Ali não havia nada, só o frio parado e humedecido do nevoeiro. E não era a única

a pensar daquela forma. Houve alguém com coragem suficiente para colocar a dúvida por palavras. ‒ Aqui nada há além desta nébula que nos cega e impede de ver o inimigo! – A rudeza e asperidade da

voz de Arden elevaram-se de forma indignada. – Para onde nos levais, feiticeira? Para o vale de Scanethum? ‒ Para isso bastaria ter-te cortado a garganta há uns dias atrás. Mas não o fiz, pois não? Porque haveria

então de vos guiar para a morte depois de ter cedido a minha ajuda? Não preciso de vós para nada, pelo que parece. Sei defender-me, tenho um necromante comigo e um elfo Norhen. Então, trouxe-vos como isco para a

Page 95: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 95 -

Vinyriah? Bem, ela é deveras perversa, mas penso que ainda não se tornou canibal, tendo em conta que, se não me engano, todos nós a enojamos. – Fez uma pausa. – Compreendeste onde quero chegar, Arden?

Mesmo que não o conseguisse observar como gostaria, por entre a nébula, a reacção do rapaz àquelas palavras era nítida. Até saírem dali, Arden não diria nada mais que pudesse ser refutado.

Alexandrina desceu do cavalo e olhou, com um sorriso, para o que a rodeava, como se reconhecesse cada palmo em redor. Ergueu a mão à sua frente, à altura do peito, trespassando o nevoeiro, e o impossível aconteceu mesmo diante do olhar de todos eles. Em volta da sua mão pálida, a bruma começou a dissipar-se, diluindo-se para longe dela, como que um sol a afastar a escuridão que, relutantemente, se apressava a desaparecer para não sair ferida de um combate que poderia perder.

O afastar do nevoeiro fez aparecer algo que Liriana era capaz de jurar que não lá se encontrava há pouco. Sob a mão da madrinha, as pétalas perfeitas e delicadas de uma flor em dourado distendiam-se, e delas prolongavam-se linhas em ouro que formavam outras, mas mais pequenas, flores sobre o mármore que se elevava muito acima das suas cabeças, como uma trepadeira infinita e de magnífico esplendor.

‒ Já não me lembrava de como era magnificente esta entrada para o reino élfico de Nelgadir – murmurou Leonardo com um brilhar de olhos.

‒ Um colosso singelo – riu-se Alexandrina, de uma forma um pouco irónica, retirando a mão da enorme porta.

Assim, Liriana pôde ver que na flor-mãe incrustava-se uma pedra lilás, parecida com as que rodeavam o punho de �iarda, a espada de Alexandrina. Dela pulsava uma força desconhecida, possivelmente o feitiço que trazia a si todo aquele denso nevoeiro.

Perguntava-se agora: se continuassem em frente teriam ido contra ela? Duvidava muito. Sem Alexandrina ter-se-iam perdido no nevoeiro, caminhariam permanentemente em frente, até se mentalizarem por completo de que nada encontrariam sem ser a névoa destabilizante.

Na base da porta podiam ler-se palavras, naquela mesma língua estranha que vira no altar onde Vinyriah repousava, antes do seu lamentável despertar. E agora que reparava bem, seria capaz de jurar que o material da ponte era o mesmo que o do solene altar. Reluzia o mistério enraizado em si.

‒ Floresço nas almas por plenitude de esperança, sou sonho de verdade e justiça – afirmou Alexandrina. – É o que diz, na língua antiga e usada já por poucos, sem ser em pequenas expressões. Só os elfos e os feiticeiros falam Cleriamn fluentemente. É necessário em muitos feitiços.

Liriana tinha a certeza de que a madrinha lhe lera os pensamentos, não podia haver outra explicação para a tradução e a pequena elucidação que acabara de fazer. Arden e Cisdahen saberiam tal coisa, mesmo que não soubessem falar a língua antiga, como lhe chamara.

‒ Se quiseres fazer as honras, Alexis… Estou quase a ter um ataque de asma por causa de toda esta água pendente na atmosfera. – Leonardo tossicou um pouco na brincadeira, para frisar a ideia.

‒ E desde quando é que tens asma, meu caríssimo amigo? – perguntou Alexandrina, enquanto seguia, com as pontas dos dedos, as linhas que saíam de cada uma das pétalas maiores e se triforcavam quando saíam das flores mais pequenas.

‒ Desde que te conheci! Fico doente quando estou ao pé de ti. – Voltou a tossir, o que fez Liriana rir-se levemente. – Não te rias porque tenho a impressão de que também estás a ficar um pouco pálida. Esta Alexandrina é mesmo um ser vil das trevas… Não tens vergonha, Alexis?

‒ Não, são os genes da Vinyriah a falar mais alto. Não me podes culpar, pois como médico que és sabes que não posso mudar essa parte de mim.

‒ Além de ser médico, sou feiticeiro, e conheço as profundezas negras da magia. Pode fazer milagres. Era só quereres e a ligação entre ti e a tua irmã seria quebrada com um estalar de dedos, gene por gene, sem um toque da ciência.

‒ Já sabes o que penso sobre isso. – O tom de Alexandrina era categórico, colocando um ponto final na conversa. Liriana gostaria também de saber o que poderia ela pensar.

A guerreira contemplou de novo a porta, desta vez atentamente, e pousou a mão no cristal lilás, ao nível do peito. Soltou um suspiro e da sua voz soaram palavras cujo significado era incompreensível:

‒ Valem in saê vaner, ériam iemar ceri fae solem ê aridh sise Fnagohors. Uthilien vir ê eheridar, milno bredin jianur milno Hadnianarse, Erwildorse in Rlosagorse, lessir bhidel soer, vass-hâll elle isiara, fiam i fallasórin sa unevom.

Page 96: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 96 -

Por momentos nada aconteceu, envolvendo-os o silêncio da magia. Contudo esse fora o fim do limbo que os cobria por todos os lados.

A grande porta libertou de si um leve brilho que fez a jovem mudar de ideias quanto à substância de que era constituída. Não era mármore, nem mesmo granito. Levou a mão ao bolso do casaco e palpou leve e discretamente o pequeno cristal que nele repousava. Seria possível terem a mesma essência? A aparência era diferente, assim como a sua forma, no entanto, se aquela pequena pedrinha que cabia na palma da mão conseguia afastar uma sombra, que poderes infindáveis teria aquele portão de passagem para outro mundo?

Após aquele pequeno brilho desfalecer, a porta florida a dourado começou a perder a sua consistência, acabando por desaparecer, deixando apenas um fantasma do que fora antes.

‒ Passem vocês primeiro – pediu Alexandrina, montando no cavalo e fazendo-o recuar para lhes abrir caminho. – Tenho que ser a última a fazê-lo pois a porta encerrar-se-á após a minha passagem.

Leonardo acenou e fez questão de ser o primeiro, levando consigo Liriana. Passaram através daquela substância de criação transcendente e, ao fazê-lo, a jovem prendeu a respiração sem dar conta do seu acto. Mais tarde perguntar-se-ia porque fizera tamanha estupidez e nesse “mais tarde” descobriria que fora por medo, o mesmo medo que derruba montanhas ou que se esconde sob elas.

A passagem pelo portão não demorou mais do que um segundo. À saída esperava-os uma noite limpa, dardejada de pequenos pontos, maioritariamente dourados, mas poderia ver-se entre eles outros de cores bastante peculiares. Nos céus, entre um círculo imperfeito, dormitava uma estrela de brilho verde marinho e um pouco mais para a esquerda um ponto laranja refastelava-se no seu manto negro. Lá nos altos a Lua guardava todas as suas pequenas filhotas, para que, traquinas, não se perdessem nos céus infinitos.

Liriana baixou os olhos do céu e admirou o que a rodeava. O rio corria amenamente sob a ponte, não fazendo qualquer ruído para além de um leve marulhar, tão diferente do local donde tinham partido, passo ante passo sobre a ponte, onde era áspero e agreste, munido das forças colossais dos deuses. À sua frente erigia-se o final da ponte onde nas alturas da arquitectura se erguia, sob um arco gémeo do da entrada, um Sol no mais magnífico ouro que brilhava etereamente sem explicação. Apesar de tudo, não era necessária aquela luz para se ver o caminho, pois cada flanco da ponte apoiava várias candeias de vidro em cujo interior bruxuleavam chamas azuis.

Esperava-os uma escolta bem armada, à saída da ponte. Landar encontrava-se na frente, de braços cruzados, acompanhado por um homem loiro de cabelos compridos. Com a aproximação, Liriana deu conta de que não era um simples homem, mas possivelmente outro elfo, não só pelas suas orelhas em forma de bico, mas pelo olhar avaliador onde se antevia a experiência dos anos, anos esses que não vinham marcados nas poucas rugas que possuía na face.

Atrás de si podia ouvir os cavalos de Arden e Alexandrina, num trote forçadamente calmo, a descer a ponte. O elfo que lhe era estranho sorriu ao ver a sua madrinha. Parecia que se conheciam.

Quando já estavam suficientemente próximos, Leonardo desceu do cavalo, ajudando-a a fazer o mesmo, e fez uma pequena vénia ao elfo, a que este retribuiu.

‒ Seriar Omorir der, Ilnosianar – declarou Leonardo naquela língua estranha. ‒ O mesmo te digo, meu caro amigo Leonardo. – O elfo endireitou-se e, sem que Leonardo esperasse,

deu-lhe um forte abraço, um abraço de quem já há anos não se via. Liriana olhou em volta, sentindo-se a mais naquele reencontro. ‒ Eu apresentava-te esta gentil jovem, mas penso que darei as honras à Alexandrina – disse o necromante,

voltando-se para trás após o abraço. Ilnosianar lançou um sorriso amável à pequena. ‒ Penso saber quem seja. Liriana, não é? ‒ Sim… – Sentiu-se a corar, sem saber bem porquê. Como saberia o seu nome? O seu olhar caiu sobre Landar que também a observava. E pensar que, durante dias, ele era apenas um

simples gato! ‒ Não sabes o quanto estimo conhecer-te, finalmente. – Para seu alívio, não a abraçou efusivamente como

fizera com Leonardo, limitando-se a pegar-lhe na mão e a tocar-lhe levemente com os lábios. Este gesto não fora muito mais do que um simples cumprimento, mas as suas palavras diziam mais do que queriam parecer. Há quanto tempo saberiam da sua existência?

Alexandrina retirou-lhe o peso de corresponder à afável atenção que Ilnosianar lhe dispensara, impedindo que começasse a corar desalmadamente.

Page 97: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 97 -

‒ Obrigada por teres vindo – murmurou, guiando o cavalo pelas rédeas, enquanto se aproximava com passos largos.

‒ O Landar chegou a tempo de nos avisar. Porque não disseste antes que vinhas? Teria mandado uma escolta, não era preciso acontecer o que aconteceu.

‒ Já estamos a salvo, aliás, a Liriana está a salvo. E isso é que importa. – Os seus olhos brilharam em direcção à jovem. – E muito ainda está por fazer para que possamos voltar ao outro mundo.

‒ Voltar… Liriana mirou Ilnosianar pelo canto dos olhos. Havia melancolia marcada na face eternamente bela, a

tristeza de uma nova perda. ‒ Mas não sabes o quão contente estou por voltar a Nelgadir, ao fim de tanto tempo. Passei metade da

minha vida aqui e… – interrompeu-se a meio da frase, mergulhada em nostalgia. Soltou um suspiro, lançando um olhar às estrelas vibrantes do céu sereno. – Bem, estes são os filhos da Aldara. Pedi-lhes para que viessem connosco.

‒ E a Aldara? ‒ Ela morr… ‒ A nossa mãe foi assassinada há pouco tempo por zunaris, a mando da Vinyriah – declarou Arden no seu

tom agreste. Tinha acabado de desmontar do cavalo, ajudando a sua irmã a fazer o mesmo. Lançava a todos um olhar desconfiado. Pequenos pêlos despontavam-lhe na face, conferindo-lhe um ar agressivo e um pouco selvagem.

Liriana olhou de uns para os outros, perscrutando as expressões chocadas. A de Alexandrina parecia destroçada em remorsos, como se fosse a culpada. Os olhos azuis prendiam-se nas pedras brancas e imaculadas da ponte e, mesmo no meio da escuridão, brilhavam neles lágrimas reprimidas.

Com passos tímidos a jovem aproximou-se da madrinha e tocou-lhe ao de leve na mão que se deixara ficar caída junto ao corpo. Alexandrina foi percorrida por um arrepio súbito, erguendo o olhar e fitando Liriana. Foi um impacto forte para si deparar-se com aquele azul profundo. Nunca tinha percebido o quão infantil era aquele olhar. Espelhava-se inocência na sua tristeza tal e qual a de uma criança.

‒ A culpa não é tua – murmurou, num tom que lhe pareceu implorativo. ‒ É, Liriana. A culpa é só minha. A cobardia que me habita matou uma das minhas melhores amigas. –

Um sorriso de ironia floresceu na sua face pálida. Leonardo olhou-a de lado, atentamente, e decidiu intrometer-se na conversa.

‒ Mas agora temos uma única coisa a fazer, vingar os mortos. Os lamentos não nos levam a lugar nenhum. Concordas, Ilnosianar?

‒ Concordo, apesar de que seria melhor se não existisse ninguém para vingar – confessou o elfo, com toda a sinceridade. – Bem, o melhor será partirmos o quanto antes. Nada fazemos aqui, e os meus pais aguardam-nos. Será melhor não os deixarmos esperar por muito tempo. Poderão ficar preocupados.

Caminharam rapidamente sob as estrelas e o luar que os vigiavam acolhedoramente, velando pela sua

protecção. As árvores continuavam a expandir-se por aquele local de tom suave, mas não eram tão aterradoras como as da floresta por onde foram obrigados a fugir, momentos antes. As que os acompanhavam depois da ponte eram muito maiores e esplendorosas. O reflexo de paz que emitiam devia-se possivelmente ao tratamento que lhes era oferecido. Sentiam-se amadas.

Após a sua saída da Ponte da Esperança, como Ilnosianar lhe chamara, seguiram por um caminho de terra batida, ladeado por um relvado constituído por plantas de variadíssimas espécies e árvores que pareciam não acabar. Se não fosse noite e o cansaço não a tivesse já consumido por completo, Liriana sentir-se-ia maravilhada com os verdes, e talvez outros coloridos. Mas por enquanto limitar-se-ia a tentar não tropeçar em si mesma.

Alexandrina fizera questão de permanecer a seu lado, enquanto Leonardo seguia ao lado de Ilnosianar, e isso agradava-lhe, oferecia-lhe descanso à alma. Arden e a irmã caminhavam atrás, e todos os outros elfos que encontraram junto à ponte tinham já dispersado, levando com eles os cavalos estafados. Por sua vez, Landar tinha pura e simplesmente desaparecido, novamente.

Page 98: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 98 -

‒ Ilnosianar, talvez seja melhor descansarmos um pouco – pediu Alexandrina, apesar de ser óbvio de que não falava por si, nem mesmo por nenhum dos outros que pareciam praticamente sãos, em comparação com a afilhada.

‒ Eu estou bem! – Liriana mentia com afinco. Não queria que parassem por si. Já tinham feito demasiadas coisas pouco cómodas por sua causa.

‒ Liriana, por favor. A Vinyriah não vai acabar com o mundo tão cedo. Podemos esperar umas horas. ‒ Olha que a tua madrinha desta vez tem razão, mas é só desta vez – declarou Leonardo com um bocejo

meio reprimido. – Hoje a noite está simpática. Conseguimos sobreviver se dormirmos ao ar livre. O elfo olhou de uns para os outros com um meio sorriso de compreensão nos lábios. ‒ Vocês são humanos, desculpo-vos desta vez – disse na brincadeira. Saiu do trilho demarcado, pisando com leveza a relva e as muitas plantas que lhe davam pelos joelhos.

Perscrutou cada copa de árvore individualmente. Procurava algo. Parou ao fim de alguns metros, subindo agilmente um tronco que aos seus olhos parecia quase liso.

O resto do grupo seguiu-o e, dessa forma, Liriana conseguiu ver o que Ilnosianar fora fazer. Por entre os ramos e as folhas abundantes de recorte arredondado, sustinha-se uma pequena plataforma em madeira, coberta por um tecido esverdeado, ou assim lhe parecia por entre o difuso luar.

O elfo afastara o manto verde de camuflagem e pegava agora em vários cobertores que atirou da árvore sem avisar. Mas já todos estavam à espera que o fizesse. Todos menos Liriana, que se deixou atingir por um mesmo na cara.

‒ Perdão! Liriana olhou para cima, estremunhada pelo impacto suave, e sorriu. ‒ Eu estou bem. – Enquanto dizia isto, imaginava a cara de demente que deveria ostentar depois de tudo

aquilo. Estava perturbada e todos o sabiam. Como poderia não estar? Em menos de seis dias tinha caído sobre si uma avalanche de tormentos e, nesse tempo que lhe pareceu eterno, sentira-se noutro corpo, noutra vida. Mas, apesar da loucura que aquele pensamento pudesse suster, não desgostara.

‒ A nossa grande Liriana não se deixa intimidar por um traiçoeiro cobertor – afirmou Leonardo na brincadeira. – Mostra-lhe como é!

A jovem baixou-se e apanhou o cobertor, sacudindo-o com duas palmadas e sorrindo ao ouvir os comentários animados de incentivo do necromante. Por fim, olhou para os outros, esperando uma indicação de onde se deitar. No entanto Alexandrina e Leonardo também olhavam para si na expectativa. Não podia acreditar que estavam à espera do seu primeiro passo.

‒ Bem… onde vamos ficar? – acabou por perguntar. ‒ Num sítio qualquer. Pode ser aí mesmo onde estás – respondeu-lhe Alexandrina, com um encolher de

ombros. Liriana não percebia porque insistiam para que fosse ela a primeira a deitar-se, mas acabou por se

resignar. Abriu o cobertor e olhou para a alta erva verde. Não sabia se haveria de se deitar sobre ele, se deveria tapar-se com ele, ou pura e simplesmente enrolar-se nele. Decidiu-se pela última hipótese, sendo no entanto uma tarefa intricada. E, pior do que isso, era interessantemente idiota. Estendeu a coberta no chão e sentou-se sobre ela. Pegou-lhe nas pontas superiores e cruzou-as sobre o peito, deitando-se de lado. As ervas em seu redor formavam um muro pouco denso.

‒ Um interessante modo de improvisar um saco-cama – comentou Leonardo com uma risada. – Vou seguir-te o exemplo.

Deitou-se ao lado de Liriana e Alexandrina imitou-o, ladeando-a desta forma. Era então por isso que queriam que fosse ela a primeira a deitar-se, notou, contrariada.

A jovem levantou a cabeça e olhou para cima, para a copa da árvore. Ilnosianar encontrava-se sentado na plataforma, de braços cruzados sobre o peito, e perscrutava o horizonte com olhos argutos, por entre a densa folhagem.

‒ Vá, agora descansa, pequenita. Liriana voltou a cabeça para a madrinha que lhe sorria docemente. Soltara os cabelos, que lhe

emolduravam a face pálida num toque angelical. E pensar que existia alguém com parecenças tão iguais e de ente totalmente diferente!

‒ Nós só não dormimos porque estás a falar, ora esta… – protestou Leonardo. – Cala-te, Alexis! Alexandrina revirou os olhos, enquanto Liriana se ria divertida. Era bom estar com eles.

Page 99: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 99 -

Olhou uma última vez para as estrelas antes de fechar as pálpebras, guardando aquela imagem suave. A Lua acompanhava-as no seu brilho, eternamente bela, e os grilos tocavam a sua canção de embalar. Desta forma, deixou-se levar pela sonolência.

Na manhã seguinte, pouco depois de o Sol ter nascido, Alexandrina acordou-a, chamando baixinho pelo seu nome, não a querendo assustar no profundo e merecido descanso. Sentiu uma mão passar-lhe pelo cabelo castanho, na semi-consciência entre o sono e o acordar, e sorriu para si.

‒ Não queria mesmo nada acordá-la – murmurou Alexis, dirigindo-se a Leonardo que dobrava o seu cobertor.

‒ Em Nelgadir terá um sono mais tranquilo e confortável – observou o jovem necromante. – Preocupas-te em demasia, Alexis. Não concordas, Ilnosianar?

O elfo saltou da árvore, onde se mantivera vigilante durante toda a noite, antes de responder. ‒ Por mais incrível que pareça, concordo. De vez em quando acertas em qualquer coisa – disse,

estendendo a mão para receber o cobertor macio que aquecera Leonardo durante a noite. ‒ Ah! Agora formaram um complô contra a minha pessoa! Definitivamente, sou uma vítima. Pobrezinho

de mim. – Passou o cobertor a Ilnosianar e cruzou os braços, irritado. Alexandrina soltou uma risada divertida e voltou novamente a atenção para a afilhada ainda adormecida. ‒ Liriana, querida… As aves canoras recitavam as suas poesias incompreensíveis quando a jovem se dignou a semi-abrir os

olhos, contudo fechou-os no instante imediato, momentaneamente cega pela luz do Sol. Com a mão que não agarrava o cobertor junto ao corpo, palmilhou o solo, sentindo a erva suave e fresca da húmida noite. Por fim, esfregou os olhos, reprimindo o mais possível um espreguiçar longo e um bocejo ainda maior. Sentou-se e olhou em volta, sonolenta. O nascer do dia estava claro e o azul celeste do céu dava-lhe os bons dias. O Sol espreitava no horizonte, caloroso, prevendo um dia agradável. Todos esperavam que a previsão se concretizasse, como num bonito sonho.

‒ Dormiste bem? – perguntou-lhe Alexandrina. Liriana olhou-a com um espanto de criança inocente e a sua face brilhou. Era verdade, tinha dormido

incrivelmente bem, sem se preocupar com sombras nocturnas. Teve uma súbita vontade de a abraçar, mas não teve coragem. Limitou-se a um “sim” de tom amável.

Alexandrina passou-lhe a mão pelo cabelo, sempre carinhosa, e depositou-lhe um beijo na fronte. ‒ Fico feliz por sabê-lo, muito feliz, pequenina. Partiram mal Ilnosianar deu a sua tarefa de arrumação por terminada. Aos olhos contemplativos, a luz da manhã conferia à natureza um brilho etéreo. Nunca a tinha apreciado e

admirado tão profundamente como nesse momento. A vida voltara e espalhava-se agora em seu redor, nascendo em cada recanto, florindo colorida.

Caminharam durante horas por entre o verde que lhes acenava entusiasmado de todos os lados, sem descansar. Os passarinhos de colorações alegres e variadas esvoaçavam de árvore em árvore e saltitavam de ramo em ramo, efusivos, acompanhando-os na sua viagem com melodias de encorajamento. Liriana respirou fundo, inúmeras vezes. Era tudo tão puro!

Quando o Sol alcançou o zénite, a paisagem envolvente sofreu uma pequena mas bela modificação. Em alguns locais as folhas verdes foram substituídas por um rosado, recoberto de pequenas flores de pétalas brancas. Uma fragrância fresca embalava a sua passagem. Onde estaria escondido aquele mundo mágico?

Uma borboleta azul e vermelha voou junto aos rostos dos caminhantes, ziguezagueando em direcção ao seu alimento predilecto: néctar da melhor qualidade. Liriana seguiu o voar etéreo até um ponto distante, onde o insecto desapareceu por detrás de um tronco. Observou, desiludida, a perda daquela visão. Todavia, dois orbes espreitaram-na do mesmo local onde o insectozinho desaparecera, alguns centímetros abaixo do nível que se esperava.

‒ Ah… – murmurou, olhando estupefacta para o ser que os espiava. ‒ O que foi? – quis saber Alexandrina, fitando a afilhada, curiosa. ‒ Vi alguma coisa atrás daquela árvore – declarou, e no preciso momento em que apontou para o local

respectivo, os olhos desapareceram. Ilnosianar e Leonardo examinaram por alto o sítio que Liriana indicara, do lugar onde estavam, e

Alexandrina avançou alguns metros pela relva alta, até chegar à árvore. Deu-lhe a volta, correndo a mão pelo tronco atentamente. Por fim, baixou-se e passou os dedos no solo, acariciando a erva.

Page 100: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 100 -

‒ Então? – inquiriu Leonardo. ‒ É verdade, esteve aqui alguma coisa há pouco tempo, o solo está pisado, mas praticamente não se nota.

Penso saber o que era – respondeu, erguendo-se, com um sorriso nos lábios. – Nada de preocupante. ‒ Mas o que era? – insistiu. ‒ Era eu, porquê? Uma voz desconhecida e irritada fez-se ouvir e todos a seguiram curiosos. Exactamente no meio da

estrada surgira do nada um ser de pequenas proporções, trinta centímetros no máximo, de nariz pontiagudo e olhos expressivos de cor de avelã. As vestes eram verdes, do mesmo tom que a relva em redor – uma óptima forma de camuflagem –, constituídas por umas calças e uma casaca de proporções devidas que cobria uma jaqueta amarela. Liriana tinha a certeza de que aquela roupa serviria aos bonecos com que brincara quando era mais pequena.

O pequeno ser cruzara os braços sobre o peito e a sua cara era desafiadora. ‒ Senhor Elmar! – exclamou Ilnosianar, espantado. – Assustou-nos! ‒ Assustei-vos, não haja dúvida… o que é que andam a tramar, hã? – perguntou, com uma grande

desconfiança espelhada no rosto. Liriana considerava-o tremendamente cómico. ‒ Absolutamente nada. Estávamos de regresso a Nelgadir. Tivemos um pequeno confronto com a

feiticeira. Não o devia dizer neste exacto momento, deveria esperar pela autorização dos meus pais, mas saberia mais cedo ou mais tarde – murmurou o elfo com um suspiro.

Os olhos do ser diminuto abriram-se descomunalmente. ‒ A feiticeira? A… a… a… – O seu gaguejar perplexo e intermitente transformou-se numa tosse

atrapalhada e assustada, mas disfarçadamente. – Estás a brincar! Isso não teve graça nenhuma! Respeita os antigos, Ilnosianar!

‒ Não é uma brincadeira, senhor Elmar. A minha… a Vinyriah regressou. – Alexandrina dissera aquilo calmamente para amenizar qualquer tipo de contestação por parte de Elmar.

No entanto os olhos do pequeno ser esbugalharam-se de horror. Parecia estar a ficar com falta de ar. O seu peito diminuto subia e descia a uma velocidade vertiginosa e a boca mantinha-se entreaberta numa interjeição que não fora feita.

‒ Mas iremos derrotá-la, desta vez definitivamente. ‒ Disseram isso da última vez! – A voz do homenzinho de orelhas arrebitadas voltara e alterara-se

incontestavelmente. – E antes disso a minha família foi morta sem piedade. ‒ Com certeza que não terá sido só a sua – murmurou Liriana. Elmar olhou-a, desconfiado. ‒ Quem és tu? ‒ Eu… eu sou a Liriana – respondeu a jovem, sem muito que dizer. ‒ Hum… – resmungou o pequeno Elmar avaliando-a. – São essas roupas estranhas que usam no teu

mundo? Estava a dirigir-se a Alexandrina de forma reprovadora e parecia ter esquecido completamente o assunto

anterior, ou desviara-se dele abruptamente por um qualquer motivo por revelar. Liriana acreditava mais na segunda hipótese.

Enquanto o homenzinho blasfemava contra as suas roupas, Liriana olhou para si própria. Não via mal nenhum naquelas vestes, apesar de estarem bastante sujas de terra e com manchas do seu próprio sangue. Sob o Sol, era uma visão um pouco asquerosa, sem dúvida alguma. Devia parecer uma mendiga que andara à luta por um pedaço de comida. Mas os outros não estavam muito melhores.

‒ E estão muito na moda – declarou Alexandrina. ‒ Tretas! – exclamou indignadamente, virando-lhes as costas, e desapareceu por entre as ervas mais altas,

rezingando alto. O silêncio manteve-se entre todos durante alguns segundos, até deixarem de ver as ervas abanarem

indiscriminadamente à passagem de Elmar. ‒ O que… que espécie de ser era aquele? – perguntou Liriana, passando a mão pelos fios de cabelo soltos

sobre a testa que lhe faziam leves cócegas. ‒ É um gnomo dos bosques – respondeu Ilnosianar, voltando a tomar a cabeça do grupo. – Estamos quase

a chegar à aldeia mais próxima. A partir daí continuaremos a cavalo. Não imagino a Liriana a caminhar até à cidade real. E demoraríamos muito mais. Todos vocês merecem um descanso e talvez mais do que isso.

Page 101: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 101 -

E era verdade. Liriana ansiava tanto por uma conversa com Alexandrina! Queria saber tudo, o porquê do que lhe acontecera durante todos aqueles dias que tinham acompanhado a sua corrida contra a morte. Por enquanto tinha de se conter e inspirar a vida que a rodeava. Aquele lugar podia ser uma maravilha que não voltaria a ver. Nem mesmo o destino lhe podia dizer o que aconteceria a seguir, e ela não apostaria, pois as probabilidades de perder eram infindáveis.

Não voltaram a ver o senhor Elmar durante o resto da caminhada e, se os seguia, nenhum deles dava conta dos seus passinhos de lã.

Assim, a pequena aldeia anunciou-se-lhes duas horas depois de um passo apressado. As casas enrolavam-se em volta dos maciços e mais robustos troncos de árvores, numa espiral que

penetrava por entre os ramos mais altos, ocultos entre as folhas que variavam nos tons de verde. Antes de entrarem Ilnosianar soltou um assobio grave que esvoaçou como o canto de um gaio pelo

bosque. Era obviamente um aviso da chegada do grupo. O mesmo canto respondeu-lhe e o elfo sorriu satisfeito, continuando a avançar.

Pouco antes de se aproximarem das primeiras e peculiares casas, surgiram detrás de dois troncos, de ambos os lados do caminho, dois elfos, cada um de arco na mão e aljava presa às costas, repleta de flechas de penas brancas. Observavam-nos com perspicácia, medindo todos os seus passos.

Quando o grupo estava suficientemente perto, pousaram os arcos e as aljavas no chão e fizeram uma vénia.

‒ Honra-nos a vossa visita, Senhor – disseram em unissonância, reverentemente. ‒ Por favor, não precisam de agir dessa forma – pediu Ilnosianar, avançando com passadas largas e

tocando-lhes nos ombros. Arden, Cisdahen, Leonardo, Alexandrina e Liriana ficaram a observar, enquanto os dois guerreiros

pegaram em cada uma das mãos de Ilnosianar e as beijaram. Era notório o incómodo que lhe causavam. Não gostava de tratamentos tão cerimoniosos.

Liriana lançou um olhar inquiridor a Alexandrina. ‒ O Ilnosianar é príncipe de Nelgadir – elucidou-a, num murmúrio. – Um elfo que todos amam pela sua

generosidade, simpatia e coragem. ‒ Alexandrina, eu ouvi isso… ‒ declarou o elfo, olhando para eles, por cima do ombro. A feiticeira sorriu para si, encolhendo os ombros, como se aquilo não fosse nada de mais, mas Liriana

sentiu-se simplesmente extasiada por ter conhecido um príncipe sem mesmo o saber. Parecia um conto de fadas, com todos os adereços! Até uma bruxa má havia, notou, com alguma ironia.

‒ Não foi o único que conheceste nestes últimos dias, acredita no que te digo – murmurou-lhe a madrinha. A jovem olhou-a sem perceber. A quem se referia? ‒ O gatinho maldisposto de olhos amarelos – flauteou Leonardo, mirando o céu sem nuvens. ‒ São irmãos? – perguntou, com o espanto a reflectir-se no rosto. ‒ Não. O Landar é príncipe da Floresta Dourada, muito a sudeste daqui. ‒ Mas então o que fazia ele na Mansão Adriática? ‒ Isso terás de lhe perguntar. Não me cabe a mim divulgar o que lhe vai na alma. Não leves a mal – pediu

Alexandrina. – Mas são pensamentos que só a ele pertencem, e a sua confiança na minha discrição não será quebrada. Mas pergunta-lhe, insiste para que ele te conte. Fazer-vos-á bem.

Ilnosianar interrompeu a conversa, apesar de esta ter já quase terminado, deixando a Liriana mais um assunto em que pensar. Chamou-os, pedindo-lhes que se aproximassem, e os cinco assim o fizeram. O príncipe de Nelgadir apresentou-lhes os dois elfos: Olsomae e Benadh eram irmãos e os guardas diurnos da pequena aldeia. Benadh era o mais novo, com cinquenta anos de diferença de Olsomae, um facto que todos consideraram razoável. Todos menos Liriana que, como sempre, era a mais alheia a todo aquele mundo que a fazia contradizer-se vezes sem conta.

‒ Segundo estes honrados guerreiros, os aldeões não se importam de nos ceder seis cavalos. Assim, chegaremos à cidade com maior rapidez. Mas antes disso, penso que todos nós precisamos de recuperar energias. Fomos convidados para almoçar, apesar de serem já horas tardias.

A refeição foi servida numa ampla mesa de madeira ao ar livre, no centro da aldeia. Os pratos eram constituídos maioritariamente por fruta e legumes frescos, alguma carne de coelho e uma bebida a que davam o nome de Néctar do Céu, servida em copos cristalinos que pareciam reluzir mais do que seria esperado. A bebida tinha o doce toque do mel e uma cor rosácea. Era simplesmente deliciosa e revitalizante.

Page 102: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 102 -

Depressa tiveram de abandonar a pequena aldeia, agora montados em velozes e nobres corcéis, todos eles de um castanho claro e alguns com manchas brancas nas extremidades das patas. O que mais incomodava Liriana era o incrível facto de nenhum deles estar selado, nenhum deles possuir rédeas que lhes dessem um rumo. Eram seres livres. E isso afligia-a por não ter onde se segurar firmemente. Mas era uma preocupação vã. A cavalgada foi serena e sem percalços, como se outrora já tivesse aprendido a arte de montar.

Ao pôr-do-sol do quarto dia de viagem, romperam numa ampla clareira ponteada, aqui e acolá, por árvores de copa gigantesca, onde as folhas se espalhavam pelas alturas sublimes. Que idade teria cada árvore que ali repousava? Os seus troncos expandiam-se largos, impossíveis de abraçar. Nas mais grandiosas, luzes alegres trespassavam as folhagens densas, dando-lhes as boas vindas.

A passagem do grupo não passou despercebida, pois eram esperados. Muitos eram os elfos que se agrupavam em redor, observando-os. Alexandrina cumprimentou alguns com sorrisos e leves acenos da cabeça, enquanto Liriana observava tudo o que a rodeava com um espanto mudo, todos aqueles seres que se alegravam com a sua chegada. Trajavam roupas delicadas sob um corpo elegante e esguio. As faces eram esbeltas, talvez mais divinas do que as dos anjos que se dizia habitarem o céu, e o cabelo caía comprido, sedoso, encaracolado ou liso, de cores variadas e envolventes.

Seres como o senhor Elmar espreitavam por entre as pernas dos grandes, mas o seu olhar era desconfiado, medindo as alturas que os ultrapassavam em muitas vezes.

Liriana ergueu as sobrancelhas quando o olhar passou por uma figura fugidia. Por entre a multidão parecera-lhe ver alguém seu conhecido, uma pequena criança que conhecera em Ranar, Nyan. Mas isso era mais do que impossível. E agora que pensava nisso, reparava como eram poucas as crianças entre os adultos, pequenas preciosidades, não muitas, mas estrelas que os rodeavam com sorrisos inocentes e curiosos.

Ilnosianar desceu do cavalo com um pequeno salto e os outros imitaram-no, deixando que os graciosos animais dessem meia volta e se afastassem pelo mesmo caminho que tinham percorrido com eles. Regressariam sozinhos ao seu lar, incansáveis.

Avançaram com passadas largas por entre os habitantes de Nelgadir, palmilhando uma calçada de lajes brancas que os encaminhava até uma ampla e alta entrada sustentada em colunas em forma de berço. Esta dava-lhes as boas vindas, indicando-lhes que deviam prosseguir para o interior do edifício branco que se lhe seguia. Fora construído em volta de uma árvore, uma enorme árvore-mãe, pelo que lhes era dado a ver. Cinco das suas filhas, um pouco mais pequenas, situavam-se em volta da bonita arquitectura de forma pentagonal, floridas com pétalas brancas.

Pequenas luzes cimeiras, que não estrelas, pareciam escoltá-los. Liriana não conseguia distinguir que pequenos seres eram aqueles, devido à distância. Mas pareciam-lhe pirilampos, insectos que nunca antes vira no seu mundo.

Depois de entrarem no edifício, a calçada foi substituída por puro mármore. ‒ Estamos no palácio dos Senhores de Nelgadir – murmurou Alexandrina, caminhando ao lado da

afilhada e confirmando as suas suspeitas. – Os senhores vão querer conhecer-te. Liriana respirou fundo, tentando pôr os nervos de lado. Tudo aquilo ainda lhe parecia um extenso e

confuso sonho. E tinha a certeza de que por mais que se beliscasse não iria acordar tão cedo. Em redor, as paredes do palácio eram percorridas por raízes que se entrecruzavam e propagavam num

abraço inescapável. Eram parte dos seus alicerces, casadas para o bem e para o mal, as paredes e a floresta. Passaram por eles alguns elfos, em sentido contrário, que lhes sorriram generosamente, com uma

juventude que só a eternidade poderia ceder. Aquele povo aparentava-se-lhe tão irreal quanto a perfeição. Entraram por fim num salão amplo e sem tecto aparente que o protegesse. Várias árvores de tamanho

médio espalhavam-se ordenadamente por porções de terra perfeitamente delineadas entre o mármore sobre o qual caminhavam. Do outro lado do aposento erguiam-se dois tronos brancos. Sentados, observando a sua chegada sem se manifestarem, encontravam-se os senhores governantes daquela povoação élfica, de porte digno e compassivo, cabelos compridos de um pálido esbranquiçado onde se reflectia a sua idade intemporal.

Ergueram-se no preciso momento em que se chegaram a poucos metros deles, e desceram o pequeno estrado até se encontrarem ao nível dos recém-chegados. Continuavam, porém, mais altos e ultrapassavam-nos também na beleza, talvez acontecesse o mesmo com a inteligência, com a agilidade ou a força. Eram diferentes, superiores.

‒ Sejam bem-vindos. – Dos lábios do Senhor soaram palavras melodiosas, acolhendo-os de braços abertos sem mesmo os abrir. Os seus olhos percorreram cada um rapidamente, detendo-se um pouco mais em

Page 103: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 103 -

Liriana. Inundava-o um brilho enigmático. – Estimo saber que chegaram sãos e salvos e que o pior não tenha acontecido.

‒ Agradecemos a vossa preocupação e a ajuda que nos enviaram tão atempadamente – declarou Alexandrina, curvando-se numa pequena vénia. Os outros imitaram-na. O tempo de reacção de Liriana não foi dos melhores, olhando confusa e atrapalhada para cada um, antes de se curvar também. Nunca antes na sua vida o fizera diante de alguém.

Ilnosianar continuava direito, ao lado de Leonardo. Estava divertido com o pouco à vontade da pequena jovem e pouco depois de ela se ter curvado, avançou até ao seu lado, pegando-lhe na mão e obrigando-a a endireitar-se.

‒ E eis a pequena Liriana, meus pais – disse. Puxou-a levemente para a frente, até estarem a menos de um metro dos dois altos senhores. ‒ Sabíamo-lo já, meu filho. – A bela senhora falou pela primeira vez, num melodioso tom que enternecia

os corações e competia com os belos cantos das aves. Estendeu a mão, incentivando-a a avançar e a dar-lhe a sua. Liriana olhou para trás, pedindo indicações a Alexandrina com o olhar, mas esta limitou-se a sorrir-lhe.

Fitou então a senhora de cabelos pálidos. Uma pequena tiara prateada ornamentava-lhe a fronte sem rugas, onde se incrustavam pequenas pedras lilases que reflectiam um pouco da luz branca que se erguia dos archotes em seu redor. Aquele fogo era tão estranho quanto o das candeias que pendiam da ponte. Queimaria?

Ilnosianar pousou a mão de Liriana sobre a da mãe. A sua pele era fria, mas suave e um pouco rosada. ‒ Eu sou Adlarian e este é o meu companheiro, Penservon. Sabes já que somos os Senhores de Nelgadir.

Alegramo-nos em conhecer-te finalmente, Liriana. ‒ Agradeço, senhora – murmurou a jovem, timidamente, começando a corar, como não deixaria de ser. A senhora Adlarian largou-lhe a mão após a observar durante alguns segundos. Os seus olhos caíram

então sobre os dois órfãos que os acompanhavam. ‒ Estes são os filhos da Aldara – adiantou-se Alexandrina. – A sua mãe faleceu há não muito tempo. Foi

atacada por Zunaris, nas planícies de Rotherm. Liriana esperava que um novo silêncio se impusesse, mas a senhora Adlarian não o permitiu. ‒ São também bem-vindos e muito me agrada conhecê-los. Vejo a coragem da mãe no brilhar dos seus

olhos. Arden sorriu e dobrou-se numa vénia reverente. Não eram precisas palavras para agradecer um tão

sincero elogio. ‒ Os vossos aposentos aguardam também a vossa chegada. Precisam de descansar. Pedi para que as

refeições fossem servidas nesse mesmo local. Amanhã haverá tempo suficiente para conversarmos o que deve ser conversado e conhecermos o que deve ser conhecido. – Penservon fitou Alexandrina. Era impossível descortinar-lhe os pensamentos.

A senhora de Nelgadir recuou alguns passos, deixando-se ficar lado a lado com o seu perfeito conjugue, enquanto, pelas altas portas, entravam duas bonitas mulheres de passos tão leves que pareciam voar. Trajavam simples mas belos vestidos, de tom azul celeste, que lhes ocultavam os pés. As mangas largas conferiam-lhes liberdade nos seus movimentos airosos.

‒ Eldaniel e Inorian guiar-vos-ão até à Clareira Verde. Penso que o Landar vos espera também. A dita Clareira Verde estava rodeada por antigos sobreiros. Algumas bolotas arredondadas espalhavam-se

sobre a terra, em pontos verdes nos locais onde a erva ainda não crescera. Um esquilo ruivo apressava-se a apanhar algumas, mirando-os vagamente aquando a sua passagem.

No centro deste amplo ponto de Imtharien estendia-se um edifício alto, em redor do tronco de outra árvore gigantesca. Estava construído com uma estranha madeira branca que parecia reluzir a natureza que a rodeava. Eram visíveis várias varandas que se estendiam, tentando alcançar a vegetação em redor. No exterior da casa inúmeras trepadeiras enrolavam-se-lhe, chegando às alturas superiores. Algumas das flores da planta descansavam já, esperando um novo nascer da estrela diurna, Thornigan, o Deus Sol; porém outras sorriam-lhe, totalmente floridas, convidando as estrelas e o luar a revelarem-se.

Page 104: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 104 -

‒ Chama-se Jóia dos Deuses – informou Alexandrina, que caminhava ao seu lado, em resposta à curiosidade muda. – As flores azuis florescem sob a luz do Sol e as brancas com o luar. Os botânicos do nosso mundo gostariam realmente de estudar esta espécie, se por lá a encontrassem.

Liriana deu uma pequena risada, tentando demonstrar uma animação que não era de todo real. ‒ Vá, não penses nas coisas tristes, Lírio do Campo. Deixa-te imiscuir na paz do que é puro – pediu

Leonardo, pousando-lhe a mão no ombro. – E cuidado com o Pompom, ele arranha. ‒ Leonardo! – advertiu a sua madrinha, lançando-lhe um olhar reprovador. ‒ Eu tenho razão, é uma questão de zoologia. – O necromante encolheu os ombros, no entanto qualquer

um dos presentes notava o quão jocoso era o seu tom. ‒ Tem cuidado para que não seja o teu lindo rosto a ser arranhado. Todos, excepto Alexis, se voltaram para trás instantaneamente. Parecendo surgido do nada, Landar

esquartejava Leonardo com um olhar tão mortal quanto as suas espadas. Parecia que invocar espíritos de mundos distantes tornara Leonardo um pouco inconsciente em relação aos vivos. Ou àquele vivo em particular. Liriana tinha a certeza de que Landar era bem capaz de cumprir a sua promessa com um sorriso nos lábios.

‒ Penso que a Liriana não achou muito agradáveis os “arranhões” que desferiste, há uns tempos atrás, no homem que mataste – declarou, mantendo um tom calmo e racional. O divertimento tinha-se escoado da voz.

‒ Ele merecia morrer. ‒ Talvez sim. Porém, decapitar alguém em frente de uma criança não era a melhor forma de exibires os

teus dotes felinos. Landar soltou um rosnar assassino e avançou para Leonardo numa pequena corrida. A sua mão direita

segurava o punho de uma das espadas. Liriana abriu os olhos de aflição. Um grito horrorizado começava a formar-se-lhe na garganta, quando

uma lâmina lhe passou junto à face, emudecendo-a por completo. Alexandrina desembainhara �iarda e detivera o golpe do elfo num entrechocar de metal que lhe feriu os ouvidos, ficando ali a retinir durante muito mais tempo do que se tratassem de duas vulgares espadas.

A jovem olhou para a sua madrinha e amiga. Tinha os olhos sérios e os dentes cerrados pelo esforço. Os braços estremeciam enquanto, com as duas mãos, agarrava firmemente o punho de �iarda. A lâmina cristalina da espada de Landar parecia brilhar num negro palpitante em resultado daquele contacto.

‒ Resfria-te, Landar. O teu temperamento é lastimável. – Não baixou a espada enquanto proferia estas palavras, contudo a respiração tornava-se ofegante.

‒ A grande dádiva de um guerreiro é o seu autocontrolo. ‒ O Arden tem menos 150 anos e entende as minhas palavras – disse, sem olhar o rapaz que se tinha

mantido calado durante todo o percurso e se mencionara nesse momento no seu sério tom de adulto. Os olhos amarelos esconderam-se sob as pálpebras. Os lábios de Landar estremeciam num acesso de raiva

entrecortado pelo desgosto. Desviou a espada negra, devolvendo-a à bainha recurvada com um leve deslizar que arrepiou Liriana.

‒ Por favor, desculpa-me. Prometo que não voltará a acontecer. Alexandrina respirou fundo, enquanto passava a mão pela face, com um leve aceno afirmativo.

Assinalava assim uma crença baseada na amizade dos dois.

Page 105: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 105 -

XI

A Lenda do Lago Midarvia

Reflexos. Espelhos. Sombras. Donzela foi que chorou

Pela distância desdita erguida Entre si e o seu amor.

Criou-se então a vida de companhia Alegre de fachada pura e esguia.

Ergueram-se no saber, na inocência Vivos mortais dos mundos. Erguemo-nos nós desnudos.

E a donzela amou-nos, cuidou-nos, Filhos seus, da virtude.

Criou-nos reis, das lágrimas suas.

“Criação”

Os pássaros chilreavam mais felizes do que nunca, naquela manhã encantadora, acordando-a de um repouso regenerador há muito esperado. Estava deitada numa cama larga, com todo o espaço que precisava para se espreguiçar, embrulhada em lençóis frescos.

Pela varanda entrava um ténue brilho perseverante que lhe desejava um bom dia, como se os dias passados fossem apenas um pesadelo de que acordara.

Saiu da cama lentamente, testando ainda aquele novo sítio em que se encontrava. Os olhos correram as paredes de fundo bege, pintadas com pequenas flores que eram perfeitas imitações das do exterior. O que realmente estranhava era o facto de quase ter a certeza de que na noite passada eram as imagens das flores brancas que estavam floridas, tal como acontecia no exterior. Ainda estaria cansada, ou aquilo seria a magia dos elfos, ou mesmo da Mãe Natureza?

Caminhou até à varanda e afastou as cortinas brancas, deixando que a claridade entrasse por completo no bonito quarto. Ao fazê-lo, um rechonchudo passarinho laranja e preto que se encontrava por ali, voou para um tronco perto do edifício, mirando a desconhecida curiosamente com os seus olhinhos negros.

Sentiu-se a respirar fundo, perante aquele ambiente ameno. Sem aviso, ouviu alguém bater à porta e voltou-se para trás. Esta abriu-se lentamente, sob o seu olhar, e

uma face espreitou para o interior, sorrindo-lhe ao avistá-la. Era Inorian, uma das jovens elfo que na noite passada os levara até ali e os acompanhara até por fim se deitarem.

Os seus cabelos entrançados com fitas brancas deixavam-se cair pela frente dos ombros num ruivo intenso e reluzente, emoldurando um rosto pálido, mas levemente corado, que lhe dava um aspecto carinhoso.

‒ Bom-dia, Liriana – cumprimentou. Na noite passada a jovem humana praticamente lhe implorara para que não a tratasse por senhora. – Descansaste durante a noite?

‒ Sim, obrigada – respondeu, retribuindo a simpatia com um sorriso sincero. – Entre! Inorian fechou a porta atrás de si. Trajava um vestido verde que condizia com os olhos também daquela

intensa cor. ‒ Vim ajudar-te a vestir – declarou, aproximando-se do guarda-vestidos encostado à parede, a poucos

metros da porta. ‒ Ah… – Liriana abriu a boca para dizer alguma coisa, mas na verdade não sabia o que a esperava do lado

de lá das portas do alto armário. Na noite anterior as suas roupas tinham sido confiscadas por Inorian, com destino incerto. E não sentia qualquer desejo de andar de um lado para o outro com um vestido comprido, tal como fazia a elfo.

Page 106: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 106 -

‒ Não te preocupes. – Olhou-a de lado, tentando amenizar a sua expectativa. – A senhora Alexandrina disse-me o que te deveria dar a experimentar. Mas antes esperam-te águas refrescantes, na sala de banho.

Fez um gesto em direcção à parede onde se encostava a cama, que Liriana seguiu, mas não lhe pareceu ver nada de mais. Fitou Inorian, confusa.

A elfo deu uma risada divertida e deixou o guarda-vestidos, ultrapassando a jovem estupefacta e tocando na parede. Empurrou-a sem força, e pequenos recortes desvendaram-se no que parecia ser totalmente liso. A porta deslizou para trás sem qualquer ruído, dando a conhecer uma pequena antecâmara em branco, onde se acolhia uma banheira comprida; dois pequenos recipientes em pedra esbeltamente trabalhada, repletos de água; e uma pequena mesa em ébano, onde repousavam várias toalhas verde-claras.

‒ Ontem lavaste-te numa sala de banho comum a todos, mas a partir de agora tens uma sala privada. Depois de se entreter com pequenas descobertas (um dos recipientes aquecia a água que lá colocava,

outro deixava-a ao natural), Liriana vestiu as roupas que Inorian escolhera para si: umas calças beges que se escondiam dentro de umas botas rasas e castanhas, no mesmo tom dos seus olhos, com vários cordões que se enrolavam à volta das mesmas. A camisa condizia com as calças, sendo que as mangas se alargavam à medida que avançavam para as mãos. Por cima disto, vestiria um corpete em pele, na mesma cor que as botas, que se ajustava ao seu corpo na perfeição. Não poderia dizer que estava mal vestida. Até gostava da imagem que o espelho reflectia.

Inorian fê-la então sentar-se num banco em frente ao toucador, indo contra a sua insistente vontade, e tratou-lhe dos cabelos que nos últimos dias se tinham tornado deveras rebeldes, tentando fugir das rédeas que o elástico lhes aplicava.

Fez-lhe três tranças finas de cada lado do risco que lhe separava o cabelo em duas metades equiparáveis. Com um gancho branco que a jovem não vira donde aparecera, juntou as tranças com mais algum cabelo, num toque de simplicidade florida.

‒ Agora estás pronta para ir tomar o pequeno-almoço com a senhora Alexandrina. E como estás bonita! – observou, sorrindo-lhe através do espelho.

A pequena sentiu-se a enrubescer totalmente com o inocente elogio. Desceram a escada de madeira em caracol, que se dispunha em redor da árvore e que permitia a passagem

para os outros andares. Liriana deixou a mão deslizar em volta do tronco, algures nodoso, algures suave, enquanto o fazia. Uma vida palpitava no interior daquela casca sem calor.

O salão para onde se dirigiam encontrava-se no andar térreo, pouco depois da entrada. Já todos estavam acomodados, nos seus devidos lugares, com uma pequena excepção. Landar, como

normalmente, não se encontrava presente. No entanto, assim seria melhor. Na opinião de Liriana, o elfo era demasiado agressivo.

Alexandrina acenou-lhe quando a viu entrar. Ao seu lado encontrava-se uma cadeira de espaldar alto, vazia e reservada para si. Leonardo sentara-se do lado direito da sua madrinha e ao lado deste acomodava-se Ilnosianar. Arden e Cisdahen encontravam-se ao lado da cadeira vazia.

Assim, Inorian deixou-a à entrada e afastou-se para destino incerto. A mesa estava recheada de comida – cestos com pequenos pães fofos; manteiga cremosa; e sumo, que

suspeitava ser de laranja, pela cor. Havia também uns bolinhos achatados com amêndoas a enfeitar e leite branco que fumegava um pouco.

Após o pequeno-almoço, Ilnosianar levou Arden e Cisdahen para uns campos próximos, enquanto Leonardo alegou que “iria dar uma volta por aí”, deixando Alexandrina e Liriana a sós.

‒ Bem, nós poderíamos também ir reconhecer a zona, para ficares mais familiarizada e não precisares constantemente de um guia. Nem toda a gente gosta de andar com uma ama-seca atrás – declarou, com um encolher de ombros.

‒ Se a ama-seca for interessante, penso que não existirá qualquer problema. ‒ Podes ter razão. Mas há quem diga que “o que é demais enjoa”. – Sorriu para Liriana, que lhe ficava ao

nível do ombro. Vaguearam durante horas. Alexandrina parecia apreciar o silêncio e, por enquanto, Liriana não tinha

ainda questões formadas, apesar de a percorrer uma corrente alterna de dúvidas e questões enroladas num novelo repleto de nós.

Page 107: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 107 -

As árvores que rodeavam a clareira tinham espaço suficiente entre si para uma caminhada agradável sob a sombra refrescante. A música da vida saltitava pelas folhas, batendo às tocas sob raízes extensas e visitando os ninhos onde ovos minúsculos ansiavam por eclodir. Ao longe, um brilho chegava até elas por entre os troncos nodosos, deixando antever um pouco do que as esperava. A cada metro que avançavam, o brilho aumentava até que saíram de entre as árvores, desembocando numa ampla planície ocupada por um imenso lago, a fonte da luminosidade, onde os raios solares se reflectiam.

‒ O Lago Midarvia – apresentou Alexis, com um olhar nostálgico. – O grande e mítico lago de Imtharien. Liriana perscrutou a imensidão azulada. A brisa perturbava-o um pouco, ondulando-o ternamente. Na

margem, jovens elfos corriam de um lado para o outro de pés descalços, atirando água uns aos outros, na brincadeira.

‒ Imtharien? ‒ É o nome deste mundo – esclareceu Alexandrina, virando as costas à paisagem. – Talvez um dia te

conte a sua história. Não é muito longa, mas é interessante, a história de um amor, como muitas das lendas épicas.

‒ Hum… – murmurou Liriana pensativa. Se a madrinha o dizia, ela acreditava. O almoço decorreu como um acontecimento vulgar, aparentando ser aquele o dia mais normal que se

poderia imaginar. Após a refeição, subiram aos seus aposentos, mas Liriana estava determinada a, nessa mesma tarde, ir colocar as suas questões.

Alexandrina fitava a janela em forma de arco, meditando, quando Liriana entrou no quarto. Era um aposento amplo, pintado no branco da paz e da pureza. Uma cama de colcha verde-escura, bordada com pequenas folhas douradas, encontrava-se encostada à parede onde se abria a entrada. A anfitriã do quarto estava sentada a uma mesa circular, de costas direitas. Encontrava-se tão perdida em si que, quando Liriana batera à porta, não a escutara.

Acercou-se dela com passos silenciosos sobre a madeira bem tratada do soalho e tocou-lhe no braço, chamando-a a si com um pequeno estremecimento.

‒ Desculpa, não dei pela tua chegada – declarou, com um sorriso honesto, ao ver quem era. ‒ Eu reparei, não precisas de pedir desculpa. Podias encontrar-me na mesma situação em qualquer altura,

a pensar coisas por vezes sem sentido. – Liriana encolheu os ombros, lançando um olhar ao possível ponto que a madrinha observava. As copas suaves e arredondadas das árvores erguiam-se a alguns metros de distância num tom calmo e pacífico. Uma gentil brisa afagava as folhas cimeiras, abanando-as vagamente.

‒ Senta-te, já andaste em demasia nos dias anteriores – pediu, indicando a única cadeira livre junto à mesa.

Depois de acomodada, Liriana olhou intermitentemente entre Alexandrina, a janela aberta e as suas mãos. Não sabia como abordar o assunto sem parecer despropositada.

‒ Por favor, não te inibas. Não vieste aqui para que o silêncio tomasse conta de nós. Por vezes é agradável, mas este não é o momento. Sei que existem muitos assuntos a perturbar essa tua cabecinha. – A mão suave de Alexandrina afagou-lhe a face.

‒ Isso quer dizer que posso perguntar o que quiser? – quis saber a jovem. Sentia-se cheia de confusões, de enigmas sem sentido, de dúvidas que de início se começaram a amontoar a um canto e agora a preenchiam por completo.

‒ Perguntar podes, mas… – Liriana sabia que iria surgir um “mas”, materializava-se sempre para se interpor. – Posso não poder responder-te a tudo, por agora. Existem assuntos que não podem ser tratados neste momento.

O silêncio voltou a instaurar-se até que Liriana ganhou coragem para remeter a primeira pergunta, apesar de um pouco baralhada ainda.

‒ O que… como… aquela sombra… quer dizer, como é que vim para este mundo? E que mundo é este? ‒ Este mundo chama-se Imtharien. Faz parte de um círculo aberto de sete mundos que vivem em espaços

paralelos. – Sob o olhar confuso da afilhada, tentou explicar melhor. – Teoricamente, Imtharien é a Terra, o Sol que vês brilhar desta janela é o mesmo que te sorria quando ias para a escola num dia solarengo e a Lua é também a mesma que te acompanhava nas noites em que não conseguias dormir. Mas só teoricamente. São… universos gémeos que vivem separados pelas suas diferenças, por uma distância aparentemente pequena mas intransponível.

Page 108: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 108 -

Liriana esteve prestes a fazer uma pergunta despropositada. Conseguiu deter-se, mas foi um acto vão, pois Alexandrina percebeu-a.

‒ Sim, como eu e a Vinyriah – suspirou, contudo não parecia sentir pesar. ‒ Como é que me consegues ler os pensamentos? Alexis soltou uma pequena gargalhada divertida. ‒ Não os leio, pressinto-os e interpreto-os na tua expressão. E não sou a única a fazê-lo, pois não? – A

madrinha perscrutava-a, avaliando-a, todavia Liriana não sabia ao que ela se referia. Não conhecia ninguém que fizesse o mesmo, e muito menos a sua própria pessoa.

‒ Não sei, mas imagino que não. ‒ Descobrirás com o tempo, és ainda muito nova e não tens treino – concluiu, com um encolher de

ombros. – Mais alguma pergunta que te dê que pensar? ‒ Sim – respondeu prontamente. – Porquê eu? – Alexandrina olhou-a espantada. – Porque é que a

Vinyriah me escolheu a mim? Eu já a tinha visto antes de ir para tua casa, tenho a certeza! Apareceu-me em sonhos, uma noite antes da viagem. Que fiz de mal para que ela me perseguisse?

‒ Não fizeste nada. ‒ Então, porquê eu? ‒ Ora aí está uma pergunta a que não te posso responder. – O seu tom era sério. Sabia a resposta, mas tal

como a árvore anciã dos bosques de Selnar Irgir, achava-a demasiado imatura. Tinha de lhe provar o contrário. Apesar das questões colocadas, continuava a não perceber muito por aí além do que se passava em toda

aquela história. Os esclarecimentos pareciam longe do seu alcance. ‒ Hum… ‒ murmurou pensativamente. – Quando estive no palácio de Lorde Riargion, encontrei

casualmente o local onde estava escondido o corpo da Vinyriah. – Encolheu-se um pouco, esperando uma repreensão, mas ela não veio ao seu encontro. – Ela estava fechada dentro de uma sala, no fundo de um corredor. Mas eu era a única que conseguia ver o corredor. E havia mais! As portas da sala onde estava trancada eram estranhas. Pareciam possuir poder. Acho que o senti.

‒ Ah! Sim, as portas lendárias do palácio de Ranar… Como pudemos ser tão idiotas?! – exclamou de súbito a madrinha, como se de repente um clarão de clarividência a invadisse. Liriana fitou, espantada, aquela reacção, sem compreender. Então Alexis passou a uma pequena explicação. – Há centenas de anos, o palácio de Ranar foi construído por um famoso e grande mago. No nosso mundo chamar-lhe-iam Merlin, aqui chamamos-lhe Herioz, o Sacerdote Supremo. Bem, Herioz construiu o palácio em honra da sua amada e a ela dedicara-lhe um quarto em especial, uma câmara num corredor guardado pelos grandes poderes dos Deuses Pais. As suas figuras estavam representadas em cada uma das duas portas do quarto, e cada uma emanava a sua essência protectora. Nunca ninguém descobriu onde esse corredor se encontrava, nem nunca ninguém o viu, depois da morte de Herioz, e o palácio foi abandonado durante anos e anos. Agora sabemos que as coisas não se passaram bem assim. O Ardanir encontrou-o, e sou capaz de teorizar o porquê, pois Midarvia é uma deusa que se comove facilmente com representações de apreço amoroso. Mas de que forma a encontraste, isso para mim é um mistério.

Sim, para Liriana também era um mistério, concluiu, enquanto as mãos, sem querer, fugiam para os bolsos. E, nesse simples gesto, uma delas tocou em rebordos irregulares.

‒ Tenho mais uma dúvida. – A mão direita saiu do bolso, trazendo consigo um cristal esbranquiçado e anguloso que agora parecia estar muito mais sossegado. O seu brilho era fraco, como se descansasse. – Acho que esta pedra me ajudou contra a Vinyriah.

Os olhos de Alexandrina abriram-se de espanto ao observar a pequena pedra. ‒ Posso? – perguntou, estendendo a mão na expectativa. Liriana entregou-lhe o cristal sem pensar muito nas alternativas e a madrinha observou-o junto aos olhos,

rodando-o entre os dedos pálidos e esguios, absorvida nos seus pensamentos. ‒ Inacreditável… – concluiu com um sorriso de revelação. – Onde o encontraste? ‒ Para ser sincera, penso que tenha sido no bolso, depois de ter… bem… desaparecido da Mansão

Adriática, enquanto estava perdida… não sei bem onde. Parecia um mundo entre este e o outro – tentou explicar, confusa consigo mesma.

‒ Devia ser o mundo das sombras. Foi para aí que a Vinyriah te enviou, com esperança de te capturar mais tarde. Se não fosse esta pedra e a tua crença, podíamos não estar neste momento a conversar – murmurou,

Page 109: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 109 -

mais para si do que para Liriana. – É As-Holan, o Âmbar da Luz. Raramente o conseguem manejar e mais raro ainda é ele utilizar a sua vontade. Os antigos chamam-lhe Pedra Viva.

Sim, disso Liriana tinha certeza, o cristal possuía vida própria, tinha um coração no interior que batia sincronizado com o seu.

‒ Guarda-a contigo e sempre ao teu lado – aconselhou, devolvendo-a. – Se quiseres posso pedir ao povo élfico para que te faça um colar onde o possas transportar sempre junto ao peito.

Liriana reconsiderou colocá-lo novamente no bolso. Seria mais prático, senão aconchegante, trazê-lo junto ao peito. Entregou-lho novamente e agradeceu-lhe sinceramente pela sugestão.

Por fim, faltava-lhe falar só de mais uma coisa. Respirou fundo e ganhou coragem para dizer o que tinha a dizer. O que lhe estava entalado na garganta impedindo-a quase de respirar.

‒ Alexandrina, desculpa-me. ‒ Mas desculpo-te porquê? – A mulher exibia um sincero espanto. ‒ Por tudo. – Não fitou a madrinha ao dizer isto. De repente achara as mãos muito mais interessantes. –

Pela minha irresponsabilidade, por ser tão metediça, por… – Mordeu o lábio que começara a estremecer, enquanto as lágrimas lhe toldavam a vista.

A cadeira de Alexandrina arrastou-se um pouco pelo chão, quando a sua senhora se ergueu para consolar Liriana.

‒ Pequenina do meu coração, não te culpo de nada. E se a culpa recaísse sobre alguém, seria sobre mim. Mas mesmo isso era incorrecto. A Vinyriah queria-te à força e neste momento tem parte de ti. Não lhe entregues o resto, não cedas a tua alma. – Abraçou-a contra o peito, carinhosamente, depositando-lhe um beijo nos cabelos. – Sê a minha esperança.

‒ Quando é que podemos regressar? – perguntou, pondo os braços à volta da cintura da senhora. ‒ Quando a Vinyriah for derrotada e a sua alma te deixar em paz. Liriana queria saber quando seria isso, mas temia a resposta. E se esse dia nunca chegasse? Deixou-se

ficar abraçada a Alexis, durante mais alguns segundos, até que os braços da madrinha a largaram. Levantou-lhe a face, limpando-lhe as lágrimas que se tinham vertido, com os polegares.

‒ Não há razão para lágrimas. Ainda te quero mostrar uma coisa hoje – informou, pegando numa das mãos da afilhada e dando-lhe um leve beijo. – Acho que o Leonardo já deve ter arranjado o cavalo que lhe pedi.

Ficou sem compreender onde se inseria aquele comentário final e sem perceber onde Alexis a poderia querer levar. Mas também não teve coragem para perguntar. Já realizara um bom número de questões, para uma só tarde. O melhor era não gastar toda a reserva de respostas.

Desceram as escadas e foram encontrar Leonardo no exterior, sentando sobre uma pedra. Mal as viu, fez um ar enfadado, simulando um bocejo.

‒ Já estou à vossa espera há mais de duas horas. As mulheres são mesmo horríveis… devem ter ficado na conversa, na certa! – observou, numa clara crítica.

A poucos metros do necromante pastavam dois cavalos de pêlo castanho. Estavam selados e prontos para serem montados. Os animais olharam vagamente para as recém-chegadas, antes de continuarem a sua refeição.

‒ E de certeza que ainda andaram a comer que nem duas gulosas enormes! Depois os cavalos não aguentam com vocês em cima e morrem de exaustão.

‒ Eu é que te mato de exaustão se não fechas a boca, sua velha coscuvilheira. Leonardo abriu muito os olhos, como se em estado de choque, enquanto Alexis levava os dedos à boca e

soltava um assobio agudo que se propagou por entre as árvores. Liriana não sabia se havia de rir perante aquele comportamento de descontracção e brincadeira, ou se havia de manter uma pose educada. No entanto, vontade não lhe faltava para soltar uma gargalhada. O que estava em falta era o à-vontade para fazê-lo.

Pouco depois, o cavalo negro de Alexis surgiu de entre as árvores e partiram logo a seguir pela floresta de Nelgadir, num galope rápido e silencioso, permitindo que o vento lhes afagasse o rosto. Pararam por um momento ou outro, para dar descanso aos cavalos, mas o seu destino só se anteviu ao fim da tarde, quando o Sol era já uma bola de fogo que se escondia no horizonte. Durante uma boa parte da cavalgada tinham seguido o trilho junto do Rio Thornigan, até que este se bifurcou, com o seu leito correndo de forma a criar uma enorme ilha, entre os dois troços.

A vegetação da ilha aparentava ser um pouco mais esparsa do que a da restante floresta, e não deveria ser por mero acaso. Para além disso, do que conseguia ver da margem oposta, era particularmente diferente: cada árvore diferia da que se encontrava ao seu lado de alguma forma, ou pelo recorte das folhas, ou pelos frutos,

Page 110: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 110 -

espessura do tronco, altura… eram todas de espécies diferentes, como se alguém fizesse questão de elaborar uma colecção de árvores, arbustos e plantas herbáceas, correndo todo o mundo em busca das sementes das plantas mais especiais. E a mais peculiar situava-se no centro da ilha, ocupando um espaço imenso. Parou o cavalo só para a poder observar, de boca semi-aberta. Não conseguia imaginar quantos metros de diâmetro poderia o tronco daquela árvore abarcar, e a altura era simplesmente colossal, para não falar da copa, repleta de uma imensidão de pequenas folhas, mas não só pequenas folhas. Pontos brilhantes enfeitavam-na, movimentando-se de um lado para o outro entre os ramos e as folhas. Eram aqueles pirilampos que vira na noite da sua chegada à capital de Nelgadir.

‒ É a Ezlabiel, a Árvore Mãe – apresentou Alexandrina, parando junto a si, também ela fitando aquela enorme maravilha. – Existe desde sempre. Ou pelo menos desde que os povos deste mundo se recordam e têm registo. Diz-se que toda a vida que cobre Imtharien é alimentada pelas suas raízes infinitas que, por sua vez, são alimentadas nas águas de Thornigan, o Deus Sol.

Liriana fez um leve aceno, sem soltar palavra. Compreendia perfeitamente, como se nada daquilo lhe fosse realmente estranho.

Desmontaram à beira de uma ponte de madeira, sobre a qual algumas plantas mais pequenas tinham feito questão de florir, e avançaram em direcção à ilha que nascera a partir do rio. A seguir à ponte, um pequeno trilho de terra batida guiava-os até à base da árvore onde existia uma sucessão de degraus que levava a uma passagem subterrânea, elaborada em madeira viva e pouco alinhada. Antes de penetrar no túnel, olhou para cima, continuando a não conseguir perceber se aquelas luzinhas entre o emaranhado de ramos eram mesmo pirilampos.

Após descer os degraus, tocou na parede de terra húmida que os ladeava, sentindo-a desfazer-se um pouco com o seu toque. Havia nela pequenas raízes e talvez alguns artrópodes que apreciavam menos a luz que ali era incipiente. O Sol do exterior não ajudava na iluminação, já encoberto com a chegada do crepúsculo. No entanto, no outro extremo do corredor obscurecido, havia alguma luz.

Liriana piscou os olhos, revelando a incredulidade que era imensa no seu interior, quando desembocou no outro extremo. A passagem dava para uma sala razoavelmente circular que deveria ocupar todo o perímetro da zona basal de tronco da árvore. O tecto era irregular, pendendo dele imensas raízes vindas da superfície. Pelo contrário, o solo estava limpo e alisado, mostrando o quão eram regulares as visitas àquele local. Algumas das raízes que se infiltravam da superfície até ali eram tão ou mais espessas que o seu corpo, mergulhando retorcidamente no solo e desaparecendo de vista, como colunas que se espalhavam desordeiramente e sustinham toda aquela estrutura. Para além disso, o perfume a terra húmida era intenso e acolhedor, apercebeu-se, com um leve sorriso, enquanto erguia o nariz e cheirava o ar.

Apesar de todos os pormenores serem admiráveis, não superavam as fontes de iluminação que lhe permitiam distinguir tudo aquilo. Em quatro extremos diferentes e bem equidistantes, encontravam-se suportes feitos de raízes, cujo topo estava rendilhado em forma de taça. No interior de cada um dos suportes, encontrava-se uma esfera do mesmo tamanho que uma bola de ténis, flutuando sem tocar nas raízes. Cada uma emitia uma luz diferente, enquadrada com a sua própria cor. A esfera laranja vivo possuía uma alumiação quente que conseguia chegar até si. Por sua vez, a esfera azul transmitia um frio ténue que lhe dava calafrios. As outras duas não transpareciam tais sensações, no entanto era possível sentir-se outro tipo de emanações, como uma brisa ou o palpitar da vida.

‒ E esta é uma das moradas dos Elementos – afirmou a madrinha, num sussurro, como se não quisesse perturbar ninguém. – Existem sete, por toda Imtharien. Locais sagrados onde a essência dos elementos se mantém estável e em harmonia consigo própria.

Liriana aproximou-se daqueles pequenos tesouros venerados, observando como eram instáveis, mergulhando sob si próprios, em permanente dinamismo. Estendeu um dedo para tocar na esfera que oscilava entre variadíssimos tons de azul e pôde sentir a água no seu inato, apesar de esta não ter ficado presa à sua pele, como ficaria a vulgar água de um vulgar riacho. Existia uma força viva que atraía as partículas entre si, esquecendo-se do tudo mais que a si não pertencia. Era somente a essência pura de um Elemento, mas esse somente tornava-se amplo, quando a visão permitia perscrutar para além do visível.

‒ Isto é aquilo que fizeste há dias atrás… ou uma coisa parecida – observou a jovem, baixinho, dobrando um pouco as costas, enquanto aproximava os olhos para ver mais de perto.

‒ Pode-se dizer que sim. Os Elementos auxiliam aqueles que os respeitam e neles crêem. Eu pedi-lhes auxílio e eles escutaram as minhas preces.

Page 111: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 111 -

Manteve-se em silêncio, perguntando-se como aquela essência poderia ajudar alguém; perguntando-se que mente vivia pendente no âmago daqueles entes. Alexandrina falara em respeito e crença. Porém, quantos não eram aqueles que os nutriam sem ter os mesmo intentos que ela? Bem e Mal eram conceitos abstractos e sem significado para os Elementos. Ou não seriam? Quiçá o seu esforço se praticasse na conservação de um equilíbrio entre o que existia.

Endireitou as costas e aproximou-se da esfera seguinte, que oscilava entre cores vivas e negras, com um leve tom de castanho. O Elemento Terra. Quando ia a estender a mão para lhe tocar, sentiu alguma coisa ir de encontro ao seu pé. Baixou o olhar a tempo de ver um gnomo, mais pequeno do que o Sr. Elmar. Este olhava-a com ar ofendido, como se Liriana fosse praticar um tremendo impropério. E aquela sensação no seu pé deveria ter sido um pontapé.

‒ Não mexas na Terra! Isso não te pertence! A jovem afastou a mão rapidamente com aquela admoestação. – Peço desculpa… Estava só a ver… ‒ Vê-se com os olhos, não é com as mãos! Encolheu-se, sentindo-se mal por estar a ser advertida por um ser com dez centímetros, como se não

passasse de uma criança traquina e abelhuda. ‒ Não seja tão rígido, sacerdote. Se os Elementos se importassem, eles próprios puniriam a Liriana –

interferiu Alexis, dando alguns passos na direcção do elemento Fogo, que se apresentava como uma pequena bola de magma. Estendeu a mão acima dela, sem se atrever a tocar-lhe. Línguas de fogo ergueram-se da esfera, tentando alcançar-lhe a mão, acariciando-a sem a queimar, como se só quisessem sentir-lhe o sabor da pele. Sob a luz alaranjada que o Fogo irradiava, a face da guerreira pareceu-lhe algo sinistra. – Todos somos servos da Deusa, até eles, por mais sagrados que nos sejam. Os Elementos punirão aqueles que a desrespeitarem. Tal como nós.

Afastou a mão, flectindo os dedos, enquanto a observava. Tinham caído em silêncio, escutando-se somente o murmúrio dos Elementos e o sussurro mudo das raízes de Ezlabiel. Linguagens que nenhum deles compreendia, mas que pensavam sentir.

Landar esperava-a num pequeno campo de terra batida, à sombra de uma árvore. Os seus olhos seguiram

os passos da jovem, atentamente, como um gato que observa a própria presa, e só quando Liriana estava ao centro do campo a olhar desorientada de um lado para o outro, é que este se dignou a aproximar-se. Estava sério e não trazia as espadas negras à cintura. Antes, transportava numa das mãos um balde de madeira vazio e, na outra, um balde cheio de batatas poeirentas.

Alexandrina, sob pedido da afilhada, convencera Landar a treiná-la nas artes da guerra. Não queria voltar a ser uma inútil, não queria que fossem os outros a fazer tudo por si. Queria saber defender-se. No entanto, ao princípio, Landar não quisera, negara-se a ensinar uma criança. Mas fossem quais fossem os argumentos da amiga, acabara por ceder. E esse seria o primeiro dia.

‒ Landar, para que é isso? – perguntou, franzindo as sobrancelhas. ‒ Enquanto aqui estivermos, tratar-me-ás por mestre. Agora segue-me. – Voltou-lhe as costas, sem uma

resposta clara. ‒ Onde vamos? – A desconfiança começava a marcar-lhe o rosto. Aquilo não estava a fazer sentido

nenhum. ‒ Não faças perguntas, limita-te a seguir as minhas ordens. Até te dispensar, és minha aprendiza. – Ao ver

que Liriana ia contestar, interrogou-a sobre uma questão sensível. – Queres ou não ajudar nesta guerra? Queres ou não voltar para casa? – Liriana olhou para as botas, insuflando um pouco as bochechas.

‒ Gostava de voltar – respondeu num murmúrio. ‒ Ora bem! A Alexandrina pediu-me para te treinar porque tu também o querias. Vou-te ensinar a

trabalhar com armas. Por isso chega de conversa, que o meu tempo é precioso. Guiou-a por entre as árvores frondosas onde os pássaros chilreavam e os esquilos saltitavam, correndo

também pela erva verde que cobria a terra. Os pequenos animais não os temiam, eram mesmo capazes de se aproximarem, pousar-lhes no ombro amigavelmente e segredar-lhes palavras que, pelo menos ela, não compreenderia.

Ao fim de quinze minutos de silêncio chegaram ao seu destino. Era extremamente incómodo caminhar lado a lado com uma pessoa que não comunicava, que se limitava a dirigir ordens de forma tão rude e fria.

Page 112: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 112 -

Gostava mais dele quando era um simples mas enigmático gato preto. Nessa forma parecia amoroso. Agora, visto de perto, era intimidante. E não só pelo aspecto peculiar, ou pelos actos. Era pela sua aura pesada.

‒ Senta-te – ordenou, indicando um bocado de tronco velho e ressequido que jazia abandonado junto a uma árvore.

A jovem obedeceu e olhou-o na expectativa. Landar tirou uma pequena faca do cinto e rodou-a entre os dedos. ‒ Sabes descascar fruta? – perguntou, como quem não queria. ‒ Eu… mais ou menos – murmurou esta, tentando convencer-se de que Landar não iria ordenar-lhe uma

coisa daquele género. ‒ Não me contento com “mais ou menos”. Enquanto não conseguires trabalhar com isto, não tocas em

mais nenhum género de arma – declarou, estendendo-lhe o cabo da faca. Liriana pegou-lhe, hesitante, e mirou o balde cheio daqueles tubérculos. Aquilo deveria ser uma

brincadeira de muito mau gosto. ‒ Quero que as descasques, não que as mutiles, compreendes? ‒ Mas… ‒ Não há mas. A tua missão é obedeceres. ‒ Mas para que serve isto?! – insistiu a rapariga, indignada. ‒ Para aprenderes a precisão e a suavidade do corte. Quanto mais depressa começares, mais depressa

acabas. O elfo afastou-se alguns metros e sentou-se no chão, encostado a um forte tronco de castanheiro. A faca que lhe dera era fina e leve, com um brilho que lembrava o luar. O cabo estava talhado numa

madeira escura, talvez ébano, e tinha algumas letras inscritas. Soltou um suspiro. Landar tinha razão, quanto mais depressa começasse, mais depressa acabaria.

Quando iniciou a empreitada de descascar os tubérculos, deu-se conta que aquilo podia não ser batatas. Por baixo da pele castanha terrosa encontrava-se uma polpa laranja bastante mais mole do que qualquer legume do género. Um suco da mesma cor tingia-lhe agora as mãos.

‒ O que é isto? – perguntou para si mesma, num murmúrio, franzindo as sobrancelhas. ‒ Bivan, um tubérculo muito rico em vitaminas e nutrientes e muito hidratante – respondeu Landar de

onde estava. Tinha os olhos fechados, mas Liriana apostava tudo o que tivesse em como ele não deixava de a vigiar. – Pensa nisso como o sangue das tuas futuras vítimas.

Liriana fez uma careta de repugnância. Quando saíra do seu quarto para ir ter com Landar ia convicta de que tudo aquilo seria extremamente instrutivo e transportava a pequena esperança de tirar as suas dúvidas quanto ao suposto exílio do professor. Agora, via que o melhor seria ficar com a boca bem fechada e, inclusive, não se atrever sequer a pensar. Sabia lá o que Landar poderia detectar num simples olhar.

Ao fim de meia hora tinha acabado a sua tarefa e o elfo aproximou-se para averiguar a obra-prima. As esperanças não eram muitas, e o seu esgar de “pouco impressionado” tirou as que lhe restavam.

‒ Espero que amanhã melhores isto. Matavas-te se te desse para a mão uma simples adaga. Liriana sentiu a face ruborizar-se. O que pensava Landar que ela era? Uma incapaz? Podia ter cometido

alguns erros, diga-se que catastróficos, mas não o fizera por mal, e queria remediá-los. Por maior número de vezes que Alexandrina repetisse que a culpa não fora sua, não a convencia.

‒ Porque não me dá uma hipótese, mestre? – O seu tom parecia implorativo. ‒ Estou a dar-ta. Se não gostas dos meus métodos, pede ao Leonardo que te ensine necromancia. Com esta frase Landar queria transparecer indiferença, mas os olhos traíram-no. Naquele amarelo estava

patente um sentimento de contrariedade resfriada. Qual seria a razão de tanto ódio? A diferença entre eles? Virou-lhe as costas e distanciou-se com passos leves de felino, deixando-a a sós consigo mesma. Tinha de arranjar uma forma de mudar aquele método. Queria muito que fosse Landar a ensiná-la. Vira

como ele matara o homem no bosque de Ranar, como se praticasse uma dança elegante que deixaria qualquer um sem fôlego. As espadas pareciam fazer parte dele, tão puras e frias como os deuses, tão perfeitas como a imortalidade, tão perigosas…

Um arrepio percorreu-a ao lembrar-se daquele brilho negro a deslizar sobre a base do pescoço de Karnaugh. Ter-lhe-ia sido doloroso?

Levou a mão à própria garganta, inspirando profundamente, enquanto a massajava. Ela nunca perpetuaria um acto como aquele. Ia contra toda a sua moral. E Landar, porque o fizera? Não aparentava ser má pessoa, mas

Page 113: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 113 -

executara-o com um sorriso nos lábios, um sorriso que ainda lhe causava mais arrepios do que as lâminas negras.

Tinha que tirar aquele assunto a limpo, e pressentia já que estaria relacionado com o facto de Landar não pôr os pés na Floresta Dourada, o seu local de origem.

Nessa mesma tarde, Liriana pediu a Inorian para a levar até à biblioteca que se situava no palácio. A elfo

acedeu prontamente, sempre com vontade de ajudar. Selaram-lhes dois cavalos e, em menos de meia hora, estavam do centro da bela Nelgadir.

As árvores frondosas deram-lhes as boas tardes sob os seus ramos, enquanto atravessavam o passadiço branco. A biblioteca situava-se do lado oeste e, tal como na Mansão Adriática, ocupava vários andares. Porém, várias diferenças as desigualavam. Esta era maior, muito maior, com vários pilares esculpidos com padrões singelos que sustinham o tecto, onde sobressaíam frescos de belos elfos quase desnudos que confraternizavam com outros seres de espécies diferentes num vasto jardim onde floria a alegria e a paz. A alegria e a paz que sempre ambicionara para si e para o seu mundo.

Inorian procurou por si um livro que contasse resumidamente a história daquela terra. E não demorou muito para o encontrar. Depositou-o à frente de Liriana que fez um esgar mal abriu a primeira página. Estava escrito numa língua sua desconhecida. A elfo apressou-se a corrigir o erro e trouxe um dos poucos que estava escrito na chamada “língua corrente”, uma linguagem que, inexplicavelmente, todos falavam e liam sem problemas. Dizia-se que estava enfeitiçada pela Deusa-Mãe, para que todos se pudessem compreender, segundo Inorian. Era uma coisa que lhe fazia muita confusão. Muitos dos habitantes do seu mundo gostariam de ter um encantamento daquele género.

A capa do livro tinha um único título, era ele Imtharien. Era castanha e o passar dos séculos envelhecera-a. No entanto a sua resistência era notável. As primeiras páginas eram compostas por partes do mapa de Imtharien. Numa delas reconheceu alguns nomes e observou-a com mais atenção. Podia ver Nelgadir, onde agora se encontrava; Ranar, a Sudoeste, onde se situava o palácio de Riargion; e a Floresta Dourada a Sudeste, a centenas de quilómetros de distância. Um enorme lago chamado Mar do Interior parecia dividir aquela parte do mapa em dois. Era mesmo um lago muito grande…

Foi passando as páginas até encontrar o que desejava, parando pelo caminho para observar uma imagem. A legenda afirmava que aquele era um ser que habitava o tal Mar do Interior. A sua tez era azulada, e os cabelos brancos. Tinha um sinistro olhar cinzento, guelras de ambos os lados do pescoço e os dentes mostravam-se perigosamente afiados. Não gostaria nada de encontrar um monstro daqueles quando fosse à praia.

As referências à Floresta Dourada encontravam-se nos últimos capítulos do livro. Eram interessantes e mais, assustadoras. Parecia que a floresta nada tinha de dourado, ao contrário do que o nome fazia crer. Na verdade, pouco tinha de floresta: era um pântano.

Ao fim de três dias, já Liriana caminhava sozinha sob as árvores. Os pés guiaram-na até ao grande lago

Midarvia, onde se espelhava o ameno Sol da tarde. A superfície intocável ondulava imperceptivelmente, fazendo nascer em si uma enorme vontade de refrescar os pés cansados do passeio solitário e meditativo. Descalçou-se ainda no trilho e avançou pela relva fresca e florida, onde pequenas abelhas zumbiam e revolteavam. E como lhe pareciam inofensivas!

Sentou-se à beira da imensidão de água sagrada e tocou-lhe com a ponta dos dedos dos pés. Um arrepio percorreu-a e recolheu-os instantaneamente. Estava muito fria. Dessa forma, abraçou-se aos joelhos e deixou que o queixo repousasse sobre eles. Nas margens longínquas, outros elfos experimentavam a água, banhando-se no que diziam ser as infinitas lágrimas da Deusa, as águas da purificação.

Em si nunca subsistira a crença no divino, todavia a adoração que algumas pessoas dedicavam aos seus ídolos era louvável. Se essas muitas pessoas perdessem a fé talvez tudo estivesse acabado. Muitas das forças esvair-se-iam para o buraco negro que era o Nada.

A meio dos seus pensamentos, sentiu um toque inesperado no ombro e voltou-se para trás. Os olhos abriram-se de espanto e um sorriso alegre surgiu-lhe nos lábios.

‒ Olá, Liriana!

Page 114: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 114 -

Os orbes azuis da recém-chegada brilhavam com uma profundidade acriançada e o cabelo de ouro e revolto emoldurava-lhe o rosto pequeno num toque angelical mas traquina. Estava diferente, mas não irreconhecível.

‒ Nyan! – Não estava à espera de ver a criança, muito menos em Nelgadir, ainda que no dia da sua chegada lhe tivesse parecido vislumbrá-la. Quem a trouxera? – O que fazes aqui? Onde está a tua mãe?

A pequenina encolheu os ombros e limitou-se a sorrir, sem responder, numa tão grande inocência que se tornava suspeita. Vestia uma túnica larga que lhe pousava sobre os pés descalços. Os cabelos estavam enfeitados com pequenas flores do mesmo tom que as suas vestes. Parecia um anjo.

Os cascos leves de um cavalo fizeram-se ouvir e Liriana olhou por cima da cabeça da criança. Alexandrina caminhava naquela direcção, lado a lado com o seu cavalo negro. Enquanto se aproximava, o olhar da madrinha não se desviava de Nyan.

‒ Boa tarde, Alexis – cumprimentou a pequena, voltando-se com um saltinho. ‒ Boa tarde, Zaneryah. ‒ Zaneryah? – inquiriu Liriana, confusa. Seria o segundo nome da criança? Alexandrina sorriu. ‒ Liriana, apresento-te a Senhora das Fadas. A jovem abriu muito os olhos, fitando a pequena criança de ar traquina. ‒ Mas eu conheci esta menina há dias atrás e ela era filha de uma senhora de Ranar, e chamava-se Nyan,

não era… – No entanto as palavras faltavam-lhe, pois sabia que a probabilidade da madrinha se enganar tendia para zero. Observou a figura diminuta que se mantinha atrás de si. Atentou aos pormenores das suas vestes, bordadas com linhas douradas sobre os azuis que se imiscuíam como um oceano, mergulhado na frescura do místico.

‒ Não me falaste do vosso encontro – manifestou a dama, deixando-se cair ao lado da afilhada, de pernas cruzadas. O cabelo caía-lhe solto por detrás das costas, num negro descanso ameno.

A pequena imitou-as antes de lhe responder. ‒ Gosto de conviver com humanos e contactar com o seu estranho estilo de vida, com as suas tristezas que

não acalento. É divertido. ‒ Divertido? – Liriana não se conseguiu conter. Qual era a diversão patente na miséria dos outros? ‒ É divertido ajudá-las – completou Alexandrina, mirando a imensidão lagunar de Midarvia. Uma ave

branca rasou sobre o enorme espelho solarengo, tocando-lhe levemente com a ponta da asa. Liriana desviou o olhar da fada, por educação, meditando nas palavras que ouvira. Porém essa meditação

lembrou-lhe algo mais. A imagem de uma senhora surgia-lhe em cada lapso de segundo, intervalando-se com outras imagens suas conhecidas: Anabela, sua mãe, e Lourenço, seu pai, ambos assolados por uma discussão onde o assunto principal era a sua pessoa, a sua tutela.

Estremeceu inadvertidamente, fechando os olhos para quebrar aquele feitiço. Não sabia o que fazer para remediar o passado e o presente, para prevenir um futuro que se aproximava de garras estendidas.

‒ O que tiver de vir, virá. – A voz de Nyan soou fina e ameninada, mas recoberta de razão. – Só teremos que nos precaver, visualizar o presente e antever o futuro. O que viste passa-se neste preciso momento no teu mundo. Contudo influenciaste a tua visão.

O choque reflectiu-se no rosto da adolescente. ‒ Nada conheces de ti, minha querida – falava como uma anciã, perante o silêncio de Alexandrina. – Mas

todos nós sabíamos que um dia chegarias. Eras esperada. Eu vi-te chegar, viu também Herioz, o sacerdote supremo. E viu Sanata Vinyriah, a maldita.

‒ Foram três as previsões, sob a Luz e a Escuridão. Mas houve uma quarta, vinda dos mortos – pronunciou-se Alexandrina. Liriana foi percorrida por um novo arrepio. – É um enigma, ainda. Todavia eles tudo sabem. Conhecem o futuro por revelar.

Ditas estas palavras, nenhuma das três se mencionou. Só os pensares fluíram, revolteando os corpos em bailados de mistério, pedindo respostas. Viriam elas nalgum esperado dia? Oh! Tinha a certeza que sim. Mas quereria Liriana conhecê-las?

‒ Mas não pensemos mais nisso, o melhor é não nos preocuparmos – declarou Alexandrina. – Midarvia não gostaria que o fizéssemos tão perto das suas lágrimas que pedem alegria – disse, fazendo um gesto que abarcava todo o lago.

Page 115: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 115 -

‒ É bem verdade, a minha avozinha não gostaria lá muito – riu-se Zaneryah na brincadeira, apesar de Liriana não ter percebido a piada. O que fez Alexandrina rir-se também.

‒ Acho que tenho tempo de te contar, resumidamente, a história deste belo lago e digamos que a pequena grande história de todos nós, como prometido – observou, suspirando. Liriana esperou com expectativa que ela começasse.

Há milénios intemporais, Midarvia, a Deusa Lua, criadora do Tudo e do �ada, viajou até um pequeno

planeta desabitado, marcado a fogo e ressequido, activamente adormecido. Por razões desconhecidas para os mortais, de entre mundos e universos, escolheu esse como habitação precária. O que a atraiu para tão inóspito lugar era um mistério para os sábios que tudo conhecem, ou que buscam conhecer. Mas a deusa-mãe fez daquele mundo, já seu por criação, a sua casa.

Porém, a solidão ataca até a mais poderosa divindade, corroendo-lhe a alma. E apesar de imortal, Midarvia sentia como qualquer mortal. Assim, a Deusa criou o seu consorte, aquele que a alumiaria nas noites mais negras. Antes disso, não existia ainda o dia. A única luz que se propagava por anos-luz de universo não era visível. Só existia o crepúsculo. Desta forma nasceu Thornigan, o Deus Sol, no seu resplendor dourado.

Viveram juntos mais de cem mil anos, nascendo deles deuses de estratos inferiores que ocupariam o seu lugar numa hierarquia estável, no entanto sem afazeres, limitando-se a vaguear pelo vazio, pelos mundos mortos que ponteavam o universo. Esses deuses eram Scanethum, Aniria, Celam, Elil, Bervanor e Thimirian, e quantos não eram os que também se sentiam tão vazios como o redor! �o entanto, eram imortais. �ão se amavam como Midarvia e Thornigan, eram somente antigos anciões que viviam por viver. E isto entristecia a deusa mãe.

Contudo, um de entre eles amava. Era o mais velho dos que depois chegaram, Scanethum. A sua paixão inflamara-se pela sua criadora, tão amável e meiga. Havia então um problema. Midarvia amava-o como a um filho, não como a um complemento da sua alma. Por essa razão, Scanethum passou a odiar o Senhor dos Deuses, seu próprio pai. Um ódio tão intenso que fez crescer os seus poderes desmesuradamente. E quando deu por eles, não se inibiu de os utilizar contra quem detinha o que lhe devia pertencer. Os seus actos foram graves, mais que imperdoáveis.

Um dia, enquanto os dois passeavam juntos pelo universo, lançou-lhes uma maldição conjurada com crueldade. Era ela o afastamento eterno. �ão brotou nenhuma palavra da sua boca, mas a mente floresceu de vingança. O ódio tornou-o cego, mas conseguiu parte do que desejava. Thornigan afastou-se inalcançavelmente da sua amada. Midarvia ficou só. �o entanto, sabia que fora Scanethum a fazê-lo, pois tudo ela sabia, tudo controlava, ou até ali pensara que sim, mas enganara-se. E esse erro seria o seu tormento eterno. E foi assim que surgiram o dia e a noite.

Durante séculos, Midarvia mergulhou nas sombras da angústia que a sua perda provocara. Raramente via o Sol e por vezes essa visão durava instantes de segundo. E o que mais a feria era o facto de não lhe poder tocar e sentir o seu calor. Por essa razão, em Imtharien os eclipses são sagrados.

Scanethum nada conseguia fazer para lhe amenizar a dor, e nessa desfeita cruel do destino, exilou-se a si próprio num outro mundo, com o desespero de ver sofrer a sua bela amada.

E o quanto chorou a pobre deusa nesse seu mundo deserto! As suas lágrimas formaram o que está perante os teus olhos, o grande lago divino, aquele que cura, aquele que alegra, aquele que dá a vida.

Então, por entre a sua solidão desolada, Midarvia decidiu criar alguém que a acompanhasse. �ão um substituto para Thornigan, mas alguém mais frágil, mais inocente e, acima de tudo, que sentisse e amasse. Tinha já criado a vegetação e os pequenos animais que corriam, saltitavam e voavam alegres sob o seu cuidado. Mas faltava algo mais, falta sempre.

Assim, nasceram os elfos. Diz-se que surgiram do interior deste mesmo lago, criados das suas lágrimas puras. Eram seres sábios, ligados à natureza como nenhum ser vivo conseguia ser. Depois criou os humanos, seres mais volúveis, com paixões que se revelavam intensas.

E um dia, partiu sem aviso. Queria estar o mais perto possível do Deus Sol. Contudo não deixou de olhar por todos nós.

Muitos dos deuses inferiores passaram a habitar entre as gentes do mundo que Midarvia tomara como lar. �os bosques, nas águas, no submundo, entre o anel de fogo… e daí derivaram outros seres que habitam em sintonia connosco, no entanto não tão pacificamente como Midarvia gostaria. São eles Fadas; Cianas, seres que habitam as águas; Gnomos, os protectores da terra; e Zunaris; entre outras criaturas.

Page 116: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 116 -

E, apesar de tudo o que é dado a parecer, os elfos não foram os primeiros seres plenamente conscientes a habitar esta terra. �ão foi Midarvia a primeira a criar um ser mortal. Foi Thornigan. Da essência estelar que o rodeava, fez nascer as suas criaturas, que são chamadas pelos antigos de “mensageiros dos deuses”. Fez nascer os dragões, agora quase extintos.

‒ E esta é uma das versões da história – concluiu. Uma história de amor entre deuses… Tentou olhar para o Sol ofuscante, lá no alto, e imaginar tudo o que

Alexandrina contara. Apesar de não ser crente, acreditava em cada palavra. ‒ E a Zaneryah… ‒ A Zaneryah foi criada por Aniria, a Deusa dos Bosques, filha de Midarvia. Penso que tenhas reparado

em pequenos pontos brilhantes, no dia da nossa chegada e na copa de Ezlabiel. Não são pirilampos, são pequenas fadas que a Zaneryah faz nascer das flores por desabrochar – explicou Alexandrina. A Senhora das Fadas limitava-se a sorrir. – São muito tímidas e raramente se aproximam dos humanos, mas talvez um dia alguma te venha desejar os bons dias. Quem sabe?

Liriana gostava que assim fosse. Ansiava ver um daqueles pequenos seres, conhecê-los melhor, agora que sabia que realmente existiam.

�*� O verde ácido dos olhos minados de malícia mirou o quarto minguante que se erguia no céu alto. Um dos

cantos dos seus lábios ergueu-se num sorriso irónico. ‒ Como a tua inocência me delicia, Midarvia – observou, levando à boca um fino copo de cristal negro.

No seu interior, um líquido espesso, ainda quente, verteu-se levemente, tornando-lhe rubros os lábios escarnecedores. – E foi com essa inocência que amaldiçoaste os teus filhos. Eles cairão por tua irreversível culpa. E o seu sangue será meu.

Com estas últimas palavras, a mão fechou-se com força sobre o copo, estilhaçando-o. Os pequenos vidros quebrados recortaram-lhe a mão envelhecida pela maldade. Vinyriah mirou o próprio sangue com desinteresse. Muito em breve teria mais… muito mais… teria o sangue da sua querida irmãzinha e teria o poder para matar todos os que se lhe opusessem.

A porta atrás da feiticeira bateu levemente, dando a revelar a entrada de alguém. Vinyriah não se voltou, limitando-se a esperar que o ser que a perturbara se mencionasse.

‒ Repensaste o teu plano? Não será demasiado perigoso? – perguntou uma voz suave, capaz de tocar no mais profundo coração caso desejasse, mas não no de Vinyriah, pois este estava já mais que morto.

‒ Perigoso? Nada me pode atingir, Ardanir, devias ter já compreendido isso. O que me sucedeu há anos atrás foi um percalço que não se voltará a repetir – murmurou, lembrando-se da pedra que se intrometera no seu caminho e a fizera tropeçar e, assim, perder o bastão que agora jazia enclausurado em Nelgadir, longe do olhar dos curiosos. – Farei com que ele seja meu novamente e nesse dia os Nelgadirs tremerão.

A mão que esmagara o copo fechou-se de raiva e, com esse gesto, os vidros penetraram ainda mais na carne. Nenhum esgar de dor maculou a sua face ebúrnea. Conheceria ela essa sensação, ou não passaria de uma concha vazia onde só gritavam o ódio e a sede de poder? A dúvida começava a invadir Ardanir. As palavras de Alexandrina ressoavam cada vez mais alto no seu íntimo:

Sim, Vinyriah, já todos sabem dessa tua virtude grandiosa do desamar. Também o sabes, não é assim,

Ardanir? Que esse ser só é capaz de odiar tudo e todos?

Page 117: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 117 -

XII

O Passarinho

Inocência de canto doce Correste livre na alegria. Correste, não corres já, �egras asas te prendem À liberdade que possuis

Outrora doutro, agora tua, Essa liberdade desentendida.

Oh! E adoeces nela, de asas quebradas, Pobre ave destemida!

O teu canto soou tarde, �ão mais podes ser escutada

�as garras ledas da vida.

“Clausura de Ave” A espada de madeira rasou-lhe a mão, obrigando-a a largar a arma que acabou por cair desamparada. Um

arranhão vermelho começava a fazer-se notar. ‒ Não pode ser assim Liriana, não podes largar a espada ao meio de uma batalha só por causa de um

raspão – censurou Landar. Apesar de tudo, com o passar dos dias, o elfo tornar-se menos frio, permitindo-lhe um maior à vontade.

Estavam num largo campo de terra batida, rodeado de árvores, reservado para que os jovens elfos se treinassem na arte da guerra. Nessa manhã eram os únicos que lá se encontravam.

‒ Foi sem querer – desculpou-se a jovem, massajando o rubor da mão. ‒ Pois… – murmurou Landar, revirando os olhos. Ouvia aquela desculpa quase todos os dias. – Bem, por

hoje chega, amanhã continuamos. Isto é, se quiseres continuar. ‒ Claro que quero! – manifestou-se a jovem, largando de imediato a mão dorida e pegando na sua espada

improvisada. Landar encolheu os ombros, resignado com aquela decisão. Para ele, Liriana era simplesmente um caso

perdido. O combate não fora feito para ela, as suas mãos não eram feitas para pegar em armas pesadas. Talvez fosse melhor tentar outro género de armamento.

‒ Amanhã começaremos com o arco – disse, virando-lhe as costas. ‒ Sim, mestre. Um sorriso irónico aflorou-lhe aos lábios ao ouvir aquela resposta. Há quinze anos atrás era Alexandrina

que a pronunciava. Contudo eram as duas muito diferentes. Alexis, apesar de humana, igualara o mestre em pouco mais de um ano. E, a partir desse momento, começaram a tratar-se como iguais. Enquanto Liriana… era demasiado frágil.

�*� Liriana voltou ao quarto ainda agarrada à mão dorida e deixou-se cair sobre a cama. Nunca pensara que

aprender a lutar fosse tão difícil. Ou então a culpa seria sua… Mas não compreendia o porquê dos seus erros. Talvez fosse falta de agilidade, ou o tempo de reacção. O facto era que Landar não necessitava de esforço para a desarmar. Um simples toque e a sua espada rústica caía por terra.

Ergueu-se da cama com um salto e pegou na espada, colocando-se em posição de ataque. Estocou o ar uma vez com impetuosidade, da esquerda para a direita, e dardejou em frente, trespassando o seu inimigo

Page 118: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 118 -

invisível. Parecia-lhe ter executado bem cada gesto… então porque não conseguia combater contra o seu mestre? Porque hesitava a cada golpe que deveria desferir?

Um calmo bater à porta fê-la voltar a si. Era Inorian. ‒ Olá, bom-dia – cumprimentou, quando espreitou, com o seu sorriso sempre amável e acolhedor. –

Estavas a treinar dentro do quarto? ‒ Não. Estava só… ah! Nem sei… – murmurou Liriana, desanimada, sentando-se à beira da cama. A elfo fechou a porta atrás de si sem fazer ruído e sentou-se ao seu lado. ‒ Nem todos têm o dom do combate. Pode não ser o teu destino. Pensaste já nesse pormenor? –

perguntou, fitando-a com uns ternos olhos verdes. ‒ Mas eu quero ajudar! – explicou-se Liriana, resoluta. ‒ Então porque não tentas outra forma? Aprende magia, por exemplo. Um sorriso vago animou-se no rosto da jovem. Até que nem era uma má ideia. Mas teria ela alguma

capacidade? Pelo que sabia, nem todas as pessoas o conseguiam fazer. Era necessário um poder inato. ‒ Não sei… ‒ Não podes duvidar das tuas capacidades. Confiança acima de tudo. E tentar não custa – declarou a elfo,

acariciando-lhe a face como uma mãe faria à filha. Depois levantou-se e dirigiu-se para as vidraças fechadas que davam acesso à varanda. Abriu-as de par

em par, deixando que a brisa refrescasse o quarto e o canto das aves as rodeassem, sempre alegre. Um passarinho chegou mesmo a pousar na varanda e a agraciá-las com a sua melodia. Era negro, com uma pelugem verde-esmeralda em volta dos pequenos olhos pretos, e de um tamanho pouco menor do que um melro.

Inorian aproximou-se do pequeno sem que este fugisse e tocou-lhe levemente na cabecinha, acariciando-o. Com um sorriso nos lábios, deteve-se por segundos, como que hipnotizada pela fragilidade da ave efémera.

De súbito o pássaro cansou-se de ali estar e tentou esvoaçar, mas acabou por cair dentro da varanda, desamparado. As asas batiam incessantemente, mas a ave não conseguia voar, como alguém que subitamente perdera o controlo dos braços.

‒ O que se passa? – quis saber Liriana, aproximando-se, preocupada. A elfo não respondeu. Tentou pegar na ave, mas era impossível fazê-lo sem a magoar. A jovem ajoelhou-

se e tentou fazer o mesmo. Com a sua aproximação o pássaro acalmou-se e saltitou desajeitadamente para as suas mãos. Os olhos negros não deixavam de fitar Inorian, como se esta lhe tivesse feito algum mal.

‒ Ele não está nada bem – observou a Nelgader. – Talvez fosse melhor cuidarmos dele durante uns dias. Vou à procura de uma gaiola espaçosa onde possa recuperar.

Liriana concordou e, enquanto Inorian saía, levou o passarinho para dentro e pousou-o sobre a cama. O pequeno aninhou-se e colocou a cabeça debaixo da asa, cansado e triste. Ficou a fitá-lo durante alguns minutos, até que, resolutamente, a ave retirou a cabeça de debaixo da asa e mirou-a também. Liriana hesitou em tocar-lhe, não fosse ela assustar-se igualmente consigo. Contudo o animal tinha outros planos.

Começou a palmilhar tropegamente a sua cama até chegar à ponta, por onde espreitou, duvidosamente. Após a análise do terreno, saltou, utilizando as asas para tornar a queda mais segura. Recompôs-se com um abanar e saltitou até à porta fechada. Queria sair do quarto!

Liriana apressou-se a levantar-se e a desimpedir-lhe o caminho. O pássaro saiu e olhou para um e para o outro lado do corredor, escolhendo o esquerdo. Para onde iria?

Seguiu-o, sem que ele se importasse, com uma curiosidade miudinha que lhe franzia as sobrancelhas e lhe erguia um pequeno sorriso.

A meio do caminho encontraram Inorian, que transportava uma gaiola com talvez um metro de largura, de comprimento e de altura, em madeira. A ave apressou-se a dar meia volta após a visão e Liriana quase a pisou, quando, na sua rota desorientada, passou por entre os seus pés.

‒ Espera pequenina! Queremos ajudar-te – implorou Liriana, tentando apanhá-la. Quando as suas mãos se aproximaram, a ave saltou, esquiva, por cima delas. – Não, anda cá!

Com um gesto ágil devido às aulas com Landar, conseguiu apanhá-la no ar quando tentou esvoaçar. Colocou-a na gaiola com alguma dificuldade e voltaram para o quarto. O pássaro soltou um pio de lamento que lhe tocou no fundo do coração.

‒ É mesmo necessário? ‒ Não faço isto por gostar. Se andar por aí a tentar fugir poderá magoar-se a si própria – argumentou

Inorian, pousando a espaçosa gaiola sobre a cómoda. – Por agora, é melhor assim.

Page 119: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 119 -

‒ Claro – disse Liriana sem vontade. Não gostava de sentir o sofrimento dos outros. Alimentaram a pequena ave e acompanharam-na, esperando que nos dias seguintes se recompusesse. Na manhã seguinte, após ter dado os bons dias ao passarinho, que agora dormia também no seu quarto, e

tomado o pequeno-almoço, Liriana foi ter com Landar ao campo de treino onde este já a esperava, treinando com as suas próprias espadas. Ambos os gumes negros emitiam um brilho sobrenatural quando o Sol os penetrava, lançando vagas sombras na terra batida. Landar parecia efectuar um bailado onde a flexibilidade, a agilidade e a rapidez, aliadas à sua graciosidade inata, tornavam o espectáculo único. O cabelo comprido acompanhava-o em círculos largos à sua volta, seguindo cada um dos movimentos.

Liriana esperou que o elfo acabasse e voltasse a atenção para si, o que não demorou mais do que alguns segundos.

‒ Hoje não ficaremos aqui – declarou, enquanto embainhava cada uma das espadas em bainhas prateadas, onde uma linha negra descrevia floreados com possíveis significados.

O elfo guiou-a até uma outra clareira repleta de um relvado baixo mas verdejante, salpicado de pequenos pontos brancos. Num dos lados estavam colocados vários e maciços troncos velhos onde eram visíveis demarcações circulares a tinta branca. Eram alvos. Encostados a uma árvore repousavam um arco e uma aljava repleta de flechas.

Começaram então o treino. Landar demonstrou, calmamente, o que deveria fazer. Segurou o arco com a mão esquerda e colocou uma flecha junto ao fio. Levantou o braço à altura dos ombros e, sem esforço, puxou a corda e a flecha para trás, até que as penas da ponta se encontraram à altura dos seus olhos, fazendo pontaria. Liriana mal deu conta da flecha a soltar-se e cravar-se no tronco, no círculo de menor raio. Os seus lábios cerraram-se. Tinha que conseguir fazer uma coisa daquelas. E até que nem pareceria difícil, não fossem os alvos estarem a trinta metros de distância e os troncos lhe parecerem agora demasiado finos.

Landar estendeu-lhe o arco e a jovem agarrou-o, insegura. ‒ Vá, não precisas de ter medo. O tom com que falara fê-la olhá-lo, espantada. Fora simpático, ou talvez ainda, compreensivo. Segurou-lhe o braço com firmeza e ajudou-a a pegar e a colocar a flecha decentemente, equilibrando-a

entre os dedos. ‒ Estás demasiado tensa. Os teus gestos têm que primar em delicadeza. As armas não são só instrumentos

de morte. É necessária graciosidade para as poderes utilizar realmente. O guerreiro e a sua arma têm que manter uma total sintonia, têm que ser mais do que almas gémeas. O guerreiro e a sua arma têm que formar um só indivíduo.

Liriana acenou levemente em sinal de compreensão. Inspirou fundo e puxou a corda para trás. Não era tão fácil quanto parecia. A madeira de que era feito o arco não cedia facilmente sob o seu esforço. Sentiu o braço a estremecer e, sem querer, largou a flecha que penetrou no bosque, sem destino certo.

‒ Falta-te firmeza – observou Landar. – Tentemos então sem as flechas, por agora, ou ficaremos sem munições.

Assim, passaram toda a manhã naquela tarefa, até o braço de Liriana tremer tanto que mal conseguia puxar o fio.

‒ Amanhã estarás melhor com toda a certeza – garantiu Landar, pegando na aljava para a levar de volta ao seu devido lugar. – Não te esqueças, aqui, à mesma hora – lembrou, fitando-a com os seus peculiares olhos amarelos de felino.

‒ Sim, mestre – afirmou Liriana. Mas, ao vê-lo afastar-se, apressou-se a chamar-lhe a atenção. – Mestre! Posso fazer-lhe uma pergunta?

O elfo voltou-se e perscrutou-a com um olhar enigmático. Esperou que colocasse a questão. ‒ Ah… sei que nada tenho a ver com o assunto, mas a Alexandrina disse-me uma coisa que me deixou

curiosa… – hesitou. ‒ E que coisa foi essa? ‒ Disse que o senhor era príncipe da Floresta Dourada. – As sobrancelhas de Landar ergueram-se de

forma sarcástica. – Porque vive há tanto tempo na família Adriática?

Page 120: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 120 -

‒ Porque não fazia falta na Floresta Dourada – respondeu, com frieza, o que fez a jovem baixar o olhar. – A relação entre mim e o meu pai não era das melhores. Nem entre mim e o meu irmão – explicou, tentando conter a sua hostilidade para com o assunto.

‒ Compreendo… ‒ Não, não compreendes. Nunca um irmão te atirou a um poço quando tinhas sete anos – riu-se Landar.

Nunca o vira rir e esse simples conjunto de gestos fez toda a diferença, apesar de Liriana não ter achado piada alguma. Aquilo seria mesmo verdade? Bem, o elfo não tinha razões para lhe mentir e não era do género de fazer brincadeiras. Começava a sentir-se contente por não ter o irmão que sempre pedira aos pais.

‒ Não que ele seja parecido com a Vinyriah – declarou, captando-lhe parte dos pensamentos. – Porventura não se dariam mal. A dissimulação da serpente e a maldade dela. Não gostava nada de vê-los juntos.

Liriana preferia nem imaginar. O que aconteceria se a bruxa concretizasse uma aliança com os elfos da Floresta Dourada? Pelo que lera, os elfos mais antigos daquela raça conseguiam ser extremamente perigosos. Ao nascerem, a sacerdotisa do povo fazia a sua previsão, dando-lhes a conhecer o número de vidas de que poderiam usufruir. A cada morte e ressurreição era-lhes entregue a capacidade de se metamorfosear num animal, daí também lhes chamarem metamorfomagos. E era isso que fazia dos “antigos” um perigo latente. Aprendiam a controlar a sua transformação e a utilizar os poderes que os deuses ofereciam. Peixes, crocodilos, ursos gigantescos… podiam converter-se em feras terríveis.

‒ Isso é horrível – murmurou Liriana, por falta de coisa melhor. ‒ Horrível… – Landar mastigou e saboreou a palavra antes de a engolir. – Mesmo para quem pode ter seis

vidas. O meu querido irmão tirou-me as duas primeiras por falta de cautela da minha parte. Não voltou a acontecer.

Liriana engoliu a seco. Que mundo era aquele em que um irmão matava o outro? ‒ Ficaste esclarecida? – perguntou, sem ser indelicado. ‒ Sim, mestre. ‒ Óptimo. Então, até amanhã – despediu-se, virando-lhe as costas, e pouco depois mesclou-se na

vegetação, deixando-a a sós consigo mesma. Liriana permitiu-se cair de pernas cruzadas no chão e brincou com a relva, afagando-a como se fosse um

grande animal de pelugem verde. Quantas vezes não pensara em desmaterializar-se da Terra e emigrar para uma distância incerta banhada em magia? E agora que se encontrava numa, só queria fugir dela. Não haveria um mundo onde a paz florisse tal como as flores de Nelgadir? Onde os ódios decaíssem e não mais singrassem? Parecia que não…

‒ Esse lugar existe, sim – disse uma voz miudinha, fazendo-a olhar em volta, desorientada. Zaneryah, a Senhora das Fadas, aproximava-se com passos lentos, típicos de uma criança tímida, de mãos atrás das costas. Os cabelos dourados emolduravam-lhe a face arredondada de bochechas coradas. Ajoelhou-se à frente da jovem melancólica e sorriu-lhe.

‒ Esse lugar existe – repetiu, e tirou as mãos detrás das costas. Numa transportava uma pequena flor ainda enraizada num pedaço húmido de terra, e na outra a primeira e única flecha que disparara nesse dia e que pousou junto a si.

Liriana não sabia ao que se referia a fada. A sua visão alternava entre a flor de pétalas azuis por desabrochar, e os olhos daquela que parecia ser uma criança, na mesma cor, porém com um brilho antigo de sabedoria a espelhá-los.

‒ Ao que te referes? ‒ Toca-lhe – pediu, sem responder à pergunta, esticando um pouco os braços pequenos. Liriana voltou a alternar a sua visão entre a flor e Zaneryah, hesitante. Por fim, as mãos deixaram a relva

e uma delas dirigiu-se para as pétalas fechadas. Cuidadosamente pousou os dedos naquelas estruturas aveludadas que resguardavam a beleza, sem deixar de a ter também. Depois baixou a mão e esperou que Zaneryah a agraciasse com palavras e não com o seu sorriso de inocência.

Contudo, a Senhora das Fadas parecia disposta a não o fazer e nada disse. Levou a sua mão também às pétalas e tocou-lhe no cimo num gesto leve de poucos segundos. Após o toque simples, as pétalas mexeram-se, como aconteceria se uma abelha ficasse presa dentro de uma planta depois desta adormecer. As pétalas afastaram-se, uma a uma, num florir acelerado, revelando estiletes amarelados e algo mais. De relance enganaria todos, como se de um insecto se tratasse. Porém, com a devida atenção, era possível distinguir-se um pequeno corpo desnudo e esguio. Um ser quase humano de proporções diminutas mas de beleza inigualável. O

Page 121: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 121 -

cabelo negro caía-lhe quase até aos joelhos e, nas suas costas, dois pares de asas fechadas, de um azul brilhante e semi-transparente, esperavam que a sua dona se equilibrasse nos próprios pés.

‒ Que bonita… – murmurou Liriana, sem conseguir conter um suspiro. A fada recém-nascida olhou para si com uns pequenos olhos amendoados, onde não se distinguia ainda a

cor. Estava curiosa com a presença da humana. As asas começaram a estremecer nas suas costas, desprendendo-se da latência em que tinham vivido. A

primeira tentativa de abri-las foi vã e despendeu parte das forças da fada. Liriana sabia que não a poderia ajudar, pois aquela era uma prova que o pequeno ser tinha de ultrapassar

sozinho. Era a primeira prova que a vida lhe impunha. A fada descansou um pouco e voltou a tentar. Desta vez as asas abriram-se quase completamente, mas voltaram a cair de exaustão.

‒ Está quase – disse-lhe a humana. Como se o pequeno ser compreendesse as palavras de apoio, as asas da fada voltaram a erguer-se num último e derradeiro esforço, iniciando uma batida de nervosismo. Os pés da fada ergueram-se um pouco da flor e esta deu o seu feito por concluído.

Um sorriso de alegria preencheu a face de Liriana, como se fosse ela a conseguir fazê-lo. ‒ Entendes agora onde está esse lugar? – perguntou Zaneryah, estendendo a mão para que a fada saltasse

para a sua palma. Liriana teve que pensar um pouco para perceber a que assunto se referia a pequena senhora. ‒ Onde? ‒ Dentro do coração que dá vida por amá-la. Dentro do teu coração. Só tens de procurá-lo e expandi-lo

aos outros. Coragem. Não permitas que o desespero te consuma. Não caias nas garras da feiticeira – pediu Zaneryah.

Liriana não respondeu. O que desejaria a Senhora das Fadas? Que esperança tinham nela? ‒ É por essa razão que a Vinyriah me quer matar? ‒ Não. A Vinyriah quer sugar a tua essência para unir as suas duas metades separadas, a que vagueia

neste mundo e a que está presa nas sombras. Nunca ligou a profecias. Pior para ela. – Encolheu os ombros como se não fosse nada, sem deixar de fitar a pequena fada. Depois levantou-se, com os pés descalços a pisarem a erva macia. – Bem, gostei de conversar contigo, mas preciso de apresentar a Sissi à sua família. Até logo!

Afastou-se com pequenos saltos infantis e, antes de desaparecer por entre os troncos, acenou-lhe uma última vez, como uma criança faria a uma pessoa com quem simpatizasse. Liriana retribuiu.

Soltou um longo suspiro, enquanto pegava na flecha que Zaneryah deixara aos seus pés. Não sabia se aquela conversa esclarecera alguma coisa ou se simplesmente a confundira mais.

Esse lugar existe, dentro do meu coração…

A noite revelava-se sombria. Do nada surgira no céu um conjunto de nuvens negras que encobrira as

estrelas num piscar de olhos. A atmosfera pesava, não se escutavam os sussurros dos insectos e um estranho calor sufocante parecia querer comprimir as almas.

Liriana enfiou-se dentro da cama e puxou a coberta até aos ombros, deitando-se de lado, semi-encolhida, numa posição fetal. Sentia-se bem assim, como se regressasse dezasseis anos atrás, quando ainda se encontrava aconchegada dentro da barriga da mãe. Quando não tinha preocupações.

Ao fim de pouco tempo, as pálpebras cerraram-se. A escuridão abraçou-a.

Olhou em volta, desorientada. A vegetação cerrada impedia-a de ver o Sol, não obstante da claridade que

a rodeava, como se o céu fosse composto por todas aquelas folhas de um verde carregado. Os ramos mais baixos dobravam-se imperceptivelmente sobre si, tentando agarrar-lhe os cabelos soltos e as vestes. Tinha de continuar em frente, se parasse eles alcançavam-na. Mas eles quem?

Um uivo ecoou pela floresta húmida, levando o seu estômago a contrair-se. Voltou-se para trás repentinamente e viu-os… dois, quatro, seis, oito olhos escarlates que viviam do sangue e desejavam o seu.

As pernas de Liriana estremeceram, mas não podia deixar que cedessem. Um dos pares de olhos aproximou-se mais, por entre os arbustos e fetos, e a jovem não hesitou na sua decisão. A corrida começou quando o segundo par de olhos ultrapassou o primeiro. O seu coração acelerava de medo e exaustão, a cada metro que percorria.

Page 122: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 122 -

Inadvertidamente, os pés descalços pisaram alguma coisa macia que se enrolou à volta da perna direita. Olhou para baixo, sem deixar de correr. Um grito de aflição soltou-se dos seus lábios, começando a sacudir a perna freneticamente e com toda força. Uma cobra verde prendera-se a si! Os olhos fendidos do animal miravam-na enigmaticamente e a boca que guardava as presas venenosas sorria-lhe, enquanto sibilava. Com um último e forte pontapé no ar a serpente soltou-se, embatendo contra um tronco velho e desfazendo-se em cinza fumegante.

Ainda olhou dois segundos para os restos do animal, antes de se voltar para trás de relance e verificar que não só os olhos vermelhos ainda lá se encontravam, como tinham aumentado de número.

Retomou a corrida incansável que lhe dardejava as pernas com dores musculares e cãibras. Fechou os olhos, tentando que os pulmões inalassem o ar rarefeito. Agradecia o facto de os pés feridos pelas pequenas mas afiadas pedras não a guiarem contra uma árvore.

De súbito, sentiu uma mudança. Um vento frio chocou consigo, refrescando-lhe as têmporas latejantes; o odor a maresia entrou-lhe nas vias respiratórias numa lufada revigorante; e os pés não mais pisavam um solo traiçoeiro, mas sim macio, onde a corrida era mais custosa. Abriu os olhos, deixando que a visão das ondas os preenchessem. Conseguira chegar a uma praia!

Virou a cabeça para trás. Os olhos tinham desaparecido. Como agradecimento, um sorriso preencheu-lhe os lábios. Tinha escapado, finalmente! Os joelhos

dobraram-se de encontro às areias pálidas e Liriana deixou-se cair para o lado. Ofegava de cansaço, tentando oxigenar o cérebro pouco nítido. Fechou os olhos novamente e esperou até que o seu coração se acalmasse e os músculos relaxassem. Bem-dito descanso.

Por fim, voltou a abri-los e sentou-se, dando a atenção necessária à paisagem. O céu, repleto de nuvens agoirentas, impedia-a de ver o Sol, tal como a floresta fizera; as ondas revoltas espumavam de raiva, como se a tentassem alcançar; e, atrás de si, donde viera, não havia já sinal da floresta. Um enorme rochedo erguia-se no seu local, alongando-se para um e outro lado da praia, sitiando-a. Estava cercada pela terra e pela água, não havia fuga possível. O que quer que fosse que a queria capturar guiara-a para uma armadilha.

O seu nervosismo regressou em catadupa, ao observar as escarpas impossíveis de escalar. Um ruído diferente, vindo do mar, fê-la desviar a atenção, assustada. As ondas revoltas rebentavam sobre

algo mais, para além de areia molhada. Liriana aproximou-se, reticente, porém curiosa, sem dar conta de quanto os pés se encaminhavam para a

água, até tocarem no elemento álgido, recuando de imediato. Àquela tão pequena distância conseguia distinguir o que interferia com o marulhar das águas. A tez da sua pele era azulada como a dos mortos por asfixia e a sua face estava oculta por negros e desgrenhados cabelos compridos. Rastejava com dificuldade para fora das águas, mas Liriana não se tentou a ajudá-la… os dedos, de unhas compridas, estavam coligados através de membranas interdigitais e era capaz de jurar que, em vez de pernas, possuía barbatanas escamosas. Mas o mar impedia-a de confirmar as suas suspeitas.

Quando o ser aquático se livrou quase totalmente da violência das águas, deixou-se cair, desamparado. Liriana olhou de um lado para o outro, ansiando alguém que a auxiliasse, mas nem uma viva ave sobrevoava o local. Tomou então a decisão de ser ela a ajudar a pobre criatura. Voltou a aproximar-se, levando os pés a ressentirem-se por tocarem na areia húmida, e as feridas a arderem um pouco.

Ao mesmo tempo que a mão se estendeu para o auxiliar, o ser marinho ergueu-se nos braços repentinamente e os cabelos desviaram-se para o lado, revelando uns olhos verdes muito seus conhecidos. A face estava retorcida de raiva e a boca escancarara-se num guincho apunhalante, revelando uma dentição macabra, negra e assassina de tão afiada. A sua mão gélida foi de encontro ao tornozelo de Liriana, prendendo-o.

A jovem tentou recuar aos tropeções e começou a gritar de medo com os olhos fechados, sacudindo violentamente as pernas, para se libertar, com medo que o monstro as abocanhasse.

Um chilrear assustado juntou-se à confusão, obrigando-a a abrir os olhos e a rodar a cabeça em volta, desorientada. A semi-escuridão cobria as paredes do quarto onde singelas flores brancas lhe sorriam. A coberta e os lençóis da cama encontravam-se derramados no chão e o chilrear não cessava, vindo de um canto. Soltou um suspiro. Fora só um pesadelo.

Sentou-se e passou as mãos pelo cabelo desgrenhado dos seus movimentos violentos. Tinha de acalmar a ave. Passou a mão sobre uma vela e uma ténue chama azul iluminou o quarto. Aquela era uma outra magia dos

Page 123: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 123 -

elfos. Se quisesse apagar o pavio, bastava-lhe passar a mão na direcção contrária. Gostara de se divertir a acender e apagar a vela, na primeira noite.

Deslocou as pernas para fora da cama mas, mal se levantou, um gemido de dor assomou-lhe aos lábios, obrigando-a a cair sobre o colchão. Os pés doíam-lhe e não era pouco.

Aproximou a vela para observar cada um. Várias feridas ensanguentadas recortavam-nos dolorosamente. O pesadelo não fora só um produto da sua imaginação. Tinha que falar com Alexandrina…

Gemeu, ao tocar com a ponta dos dedos nas feridas. Precisava de tratá-las. A questão reduzia-se a duas hipóteses: ou esperava até de manhã ou ia acordar alguém. Talvez fosse melhor optar pela segunda, ou de manhã ouviria um raspanete de um dos seus amigos. Pior seria se as feridas infectassem.

Voltou a pousar os pés. Um aperto comprimiu-lhe o coração e as lágrimas afloraram-lhe aos olhos. Limpou-as e dirigiu-se para a porta, encolhendo-se a cada passo.

Começou por se dirigir para o quarto da madrinha, mas quando parou em frente dele, uma ideia repentina ocorreu-lhe e avançou dolorosamente até ao quarto seguinte e foi nesse que bateu.

O ocupante não se fez esperar, abrindo a porta segundos depois e mirando-a, espantado. ‒ Liriana! O que se passa? – quis saber Leonardo. Ainda trajava a roupa do dia anterior e nos seus olhos

não havia sinal de sono. ‒ Ah… estou com um pequeno problema – desculpou-se a jovem num tom de voz baixa, sem querer

acordar o resto da moradia. ‒ Entra, então – pediu, desviando-se para lhe dar passagem. Liriana avançou lentamente, tentando conter um gemido de cada vez que pisava o soalho de madeira.

Parou, quando viu uma caneca a flutuar por si própria, sobre a cama do jovem médico. Esta limitou-se a cair instantes depois de lhe ter posto a vista em cima.

‒ O que te aconteceu? – quis saber o mago, com seriedade, apressando-se a fechar a porta e ajudando-a a sentar-se no colchão, levantando-lhe ambos os pés sem cerimónia. – Au! – exclamou, encolhendo-se sob a visão.

Tal como o quarto de Liriana, aquele tinha também uma passagem escondida, onde se encontrava a sala de banho. Leonardo entrou e saiu dele, trazendo consigo uma caixa em madeira que pousou ao lado da jovem.

‒ Queres contar-me como fizeste isto, ou vais tentar convencer-me de que foi o “gatinho” que te arranhou? – perguntou num tom de brincadeira, enquanto lhe desinfectava as chagas.

Liriana premiu os lábios, um contra o outro, antes de responder. Sabia que Leonardo era de confiança. ‒ Acho que foi durante um pesadelo… – Os olhos do necromante fitaram-na, interessados. – Sonhei que

tinha ferido os pés e, quando acordei, as feridas estavam lá. ‒ Durante o sonho estiveste numa praia? ‒ Sim, estive – respondeu Liriana, estupefacta. – Como… ‒ Tinhas areia nos pés – explicou, começando a ligá-los cuidadosamente. – A Alexis gostaria de saber

desse teu sonho. Vamos acordá-la. Deu o seu trabalho por terminado e levantou-se da alcatifa, onde estivera sentado de pernas cruzadas. ‒ Mas podemos esperar por amanhã! – manifestou-se a jovem, não querendo incomodar mais ninguém. ‒ Não te preocupes, a tua madrinha não se importa minimamente – declarou, estendendo-lhe o braço para

que ela se apoiasse. Quando bateram, Alexandrina abriu de imediato a porta do seu quarto. O espanto foi maior que o

demonstrado pelo necromante, mas não fez perguntas, deixando-os entrar. Liriana contou cada pormenor do pesadelo, sendo forçada a recordar-se de pedaços que já se esvaíam do

consciente. Alexandrina meditou em cada particularidade do sonho, atentando em três partes em especial: os olhos que a perseguiam, a serpente que se lhe prendera à perna e o ser aquático.

‒ O que pensas de tudo isto? – quis saber Leonardo. A guerreira caminhou até à janela e observou os picos das árvores, assim como o céu negro, antes de lhe

responder. ‒ Poderá ser um sonho premonitório – alvitrou, pensativamente. – Com um significado escondido. O que

te dizem as almas?

Page 124: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 124 -

‒ Que anda por aí mais do que um gato. E mais. Dizem-me que a Liriana terá outro professor, o que vai chatear o Landar solenemente. Mas não podemos deixar que tenha um sonho em que parta a cabeça.

Um leve sorriso aflorou no rosto de Liriana. O necromante nunca perdia o bom humor. Foi assim que, na manhã seguinte, em vez das aulas de tiro com arco, Liriana teve a sua primeira aula de

magia. Alexandrina voluntariara-se a falar com Landar para lhe explicar que, por alguns dias, a afilhada não treinaria com ele, pelo menos até as chagas sararem.

Leonardo levou-a até ao sótão, um local organizado e quase vazio, onde reinava o silêncio e um leve cheiro a mofo. Algumas caixas amontoavam-se a um dos cantos, uma delas aberta, revelando o seu conteúdo: armas há muito não utilizadas. Os únicos sons, apesar de distantes, provinham do exterior.

O necromante convidou-a a sentar-se no chão de madeira escura e um pouco poeirenta, para se acomodar de seguida à sua frente.

‒ Bem… – começou. – Muita gente aconselhar-me-ia a primeiro sugerir-te uma leitura de introdução, que falaria dos perigos da magia, da sede de poder que pode consumir os magos que lidam com as forças da natureza e com as fórmulas negras… mas isso é só palha. A Vinyriah leu-o e não foi por isso que se tornou numa santa. Desta forma, só te vou dar um pequeno conselho. Sê tu própria e segue sempre o teu coração.

Liriana escutou-o atentamente sem desviar o olhar, bebendo cada palavra. ‒ O que vou pedir que faças irá parecer estúpido, ou no mínimo inútil, mas antes de aprenderes a

movimentar objectos, ou a falar com espíritos da natureza, terás de aprender a controlar-te a ti própria. Ou seja: abrir e fechar as portas da mente, navegar nos seus labirintos inexpugnáveis e pressentir os pensamentos dos outros. E isso não é magia, é auto-controlo parcial – elucidou. – Pouco do que se passa à nossa volta se pode considerar magia. De facto, magia é só uma palavra para explicar o inexplicável. Se o souberes explicar sem utilizares essa palavra, deixa de ser magia e passa a ser uma coisa que tu consegues fazer e os outros são incapazes. – Fez uma pausa. – Alguma questão, aluna?

‒ Não professor – respondeu, com um sorriso. ‒ Muito bem. Então, agora vais fechar os olhos. E não te esqueças, ouve o teu coração, não a vozinha que

se deixa levar pelo pânico ou por o que os outros lhe dizem. Considera-te a Senhora da Razão. Liriana acenou e acedeu ao pedido de Leonardo. A escuridão cobriu-lhe a visão. ‒ Agora, esquece que estou aqui, esquece o sítio onde estás, esquece os animais e os seus ruídos, esquece

tudo e concentra-te nesse negrume criado por ti. Explora-o e procura algo que o alumie. Aquela parte não só parecia ser como era muito mais difícil. A abstracção nunca fora o seu forte e, por

esse motivo, nunca fora capaz de se concentrar em lugares ruidosos. Seria mais fácil se Leonardo não indicasse cada coisa que deveria ignorar. Agora estavam mais presentes que nunca na sua mente, fazendo-lhe cócegas incómodas. Até a própria respiração a importunava.

‒ Concentra-te na escuridão e procura a luz – frisou. As palavras do necromante ecoaram na sua cabeça e Liriana repetiu-as inúmeras vezes, como se se

hipnotizasse. Concentra-te na escuridão e procura a luz… procura a luz… a luz…

Alexandrina encontrava-se sentada de pernas cruzadas, junto ao lago Midarvia. O céu estava novamente

azul, ao contrário de há umas horas atrás em que as nuvens se acumularam sem explicação. Os olhos azuis fecharam-se, escondendo a profundidade, por vezes incómoda, que transmitiam. Meditou em cada palavra que Liriana proferira. Olhos vermelhos… podiam significar que alguém a vigiava. Serpente enrolada à perna… essa vigia encontrava-se próxima, muito próxima, mas sabia ocultar-se. E o sinistro ser marinho… Vinyriah. O que estaria aquela víbora a congeminar?

O seu punho fechado abateu-se sobre a relva. Nunca se sentira tão impotente.

Escuridão… os seus passos guiavam-na por aquela imensidão de vazio negro. Não percebera muito bem

de que forma chegara àquele lugar, mas não gostava dele. Seco, mas húmido; frio, porém quente. Uma mistura de tudo com um significado sem compreensão, pelo menos para si.

Continuou a caminhar, pois se parasse temia que lhe saltasse em cima algum monstro vindo das trevas. A luz… onde estaria?

Page 125: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 125 -

Vagueou durante tempo indefinido, até que um clarão se revelou a alguns metros de distância. Apressou os passos, agradecida pelo facto de, naquele sítio, os pés não lhe doerem. Com a sua aproximação, a luz tornou-se mais forte. Leonardo referir-se-ia àquela luz? Não deviam existir muitas mais.

Apesar de inverosímil, a aproximação revelou reconhecimento. Vira aquela mesma forma há dias atrás, quando se encontrava febril aos cuidados de Nalir, a simpática serviçal a quem Vinyriah matara a filha. Na altura, a presença translúcida de cabelos compridos e roupas andrajosas tentara auxiliá-la. Ou assim lhe parecera, até que começara e acabara por desaparecer no negrume. Alexandrina dissera-lhe alguma coisa a respeito daquele ser, mas por alguma inconveniente razão não se recordava. Contara-lhe que lugar era aquele onde estivera… um mundo diferente, mas que mundo? Devia ter prestado mais atenção. Porém referira-se a Vinyriah, parte dela estava presa naquele mundo.

Hesitou no próximo passo a dar. Há dias atrás aquela espécie de fantasma lembrara-lhe Alexandrina. Mas, nesse momento passado, ansiava ardentemente por alguém conhecido. Agora que pensava melhor, a presença podia lembrar-lhe outra pessoa e essa muito pouco recomendável.

Quando parou o avanço, o ser translúcido pareceu voltar a cabeça na sua direcção. Estava aninhado no chão, abraçado aos joelhos. Parecia mais condensado do que no último encontro, as suas formas eram mais nítidas.

Quando os seus olhos se encontraram por entre a escuridão, Liriana sentiu-se paralisar. As mãos gelaram, a respiração tornou-se sucessivamente mais lenta, condensando o bafo a cada expiração. O que não era frio nem quente tornara-se morbidamente álgido. Confirmara as suas suspeitas. Aquela era Vinyriah, ou parte dela.

A criatura ergueu-se com lentidão, como se os membros estivessem entorpecidos daquela posição, e mostrou-se em toda a sua altura que ultrapassava a de Liriana em vários centímetros. Ficou mais algum tempo a observá-la, até que decidiu avançar.

A jovem tentou mover-se a todos os custos e afastar-se do fantasma, mas as pernas recusavam-se a obedecer-lhe. Procurou urgentemente o pedaço de âmbar da luz por todos os bolsos, porém não estava consigo! Alexandrina recomendara para que nunca o deixasse. Porque raio não se lembrara de lho pedir?

Quando se encontrava a menos de um metro de si, a sombra de Vinyriah esticou o braço para lhe tocar na face. Via-as agora, tão bem como nunca, as mãos secas e envelhecidas a emitirem uma luz ténue. Mas não era aquela luz que Leonardo lhe pedira para encontrar. Possivelmente nem imaginara que o pudesse fazer.

Fechou os olhos quando os dedos quase lhe tocaram no rosto. Todavia não chegaram a fazê-lo, algo os impediu. Um bater de asas chamou a atenção de ambas. O braço da sombra hesitou, recuando alguns centímetros e os dedos encolheram-se. Por entre a escuridão, Liriana conseguiu distinguir dois pontos verdes que se aproximavam. Vinda das trevas, uma ave negra atacou a sombra, levando-a a recuar, enquanto se encolhia para não ser espicaçada pelo bico agressivo. A sua luz diminuiu e por fim desapareceu. A escuridão voltara a erguer-se à sua volta, libertando-lhe as pernas retesadas que se dobraram inconscientemente ao primeiro passo. A ave desaparecera também.

Leonardo abanou-a, chamando-a pelo nome. Passava-se alguma coisa que fugira ao estado de transe, ou

antes, que se intrometera nele. ‒ Liriana – insistiu, abanando-a com mais força, quando vira as mãos da pequena fecharem-se com força

e os dentes cerrarem-se. Parecia querer combater algo. – Liriana, acorda. Nada aconteceu. O necromante soltou um rosnar baixo. Os seus olhos castanhos estavam sérios como

nunca antes Liriana vira ou iria ver. Não era suposto aquilo acontecer. Levantou-se de um salto e ajoelhou-se à frente da jovem, pousando-lhe os dedos sobre as têmporas. ‒ Ouve a minha voz – disse, num tom claro. – Ordeno-te que voltes às alas da consciência e abandones a

planície infinita da escuridão… já! Liriana ressaltou-se e os olhos abriram-se desmesuradamente como se quisessem saltar-lhe das órbitas.

Uma lufada de ar bafiento encheu-lhe os pulmões. Saíra das trevas! Por sua vez, Leonardo fitava-a, preocupado. As mãos largaram-lhe a cabeça. ‒ Estás bem? – quis saber. A jovem acenou afirmativamente. Sentia-se sem reacção, apesar do chilrear alegre das aves que a

chamava ao longe, e isso não agradou ao necromante. ‒ O que aconteceu?

Page 126: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 126 -

‒ A Vinyriah… ela estava lá… cá… no escuro – murmurou, sem ter a certeza a que local se deveria referir. Piscou os olhos e esfregou-os com força, como se quisesse acordar de um longo sonho.

‒ Como era ela? ‒ Era uma espécie de fantasma, mas mais concentrado. Conseguiam distinguir-se as suas formas, o

cabelo… – Liriana reviu o ser a aproximar-se de si e a tentar tocar-lhe. O que aconteceria se os seus intentos fossem cumpridos e se o pássaro não a tivesse auxiliado? Teria a sua alma sido levada para o mundo das sombras?

‒ Já percebi… – murmurou Leonardo, passando a mão pelo queixo, pensativamente. – Estás ligada à sombra… e essa tua descrição confirma as suspeitas da Alexis. A Vinyriah está mais perto do que imaginamos.

Liriana baixou os olhos. Queria ele com aquilo dizer que a feiticeira os espiava de dentro das próprias muralhas dos elfos, ou de um lugar ainda mais próximo… a sua mente?

‒ O que posso fazer para a tirar da minha cabeça, para quebrar essa ligação? ‒ Por agora, nada – respondeu, encolhendo os ombros e chocando-a com o pouco interesse dado ao caso.

– Enquanto ela puder aceder ao teu corpo não… O olhar aterrado da pequena fê-lo deixar a frase a meio. ‒ Aceder ao meu corpo? – inquiriu, tentando que as palavras não estremecessem na sua língua. ‒ Bem, a Alexis deve ter-se esquecido de contar esta parte – murmurou o homem, passando as mãos pelo

cabelo um pouco desgrenhado. – Vais achar estranho, mas é que, neste momento, tens dois corpos, um neste mundo e o que deixaste no outro. É esse segundo que pode ser possuído pela Vinyriah, mas não te preocupes. Ela está trancada na biblioteca e de lá não sai tão cedo.

Aquela explicação não a punha mais descansada. E se aquela bruxa decidisse mutilar-lhe o corpo? O estômago apertou-se ao imaginar tal coisa. Assim podia não ter como regressar e… se estava trancada na biblioteca nem mesmo tinha forma de se alimentar. Ia morrer e nada faziam!

Leonardo deu conta do destabilizante aumento de nervosismo de Liriana, adivinhando os seus tão óbvios receios.

‒ A coisa maléfica não fará mal ao teu corpo, até porque precisa dele para quando os seus supostos planos forem postos em andamento. O corpo estará em perfeitas condições daqui a cem mil anos. Eu preocupava-me mais com o que tens agora. Porque se morreres neste, não viverás com certeza no outro. E claro está, fazes um favor à pessoa amorosa que é a Vinyriah. E pior! Eu fico sem aluna e o Landar também. Porque ele, apesar de não confessar, sempre adorou as tuas festinhas.

Liriana riu-se, embora a tensão ainda continuasse presente nos músculos trémulos. ‒ Mas voltando ao assunto inicial, esse ser que viste na escuridão já não te pode fazer mal, porém quer

convencer-te do contrário. É só uma simples sombra no teu inconsciente. Liriana anuiu, não permitindo que o leve sorriso se escapulisse da face. Tinha que se mentalizar daquilo,

nem que o escrevesse mil vezes num papel, como as criancinhas da escola primária faziam quando não sabiam escrever uma palavra ou outra.

‒ Óptimo! Agora vamos almoçar, antes que a tua madrinha me acuse de tentativa de homicídio e o Landar tenha a razão que tanto anseia para me tentar esgatanhar.

‒ Porque razão o Landar não gosta de ti? ‒ Ciúmes! Gostava de ter espíritos lindíssimos de top models, tal como eu tenho. Não é para todos, diga-

se de passagem – declarou, na brincadeira, descendo as escadas em caracol até ao andar térreo. Liriana não iria saber o que realmente queria, o necromante não cederia tão facilmente à questão colocada.

Nessa tarde ficou no quarto a ler o livro que trouxera da biblioteca do palácio. No capítulo que se referia

ao Mar do Interior, reconheceu a criatura que vira no seu sonho, ou uma muito parecida. Chamavam-se Rassoras e eram seres perigosos e violentos que habitavam os abismos do grande lago de Imtharien. O povo das Cianas tentava mantê-los sob controlo, tendo soldados a guardar as fendas abissais, para que não atacassem ninguém. Por sua vez, as Cianas eram humanóides, criados pelo Deus das Águas, que habitavam mares e oceanos e, menos vezes, os rios profundos. Possuíam fendas branquiais e pulmões, podendo movimentar-se dentro e fora de água, mas preferindo a primeira hipótese, pois fora do seu meio predilecto desidratavam com grande facilidade. A pele era demasiado sensível e os olhos tão claros que a luz facilmente os feriria. Os seus cabelos eram normalmente claros, loiros ou brancos, e os movimentos do corpo adaptados à agilidade da

Page 127: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 127 -

natação. Esguios e altos, eram quase tão belos quanto os elfos, porém, a figura transmitia deles um ar soturno, tal como já reparara na biblioteca.

Um pio fê-la levantar os olhos das páginas antigas. O tentilhão verde, aninhado num dos pousos de madeira, fitava-a com os seus olhinhos tristes. Liriana marcou o livro e aproximou-se, ajoelhando-se junto à gaiola.

‒ O que fazias na escuridão? – perguntou, apesar de a ave não perceber. – E porque me ajudaste? O silêncio instalou-se no quarto. Como gostava que o pássaro falasse! Sabia que fora ele a afastar a pálida

aparição de Vinyriah. Todavia o tentilhão limitou-se a fitá-la com os seus olhinhos negros. A sua espera vã foi interrompida pela porta a abrir. Era Inorian. ‒ Não sabia que cá estavas – desculpou-se, por não ter batido à porta. Nas suas mãos transportava um

bebedouro e um pratinho com sementes. Vinha alimentar a ave. ‒ Estava a ler um livro. Não tenho muita coisa para fazer por aqui. ‒ A senhora Alexandrina não poderia fazer-te companhia? Os assuntos de Nelgadir são assim tão mais

importantes? – perguntou. E apesar de não querer dar qualquer conotação ao seu tom, ela estava presente, como um ultraje disfarçado.

‒ Pelo que sei, já há muito que não vinha a Imtharien. Deve ter imensos assuntos a tratar. E depois há a Vinyriah. Se não acabarem com ela eu nunca poderei regressar ao meu mundo. – Baixou os olhos para o passarinho que fitava Inorian e a comida que ela transportava, possivelmente.

‒ Não é bem assim. – Liriana voltou de imediato a atenção para a elfo, e esperou que continuasse. – Existe outra forma de poderes voltar ao teu corpo. A feiticeira teria de recuperar o seu bastão, guardado no palácio real para segurança de todos.

‒ Pois, mas isso seria equivalente a entregar Imtharien nas suas mãos, não seria? ‒ Era o mesmo que começar uma grande guerra – corrigiu Inorian com um suspiro, sentando-se à beira da

cama de Liriana. – Mas como tudo isto me atormenta! Ver uma criança inocente entre toda esta confusão! E a culpa não recai unicamente na Vinyriah. Porque haveria ela de te perseguir, a ti que sempre viveste afastada da senhora Alexandrina?

Realmente aquela era uma óptima pergunta. Mas a madrinha recusara responder-lhe. ‒ A senhora, tua madrinha, esconde muitas informações. Não devia dizer-to, porém não confio nela, nem

mesmo os Senhores de Nelgadir o fazem. Pensam que Alexandrina poderia ter acordado Vinyriah do seu sono, propositadamente – murmurou, fitando as árvores através das vidraças abertas.

‒ Ela nunca faria isso – manifestou-se a jovem, sem desviar o olhar da gaiola. – Ninguém causa sofrimento a si próprio de livre e espontânea vontade. Os teus senhores estão enganados. Eu sei que estão.

‒ Oh, Liriana… – suspirou Inorian, parecendo lamentar todas as palavras que diria à pequena. – Como podes estar tão convicta? Existem pessoas que conseguem enganar-nos tão subtilmente! Não te esqueças que ela e a Vinyriah são irmãs…

Fez-se silêncio e a elfo esperou a reacção da jovem, na expectativa. ‒ Hoje de manhã disseram-me para ouvir o coração e ele diz-me que a Alexandrina é inocente. – Nunca

na vida o seu tom fora tão categórico. Ninguém lhe roubaria aquela ideia. ‒ Não insistirei, se é isso que o teu coração diz. Mas Midarvia sabe a verdade. Fará justiça e… A frase foi interrompida pelo chilrear da ave que começara a esvoaçar dentro da gaiola, irritadamente. ‒ E penso que ele também não concorda consigo – declarou Liriana, olhando para a elfo. ‒ Parece que não – resignou-se. – Deixo-te com o teu novo companheiro. Pousou a comida no chão e saiu com um leve sorriso nos lábios e o vestido a deslizar atrás de si, o que

Liriana agradeceu e que foi o necessário para a ave se acalmar. As boas intenções de Inorian eram louváveis, mas simplesmente não acreditava nas suas palavras. Com certeza que nem Leonardo nem Landar se deixariam enganar. Apesar de que, se a elfo tivesse razão, poderiam estar em conluio com Alexandrina. Nalir não se referira com muito apreço aos necromantes, no dia em que tinham passeado por Ranar, e em Landar notava-se uma agressividade inata, para não falar de que já dera provas de que matar alguém não era difícil… mas não. Todos eles eram boas pessoas, mesmo que possuíssem um defeito ou outro. A perfeição era divina, e mesmo isso Liriana colocava em causa.

Deu a comida ao tentilhão verde e sentou-se a vê-lo saborear aquele manjar, perdida nos seus próprios pensamentos. O que faria Alexis naquele momento? E Landar e Leonardo? E Zaneryah? E a pequena fada que vira nascer? E ela, o que faria com todas aquelas questões sem resposta?

Page 128: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 128 -

No dia seguinte, voltou ao sótão com o necromante. Este propunha-lhe voltar a procurar a luz. Foi-lhe tão difícil, como no dia anterior, aceder ao auto-induzido estado de transe. Mas, ao fim de alguns

minutos de silêncio, conseguiu-o. Nunca confessaria que estivera prestes a adormecer. Encontrava-se novamente naquele reino de escuridão. Embora cada palmo lhe parecesse igual, a sua

consciência conhecia o caminho que percorrera da última vez. Caminhara aos ziguezagues até que vira a luz. No entanto essa luz fora apenas um engano vil que a guiara até ao fragmento de Vinyriah. Mas desta vez não tinha medo. Sentia-se serena e tal lugar não mais lhe era estranho. Pertencia-lhe por direito. E alguém invadira aquele seu recanto de sossego. Teria que pôr esse “alguém” na ordem.

Vagueou sem destino como da última vez, mesmo pressentindo que esse era um dos seus grandes erros. Deveria imaginar uma estratégia para a encontrar e não dar de caras com a Sombra de Vinyriah.

Resolveu-se então a parar e sentou-se no chão de pernas cruzadas. “Vejamos, não posso andar perdida por este infinito. Se me concentrar talvez consiga senti-la.” Fechou

os olhos e respirou fundo. Os gritos do silêncio atingiam-na. Vibrações… sentia-as no espaço em redor, penetrando-lhe no coração. Ouve o teu coração… Estava a ouvi-lo. Ergueu-se lentamente para não perder aquela energia que chegava até si.

Iniciou uma caminhada vagarosa na direcção indicada pelo seu coração, passo a passo, de olhos cerrados. Todavia foi obrigada a parar, pois um outro tipo de ondas interceptaram as que queria seguir. Abriu os olhos. Ao longe um clarão aproximava-se, ondulando sob a brisa inexistente. Ela, outra vez. Poderia ignorá-la e seguir em frente, mas o fantasma segui-la-ia.

Não sabia o que estava a fazer, mas tomou a decisão de ficar parada naquele preciso local, permitindo que aquela ínfima e maldosa parte de Vinyriah se achegasse.

O vulto parou à sua frente. Não se tornara mais nítido desde o dia passado e isso era um alívio. Com lentidão, a mão translúcida voltou a erguer-se para lhe tocar. Avançou, tentando induzir medo à jovem, mas desta vez o sortilégio não sortiu efeito. Quando estava a poucos milímetros da sua pele, Liriana agarrou-lhe o pulso com força, detendo-a. E o vulto encolheu-se sob tal reacção inesperada.

‒ Desaparece – ordenou com frieza. – Não pertences aqui. Os olhos esbranquiçados da aparição fitaram-na, estupefactos. Não era suposto aquilo acontecer. A

rapariga deveria temê-la não repudiá-la como a um cão sarnento! ‒ Ouviste? Desaparece! – rosnou, empurrando o vulto para trás. Este soltou um guincho de fúria e Liriana

ainda pensou que se atrevesse a atacá-la, mas limitou-se a evaporar-se na escuridão. Mal o fez, as trevas pareceram esvair-se e deram lugar a uma imensa luz que a obrigou a ocultar o rosto

de súbito. Quando entreabriu os olhos, a negrura fora alumiada… A luz! Encontrara-a! Ou fora a luz que a encontrara a ela? Sorriu para si. A única coisa que interessava era que conseguira.

Mas agora, como sairia dali? ‒ Leonardo… – chamou, olhando em volta. O branco entrava-lhe pelos olhos adentro, tão incómodo ou

mais que o negro. – Como saio daqui? Rodou sobre si, tentando vislumbrar algo que se diferenciasse. Mas nada. O horizonte feria-lhe a visão. A voz de Leonardo soou como uma manifestação divina, ecoando pela imensidão. “Tens de criar a tua própria saída.” Liriana impediu-se de perguntar “de que forma”, pois sabia que o necromante não lho diria. Tinha de

descobrir por si só. Tudo o que necessitava estava na sua mente e no seu coração. Apesar de parte da claridade conseguir penetrar através das pálpebras, fechou os olhos. Esticou um braço

à frente e fez um círculo no ar. Abriu uma das pálpebras e espreitou. Nada acontecera, como já previra antes mesmo de executar aquele gesto parvo. Ainda tivera uma pequena esperança de que um portal se abriria.

Revirou os olhos e sentou-se no chão imaculado, mordendo o interior da bochecha, pensativamente. “Bem… podia tentar adormecer e quando acordasse talvez tivesse regressado ao sótão. Mas isso não seria justo… Ahh!!”

Voltou a cerrar as pálpebras. “Quero sair daqui… quero sair daqui!” ordenou a si própria, firmemente, deixando que o seu espírito visualizasse o sótão, as árvores do exterior, Alexandrina…

‒ Liriana? – inquiriu uma voz feminina, fazendo-a abrir os olhos. Piscou-os, perturbada. �iarda pendia sobre a sua cabeça com o gume a brilhar de letalidade. Engoliu em seco. – Como… por Midarvia!

Page 129: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 129 -

Alexis baixou a espada. Continuava estupefacta, tanto quanto a afilhada que não percebera o que lhe havia acontecido. Estava no campo de treino onde há uns dias atrás Landar lhe tentara ensinar o manejo da espada. Como fora ali parar?

‒ Bem, neste momento o Leonardo deve estar a ter um ataque cardíaco, assim como eu – riu-se Alexis, empurrando para trás das orelhas os cabelos revoltos que se escapavam da trança. – Podia ter-te morto agora mesmo.

‒ Peço desculpa… – murmurou a pequena, baixando o olhar. ‒ Não peças. A culpa não foi tua. Para quem nunca se relacionou com as forças da Natureza, a tua

materialização foi surpreendente! – elogiou, embainhando a espada. – E o Leonardo dirá o mesmo da tua desmaterialização. Mas agora é melhor irmos ter com ele, antes que se mate de preocupação.

Page 130: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 130 -

XIII

O Voo Final

Dita-te afirmações argutas De melodia vagueando ao vazio,

Esse redor de silêncio murmurante. Espraia-se lento no horizonte,

Abraçando rimas decaídas Quais vis derradeiros amantes. E juntos são feitiço e feiticeira, Revolvendo mundos desnudos

Em contendas desamadas. Rilham assim flautas de ossos,

E unos no clamor divino São mística morte ronronada.

“Morte”

As flores azuis acolheram-nas serenamente quando entraram pelas altas portas de floreios dourados. O sossego reinava por todo o edifício, lembrando a Liriana uma igreja ou um templo sagrado onde repousava um qualquer Deus que a todos era precioso. Um perfume fresco entrava pelas janelas abertas, acompanhado pelo cantar alegre das aves e das folhas altas das árvores anciãs, chocalhadas pela brisa amena que dançava entre elas.

Subiram a escada em caracol, com intenção de se dirigirem ao sótão, contudo Leonardo interceptou-as a meio caminho do seu destino. Os olhos do necromante brilharam ao recaírem sobre Liriana e o seu sorriso parecia efusivo.

‒ Se fosse a ti escondia essa tua alegria. A minha afilhada podia estar morta graças às tuas aulas de magia – advertiu Alexandrina, cruzando os braços sobre o peito. As suas sobrancelhas quase se uniram quando as franzira.

‒ Mas o que aconteceu? Onde apareceu ela? ‒ Por baixo da lâmina da �iarda. Agradece aos meus reflexos por não seres tu a estares sob a sua lâmina

neste momento. – Para dar ênfase à ameaça, a senhora pousou a mão sobre o pomo de cristal. Leonardo soltou um suspiro e deixou que os dedos escorregassem pelo cabelo, refreando o nervosismo

que o desaparecimento inexplicável da jovem criara. Poderia ter sido muito pior. Amaldiçoar-se-ia eternamente se fosse junto a Vinyriah que Liriana surgisse. Não só assinava a sentença de morte de maior parte dos habitantes de Imtharien, como a da própria criança. Não saberia escolher qual das hipóteses seria mais imperdoável.

‒ Nunca pensei que com duas aulas fosse capaz de se desmaterializar. Isso não aconteceu comigo, muito menos contigo, nem mesmo com a nossa caríssima e auto-intitulada Senhora do Mal – observou, tentando contagiá-las com o seu espanto. – Dou-me conta de que temos um perigo em mãos.

Lançou um sorriso amável a Liriana. Esta ainda não tomara toda a percepção dos acontecimentos de há dois dias atrás, quanto mais do de há minutos. Não se concentrara minimamente, simplesmente deixara fluir os pensamentos que velozmente recaíram sobre as pessoas em seu redor, sobre os acontecimentos que a assolavam… Um súbito arrepio percorreu-lhe a coluna vertebral, pondo-lhe os cabelos da nuca em pé. Compreendeu a causa do nervosismo que a sua desaparição causara em Leonardo. O que aconteceria se fosse a gémea de Alexis a encontrá-la?

‒ Bem, mas passando à frente. E que tal irmos almoçar? De tarde queria dar um pequeno passeio com a Liriana até ao palácio real. Gostaria que ela desse uma vista de olhos num pertence que sempre foi dela, mesmo

Page 131: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 131 -

antes de nascer – declarou Alexandrina, pousando a mão sobre o ombro da jovem, como se lhe pedisse autorização.

Liriana sorriu, contente pela notícia. O palácio era um local fabuloso, de aura desanuviada e fresca, como só um bosque primaveril conseguiria ter. E depois, o que seria o pertence que Alexandrina lhe queria mostrar?

O sol escorregava pelas altas colunas, onde as trepadeiras de flores amarelas se enrolavam, abraçando-as

ternamente. Estavam do lado oeste do palácio, por onde caminhavam com calma, desfrutando da paisagem que se via para além do varandim. Os elfos calcorreavam os seus caminhos bem tratados. A alegria movia-os e os seus sorrisos eram plenos. Parecia que nada podia conspurcar a sua paz de espírito, a esperança que palpitava nos seus corações.

Atravessaram duas altas portas, guardadas por dois elfos em sentido, que não deixaram de lhes sorrir e desejar uma boa tarde. O salão para onde entraram tinha um interessante formato hexagonal e o tecto era sustido por colunas, tal como a biblioteca, mas estas eram lisas, sem qualquer ornamento; o pavimento, no mesmo mármore branco, brilhava impecavelmente, polido e pouco frequentado. A iluminação era mantida através de superfícies abertas no tecto que permitiam que os raios de sol iluminassem parte da sala, enquanto várias candeias, penduradas em redor, tremeluziam com chamas esbranquiçadas.

O recheio do salão era composto por estrados de tamanhos vários, forrados a tecidos leves e de tons suaves, onde descansavam armas de imensa beleza e, aparentemente, nunca antes utilizadas.

Alexandrina guiou-a até uma dessas armas que repousava sobre um véu celeste. A sua lâmina era esguia e comprida, em cristal branco que reconheceu como sendo As-Holan, o Âmbar da Luz. O punho prateado estava envolvido em linhas graciosas que abraçavam a lâmina elegante, e o pomo tinha a forma de um sensível botão de rosa. Era uma obra simples, mas lindíssima.

‒ Esta é a �iadinar Elmorin, a tua espada – apresentou a senhora da Mansão Adriática. Liriana piscou os olhos, apática. Faltavam-lhe as palavras. Contudo, sabia que algo estava muito errado.

Uma espada? Sua? Ela mal sabia atirar uma flecha! ‒ Pega-lhe – incitou Alexandrina, tentando removê-la da sua letargia. A jovem mirou a lâmina da espada. Aquela alva brancura era indigna de ser maculada por sangue.

Inspirou profundamente, enquanto a mão tremeu ao dirigir-se ao punho e ergueu-a. Era extremamente leve, muito mais do que esperava de qualquer espada.

‒ Feita para cortar, tal como as Bailarinas da Morte do Landar. Mas esta é um catalisador muito forte, quando manejada pela pessoa certa. E foi forjada com um único fado: defender-te.

‒ Mas eu não consigo… o Landar tentou ensinar-me e não consegui aprender, estava sempre a deixar cair a espada de pau. Não fui feita para combater – lamentou-se, pousando a espada no pedestal ao qual fora incumbido o suporte da arma. Não lhe pertencia.

‒ Compreendo. Mas não entristeças por tão pouco. O Leonardo também nunca teve capacidade para segurar numa espada. Sempre preferiu conversar com espíritos. E pensas que ele se preocupa com isso? Absolutamente nada. E não deixou de ser uma grande ajuda, para além de um ainda maior amigo. Já provaste que tens poderes muito fortes dentro de ti. Só tens que descobri-los e sei que conseguirás.

Liriana continuou a fitar a espada durante mais alguns segundos. Lamentava que tivesse de ficar ali presa, inutilizada. Seria mais prestável caso pudesse combater contra Vinyriah. Mas não, ela não lhe pegaria.

‒ E o Landar quer voltar a dar-te aulas – informou Alexis, com simplicidade. O espanto espalhou-se pela sua face. Landar queria continuar as aulas? Pensara que o elfo se queria ver

livre dela! Liriana era uma perfeita inapta a manejar armas. Conteve-se de perguntar a razão, mas adoraria sabê-la.

Pouco depois voltaram-se com intenção de sair, mas os olhos de Liriana prenderam-se num dos cantos do salão. Um longo bastão negro equilibrava-se num orifício que parecia feito propositadamente para o seu ocupante. Uma esfera lilás reluzia no topo do elegante objecto. Em volta do bastão erguia-se um gradeamento prateado que o exilava de todas as outras armas. Era então aquele o instrumento maldito que condenaria todo o mundo de Imtharien. O bastão de Vinyriah.

‒ São poucas as pessoas que têm permissão para lhe tocar. Cada partícula daquele bastão está banhada numa malícia que pode tornar impuros muitos dos corações que não o são. Ele atrai as trevas até si, é por essa razão que se encontra envolvido nas Malhas de Midarvia, o gradeamento em volta e que aparenta ser tão

Page 132: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 132 -

singelo. Ele impede que o poder se escoe do cárcere, de forma a não contagiar os nelgadirs. Tudo o que é tocado pela Vinyriah transforma-se em veneno – concluiu, sombriamente.

Interrompendo o momento, vários passos fizeram-nas olhar na direcção das altas portas. Ilnosianar acabara de parar à entrada e sorria-lhes, contente por encontrá-las. Não vinha armado e as vestes cinzentas ajustavam-se-lhe ao corpo esguio e esbelto que qualquer humano invejaria.

‒ Boa tarde, senhoras – cumprimentou com um leve aceno de cabeça. O olhar desviou-se por instantes para o bastão, associando a sua visão a qualquer pensamento, mas voltou a atenção rapidamente para as duas presenças femininas.

‒ Não esperava ver-te por aqui, querido amigo. ‒ Não? Mas eu vivo aqui – observou, com um leve riso, entrando também ele no salão e encaminhando-se

para elas. ‒ Sempre pensei que vivesses por toda Nelgadir, saltando de árvore em árvore em busca da tua ninfa do

bosque – gracejou Alexis na brincadeira. ‒ Ah! ah! A minha companheira de armas anda muito engraçada – riu-se o príncipe de Nelgadir, tocando-

lhe lateralmente no queixo com o punho fechado. – Mas imagino que não queiram montar acampamento por aqui. E que tal um passeio pela cidade? Imagino que a Liriana ainda não o tenha feito com tempo e vagar, desde que cá chegou.

Ambas concordaram com a esplêndida sugestão do elfo, abandonando o salão. Liriana lançou um último olhar ao bastão negro e pareceu-lhe ver um brilho maldoso vindo da esfera arroxeada. Estava seguro entre o povo de Nelgadir e ninguém se atreveria a libertá-lo da sua prisão, para que a bruxa não se apoderasse dele. Ou assim o esperava. Que Midarvia o impedisse, por todo o amor que nutria por Imtharien.

Apesar de não ser a primeira vez que Liriana atravessava aquelas ruas arborizadas, aquela beleza não

deixou de a contagiar como das duas últimas vezes – o dia em que pela primeira vez pisara o solo dos elfos e o dia em que fora até à biblioteca real com Inorian. A brisa acometia meigamente de encontro a si, insuflando-lhe os cabelos e fazendo-os esvoaçar sem que se importassem. O astro rei alumiava-lhe a face esquerda, aquecendo e enrubescendo-a agradavelmente.

‒ Hei, vocês! – chamou uma voz rouca, obrigando-os a olhar em redor, inadvertidamente. Podia nem ser com eles, mas a rudeza do chamamento destoava da calma da cidade. Os olhos da jovem descortinavam as ruas, mas ninguém lhes prestava muita atenção ou dava sinal de os ter chamado. Franziu as sobrancelhas.

‒ Seus estouvados, preconceituosos e mal vestidos, olhem para mim! Aqui em baixo! – gritou a voz, irritada. Liriana fê-lo de imediato e deparou-se com um pequeno humanóide furioso, prestes a pontapear os pés dos três ou a atirar-se ao pescoço de alguém, caso o alcançasse, o que de momento era impossível. O homenzinho de barba e com a sua jaqueta verde bufava e estava mais vermelho do que um pimento. Era o senhor Elmar.

‒ Boa tarde, senhor – cumprimentou Ilnosianar, acocorando-se para o fitar de maior proximidade. ‒ Não faças chacota de mim, rapazola – ameaçou, referindo-se ao sorriso que se abrira nos lábios do

príncipe. ‒ Longe de mim! Mas diga-me o que tanto o aflige. ‒ O que me aflige? Que descaramento! Ora, os vossos pés imundos, é isso que me aflige! Ia sendo

esmagado pela vossa desatenção desrespeitosa! Pensam que são os únicos que aqui vivem, é? Mas não são! Eu e os meus parentes vivemos aqui há milénios incontestáveis que passaram e tornaram a passar…

Esperaram que o gnomo barbudo esgotasse toda a lengalenga em defesa dos seus comparsas, antes de lhe pedirem perdão pela indelicadeza e descuido. Não sem sorrirem para consigo, sem mesmo quererem.

‒ A vossa sorte é o caso ter sido comigo. Se fosse com o Bananino, estavam feitos! Liriana conteve uma risada que se tentou escapulir ao ouvir o nome de um possível conhecido de Elmar,

também ele gnomo, quiçá. ‒ Compreenda que não foi nossa intenção… ‒ Pois não, mas o que é demais enjoa! Ainda há pouco passou aí uma que quase me esmagou e que

quando lho fiz notar quase me esventrou com uns olhos verdes de elfo demoníaco! As árvores são testemunhas e Thornigan também! Eles bem viram aquela elfazita com a mania que é sabichona… Um dia ainda a esmago a ela!

Page 133: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 133 -

Ilnosianar soltou um suspiro de paciência, no entanto foi o único a fazê-lo. Como se os pensamentos fossem unos, os olhares das duas donzelas cruzaram-se por momentos. A referência a “olhos verdes” não passara despercebida a nenhuma das duas.

‒ Tinha a certeza que era uma elfo? – insistiu Alexis, o que espalhou a incredulidade pela face de Ilnosianar que a mirou, espantado.

‒ Claro que tenho, gaiata! Aquelas orelhas espetadas não enganam nem o mais cego anão! Mais elfo não poderia ser – declarou o gnomo resolutamente, cruzando os pequenos braços sobre o peito. – Uma ruiva brava que parecia acicatada pela pressa que a levava.

‒ A Inorian? A surpresa do príncipe fez Liriana chegar à conclusão de que não haveria muitos mais elfos em Nelgadir

com aquela cor de cabelo avermelhada. ‒ Sei lá se era Inola ou Inolana! Só sei que me ia matando – barafustou, como se esperasse que fizessem

alguma coisa. – Não gostei nada. ‒ Nós dir-lhe-emos para que tenha mais cuidado – pronunciou-se Liriana. A irritação do pequeno gnomo,

apesar de divertida ao princípio, tornara-se incómoda. ‒ Espero que sim, cachopa, espero bem que sim. Senão vão ter que se a ver com a comunidade de

gnomos, ou eu não me chame Rassuro Sonolongo Elmar! O gnomo afastou-se bamboleante sem ter conta da pouca atenção que o trio dispensara ao seu queixume e

às suas ameaças. A suspeita desaparecera dos rostos de Alexis e Liriana, sendo substituída pela preocupação de Ilnosianar ao dar-se conta da possível pessoa que quase tropeçara no senhor Elmar.

‒ O que se passa? – quis saber a senhora da Mansão Adriática. ‒ Ah… – murmurou o elfo, pensativamente. – É só que… bem… é um comportamento estranho por parte

da Inorian. Ela é calma por natureza. ‒ Talvez tenha acontecido alguma coisa… Ilnosianar mordeu o lábio inferior sem responder. Sabia que se passava algo, mas não percebia o que

poderia ser. Quando nessa mesma tarde Liriana regressou ao quarto, deu com Inorian ajoelhada junto à gaiola,

olhando muito atentamente para um ponto dentro desta. Um arrepio percorreu a jovem. Dava a parecer que a elfo estava noutro mundo, perdida entre pedaços de pensamentos revoltos. Dentro da gaiola, a ave jazia aninhada, com o pescoço encolhido. Pequenos estremecimentos assolavam-na de forma assíncrona. Não estava bem.

‒ Inorian, o que se passa? – Aproximou-se, indecisa. ‒ Não sei – murmurou a elfo e o seu tom era aflito. – Já fiz tudo o que podia por ela. Preparei-lhe um

remédio com ervas, alimentei-a, aquecia-a… mas nada parou esta estranha reacção. Seria então aquela a pressa que fizera Inorian quase atropelar o gnomo resmungão? O tentilhão mal levantou a cabecinha com a sua aparição. As penas pretas tinham perdido o brilho, o

volume do corpo diminuíra distintamente como se não comesse há dias, apesar de, diariamente, a jovem o alimentar e lhe encher o pequeno recipiente com água. O que mais poderia fazer por ele?

‒ O melhor será esperarmos. O tempo tudo cura – afirmou Inorian, mas Liriana não anteviu esperança nas suas palavras, só um consolo vão.

A elfo ergueu as mãos das coxas e colocou os cabelos que lhe atrapalhavam a fronte para trás das orelhas pontiagudas. Com esse gesto, os olhos da jovem abriram-se aflitos com o que viu.

Uma mancha vermelha revelava-se sobre o imaculado vestido branco, onde a mão esquerda estivera pousada.

‒ Inorian, estás ferida? – perguntou. Os olhos castanhos fitaram os esmeralda da elfo que a encarava sem compreender. – Deixa-me ver a tua mão.

‒ A minha… – murmurou, franzindo as sobrancelhas, intrigada. Baixou ambas as mãos. Lá estavam elas, várias chagas superficiais e um pouco inflamadas que pareciam acabadas de fazer. – Oh… isto. Fi-las quando cortava as ervas para o unguento. Não tive tempo para tratá-las, mas fá-lo-ei o mais depressa possível.

Page 134: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 134 -

As palavras serviram para acalmar a jovem. Porém a ave continuava com os pequenos acessos de tremores como se a temperatura descesse vertiginosamente. Mas ambas sabiam que nada tinha a ver com qualquer problema climatérico.

No dia seguinte, Liriana dirigiu-se para o local onde tivera a última aula com Landar. O Sol brilhava

intensamente, como parecia ser sempre normal em Nelgadir, enquanto uma nuvem ou outra se deixava arrastar pelo azul celeste, mudando lentamente de forma.

A clareira estava vazia e só duas borboletas amarelas ziguezagueavam pelo ar, acompanhadas pelo canto dos tentilhões.

A jovem mordeu o lábio inferior ao lembrar-se da ave. Nessa mesma manhã, quando a vira, continuava com o seu aspecto fragilizado que parecia aumentar a cada lenta hora que decorria. Inorian tentava a todo o custo tratá-la, mas os resultados não eram tangíveis. Duvidava mesmo que existissem.

Quando terminasse o treino nesse mesmo dia, levaria a ave até Alexis. Talvez a madrinha lhe pudesse fazer um diagnóstico seguro. Não que não confiasse em Inorian…

Soltou um suspiro, enquanto dava uma vista de olhos às redondezas sossegadas. A poucos metros dali, um brilho negro chamou-lhe a atenção. Encostados ao tronco de uma alta árvore, cruzados um sobre o outro, encontravam-se os mortíferos sabres de Landar. Isso queria dizer que o seu dono não andaria longe.

Aproximou-se deles com passadas largas e deteve-se a observá-los, como nunca antes pudera. Os punhos estavam envoltos num tecido prateado que deveria amortecer os golpes e evitar magoar as mãos. Por sua vez, um espigão negro subia da lâmina por cima do punho, de uma forma que lhe parecia pouco recomendável, senão perigosa para a própria pessoa que manejaria as armas. Mas não pareciam inconvenientes para Landar. O interior da lâmina dos sabres era composto por três curvas que se projectavam em três pontiagudas e aparentemente frágeis estruturas que a sua imaginação não alcançava utilidade sem ser o adorno.

Estendeu a mão para lhes tocar, mas hesitou. E se Landar chegasse entretanto, e ficasse furioso por lhe ter mexido nas armas sem autorização? Mas também, se ele não queria que lhes tocasse, porque as teria simplesmente abandonado por ali?

Engoliu em seco. Bem, também só queria sentir-lhes o peso e ver o material das lâminas mais de perto. Deixou que os dedos tocassem levemente na liga prateada e a mão direita foi-se enrolando

sucessivamente no punho, até que o envolveu por completo e o ergueu. Cada um dos sabres era pouco mais pesado do que �iadinar Elmorin, a sua espada alva. Com cuidado, levou-o junto aos olhos, mirando a lâmina com interesse. Tinha menos de um centímetro de espessura e, se percebesse alguma coisa do assunto, diria que possuía um óptimo equilíbrio. O gume brilhava de forma letífica, numa ameaça superior ao esquartejamento. Mas detinha algo mais.

Aproximou a mão esquerda da lâmina e tocou-lhe. Era fria, muito fria… Uma tontura assolou-a sem aviso, levando-a a vacilar, no entanto sem largar a espada. Tentou olhar em

volta, mas a paisagem apresentava-se-lhe turva. O verde da turfa misturava-se com o castanho dos troncos e com o azul do céu… as flores brancas tinham desaparecido… e fraca, como se sentia tão fraca…

O mundo esvaiu-se dos seus olhos, tornando-se negro e Liriana sentiu-se a cambalear para a frente.

As sobrancelhas franziram-se sobre os orbes felinos de Landar, enquanto este avançava por entre os

arbustos em redor até à clareira. A sua visão conseguia distinguir um ente prostrado no chão, sobre algo negro que emitia uma alumiação esfomeada.

As pupilas dilataram-se quando nesse mesmo instante se deu conta do que acontecia. Os joelhos dobraram-se um à frente do outro, no momento em que começou uma corrida ágil, a uma velocidade que daria inveja aos melhores desportistas de todo o mundo. Saltou os últimos metros de uma forma felina e acocorou-se ao lado do corpo de Liriana, afastando-a da espada que inexplicavelmente estava sob o peso leve dela. A arma emanava um brilho negro, como nunca antes a vira fazer.

Olhou preocupado para o corpo pálido e inconsciente da jovem e amaldiçoou-se pelo imperdoável descuido. Sentiu-lhe a pulsação. Estava fraca, fraca demais para o seu gosto e ali não poderia fazer nada para a ajudar.

Page 135: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 135 -

Rosnou para consigo, apanhando ambos os sabres e embainhando-os. Desta vez a sua lâmina bebera essência em demasia e, fatalmente, da pessoa errada. Não duvidava de que a jovem sobreviveria, mas esperava sinceramente que nenhuma sequela a marcasse.

Baixou-se e pegou-a ao colo, amparando-a contra o peito como se não passasse de um bebé, recomeçando a correr, em direcção ao Lago Midarvia, onde estaria Alexandrina. Ou assim lhe dizia o sétimo sentido, aquele que a sua capacidade de metamorfose desenvolvera ao longo dos anos.

Alexandrina olhou em frente, para a vastidão azulada. Estava de pé, lado a lado com a eternidade. Sentia-

a junto ao corpo, uma ténue presença que não se deixava alcançar assim tão facilmente. Esquiva e quiçá temente de que a pudessem capturar. E como lhe dava razão! Tantos ou tão poucos a mereciam e nem mesmo Midarvia a sabia guiar para os seus bons filhos.

A mão esticou-se no ar e afagou-a, sentindo aquela entidade não humana e não espírita flutuar à sua volta. Um dia havia também de abraçá-la. Um dia talvez distante, um dia talvez inalcançável.

‒ Alexandrina. A senhora despertou da letargia que tomava conta de si e voltou-se para trás, sabendo de antemão quem a

perturbara dos divagares inconsoláveis. No entanto não imaginara o porquê. Os seus olhos abriram-se de preocupação ao ver a afilhada inconsciente nos braços fortes do elfo.

‒ O que aconteceu? Porquê que… ‒ A Liriana tocou nas minhas espadas – respondeu Landar sem mais nenhuma explicação. ‒ Dá-ma – pediu, urgentemente, esticando os braços. Com suavidade, deitou a afilhada sobre a relva, afastando-lhe algumas mechas de cabelo da face. Landar

sentou-se de braços e pernas cruzadas, com as costas direitas, enquanto observava o que a senhora da Mansão Adriática faria.

Alexis segurou-lhe na mão esquerda, que esfriara inexplicavelmente, e pousou a mão direita sobre a fronte de Liriana.

‒ Fian nimani i heare sa assanae lia. Fian sen ladnar irsah ceri vir joernar elle ceveron si sandanorin. Saê sandanor. �imani kermori ellir nios valnorês. Uranien êr ceri der gilie in emosar sen argani – recitou fluidamente, deixando que cada palavra ondulasse à sua volta e penetrasse no espírito que se escondia dentro do corpo de Liriana, um espírito enfraquecido, talvez assustado. Debruçou-se, sem lhe largar a mão ou afastar a sua da testa da criança. – Vem a mim – murmurou.

O corpo de Liriana estremeceu, como se alguém a assustasse, e os olhos abriram-se um pouco. Ardiam-lhe e tudo o que conseguiu ver resumiu-se a uma massa turva que se recusava a distinguir. Piscou-os, tentando clareá-los, mas precisava de fazê-lo seguidamente para que as imagens ficassem cada vez menos baças.

Começou por distinguir alguns traços do que a rodeava. Um vulto estava debruçado sobre si. Era uma mulher… Alexis! Mas donde surgira a sua madrinha? Ela não estava à espera de Landar, na clareira?

Tentou levantar a mão para esfregar os olhos quando estes se voltaram a turvar, contudo não conseguiu. O braço recusava-se a obedecer-lhe e o máximo que conseguiu foi levantá-lo escassos milímetros antes deste se deixar cair na relva. O que se passava consigo? Para onde teriam ido as suas forças?

‒ Liriana – murmurou-lhe Alexis. Os olhos da pequena fitaram os da adulta, esperando que lhe pudesse explicar o porquê do seu estado debilitado. Custava-lhe a respirar o próprio ar. – Foste submetida a um enorme cansaço. Não precisas de me dizer seja o que for, as perguntas podem ficar para mais tarde – declarou, ao vê-la abrir a boca. – Vou levar-te para a Clareira Verde onde descansarás o resto do dia.

A jovem não disse nada e voltou a fechar os olhos que lhe custava manter abertos. Inspirou fundo para ultrapassar uma pequena mas incómoda sensação de falta de ar, enquanto os braços treinados de Alexis lhe pegaram firmemente. Estremeceu. Um frio imenso, vindo de um qualquer local remoto, envolvia-lhe agora cada osso do corpo, e apesar de desagradável, gostava dele. Sentia-o e isso era bom. O seu toque dava-lhe consciência da vida, a vida que não queria perder tão cedo.

Deu-se conta de onde estava quando sentiu Alexis pousá-la sobre algo macio que se deixava ceder levemente sob o seu peso. Não dera pelo tempo passar, talvez tivesse adormecido sem dar conta.

Voltou a entreabrir os olhos. A luminosidade imiscuía-se com o quarto, vinda das vidraças quase permanentemente abertas. Era agradável. Banhava-lhe a pele, aquecendo o seu frio, também ele agradável. Tão diferentes.

Page 136: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 136 -

A comparação feita entre as duas sensações recordou-lhe um acontecimento passado, algures dentro dos muros do palácio de Ardanir Riargion, o vampiro de Ranar. No fim de um não muito longo corredor, duas portas guardavam uma sala de acesso restrito. Ambas complementavam-se num feitiço de protecção ou aprisionamento. Unas, perfeitas, no entanto vulneráveis. Não tivessem elas permitido a fuga de Vinyriah das suas impenetráveis vontades. Ingénuas. Tal como ela.

Sentiu uma mão a afagar-lhe a cabeça e voltou o rosto para a madrinha que lhe sorria. Atrás dela encontrava-se Landar, numa posição recta e austera. Os seus orbes amarelos examinavam-na e, quando os olhos se cruzaram, o elfo lançou-lhe um sorriso tranquilizador que Liriana agradeceu do fundo do coração.

‒ Podes dormir que mais tarde eu própria te trarei algo de comer – sussurrou Alexis, enquanto se debruçava e lhe depositava um beijo na testa. – Descansa.

Liriana obedeceu-lhe de livre vontade. Nada mais desejava. E assim, o sono abraçou-a convidativamente mal os olhos se fecharam.

Quando voltaram a acordá-la, parecera-lhe que mal acabara de adormecer. O cansaço continuava presente

e a garganta secara, tornando-lhe as cordas vocais entorpecidas. A claridade diminuíra precocemente com o correr das cortinas, para que o seu descanso fosse maior, e o

canto das aves do exterior fora amenizado pelo fecho das vidraças. O sossego reinava no quarto, no entanto Liriana sentia a falta de algo.

Olhou em volta. Alexandrina estava ajoelhada à beira da cama, com o seu sempre atencioso sorriso, enquanto um tabuleiro com algo fumegante esperava pousado sobre a mesa-de-cabeceira. Atrás da madrinha, acomodado numa cadeira que era capaz de jurar que não se achava lá antes, encontrava-se Leonardo que lhe acenou alegremente, incitando para que um leve sorriso se abrisse na sua face.

‒ Boa tarde – cumprimentou a madrinha, num tom que tendia para o murmúrio. – Dormiste bem? Liriana obrigou-se a acenar, apesar de sentir que estava a mentir descarada e desrespeitosamente. Não

notava grandes diferenças relativamente a horas atrás, além do facto de já conseguir levantar o braço, notou, ao fazê-lo para se apoiar, enquanto se tentava erguer do leito.

‒ Importas-te que eu fique por aqui? – quis saber Leonardo, cruzando as pernas enquanto a avaliava como um atento doutor. Os seus dedos formavam uma pirâmide à frente dos lábios, conferindo-lhe um olhar algures enigmático que explicava parte do facto de ser um necromante.

Liriana abanou a cabeça, deixando-se encostar à almofada que Alexis lhe acomodara para as costas. Depois disso, a senhora pegou na tigela que repousava sobre o tabuleiro. O seu conteúdo era suave e pouco espesso, de tom amarelo-torrado.

‒ É sopa de alcanianas, ajudar-te-á a recuperar as forças – murmurou, mergulhando a colher dentro do recipiente. – Imagino que não te sintas à vontade por te dar o comer à boca, mas é para teu bem.

‒ Não faz mal – garantiu Liriana num tom rouco, tossicando de seguida para clarear a voz. Talvez dali a umas horas se sentisse mal por ter incomodado ambos os adultos, mas naquele momento a sua mente encontrava-se demasiado turva para esse género de especulação.

Abriu a boca automaticamente quando a primeira colher veio a caminho e repetiu a tarefa, até o estômago gritar que estava cheio e a obrigar a desviar a cabeça quando uma outra colher vinha a caminho.

‒ Bem, sempre é melhor que nada – constatou Alexis, não insistindo. A fome viria aos poucos. Terminada a refeição, Leonardo levantou-se da cadeira e aproximou-se, cruzando os braços sobre o peito,

enquanto observava a jovem pensativamente. ‒ Diz-me, gostarias de recuperar desse teu cansaço o mais rapidamente possível? – quis saber, sem dar a

entender o que pretendia com a pergunta. Era óbvio que queria! Não estava naquele estado por puro prazer, muito pelo contrário. E, para além

disso, ainda gostaria de saber o que lhe acontecera. Sentira-se optimamente até há algumas horas atrás, até ao treino com Landar que nem mesmo chegara a realizar-se.

Acenou afirmativamente em resposta. ‒ Então, pediram-me para te entregar um presente – disse, deixando que a mão deslizasse para o interior

de um bolso largo do casaco. A oferenda que tinha para lhe fazer cabia dentro da sua mão fechada, que permitia que um fio de malha

platinada se escapasse e pendesse em direcção ao soalho, enquanto se balançava indolentemente. Os olhos de

Page 137: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 137 -

Liriana seguiram cada gesto do necromante com uma certa curiosidade, até que por fim um sorriso se abriu ao ver o que era o tal presente.

‒ O Ilnosianar entregou-mo – declarou, enquanto se debruçava levemente, colocando-lho pela cabeça. O fio tinha um toque frio mas leve, contudo foi o cristal que lhe trouxe o alento que fugira horas atrás para destino incerto. O simples toque sobre a camisa que vestia fez com que o batimento irregular do coração amenizasse e voltasse ao normal.

‒ Obrigada – agradeceu com a voz fraca, agraciando o cristal com os dedos trémulos. ‒ Quem to deu tem com certeza uma enorme estima por ti – alvitrou, deixando que o olhar se perdesse

nos olhos castanhos-mel de Liriana. – Os espíritos clamam-no para quem os possa ouvir. ‒ Não sei quem o fez – confessou a jovem. Fitou ambos, ansiando uma resposta. Sabia que não fora

Alexandrina e as palavras de Leonardo diziam-lhe que ele também não o fizera. Assim sendo, as hipóteses que lhe sobravam eram poucas. Talvez Landar? Não lhe parecia. O elfo pouca simpatia demonstrava para com ela e ao princípio recusara-se resolutamente a treiná-la…

‒ Aparenta ser uma improbabilidade enorme, não é? – Alexis interrompeu-a, pensativamente, captando-lhe a linha de raciocínio. – Mas é a única resposta credível. Só mais um ser o poderia ter feito, no entanto era um acto que fugiria a qualquer lógica. A Vinyriah jamais te cederia uma arma que poderias utilizar contra ela.

Leonardo limitava-se a sorrir, enquanto se lembrava de algo ou simplesmente comunicava com algum espírito do além.

‒ O problema recai em como o Landar obteve um As-Holan e, principalmente, como o conseguiu manusear se transporta consigo as Virian Vorgan – murmurou para si mesma. – Mas isto é conversa para outro dia e agora a única coisa de que precisas é de descanso.

‒ Não! Eu… gostava de ouvir – pediu, deixando que a mão segurasse uma das de Alexis, evitando que esta se erguesse. – Por favor.

A madrinha fitou-a ao mesmo tempo que a avaliava, permitindo-se a uma análise completa da sua face agora já mais corada, mais viva.

‒ Se o doutor não tiver nada contra – observou, levantando a cabeça para Leonardo que ainda se encontrava meio perdido por entre outro mundo. – Leonardo, deixa a conversa para quando estiveres sozinho – ordenou, dando-lhe uma leve cotovelada ao nível do abdómen, o que lhe chamou a atenção de imediato, obrigando-o a olhar para baixo. – Porventura achais de bem que a minha afilhada escute os devaneios da sua pobre e insana madrinha?

O necromante piscou os olhos várias vezes, como que para aclarar a mente, antes de responder num tom perfeitamente normal onde notoriamente se escondia a jocosidade.

‒ Desde que a Liriana, para o bem da humanidade, aprenda a não repetir essas tuas insanidades, tudo bem. Alexis lançou-lhe um olhar onde estava patente um pouco de divertimento, de irritação e de carinho. Os

seus lábios rosados formavam uma linha cujos cantos se elevavam inequivocamente para cima, apesar do esforço para contrariar esse movimento. As bochechas coradas conferiam-lhe o aspecto de uma bonita boneca de porcelana. Perguntava-se como teria sido a vida de Alexis antes de Liriana ter surgido na mansão, antes de despertar a sombra com a sua presença.

‒ Então vejamos por onde hei-de começar… talvez pelo que te aconteceu? – inquiriu, pedindo a opinião de Liriana. As sobrancelhas ergueram-se e formaram um arco de expectativa, aguardando a sua resposta, o que a atrapalhou um pouco.

‒ Pode ser – disse, após milissegundos que lhe pareceram horas, passando a ponta da língua pelos lábios que sentiam já os efeitos do estranho ataque dessa manhã. Encontravam-se ressequidos e pequenas chagas começavam a miná-los. Precisava de beber mais água.

Alexis voltou a face para as cortinas de forma a organizar as ideias. ‒ Ficaste nesse estado pela simples razão de teres tocado nas lâminas das Virian Vorgan, as Bailarinas da

Morte, ou numa tradução mais correcta, as Bailarinas Mortais, as espadas do Landar – começou, voltando a atenção para a jovem. – Outras pessoas morreram por se encontrarem meros segundos em contacto com elas.

Liriana quis perguntar o porquê, mas sabia que seria falta de educação interromper Alexandrina a meio da narrativa, e com certeza ela lho diria.

‒ Expliquei-te como funciona o As-Holan, não foi? – Liriana confirmou com um aceno. – Pois bem, como ele existem dois outros cristais. O Âmbar do Crepúsculo, ou Ithilvan, é um cristal lilás e um acumulador de energia. Muitas vezes utilizado por feiticeiros e em casos em que a arma se encontra intimamente ligada ao seu

Page 138: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 138 -

possessor, ou seja, herdada, como é o caso da �iarda, a minha espada. Por vezes são também feitas especialmente para a pessoa que a requereu. No entanto, os sabres do Landar foram forjados em Vorgamar, o Âmbar das Trevas. – O rosto de Alexis tornou-se sério, o que levou Liriana a redobrar a atenção, de imediato. – Esse cristal é o oposto do As-Holan, ou seja, desvanece e rouba energia. É um cristal negro que poucos conseguem controlar, pois um mero toque na sua superfície pode levar o perpetrador à morte prematura, este sugar-lhe-á toda a energia vital, deixando uma concha vazia. Quando controlado, obedece aos sentimentos do seu utilizador, podendo mesmo destruir a energia pendente no ambiente, se este assim o desejar.

‒ E atrai a si as almas das trevas quando não controlado – completou Leonardo num tom vago, enquanto observava as flores das paredes. – Essas pedritas estão inundadas em misticismo.

‒ Nem mesmo a Vinyriah o utiliza. Ambas exercemos o nosso poder através do Ithilvan, dos três o melhor controlável, o meio-termo entre a luz e a escuridão.

‒ O manipulável – observou o necromante, ainda com ar de quem não escutava a conversa. – O fraco, segundo o ponto de vista de muitos anciões.

Alexandrina torceu o nariz, mostrando desagrado por aquele comentário. Pelos vistos a sua opinião destoava da dos venerados anciões.

‒ O Ithilvan representa o equilíbrio entre ambos. O que os antigos dizem é… ‒ Uma parvoíce? – sugeriu com um sorriso sarcástico. ‒ Uma mera opinião sem fundamentos – completou asperamente, enquanto a mão tacteava o local onde

estaria a sua espada, caso na realidade não se encontrasse no quarto. Era a primeira vez que Liriana dava conta de um pequeno defeito na madrinha. Gostava de ter razão.

O silêncio quedou-se entre eles. Cada um mastigava o que fora dito. Leonardo atentava a face rígida de Alexis, examinando a brancura alva com poucas ou nenhumas rugas. A família Adriática era conhecida por um envelhecimento mais lento que qualquer membro da espécie humana, pois não o eram totalmente. Descendiam de elfos, uma descendência longínqua mas que se fazia notar e não só na mera suavidade da pele. O poder que emanavam de si era sentido por qualquer feiticeiro que se encontrasse a um raio de cinco quilómetros. Ele próprio o sentia e fora graças a essa sensação que se chegaram a conhecer intimamente. Por isso e pelo facto dos seus pais o terem tentado internar, há muitos anos atrás, numa clínica psiquiátrica. Só porque os seus amigos invisíveis realmente existiam. Sorriu para si. Oh! Quanto não devia ele aos pais de Alexis e a ela própria, a sua grande e melhor amiga. O pai desta exercera neurologia em Coimbra e fora ele que notara a sua estranha capacidade de comunicar com os mortos aquando uma consulta para resolver a sua “loucura”. Os seus progenitores praticamente o divinizaram por este se voluntariar a criá-lo na mansão. E fora aí que as conhecera, Laura e Alexandrina. Duas gotas de água aparentemente iguais, contudo uma delas secretamente envenenada. Adoptaram-no como filho e irmão, coisa que realmente o encantou. Amaram-no como nunca fizeram os seus pais biológicos que o consideravam uma aberração. Ensinaram-no a viver com o seu dom e esse facto intensificara o misticismo que a Mansão Adriática já em si resguardava. Fora oficialmente considerada assombrada. Por mais do que uma vez, padres atentos e preocupados, muitos deles influenciados pelos habitantes assustados, dirigiram-se à mansão para a benzer e afastar os maus espíritos. Em casa ninguém se importava e tanto ele como Alexis se divertiam a atormentar os pobres habitantes da vila. Mas tinham desculpa, eram crianças. Laura sempre se mantivera à parte, sempre os olhara de soslaio. Os orbes verdes da feiticeira sustinham um brilho enigmático e sempre incómodo que os perseguia e espiava…

Um arrepio percorreu o jovem médico que voltou a si instantaneamente. Alexis e Liriana falavam de alguma coisa a que estivera alheio. Nos últimos dias andava aéreo. Talvez adviesse do facto de terem regressado a Nelgadir ao fim de tanto tempo. Passara grande parte da adolescência entre a Mansão Adriática e aquele belo paraíso. Fora ali que… um sorriso mais amplo e nostálgico preencheu-lhe a face enquanto se deixava submergir em recordações.

Alexis olhou para cima quando sentiu uma mão afagar-lhe a cabeça. Leonardo observava-a com um carinho tal que a fez estranhar e franzir as sobrancelhas enquanto Liriana soltava uma risada divertida.

‒ Bem, tenho uns assuntos para tratar – declarou, debruçando-se para beijar Liriana na fronte e Alexis na bochecha. – Portem-se bem.

Viram-no sair com uma alegria aparentemente inexplicável, com a capa a ondular atrás de si. ‒ De que se terá lembrado? – perguntou-se a senhora, passando a mão pela cabeça, duvidosa daquele

comportamento tão inesperado. No entanto Liriana não a ouvira, pois mal Leonardo saíra do quarto apercebera-se do que lhe estava em falta. A gaiola com o tentilhão de olhos verdes desaparecera.

Page 139: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 139 -

O dia nasceu solarengo, como maior parte dos seus antecedentes irmãos. Thornigan avançava pelos céus,

um aglomerado de pólen longínquo que as andorinhas tentavam alcançar qual abelhas atarefadas. Liriana desceu cedo para o pequeno-almoço, espantando os únicos dois presentes que não pensavam vê-la

uma hora após o nascer do Sol. Alexis e Leonardo levantaram as cabeças subitamente, na direcção das portas, ao escutarem o seu tímido bom-dia.

‒ Lírio do Campo! Deverias estar a descansar – asseverou o médico, cruzando os braços sobre o peito, enquanto se recostava na cadeira, mirando a adolescente de cima a baixo com um olhar falsamente irritado.

Enquanto isso, a madrinha erguera-se do lugar à cabeça da mesa e contornara-a em direcção à afilhada que se sentiu abraçada inesperadamente.

‒ Fico contente por te ver aqui – declarou, beijando-a na bochecha e deixando que os seus olhos azuis se prendessem nos de Liriana.

Depois de liberta de toda a atenção que recaíra sobre si, pôde sentar-se ao lado da madrinha e apreciar o pequeno-almoço na companhia dos dois, mas sem que nenhum a perturbasse. Talvez pensassem que desejava meditar um pouco sobre o que lhe acontecera, no entanto a verdade era que já meditara tudo o que tinha a meditar. Só gostaria que Landar lhe tivesse dito alguma coisa, um pedido de desculpas, quiçá, ou mesmo uma palavra amiga.

Após a refeição, perguntou-lhes a questão que lhe revolvia a mente. Onde estava Inorian? Não a via há já algumas horas e fora outra pessoa de quem esperara uma visita, mas isso não acontecera. Nenhum deles sabia da elfo, e já não a viam há alguns dias, possivelmente por se encontrarem ocupados.

Decidiu então ir procurá-la. Queria saber da pequena ave adoentada. Poderia já estar melhor. Liriana rodeou o edifício por um caminho ladrilhado com pedras, seguindo o instinto que geralmente

nunca a deixava ficar bem. Inorian encontrava-se num anexo onde se guardavam os poucos acessórios necessários para a jardinagem, pois para o povo élfico bastava-lhe palavras acolhedoras para que a natureza acedesse aos seus pedidos. A elfo encontrava-se sentada num banquinho de três pernas e observava a ave atentamente sem lhe mexer. Esta estava aninhada numa bancada de madeira. As penas sofriam da mesma lassidão e algumas jaziam soltas, enquanto o verde parecia sofrer de uma descoloração adiantada. Estava a morrer…

‒ Inorian, o que aconteceu? A elfo ressaltou-se. Não escutara a aproximação da jovem e o seu olhar voltara-se para trás assustado,

como se estivesse a fazer algo indevido e repreensível. Os seus orbes verdes prenderam-se em Liriana com alguma ferocidade, mas depressa se amenizaram ao reconhecer a presença esguia da jovem.

‒ Oh, és tu – observou, demonstrando um tão pouco interesse que chegou a ofender a adolescente. O choque devia ter-se espelhado no seu olhar pois fez a esbelta humanóide mudar de atitude imediatamente. – Desculpa, Liriana. Estou um pouco nervosa. Não consigo curá-lo. Temo que…

As palavras perderam-se na língua, enquanto uma fungadela de quem chorara recentemente se fazia ouvir. ‒ Não podemos fazer mais nada? – Liriana avançou até se encontrar lado a lado com Inorian. Os cabelos

fulvos da elfo pareciam ter perdido o tom, escurecido talvez. A sua mão ligada continuava a sangrar, pois a ligadura estava ensopada num líquido escarlate.

‒ Não. A sua vida está presa por horas – sussurrou mais para si do que para a rapariga. – A única coisa que poderei fazer será tornar o seu repouso ameno e suave. Terá um lugar digno de si.

Ganhou coragem para se erguer do banco, inspirando profundamente e lançou-lhe um último sorriso sofrido, antes de a deixar a sós com a ave.

Uma aranha observava-as com os oito olhos negros, da sua teia de mil fios a um dos cantos superiores da casa. Viu Liriana debruçar-se sobre a bancada e deixar que um dedo deslizasse pela pequena cabeça do animal.

‒ Não te posso deixar morrer – murmurou. No entanto, o que poderia fazer? Não conhecia nenhum veterinário e aquele nem era o seu mundo. Mas estava fora de questão ficar parada e deixar aquela vida escoar-se quase por entre os dedos. Tinha de fazer alguma coisa.

Colocou então as mãos em forma de concha e segurou a ave entre elas, delicadamente, levando-a consigo até à única pessoa que a sua mente incapaz se recordava. Ao sair, olhou de um lado para o outro, esperando não

Page 140: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 140 -

ver Inorian. Sabia que ela não aprovaria aquele acto de desespero. Talvez os elfos possuíssem uma qualquer conduta que os impedisse de auxiliar os seres num estado de doença já tão avançado.

Subiu as escadas em caracol num passo apressado e com o nervosismo a aumentar a cada lanço percorrido, tentando oscilar o tentilhão o menos possível entre as suas mãos. Bateu à porta do quarto da madrinha, uma batida célere e urgente que rapidamente foi socorrida.

‒ Liriana, o que… – O olhar de Leonardo prendeu-se na ave, estranhando a pequena presença, enquanto deixava que a jovem entrasse.

‒ Preciso que a ajudem, está a morrer – disse, dirigindo-se para Alexis, sentada à mesa redonda com alguns pergaminhos nas mãos.

A urgência da rapariga não lhes deu tempo para que se espantassem e depressa Alexandrina largou fosse o que fosse que estivera a fazer, libertando a mesa para que Liriana pousasse a ave tentando não a magoar.

‒ Onde a encontraste? – quis saber primeiro de tudo, percorrendo o corpo da ave com um olhar examinador, detectando todas as falhas que um ser vivo pudesse transmitir enquanto moribundo.

‒ Eu e a Inorian tentámos tratar dele, mas foi ficando cada vez pior… – desculpou-se Liriana sem responder à pergunta que lhe fora feita.

A madrinha não fez mais questões e quedou-se na observação da ave, tacteando as penas e o dorso, e acabando por cerrar os olhos enquanto o fazia. Deixou que os dedos percorressem com lentidão o corpo do animal, começando nas plumas da cauda e avançando inexoravelmente em direcção à cabeça.

Liriana esperou pelo diagnóstico, deixando que o abanar da perna mostrasse o quão nervosa estava. Todavia, os trejeitos que a face de Alexis ia adquirindo, só lhe foram acrescentando apoquento ao nervosismo. Havia algo mais para além da preocupação. As sobrancelhas negras da madrinha franziram-se inquiridoras quando examinara o dorso, mas quando a mão avançou em direcção à cabeça, os lábios dela começaram a estremecer, formando por fim um esgar de pura raiva.

Os olhos abriram-se de repente, assustando Liriana, e a guerreira levantou-se quase que de um salto, avançando até à sua mesa-de-cabeceira onde �iarda se encontrava encostada. Pegou na espada e desembainhou-a, abandonando a bainha sobre a colcha da cama.

‒ Alexandrina, o que aconteceu? – intercedeu Leonardo, agarrando-lhe o braço quando esta passou por si de espada empunhada sem qualquer outra palavra.

Alexis olhou para a ave e depois para o necromante. O azul da sua vista quase que flamejava de raiva. ‒ Aquela ave não é uma ave – disse, tentando não trespassar a raiva no seu tom de voz. – Aquela é a

Inorian! Sabes o que é que isso significa, não sabes? Liriana escutou aquelas palavras, sem ter a certeza do que significavam, sem mesmo imaginar como

poderia ser possível. Inorian seria como Landar, possuindo poderes para se metamorfosear noutros animais? Então porque se mantivera naquela forma durante tanto tempo sabendo que estava doente? E porque lhe dissera há pouco que…

Os pensamentos da jovem colapsaram-se numa irrevogável resposta onde palavras fatídicas soavam ao seu ouvido prometendo algo que temia: �ão é tão delicioso sentir a morte pender sobre a nossa cabeça?

Uma risada súbita teve um efeito electrocutante em si e fê-la voltar a atenção para a porta, de forma repentina. Inorian encontrava-se encostada à ombreira, numa pose provocante que se destinava a enraivecer Alexandrina para além do imaginável.

O braço da guerreira libertou-se da mão de Leonardo e Alexis avançou para a elfo com a espada perigosamente em riste. Liriana encolheu o pescoço, sentindo a superfície do corpo formar pele de galinha, enquanto esperava ver a lâmina de �iarda trespassar de lado a lado a feiticeira que possuíra o corpo da pobre Inorian. No entanto, isso não se sucedeu. A guerreira foi obrigada a parar abruptamente após a visão de um brilho gélido que pendia da mão esquerda da humanóide, um punhal que quase falava por si só e que escorria da sua ponta um inegável fio avermelhado. Era uma ameaça pura. A questão seria: para quem?

‒ Ora, ora, ora… choca-me a falta de confiança que depositas na minha pobre pessoa, Liriana – confessou, levando a mão ao peito e entristecendo o olhar esmeraldino de forma teatral. – Abres chagas no meu frágil coração de elfozinho. Oh!

Por precaução, Leonardo pousou a mão sobre o ombro de Alexis, tentando reduzir-lhe a vontade de atravessar Vinyriah de lado a lado, ou então de esganá-la com as suas próprias mãos. Escapava-lhe a razão que a levara a infiltrar-se entre eles. Não os podia magoar sem se ferir a si própria, segundo os encantamentos lançados sobre Nelgadir para evitar confrontos desnecessários e manter a paz; não poderia recuperar o seu

Page 141: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 141 -

bastão, que estava mais do que protegido e em que era necessário conhecer o anti-feitiço para o libertar da sua prisão; e nada tinha para espiar, pois nenhum assunto de importância fora discutido junto dela. O que andaria então a tramar?

‒ O que é que queres daqui? – O necromante tomou a palavra num tom frio, enquanto a perscrutava de uma forma que destoava da sua maneira de ser. Os olhos castanhos escureceram, tornando-se quase negros, numa ameaça tão ou mais latente que a adaga de Vinyriah.

‒ Nada quero, Leonardo, por quem me julgas? Somente senti saudades de toda esta pureza nauseante, da felicidade dos que se escondem atrás de feitiços e encantos. – A língua bífida chicoteava palavras agrestes nas suas direcções.

‒ Diz lá qual é o teu jogo, maldita! – vociferou Alexandrina, mostrando os dentes de forma selvagem e no mínimo intimidadora. Caso aquela ordem lhe fosse dirigida, Liriana seria capaz de se esconder debaixo da cama por umas boas horas até a tempestade passar por completo. Mas naquele momento o coração palpitava cada vez mais aflito. A vida da ave pousada sobre a mesa esmorecia a cada segundo que passava e, por algum motivo que desconhecia, nenhum dos dois fazia fosse o que fosse para deter o monstro que se infiltrara no corpo da pobre serviçal de Nelgadir.

‒ O meu jogo, querida irmã? Queres saber qual é o meu jogo? – repetiu, levando a ponta do punhal à têmpora de forma subtilmente pensativa.

‒ Não nos podes matar aqui – quase cuspiu para Vinyriah, apertando o punho da espada com cada vez mais força, fazendo o braço estremecer.

‒ Pois é, bem visto – declarou, olhando para o tecto branco, enquanto a adaga descia lentamente da têmpora até ao pescoço. – Não vos posso matar a vocês os três. Porém o sofrimento impele-me a pôr termo a uma pobre e pequena vida…

Os olhos de Liriana esbugalharam-se ao dar conta do assunto a que a feiticeira se referia e, nesse preciso momento, viu o punhal descer a uma velocidade vertiginosa até ao ventre elegante do corpo da elfo, rompendo o vestido verde e penetrando na carne, de forma assassina, uma, duas e três vezes, perante os olhares horrorizados dos três.

A gargalhada de Vinyriah soou ressonante, enquanto a ave soltava um estridente pio de dor que lhes preencheu os peitos de agonia. O sangue alastrava pelo vestido da elfo semidobrada, enquanto os orbes esverdeados emitiam uma maldade que se deliciava com o horror de cada um.

Finalmente esse olhar desapareceu quando as pálpebras se fecharam e o corpo caiu moribundo à entrada do quarto.

O tempo parecia ter parado naquele preciso instante em que tanto a vida como Vinyriah se esvaíram inexoravelmente do corpo. Apesar das pernas de Liriana tremerem, esta mal tinha a sensação de que estava prestes a desmaiar. Não conseguia afastar o olhar horrorizado do corpo exangue de Inorian e a garganta apertava-se, até que as lágrimas começaram a brotar numa avalanche que nunca antes conhecera, deixando-se por fim quedar, ajoelhada, sem conseguir conter o seu próprio peso. Alexis continuava estática no mesmo lugar, o olhar estupefacto, senão entorpecido pela cena presenciada. Por pior que pensasse da irmã, nunca imaginara que fosse capaz de tal, em Nelgadir. Pelo menos era disso que se tentava convencer. Sempre o fizera, sempre quisera crer que ela não era tão má quanto dava a mostrar. Mas enganara-se, e cada engano seu fora a infeliz morte de alguém. Sentia nas mãos o próprio sangue dos pais e de muitos mais seres.

‒ Alexandrina… – murmurou-lhe Leonardo ao ouvido, aconchegando-a entre os seus braços. Fora o único que não perdera a presença de espírito perante tal situação. Seria ele o que menos sentiria a falta de Inorian pois poderia vê-la e senti-la entre o reino dos espíritos. – A Liriana precisa de ti.

O peito da guerreira elevou-se ao ouvir aquelas palavras e olhou para trás, vendo a afilhada prostrada ao lado da mesinha, a olhar para as próprias mãos como se também ela tivesse cometido algum crime. Como é que Vinyriah conseguia com que todos eles se sentissem culpados pelos assassinatos que impunemente perpetuava?

Libertou-se de Leonardo e avançou até à afilhada, ajoelhando-se ao seu lado, enquanto deixava que os braços a envolvessem num abraço apertado. Não sabia se tentava consolá-la ou a si própria de todas as intempéries da vida. Como é que os deuses deixavam um monstro daqueles vir ao mundo? Como? Que destino vil lhes reservava com todas aquelas demonstrações de pouco apreço?

Beijou a cabeça de Liriana com todo o afecto que sentia pela pobre criança que fora envolvida em todos aqueles acontecimentos traumáticos.

Page 142: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 142 -

O necromante soltou um suspiro, deixando que o olhar vagueasse pela cena da fatalidade. O tentilhão verde jazia sob o tampo da mesa com um fio de sangue a escorrer do bico. Dirigiu-se-lhe e pegou-lhe de forma delicada, manchando as mãos de sangue, para depois avançar em direcção ao cadáver, levantando-o nos braços com algum esforço, e abandonando o quarto. No local onde a elfo houvera perecido, a madeira permaneceu húmida e escura.

Tanto Alexis como Liriana necessitavam daquele momento de consolo.

�*� ‒ Conseguiste? Ardanir observava as costas altas e direitas do ser que se encontrava junto à varanda a admirar o pôr-do-

sol. Este diluía-se para o crepúsculo que o seguiria, antecipando as trevas da noite. Um característico sorriso cruel ergueu-se nos lábios de Vinyriah enquanto o via descer cada vez mais até por fim desaparecer no horizonte distante. Só depois respondeu, voltando a cabeça para lançar um olhar de lado ao vampiro, e fazendo com que o cabelo caísse pelos ombros como uma sombra negra.

‒ O veneno ficou a fermentar na sua alma. Conseguirei o que quero mais cedo do que a minha querida irmã pensa. Ela nem sabe o que a espera, pobrezinha… – Uma risada revibrou-lhe na garganta, enquanto voltava a atenção novamente para o exterior. – Sentirá a desilusão que Midarvia sentiu para com Scanethum. E entretanto, farei com que essa dor desapareça, assim como a vida desprezível dela.

Page 143: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 143 -

XIV

Traição

Sonha um novo sonho, Ao embalo que te canta a noite.

Sonha que sonhaste o voo, Sob o luar vítreo da madrugada.

Que de sonhos se constrói o mundo E o castelo das tuas cartas.

Sopra o vento e o castelo decai. Sopra o vento, que a vida se esvai.

Que um sonho só é sonho Quando o desejo é semente plantada.

Mas o sonho morre se de veneno For o rebento da orvalhada.

“Sonho Envenenado”

O funeral de Inorian realizou-se junto ao imenso Lago Midarvia. Foi uma celebração solene sob a luz do

luar e das tochas azuladas que alguns elfos, assim como Alexandrina, empunhavam, erguidas acima das suas cabeças, formando um semi-circulo em volta do corpo. Entoavam um cântico profundo e incompreensível que fluía na noite calma, elevando-se até cada astro brilhante que resplandecia na escuridão.

Liriana encontrava-se ao lado de Leonardo, a cinco metros de distância do local onde se dava a cerimónia, observando com um olhar triste. A jovem já não chorava. Todas as lágrimas que tinha a verter, vertera-as dias atrás, aquando a morte da elfo e no dia seguinte, e no que se seguira a esse. Chorara pela perda de uma vida, chorara pelo impacto que essa perda causara em si, chorara pela visão de um tal horrendo espectáculo. Mas agora, se voltasse a chorar, seria por raiva, pelo mais puro ódio que sentia em relação a Vinyriah. Convivera com ela por dias, fora um joguete ludibriado nas suas garras retorcidas.

Quando cerrou as mãos, sentiu as unhas cravarem-se nas palmas, ao longo de toda a linha do coração. A cerimónia continuou por mais duas horas, até que o corpo da elfo foi suavemente colocado no interior

de uma jangada construída a partir do tronco de uma das árvores antigas. Uma dádiva que a natureza oferecia à sua alma. A embarcação fora concebida com instrumentos purificados naquela mesma água. Até mesmo as pequenas lâminas, lixas e cinzéis, com que desenharam e demarcaram algumas frases na escrita élfica que sabia agora chamar-se Cleriamn, foram também purgados nas águas da Deusa.

Quatro elfos transportaram o pequeno barco até dentro do lago e pousaram-no quando as águas já lhes chegavam à cintura. Os Senhores de Nelgadir avançaram também para o interior das lágrimas da sua Deusa, ensopando as vestes compridas de uma brancura simples mas etérea. Cada um transportava um archote de labaredas azuis, tal como os membros que formavam o círculo. Todos os restantes habitantes que assistiam ao funeral se ajoelharam e prostraram as cabeças em reverência, fechando os olhos, alguns deles permitindo que uma ou outra lágrima se derramasse e caísse na relva fresca. Ambos os senhores ladearam o barco e pareceu-lhe ver que os lábios murmuravam palavras, quiçá de descanso eterno. Depois disso pousaram as tochas dentro do barco, deixando que o fogo começasse por consumir o vestido branco que Inorian trajava agora. A jangada foi largada e levada pelas correntes, afastando-se até ao ponto de Liriana só distinguir uma enorme chama azul que se elevava para os céus. A deusa mãe recebia um dos seus filhos, de regresso à fonte primordial da vida.

Quando o fogo era somente um ponto no enorme e vasto lago, Leonardo pousou a mão sobre o seu ombro e disse-lhe, num murmúrio, que estava na hora de voltarem. Liriana deixou-se guiar pelo necromante até à Clareira Verde, e daí até ao quarto, sem que nenhuma das imagens se desanuviasse da mente. Daí a sete dias realizar-se-ia um banquete festivo em honra de Inorian, segundo o que Leonardo lhe contara. Seria nesse sétimo dia, segundo as crenças populares, que o espírito da elfo entraria totalmente em contacto com a Deusa, caso

Page 144: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 144 -

fosse esse o seu destino, e o necromante não duvidava de que seria. Conhecia agora, melhor que ninguém, a elfo que aparentemente já não se encontrava entre eles. Tentando amenizar a tristeza da adolescente, ele confessara-lhe que o espírito de Inorian prometera protegê-la qual anjo da guarda. Contudo, para Liriana era difícil de acreditar, senão impossível. Ela não conseguia ver espíritos fosse onde fosse e, se nalgum remoto dia pensara que os sentira, poderia simplesmente ter sido alvo da passagem do vento.

Sentou-se na cama, repousando as mãos sobre as pernas. Se tivesse notado algo de estranho no tentilhão verde, como na realidade notara, talvez Inorian não estivesse morta àquela hora. Se tivesse levado a ave directamente a Alexis ou a Leonardo, talvez houvesse uma salvação. Mas não o fizera. Deixara-se enganar pelas palavras mansas, não suspeitara de nada na atitude da elfo, nem mesmo quando esta lhe falara das suspeitas que os senhores de Nelgadir supostamente nutriam pela sua madrinha! Tudo uma imensa e calculada mentira! Como fora tão crédula?!

As mãos fecharam-se sobre o tecido branco das calças. A culpa era sua e da cegueira que lhe consumia a mente. Permitira que uma vida longa terminasse abrupta e violentamente, ignorando o óbvio, a mudança de personalidade que se dera à chegada da ave negra. Inorian não se aproximara de mais ninguém além de si, pois sabia que o seu disfarce seria desmascarado; nunca sugerira que alguém especializado examinasse a ave, nunca…

‒ Ahh! – rosnou, esmurrando o colchão enquanto deixava que a escuridão antevisse o esgar de raiva que lhe contorceu o rosto. Vinyriah pagá-las-ia, nem que fosse a última coisa que fizesse. Nunca antes sentira tanto ódio por alguém, nunca antes quisera ver alguém morto. Mas naquele momento tinha a certeza de uma coisa: gostaria de matar a maldita feiticeira com as próprias mãos.

Liriana mal dormiu durante a noite, e nas muitas horas em que esperara que o sono chegasse, a sua mente

formou um plano firme. Iria voltar aos treinos de Landar, mesmo que fosse sozinha. Só necessitava de um arco e flechas, o resto adviria com a prática. Já não precisava de um professor, não precisava de ninguém. E sabia onde encontrar esses materiais, vira as armas dias antes, dias esses em que nunca pensara vir a desejar usá-las contra um ser vivo. Mas, teoricamente, o coração de Vinyriah já estava morto, não batia por nada e muito menos por ninguém.

Após o pequeno-almoço, subiu até ao local onde tivera aulas com Leonardo: o sótão. O pó acumulava-se, camada por camada, sobre o soalho. Todas as janelas estavam fechadas, mas alguns ramos de árvore penetravam pela casa, deixando que os raios solares entrassem por brechas vagas criadas por eles. Esses raios deixavam a descoberto as suas duas únicas investidas pelo local – várias pegadas, umas que seriam facilmente atribuídas ao tamanho das suas botas élficas e outras às de Leonardo. Seguiam em curvas e contra-curvas até um local onde o pó fora totalmente removido, ou quase. Não necessitou de avançar até esse ponto, pois o que procurava encontrava-se a meio caminho. Um enorme baú de madeira estava parcialmente aberto, numa arrumação que fora tudo menos cuidada. Do seu interior revelavam-se vários instrumentos de guerra, há muito não utilizados, possivelmente pertencentes aos antigos habitantes da clareira. Peças de armadura como manoplas e uma cota de malha descansavam no fundo, sob uma espada esguia, uma adaga de punho delgado e copos dardejados a esmeraldas, duas aljavas, flechas de penas brancas pintalgadas a negro e arrumadas sem direcção prévia, e uma caixa forrada a couro castanho, quase tão comprida quanto o baú. Liriana adivinhava já o que se escondia no seu interior.

Sentou-se de pernas cruzadas sobre o pó macio e retirou o estojo do baú, cuidadosamente. Com a manga da camisola, limpou a sujidade superficial que o tempo deixara. Abriu os dois fechos simetricamente colocados e empurrou a tampa para trás sem que esta chiasse. No interior repousava um arco sem fio. A madeira era de um castanho incrivelmente parecido com o seu olhar e pequenas folhas talhadas ao longo do arco descreviam-no como uma obra belíssima. Como já lhe fora dado a conhecer, nem nas armas de guerra os elfos dispensavam um pouco de descuido e indelicadeza, o que lhe dava pena de o utilizar. Fechou a caixa rapidamente para que aquela sensação não a detivesse de cumprir a sua aprendizagem. Será que até um objecto sem alma a conseguiria influenciar?

Nesse dia levou apenas o arco mas, nos que lhe seguiram, voltou para buscar a espada e a adaga, assim como o cinto onde as bainhas de ambas as armas se prendiam. Treinou sempre no lugar onde Landar a levara para treinar tiro com arco. Ali ninguém a incomodaria, nem mesmo o próprio professor a quem não via desde o

Page 145: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 145 -

dia em que, inevitavelmente, tocara nos seus sabres gémeos, apesar de uma vez ou outra lhe parecer ter um leve vislumbre de Landar por entre os troncos e os fetos bravios que a rodeavam.

A espada deslizou pelo ar, cortando em dois o inimigo invisível que, estranhamente, possuía o cabelo

negro à altura da cintura. Alguns fios de cabelo foram também atingidos, flutuando à brisa quente que se colava à fronte, misturada com gotas translúcidas de suor. Apoiou-se na espada, enquanto obrigava os pulmões a receberem o ar de que tanto necessitavam. Estava a conseguir. Talvez o método de Landar simplesmente não resultasse consigo. Não era nenhuma inapta, não precisava de que alguém a julgasse para o compreender.

Soltou um suspiro e endireitou as costas, semi-arrastando a espada atrás de si, até à sombra de uma das árvores. Tinha os braços pesados, doridos do treino intensivo que decretara para si própria. Quedou-se ao lado da bainha, permitindo que a espada lhe seguisse o exemplo, junto às pernas. Encostou-se para trás, cerrando os olhos. Bendito descanso.

Os pássaros cantarolavam como em todos os restantes dias. Que diriam as suas músicas? Dirigir-lhe-iam alguma mensagem? E porque não se podia juntar à sua alegre inconsciência? Porque razão as lembranças e os pensamentos a espicaçavam constantemente? Por quê aquela raiva que lhe apertava e estrangulava o coração?

Levou as mãos à cabeça e enterrou os dedos pelos cabelos adentro, rudemente, levando alguns fios castanhos a arrancarem-se pela raiz. Por algum motivo sentia que tudo aquilo estava errado, totalmente errado. Uma lágrima de desespero deixou-se verter, enquanto as mãos continuavam a puxar os cabelos, como se a culpa de tudo fosse irrevogavelmente deles. Com pouca ou nenhuma consideração pelo couro-cabeludo, arrancou mais uns quantos fios, deixando que os punhos caíssem sobre a relva.

A dor foi suave, mas um arrepio frio correu-lhe o corpo quando, em vez de assentar na relva, o seu punho direito acertou na lâmina de aço, infligindo-lhe um corte não tão superficial assim, donde o sangue começou a escorrer sem autorização.

‒ Raios… ‒ praguejou, mordendo o lábio inferior, enquanto levantava o antebraço por reflexo. Agora pelo menos já tinha uma razão por que chorar.

Fitou o sangue que escorria pela mão abaixo, espesso e quente, causando-lhe leves cócegas. Contudo a sua mente estava longe. Vira aquele mesmo pigmento no punhal que Inorian empunhara e que a trespassara rápida e mortalmente. Cerrou o punho, esquecendo-se momentaneamente da ferida, o que a levou a soltar um gemido agudo, para disfarçar um grito. Precisava de pedir a alguém que lhe tratasse do corte.

Quando Leonardo a viu entrar pelo quarto adentro, lançou-lhe um sorriso que era tudo menos espantado, como se já esperasse que a jovem o fosse visitar para que ele a tratasse. Inclusive, junto da cama encontravam-se vários objectos com essa mesma função: ligaduras, desinfectante e – Liriana engoliu em seco – uma agulha e fio, para dar os pontos que fossem necessários.

‒ Bom dia, Lírio do Campo! – cumprimentou, instantes de segundo antes de escutar a batida à porta, deixando que a mão de Liriana ficasse retida, como que petrificada, a poucos centímetros da madeira. Como pudera adivinhar que era ela? – Podes entrar!

Liriana espreitou para o interior do amplo quarto de tom bege e acolhedor. Parecia que o seu era o único com as pinturas das pequenas flores que cobriam todo o exterior do edifício.

‒ Desculpa aborrecer – pediu com sinceridade. Durante o caminho vira-se obrigada a embrulhar a mão num lenço branco que em pouco tempo se tornara escarlate. – Mas penso que não vá parar de sangrar tão cedo.

‒ Não aborreces minimamente. Eu gosto de ter pacientes vivos de vez em quando – declarou com um sorriso de orelha a orelha. – Os mortos da morgue são muito interessantes, por vezes mais do que as próprias almas que os habitavam, mas eu cá adoro tratar a minha afilhada adoptiva favorita! Por sinal a única, mas isso fica entre nós.

Enquanto falava animadamente, preparava a compressa inundada num desinfectante transparente que a fez torcer o nariz. Aquilo iria com certeza arder.

‒ Parece que já sabias que te vinha pedir ajuda – observou a rapariga, achegando-se mais ao local onde ocorreria a pequena cirurgia, apesar do brilho da agulha não lhe agradar muito.

‒ E sabia – constatou o médico arregaçando as mangas e imaculando as próprias mãos. – Andava à procura do tio-avô da Alexis quando me disseram e voltei para trás de imediato. Verdade seja dita, não conheces mais nenhum médico por estas bandas.

Page 146: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 146 -

‒ Pois, é verdade – murmurou, mais para si do que para Leonardo. – Mas quem te disse que estava ferida? O Landar?

Seria aquela a confirmação de que o seu professor a vigiava de perto sem ela dar conta de nada? ‒ Não, não foi o Landar – negou. O seu tom tornara-se hesitante e a resposta não passou dali, o que

aguçou a curiosidade de Liriana. ‒ Então quem foi? ‒ Hum… ‒ Leonardo estendeu-lhe a mão aberta para que lhe desse a sua, o que se apressou a fazer. – Foi

um espírito – declarou, retirando-lhe o lenço de tecido suave que começava a colar-se à pele à medida que o sangue coagulava.

‒ De quem? – E esta pergunta era ainda mais curiosa. ‒ Bem, da Inorian. Ela afeiçoou-se a ti e gosta de andar por perto. Acho que já te tinha dito uma coisa do

género. – Levantou o olhar do que estava a fazer, no entanto Liriana não o fitava, mas à coberta azul escura da cama. Preferiu continuar o seu trabalho em vez de a chamar a si. Já dissera tudo o que tinha a dizer noutras oportunidades. Mas Liriana não o interiorizava. Agora só tinha que esperar para que ela compreendesse, e tudo levava o seu tempo, por mais longa que a espera fosse.

Desinfectou a ferida sob vários e silenciosos estremecimentos de Liriana. Os lábios rosados apertavam-se um contra o outro, detendo a dor de se manifestar.

‒ Estás muito empenhada em obter o domínio do manejo da espada – observou o necromante para quebrar o silêncio.

“Hum, sim” foi a única resposta que conseguiu arrancar-lhe. ‒ Mas com este golpe terás de parar os treinos por uns dias, para que possa sarar – disse, pegando na

agulha e verificando o fio, examinando o seu comprimento. – Três pontos devem chegar, não te quero dilacerar. Liriana soltou um gemido lamentoso, não pelo número de pontos, mas devido ao facto de não poder

treinar. Era aquele treino que lhe ocupava a mente e a impedia de andar a rastejar pelos cantos da casa, a choramingar sem se conseguir conter. Só faltava cair-lhe o céu em cima da cabeça.

‒ É por pouco tempo – garantiu Leonardo, sentindo a amargura que se adensava em volta da jovem. Pouco tempo… o que seria pouco tempo para ele? Quatro dias? Cinco, seis? Para si era uma eternidade!

Dias sem fim dentro do seu quarto com todas aquelas imagens a alvejá-la repetidamente, vezes e vezes sem conta. Não era justo, não pedira nada daquilo, nem para si nem para ninguém. O que fazia das pessoas tão egoístas, tão maléficas ao ponto de nada mais importar além delas? Não compreendia nada daquele mundo, nem do seu. Como era possível que matassem e deixassem morrer sem remorsos?

Uma dor aguda e pontual chamou-a a si com um pequeno salto. Leonardo tinha enfiado a agulha na sua pele e aquele ressalto só lhe agravara a dor. Tinha que se manter quieta.

‒ Onde está a Alexis? – quis saber, tentando desviar os pensamentos morais e éticos que gostava que dominassem o universo, numa utopia almejada por tantos, mas que tão poucos se esforçavam por concretizar.

‒ Bem, está com o tio-avô. Ia à procura deles antes de saber o que te tinha acontecido. – Juntou ambos os bordos da chaga para que a futura cicatriz se notasse o menos possível.

‒ O tio-avô? – inquiriu espantada. Ouvira-o falar de qualquer coisa do género minutos atrás, mas não lhe dera atenção, mesmo que a frase lhe tivesse soado estranha.

‒ Não te contaram ainda? O Ilnosianar é tio-avô da Alexis, e os senhores de Nelgadir são bisavós da nossa querida amiga.

‒ Não sabia… ‒ A impavidez marcava-se na face morena, erguendo-lhe as sobrancelhas num espanto sincero.

‒ Nunca te perguntaste pelo por quê de lhe chamarem Rithirian Alexandrina? – Pela expressão de Liriana, Leonardo presumiu que a pequena não fazia a mínima ideia do significado da palavra. – Rithirian significa princesa.

‒ Ah… Ah! – A exclamação de espanto foi interrompida por uma de dor. – Isso significa que se os senhores de Nelgadir e o Ilnosianar morressem ela seria a herdeira?

‒ Bem, sim. Na pior das hipóteses seria a Vinyriah mas, se isso acontecesse, ocorreria um suicídio em massa por parte dos Nelgadirs, o que não deixava muito para governar à nossa cara amiga. – Uma nova dor, quando a agulha avançou para o último e derradeiro ponto. – Enfim, a querida Alexis é meia-elfo, fim da história.

Page 147: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 147 -

O necromante enfaixou-lhe a mão cuidadosamente com várias passagens da ligadura, tantas que lhe seria praticamente impossível mexer os dedos.

‒ É para me certificar de que não pegas mesmo na espada – justificou-se, dando um nó final. – Se começares a sentir dores para além do normal, ou febre, vens ter comigo de imediato. Não quero que a Sra. Adriática me arranque o escalpe à machadada.

Liriana riu-se a bom rir. ‒ Ela não faria isso – comentou, observando o trabalho em volta da mão. ‒ Pois não – constatou com um suspiro não muito alegre, conferindo-lhe a impressão de que dissera algo

que não devia. – Pode não parecer, mas é demasiado clemente. Ficaram em silêncio durante segundos pesarosos. Liriana sabia que ele se referia à temível circunstância

de Vinyriah continuar viva e liberta, causando a desgraça. Um bater à porta interrompeu o silêncio, levando ambos a olhar subitamente na sua direcção. ‒ Podes entrar! – autorizou Leonardo, com um sorriso, enquanto via a porta abrir-se sem qualquer

rangido. Alguém espreitou para dentro do quarto. Os orbes azuis profundos saltaram de um para o outro antes de

corresponder ao sorriso. Liriana bem reparara que se detiveram instantes de segundo na sua mão repleta de ligaduras.

‒ Mas o que é que está a acontecer aqui? – inquiriu Alexis, fechando a porta atrás de si, depois de entrar, mirando o necromante com desconfiança. – Andas a fazer experiências na minha afilhada? Olha que ela parece-me tudo menos uma cobaia.

‒ Não, não ando a fazer experiências nenhumas. Estava simplesmente a ensinar-lhe a suturar um golpe, na sua própria mão. Aprende-se muito melhor quando experimentamos nós mesmos a fazê-lo.

‒ Pois – Alexis avançou até aos dois. – Mas não foi ela que coseu, foste tu. ‒ Não fui nada! Eu nem sou médico! – protestou, cruzando os braços sobre o peito e deixando-se cair

sobre a cama. – Eu sou um pobre coitado deitado ao abandono pela tua vil alma… O que vieste aqui fazer, ser das trevas? Dizei, antes que vos exorcize!

Alexis olhou de lado para Liriana, revirando os olhos, antes de dizer fosse o que fosse. ‒ Quantos anos tens, Leonardo? ‒ Um a mais que tu. Agora faz as contas se conseguires – desafiou, em tom amuado. ‒ Já tens idade para te comportar como um homem. Leonardo abriu a boca para responder mas um sorriso algures traquina, algures malicioso, preencheu-lhe a

face de forma pouco conclusiva para Liriana. ‒ Devido à presença de uma menor, preferirei não te responder, minha cara amiga. ‒ Óptimo. Agora Liriana, importas-te de me acompanhar? Gostava de te mostrar uma coisa – anunciou,

pousando-lhe a mão sobre o ombro. Uma coisa? O que poderia ser? ‒ Sirin? – alvitrou Leonardo, apoiando-se nos cotovelos para poder fitar Alexis pensativamente. – Era

isso que andavas a fazer com o Ilnosianar? ‒ Era isso sim, fui certificar-me de que realmente o nosso querido amigo sabia o que queríamos. E

verdade seja dita, ele sabia. A jovem perguntava-se intimamente ao que eles se estariam a referir. O necromante levantou-se de um salto e espreguiçou-se com todo o à vontade, esticando os braços o mais

possível para cima. ‒ Bem, então vamos lá. Não podemos deixar que eles esperem muito por nós… ou alguém ainda diz que a

culpa foi minha. – Olhou acusadora e sombriamente para Alexis que se limitou a encolher os ombros. Desceram as escadas em caracol e saíram da casa, caminhando em direcção aos estábulos que se ligavam

a um picadeiro. Liriana nunca lá fora mas Inorian falara-lhe deles de passagem, antes de Vinyriah a poder possuir e calá-la para sempre.

As árvores escoltavam o trilho de terra batida por onde avançavam, guardiãs simpáticas que lhes davam as boas vindas com o seu leve ramalhar. O rústico casebre a que chamavam cavalariça esperava-os sob as suas sombras. Feito em madeira escura, era um local antigo e pouco frequentado pois naquela terra os cavalos eram seres livres, vivendo em união com a Natureza e não em pequenas casotas claustrofóbicas.

Page 148: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 148 -

Ilnosianar esperava-os à entrada, segurando um cavalo branco e castanho pelas rédeas. Ao vê-los chegar, sorriu-lhes de contentamento e dirigiu-se-lhes, levando o cavalo atrás num trote lento.

Liriana ainda olhou em volta tentando ver mais alguém para além do elfo e do cavalo, mas não encontrou ninguém. Logo o “eles” a quem Leonardo se referia incluía o animal.

‒ Boa tarde – cumprimentou ao alcançá-los, o seu olhar brilhando em direcção à jovem, obviamente satisfeito por ela ter vindo também.

‒ Deixem-me fazer as apresentações – adiantou-se Leonardo, colocando-se ao lado do cavalo, e deixando que a mão deslizasse pela crina suave e de tom castanho claro. – Esta é a Sirin Amenofan. Pensámos que fosses gostar.

Liriana deixou que os seus olhos se abrissem ainda mais, de espanto. Uma égua, para si? Era certamente um animal lindíssimo e, para além disso, forte e imponente. Porém como poderia aceitá-lo? Quando voltasse ao seu mundo não teria onde o pôr, não era um animal doméstico normal, era… um cavalo! E, mais agravante ainda, era um cavalo de Nelgadir, um ser acostumado à liberdade. No seu mundo não poderia simplesmente deixá-lo andar por onde bem lhe aprouvesse.

‒ Oh… eu não posso… ‒ começou, com as palavras meio a tremer por ter de recusar uma oferta, mas Alexis interrompeu-a, sem lhe permitir tempo para explicações.

‒ Não te preocupes com o facto de ela não poder regressar contigo. Pode-se ter um amigo noutro mundo, ou não se pode? – quis saber, empurrando-a com cuidado até à égua que pareceu observá-la com curiosidade. Aproximou o focinho da face de Liriana e cheirou-lhe os cabelos. A rapariga encolheu-se com receio de ser mordida, mas depois de alguns segundos, o animal tocou-lhe no rosto com o que lhe pareceu ser afecto. – Bem, parece que a Sirin gostou de ti.

‒ Ah… Olá – cumprimentou com alguma hesitação. Deu-lhe uma leve pancadinha carinhosa entre as orelhas. Depois voltou-se para trás e fitou cada um, emoldurando um sorriso no rosto ainda um pouco acriançado. – Obrigada, aos três.

De forma lenta, Liriana passou a folha amarelada e espessa, enquanto os olhos se prendiam ainda na

imagem anterior, de relevos primorosos sensíveis aos dedos e que quase a transmutavam em realidade. Os cabelos da figura descaiam revoltos, como que sacudidos pela brisa do vento, e entre o seu dourado luminoso perdiam-se folhas e flores singelas que nunca murchavam. Possuía um olhar de safira pintalgado a ouro, tal como Zaneryah, mas ao contrário desta, o seu corpo era esguio e elegante, moldado em beleza e esplendor, coberto aqui e acolá por trepadeiras floridas, uma veste primaveril de encanto idílico. O único pormenor peculiar restringia-se aos dois chifres aveludados de veado que se erguiam de entre o cabelo até uma altura de dois palmos e meio. Era a Deusa dos Bosques, mãe da Senhora das Fadas e guardiã de grande parte da Natureza. A mais amável e prestável deusa, e um retrato de Midarvia, a mãe dos Deuses.

Voltou a página por completo e observou a nova figura que se lhe apresentava de trejeito pesaroso, amargurado e não só. O despeito reflectia-se nos orbes negros como o carvão, ou quiçá o seu próprio coração. Causava-lhe calafrios fixar aquela face tão atentamente. Era Scanethum, o Senhor dos Mortos e o Deus Traidor. Trajava um escuro manto comprido sobre uma túnica justa, tão cinzenta quanto o céu num dia de tempestade. Numa das mãos, erguida à altura do peito, empunhava um globo vermelho sangue – a essência desnaturada da vida, com a qual criara os Zunaris, segundo o livro. E verdade fosse dita, aquela cor fazia realmente lembrar um olho gigante roubado àquelas monstruosidades sanguinárias. Por que concretizara ele tal ignóbil acto? Por inveja dos dragões dourados de Thornigan, o Deus dos Deuses? Se assim foi, somente provara que a cobiça sonha alto, mas a queda é grande, e do sonho resultara apenas um ténue espectro amaldiçoado que envergonhava vivos e mortos. Scanethum perdera tudo o que existia de valioso: perdera a amizade e o amor dos outros. Caíra nos rios vastos da escuridão. Era um deus, mas não era perfeito.

Liriana apoiou a cabeça na palma da mão esquerda, a que não se encontrava magoada. Estava deitada de barriga para baixo, sobre uma colcha cor-de-vinho. As pernas abanavam-se, cruzadas junto aos pés, seguindo o ritmo dos seus pensamentos. Aquele Scanethum lembrava-lhe alguém, nem que fosse pela postura séria e altiva, ou pelo olhar negro como breu amargo. Ou ambas as coisas.

Fechou o livro e virou-se sobre a cama, mirando o tecto florido a azul, enquanto segurava o livro de encontro ao ventre. Fora requisitá-lo, ou talvez fosse melhor dizer “buscá-lo” à biblioteca real, tendo em conta que não necessitara de assinar qualquer certificado em conforme o levara consigo. Nas suas páginas descrevia a

Page 149: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 149 -

história dos muitos deuses de Imtharien, escrita em língua corrente, o dialecto que, estranhamente, maior parte dos povos sabiam falar, ler e escrever. No seu caso não podia fazer muito mais do que ler, devido ao corte na mão, caso contrário Leonardo matá-la-ia. Há quatro dias que decorrera o seu pequeno acidente. Ao segundo dia ainda tentara manejar a espada com a mão esquerda, mas simplesmente não se ajeitava. Resumia-se agora ao arco, durante a tarde e às escondidas como uma criança traquina. Contudo, no presente dia não o poderia fazer, era o festejo do Sétimo Dia, como lhe chamavam em Nelgadir, uma alegre festa com música e entretenimento para celebrar a chegada de Inorian aos braços da Deusa. Leonardo referira que Alexandrina iria fazer qualquer coisa relacionada com espadas, mas não chegara a perceber o que seria.

Numa volta rápida, rebolou para fora da cama e aterrou com os dois pés, endireitando-se e empurrando cabelo para trás das orelhas. O olhar recaiu sobre um vestido dobrado pelo meio, em cima das costas da cadeira que estava à secretária. Trouxera-o Eldaniel, a outra elfo que conhecera na companhia de Inorian, no dia em que chegara a Nelgadir. Raramente a vira antes do falecer da elfo, mas depois disso passara a frequentar assiduamente a Clareira Verde, como sua substituta. Por vezes Liriana perguntava-se se ela não teria medo de que lhe acontecesse o mesmo.

Eldaniel era tão bonita ou mais que Inorian. Um pouco mais baixa, de olhos e cabelos castanhos. Igualmente generosa e amável, todavia mais calada, apesar de sempre ter um sorriso presente no rosto moreno.

E, nessa mesma manhã, Eldaniel deixara-lhe aquele vestido, segundo as suas palavras, um presente dos senhores de Nelgadir. Sem dúvida alguma que era um vestido lindíssimo. Tinha a certeza de que ficaria muito melhor em Alexandrina. Possuía duas cores, unicamente – o azul-escuro e o prateado – e era constituído por duas peças, uma espécie de saiote que lhe chegava aos pés, num tecido leve e prateado, e o vestido em si, azul-escuro, bordado com linhas singelas de prata, de decote arredondado que formava um bico no centro. Não tinha mangas. Contudo o pormenor mais relevante era a Lua em quarto crescente sobre o ventre, em honra de Midarvia. Perguntava-se se mais alguém o trajara desde que fora costurado.

Vestiu-o, com algumas acrobacias para o tentar apertar atrás das costas, e observou o efeito no espelho alto que se encontrava preso ao roupeiro. Não lhe caía mal de todo, verdade fosse dita. Talvez até arriscasse dizer que ficava bonita com ele. Colocou o pendente que se encontrava sobre a cómoda e que também lhe fora deixado por Eldaniel, aquando a sua vinda para entregar o vestido. Tinha o mesmo formato da Lua que se encontrava bordada a prateado no vestido. Contudo, não se podia separar do pequeno cristal de As-Holan. Enrolou-o em volta do pulso, certificando-se de que não escorregava. Ficaria sempre junto a si, acontecesse o que acontecesse.

Para calçar, a elfo trouxera-lhe uns sapatos azuis-escuros de saltos ínfimos e que em nada lhe atrapalhavam o caminhar, para seu grande alívio. Sempre detestara saltos altos.

Um súbito bater à porta interrompeu a auto-apreciação. Quem seria? Leonardo para confirmar se se tinha ou não escapulido para treinar?

‒ Entre! A porta abriu-se silenciosamente. ‒ Hummm… ‒ murmurou a pessoa que entrara, avançando com passos lentos até se encontrar lado a lado

com Liriana. – Ficas realmente lindíssima – observou Alexis, sorrindo-lhe através do espelho. ‒ Talvez sim, mas em ti ficaria muito melhor – reclamou a jovem voltando a cabeça para fitar os orbes

azuis da madrinha. Nesse dia o cabelo negro de ébano encontrava-se solto, caindo até à cintura como uma vaga de mar ondulado. Tinha vestido um traje completo, calças, camisa e botas, tudo em preto e dourado. Estranhamente, de cada lado da cintura pendiam dois sabres embainhados e não �iarda.

‒ Talvez sim – imitou-a, encolhendo os ombros. – Ou talvez não. Segundo os preceitos locais não sou digna de utilizá-lo, para além de que me ficava curto.

Os olhos de Liriana abriram-se além do normal, num espanto mais que estupefacto. ‒ Porque não? ‒ Bem, porque não sou um ser completo. ‒ Não és? – O espanto estava a transformar-se sucessivamente em puro choque de incompreensão. ‒ Teoricamente não, e deves ter ideia de que os elfos levam o teórico muito a sério – riu-se, no entanto

Liriana não estava a achar piada nenhuma. – Sabes, esse vestido pertencia à minha mãe, por ser casada com o meu pai, neto dos Senhores de Nelgadir. É tradição que passe de geração em geração, para os filhos mais velhos. Porém, no caso da minha mãe, houve um pequeno problema, deu à luz duas gémeas verdadeiras, dois

Page 150: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 150 -

meios seres. Era suposto sermos um só ser, mas, infelizmente, quiseram os deuses que assim não fosse. Como nenhuma de nós poderia herdar o vestido, os senhores acharam por bem entregar-to.

‒ Mas eu não sou da família – notou, num tom de súplica. ‒ És minha afilhada, logo és da família – contrariou. – E o vestido é perfeito para ti. Já me imaginaste a

esgrimir de vestido? Liriana sorriu. Realmente nunca imaginara tal. Alexandrina lembrava-lhe as amazonas de antigamente.

Assim sendo, nada de vestidos onde tropeçar. As mãos de Alexis deslizaram-lhe pelo cabelo quase liso que lhe chegava até meio das costas. Penteava-

lho com os dedos. Deixou que duas pequenas madeixas caíssem para a frente e prendeu parte do restante cabelo com um gancho prateado que apresentava a forma de uma pequena borboleta de asas abertas.

‒ Era minha, usava-la quando era criança – disse, dando uns retoques finais que não alteraram em nada o que já estava feito. – Talvez uma Lua condissesse melhor com o traje…

‒ Não, a borboleta fica óptima – garantiu Liriana apressadamente, interrompendo o que seria um lamento. Quase que torcera os músculos ópticos para conseguir ter um vislumbre vago do gancho através do espelho. Mas o que vira agradara-lhe.

Minutos depois desceram e dirigiram-se a pé até às margens do lago Midarvia, onde decorrera o funeral, há sete dias atrás. O Sol descia dos céus, tingindo-os num bonito laranja evanescente. Não voltara ali desde a cerimónia fúnebre.

Não foram as primeiras a aparecer. Vários elfos conversavam já em pequenos grupos, segurando copos cristalinos de vinho e doce néctar das flores. Os senhores de Nelgadir não tinham chegado ainda, e Liriana sabia-o pois fora montado um estrado onde repousavam dois cadeirões vazios, ornamentados de flores de imensas cores e fragrantes perfumes que se diluíam pela atmosfera fresca do final de tarde. Iria ser uma noite muito agradável.

Ao vê-las chegar, Ilnosianar aproximou-se com um andar tranquilo e um belo sorriso convidativo. O tio-avô de Alexandrina… Realmente aquela ideia ainda não lhe entrara na cabeça. Era-lhe impossível imaginar aquele rosto sem rugas e aquele cabelo loiro imaculado como pertencendo a um “tio-avô”.

‒ As donzelas estão encantadoras – elogiou, curvando-se perante elas. Trajava um conjunto elegante de calças, túnica e manto comprido, de tecido leve, em branco e azul.

‒ Muito agradecida, amável cavalheiro. Onde se encontra a sua ninfa florida? – inquiriu Alexis, retribuindo a vénia com um sorriso sarcástico.

‒ Realmente não faço a menor ideia de onde raio terás tu tirado essa ideia da ninfa… ‒ Ah! O príncipe de Nelgadir está a praguejar… ‒ murmurou para Liriana, fingindo indignação. – Não

fales com ele, é muito má companhia. Liriana riu-se, como não poderia de deixar de ser. Como lhe agradavam aquelas companhias entusiásticas

e amáveis, sempre com um sorriso nos lábios. Quase que a levavam a esquecer do que acontecera nos dias anteriores. Só aqueles pontos na mão subsistiam como uma marca irrevogável do seu estado de espírito.

‒ Não acredito que o seja. Parece-me muito boa pessoa… ou elfo – corrigiu. ‒ Como é dado a ver, os teus esforços em difamar-me foram vãos. Tenta o Leonardo, talvez o consigas

convencer. Está à beira do lago, a conviver com os espíritos. Eu prefiro ficar na companhia desta delicada donzela, acredito que seja uma óptima presença – declarou, estendendo-lhe o braço.

Liriana sentiu-se corar e hesitou, até que por fim aceitou, com o braço meio a estremecer. Caminhou de forma rígida até junto de um grupo de elfos, enquanto Alexandrina se dirigiu para onde Ilnosianar dissera que Leonardo se encontrava. A jovem ainda olhou para trás duas vezes, mas Alexis afastava-se com passadas firmes pela relva alta, até que uma série de árvores se intrometeu na sua visão.

Após um enorme constrangimento, Liriana pediu as mais sinceras desculpas, voltando a ganhar aquele seu tão característico rubor perante tão amável e compreensível gente, e afastou-se com passos tímidos até uma mesa, num lado afastado, onde se serviu do que parecia ser sumo de laranja. E dessa vez acertara, era mesmo de laranja.

Dirigira-se para aquele recatado lugar de cabeça baixa, evitando fitar quem quer que reparasse na sua passagem. Deveria parecer extremamente indelicada sob todos aqueles olhares.

Levou o copo aos lábios e bebericou um pouco do líquido macio, enquanto lançava um contemplar furtivo aos muitos presentes. Todos pareciam reluzir de alegria. Conversavam animados como se celebrassem um nascimento e não uma morte, como se o mundo fosse um lugar de eterno alento. Gostava de pensar como

Page 151: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 151 -

eles, de expulsar a imagem de Inorian da mente, mas era-lhe impossível. Estava ali presente, dia após dia, no seu espírito.

Voltou a olhar em volta, tentando esquecer Inorian e Vinyriah e, inevitavelmente, os olhos recaíram sobre as duas únicas pessoas que se sentiam tão distanciadas do povo de Nelgadir quanto ela, os dois irmãos que Alexis trouxera consigo, Arden e Cisdahen. Estavam a poucos metros dela, de braço dado e pareciam fazer exactamente a mesma coisa que ela: observar e manter a distância. Ouvira vagamente a história dos dois irmãos, a mãe morrera-lhes há alguns meses, assassinada no próprio lar por zunaris, a mando de Vinyriah. Atrocidade atrás de atrocidade…

Envergonhou-se da sua própria auto-comiseração. Com certeza que eles tinham sofrido e ainda sofriam muito mais do que ela. Assim como Alexis que ficara sem os pais, e Nalir sem a filha. Estaria a ser egoísta? Talvez. Mas de uma coisa tinha certeza: alguém teria de deter aquele rasto sanguinolento que Vinyriah deixava atrás de si e que alimentava os filhos de Scanethum.

Soltou um suspiro e bebeu o resto do sumo, desviando o olhar dos dois. Não queria que dessem por conta do seu dissimulado interesse. De certeza que detestavam a atenção tanto quanto ela.

O crepúsculo deu lugar à noite, iluminada por imensas candeias que pendiam das árvores mais próximas e por algumas fadas que sobrevoavam a festividade. Pareceu-lhe ver um gnomo ou outro a correr de um lado para o outro, apressadamente, mas podia ter sido somente a imaginação a fazer das dela.

Bebeu outro copo de sumo. Por qualquer razão desconhecida, o estômago estava demasiado tenso para receber comida.

‒ Boa-noite – cumprimentou uma voz simpática junto ao seu ouvido, que a fez saltar para o lado e olhar para trás aturdida. – Oh! Peço perdão, não era minha intenção assustá-la.

O rosto de Arden mostrava, realmente, arrependimento. Era um rapaz alto que pouco mais tinha que dezanove anos, não dos mais esbeltos que já conhecera, mas de olhar sincero e justo, senão afável, não obstante da mágoa e tristeza que o preenchia. Na cara subsistiam algumas cicatrizes da lâmina de barbear e o cabelo era curto e meio espetado. Junto à cintura transportava uma espada. Era o único que o fazia, para além de Alexis. Nunca reparara mas, após um olhar atento, Arden lembrava-lhe o rapaz de nome Rafael que conhecera no seu mundo, aquando a chegada à aldeia onde morava a madrinha. Também existiriam pessoas paralelas, tal como acontecia com os mundos? Rir-se-ia da estupidez daquela ideia, não tivesse já sucedido um sem número de acontecimentos estranhos mesmo diante do seu nariz.

‒ Não há problema. Eu é que estava ausente – desculpou-se Liriana com um sorriso modesto. – A pensar um pouco.

‒ E eu interrompi-a… ‒ Não há problema, a sério – repetiu-se, num tom quase implorativo. ‒ Bem, se o diz… ‒ declarou o rapaz, por qualquer razão hesitante. Liriana olhou para cima, esperando

que ele continuasse. – Bem… quer acompanhar-me numa bebida? – Inquiriu, por falta de algo melhor. ‒ Porque não? – Liriana pensou que, se continuasse assim, teria de improvisar uma casa de banho mais

cedo do que previra. Caminharam até junto de uma mesa e serviram-se, ficando a observar os restantes convivas durante

alguns minutos, antes de qualquer um deles se manifestar. ‒ Penso que nunca fomos formalmente apresentados – notou, sem a fitar. E tinha toda a razão. O local e a

situação em que se conheceram não deixara tempo para quaisquer apresentações. Sabia o seu nome e a sua história pelos simples comentários que fora ouvindo. – Chamo-me Arden Sacrir e sou um simples humano deste vasto mundo.

‒ Eu chamo-me Liriana e sou uma simples humana, mas de outro vasto mundo – disse, encolhendo os ombros com um sorriso, como se tal fosse mais do que óbvio.

‒ Simples… não diria isso. Parece-me tudo menos simples e não me refiro ao facto de se encontrar na terra dos elfos, ou de ser afilhada da Alexandrina. – A jovem ficou curiosa. – Tem uma aura forte, não lhe sei explicar – desculpou-se, perante o olhar que lhe fora dirigido. – Mas faz com que as pessoas se sintam bem à sua volta.

‒ Faço? – Ergueu as sobrancelhas, estupefacta. Nunca ninguém lhe dissera tal, porém, foi incapaz de suspeitar de segundas intenções por parte de Arden. Os seus olhos eram realmente sinceros.

O rapaz riu-se perante a expressão de Liriana e não lhe chegou a responder, bebendo o restante líquido do copo de cristal de um único trago. O silêncio instaurou-se novamente entre eles e, de soslaio, Liriana reparou

Page 152: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 152 -

que Arden continuava com um sorriso que lhe erguia os cantos dos lábios. Conhecia pelo menos uma pessoa que discordaria do que ele dissera: Vinyriah. Mas poderiam considerá-la uma “pessoa”? Duvidava muito.

Entretanto, um conjunto de músicos surgira do nada e começara a tocar uma melodia corrida e refrescante. Apesar de muitos pares começarem uma dança alegre, Liriana agradeceu aos deuses por Arden não a ter convidado para fazê-lo também. Viu Ilnosianar a dançar ali perto com uma bonita elfo de cabelo negro. Da sua madrinha não havia qualquer sinal.

Leonardo encontrou-a pouco antes do último espectáculo da noite, em honra de Inorian – a dança das

espadas. Liriana continuara na presença de Arden e depois também na companhia da irmã do rapaz. Todos os presentes se sentaram em volta de um amplo círculo imaginário de relva rala, e esperaram. A

cabeça de Liriana voltava-se de um lado para o outro, de pescoço esticado, tentando ver quem iria executar a dança, apesar de ter já uma leve suspeita. As luzes à volta do grupo tinham-se apagado, resumindo-se apenas ao interior do círculo vazio, o que lhe dificultava o trabalho.

Sob as sombras, viu duas silhuetas aproximarem-se de lados opostos, caminhando de forma decidida e marcial. O trilho que seguiram até ao centro do círculo foi-se-lhes abrindo à medida que passavam, de porte digno e olhar sério, até que ambos estacaram, fitando-se mutuamente. Recuaram um passo calculado, desembainharam, cada um deles, os sabres e esticaram os braços lateralmente, de espadas empunhadas, reluzindo sob as luzes que se tornavam sucessivamente azuladas. Curvaram-se um perante o outro, numa vénia respeitosa.

Landar cortara o cabelo ao nível da cintura e prendera-o com uma fita prateada junto à nuca. Alexis exibia a sua honrada trança, igualmente à altura da cintura. Ambos os adversários se fitavam, não obstante da vénia, medindo-se, perscrutando a alma de cada um. Repentinamente, as espadas vibraram no ar, entrechocando-se e disparando faíscas douradas tão inesperadamente que fizeram Liriana ressaltar-se no lugar. As próprias espadas pareciam ter reluzido.

‒ É o que acontece quando o âmbar da luz e das trevas se tocam, pelo menos quando controlados e em pequena escala – explicou Leonardo num murmúrio, reparando no olhar incrédulo da humana. Encontrava-se sentado ao seu lado, observando os movimentos rápidos que depois se seguiram, acompanhados por mais folclores de faíscas esquivas.

Recuaram, avançaram, correram, saltaram, rodaram sobre si. Dançaram. As lâminas das espadas beijavam-se de forma arriscada, perigosa, efusiva, lasciva mas, ao mesmo tempo, graciosa e elegantemente. Tanto um como o outro manejavam as suas magníficas armas como se fizessem parte deles, como se fossem apenas um único ser. Ambos envolvidos por magia e misticismo.

Alexis avançou com o pé direito e ergueu o braço esquerdo, impedindo que o sabre direito de Landar caísse sobre a sua cabeça. Vendo o seu ataque inutilizado, Landar rodou para trás, tentando atingi-la com o outro sabre, lateralmente, enquanto se baixava ao mesmo tempo. A mulher, percebendo a sua intenção, saltou no preciso momento em que a lâmina se preparava para passar por si, dando uma reviravolta no ar e aterrando de cócoras. A espada ainda erguida do elfo preparou-se para fazer o caminho inverso, dirigindo-se de imediato ao pescoço de Alexis que tão à sua altura estava, obrigando a guerreira a deitar-se na relva, dando, simultaneamente, o balanço necessário para se erguer e contra atacar. Mas o golpe vindo de baixo para cima não apanhara Landar desprevenido, que o bloqueou com ambos os sabres, deixando que as suas lâminas negras entrecruzadas deslizassem até aos copos da espada de Alexis. Com um gesto brusco, fê-la saltar da mão da manejadora, e resvalar para alguns metros de distância. Landar estava em plena vantagem, era mais rápido e agora tinha uma arma a mais. No entanto isso não pareceu incomodar a madrinha de Liriana, que não hesitou. O único sabre que possuía desceu sobre os de Landar, encalhando-se no local menos indicado, um espigão que se vergava sobre o punho. Se Landar mexesse as mãos ou ousasse sequer libertar-se, haveria a séria probabilidade de cortar uns quantos dedos.

Fora um golpe preciso, dando um término ao combate. Apesar de parcialmente desarmada, Alexandrina ganhara.

Aplausos educados de aprovação soaram em seu redor, ao mesmo tempo que Alexis cuidadosamente retirava a espada do local onde estava encalhada. Cada um recuou dois passos e repetiram a vénia inicial. Depois embainharam os sabres e voltaram a aproximar-se. Levantaram os braços e apertaram as mãos no ar, sorrindo um ao outro e marcando o final do combate.

Page 153: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 153 -

Por fim os espectadores levantaram-se, prontos para a última incursão do festejo. Dirigiram-se a passos decididos para as margens do Lago Midarvia, com os Senhores de Nelgadir a liderarem o grupo. Descalçaram-se e, um a um, entraram dentro do enorme, profundo e gélido lago que os esperava ansiosamente.

Liriana engoliu em seco e olhou em redor. Todos à sua volta faziam o mesmo sem qualquer hesitação: descalçavam as botas ou os sapatos e avançavam sem vacilar, sem mesmo estremecer ao contacto com a água.

E se lhe parasse a digestão? E se apanhasse uma pneumonia? Mordeu o lábio inferior, enquanto descalçava as sapatilhas, deixando que os pés descalços sentissem a erva macia afagá-los. Avançou para o lago, erguendo o vestido antes de lhe tocar com a ponta do dedo grande do pé direito. Retirou-o por instinto mal lhe tocara, contudo, voltou a submergi-lo, de sobrancelhas erguidas. A água do lago estava morna, mas como? A última vez que lhe tocara apresentava-se tão álgida quanto a neve.

Imitou os restantes presentes, agora menos reticente, perturbando a água com efémeras ondulações que interceptaram outras, laconicamente. A pouco menos de três metros de distância, Arden e a irmã exibiam o mesmo aspecto espantado que ela.

Permaneceram no interior do lago pouco mais de cinco minutos, mas esses escassos minutos foram preenchidos por um canto em Cleriamn, onde Liriana só conseguiu distinguir o nome de Midarvia.

Ao princípio sentiu-se envergonhada por pensar que era a única que não o entoava, mas depois de um olhar atento, deu-se conta que Leonardo, Arden, a irmã e alguns elfos mais próximos também não o cantavam, e isso sossegou-a.

O vestido pingava-lhe pelas pernas abaixo quando saiu de dentro do lago. Esperar que viesse seco já era desejar demasiado dos poderes da mãe natureza. Espremeu parte das pregas antes de calçar os sapatos azuis e fez o mesmo com o cabelo, pois quando tentara sair acabara por escorregar numa traiçoeira pedra com limos e caíra para trás, mergulhando por completo e engolindo umas boas golfadas de água.

Olhou em volta à procura de Alexis. Queria voltar com ela para casa. O olhar saltou de cabeça em cabeça das que se afastavam agora do lago, mas não a viu. Resolveu então dar uma volta e andar devagar, rodando a cabeça para trás constantemente. Não havia sinal dela.

Enveredou por entre uns arbustos, segurando o vestido para que não ficasse preso nos ramos finos nem nas pequenas folhas. O vento começara a soprar uma brisa ténue que lhe causava arrepios por estar encharcada da cabeça aos pés. Os maxilares queriam começar a bater insistentemente um contra o outro, mas Liriana tentou evitar que isso acontecesse. O “cricri” dos grilos começou a cercá-la e perdeu a bela voz dos elfos. Alguma coisa lhe dizia que aquele não deveria ser o caminho correcto. Ainda assim, continuou em diante. Parecera-lhe ter visto um reflexo por entre as árvores, mais à frente. Talvez fosse o brilho das espadas de Alexis, só três pessoas tinham levado armas para a celebração.

Os fetos lamberam-lhe os joelhos, enquanto os tentava ultrapassar e, assim que começaram a rarear, Liriana presumiu que estivesse a chegar a uma outra pequena clareira, limpa para que quem desejasse se encontrasse a sós com a natureza.

Viu-os mesmo antes de ter tempo de percorrer todo o caminho e se libertar das restantes árvores. Leonardo encostava-se a uma alta faia central que, durante o dia, deveria possuir uma agradável e acolhedora sombra. Com a cabeça deitada sobre o ombro do necromante estava Alexis de olhos fechados. Porém não dormia. Os lábios moviam-se, formando palavras que lhe era impossível ouvir. Leonardo passou-lhe o braço sobre os ombros, fazendo com que a cabeça dela descaísse sobre o seu peito, onde ali ficou, com um pequeno sorriso. Liriana tinha cada vez mais certezas de que não deveria estar ali, no entanto as pernas recusavam-se a mover fosse para onde fosse.

Olhou em volta para descobrir um local por onde pudesse escapulir-se e, quando o fez, quase morreu de susto. Dois orbes amarelos e fendidos fitavam-na, atentos. Landar seguira-a para ali? Miraram-se mutuamente em silêncio. Olhá-lo nos olhos causava-lhe sempre profundos arrepios. Desviou o olhar para Alexis e Leonardo, inconscientes das duas presenças a mais e, de súbito, sentiu-se a corar. Os dois beijavam-se de forma apaixonada, como Liriana nunca teria imaginado que acontecesse. Ou teria? Ambos sempre pareceram conjugar-se muito bem, apesar de nunca ter pensado propriamente no assunto. Agora tinha de, definitivamente, regressar. Espiar dois enamorados não lhe parecia nada bem. Baixou o olhar para o gato preto, mas este, sempre esquivo, tinha já desaparecido.

Demorou quase uma hora a encontrar o trilho certo que a guiaria até à Clareira Verde, meio aos tropeções. Não estava habituada a andar de vestido, muito menos por terrenos inexplorados. Naquela noite merecia um descanso.

Page 154: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 154 -

A própria tarefa de despir o vestido pareceu-lhe estafante e, consequentemente, quando caiu na cama, adormeceu de imediato.

O alvoroço da nova manhã apanhou-a desprevenida. Levantara-se cedo devido a um estranho canto que soava no ar. Era grave, alarmante, o mesmo som que uma ave canora faria aquando o roubo dos seus preciosos ovos. Passava-se alguma coisa.

Liriana praticamente pontapeou os lençóis para sair da cama e saltou para o tapete. Vestiu-se o mais depressa possível, improvisando um rabo-de-cavalo, e desceu até à sala principal, saltando os degraus de dois em dois. Mas encontrou-a vazia. Estranhamente, ninguém tomava o pequeno-almoço àquela hora. Estariam ainda a dormir? Era uma hipótese demasiado remota.

‒ Eldaniel! – chamou, postando-se à entrada da sala e olhando de um lado para o outro do corredor que levava da porta principal às escadas em caracol. – Eldaniel!

Ninguém apareceu. Correu até às cavalariças da casa. Gladhari, o cavalo negro de Alexandrina, desaparecera e só restava

Sirin Amenofan, a sua égua que nunca antes fora montada, pelo menos por si. Estava já selada e preparada para sair, como se se lembrassem de que ela poderia querer ir ter com alguém naquela manhã. Mas quem? Onde poderia ter ido toda a gente, deixando-a sozinha? E a pergunta mais delicada: porque razão toda a gente desaparecera sem avisar?

Colocou o pé no estribo e içou-se, incitando o cavalo a seguir em frente, em direcção ao palácio real. Algo lhe dizia que se se passasse algo de importante, seria aí que os encontraria.

Mal se aproximou das portas do palácio, apercebeu-se de que acertara. Em volta de todo o perímetro do jardim estavam dispostos guardas montados, empunhando alabardas polidas e de pontas com brilho mortal. As suas expressões sérias não deixavam margens para dúvidas. Acontecera algo de muito grave.

Desceu da égua e deu-lhe leves pancadinhas no flanco, enquanto calculava o número de guardas que ladeavam o palácio. Conseguia contar vinte daquele ponto de vista. Deixá-la-iam entrar?

‒ Ficas aqui à minha espera, pode ser? – perguntou a Sirin, deslizando a mão pela bela crina do animal. A égua pareceu anuir com um resfolegar.

Assim, avançou num passo rígido que queria demonstrar segurança, em direcção aos portões abertos. Nenhum dos guardas a impediu de passar, inclusive, os dois que ladeavam a entrada curvaram a cabeça em cumprimento, à sua passagem. Liriana retribuiu, corando suavemente e o seu andar tornou-se apressado para fugir a olhares indiscretos. Foi directamente para a sala do trono, mas deu com ela inesperadamente vazia. Ou talvez não fosse tão inesperado assim. Seria uma idiotice pensar que os Senhores ficariam o dia todo sentados no trono.

Perscrutou em volta, mas nem uma vivalma estava presente. Só existia uma luz que se escoava por uma fresta da porta ligada a uma sala contígua.

Dirigiu-se para ela com pezinhos de lã, não querendo perturbar o silêncio da sala do trono. Quando chegou perto da porta, espreitou para o seu interior. Várias pessoas, entre elas, Alexandrina, encontravam-se reunidas em volta de uma mesa comprida de formato oval. Falavam num tom baixo mas não murmurado, de quem não se queria alterar e perder as estribeiras.

‒ É impossível, senhor. Ninguém conseguiria quebrar os nossos encantamentos, eram impenetráveis. Este tipo de magia não está ao alcance das mãos de qualquer um. Foram conjurados para que a feiticeira não os pudesse penetrar – declarou um elfo de cabelo fulvo que lhe caía liso até à altura dos cotovelos.

‒ Mas foram penetrados, quebrados e inutilizados. E o pior aconteceu. – A mão pálida do Senhor de Nelgadir massajou a testa sem rugas.

O silêncio instaurou-se dando ênfase às suas palavras. Que “pior” seria aquele que tanto os preocupava? ‒ Ninguém em Nelgadir seria capaz de urdir um feitiço que desfizesse os que cobriam a gaiola prateada –

observou um elfo com o cabelo quase branco. A palavra “gaiola” revibrou na mente de Liriana como uma campainha insistente. A gaiola da sala de

armas… Isso queria dizer que… ‒ Mas um facto é certo, o bastão desapareceu – disse a Senhora de Nelgadir, colocando um ponto final

nas conjecturas dos anciões. Havia uma coisa mais importante a resolver. Fosse quem fosse que o roubara, não estaria ali para contar o resto da história, nem como o fizera, nem que feitiço utilizara. Já estaria a quilómetros de distância, a entregar o furto à sua legítima dona.

Page 155: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 155 -

No peito de Liriana o coração pareceu deixar de bater, ao assimilar as consequências de um simples roubo. Vinyriah tinha o bastão, restituíra os seus antigos poderes. Não demoraria muito até que os tentasse destruir a todos.

‒ Ela já o tem – murmurou Leonardo sombriamente, balançando o Ankh dourado pelo fio e confirmando as certezas de todos. Nunca antes o tom do necromante a afligira, até àquele momento, e aquela confidência deixou a atmosfera ainda mais tensa.

‒ Sabendo nós que declarar paz a Vinyriah é puro suicídio, só temos uma coisa a fazer. Preparar o exército. Seremos o seu primeiro ponto de ataque. – A voz de Alexis ecoou no ar, algures contrariada. – Estes dez anos foram apenas um descanso merecido para todos nós.

Ilnosianar levantou-se do lugar antes de tomar a palavra. ‒ A Alexandrina tem razão. Não podemos perder tempo. O melhor será dar o alerta de imediato. Temos

uma inevitável batalha a preparar. ‒ Mas uma coisa é certa. Ninguém de má fé entra e rouba em Nelgadir – frisou o elfo de cabelos ruivos. –

Temos um traidor entre nós. Um traidor que ajudou o monstro que matou a minha filha. Se ele continua entre nós…

‒ Não se deixará apanhar facilmente – finalizou Landar no seu sempre álgido tom. – Procurá-lo seria uma perda de tempo precioso.

‒ Obviamente que sim – concordou Ilnosianar. – Mandarei batedores que nos avisarão da posição da feiticeira e de cada passo dado. Se ela marchar contra nós, estaremos preparados.

Liriana cerrou os punhos, enquanto recuava passo a passo até à entrada da sala do trono, e daí até ao exterior do palácio. Todas aquelas informações torturavam o seu espírito. A assassina tinha os poderes de volta e estava desejosa de matar o povo de Nelgadir e os seus amigos… Não! Não iria permiti-lo! Lutaria contra ela se necessário fosse, aprenderia qualquer género de magia que a pudesse deter. Ela já magoara, ferira e matara demasiada gente. Se os deuses existiam realmente, deveriam estar do lado de Nelgadir e contra Vinyriah.

Montou Sirin e cavalgou de regresso à clareira. Chegada lá, subiu até ao quarto e retirou a espada e o arco de debaixo da cama. Naquele local também estavam escondidos uma armadura e os devidos apetrechos que a complementavam. Cavalo também já tinha. Com alguma sorte conseguiria passar por um vulgar soldado. Agora teria de treinar, para que depois pudesse vingar Inorian.

Page 156: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 156 -

XV

A Espada Quebrada

Passos melífluos são esses teus que danças, Singelos, de espadas cruas e frias.

Essas que não conhecem dono, Essas que deslizam suaves,

Por encantos que conhecias. E sem amor amado,

Fieis ao sangue que se destila, Correram, de lado a lado, o peito

Que no seu seio sustinha Cada pedaço despedaçado,

Dissolvido nas cadentes brisas Do eterno fado que perdias.

“Espadas”

Nesse dia chovia profusamente. O céu entristecido chorava as suas mágoas refrescando a terra que em

muito agradecia e resfriando as personalidades mais fervorosas, acalmando os ânimos. Contudo, a espada de Liriana cortava o ar sem parar, rasgando as gotas de água que disparavam em diversas direcções. A água escorria do cabelo encharcado, do nariz e queixo em pingas constantes, enquanto avançava e recuava a espada em riste. Tinha a certeza de que já lhe apanhara o jeito. Voltou a trespassar uma criatura metade zunari, metade Vinyriah que se esfumou por entre as inúmeras gotas.

Há horas atrás chegara um dos batedores que fora enviado para espiar os movimentos de Vinyriah. Um dos braços do pobre infeliz viera totalmente retalhado e a sangrar copiosamente e na face exibia um corte que lhe deixara o osso do maxilar inferior à mostra. O seu companheiro fora morto e Vinyriah só deixara o batedor ferido regressar para que entregasse uma mensagem a Alexis. Liriana lera-a na íntegra mais do que uma vez. Era sintética e directa. Vinyriah pararia as hostilidades caso ela se entregasse daí a seis dias no planalto de Rnedar Mormar, para onde as suas tropas marchariam. Caso ninguém aparecesse, incendiaria a floresta de Nelgadir com um fogo mágico que não permitiria uma extinção tão cedo quanto almejariam.

Obviamente, todos eles discordaram. Ficara decidido que também eles marchariam. O ponto essencial era matar Vinyriah e aquela poderia ser uma oportunidade única. Partiriam na manhã seguinte, com trezentos quilómetros de galope pela frente.

A espada deteve-se subitamente no ar quando um pensamento lhe ocorreu. O que aconteceria se morresse durante a batalha? Se no fim de Agosto não regressasse para o seu mundo e para os seus pais? E o que aconteceria se Vinyriah ganhasse a batalha? Partiria para a conquista daquele e de outros mundos?

O braço direito pendeu em direcção à erva pisada. A chuva intensificara-se, obrigando-a a curvar a cabeça para não lhe acertar na face. O que seria necessário para que se concretizasse um milagre? Que sacrifícios seriam necessários para que os deuses os escutassem? E que raio de Mãe era aquela que não auxiliava os seus queridos Filhos?

Deixou cair a espada no local onde estava e afastou-se até à protecção de uma árvore de folhagem espessa e inabalável.

‒ Diz-me o que fazer – murmurou, encostando a cabeça contra o tronco nodoso. Em relação à sua face, a árvore estava morna, como se possuísse sangue nas seivas que a percorriam. – Dá-me um pouco de sabedoria, preciso de ajuda…

Sabia que não passava de estupidez desesperada pedir ajuda àquela árvore que nem com ela falaria. Parecia que tinham decorrido anos desde a fuga do palácio de Ardanir Riargion, desde que uma velha árvore a acolhera dentro de si para a proteger da irmã gémea de Alexis que tentara enganá-la. A árvore dissera-lhe que

Page 157: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 157 -

iria deter a sabedoria, mas a única coisa que possuía era uma incapacidade desolante que lhe prendia as mãos atrás das costas e a amordaçava com palavras vãs.

‒ Por favor… ‒ Duas lágrimas escorreram-lhe dos olhos, por entre a água da chuva que lhe marejava a face, deixando dois trilhos quentes para trás.

‒ Liriana? A jovem desencostou-se da árvore e olhou em volta com os olhos turvos. Limpou-os às mangas

apressadamente e voltou a perscrutar a paisagem. Um vulto aproximava-se por entre a chuva forte, no entanto a água deixava-o baço e desfocado, impedindo-a de descortinar o seu dono. Ficou no mesmo lugar sem mexer sequer um dedo. Viu-o vergar-se pelo caminho e apanhar algo do chão. Pelo menos não tropeçara na espada.

Quando o vulto se aproximou da barreira contra a chuva criada pela árvore, a jovem distinguiu traços no seu rosto e, quando ultrapassou a barreira, reconheceu a pessoa que a procurava. Era Arden.

‒ A Alexandrina anda à sua procura – informou, correndo a indumentária de Liriana com um olhar atento. Os olhos castanhos pareciam avaliar o seu estado de espírito, que ela própria admitia não ser dos melhores. – Está a pensar juntar-se ao exército?

‒ Não! – A resposta soara num tom demasiado alterado, esganiçado, até. O rubor subiu-lhe às bochechas e desviou os olhos quando os de Arden se cruzaram com os seus. Ele sabia que estava a mentir, nunca fora muito boa a encobrir pensamentos.

‒ Um campo de guerra é um local muito perigoso – murmurou, erguendo a espada à altura dos olhos para poder examinar a lâmina. – Nunca estive em nenhuma batalha, mas acredito que está muito além da minha imaginação. Ver amigos morrer ao nosso lado, serem mutilados e estropiados. Horrível… E, quando somos os únicos a sobreviver, perguntamos: porquê nós? Porque morrem os que deveriam viver? Mas ninguém nos dá uma resposta suficientemente credível, e mesmo que o seja, recusamo-la simplesmente. Porém continuamos a lutar de cabeça erguida, apesar das lágrimas que nos enchem os olhos, com a coragem que desfaz o medo. E não o fazemos só por nós, mas pelos outros, pela liberdade que nos querem roubar, pela Vida. E que a memória dos mortos que faleceram às mãos dos indignos, a lutar, seja o nosso incentivo, os sonhos nunca esquecidos.

Baixou a espada e estendeu-lhe o punho, para que a pudesse segurar sem se magoar. Depois de Liriana a empunhar, desembainhou a sua que sempre o acompanhava. A lâmina já tinha visto melhores dias, mas não deixava de ser uma arma mortal.

‒ Desarma-me – ordenou, colocando a espada em riste. Liriana engoliu em seco. Os únicos seres que desarmara, na realidade, tinham sido os fantasmas que o seu

espírito enfrentara. Arden era uma pessoa de carne e osso, tal como Landar o era, e ao elfo ela nunca conseguira derrotar, nem com uma espada de pau. Subitamente a arma tornara-se muito pesada.

‒ Não receies por ti, receia pelos outros – aconselhou, sem baixar a espada. – Estou à espera. Liriana apertou o punho da espada com força e ergueu-a da sua latência, golpeando a de Arden com

alguma brusquidão. ‒ Vamos, persistência! Mais confiança! – exortou, imitando-a e obrigando-a a recuar um passo. À sua

volta a chuva caía indolentemente, escondendo-os dos olhares indiscretos. A árvore protegia-os da água, tornando o terreno mais seguro e menos escorregadio.

Liriana desviou a espada atacante e, com a sua, dardejou em frente, obrigando-o a recuar também. ‒ Melhor! Sê ousada! A espada da rapariga cortou o ar a poucos centímetros do nariz de Arden que se vergou para trás, evitando

o golpe. A arma inimiga avançou para Liriana que se defendeu contorcendo o braço ao mesmo tempo que saltava para trás. Voltou a defender-se quando a espada do rapaz escapou do encontro com a sua e a atacou pelo flanco esquerdo. Segurou a espada com as duas mãos para ganhar força e repeliu o ataque. Parte do cabelo soltara-se do elástico e colava-se-lhe agora incomodamente à cara, mas tentou ignorá-la, os olhos seguindo sempre o trilho da espada de Arden. Ele voltou a atacar, desta vez com um golpe de cima para baixo. Ergueu a sua espada para aparar o golpe e os braços ressentiram-se, dobrando-se consideravelmente e estremecendo. Subitamente a espada do rapaz recuou, ao mesmo tempo que ele se baixava, e Liriana sentiu os pés fugirem do chão sem consentimento. Tentou equilibrar-se com um bracejar incessante mas não havia como se segurar e caiu de costas. De imediato a espada de Arden voou direita ao seu peito, impedindo-a de levantar. Perdera o combate, como já esperara.

‒ Nada mal – observou o rapaz, recolhendo a espada à sua bainha de origem. – Contudo hesitas demais, tens pouca confiança nas tuas capacidades. – Estendeu-lhe a mão para ajudá-la a erguer-se da relva. – E sabes

Page 158: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 158 -

que mais? Numa batalha não podes esperar que os teus inimigos lutem com honra. Principalmente quando os teus inimigos são monstros unicamente interessados em sangue. Eles farão tudo para te derrotar, mesmo cercar-te em número muito superior.

Ele estaria a dizer aquilo com intenção de assustá-la? De impedi-la de partir? Mostrar-lhe que só seria um estorvo num campo de guerra?

‒ Ainda estás decidida a ir? – perguntou. Liriana limitou-se a acenar afirmativamente. – Quero ouvir a tua voz!

‒ Sim, estou decidida a ir! – ergueu a voz até atingir um tom firme e determinado. ‒ Óptimo. Mas a Alexandrina não o vai permitir. – Disso ela tinha todas as certezas. – Por isso… eu vou

infiltrar-te no exército. Sem ajuda não saberias onde te encaixares e serias facilmente descoberta. ‒ Porquê? – quis saber Liriana. Não compreendia por que razão Arden estava a ser tão prestável. ‒ Porquê o quê? ‒ Por que razão me ajudas, sabendo que mais ninguém o faria? Ele sorriu para si, desviando o olhar para a cortina de chuva que se amenizara. ‒ Porque, se fosse eu, também detestaria não poder ir – declarou, pousando a mão sobre o punho da

espada. – Se me impedissem de defender os meus, seria o mesmo que me cortarem os pulsos. Eu compreendo-te, apesar de saber que te estou a expor a um enorme perigo.

Liriana embainhou a espada. A sua expressão determinada colidia com o franzir das sobrancelhas e os lábios premidos um contra o outro. Iria realmente para a guerra, iria ver sangue escorrer pela lâmina da sua espada que se tornaria escarlate como os rios do Inferno. E poderia morrer… Abanou a cabeça para afastar aquela ideia. Afinal de contas, existiam coisas bem piores que a morte. E se Vinyriah ganhasse, com certeza que essas “coisas” iriam suceder-se vezes e vezes sem conta.

‒ É melhor regressar – declarou, ao fim de um silêncio meditativo. – A Alexis pode ficar preocupada e… tenho coisas a preparar.

‒ Vamos montados para chegarmos rapidamente ao planalto de Rnedar Mormar – informou Arden, como quem não queria nada, tomando a iniciativa de caminhar em frente, em direcção à chuva que abrandara um pouco só para recomeçar com maior ferocidade ainda, minutos depois, deixando-os simplesmente alagados. Se a chuva continuasse assim nos dias seguintes, seria uma cavalgada extremamente agradável, pensou Liriana, com ironia.

A madrinha esperava-a no quarto e, quando entrou, olhou-a com alguma repreensão. Liriana foi tomar

primeiro um banho acolhedor, a seu mando. O descanso, por momentos, fê-la esquecer a decisão que tomara. A água aqueceu-lhe os membros gelados, descontraindo-a até que um sorriso de contentamento lhe invadiu o rosto. Não se recordava desde quando não se sentia tão bem. Aquele banho parecia-lhe simplesmente divinal, tão divinal que quase se esqueceu de que tinha alguém à sua espera no quarto e que esse alguém era uma pessoa que aprendera a amar e respeitar em pouco menos de quinze dias. Quinze dias… parecia-lhe uma vida! Isso sim. E muito atribulada.

Depois do banho, vestiu uma roupa de aconchego e voltou para o quarto, onde, para sua surpresa, Alexis mandara servir o almoço para as duas, que ainda fumegava, um almoço que nunca imaginara comer por aqueles lados: tarte de legumes.

A madrinha riu-se ao dar conta do seu semblante espantado, apercebendo-se donde adviria. ‒ Não é necessário ter natas empacotadas para se fazer um almoço deste género – observou, cruzando as

pernas e pousando o braço na mesinha parecida com a que tinha no seu próprio quarto. – E sinceramente, pareces-me esfomeada.

Agora que Alexis referia isso, tanto o esforço dispendido no treino como o perfume que a tarte exalava, abriam-lhe um enorme buraco no fundo do estômago. Parecia que não comia há dias.

A madrinha serviu-a, enquanto Liriana se acomodava num banco de quatro pernas. Esperava-a também um jarro de água cristalina para acompanhar. Isso fazia-a lembrar-se de como nunca bebera água sem ser potável. Aquela viria do lago? Ou do rio que seguia dele? Ou teria sido retirada de um lençol de água a muitos metros de profundidade? Mas a madrinha não lha daria caso pudesse fazer-lhe mal.

Só após finalizarem a deliciosa tarte é que Alexis a fitou de forma mais séria e preocupada. Os dedos ebúrneos entrelaçavam-se sobre a mesa, enquanto organizava as ideias.

Page 159: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 159 -

‒ Liriana, amanhã partirei com o restante exército – começou, com um suspiro profundo que continha um grande cansaço. – De encontro a Vinyriah. Não irá ser uma batalha fácil, não te darei certezas vãs dizendo-te que venceremos, pois nenhum de nós sabe se a guerra durará um dia, uma semana, um mês ou mesmo um ano. Ficarás em Nelgadir até a guerra acabar, independentemente de quem vença. Fora daqui, mesmo no teu mundo, correrias um risco imenso. Pelo contrário, em Nelgadir isso não acontece. As barreiras mágicas impedem que o mal se materialize. Se vencermos, voltarás de imediato ao teu mundo e para os teus pais, como tenho a certeza que tanto desejas. – Liriana já imaginava o que aconteceria se perdessem, e as palavras da madrinha só o confirmaram. – Se Nelgadir falhar, continuarás aqui, livre de perigo.

A jovem mordeu a parte interior das bochechas, baixando o olhar para o prato vazio e lívido de tão branco. Preferia morrer a ficar presa dentro fosse do que fosse, mesmo que essa prisão aparentasse ser um paraíso.

‒ Liriana, olha para mim – pediu, obrigando-a a levantar o olhar contra a vontade. – Se nós perdermos, tu serás a nossa única esperança para a derrotar de uma vez por todas. Dentro de ti repousa uma força que desconheces, a mesma força que acordou o pequeno As-Holan e o levou a ajudar-te. Cultiva-a e não permitas que a Vinyriah a ceife.

Era suposto aqueles argumentos impedirem-na de partir, no entanto Alexandrina acreditava mais naquela força interior do que ela própria e, por essa razão, assim como pela ideia de ficar para sempre enclausurada em Nelgadir, Liriana estava cada vez mais determinada em partir com eles.

A madrinha deve ter julgado que a determinação que vira no seu olhar se devia ao facto de também crer nas suas transcendentes forças adormecidas, pois sorriu, agradecida aos deuses pelo pequeno discurso ter surtido um aparente efeito. Como se enganava! E muito custava a Liriana ter de lhe mentir.

‒ Obrigada pelos conselhos, tê-los-ei em grande estima – garantiu. E iria ter. Só não poderia concretizá-los.

‒ Bem, não posso ficar muito mais tempo contigo, lamentavelmente. O dever chama-me. – Levantou-se e debruçou-se sobre a mesa para lhe depositar um beijo na fronte. – Tentarei voltar o mais depressa possível e enquanto isso, sê tu própria e ouve sempre o teu coração.

Se Alexandrina soubesse o que o coração tinha em mente, não lhe diria para o ouvir, notou, mordendo o lábio inferior.

Após a saída da madrinha, a porta voltou a abrir-se. Olhou para trás, pensando que Alexis se esquecera de lhe oferecer mais algum conselho, no entanto não era ela, mas, para sua surpresa, Arden, quem espreitava para dentro sem entrar.

‒ Vou levar a Sirin para a disfarçar – informou em tom baixo. A sua cabeça desapareceu por momentos, para verificar se o corredor estava vazio. – Ao pôr-do-sol vens ter comigo ao casebre desabitado que fica atrás da casa. Vou-te arranjar um equipamento completo para vestires. Até logo.

E desapareceu sem mais nenhuma palavra. As horas custaram imenso a passar, rastejando minuto a minuto. Liriana tentou desviar a atenção para o livro sobre deuses, mas mesmo aquele material algures esotérico lhe aparentava fastidioso. Correu o quarto de uma ponta à outra e depois a própria casa, chegando mesmo a subir a uma plataforma semi-encoberta pela folhagem densa das árvores, no topo da casa, através de umas escadas em madeira antiga que estalaram, ameaçando partir-se, a cada degrau subido.

A clareira situava-se numa pequena colina, o que proporcionava uma óptima vista sobre a imensidão verde que cobria Nelgadir. Ao longe via-se a grande árvore da vida, Ezlabiel, erguendo-se acima de todas as outras. Era a árvore mais antiga de Imtharien, a mãe de todas as outras que, com sorte, chegariam à sua idade intemporal. Cada árvore que a rodeava era já grandiosa e imensa, impondo-se sobre maior parte dos seres vivos. Os menos sensíveis chamar-lhes-iam “monstruosidade”, mas de monstro nada tinham, muito pelo contrário. Para se ser monstro não era necessário ser-se enorme. Os monstros podiam ser pouco maiores do que ela, ou ínfimos, podiam ser gordos ou magríssimos, de uma beleza divina ou horríveis e com uma verruga no nariz. Contudo, o mais importante era que nenhum monstro se detectava pela aparência exterior, mas pelo que se escondia nos recônditos do seu coração, isso se chegassem a possuir um.

A chuva continuava a cair, mas agora transformara-se apenas num chuvisco e o céu clareava. Ao longe, o Sol tentava romper as nuvens que se acotovelavam umas às outras, dando os braços e tentando impedi-lo. Mas Thornigan era forte e persistente e ganharia a batalha, tal como Nelgadir.

Page 160: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 160 -

Horas depois, quando o Sol, após romper as nuvens, se começava a esconder por de trás das copas altas das árvores, Liriana desceu sorrateiramente até ao casebre que tão más recordações lhe trazia. Fora no dia em que entrara ali pela primeira vez que descobrira de forma fatal que Inorian não era quem parecia ser.

A porta encontrava-se semi-aberta e escancarou-se com um mero empurrão, provocando um chiar prolongado. A luz alaranjada do Sol penetrava pela janela embaciada de sujidade, iluminando os dois ocupantes: Arden, atarefado a encher uma mochila com um cobertor farfalhudo; e um cavalo de tom cinzento-escuro que a fitou com curiosidade. O rapaz lançou um olhar vago quando ela entrara e fechara a porta atrás de si, voltando de imediato à sua tarefa, agora enfiando vários embrulhos na mochila.

A sela e as rédeas do animal repousavam junto a ele, esperando ser colocadas no momento da partida. ‒ É a Sirin? – perguntou, admirando os músculos das suas fortes patas traseiras e o porte elegante de

pescoço erguido. A égua relinchou em resposta, convencendo-a mesmo antes de Arden confirmar. ‒ Mas não lhe toques ainda! – ordenou rapidamente, quando Liriana estava quase a pousar a mão sobre o

focinho do animal. – A tinta ainda não está bem seca. ‒ Oh, desculpa – pediu, recuando a mão e decepcionando a égua que esperava já uma carícia simpática. ‒ A tua armadura está naquele canto – informou, apontando por cima da cabeça para trás do cavalo, sem

retirar a atenção do que fazia. Liriana deu a volta e examinou o montículo de coisas que fora pousado por ali sem cuidado: braçadeiras

em aço, luvas de couro, um elmo, uma espada não muito comprida e uma adaga já devidamente presas a um cinto, um escudo oval adornado a dourado, botas de montar protegidas com aço em vários segmentos, calças e uma camisola em couro castanho para vestir sob a armadura, e a própria armadura, prateada e dourada, com uma Lua e um Sol moldados sobre o peito, ladeando uma enorme árvore: o símbolo de Nelgadir.

Olhou em volta. O casebre era constituído por um único compartimento. Assim sendo, onde se iria vestir? ‒ Importas-te de não te virares enquanto troco de roupa? – inquiriu, num tom de voz hesitante. ‒ Hm? – resmungou, levantando a cabeça para Liriana, pela primeira vez desde que ela entrara. – Claro

que não. Se depois precisares de ajuda com a armadura, avisa. Por precaução, Liriana escondeu-se também atrás do corpo de Sirin, apesar de achar todo o seu cuidado

uma estupidez. Arden não estaria minimamente interessado num corpo magricela de uma miúda de quinze anos. Quando quase acabara de se vestir, o rapaz fora ainda obrigado a auxiliá-la a apertar as fivelas da

armadura e das braçadeiras, de forma a que não lhe caíssem a meio da batalha. Com o avançar da noite, saíram do esconderijo e avançaram até à fronteira da cidade, onde o exército se

reunira e partiria, de madrugada. Eram já muitos os soldados fardados que se encontravam no local, a conversarem uns com os outros, ou num canto remoto a meditarem em algo, talvez na probabilidade de não voltarem vivos. Alguns encontravam-se ainda sentados ou deitados sobre a relva, ao lado dos seus corcéis, a observar as estrelas que também os observavam e às suas esperanças que palpitavam ao compasso do coração.

Arden guiou-a até perto de um outro soldado que se encontrava só, de pernas cruzadas ao lado de um bonito cavalo branco. O soldado não tinha o elmo colocado e, quando levantou a cabeça, ao ouvi-los, Liriana abriu a boca de espanto. Não era um homem, mas sim a irmã de Arden, Cisdahen, que lhes sorriu, ao vê-los aproximarem-se.

‒ Pensei que já não aparecessem – observou. Liriana olhou de lado para Arden. Aquilo queria dizer que Cisdahen também sabia da sua presença!

Quem mais poderia saber? ‒ Eu sei! – afirmou uma vozinha junto à sua anca, que a fez levar a mão ao peito, com o susto, ao mesmo

tempo que baixava o olhar. Zaneryah tinha surgido sabia-se lá de onde, e sorria-lhe angelicamente com os orbes azuis-claros a brilharem. – Eu sei, eu sei, eu sei! – cantarolou, saltitando até ao lado de Cisdahen que a fitava de sobrancelhas franzidas, algo desconfiada. A Senhora das Fadas aparecera do nada, tão silenciosamente quanto as sombras.

‒ O que fazes aqui? Não vens connosco, pois não? – murmurou Liriana, aflita. Estava com medo de que a pseudo-criança chamasse demasiado as atenções. – Nem vieste contar nada à Alexandrina, pois não?

‒ Não, para ambas as perguntas – respondeu, sem deixar de sorrir. – Vim certificar-me de que tinhas o colar de cristal, pode ser necessário.

A mão de Liriana saltou novamente para o peito, mas desta vez não de susto. Trazia-o, obviamente que sim. Nunca mais o abandonaria, fazia parte de si, era seu amigo, apesar de parecer não ter qualquer vida.

Page 161: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 161 -

‒ Sim, está comigo – confirmou, deixando cair a mão e retribuindo-lhe o sorriso. – Obrigada pela preocupação.

‒ De nada. Tinha de ter a certeza de que o levavas contigo. A senhora minha avó parece gostar muito de ti, tal como todos nós – declarou com um risinho curioso. E desatou a saltitar infantilmente pelo meio das árvores até desaparecer na noite, sem que Liriana percebesse muito bem o que queria ela dizer com aquilo.

O exército partiu às cinco da madrugada, antes de o Sol lançar o seu raiar sobre aquela vastidão do

mundo. Ninguém lhe perguntara quem era nem se aproximara dos três para manter uma conversa de mais de cinco minutos. Maior parte das vezes duraram cerca de trinta segundos, para dar orientações sobre o caminho a seguir, trinta segundos esses que faziam o estômago de Liriana encolher-se de nervosismo e o coração bater aceleradamente, com medo de ser descoberta.

No final do primeiro dia, Liriana vira-se obrigada a virar as costas ao trilho que seguiam e acoitar-se ao lado de Sirin de cabeça baixa, pois vira Alexis avançar a pé até eles, com o elmo debaixo do braço a reluzir à luz do pôr-do-sol. Apesar do medo, Liriana adoraria poder falar-lhe, aceitar um consolo ou mesmo um agreste raspanete. Ouviu-a perguntar a Arden se estava tudo bem e pedir-lhe para que durante a batalha não se alterasse em demasia. Deu ainda uma palavra ou outra de consolo a Cisdahen, as palavras que Liriana gostaria de ter para si, e afastou-se, por fim, encaminhando-se para a cabeça do exército. A jovem soltou um suspiro, deixando que a mão escorregasse pela crina do corcel, mecanicamente. Por momentos seria capaz de jurar que os olhos profundos da madrinha se tinham voltado para ela, inquiridoramente. Sentira-os através do elmo que lhe ocultava cabelos e face. O estômago relaxou um pouco. Não faltava muito tempo até que tudo terminasse. Ou pelo menos assim o esperava.

Mesmo que alguns soldados tentassem transparecer alegria e bom humor, era notável a melancolia que pintalgava o ambiente. Quando ao terceiro dia deixaram a floresta para trás, essa alegria desapareceu por completo durante várias horas. Tinham entrado na região de Rnedar Mormar. Alguns quilómetros para Norte erguia-se a cordilheira de Girmoner, que observava a cavalgada sem lhes dar conta dos seus pensares milenares. Dos seus altos conseguir-se-ia vislumbrar a que proximidade estaria o exército de Vinyriah, mas não possuíam tempo para desvios, muito menos para escalar montanhas. Liriana tinha o corpo dorido de andar sempre montada e acreditava que o dorso de Sirin não estaria em muito melhor estado.

Horas depois, o caminho começou a inclinar-se numa subida primeiro amena, mas que, sucessivamente, se foi tornando cada vez mais agreste e a pique. Muitos acabaram por desmontar dos cavalos e continuar a pé, lado a lado com os corcéis, para tornar a subida menos custosa para os últimos. Estavam a avançar inexoravelmente para o grande planalto de Rnedar Mormar que os esperava ao cimo da subida – uma imensa vastidão descampada, coberta com pouca ou nenhuma vegetação, criada pelo deus das profundezas, para travar os seus combates lendários com o raiar do sol, durante os solstícios de Verão.

Com aquela armadura colocada, Liriana sentia-se uma formiga que transportava dez vezes mais o seu peso. O suor colava-se-lhe às costas a cada passo dado e o coração batia descompassadamente. Quando parariam para descansar? Esperava que não fosse só no cimo. E aquelas botas também não ajudavam em nada. Deveria ter trazido ténis, sem qualquer dúvida.

Respirou fundo para ganhar o fôlego e a energia que o ar pudesse transportar. Agora é que me podias dar um pouco do teu poder ilimitado, pensou, levando a mão ao peito, onde, por baixo da armadura e da roupa se escondia o pequeno cristal de Âmbar da Luz. Mas, para ele, parecia estar fora de questão ceder energia para um problema que ela mesma criara: falta de exercício. Era justo. Olhou para Arden ao seu lado. Não denunciava qualquer género de cansaço.

Cessaram a marcha duas horas depois, para seu grande alívio. Deixou-se cair no chão sem cuidado ou aprumo, chocalhando a armadura e levando as mãos ao elmo com intenção de retirá-lo.

‒ Pára! – ordenou uma voz áspera, junto ao seu ouvido, que a fez sobressaltar-se antes de se consciencializar de que não poderia ser nada de mal e que o que estava a fazer seria um erro que a obrigaria a voltar para trás. Baixou os braços laconicamente. Arden tinha mais do que razão e a sua distracção poderia ter-lhe custado muito.

‒ Obrigada – murmurou, arrancando, invés, as luvas de ambas as mãos e flectindo os dedos.

Page 162: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 162 -

Descansaram pouco mais de uma hora e esse tempo pareceu-lhe apenas escassos minutos. Não se livrara do cansaço, muito pelo contrário. Aquele descanso servira apenas para que ele se marcasse mais nos músculos e ossos, após o início da caminhada.

Ao princípio da noite alcançaram finalmente o cimo do planalto. Montaram o acampamento nesse mesmo local e, depois da tenda armada, Liriana não demorou muito tempo até adormecer pesadamente dentro do saco-cama. Um descanso merecido, finalmente.

�*� Parou e olhou em redor. Um imenso terreno amarelado estendia-se à sua volta, cobrindo-a até à altura

da cintura. Uma leve brisa abanava indolentemente todo o campo de cereais, vinda do céu alaranjado, onde várias nuvens nadavam, inclusive uma delas que lhe parecia ter a peculiar forma de uma tartaruga marinha. O som da natureza flauteava em redor: uma abelha passou junto a si a zumbir meio desorientada, circundando-a e afastando-se com destino incerto; uma andorinha no seu fato negro e branco planava sob as nuvens; e um sagaz falcão voava acima delas. O pio profundo da ave de rapina ecoou dentro de si. A atenção da ave estava focada na andorinha.

‒ Hey, cuidado! – gritou, tentando avisar o pássaro mais pequeno, mas este continuava a voar descontraído, dançando alegre nos céus.

Previsivelmente o falcão voltou-se por completo para baixo e partiu num mergulho vertiginoso, direito à andorinha inconsciente do perigo.

‒ �ão!

�*� Sacudiu-se dentro do saco-cama e acordou estremunhada. Os pios do falcão continuavam a soar-lhe aos

ouvidos parecendo quase reais. Ao seu lado, Cisdahen também se ergueu, com o cabelo cor de palha desarrumado dentro da fita que o prendia. Arden já não se encontrava na tenda.

Apressaram-se a vestir e a armar-se. Através da lona conseguiam ouvir um burburinho nervoso pouco típico. Depois de colocar o elmo, Liriana saiu, seguida da rapariga. Arden parecia esperá-las, sentado de pernas cruzadas à entrada da tenda, como um cão de guarda atento. A sua expressão era séria e meditativa, como se acabasse de receber uma informação com que não sabia ainda o que fazer.

‒ Arden, o que se passa? – perguntou a irmã, ajoelhando-se ao lado dele e perscrutando-lhe a face. Apesar de ser quase o mais novo presente no acampamento, já várias rugas lhe marcavam a testa, o canto dos olhos e dos lábios, rugas de preocupação e de cansaço.

Liriana ficou a alguns passos deles, esperando a resposta. ‒ O príncipe anunciou que a feiticeira nos espera a cerca de seis milhas daqui. Partiremos daqui a uma

hora, mas o acampamento ficará montado neste ponto, para onde serão transportados os enfermos – informou, sem erguer o olhar para nenhuma das jovens.

Liriana engoliu em seco. Então faltava uma hora para o início – o início do fim. Mas que fim seria? O pio do falcão voltou a soar por cima de si e nesse instante os três olharam para o alto. Um falcão acinzentado executava sucessivas voltas em torno de todo o acampamento, demarcando o limite de paz que poderiam habitar, apesar de esse ser facilmente violado, caso o inimigo fosse superior às forças de resistência.

Liriana conseguiu cavalgar na linha da frente junto a Arden e Cisdahen, a mesma linha que ocupavam

Leonardo, Alexis, Landar e Ilnosianar, a poucos metros de si. Era óbvio que, para quem quisesse sobreviver, aquele seria o pior lugar para se situar.

Vinyriah esperava-os do outro lado do planalto que dava para uma escarpa íngreme e, em alguns pontos, mesmo abissal, que lhe parecia impossível de escalar sem equipamentos preparados para o próprio exercício. Logo, só poderiam ter chegado ou muito antes deles, ou por artes mágicas, e esta última opção não agradaria muito a ninguém que a enfrentasse.

Page 163: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 163 -

Não eram um nem dois zunaris que a acompanhavam, eram centenas, com olhos cor de sangue preparados para sugar o seu, armados para matar. Amontoavam-se dez metros atrás da feiticeira, quando o exército élfico se aproximou o suficiente para conjecturar distâncias. Ao seu lado, armado com uma espada comprida e de armadura negra, esperava Ardanir Riargion. O elmo repousava-lhe nos braços, o que deixava antever o brilho prateado que o seu olhar emanava, sempre frio e laminar como um punhal. Não se esquecera dele. Ardanir acolhera-a gentilmente no seu palácio para atrair Alexandrina lá e para que, por sua vez, Vinyriah matasse as duas. Alexis chamara-lhe cego, pois todos sabiam que o vampiro o fazia por amor, amor a um monstro que simplesmente se servia dele como mandatário e bode expiatório. Lamentava realmente por aquele pobre ser que caíra em tão malditas garras.

Um sorriso escarninho cresceu nos lábios rubros de Vinyriah, ao vê-los aproximarem-se. As esmeraldas dos seus olhos floresceram maldosamente, correndo a face descoberta da irmã.

O exército élfico parou a trinta metros dela, mantendo uma distância razoável dos zunaris sequiosos do seu sangue.

‒ Bem, bem, bem… Quer-me parecer que trouxeste uma escolta talentosa, querida irmã – observou, a voz ecoando à volta de todos enquanto, lentamente, avançava. – O que mais lamento é, tristemente, estares cercada de traidores. Oh! – exclamou olhando em redor. – Não trouxeste a nossa querida irmã mais nova?

Liriana sentiu o coração saltar-lhe do peito, obrigando-se a olhar de lado para Alexis. Irmã mais nova? A quem se estaria a referir? Não ouvira falar de qualquer irmã mais nova enquanto estivera em Nelgadir. Seria…

‒ Eu quero-a longe de ti – declarou Alexis, friamente, observando cada passo que a feiticeira dava, até que esta parou, a pouco mais de dois metros.

‒ Queres? E desde quando é que tu tens quereres? – inquiriu, abrindo os olhos em falso espanto. – Também não querias que o meu pertence me chegasse às mãos, pois não? E eis que ele aqui está – declarou, passando o bastão para a mão direita. – Porque razão não haveria a minha irmãzinha Liriana de vir para a batalha se era o que ela tanto queria?

A ponta do bastão negro ergueu-se do chão, e foi directamente apontada para o único ser a quem cabia aquela descrição.

O coração de Liriana parou aparentemente de bater e todos os músculos paralisaram, como que petrificados, não sabia se por ter sido descoberta pelo inimigo ou pela informação súbita. Irmãs? Mas que história mais absurda era aquela? Elas não podiam ser irmãs, Alexandrina não tinha idade para ser filha dos seus pais, era simplesmente impossível, não tinha fundamentos! Mesmo que não existisse uma única fotografia sua, junto dos pais até aos quatro anos, mesmo que a sombra a tivesse escolhido por acaso… E porque razão não negava Alexis tudo o que aquela bruxa intriguista estava a dizer? Por quê?!

Os orbes castanho-mel voltaram-se para a madrinha e cruzaram-se com os dela, tão azuis e profundos, que agora demonstravam uma mistura de arrependimento e preocupação, com um pedido de perdão entre essas duas sensações. Desviou o olhar. Era impossível… repetiu para si mesma.

‒ E já que hoje fluo na maré da sinceridade, porque não satisfazer os curiosos? – O sorriso traiçoeiro alargava-se cada vez mais. – Quem vos traiu e porquê? Sabem, o ciúme é uma arma preciosa quando usada de forma certa, e aquele que bate perpetuamente no peito de cada um de vós consegue ser facilmente manipulável com o incentivo correcto.

O olhar de ódio e aversão de todos eles esperavam a resposta que parecia demorar a vir. ‒ Quem seria capaz de quebrar aquele feitiço? Quem teria o poder para congeminar um mais forte que se

lhe opusesse? E eu respondo-vos: ninguém, nem mesmo eu. Contudo, existe algo que consome energia inesgotavelmente e que, quando usado por um coração ferido, poderá ser uma arma muito, muito, muuiiiitoo perigosa. Não é assim, meu caro Landar?

O choque invadiu-os a todos. A verdade pendia corrosiva de cada palavra que a boca da feiticeira expelia. O Âmbar das Trevas… As Bailarinas da Morte…

‒ Landar, é verdade? – O cavalo de Alexis deslocara-se, até esta poder olhar de frente para o elfo. Porém, este não conseguiu enfrentar o olhar da antiga aluna e a quem, presentemente, acabara de atraiçoar. Baixou a cabeça para o solo desgrenhado e ressequido. – Landar, olha para mim!

Ele não o fez, confirmando assim tudo o que Vinyriah dissera. ‒ Perdoa-me – murmurou. Esporeou o cavalo e obrigou-o a dar meia volta, afastando-se por entre os

soldados. Só o olhar de Alexandrina seguiu a sua partida, o choque e a desilusão marcados a fogo no rosto. Liriana juraria ter visto uma lágrima armazenar-se no canto do olho esquerdo.

Page 164: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 164 -

‒ Enfim, pobre Landar… ‒ ironizou Vinyriah com um sorriso de víbora. – Mas o que podemos fazer quando nos infligem um golpe tão profundo no coração? Quando sabemos que quem amamos ama outro? Ai, ai… é sabido que nunca se deveria confiar num elfo da Floresta Dourada. Mas os Nelgadirs confiam em todos os que saibam escrever com uma letra bonita… Que desgosto – suspirou.

Alexis ergueu os olhos ao céu cinzento de agoiro, detendo as lágrimas que queriam escorrer. Depois puxou as rédeas, voltando o cavalo de frente para Vinyriah.

‒ Não passas de uma cabra – rosnou, desembainhando �iarda do seu repouso. A lâmina de aço emitiu um brilho sinistro, acompanhando o tom de voz da ama que demonstrava puro ódio.

‒ Uh! Que palavra tão feia foste desencantar! Não é digna de uma mártir – observou, num tom ofendido. – Assim sendo… ‒ Voltou-lhes as costas e avançou para as suas negras tropas. Durante o processo, ergueu o bastão no ar e baixou-o subitamente, como se executasse uma sentença de morte, a sentença de morte de todo o exército élfico.

Nesse preciso momento, o movimento na massa negra disse-lhe incontestavelmente que a batalha começara, por fim.

Era uma avalanche que avançava na sua direcção sem se deter. Sentiu Sirin recuar sem que ela o autorizasse, até que dois cavalos se intrometeram entre ela e o exército inimigo. Leonardo olhou para si e lançou-lhe um leve sorriso animado, enquanto erguia o Ankh acima da cabeça.

‒ Recua, enquanto nós tratamos das linhas da frente – ordenou. Liriana fitou nervosamente o necromante e os monstros que pareciam avançar sem ninguém os travar.

Então, subitamente, um número razoável deles parou no sítio onde estava, começando a saltar e a arfar aflitivamente, até que caíram no chão com sucessivos espasmos, e por fim, todo o seu movimento cessou. As almas obedeciam à vontade de Leonardo.

Seguiu as indicações dele, desembainhando a espada. Durante o processo, viu a cabeça de um elfo ser cortada rente ao pescoço e rolar pelo chão. Os olhos mórbidos de um cinzento-escuro, ainda abertos, fitaram-na como se lhe passasse a mensagem de que também ela iria acabar assim, caso não fugisse. Desviou o olhar. Não se poderia deixar influenciar tão facilmente. Quando decidira partir com o exército tinha uma vaga ideia do que a esperava, no entanto ver tudo tão perto de si continuava a ser chocante.

Cada monstro negro era razoavelmente vinte centímetros mais alto do que o elfo mais alto, o que facilitava a decapitação quando montados em cavalos. Contudo, decapitar fosse quem fosse não passava pela mente benevolente da jovem humana montada num cavalo pintado de outra cor.

Quando um dos zunaris a fixou como alvo a abater e avançou para si de massa erguida, Liriana obrigou o cavalo a empinar-se para evitar o golpe e foi o próprio corcel que o inutilizou, voltando-se de moto próprio e coiceando para trás, acertando no peito do monstro protegido por uma velha cota de malha e atirando-o dois metros para trás, onde se deixou ficar estendido sem mexer um único dedo.

‒ Obrigada – murmurou Liriana, debruçando-se de forma a que o agradecimento o alcançasse. Depois disso, perdeu a conta a quantos mais coices o equídeo desferiu, lutando por ela com ferocidade,

até ao ponto de chamar a atenção em demasia. Liriana continuava a segurar a espada com firmeza quando uma dúzia daqueles seres obscenos se

aproximou vindo de vários lados. Muitas das armas que seguravam encontravam-se já manchadas de sangue, enquanto a sua continuava imaculada, o aço élfico reluzindo. Estavam a menos de um metro de distância de a atacar, quando uma inesperada corrente de ar passou junto a si, uma corrente súbita e suave, mas mais fria e corpórea. A cabeça do zunari à sua frente caiu por terra seguida do corpo, e o mesmo exemplo seguiu a do companheiro ao lado, sem que Liriana se apercebesse do que acontecia. Quando o último monstro foi morto, Liriana pôde ver o seu salvador, por meros instantes, olhá-la de relance com uns orbes de pura prata, antes de desaparecer novamente no ar. Era Ardanir…

Não teve tempo de pensar na estranha aparição do vampiro para a salvar, pois um outro monstro dirigiu-se para ela de espada erguida. Foi um gesto instintivo. Defendeu-se dele com um movimento que obrigou a espada ensanguentada e retorcida a recuar e, sem pensar duas vezes, enfiou a arma pela garganta do zunari a dentro. Só após tê-lo feito é que se apercebeu, olhando chocada e momentaneamente paralisada para o que acabara de perpetrar. Matara um ser com consciência, que falava e comunicava, tal como ela. A mão estremeceu e esteve prestes a largar a arma, agora de lâmina suja com um sangue tão escarlate quanto o seu, maculada pela morte.

Page 165: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 165 -

Obrigou-se a olhar em redor, tentando ver alguém conhecido. Nada, só vislumbrava uma mancha difusa de combatentes digladiando entre si. Gritos, entrechocares de espadas e, mais baixo, o gemido dos moribundos e os últimos fôlegos dos que morriam, perturbavam o seu sentido auditivo. Então, ouviu um gemido junto a si que a arrepiou por completo e a obrigou a virar a cabeça repentinamente. O ventre de um zunari deslizava pela lâmina prateada da espada de Ardanir.

‒ Tens de ter mais atenção – advertiu, num tom frio. – Não sei o que… ‒ Mata-a! – ordenou uma voz feminina por cima da dele, a pouca distância. Liriana olhou por cima da

cabeça do vampiro, por entre os adversários que não deixaram de combater, e viu-a, fitando-a com os corrosivos olhos esmeraldinos. Avançava para eles com passos amplos, afastando elfos e zunaris com feitiços mortais expelidos tanto do seu bastão, como da mão livre. – Não passas de um incompetente!

Apontou o bastão não a Liriana mas a Ardanir, cujos olhos se escancararam estupefactos, quando o cristal de Âmbar do Crepúsculo soltou faíscas negras, formando uma bola movediça que se ejectou nas suas direcções, qual bala de canhão pirotécnica.

Liriana só se deu conta do que acontecera quando uma espécie de sombra rápida se interpôs entre o vampiro e a maldição de morte lançada contra ele, quando a sombra, que nunca fora uma sombra, ergueu uma espada de pomo lilás, onde o feitiço embateu, soltando faíscas, agora cinzentas. O metal da lâmina estalou e esta partiu-se um palmo abaixo dos copos, atacando o próprio dono. A ponta da espada penetrou na armadura como se fosse papel, perfurando o peito por baixo desta, de lado a lado, mortal e indiscriminadamente. Os braços erguidos deixaram-se pender, enquanto o pedaço superior da arma quebrada resvalava da mão para o solo espezinhado.

Ardanir agarrou o corpo do combatente quando este se inclinou para trás, ameaçando cair. Sem intenção, a boca de Liriana abriu-se horrorizada, transformando um grito, sufocado pelas lágrimas

que agora se soltavam, num gemido tremido. ‒ Alexis… Alexis! – O grito de aflição propagou-se, enquanto Liriana se apressava a desmontar de Sirin e

a ajoelhar-se ao lado da madrinha que possuía os lábios fortemente cerrados, como se tentando conter a dor que lhe trespassava o peito. Ardanir ajoelhara-se de forma a permitir que Alexandrina se sentasse. Tirara-lhe o incómodo elmo para que o pescoço pudesse descair menos contraidamente.

‒ Com que então não és assim tão incompetente! – A voz de Vinyriah fez-se ouvir, mais perto do que desejada. Liriana olhou para trás. A feiticeira estava a poucos palmos de si, observando a irmã que tentava respirar com um enorme esforço. – Quem diria que a minha querida gémea iria interpor-se entre a morte de um traidor? Sempre foste demasiado altruísta, Alexandrina. Agora que te vejo aí caída, quase tenho pena. Quase… ‒ Um sorriso abriu-se-lhe novamente nos lábios, um esgar vitorioso onde bailava a imoralidade e a descrença.

Apesar de estar a esvair-se em sangue, a mão de Alexis rastejava pelo chão, procurando a espada, incessantemente, mas sem a encontrar. As sobrancelhas finas e negras como as penas dos corvos franziram-se, num esforço tremendo para se manter viva.

‒ Não lamento, no entanto não queria que isto acabasse assim – confessou, mirando a irmã que se esvaía em sangue. – Queria que fosses a última a morrer, para poderes presenciar a agonia de todos os teus companheiros e amigos. Mas bem, parece que o destino não o quis. Assim sendo, dar-vos-ei algum tempo para chorarem as vossas perdas. – Deu especial ênfase às duas últimas palavras, lançando um olhar de contentamento à irmã gémea. – Vemo-nos dentro de algumas horas, Liriana. Deixa-a aí, Ardanir – ordenou, voltando-lhes as costas.

O vampiro não se mexeu. ‒ Parece que desta vez fui eu que ganhei, não fui, Vinyriah? Liriana espantou-se ao ver um sorriso sofrido crescer nos lábios de Alexandrina, enquanto esta observava

a irmã a parar repentinamente ante as suas palavras. ‒ Os fracos que fiquem com os fracos. Não me são necessários aliados incompetentes – declarou, sem se

voltar, a voz ganhando um tom ácido. Ergueu o bastão acima da cabeça. O cristal na ponta emitiu um brilho esbranquiçado que varreu todo o

planalto, cegando-os momentaneamente. Quando a luz desapareceu, também todos os zunaris tinham sumido, assim como a sua mestre.

Ao princípio poucos se aperceberam do que se passara, mas quando Liriana implorou por ajuda com um grito, todos os olhares se voltaram naquela direcção.

Page 166: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 166 -

Leonardo foi o primeiro a chegar, deixando-se cair de joelhos, ignorando Ardanir e Liriana, com os olhos a alternarem entre o pedaço de espada quebrado dentro de Alexis e a face que se tornava cada vez mais lívida, mais pálida do que algum morto que Liriana alguma vez tivesse visto.

‒ Alexis… Alexis, amor, olha para mim ‒ pediu, retirando ambas as luvas para poder tocar na face da mulher e apenas sentir o calor que agora se tornava frio. – Por favor, não nos faças isto, não morras…

Um sorriso vago ergueu-se nos lábios da enferma. Os orbes de azul profundo dirigiram-se para o necromante, demoraram-se um pouco nele, até que se desviaram para a afilhada. Os seus lábios, que começavam a arroxear, entreabriram-se, deixando um fio de sangue escorrer pelo canto mais inclinado. Tentava formar palavras tangíveis de serem ditas.

‒ Pe… perdoa-me, por não… te… te ter contado antes – murmurou, num sussurro tão baixo que se viram obrigados a dobrarem-se para escutar. – Não queria que soubesses antes de… ‒ As palavras perderam-se a meio quando uma golfada de sangue lhe subiu pelo esófago e se deixou verter da boca aberta, esborratando a armadura.

As lágrimas continuavam a verter-se dos olhos de Liriana e agora dos de Leonardo também. Um médico sabia que dentro de poucos minutos Alexandrina deixaria de respirar. A hemorragia interna era demasiado extensa, tendo em conta a posição da lâmina. Para além de lhe ter perfurado um dos pulmões, teria ainda rompido alguns dos vasos principais. Ali não tinha como salvá-la, para seu eterno martírio.

‒ Perdoem… as minhas falhas… ‒ gemeu, enquanto os olhos de safira se enchiam de lágrimas. – Perdo… A palavra não se completou. O coração deixara de bombear o sangue e as pálpebras permaneceram semi-

abertas, enquanto as lágrimas escorriam pelos cantos dos olhos. ‒ Alexandrina… ‒ Leonardo abraçou o corpo da amada, mergulhando num choro inconsolável que

destroçava o coração. Liriana olhava para os dois, sem reacção, algures perdida dentro de si. Perdera a irmã que sempre quisera

ter, perdera-a quando a tivera por tão poucos dias. Perdera uma amiga, a melhor que possuíra em toda a sua vida. Perdera-a por causa de um ente indigno que os queria ver a todos mortos… Simplesmente perdera-a…

Ilnosianar tocou no ombro de Leonardo, um toque compreensivo que tentava transmitir coragem. A face disfarçava-se numa máscara que mal conseguia esconder a tristeza. Fora uma grande perda para todos.

Transportaram tanto os corpos dos feridos como daqueles que tinham sucumbido durante a primeira fase da batalha, para o acampamento, com passadas pesadas e lamentosas. Liriana caminhava ao lado de Ilnosianar e atrás de Leonardo, guiando Sirin pelas rédeas, apesar de, por vezes, desorientar-se do seu trilho e estacar subitamente, sendo o cavalo a empurrá-la com o focinho, incentivando-a a continuar em frente, pouco consciente do quê ou quem a rodeava. Se o corpo de Alexis fosse transportado até ao fim do mundo, ela segui-lo-ia.

Na mão esquerda segurava o que restava de �iarda Liduine, uma ponta quebrada, afiada e extremamente perigosa, que rasgaria, sem se conter, a carne, qual uma faca cortaria manteiga no Verão. O resto estava ainda dentro do peito ensanguentado de Alexandrina Adriática. Aquela arma matara a própria dona, a Estrela Poente apagara-se, levando a sua luz consigo para os abismos, levando a manejadora que sempre lutara a seu lado. E isso só diminuía o já pouco apreço que Liriana tinha em relação a qualquer género de arma ou violência. Como gostava de compreender o porquê de Vinyriah e outros como ela espalharem o sofrimento como rebuçados gratuitos! Que prazer era aquele o de ver sangue a brotar de chagas abertas?

Silenciosas como um cemitério deserto, as tendas esperavam-nos, num prenúncio pouco agradável. As densas nuvens impediam-na de ver o sol que deveria ter atingido já o zénite, abafando a atmosfera.

Quando entraram no acampamento, uma figura destacava-se entre as tendas, alta e solitária. Os seus olhos amarelos fendidos acompanhavam a procissão de soldados. Reflectia-se neles o desgosto por si próprio, mas nada poderia descrever aquela expressão quando o corpo de Alexis interceptou o seu raio de visão, pendendo nos braços de Leonardo, com a lâmina quebrada atravessada de um lado ao outro do tórax. Horror, angústia, mais do que qualquer tristeza. Um brilho difuso… lágrimas? Uma delas escapou-se, enquanto os lábios formavam uma palavra muda, o nome de Alexis.

Liriana desviou o olhar do elfo que os traíra a todos. Não que isso lhe importasse. No presente momento, nem se lembrava de quem fora a culpa. A única coisa que lhe ocupava a mente era o corpo de Alexis a cair para trás, nos braços de Ardanir, as suas últimas palavras que pediam perdão. Contudo, nada havia a perdoar. A guerreira sempre fizera tudo pelo bem dos outros e não merecia um fim assim.

Page 167: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 167 -

XVI

A Morte é um Véu Ténue

Olhai! Se não é o céu Que se desvenda nos meandros da terra,

�ascido da morte de que se despoja. Contai o tempo em que renasceu

Pintado em tinta de plebeu E preenchido do sagrado que em si aloja.

Que se ergue de plumas brancas E lembranças trajadas do amargo.

Mas pereceu e renasceu, Que da vida não se apartou o Fado.

E aos altos o céu se ergueu �a luz que um dia foi o passado.

“Céu”

Colocaram Alexis na tenda maior, destinada à reunião dos generais e capitães. Mas, nessa tarde, encontravam-se presentes mais do que simples graduados do exército. Liriana e Leonardo ajoelhavam-se, cada um do seu lado da cabeceira, chorando cada lágrima sofrida que o seu espírito era incapaz de conter.

A guerreira repousava na sua alvura, os olhos cerrados como se dormisse, mais descansada do que alguma vez tivera possibilidade de estar. No entanto, não estava nos planos de ninguém aquela morte. Podiam estar muitas, mas não aquela, não a de Alexandrina.

A defunta exibia o fato de couro negro que vestira sob a armadura. Nele abria-se um rasgão sobre o peito, tão perfeitamente delineado que parecia feito a cinzel e não com uma espada. Mas �iarda era, ou fora, uma arma especial, marejada na magia que o Âmbar do Crepúsculo do seu punho continha. Fora aquele feitiço tão forte assim que conseguira suprimir o poder da antiga espada? Ninguém o sabia. O facto é que jazia agora ao lado da sua dona, quebrada em duas. Ilnosianar referira, num murmúrio, que não seria novamente forjada, não sem a autorização da legítima dona, e essa não poderia dá-la, nunca mais.

Com uma mão a tremer incontrolavelmente, Liriana pegou na de Alexis. Outrora quente e de palma um pouco rosada, estava agora álgida de morte. O quanto desejava poder aquecê-la novamente, senti-la pulsar de vida dentro da sua! Porque não ressuscitava? Porque raio Leonardo não poderia invocar o seu espírito e ordenar-lhe para que voltasse ao corpo que não passava agora de um invólucro vazio? E porque fazia aquelas perguntas a si própria quando sabia a resposta? Conhecia Alexandrina há tempo suficiente para adivinhá-la. Para a madrinha, o lugar dos mortos não era no mundo dos vivos. Se morrera, fora porque os deuses assim o desejaram.

Levou a mão da morta aos lábios, depositando-lhe um beijo, sem sentir qualquer repugnância e só afecto. Que deuses injustos eram aqueles? Também pensavam que Alexandrina era meio-ser? Ela não era meio-ser nenhum! Detinha toda a essência que poderia vir a constituir um e talvez muitos mais seres. Ao contrário de Vinyriah que nem meio ser chegava a ser.

A entrada da tenda abriu-se com brusquidão. Liriana levantou o olhar, cruzando-o inevitavelmente com o de quem entrara. Tinha mudado desde momentos atrás. Agora era resoluto. O amarelo dos seus orbes escondia uma qualquer decisão tomada. O que quereria Landar dali?

Com passadas decididas e altivas, avançou para dentro da tenda, parando ao lado de Ilnosianar. Não trazia qualquer armadura vestida, assim como não a tinha quando se encontrara no campo de batalha, apercebia-se agora. Apesar de parecer inconsciência a muitos, Liriana não duvidava da letalidade contida não só nas suas espadas, mas em todo ele. Era um felino com o dom da caça, com a delicadeza, agilidade e beleza que lhe era devida, pelo menos superficialmente. Sabia o que era o amor, sentira já a dor e reconhecia os erros que cometia.

Page 168: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 168 -

Apesar de alguns serem impossíveis de corrigir, pensou Liriana, tristemente, voltando a atenção para a face serena de Alexis.

‒ Liriana, poderei ficar a sós com o corpo da Alexandrina? – inquiriu Landar, a sua voz elevando-se acima do silêncio, sem fraquejar.

A rapariga levantou repentinamente a cabeça para o elfo, fitando-o, estupefacta. Porque haveria de pedir-lhe autorização para tal, se era considerada por todos quase como uma criança?

‒ És tu quem decide se poderei ou não ficar, pois és o membro de família mais próximo da falecida – afirmou, não tirando os olhos de cima dela, pressionando uma resposta.

Liriana olhou para os restantes, esperando ver a solução vir direita a si de braços abertos. Contudo isso não aconteceu. O rosto de Ilnosianar era pura e simplesmente indecifrável, enquanto o de Leonardo parecia pensativo e expectante, como se também ele esperasse ansiosamente pela sua resposta.

O que poderia fazer? Tinha a completa certeza de que na mente de ambos planava a mesma ideia, de que parte da culpa por Alexandrina estar morta adviera de Landar. Se a batalha não eclodisse, ainda estariam todos juntos em Nelgadir. Mas não estariam somente a adiar o inevitável? Mais cedo ou mais tarde teria de acontecer. Fora como Alexis dissera, durante a reunião que escutara no palácio real: aqueles dez anos foram apenas um descanso merecido por todos eles.

Antes de poder dar qualquer resposta, um chamamento encheu todo o acampamento. Uma trompa, com o seu tom grave, parecia chamar todos a si.

Ao ouvi-la, Ilnosianar franziu as sobrancelhas, intrigado, olhando em direcção à abertura da tenda. Como se sentisse o olhar do príncipe, esta abriu-se apressadamente e um soldado entrou de rompante, meio afogueado. O cabelo loiro caía-lhe em desalinho e a pele possuía um brilho de estafado suor.

‒ Senhor, a feiticeira acabou de aparecer e marcha nesta direcção com o seu exército – informou, numa rajada que os esbofeteou sem dó.

Ilnosianar praguejou com aversão, enquanto seguia o soldado para fora da tenda sem qualquer hesitação. Ouviram-se gritos ecoar em redor, poucos segundos depois. Gritos que apelavam à rapidez.

Liriana lançou um olhar indeciso a Landar e Leonardo, até que se ergueu. ‒ Também vou – informou, para ninguém em especial, apanhando o elmo caído no chão. – Leonardo? Deixou que a atenção pousasse sobre o médico que continuava ajoelhado, ao lado de Alexis. Os delicados

dedos dele penteavam-lhe uma madeixa de cabelo, quase veneradamente. Por fim, soltou um suspiro, enquanto cerrava os olhos castanhos-escuros. Endireitou-se então, deixando que algo balançasse na mão esquerda. Liriana não chegara a reparar, mas Leonardo não largara o amuleto egípcio desde que entrara.

O que mais custara ao necromante em tudo aquilo não fora a simples morte de quem amava, pois, para ele, a morte era apenas uma passagem transitória para um mundo com que ele conseguia comunicar. Por alguma anómala razão, o espírito de Alexis afastara-se de tal forma do seu corpo que só lhe era possível antever um vulto vago ao largo do horizonte, uma sombra da sua alma. Não conseguia senti-la, parecia que Alexandrina fugira de tudo aquilo, fugira deles, para os locais mais profundos da morte, onde poucos espíritos conseguiam penetrar. Normalmente a vida era demasiado chamativa para que as almas se afastassem muito, permanecendo a vaguear numa corrente interrupta entre aquele e o outro mundo. Continuar ali à espera que ela voltasse não serviria de nada, os seus préstimos eram necessários no campo de batalha.

‒ Vamos – declarou, fitando o rosto inexpressivo da defunta, uma última vez. Depois virou-lhes as costas, saindo sem mais qualquer palavra. Pesava-lhe o espírito como nunca antes.

Liriana ouviu-se a suspirar também. O cansaço devorava-a rapidamente. E pensar que tudo aquilo começara com a possível separação dos seus pais. Um assunto que a perturbara nos primeiros meses do ano parecia-lhe agora insignificante, comparado com guerras, mortes e pura crueldade. Ergueu a cabeça, olhando em frente. Pelo menos agora podia tentar fazer algo para acabar com tudo aquilo.

‒ Cuide da Alexis, mestre – pediu a Landar, recebendo um dos poucos sorrisos amáveis que o elfo raramente oferecia.

‒ Cuidarei – garantiu, enquanto seguia as suas passadas corajosas com o olhar. – E Liriana… ‒ chamou, obrigando-a a olhar para trás, quando afastava a cortina que bloqueava a entrada. – Esperança.

A rapariga agradeceu com um sorriso triste, o melhor que conseguia fazer naquela altura. Saiu da tenda e deixou a cortina cair atrás de si.

Sirin Amenofan esperava-a, impaciente. O alarido do acampamento enervara-a um pouco e, ao ver a sua cavaleira, quase saltou de alegria, aproximando-se de imediato com um trote rápido.

Page 169: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 169 -

‒ Bem, parece que temos de voltar àquele pandemónio – murmurou-lhe Liriana, afagando-a entre os olhos que a fitavam quase pensativamente. – Estás pronta, minha amiga?

Verificou se as fivelas da sela estavam bem presas e montou o animal, voltando-o na direcção da saída do acampamento, para onde todos se dirigiam. Os céus de cinza sobre a sua cabeça expandiam-se até onde a vista alcançava. Não havia qualquer réstia de azul que lhe concedesse alento. Só a estranha palavra que Landar proferira lhe martelava a mente, ou era ela que se martelava a si mesma para não a esquecer? Tentava ter esperança na própria palavra “esperança”.

Olhou para trás, para as tendas que abandonava naquela aridez dos deuses. Que diria Landar a Alexis naquele preciso momento? Pedir-lhe-ia perdão pelos seus erros? Choraria como o vira fazer horas atrás, mas agora abertamente por se encontrar só?

‒ Liriana! – chamou uma voz, acordando-a das meditações que lhe pareciam tão vãs. Arden e Cisdahen aproximavam-se num galope apressado. As suas faces expressavam compreensão. Já

sabiam o que acontecera a Alexandrina, e quem não saberia? Pelo menos continuavam ambos vivos, e isso é que era importante, tentou-se convencer, apesar de considerar a tentativa um pouco falhada. A morte de Inorian e agora a de Alexis esmagavam-lhe a consciência. Sabia que a culpa não era de todo sua, mas era-lhe impossível convencer-se disso. A pouca culpa que possuía espezinhava e destruía-lhe o coração sem qualquer compaixão.

Parou Sirin por educação, para que os dois a alcançassem. Não desejava falar com ninguém, mas também não poderia descarregar a tristeza para cima deles. Não tinham culpa de nada. Se ela tivesse ficado em Nelgadir, nada disso teria acontecido: Ardanir não a ajudaria e assim Alexandrina não teria de salvá-lo do feitiço de Vinyriah. Ainda estaria viva… Mordeu o lábio inferior com força, tentando conter as lágrimas. Parecia que a culpa era, realmente, toda sua.

‒ Lamentamos muito o que aconteceu a Alexandrina – murmurou o rapaz, pousando a manopla sobre o ombro de aço de Liriana com um entrechocar metálico. – Morreu a defender um traidor…

‒ Morreu a defender um guerreiro que me defendia a mim – interrompeu, de forma cortante e agreste. – A sua morte não foi vã.

‒ Nem eu disse isso – declarou Arden, espantado com a reacção da adolescente. ‒ Mas insinuaste. Nunca antes Liriana falara tão friamente com alguém, contudo não permitiria que manchassem a honra da

irmã. Alexandrina nunca na vida salvaria fosse quem fosse que não o merecesse, e Ardanir merecia-o. Mas quão imenso fora o preço de tal salvamento! O vampiro fora recompensado pelo bem que fizera ao salvar-lhe a vida ameaçada por todos aqueles monstros, todavia Alexis não o fora, apesar de tão importante ser a vida que lhe pulsava no peito.

Incitou Sirin a continuar em frente sem mais nada a dizer. Se abrisse a boca, no estado de nervos em que se encontrava, poderia dizer algo de que se fosse arrepender, ofendendo quem não devia.

A marcha em direcção ao inimigo encurtou-se consideravelmente. Este fizera o horrendo favor de se aproximar umas boas quatro milhas sem se deter. O sangue dos feridos chamava os zunaris com um intenso e apetitoso odor que causava arrepios nos cabelos da nuca de Liriana. Mal os viram aproximarem-se, não esperaram por sinal para iniciarem o ataque. Lançaram-se sobre eles como lobos esfaimados, de olhar escarlate, louco e diabólico.

O exército élfico posicionou-se com o que restava da cavalaria na frente e os arqueiros na retaguarda, enquanto os espadachins se espalhavam entre eles, esperando o momento certo para utilizarem as espadas já desembainhadas. Liriana encontrava-se entre eles. Cerrava os maxilares com força enquanto se concentrava no que aí viria.

Os primeiros gritos, relinchos e rosnares, ecoaram vindos da primeira fileira, ao mesmo tempo que uma salva era lançada algures de detrás das suas costas, silvando por cima dos elmos de todos eles. Segundos depois, já a primeira fileira caía por terra, e os Zunaris passavam por cima deles, esmagando os ossos dos ainda vivos, sem qualquer dó e avançando inevitavelmente para os espadachins. Os arqueiros viram-se então obrigados a pousar os arcos e a desembainharem também as suas espadas e adagas. Não se arriscariam a ferir um companheiro de armas. Consideração essa que nenhum zunari possuía. Tanto lhe fazia matar amigo ou inimigo, desde que no fim recebesse o seu quinhão de sangue.

O entrechocar de armas penetrou-lhe nos ouvidos como uma música ritmada e imparável, até a rodear por completo. Esperou que o primeiro adversário fosse de encontro a ela e este não a fez esperar. Ao contrário de

Page 170: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 170 -

muitos outros, este zunari possuía os olhos de um branco leitoso. Era mais esguio e, apesar das orelhas de morcego e do crânio de forma triangular, o rosto não se apresentava tão contorcido em raiva assassina e esfomeada, ao contrário dos seus companheiros. Para muitos, o sorriso malicioso que se espalhava nos lábios negros seria sinal de muito mau augúrio. As mãos sem luvas seguravam, cada uma, duas espadas pequenas, quase semelhantes a estiletes.

‒ O lugar das crianças não é no campo de batalha. Aquelas palavras causaram um choque momentâneo em Liriana, não pelo significado, mas pela voz que

as proferira. Era suave e quase melodiosa, apesar da acidez cáustica que emitia. Se o seu dono não se encontrasse perante si, nunca conseguiria acreditar que fora um zunari a falar. Sempre os imaginara de tom rouco e roufenho, senão gutural. Mas era óbvio que as aparências enganavam, como tão bem sabia.

‒ Temos de remediar isso, não é? – continuou, sem esperar por qualquer reacção da parte da rapariga. O monstro começou a rodear o cavalo, com as espadas em riste erguidas ao nível do peito. Liriana apertou

o punho da espada, seguindo cada passo do inimigo e esperando estar preparada para quando ele atacasse. Mas não estava. O zunari de olhos brancos atacou como uma cascavel, munindo-se de uma rapidez impensável que Liriana fora incapaz de prever. Erro seu. Em vez de atacá-la a si, esfaqueara o corcel numa das patas dianteiras. Sirin curvou-se ante a dor traiçoeira que o espicaçava. Uma risada malévola soou, rasteira, mas acima dos intensos gritos da batalha. Liriana teria que desmontar e enfrentá-lo no solo. Um gigante contra uma anã… Não tinha qualquer hipótese, no entanto não queria que Sirin sofresse por si.

Desceu do equídeo que relinchou em protesto. A égua sabia que não a podia ajudar naquele estado, mas era o seu dever fazê-lo! Tinham-na elegido como o corcel de Liriana e nada encontrara contra a sua cavaleira. Tentou erguer-se mas a perna vacilou. O corte era demasiado fundo e doloroso, não conseguiria sair dali. Era um alvo fácil e um estorvo, mas a adolescente nunca pensaria em tal. Para Liriana, no meio de toda aquela confusão sanguinolenta, o único estorvo era ela própria.

Recuou alguns passos, segurando a espada com ambas as mãos. Estupidamente, esquecera-se do escudo no acampamento. Mesmo mal podendo com o peso do objecto, seria uma defesa muito bem-vinda.

‒ Vá criancinha, mostra-me o que sabes fazer – desafiou, rodando à sua volta como um abutre que mira o melhor lugar para debicar.

Ele investiu contra si com um salto, dando-lhe um ínfimo tempo de reacção, que gastou em recuar instintivamente. A ponta da pequena espada riscara-lhe a armadura sobre o peito. Não conseguira bloquear o golpe e se não fosse o aço resistente, poderia não estar viva. Engoliu em seco. O zunari estava a brincar com ela, qual predador com sua presa.

Preparava-se para atacar novamente quando, sem qualquer explicação, um subtil tremor abalou o solo. O abalo desconcertou-a, obrigando-a a olhar para os pés. E este foi o terceiro e último erro contra aquele inimigo. A pequena distracção possibilitou uma hipótese de ataque, inquestionável por parte do zunari, tendo como alvo o pescoço esguio de Liriana. Quando a rapariga levantou a cabeça, consciente da sua falta, vislumbrou as finas espadas deslizarem na sua direcção, a pouco menos de um metro. Fechou os olhos com força. Sentiria o sangue quente verter-se-lhe do pescoço em poucos instantes.

O solo ressequido voltou a estremecer, desta vez com muito mais intensidade. Um grito estrangulado e gorgolejante repercutiu-se no terreno em redor, obrigando-a a abrir os olhos e ver, horrorizada, uma fina raiz serpenteante que se erguera do solo, e enforcava o monstro que deixara cair as espadas desamparadas, e tentava escapar-se daquele aperto fatal, de olhos esbugalhados. A falta de ar acabou por superar a vida e os braços musculosos penderam moles e inertes. Desinteressada, a raiz largou o corpo e mergulhou na terra, enterrando-se nos confins e deixando atrás de si um buraco e uma Liriana boquiaberta. Quem fizera tal feitiçaria?

Ao tentar reconhecer o feitor, o olhar da jovem caiu em Sirin. A pobre égua não poderia sair dali, mas se continuasse do meio do campo de batalha matá-la-iam sem qualquer hesitação. As armas afiadas e letais dardejavam a cada piscar de olhos e de todos os lados.

Deu um passo em direcção ao animal ferido, contudo, mal assentou o pé no chão, o solo voltou a estremecer, mais violentamente ainda. Liriana obrigou-se a baixar e a apoiar as mãos no chão, evitando desequilibrar-se. Mas desta vez não foram raízes a nascer do solo que se transmutaram diante de si. Uma substância acinzentada e amorfa nascia em volta da Sirin, espiralando-se como uma massa plástica sobre o corpo do animal, prendendo-o no interior. Em poucos segundos, Liriana só distinguia um disforme calhau no local onde antes estivera o corcel.

‒ Sirin… ‒ sussurrou, enquanto deixava a espada cair a seu lado, ao levar as mãos à face aterrorizada.

Page 171: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 171 -

‒ Ele está bem, não te preocupes – declarou uma voz atrás de si, uma voz ameninada de criança que tão bem conhecia. Liriana voltou-se devagar, sem querer acreditar, mas os ouvidos não a enganavam. Sentada de pernas cruzadas na terra suja estava Zaneryah. O cabelo dourado derramava-se pelo chão, e reflectia luzes que naquele árido campo não existiam. O vestido, de imensos tons de azul, espalhava-se à sua volta como um oceano límpido e refrescante, tão apetecível de mergulhar.

A Senhora das Fadas olhou-a por momentos e de seguida voltou a atenção para o que fazia. Com o dedo mindinho esquerdo, desenhava traços sobre a terra clara, para de seguida pousar a mão direita sobre eles e varrê-los de uma só vez. No preciso momento em que o fazia, o planalto era assaltado por um tremor inconstante, e nas vezes seguintes aconteceu o mesmo, mais ou menos intenso.

‒ A estrela do crepúsculo brilhará novamente para acompanhar o luar. – Levantou o olhar por momentos. – Apanha a espada e vai ajudar os teus companheiros.

A ordem soou como uma campainha urgente na sua consciência, fazendo-a agir por instinto. Pegou na espada e passou a correr pelo rochedo que outrora fora Sirin, em direcção ao fulgor do combate. Não se voltou para trás para se certificar de que Zaneryah continuava com os feitiços. Se o fizesse, veria que ela simplesmente desaparecera, e se perguntasse a alguém se a vira, dir-lhe-iam que não. Ninguém vira uma criança sentada a desenhar na terra desidratada. Essa ideia pareceria uma loucura.

Um pouco além do local onde estava a passar, viu um par de zunaris contorcer-se espasmodicamente. Leonardo não deveria encontrar-se muito longe dali a utilizar os poderes necromânticos com os espíritos em redor. Mais perto de si, um soldado elfo morto erguia-se do chão, lavado em sangue, mas como se nada tivesse… Liriana parou abruptamente, voltando a cabeça para o homem que também se observava espantado. Virou-se para outro lado. A dois metros de si, um outro elfo sentava-se, atirando o capacete para longe e apalpando o pescoço com a mais pura incredulidade. Aquilo também seria obra de Leonardo? O mesmo acontecia em todo o campo de batalha, perante o espanto mudo dos colegas e a raiva sangrenta dos zunaris. A primeira fileira, caída há muito, erguia-se apoiando-se nas alabardas, ou apalpava o corpo sem acreditar no que acontecia, ou ainda, olhava em frente, estupefacta e sem reacção. Alguns nem chegavam a examinar-se, empunhando as armas de imediato e atacando os zunaris mais próximos. Parecia mesmo um milagre, reparou, sentindo um pequeno sorriso verdadeiro que não lhe surgia há dias e dias.

‒ Tenho a leve impressão de que, mesmo morta, a Alexandrina me dá grandes dores de cabeça – declarou a voz de Vinyriah junto a si. Liriana rodou sobre si, brandindo a espada para trás, impetuosamente. O entrechocar do metal estremeceu-lhe o braço com violência. Vinyriah sorriu-lhe com ironia, enquanto afastava a espada com um encontrão do bastão negro.

Fitaram-se mutuamente, em silêncio. Aqueles traços tão semelhantes aos de Alexis destroçavam-na, até os gestos das mãos, e mesmo a forma penetrante de observá-la, como se lhe lesse os pensamentos. Eram iguais… pelo menos em algumas particularidades.

Ao vê-las frente a frente, um soldado tentou aproximar-se, correndo em direcção à feiticeira, com intenção de salvar aquela que, para si, não passava de uma criança indefesa. Estava lavado no próprio sangue: era um dos ressuscitados. Ergueu a espada acima do ombro direito, preparando-se para a decapitar. As botas esmagavam o chão pesadamente e a cota de malha ruidosa tilintava, como se fosse o único objecto estrepitoso em todo o planalto. No preciso momento em que o golpe iria ser desferido, Vinyriah voltou-se para trás e, com um gesto do bastão, atirou o homem pelo ar, como se apanhado por uma terrível e inescapável rajada de vento.

Liriana aproveitou aquela vaga distracção para a atacar, no entanto, quando tentou mover os braços para a trespassar, viu-se incapaz de o fazer. Os membros não se mexiam, continuando a segurar a espada, como uma estátua viva. Abriu os olhos em puro horror. Vinyriah enfeitiçara-a sem mesmo dar conta, prendera-a nas suas teias!

A mulher dirigiu-lhe novamente a atenção. Esticou a mão na sua direcção e com um gesto do dedo indicador fez o elmo voar-lhe da cabeça, deixando à vista o cabelo castanho, colado à cabeça pelo suor. O rabo-de-cavalo caí-lhe para trás das costas, enquanto algumas madeixas se deixavam agitar pela vaga brisa que as varria. Vinyriah aproximou-se mais, ao mesmo tempo que retirava as luvas e dava a revelar as mãos enrugadas e envelhecidas de que Liriana tão bem se lembrava. Pousou-lhe um dedo sobre a têmpora esquerda e deslizou-o vagarosamente pelo rosto, até ao queixo, sem tirar o sorriso desprezível e escarninho dos lábios. Depois, o dedo afastou-se, e no seu desmedido ódio por aqueles olhos hipnóticos, Liriana nem deu conta de que a mão de Vinyriah se afastava para ganhar balanço.

Page 172: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 172 -

A bofetada estalou acima do entrechocar de muitas das armas mais próximas, ecoando dentro dos ouvidos de Liriana que sentiu a cabeça voltar-se para a direita com a força da agressão, mesmo com o feitiço que a retinha.

‒ Agora, dá-me esse teu brinquedo perigoso – mandou, passando o bastão para a mão que desferira a estalada e estendendo a outra para a espada que Liriana continuava a segurar nas mãos contra a sua própria vontade. A bochecha ardia-lhe e quase era capaz de jurar que sentia algo a escorrer-lhe por cima da dor.

Com aquela ordem, os braços começaram a mexer-se sem autorização, baixando-se sucessiva e gradualmente. �ão!, pensou, tentando impedi-los com a sua própria força. Não se podia deixar dominar. Os braços tremeram ao contrariar a magia que escorria da ordem. Tinha de acreditar na sua força, acreditar em si…

Respirou fundo, relaxando os braços que continuavam a guiar-se pela ordem da feiticeira. De súbito, puxou-os para trás, sentindo que uma corda invisível se rebentava algures e libertou-se, recuando alguns passos para ganhar equilíbrio.

O sorriso de Vinyriah evaporou-se, sendo substituído por um esgar de raiva. Aquilo não deveria ter acontecido. Fez um gesto com o bastão e Liriana sentiu a espada simplesmente a saltar-lhe da mão. Ainda a tentou agarrar, mas a arma fora atirada para demasiado longe, com demasiada força, uma força que se tornava agora mais perigosa, quando misturada com ódio em ebulição.

‒ És mesmo uma menina muito feia, não és? – perguntou, avançando na sua direcção. Fez um gesto rápido com o bastão e Liriana sentiu os pés a fugirem do solo, desequilibrando-se e caiando de costas, como acontecera durante o treino com Arden. No entanto, este não utilizara nenhum feitiço para a fazer cair, simplesmente passara-lhe uma rasteira. – Devias ter-me obedecido quando tão gentilmente te pedi para me entregares a tua fútil arma. Aí talvez te poupasse a vida. Mas não. Quiseste ser tão petulante quanto a minha irmãzinha, quiseste desafiar-me, desafiar os meus poderes infinitos e indestrutíveis. E agora, vou fazer com que te juntes a ela. Não era isso que desejavas, miúda mal-educada? Irás juntar-te à tua heroína. Garanto-te que te doerá o menos possível. No final de contas, a tua dor não me diverte, mas… eh! – exclamou, vendo-a a tentar levantar-se. – Nem te atrevas, ou aí sim, farei com que te doa muito. Ninguém me consegue escapar, quando quero realmente apanhar essa pessoa. Não será uma fedelha como tu que o conseguirá.

‒ Já o fiz uma vez – declarou, Liriana num arfar, tentando ganhar tempo para pensar em algo. Mas parecia-lhe que o esforço era em vão.

‒ Pois, mas desta vez não há Landar que te salve. Esse está a afogar-se nas mágoas que o consomem. Pobre tolo enamorado – riu-se, maliciosamente.

‒ Obviamente. Mas pelo menos ele tem alguma coisa, ao contrário de ti. – Se tinha que morrer, pelo menos irritá-la-ia até ela ferver. – O Landar tem amigos que o amam do fundo do coração, apesar dos seus erros. Mas tu já nem o Ardanir tens. Abandonou-te. Ninguém te quer, caso não tenhas percebido. Esses monstros que dizes ter ao teu serviço, não te servem, obedecem unicamente ao seu apetite voraz por sangue. Estás sozinha.

‒ O Ardanir era um incompetente. Mas enquanto tiver sangue para lhes dar, eles seguem-me – garantiu, convencida. – Não preciso de sentimentos.

‒ Talvez não. Mas, e quando o sangue que tens para lhes oferecer se acabar? O que irás fazer? Virá-los uns contra os outros? Ou eles verão em ti uma fonte de alimento? Serás capaz de deter um ataque conjunto de todos eles, mesmo sendo a grande e poderosa Vinyriah?

‒ Cala-te fedelha! – gritou, apontando-lhe ao pescoço o bico que o bastão possuía na extremidade inferior. – Realmente a Alexandrina só te soube ensinar a desafiar-me, não foi? Seguiste as pisadas da professora errada, mas o mal está feito. O melhor será juntares-te a ela. Tenham um bom resto de dia.

Liriana fechou os olhos e virou a cara para o lado ao vê-la erguer a ponta do bastão, como a de uma lança que a trespassaria de lado a lado. Susteve a respiração, enquanto esperava que ela viesse, rápida e mortal, sobre o coração. Mas ela não veio.

‒ Há muito tempo, disse que te matava se tocasses na Liriana – rosnou alguém, o que fez a jovem abrir os olhos de súbito. Uma mão tocou-lhe no ombro, mas não lhe ligou de todo. O olhar estava colado à pessoa que segurava o braço de Vinyriah como se utilizasse uma garra de aço. A feiticeira fazia o mesmo. Nos orbes verdes reflectiam-se a impavidez, a surpresa, mas também o pavor do inexplicável.

‒ Como? – inquiriu em voz entrecortada. – Tu estavas…

Page 173: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 173 -

‒ Morta? Foste confirmar, maninha? – quis saber Alexis. A sua pele ganhara o mesmo tom alvo de sempre e perdera o da morte, mas a serenidade que esta última lhe acalentara desaparecera. Os orbes azuis soltavam faíscas e congelavam simultaneamente. – Tocaste na minha irmã.

E aquele simples conjunto de quatro palavras repercutiu-se como uma sentença. Alexandrina largou o braço de Vinyriah para, por sua vez, agarrá-la firmemente pelos cabelos e empurrar-

lhe a cabeça contra o joelho no mesmo instante. Um estalo fez Liriana encolher-se. A feiticeira soltou um grito engasgado, enquanto a cana do nariz se partia e uma veia rebentava, começando a inundar-lhe a armadura de sangue.

‒ Esta foi pela estalada que lhe marcaste na cara, víbora – disse, aproximando-a pelos cabelos, para que ouvisse melhor. – Da mesma forma, faço questão de te deixar a minha recordação.

Com um murro, atirou-a para longe de si, repugnada, não com o sangue que lhe escorria profusamente do nariz partido, mas pela própria pessoa que Vinyriah era. Desembainhou a nova espada que transportava presa à cintura. À medida que ia deixando a bainha para trás, um brilho branco escapava-se dela, como se o luar tivesse encarnado na lâmina, no dia em que fora forjada. Era �iadinar Elmorin, a Deusa Graciosa, a espada em As-Holan destinada a Liriana.

A três metros de distância, Vinyriah dobrava-se sobre si, com o antebraço esquerdo sobre o nariz, tentando estancar o sangue. Olhava Alexandrina, ainda horrorizada, tendo em especial atenção a espada que esta empunhava. Aquela não era �iarda… não… caso desejasse, aquela aparente frágil espada conseguiria ser a arma mais mortal do campo, competindo com as espadas negras do maldito elfo. Olhou de revés para Liriana, ou melhor dizendo, por cima da cabeça dela, fitando algo que lá estava, com um esgar de raiva.

Liriana seguiu-lhe o olhar, virando a cabeça para trás. Era Landar quem lhe pousava a mão sobre o ombro. Lançava um sorriso vitorioso a Vinyriah, e nos seus olhos cintilava um brilho desafiador, quase como se perguntasse: e o que vais fazer agora?

‒ Levanta-te – ordenou a Liriana, mas sem rispidez, puxando-a para cima pelas axilas, sem tirar os olhos da feiticeira. Qualquer gesto dela naquela direcção seria o seu fim, pelo menos durante mais uns bons dez anos. No entanto, não era a ele que lhe competia acabar com Vinyriah. Isso era uma prova que Alexis teria de superar, mais cedo ou mais tarde.

Ao olhar para a frente viu cerca de meia centena de soldados élficos a avançarem numa corrida infatigável até aos seus companheiros de armas que lutavam incansavelmente. Provinham dos mortos e feridos abrigados no acampamento, curados e ressuscitados, em pleno das suas forças. Chegados para devastar todo o repugnante exército de Vinyriah que, aos poucos, se dava conta do que lhe iria acontecer.

‒ Não devias ter voltado dos mortos – sibilou a feiticeira, apontando-lhe o âmbar do crepúsculo incrustado no bastão. – Porque vou enviar-te de volta para lá!

Faíscas cinzentas soltaram-se da jóia, formando um emaranhado explosivo que se impulsionou contra a guerreira. �iadinar Elmorin foi erguida, tal como acontecera com �iarda Liduine, pronta para aparar o feitiço e defender a sua valorosa manejadora.

A fúria de Vinyriah aumentou ao dar conta do falhanço do sortilégio. A espada de cristal cortara o feitiço em dois, obrigando-o a diluir-se no ar como uma poeira efémera.

Num ataque desesperado, Vinyriah avançou de bastão em riste, como uma vara de combate. Alexis desviou-se, quando a feiticeira a tentou atingir com a ponta mortal inferior do bastão e brandiu a espada lateralmente, em direcção a um dos braços da irmã. Mais rápido que uma flecha, o bastão recuou, evitando a investida com um choque faiscante que fez as pálpebras de Liriana abrirem-se desmesuradamente e todos os pêlos se arrepiarem com a energia libertada durante o impacto.

‒ Não podes competir comigo, idiota – rosnou Vinyriah, empurrando a espada para o lado – Nem com essa maldita arma que nem te pertence. Sempre fui melhor que tu, em tudo.

Com estas últimas palavras, voltou a investir, obrigando a irmã gémea a recuar e redobrar os movimentos defensivos. Alexandrina continuava em desvantagem. Apesar de saber um truque ou outro, a feitiçaria não era a sua área. Pelo contrário, Vinyriah não se impedia de atacá-la sucessivamente, não só com o bastão, mas com sortilégios sucessivos dos quais Alexis tinha de se afastar, contorcendo o corpo, ao mesmo tempo que atentava à ponta afiada do bastão que, por sua vontade, já a tinha trespassado de um lado ao outro há alguns minutos atrás.

Liriana observou o combate, ao lado de Landar, sentindo um nervoso não tão miudinho assim, crescer-lhe no peito. Queria ajudá-la, fazer qualquer coisa para impedir que morresse novamente. Isso não o permitiria. Olhou em volta, em busca da espada caída há não muito tempo. Viu-a reluzir a quatro metros de distância, ao

Page 174: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 174 -

lado do corpo de um zunari decapitado pela base do pescoço e sem um braço. Correu até ela, ignorando por completo o companheiro da arma, deitado sem vida, e apanhou-a. O punho escorregou-lhe da mão por instantes, obrigando-a a apertá-lo com mais firmeza.

‒ Onde pensas que vais? – perguntou Landar, agarrando-a pelo braço quando esta passou por ele a correr. ‒ Vou ajudar a Alexis! ‒ Não vais não. Ficas aqui comigo, antes que te mates a ti e à tua madrinha – declarou categoricamente,

mirando-a de soslaio, com as suas pupilas fendidas. – Se te meteres a meio poderás atrapalhá-la. Liriana olhou para as duas que se afastavam por entre a multidão, essa que parava para que pudessem

passar no seu duelo letal, avançando inexoravelmente e sem se deterem. Subitamente, o impensável aconteceu. O calcanhar de Alexis prendeu-se entre duas pedras incómodas localizadas no sítio errado, à hora errada. Desamparada, a guerreira desequilibrou-se, tombando para trás. �iadinar escorregou-lhe da mão, aquando o embate, mas Vinyriah não lhe concedeu qualquer ínfima hipótese de alcançá-la, encostando-lhe a extremidade afiada do bastão ao peito.

‒ Esta cena parece-me familiar… ‒ murmurou, com um sorriso de viés, os olhos verdes estreitando-se vitoriosamente. – Aconteceu-me o mesmo, lembras-te? Há dez longos anos. E tu e o teu necromantezinho aproveitaram-se da minha posição indefesa. Não consideraste aquele gesto vil? Eu considerei… Bastante traiçoeiro, até.

‒ Poupa-me às tuas filosofias egocêntricas – pediu Alexis com frieza. – O único que acreditava nelas já te deixou.

‒ Sempre ofensiva, esta minha irmã – suspirou, com falso desalento. – Pois bem, é melhor acabarmos por aqui. Irás regressar para o sítio de onde nunca deverias ter regressado. E, ao contrário de mim, não terás retorno. Adeus!

Ao vê-las atravessar os combatentes, Liriana libertou-se da mão de Landar com um puxão. Não poderia

permitir que Vinyriah roubasse a vida a Alexis, novamente. Assim, correu atrás delas, saltando por cima dos corpos que se atravessavam no caminho e esquivando-se inconscientemente das armas que a tentavam deter a todo o custo. Escorregou por uma vez, quase se estatelando ao comprido no chão e acabou por deixar a espada pelo caminho, considerando-a um entrave à corrida. Mais tarde arranjaria outra por ali abandonada.

No entanto, estacou repentinamente, ao deparar-se com aquela cena horrífica. A negra arma mágica da feiticeira descia sobre o corpo de Alexis, em direcção ao coração.

‒ NÃO! Ao sentir que não a poderia deter, os olhos encheram-se de lágrimas. Mas não só. Um enorme clarão,

vindo do interior do corpo, encheu-lhe a mente e cegou-a, tão intenso quanto mil sóis conjuntos. O batimento do coração duplicou, aquecendo no fulgor de um sentimento de aflição que transbordava. O calor expandiu-se num fluxo rápido até às extremidades e voltou ao coração, brotando dele com tal força que a rapariga quase se sentiu impelida a recuar, mas não o fez, deixando-se simplesmente cair de joelhos, exausta e sem qualquer compreensão do que acontecera. A cabeça andava-lhe à roda, zonza. No branco surgiam pontos negros que pareciam escorregar sob as pálpebras fechadas. Esfregou-as com força, para que o negro se espalhasse por completo e recuperasse a visão. Abriu os olhos. Por momentos viu tudo claramente, mas instantes depois a visão desfocou-se, como uma máquina de filmar avariada. Esfregou os olhos com mais força ainda, tentando confirmar o que vira vagamente ao primeiro olhar e piscou-os, boquiaberta.

Alexandrina continuava caída, com o bastão de Vinyriah a quinze centímetros do seu peito. No entanto este não avançava nem recuava. Envolvia-o uma cobertura cristalina com a espessura de meio palmo, subindo inexoravelmente pelo bastão acima, apagando o seu cintilar obscuro, envolvendo nela as mãos da própria feiticeira. Continuava pelos braços e, chegando aos ombros, propagava-se sem compaixão, tanto pelo pescoço acima, como pelo peito abaixo. Vinyriah estava total e completamente presa naquele cristal. A maldade que os olhos continham não conseguia atravessar aquela fina mas poderosa película de As-Holan que a cobria. O cristal imobilizara-a e cessara os seus poderes. Tinham ganho a batalha, milagrosamente.

Alexis rastejou, até se sentir a salvo da ponta ainda afiada do bastão e ergueu-se, por fim, observando a estátua cristalina à sua frente, sem demonstrar qualquer sentimento. Depois voltou-se para a afilhada ainda ajoelhada e sorriu, o maior e mais belo sorriso que Liriana alguma vez presenciara e que a fez sorrir também, ao

Page 175: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 175 -

mesmo tempo que as lágrimas se soltavam incontrolavelmente dos olhos, qual nascente que gradualmente passa a ribeiro e de ribeiro a rio.

A adolescente tapou a cara com as mãos, sentando-se entre o sangue e os corpos, principalmente de zunaris, que a rodeavam a toda a volta, no campo de batalha. Finalmente acabara tudo.

Sentiu que dois braços a envolviam ternamente e apoiou a cabeça num ombro metalizado que não sabia a quem pertencia. Se tentasse adivinhar, a primeira hipótese estaria correcta. Porém, naquele momento, o seu raciocínio estava bloqueado por completo. Só desejava chorar, sentir aquele peso a esvair-se do coração. Queria ficar vazia, acolher o Nada em si, aquela paz, negra ou branca, que era o Tudo.

Uma mão pousou-lhe sobre a cabeça, gentilmente, afagando-a como a uma criancinha que teve um enorme pesadelo. Ouvia ainda gritos em redor, enquanto acabavam com o resto dos soldados da feiticeira agora derrotada. Porque não se calavam eles? Não percebiam que ela os tentava esquecer e banir para confins distantes da mente? Então, porque insistiam?

A mão na sua cabeça desceu até à nuca, enquanto a pessoa que a afagava se acocorava ao seu lado. ‒ Dorme, pequeno Lírio – murmurou-lhe ao ouvido uma voz conhecida. O sono invadiu-a de repente,

obrigando-a a esquecer o que devia ser esquecido. Pelo menos durante algum tempo, o tempo que a sua alma merecia.

Page 176: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 176 -

XVII

O Julgamento

O alvo sentimento incorpóreo Que vedes no olhar em ti perdido, Das palavras algures proferidas

Destoa do que escutastes, ao ser dito, �um tom que refuto, sem fé,

Por ser o que não é. Que o teu olhar diz algo mais,

O que o coração não corrompe, O que na mente algures olvidais.

E o que julgo é o teu olhar, Palavra não dita que em ti irrompe Do profundo da alma, desse mar.

“O Que Julgo”

A brancura amena envolvia-a num imenso berço que a embalava. A atmosfera leve facilitava-lhe a respiração que seguia um trote certo e marcado pelos ponteiros da vida. A jovem sentou-se sobre e sob aquela substância alva e indefinida, perscrutando o redor, curiosamente. Teria mergulhado novamente no transe que antecipara a descoberta dos seus poderes? Não lhe parecia. Aquela brancura era diferente, estava para além da pureza, para além do material. Tentou tocar-lhe e prová-la, cheirá-la e ouvi-la. Não conseguia fazê-lo, mas sentia que ela a acariciava, que a beijava ternamente, que inalava o seu perfume de humana, que lhe sussurrava segredos cantados. Olhou para si, deslizando as mãos pelo corpo, certificando-se de que estava inteira. Trajava um vestido comprido e rendilhado que a camuflava naquela imensidão infinita. Era uma camisa de dormir.

Ergueu o olhar, semicerrando os olhos em atenção. Parecia-lhe que a brancura sofrera uma leve modificação, durante a pequena e fugaz desatenção. Um ponto longínquo surgiu no horizonte, como uma falha naquela dimensão inquestionável. No entanto não emitia qualquer hostilidade, ao que lhe parecia.

Liriana estendeu o braço para o “alguém” que se aproximava, desejando que este se achegasse mais e mais, para o poder conhecer. Porém não era um “alguém”, notou, erguendo as sobrancelhas, eram dois “alguéns”! Um vulto mais alto que outro, outro mais esguio e delicado de formas ameninadas. Continuaram a avançar serenamente na sua direcção.

Após percorridos alguns metros, poderiam ser meia dúzia ou uma centena, pois naquela ambiente não conseguia distinguir distâncias, Liriana foi capaz de discernir traços nos dois entes e ter a certeza de que se tratavam de um homem e de uma mulher já em idade adulta. A tez do homem era ebúrnea e os olhos amendoados com o tom do mel que escorre de um pote cheio – olhos iguais aos seus. A mulher era um pouco mais baixa, mas elegante, qual princesa de contos de fadas; o cabelo era castanho claro, e os orbes de cor verde-marinho. Era um pigmento invulgar, pensou para si, nunca conhecera ninguém com aquela cor de olho.

Apesar das diferenças óbvias entre ambos, existia uma particularidade que os unia, a alma. Ambas estavam marejadas de alento e eram puras, mais puras do que toda aquela imensidão que os rodeava e que agora parecia insignificante. Os sorrisos mimosos que lhe ofereciam diziam-no, melhor que tudo.

Inconscientemente, os lábios de Liriana abriram-se e prenunciaram duas palavras. Nos anos seguintes, essas duas palavras e as duas imagens que se aproximavam agora dela, dar-lhe-iam muito em que pensar, pois realmente vira-os e estivera com eles, naquele remoto lugar.

‒ Mãe! Pai! – chamou, de braço ainda estendido. Não tinha dúvidas de que eram eles. Não podiam ser mais ninguém. Ou poderiam? Talvez anjos primordiais que a viessem acolher no seu seio…

Page 177: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 177 -

�ão! Que ideia idiota, tentou convencer-se, abanando a cabeça. Eram, definitivamente, os seus pais biológicos. Aqueles que se viram obrigados a entregá-la a outrem, para que ela não morresse, ainda pequena, às mãos de Vinyriah.

Aproximaram-se cada vez mais, as roupagens ondulando ao sabor do andar, conferindo-lhes uma origem ainda mais etérea. Bem, poderiam ser anjos à mesma, concluiu, sentindo que um sorriso também se lhe abria na face.

A mãe estendeu a mão, quando estava a menos de um metro de si, pegando na sua, e Liriana pôde sentir o calor morno que transmitia, que lhe afagava a pele e a consolava. O pai sentou-se ao seu lado, no imenso berço, e depositou-lhe um demorado beijo na têmpora. Liriana conhecia aquele amor, mas não vindo de desconhecidos que, no final, não eram quaisquer desconhecidos. Eram os seus pais, os que conhecera há muito tempo atrás, mas de quem não guardava qualquer recordação. Fora com aqueles pais que aprendera a dizer a primeira palavra, fora também com eles que dera o primeiro passo de toda a sua vida. Eles pertenciam-lhe. Mas quais eram os nomes deles? Franziu as sobrancelhas, por momentos, mergulhando nos confins mais remotos. Eram tantas as recordações apagadas… mas por quem? Quem e porquê faria acto tão vil? As lembranças eram suas e só suas, ninguém tinha o direito de lhas tirar. Isso era a mais macabra ousadia.

Olhou para a mãe, de pé à sua frente, e para o pai, ao seu lado, que, reparava agora, lhe segurava a mão esquerda entre as suas, também tão quentes e calorosas. Os cabelos eram iguais aos de Alexandrina, negros e fortes, atados com uma fita um pouco abaixo da nuca. E eram ambos tão belos! observou, extasiada. Qual deles seria o meio elfo? Era incapaz de distinguir. Mas, de qualquer forma, não interessava.

A mão do pai deslizou-lhe pelo cabelo solto, meiga e compreensivamente, como se adivinhasse o que lhe ia na mente. As pálpebras de Liriana descaíram de forma gradual até se cerrarem por completo. A cabeça fez o mesmo, deitando-se sobre o ombro do pai, para um novo descanso.

Quando voltou a acordar, a paisagem mudara por completo, apesar de estar tão comodamente instalada como estivera no paraíso branco. Os lençóis de linho aconchegavam-na e davam-lhe leves informações de onde poderia estar. Teve dificuldade em abrir os olhos e despertar daquele sonho ou pesadelo que a apanhara desprevenida. Monstros feitos a carvão vulcânico tinham-lhe inundado o subconsciente, matando e dizimando belos seres, algures num descampado ressequido e criado por deuses regidos a violência e conflitos. Como se chamavam os deuses do seu sonho? Não se lembrava. Talvez devesse perguntar à irmã mais velha…

Sentou-se de um salto súbito, ficando com a cabeça à roda por alguns segundos, como resultado maior. Nada daquilo fora imaginação, era pura realidade, uma realidade onde fora inserida sem aviso prévio. Mas mesmo assim uma realidade.

‒ Parece que o nosso Lírio do Campo acordou – declarou uma voz alegre que a fez voltar a atenção, na sua direcção. Um pequeno banco de dois lugares, talhado em madeira trabalhada, fora colocado no quarto e dele duas pessoas observavam-na, com a alegria e também a preocupação estampadas no rosto. Alexandrina foi a primeira a levantar-se e a chegar-se a ela, beijando-lhe a fronte carinhosamente.

‒ Como te sentes? – perguntou, afastando-lhe algumas madeixas de cabelo da face e prendendo-as atrás das orelhas.

‒ Eu… bem – respondeu, num tom hesitante. – Mas onde… como é que vim aqui parar? Não estávamos no planalto? Eu não posso ter dormido dias seguidos, pois não?

Alexis riu-se, uma sonoridade leve e cristalina. ‒ Não, não dormiste dias seguidos. Materializamo-nos aqui e trouxemos-te. Precisavas de descansar. E

acredita que todo o exército ficou contente por teres regressado. Graças a ti, vencemos esta batalha. Estamos em divida para contigo. Por isso não precisas de te preocupar, ninguém te acusará de deserção – explicou, sentindo que uma certa aflição da afilhada se amenizava.

‒ Há quanto tempo acabou tudo? – quis saber, olhando em redor. As sombras que cobriam o quarto, só descobertas pela luz de uma vela que se ia consumindo, diziam-lhe que era alta noite. O pio de uma coruja soou do lado de fora da janela, quase confirmando as suas conclusões.

‒ Acabou na tarde de ontem, talvez há treze horas. Liriana abriu os olhos ainda mais, estupefacta. Nunca dormira durante tanto tempo, e mesmo assim o

cansaço acorrentava-lhe parte do corpo. Os músculos doloridos tentavam recusar-se a mexer, mesmo o pescoço, quando voltava a cabeça de Alexis para Leonardo.

‒ E os outros como estão? O Ilnosianar, o Landar… ‒ Estão ambos de perfeita saúde – garantiu, erguendo o olhar para um ponto ao lado das cortinas.

Page 178: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 178 -

Liriana seguiu o raio de visão de Alexis. Nas sombras, sobre uma camisola completamente amarrotada, dormitava uma pequena bola de pêlo negro, enrolada sobre si. Nas sombras aquele pêlo era uma camuflagem perfeita e fora por essa razão que não o vira antes. Os orbes amarelos fendidos revelaram-se por instantes e voltaram-se a extinguir sob as pálpebras.

A jovem sentiu-se a sorrir. Apesar de saber que Landar era um metamorfomago e que, num acto impensado de ciúmes, os traíra a todos, sentia-se segura na sua silenciosa companhia, tal como se sentira antes, há muitos dias atrás, quando pensava que ele era apenas um simples felino.

‒ Fico contente por sabê-lo – disse, voltando a atenção de novo para Alexis. – Mas como voltaste? Quer dizer… eu vi-te…

As palavras perderam-se a meio da frase e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Mesmo que a guerreira estivesse ali, ao seu lado, como se nada tivesse acontecido, as imagens da espada cravada no seu peito, tão fria e dolorosamente, não seriam esquecidas com facilidade. Ver morrer alguém e não poder fazer nada para a salvar é a maior impotência por que um humano pode passar: a vida esvai-se sem retorno e nada a pode deter.

‒ Essas perguntas e respostas talvez devam esperar pelo nascer do dia. Sob os raios de Sol tudo nos parece mais belo e menos sombrio. Foi por essa beleza que Midarvia se apaixonou. Esperemos até Thornigan nos abençoar com a sua luz.

‒ Mas se quiseres deixo-te um papel e uma pena para, até lá, fazeres o teu inventário de questões – voluntariou-se Leonardo na brincadeira, enquanto cruzava as pernas e apoiava a face numa das mãos, lançando-lhe um olhar maroto e deitando-lhe a língua de fora como só as crianças sabiam fazer.

Liriana riu-se a bom rir. Era bom ter amigos junto a si. Naquele quarto e àquela hora, não se sentia sozinha. E algo lhe dizia que jamais voltaria a sentir-se.

A relva macia almofadava o solo, conferindo-lhe um local de descanso delicioso. Liriana e Alexis

estavam a sós à beira do Lago Midarvia. A irmã mais velha encontrava-se estendida ao comprido, descontraidamente, de olhos fechados, enquanto a respiração lhe escapava suavemente pelos lábios entreabertos. Liriana, sentada ao seu lado, abraçava os joelhos com um dos braços e remexia nas pontinhas verdejantes com a outra mão, sentindo-lhes a textura, mas sem ter consciência de tal. Na sua mente ocorria um duelo importante entre o falar e o não falar.

‒ Não tenhas medo, podes perguntar o que quiseres – declarou a madrinha, sem abrir os olhos. – Desta vez responder-te-ei a tudo. Não tenho qualquer razão que me faça omitir-te seja o que for.

O silêncio instalou-se novamente em redor. Liriana soltou um suspiro, erguendo o olhar por momentos para a face amena do lago onde se reflectiam os raios de Sol, e depois para o céu azul, tão sereno e pacífico. Ganhou inspiração, escolhendo o melhor possível a pergunta que para si era mais importante e para a qual já sabia a resposta. Queria só ouvi-la, mas prenunciada pelos lábios de Alexis e não pelos de Vinyriah. A imagem cristalina da feiticeira perpassou-lhe o espírito por momentos, mas Liriana afastou-a para um recanto distante. Esse assunto era secundário.

Olhou fugazmente para a madrinha, captando a sua imagem descansada e simultaneamente atenta, voltando a atenção de novo para o lago.

‒ És mesmo minha irmã? ‒ Desta vez a Vinyriah disse a verdade. É com grande orgulho que te digo que sou mesmo tua irmã. Não

quis que soubesses assim tão bruscamente, muito menos pela boca dela. Queria ser eu a contar-te, quando a maré acalmasse, mas não tive qualquer hipótese. Parece que neste ponto também fui vencida. – Havia um certo remorso na voz. – Perdoa-me.

‒ Nada há a perdoar. Compreendo o porquê de mo ocultares e eu faria o mesmo – garantiu Liriana, sorrindo para o lago. – Como se chamavam os pais?

Alexis abriu os olhos e fitou-a, estupefacta. Não esperava aquela pergunta. Talvez devesse tê-la previsto, tendo em consideração a curiosidade imensa que a habitava. Voltou a fechá-los, dando tempo para que um efémero e cansado suspiro se escapasse.

‒ Elgardo e Viviane. A nossa mãe era de descendência francesa e o nosso pai meio-elfo. Conheceram-se quando eram ainda muito novos, num jantar entre aristocratas. Os pais deles, nossos avós, começaram a ter alguns negócios em comum e isso facilitou o conhecimento mútuo e um amor que cresceu e floresceu. Nenhum dos nossos avós se opôs à união das duas almas enamoradas. Depois disso, nasci eu e a Laura, cinco anos

Page 179: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 179 -

depois adoptaram o Leonardo e, semana sim semana não, saltávamos entre este e o outro mundo. Apesar de não ter qualquer origem neste mundo, a nossa mãe adorava-o e amava Nelgadir com todo o coração, gostava de Imtharien mais até do que o nosso pai, talvez. Adorava todas e quaisquer formas de vida e era tão meiga… ‒ A voz faltou-lhe, quase engasgando-se. Fez uma pausa durante alguns segundos, deixando que o chilrear travesso dos pardais aplanasse a sua alma.

Liriana sabia o que lhe passava agora pela mente. O terrível acto que Vinyriah perpetrara. Matara os próprios pais. Mas porquê? Porque tinha que haver um porquê, havia sempre!

Deu voz às dúvidas que a perturbavam, olhando para trás após ter ganho coragem para tal. Sentiu um baque no coração que se apertou com o que viu. Alexis fitava o céu, mas não o via. De cada um dos seus olhos azuis escorria uma linha cristalina, escorregando-lhe pela pele e mergulhando nos cabelos negros que ondulavam ao vento pacífico. Quase que conseguia distinguir um leve tremor controlado nos lábios rosados.

‒ Ela odiava-nos, odiava todos! Odiava os pais, odiava o Leonardo, odiava-te, odiava o seu próprio nome ao ponto de o mudar e, acima de tudo, odiava-me mais do que a qualquer coisa: a metade que lhe deveria pertencer… uma maré de idiotices sem nexo! – manifestou-se, cerrando ambos os punhos com toda a força, tentando extrair toda a raiva através deles. – Ela nunca teve consideração por ninguém, sempre foi ela, ela e ela. Nada mais lhe interessava. E depois havia eu… aquele ser que não deveria existir, o impedimento para que ela conseguisse mais e mais poder. Tentou matar-me mais do que uma vez, aquele ser pérfido, mas eu consegui sempre escapar, ou tinha alguém que me ajudava. Então, a Vinyriah enveredou por becos ainda mais obscuros. Em vez de tentar matar a irmã, matou os pais, e tudo isso para me atingir a mim! Sabia o quanto os amava. E verdade seja dita, atingiu-me, e muito profundamente, mas não chegou a trespassar-me de lado a lado, ainda tinha os meus amigos e o Leonardo. Eles deram-me todo o apoio de que necessitei e mais, deram-me o seu amor, algo que a nossa irmã não compreende, mas que sabe usar em próprio proveito quando quer. Mas foi nesse dia que a Laura assinou a sua sentença. Nelgadir abriu guerra aberta contra ela. Era demais para a Vinyriah, por mais que já entendesse de feitiçaria. Tinha que obter aliados e o mais depressa possível. Assim, seduziu o Ardanir que dos dois era quem mais poder possuía sobre os zunaris pois, por ser vampiro, compreendia a sede de sangue; aliou-se aos necromantes e às suas forças do outro mundo e, por fim, criou laços de amizade com seres bem mais soturnos, habitantes das covas milenares e das profundezas da Floresta Dourada e sobre quem prefiro não falar. Criou o seu exército de seres famintos de sangue, poder e destruição. Um exército com os malefícios do mundo. A batalha de anteontem não foi nada comparada com o que travámos há dez anos atrás, nada. Os zunaris são seres desorganizados e com pouco senso de razão, perigosos, porém pobres almas esfomeadas, criadas por um deus ciumento. Os necromantes e os seres do submundo não o são… principalmente estes últimos. São dotados de uma inteligência maquiavélica alimentada por anos infinitos de existência. Ninguém sabe quem os criou, mas existem alguns que teorizam a sua nascença, diz-se que se criaram espontaneamente de todos os maus sentimentos patentes nos deuses. Raiva, ódio, maldade e uma capacidade de raciocínio compatível com os elfos. Por vezes a inteligência é um mal grandioso. E todos eles são de uma beleza extenuante para os olhos de quem os vê, criam uma ilusão em seu redor que oculta a sua verdadeira e horrenda forma. Poucos dos que viram a sua aparência real sobreviveram, e desses poucos, ainda menos gostam de mencionar o que tiveram desprazer de conhecer. Chamam-se Asfaloths e, teoricamente, são os demónios de todos e de cada um.

Liriana não a quis interromper, apesar de ter notado que, por entre a torrente de palavras, Alexis falara do que dissera que não falaria. Mas a jovem queria ouvir tudo.

‒ Aprendeu muito com todos eles, e fortaleceu os seus imensos poderes. Foi uma enorme catástrofe a que o Ocidente teve de enfrentar, mas ultrapassou-a, com muito esforço e sacrifício. Vencemos uma e outra batalha, perdemos algumas também mas, no fim, triunfámos, por pouco tempo que tivesse sido. Valeu a pena o esforço. Contudo, ela insistiu em voltar e da forma mais baixa. Quis usar-te, pois pensava que, com o elo mais fraco da família, teria muito menos trabalho em ressurgir em todo o seu poder. Uma vez perguntaste-me, porquê tu e eu não te respondi. Mas agora respondo: porque parte da tua essência é a dela, o mesmo sangue corre-vos nas veias. Se ela te roubasse a essência, era como se se tornasse num ser mais que completo, um ser e meio, segundo a visão dos Nelgadirs. Felizmente o Âmbar da Luz tem vontade própria e enclausurou-a com o seu poder. Bendito seja o apreço que ele sente por ti. Acho que nunca ninguém viu nada de tal grandiosidade, um As-Holan usar todo o poder para deter um ente maligno… foi incrível! – Com isto puxou as costas para cima com um ténue gemido e cruzou as pernas, sentando-se. – Mas penso ter fugido um pouco do assunto, não foi? Bem, a Vinyriah é assim porque possui um ente maligno em si e tem-no porque, como diria o Leonardo, existe

Page 180: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 180 -

algum gene avariado nela, ou muitos. Da educação não foi, da sociedade onde vivia muito menos. Todos sabemos que existem conflitos em muitas partes de muitos mundos, mas isso não justifica o comportamento daquela cois… enfim, da Vinyriah. Resta-nos duas hipóteses.

‒ Os genes avariados, ou a teoria de que ambas são meios seres – completou Liriana, fitando-a com atenção.

‒ Exactamente. E quem saberá a verdade escondida nela própria? Eu só sei que nada sei – declarou com um risinho irónico, citando Sócrates, um antigo filósofo grego do mundo onde vivia e ao qual já não tinha a certeza de pertencer. – Mas agora sabemos que ela se encontra presa e não voltará tão cedo, ou assim o espero.

‒ Achas que voltará algum dia? ‒ Não o considero impossível. Ela já fez essa proeza uma vez. Não ponho em causa o poder do As-Holan,

mas ponho os dela, podem estar para lá do que imaginamos. Contudo um facto é certo: ela não morreu. Resta-nos esperar que não retorne, mas teremos de estar preparados. A esperança é uma arma forte, não milagrosa, em maior parte dos casos. Nem sempre está um deus caridoso à escuta das nossas preces.

Liriana tinha de admitir que Alexis tinha razão, como maior parte das vezes. Levou a mão ao peito e sentiu o pendente de cristal de encontro à pele, com uma frieza sensível e não cruel. Fora ele e não ela que os salvara a todos.

‒ Bem, mais perguntas? ‒ Sim – apressou-se a responder. – Como ressuscitaste? Como é que todos os mortos, nossos aliados,

ressuscitaram? ‒ Essa é fácil de responder, e ao mesmo tempo extremamente difícil. Foi o Landar que nos ressuscitou, e

essa foi uma das preces que Midarvia escutou e a que acudiu. O Landar deu uma das suas vidas por todas as nossas. Daria mais se lhe fosse possível, mas a Deusa só aceitou uma. É o que considero um grande sacrifício da sua parte, um acto de redenção. Para mim, vocês os dois foram os heróis da batalha. A adolescente inconsciente e o elfo que se redimiu. – Despenteou-lhe o cabelo na brincadeira. – Claro que isso não o deixará impune de julgamento.

‒ Um julgamento? – Liriana voltou-se por completo para a madrinha, incrédula. – É mesmo necessário? ‒ Infelizmente, é. Os elfos levam as traições muito a sério e muitos serão a favor da condenação. – Os

olhos da jovem abriram-se desmesuradamente, em puro choque. – Mas acredito que se resolverá tudo a bem. Queres estar presente?

‒ No julgamento? – Alexis confirmou com um aceno de cabeça. – Bem, se não se importarem gostaria de assistir.

‒ Óptimo! Serás o décimo terceiro júri – declarou categoricamente, erguendo-se do chão com a ajuda de uma mão e sacudindo as calças negras com duas palmadas vigorosas.

‒ Júri?! Mas nunca estive num julgamento! Nem sei bem o que raios um júri faz! E… e eu só tenho quinze anos!

‒ Terás dezasseis no dia do julgamento. E não te preocupes. São treze pessoas, cada uma vota contra ou a favor da condenação, podendo expor, caso queira, os seus argumentos. Nada mais fácil.

Parecia realmente fácil, mas Liriana sabia por experiência própria que nem tudo o que parecia era. E se o seu veredicto fosse o errado? Com que olhos a fitariam todos os restantes júris? Não seria com bons, com certeza. Assim sendo, temia por aquele dia que viria dentro de quatro nasceres do Sol.

A ampla e comprida mesa do recinto contíguo à sala do trono estava normalmente rodeada de doze

cadeiras de costas altas, no entanto, e naquele dia em especial, eram catorze que a rodeavam, uma a mais para o réu e outra para um júri extra, que alguns tiveram relutância em aceitar. Não era costume ou tradição incluir alguém de fora nos assuntos de Nelgadir, muito menos quando esse alguém era considerado uma criança. Mas Alexandrina insistiu, valendo-se de todos e quaisquer argumentos, alguns deles bastantes sagazes. Apesar de tudo, os Senhores de Nelgadir aceitaram de bom grado a presença singular, e Liriana não acreditava que fosse por serem seus bisavôs.

Ocuparam os lugares que lhes pertenciam, o da jovem entre Alexis e Leonardo. Exceptuando os três, todos os restantes júris eram elfos. O pai de Inorian estava entre eles. Distinguia-se pelo seu cabelo fulvo e olhos de um verde que lembrava a doce vegetação de Nelgadir, tal como outrora os da filha recordavam. Olhou

Page 181: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 181 -

em volta atentamente, tentando ver para além do possível, e depois fitou Leonardo, questionando-se se a falecida elfo estaria presente naquele momento, escutando o que se passaria durante a sessão.

À cabeça de um dos lados da mesa em ébano, encontrava-se o acusado. Landar fitava um ponto indistinto à sua frente, perdido algures na mente ou, na pior e menos provável das hipóteses, simplesmente desligado de qualquer lugar. O seu olhar não exprimia qualquer pensamento ou sentimento, a face inexpugnável só deixava antever a calma, fingida ou não. Talvez se tivesse convencido de que merecia o castigo e tudo aquilo não passasse de uma espera vã que suportava.

De súbito, a cabeça do metamorfomago voltou-se na direcção dela, como que sentindo o seu conspecto demorado. Sem qualquer explicação, sorriu-lhe amavelmente, um sorriso belo, carinhoso até. Finalmente tinham-se conseguido entender. Aquele olhar amarelo fendido invocava essa ideia.

Foi o seu bisavô quem primeiro tomou a palavra. Os orbes azuis espelhavam calma, transmitindo-a a todos os presentes. Mas, mesmo assim, Liriana não se sentia nada tranquila. Só atingiria esse estado quando aquele julgamento terminasse e saíssem daquela sala fechada e abafada, sem qualquer janela que a libertasse de tais pensamentos. Olhou para as paredes que os rodeavam e para o tecto onde resplandecia um enorme fresco, de perfeição detalhada, ilustrando uma reunião dos Deuses. Thornigan surgia logo na primeira imagem do fresco, presidindo a reunião, e a mãe de Zaneryah, a Deusa dos Bosques, também se encontrava na imagem, assim como outros, e espíritos, imensos espíritos! Vagas presenças de cores ténues, observando a ocasião, nas costas dos poderosos. Encontravam-se de pé numa clareira rodeada de vegetação verdejante que a acolhia no seu centro. Na primeira representação encontravam-se doze deuses que ocupavam doze lugares numa circunferência invisível que delimitava a clareira. No centro encontrava-se o traidor, aquele que apunhalara os Deuses Pais e os apartara para toda a eternidade. Naquele julgamento era ele o réu e Midarvia não se encontrava presente. Na segunda pintura, separada da primeira por um muro de hera densa que se enrolava sobre si, surgia uma nova aparição. De uma luz tão ou mais translúcida que os espíritos que assistiam ao julgamento, uma figura ebúrnea, de esbelta e delgada compleição, condensou-se, trajando um vestido andrajoso bordado a céu e estrelas, que esvoaçava atrás de si. O olhar, de um azul profundo, derramava mágoas, tristeza e desilusão, e recaía sobre ele, o agora denominado Deus do Mal. Com a sua chegada, Scanethum baixara o semblante, incapaz de enfrentar a Mãe do Tudo e do Nada, a sua mãe e aquela que mais amara. No caso de Scanethum, o veredicto fora a condenação, o enclausuramento num mundo distante, longe de tudo e de todos. Nunca mais poderia tocar com qualquer dedo fosse em que mundo fosse. Se tentasse escapar, o preço seria a destruição total. Mas ao contrário de Landar, Scanethum nunca admitira desgosto pelo seu acto ignóbil.

O senhor de Nelgadir descreveu sem pormenores e de forma concisa o que acontecera: Landar roubara o bastão negro da sua prisão, na sala das armas, e entregara-o a Vinyriah. No entanto, arrependera-se do que fizera e implorara perdão a Midarvia, que o concedera, em troca de uma das suas vidas

‒ O que nos leva a pensar se não nos poderá trair novamente – declarou um dos presentes que, apesar da aparente juventude que apresentava, se denotava uma antiguidade retumbante no olhar. O seu nome era Nólice e conhecia-o vagamente de vista. – Todos nós sabemos de que forma as personalidades dos metamorfoelfos podem oscilar: muito perigosamente. São seres instáveis, criados da instabilidade momentânea que Midarvia atravessou aquando a separação de Thornigan.

‒ Que julgamento tão cruel – murmurou Liriana, o mais baixo possível, no entanto foi audível para ouvidos de extrema sensibilidade. Fez-se silêncio, o que levou a jovem a corar. Sentia todos os olhos postos em si.

‒ Estais a defendê-lo? – inquiriu uma outra voz. ‒ Eu… bem... não. Quer dizer, sim… quer dizer… ‒ O rubor aumentou ainda mais. Tinha a certeza de

que a opinião de todos eles, naquele momento, não era das melhores. – Não podem julgar o… o príncipe da Floresta Dourada pelo seu povo. Por essa ordem de ideias Vinyriah nunca seria condenada. Parte da sua educação foi entre vós. Será correcto culpar-vos?

‒ E o que compreende uma criança das profundezas dos seres vivos? ‒ Muito mais do que um adulto onde o preconceito já se infiltrou por cada poro da medula óssea. – A voz

de Alexandrina ergueu-se forte e intimidadora, calando rápida e instantaneamente a que tentara desacreditar Liriana. – Mas, por essa ordem de ideias, que entende o senhor das profundezas de Landar? A mim parece-me que absolutamente nada. Ou aprendeu a explorar pensamentos para além do possível? Pensei que isso implicasse um alto grau de magia negra.

Page 182: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 182 -

A insinuação de Alexandrina fez o elfo corar quase tanto como Liriana, mas, por educação, não respondeu à meia-humana, apesar de a vontade ser enorme.

‒ O Landar teve um comportamento reprimível – declarou o pai de Inorian, pensativamente. – No entanto, se não fosse ele, podíamos ter perdido a batalha. Acredito no arrependimento, assim como acredito na vastidão dos poderes da feiticeira. Parte do incentivo para o que aconteceu partiu de Vinyriah, com toda a certeza. Não culpo o Landar. E temos de nos lembrar de que mais tarde ou mais cedo aconteceria algo do género. Poderia ter sido pior.

‒ Isso não apaga o que Landar fez… ‒ E se passássemos já às votações? Penso que todos nós temos a nossa opinião formada – opinou

Leonardo, do seu outro lado, como quem não queria nada. ‒ Sem decidirmos que castigo impor? ‒ Não sabemos ainda se irá haver castigo, logo não vejo porque não. Se for decidida a condenação, logo

pensaremos em algo bastante distorcido e doloroso, atempadamente. Não desperdicemos energia a idealizar algo que poderá não se concretizar. – Leonardo dirigiu um sorriso rasgado a Nólice. – Concorda comigo, Senhor?

‒ Sim, tendes razão. Comecemos então a votação – declarou Penservon, categoricamente. – Voto contra a condenação.

Adlarian, a senhora sua bisavó, repetiu a resposta do esposo. Desta forma, a vez de responder progrediu gradualmente na inevitável direcção da adolescente.

Liriana foi contando, voto a voto, a sentença de Landar e, mesmo antes de Leonardo dar a conhecer o seu parecer, a jovem empalideceu. Iriam perder. De treze, sete dos votos eram a favor da condenação. Olhou receosa para Alexis, esperando ver o mesmo temor no seu rosto ebúrneo. Contudo ele estava impávido e sereno.

O necromante votou contra a condenação. Chegara a sua vez. Olhou para o bisavô, como que pedindo autorização, mas este não olhava para ninguém em especial, fitando antes um ponto indistinto da mesa sem cobertura. Engoliu em seco. Que diferença fazia votar numa opção ou noutra? Já estava perdido, tudo perdido. Olhou para os restantes membros. Alguns observavam-na de forma rude e repressiva. Não queriam que ela estivesse ali, mas já que estava, deveria votar de acordo com eles. Era o que aqueles olhares lhe diziam.

Encolheu-se no lugar. Não tinha qualquer alternativa. Entreabriu os lábios para responder, no entanto outra voz soou pela sua.

‒ Voto contra a condenação – proferiu Alexis de cabeça erguida, perscrutando os júris atenta e friamente. Porque continuavam aquela votação vã se estava já tudo decidido? A maioria vencia, vencia sempre! Era

tudo uma questão de tempo. Seria para demonstrar a Landar a sua lealdade para com ele? Tinha a certeza de que o elfo a reconhecia com ou sem demonstração.

‒ É a tua vez, Liriana. O décimo terceiro júri é sempre o último a votar – disse-lhe Penservon, virando agora a atenção para ela, com um sorriso amável, como se lhe dando coragem para assumir a sua escolha.

Liriana voltou-se para Landar, observando a sempre nobre pose de felino. Os seus olhares encontraram-se por segundos. Também ele ansiava a resposta da jovem, apesar de dissimuladamente. Não iria decepcionar o seu mestre. Tinha que seguir o coração, assim faria a escolha acertada. Ele saberia decidir com justiça, tinham-lhe dito Alexis e Leonardo um dia, e fá-lo-ia. Não podia temer aqueles elfos emproados.

‒ Voto contra a condenação – informou, fitando o bisavô, decididamente. Em volta da mesa todo e qualquer ruído cessou. Muitos jurariam que até as respirações tinham parado,

envolvendo-os num estado de vida latente. Liriana olhou para as próprias mãos, sobre a mesa, que se apertavam de nervosismo agudo. Apesar da falta de ruído, o coração martelava-lhe no peito, querendo saltar, talvez para longe dela. Respirou fundo e deixou as pálpebras descaírem. Aquela ansiedade não era justificada.

‒ Muito bem. Esclarecemos assim todas as dúvidas que nos atormentavam. Landar se Phanir, príncipe da Floresta Dourada, foi livre de qualquer castigo, merecido ou não. O Décimo Terceiro Júri proferiu a sua palavra, essa que nunca será desrespeitada. Estas são as leis, não só de Nelgadir, como de toda Imtharien. – Não havia qualquer hipótese de refutação na voz de Penservon. O caso terminara, finalmente.

Liriana piscou os olhos, não conseguindo compreender o que fora dito. O décimo terceiro júri decidia? Olhou impávida para Penservon. Teria enlouquecido? Ela não passava de uma criança, que crédito lhe poderiam atribuir? Qual o valor da sua decisão, das suas palavras tão frequentemente gaguejadas?

Page 183: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 183 -

Atrás de si, um subtil e suave bater na porta interrompeu as dúvidas, chamando a atenção de todos, mesmo a sua. Ninguém interrompia um julgamento. Liriana voltou-se instantaneamente para trás, ouvindo algumas das suas vértebras estalarem de encontro às outras. Os olhos abriram-se, estupefactos.

A poucos centímetros da porta postava-se a figura alta de um homem. O capuz resvalava-lhe para trás das costas revelando a face com leves queimaduras vermelhas do sol. Os orbes de prata caíram primeiro sobre ela e depois partiram para Alexis e percorreram todo o grupo.

‒ Pelo que vejo não me enganei. Decorre um julgamento – observou, num tom apreciador. ‒ Não Ardanir, terminou há poucos segundos – elucidou Alexis sem delongas, mas fitando-o na

expectativa. O senhor de Ranar não fora ali por nada, a um local onde era tudo menos bem-vindo, e ainda por cima durante o dia. Todos sabiam do seu conluio com Vinyriah, da grande ajuda contra todos eles. Teriam falecido centenas e centenas de elfos e humanos devido às ordens dadas com a sua fria e insensível voz. Definitivamente, ele não era bem-vindo.

‒ Poderá haver outro? – questionou. ‒ Penso que nenhum de nós se oporá a essa sugestão. – Adlarian e Landar ergueram-se simultaneamente e

a Senhora de Nelgadir fez-lhe sinal com a mão para que ocupasse o lugar acabado de tornar vago. ‒ Liriana – a madrinha voltou-se para ela e fixou-a. A jovem sentiu-se a mergulhar, por momentos,

naquela imensidão azul que eram os belos olhos de Alexandrina. – Agora terás de sair. O Décimo Terceiro Júri só pode votar de treze em treze anos. Assim sendo, não poderás estar presente no julgamento do Ardanir. Penso que o Landar não se importará de te acompanhar, já que também não possui autorização para ficar. Foi expulso do jurado aquando o roubo do bastão. – Fitou o amigo que lhe acenou em compreensão e se aproximou, pousando a mão sobre o ombro da jovem ainda sentada.

Liriana sentiu as pernas esticarem-se de modo próprio, enquanto o cérebro tentava encadear ainda um pensamento lógico.

‒ Não te preocupes, acredito que o Landar terá todo o prazer em explicar-te o que aconteceu durante estes minutos. Os julgamentos que incluem um décimo terceiro júri são sempre muito mais rápidos. Ninguém pode discutir o décimo terceiro voto. – Piscou-lhe o olho na brincadeira. – Agora vão apanhar um bocadinho de ar e descontrair. Merecem-no.

A mão de Landar, ainda no seu ombro, pressionou-o levemente, para que Liriana percebesse que tinha mesmo de sair da sala.

Desta forma, com passos trémulos e pouco decididos, a pequena abandonou a antecâmara, com Landar atrás, para a guiar.

Dirigiram-se com passos pouco apressados para um pátio contíguo ao palácio, um local onde nunca antes fora. Um caminho de gravilha ziguezagueava por entre pedaços de relvado florido. O Sol resplandecia naquela tarde de Verão, não muito quente, mas o suficiente para se tornar acolhedor. Bancos pontilhavam o jardim aqui e acolá, enraizados à terra e palpitando vida no seu interior. Não tinham sido talhados de cepos mortos, mas modelados com dedicação, cuidado e carinho pelos elfos, para que representassem toda a comodidade digna da bela natureza. Árvores também não faltavam, umas mais pequenas, outras maiores, guardando as jovens folhagens para que não ficassem desprotegidas, como uma mãe faria ao seu rancho de filhos. Aquele jardim, tal como toda Nelgadir, transbordava harmonia. Qualquer ser vivo adoraria habitar eternamente na sua paz, ouvir cada ruído melodioso que se mesclava no ciciar do vento.

‒ Mestre, não percebi que regra era aquela do Décimo Terceiro Júri – confessou, ao fim de alguns minutos de silêncio que os tinham acompanhado desde a antecâmara da sala do trono.

‒ Já não sou teu mestre – volveu o elfo, fitando o céu parcialmente limpo, com atenção. – Sou apenas Landar, um amigo, se aceitares.

‒ Por eu ter votado contra a condenação? Landar revirou os olhos, não por impaciência mas por considerar ridícula aquela sua ideia. Liriana baixou

o olhar, envergonhada. Era óbvio que não e, se tivesse parado para pensar, veria o quão ofensiva poderia ter sido aquela questão para outro alguém.

‒ Preferia até a condenação – observou, porém sem qualquer reprimenda na voz. – Foram amáveis em demasia para comigo.

‒ Mas não fizeste por mal… ‒ Não fiz?! – O seu tom de voz era incrédulo e havia uma ponta de ironia nos lábios que sorriam

tristemente. – Por bem é que não foi, Liriana.

Page 184: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 184 -

‒ Mas és boa pessoa. ‒ Lembras-te de me teres chamado assassino no dia em que fugíamos do Riargion e da Vinyriah? Eu

lembro-me, e lembro-me também de não o ter negado. ‒ Nunca matarias ninguém que não o merecesse. ‒ E tu nunca matarias ninguém, mesmo que esse ser o merecesse mais que tudo. ‒ Porque eu sou fraca… ‒ Não. Porque acreditas na redenção, tal como a Alexandrina. Acreditam e eu não. É aí que reside a

diferença. Se fosse eu a votar contra alguém como eu, esse alguém tinha a condenação mais que certa. ‒ Compreendo. Mas não é por isso que deixo de confiar em ti, e nada abalará essa confiança. A Alexis

diria o mesmo e acredito que o Leonardo também. ‒ E eu estimo muito essa confiança, podes crer nas minhas palavras – garantiu. – É mais do que alguma

vez mereci. Liriana sentiu-se a corar, como sempre acontecia quando lhe davam alguma reprimenda ou teciam um

elogio. Continuaram a caminhar pelo trilho de pedrinhas arredondadas. A jovem sentia os pés a derraparem uma

vez ou outra, e retesava-se por completo, tentando equilibrar-se o melhor possível. Tinha a certeza de que Landar dava conta daqueles seus deslizes, apesar de não o fazer notar, e Liriana admirava o facto de, com o seu tacto e passos de felino, o elfo exibir uma graciosidade invejável.

No entanto, lembrava-se agora que, por qualquer razão, Landar não esclarecera a sua questão inicial. ‒ Mas o que é o Décimo Terceiro Júri? – arriscou perguntar novamente, mirando a silhueta de Landar,

agora à sua frente, com dois olhos curiosos e expectantes. Landar não parou, nem mesmo respondeu durante alguns momentos, o que deixou Liriana um pouco

desiludida e contrariada. Queria mesmo saber o porquê de ter sido a sua opinião a contar e não a dos outros e o porquê do júri só poder votar de treze em treze anos. E o silêncio com que o elfo lhe respondia era tudo menos simpático. Porque não lhe dizia logo que não lhe iria dizer?

‒ O Décimo Terceiro Júri é um mito – disse, parando subitamente e obrigando-a a uma travagem brusca e semi-deslizante. Por pouco não embatia nas costas de Landar. O elfo olhou para trás, enquanto Liriana se tentava aprumar para não se mostrar atrapalhada, mas o pouco à-vontade não abonava a seu favor. – Reparaste nos frescos da Sala Arganian?

Liriana acenou afirmativamente, não confiando plenamente na voz para declarar um “sim”. Agora pelo menos já sabia o nome da sala, apesar do significado de Arganian lhe passar muito ao lado. O que poderia querer dizer?

‒ Aquele conjunto de frescos têm como nome “O Julgamento” e, como deves ter notado, representam o julgamento de Scanethum. Até no tempo dos deuses as congregações eram de doze júris, mas naquele julgamento em especial, houve um décimo terceiro. Nunca antes a Deusa Mãe interferira num julgamento, sempre fora Thornigan a presidi-los mas, naquele dia, foi ela quem impôs a sentença. É desse mito que deriva a lei do Décimo Terceiro Júri. A tua opinião era irrevogável, tal como foi a de Midarvia. Quem contesta o Décimo Terceiro é punido pelos próprios deuses, e não digo isto em vão, não gosto de o fazer. – Nos seus lábios floresceu um sorriso torto que primava em sarcasmo. – Os deuses não são flores que se cheirem.

Após o pequeno passeio pelos jardins do palácio, Liriana regressou aos seus aposentos. Landar acompanhou-a a galope durante todo o percurso, num silêncio agradável e não constrangido, pela primeira vez desde que a jovem o conhecera sob aquela forma. Ao fim de tantos dias, tinham-se tornado finalmente amigos e compreendiam-se mutuamente.

Ao anoitecer, um pouco antes do jantar, Alexis foi ter consigo. Durante o tempo de espera, fizera uma pequena revisão do livro sobre deuses que fora buscar à biblioteca, alguns dias antes.

O bater à porta foi discreto e não a assustou, fazendo-a unicamente erguer o olhar das páginas espessas e amareladas pelo tempo. Da página observava-a a figura imponente e sombria de Scanethum, segurando nas mãos o globo de essência que dava vida aos zunaris. As sobrancelhas franziam-se, obscurecendo-lhe o olhar, onde se reflectia o brilho escarlate da esfera. Apesar dos traços delicados da figura, tão deliciosamente pintados à mão, o ser que representavam arrepiava-lhe os cabelos da nuca. Não temia a sua maldade, mas aquele olhar emanava uma raiva colérica.

‒ Entre – pediu, fechando o livro cuidadosamente, pois era antigo e não queria que se danificasse fosse de que forma fosse.

Page 185: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 185 -

Viu a porta deslizar sem qualquer ruído e Alexandrina espreitou para o seu interior, sorrindo ao vê-la sentada de pernas cruzadas sobre a cama, de livro pousado entre as duas mãos. Liriana retribuiu o sorriso com sincero contentamento. Ainda não se habituara ao facto inegável de ambas serem irmãs, mas a ideia em nada lhe desagradava. Aprendera a amar Alexandrina Adriática, e muito.

‒ Desculpa vir incomodar – declarou, entrando pela fresta que tinha aberto. Transportava nos braços uma caixa comprida e não muito alta, forrada a cabedal que se confundiria entre fetos e musgos de uma floresta, e um livro de tamanho razoável, com um aspecto antigo e venerável.

‒ Que ideia! Claro que não incomodas – disse Liriana, quase como uma confissão. Apressou-se a levantar, num acto que lhe parecia de educação.

‒ Não te incomodes – pediu a madrinha, fazendo sinal para que ela se voltasse a sentar, agora mais direita do que antes. Insistia em manter uma postura decente em frente aos outros, por mais que lhe pedissem para descontrair. – Pensei que gostasses de saber a nossa decisão a respeito do Ardanir – disse, sentando-se ao lado da afilhada e irmã, pousando a comprida caixa ou seu lado, e o livro no colo. Não parecia ser muito pesada, pensou Liriana curiosa, observando o primeiro objecto. Caixas fechadas sempre lhe tinham desperto imenso a atenção, assim como lençóis brancos a cobrirem objectos de maior porte…

Um arrepio perpassou-a por um instante de segundo, ao lembrar-se da câmara secreta que descobrira no palácio de Ardanir Riargion, um acaso bastante perturbador que a obrigava a perguntar-se, dia após dia, se o acordar de Vinyriah se poderia ter devido à sua impensada e idiota curiosidade, se o seu toque não a poderia ter despertado do sono latente em que se encontrava fazia dez anos.

‒ Liriana? A jovem olhou desorientada para a madrinha. Não ouvira o que ela houvera dito. ‒ Queres saber o que aconteceu ao Ardanir? – repetiu, mas por outras palavras, enquanto a perscrutava

com o profundo olhar de safira. ‒ Sim, claro – respondeu rapidamente, desejando que Alexis não percebesse aqueles receios. E se a culpa

fosse mesmo sua? ‒ Nada do que aconteceu até agora foi culpa tua, o que quer que seja. Estava escrito pela mão de

Ondorianir, o Deus do Destino, o que tudo controla. As bochechas de Liriana ganharam novamente o já típico tom rosado, enquanto voltava o olhar para as

mãos de dedos cruzados sobre as pernas que se balouçavam de forma acriançada à beira da cama. ‒ O Ardanir foi condenado a servir Nelgadir, até que o Conselho decida o contrário. Vigiará as fronteiras

e ajudará quem necessite de auxílio. Não foram muito severos para com ele. – Liriana deu dois acenos pensativos. Compreendia a escolha do Conselho e sabia que a condenação reservada a Landar, caso o julgamento tivesse decorrido por outro caminho, seria muito mais severa. Tinham sido sentimentos contrários que os levaram a cometer os crimes por que foram acusados. Landar agira pelo ódio cego, Riargion pelo amor cego. Por sorte ou destino, ambos tinham acordado dessa cegueira. – Ficou também decidido que o planalto de Rnedar Mormar será guardado dia e noite. Ainda esta madrugada partirá uma guarda para o local. Se Vinyriah der sinal de libertação, todos serão avisados.

Liriana repetiu os dois acenos sem mais qualquer palavra. Aquela ideia assustava-a mais do que qualquer coisa. Os poucos dias em que tivera contacto com a sua outra irmã chegaram-lhe para serem os únicos. Nunca antes os desejara, e não era num futuro próximo ou longínquo que os desejaria.

‒ E agora, algo mais importante. – A jovem voltou o olhar, onde se reflectia o espanto, para Alexis. O que poderia haver de mais importante do que a protecção de Imtharien? – O Landar informou-me de que és apreciadora de tiro com arco – observou, brincando com os fechos dourados da caixa, que se abriram com um estalo grave. – Então, fiz questão de pedir para que fizessem um, especialmente para ti. Em meu nome, no nome do Leonardo e no do Landar também.

Abriu a tampa para trás, revelando o interior da caixa. Estava preenchida a veludo negro, sensível ao tacto, um confortável berço para o que descansava no interior, e esse era ainda mais belo. Ao longo de todo o arco estendia-se um rendilhado florido que o delineava em um sem fim de pormenores do que seria o mais magnífico jardim em miniatura que já vira. Cada pétala ou folha que dele emergiam estavam banhadas numa delicadeza tal que Liriana temia só de lhes tocar. Pareciam tão efémeras e quebradiças, e tudo aquilo num único arco, envolvendo-o como um véu de natureza singela. E as cores pareciam mil e uma, cada tom que se misturava com outro, num gradiente exponencial. Era a mais perfeita obra-prima que alguma vez lhe fora dada a conhecer.

Page 186: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 186 -

Alexis tirou o arco da caixa com algum cuidado, enquanto sorria ao ver o espanto e maravilha espalharem-se na face da irmã, e estendeu-lho. Se Liriana apreciara a obra só de olhar para ela a alguma distância, o que não pensaria se lhe tocasse ou visse ainda mais de perto?

Com as mãos trémulas, Liriana aceitou o presente que lhe ofereciam. Se alguma vez pensara que a espada Deusa Graciosa não poderia receber o toque do sangue, o que dizer daquela eterna visão primaveril! Que desgosto traria para a sua digna beleza?

Com as pontas dos dedos, sentiu a suavidade do toque. A textura competia com o verdadeiro aveludado das rosas, ou com a maciez cerosa de uma folha de plátano. Diria que eram miniaturas reais, não fosse a rigidez e resistência que apresentavam. Que feitiço teria coberto aquela perfeição de forma a conservá-la prematuramente?

‒ Feliz aniversário – desejou Alexandrina com um riso que lhe lembrava o cantar de uma pequena ave canora. – Muito me alegra saber que gostaste do teu presente.

‒ É lindo… ‒ murmurou a jovem, sendo incapaz de desviar o olhar de cada pequeno pormenor. Contudo, aquela não era palavra digna de descrição, pois o arco era mais que lindo. No entanto, não deixava de ser uma arma…

Alguma coisa na sua expressão facial traiu-lhe os pensamentos, pois mal aquela ideia lhe perpassara a mente, as sobrancelhas negras de Alexis franziram-se notoriamente, de forma inquiridora.

‒ O que se passa? – quis saber, sem compreender. ‒ É só que… ‒ hesitou, não sabendo se deveria ou não tocar naquele assunto. Alexis considerá-lo-ia,

simplesmente, absurdo. – É que… é uma arma… ‒ Hum… e podes dizer-me por que consideras esse “objecto” uma arma? ‒ Bem, porque pode magoar uma pessoa, ou mesmo matá-la – respondeu, considerando aquela pergunta

totalmente desnecessária. ‒ Sim – murmurou Alexis em tom pensativo, enquanto se erguia do colchão fofo da cama e a rodeava,

aproximando-se da varanda de vidraças abertas. Mirou os vidros pouco espessos de cima a baixo e depois voltou-se para a irmã, ainda pensativa. – O que achas que aconteceria se alguém caísse de encontro ao vidro?

‒ Bem, ele partir-se-ia… ‒ Sim, e que mais? ‒ Ah… a pessoa poderia magoar-se caso os vidros a cortassem. ‒ Exacto – confirmou, voltando-se agora para as cortinas brancas, presas por uma fita para que não

cobrissem a entrada da pouca luz que o crepúsculo deixava reluzir. – E o que aconteceria se esta cortina fosse apertada com força em redor do pescoço de alguém?

Liriana engoliu em seco, imaginando a cena na sua mente. ‒ A pessoa morreria sufocada – respondeu a medo, começando a perceber onde Alexandrina queria

chegar. ‒ Hmhum – assentiu, dirigindo-se agora até à pequena secretária onde repousava um tinteiro com a

devida pena no interior. Retirou-a do frasco, deixando que um pequeno pingo escorresse sobre um pergaminho em branco. Depois examinou a ponta a poucos centímetros dos olhos, com uma atenção óbvia. – E se, por acaso, alguém enfiasse esta pena pela palma da mão a dentro?

Inconscientemente, a jovem olhou para a mão e revirou-a, imaginando uma pena a atravessá-la, enquanto se lhe formava uma bola de nervosismo no estômago. Era capaz até de ver o sangue escorrer e sentir a dor. Fechou a mão repentinamente, enquanto fechava os olhos e abanava a cabeça, tentando afastar a imagem da cabeça.

‒ O arco só é uma arma se for utilizado com essa intenção – sintetizou Alexis, voltando a colocar a pena no tinteiro. – É uma questão de mentalização.

‒ Tens razão, mas é difícil… ‒ Deixarás de praticar equitação por serem utilizados cavalos em batalhas? Obviamente que não. A má

conotação é dada pelo utilizador, não pelo utilizado, por isso não ofendas o pobrezinho, ele de nada tem culpa – declarou, com um sorriso compreensivo.

‒ Pois não. Ele tem nome? – quis saber, levantando o olhar. �iadinar Elmorin, �iarda Liduine e Virian Vorgan eram nomeações significativas dadas a espadas com que já tinha contactado. O arco também teria um nome que definisse a sua essência?

‒ Ainda não tem qualquer nome. Deixo-to à escolha.

Page 187: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 187 -

‒ Doce Primavera – disse, de imediato, sem mesmo pensar. O nome parecia-lhe tão óbvio que lhe seria impossível magicar uma designação diferente.

‒ Lylthane Sarvanir… ‒ murmurou Alexis, testando a sonância das palavras na ponta da língua. – Fica bem!

Liriana sorriu, contente consigo própria, fazendo questão de fixar na sua mente aquelas duas palavras na língua antiga de Nelgadir. Lylthane Sarvanir, a Doce Primavera. Nada mais havia que melhor o descrevesse.

Depois de ter admirado o arco tempo suficiente, Liriana apercebeu-se de que Alexis ainda não terminara o que tinha a dizer. Quando a jovem deu conta, a irmã olhava-a com um sorriso satisfeito nos lábios, mas esperava que ela acabasse a contemplação, segurando nas mãos o livro que trouxera com a caixa.

‒ Bem, – começou – tenho mais uma pequena coisa para te oferecer. Digamos antes que é uma espécie de empréstimo. – Olhou o objecto que segurava, com atenção. – Este livro pertence a Imtharien, e muitos dos povos deste mundo tratam-no por Livro Sagrado. Eu trato-o por Livro do Sol e da Lua. Contém textos antigos, onde podemos encontrar feitiços muito poderosos e lendas que escondem enigmas ainda mais poderosos. Pensei que o gostasses de ler e explorar.

Quando Alexis lhe estendeu o livro, Liriana segurou-o com ambas as mãos, detendo o olhar atento na capa dura. Uma semi-esfera branca incrustava-se no negro da capa, ladeada, inferior e superiormente, por um Sol dourado e uma Lua em quarto crescente em prateado, respectivamente. Ao fundo da capa podia ler-se: Desthin si Thornigan in sa Midarvia. Mas para seu espanto, o livro estava fortemente fechado por espécies de raízes que envolviam a abertura, impedindo fosse quem fosse de o abrir. E Liriana não via como o poderia fazer.

‒ Não te preocupes para já em abri-lo, é necessário um feitiço. Mesmo que o soubesses, não o conseguirias ler, todo o livro está em Cleriamn. Ensinar-te-ei a língua quando voltarmos para a Mansão Adriática.

Liriana fez um pequeno aceno. Esperaria então até esse dia.

‒ Já?! – exclamou Liriana, quase se engasgando com a comida que começara a engolir. Estava sentada à

mesa de jantar, na companhia de Leonardo, Alexis, Ilnosianar, Arden e Cisdahen, quando a irmã fizera uma declaração que a deixara totalmente chocada. Dissera que na tarde seguinte regressariam à Mansão Adriática.

O olhar de espanto que lhe lançaram foi geral. Ninguém esperara uma reacção daquelas, pelo menos vinda da jovem.

‒ Pensei que ficasses feliz por sabê-lo. Não desejavas voltar para tua casa, para perto dos teus pais? A pequena palavra “pais” tocou-lhe profundamente no coração, obrigando-a a baixar o olhar para o prato

de comida. Sim, era verdade, tinha imensas saudades dos pais. No entanto, enfrentá-los doer-lhe-ia imenso por saber que, na realidade, eram pais adoptivos. Compreendia o porquê de não lhe terem contado a verdade e perguntava-se até se saberiam de toda aquela história, da existência de Nelgadir e de toda Imtharien. Mas, mesmo assim, não sabia de que forma os poderia olhar nos olhos. E havia mais! A razão que os levara a deixá-la com Alexis, a decisão da sua separação… O coração de Liriana apertou-se ainda mais. Tinha de regressar, apesar daquelas ideias a desencorajarem.

‒ Sim, claro. Só não pensei que fosse já amanhã… ‒ Daqui a quatro dias tenho de te levar a Lisboa. É melhor que descanses um pouco em minha casa, antes

de fazê-lo. Quatro dias? Teria permanecido assim tanto tempo naquele mundo? Inquiriu-se, assustada com o ritmo

com que passara o tempo. Possuía somente mais quatro meros dias de férias! O decorrer da noite foi conturbado, desde que Alexis lhe dera aquela notícia. Mal conseguiu adormecer,

ouvindo os ruídos da noite como se lhe sussurrassem aos ouvidos. Que notícias teriam para lhe dar quando voltasse ao outro mundo? Não queria conhecê-las, não queria…

Na tarde seguinte, deslocaram-se até à entrada da cidade de Nelgadir. Acompanhavam-nos os Senhores de Nelgadir e o príncipe Ilnosianar, mas no local já os esperavam Landar e Zaneryah, cada um do seu lado da entrada, a uma distância considerável um do outro. Liriana nunca se apercebera de que nenhum dos dois nutria simpatia um pelo outro.

Desmontou de Sirin, lamentando ter de deixá-la para trás. Fora uma companhia agradável, durante os poucos dias em que tinham estado juntas. E, para além disso, ajudara-a durante a batalha, defendendo-a dos

Page 188: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 188 -

zunaris o melhor que podia. Deu-lhe duas palmadinhas simpáticas no flanco, enquanto tentava não se mostrar comovida. A última coisa de que precisava era começar a chorar.

Landar desencostou-se da árvore nodosa que lhe dera um descanso à sombra, e avançou para o grupo, assim como Zaneryah que o fez num saltitar acriançado de felicidade. O seu sorriso aberto brilhava à distância, tão radiante quanto o sol da manhã.

Despediram-se sem muitas delongas. Tudo o que havia de ser dito já o fora. Ilnosianar e os Senhores despediram-se dela, depositando-lhe um beijo na fronte, um beijo que lhe fez realmente vir as lágrimas aos olhos, mas Liriana deteve-as.

Seguindo as indicações de Alexis, a jovem deu as mãos a Leonardo e à madrinha, enquanto Landar fazia o mesmo, formando uma circunferência. Liriana não compreendeu as palavras que foram ditas pela guerreira numa voz ampla e forte, após darem as mãos. Estavam em Cleriamn. Olhou em redor, para o belo local que abandonava. Ao lado de Penservon, Zaneryah acenava-lhe entusiasmada, como só uma criança conseguiria fazer plenamente. Não parecia triste com a partida. Talvez soubesse que um dia regressariam. Liriana esperava que assim fosse. No final de contas, também pertencia ali.

Sentiu que a gravidade a abandonava, mas não se importou. Era como se flutuasse num sonho. Por fim, o redor desfez-se e o negro ocupou a visão de todos eles. Talvez tudo aquilo não passasse mesmo de um sonho, um comprido sonho de uma comprida noite.

Page 189: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 189 -

Epílogo

Somos Presente e Futuro, Aqueles que perseguem,

Linha após linha, Presságios apaziguadores

Do nada que é tudo. Sabemos a verdade da mentira,

Mentimos com verdades sentidas. Controlamos. Somos o Destino.

Ordenamos, dos deuses servidores. E contigo, mortal em nossas mãos,

Brincamos. Marionete de veias Pulsantes de fulgor.

(Presente e Futuro)

Liriana tocou à campainha. Não levara as chaves consigo no dia em que fora para casa de Alexandrina. Naquele momento, estavam ambas à soleira da porta, esperando que alguém a abrisse, e seria o seu pai,

possivelmente. Leonardo esperava, encostado a uma das portas da frente do Mercedes preto de Alexis, de braços cruzados, enquanto as observava com reservada atenção. Já se despedira do necromante, antes de subir as escadas. Ele prometera que a visitaria, e que ela própria poderia ir as vezes que quisesse até à Mansão Adriática, mas Liriana não tinha a certeza de que isso pudesse acontecer, pois ninguém adivinhava o que o Destino lhes reservava.

A mão que não tocara à campainha estava segura e apertada entre a de Alexis, a única âncora que a conservava de pé, naquele patamar, e a impedia de fugir.

Ouviu o fecho da porta ser puxado para trás, enquanto esta se abria ansiosamente. O pai sorriu-lhe com alegria, ao vê-la de volta e abraçou-a sem qualquer pedido de autorização. Com que então sempre adivinhara que seria o pai a vir à porta. Preferia que tivesse sido a mãe, assim sempre saberia se continuavam a viver juntos.

Depois de ter libertado todas as saudades naquele abraço, Lourenço afastou-a de si, até à distância de um braço, para a poder observar melhor.

‒ É bom ter-te de volta – confessou, abraçando-a novamente, após o exame que pareceu não dar nenhum resultado anómalo.

‒ Bem, está entregue – disse Alexis, por sua vez, cruzando os braços sobre o peito. – E escusas de perguntar se ela se portou bem, porque portou – acrescentou, quando o pai olhou para ela e abriu a boca para colocar uma qualquer questão.

‒ Não esperava outra coisa. ‒ Nem eu, da minha irmã mais nova – observou, sem enfatizar qualquer palavra, mas dando um óbvio

significado à frase, um significado que fez Liriana encolher-se e Lourenço baixar o olhar, agora sombrio, para o tapete de entrada. – Perdoem-me a indelicadeza, mas terei de partir. Assuntos importantes aguardam-me e acredito que muito têm a conversar.

‒ Sim… ‒ murmurou o pai, com um toque de indecisão. Alexandrina depositou um beijo sobre os cabelos castanhos de Liriana e, com um último sorriso a

Lourenço, virou-lhes as costas, avançando para o carro. ‒ Espera! – pediu-lhe Lourenço de súbito, obrigando-a a voltar-se para trás num espanto mudo. – Vai

subindo e leva as tuas coisas, preciso só de dar uma palavrinha à tua madri… irmã. Liriana fitou-o com alguma curiosidade, mas decidiu obedecer. O que ele iria falar com Alexis não

deveria ser da sua conta se a mandava embora tão descaradamente.

Page 190: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 190 -

Pegou na mala de viagem com uma mão e avançou para dentro, olhando uma última vez para trás. Determinado, o pai descia as escadas da entrada em direcção a Alexandrina. A conversa não iria ser nada agradável.

Transportou a mala pesada até ao quarto, no último piso da casa. Encontrava-se tal como o havia deixado: a cama feita com a colcha estrelada que lhe lembrava um noite de Verão e Yuri, o seu ursinho azul, encostado à almofada, como se a descansar. Mas havia mais, um pormenor que nunca antes ali encontrara.

Do lado de fora da janela, um gato preto de intenso olhar amarelo observava-a meditativamente. Sentiu os cantos dos lábios erguerem-se num sorriso alegre. Com que então Landar sempre lhe viera dizer adeus!

O gatinho negro fez um pequeno aceno de despedida e, perante o olhar da adolescente, o corpo esguio mudou de formato. Os membros anteriores alargaram-se de forma estranha, juntando-se ao corpo, e os posteriores emagreceram e perderam os pêlos, gerando duas patas de ave. Cada pêlo preto expandiu-se, até se transformar numa pluma nessa mesma cor, e o pequeno focinho estreitou-se, alongou-se e encurvou-se um pouco, até se tornar num forte bico. Aquela era uma das formas que Landar podia tomar – um magnífico e imponente falcão, com o sempre típico olhar amarelo fendido. Abriu as asas e levantou voo, perdendo-se no horizonte com a distância percorrida.

�*� ‒ Vai em frente e sem medo de poderes guardar remorsos. – Inclinou a cabeça e depositou-lhe um beijo

terno na têmpora. A porta da biblioteca esperava que Alexandrina ganhasse coragem de a abrir e enfrentar o passado

enclausurado. Na mão direita, a anfitriã segurava uma adaga desembainhada, a lâmina dupla apontada em direcção à alcatifa que forrava o corredor. No punho da arma serpenteavam duas cobras de língua bífida. Landar pedira-lhe explicitamente que utilizasse aquela arma, para o que tinha a fazer. Possuía uma lâmina élfica, mas não de Nelgadir. Fora forjada na Floresta Dourada e à nascença nomearam-na de Dente de Víbora. Não era um objecto normal e no metal utilizado fora misturada uma destilação de veneno purificado, conjuntamente com um feitiço de reconhecimento, que faria com que a arma envenenasse todos os cortes de quem não lhe fora dado a conhecer o sangue de forma propositada e cerimonial. E a adaga não conhecia o sangue de Vinyriah.

A mão pálida repousou sobre a maçaneta de uma das portas, antes de a rodar com um chiar ruidoso que demonstrava a pouca utilização do aposento. Num espaço de dois dias, era a segunda vez que ali se dirigia, mas hoje o fim era bem diferente. Apertou o punho onde se enrolavam as serpentes e, com um novo golpe de coragem, empurrou a porta para trás, dando de seguida um firme mas tenso passo em frente. A biblioteca emanava o mesmo perfume a antiguidade do qual se recordava, um aroma de há muitos anos atrás. A escuridão lançava um véu de veludo sobre as estantes onde os livros adormecidos esperavam que alguém os abrisse. Seria quase capaz de reconhecer os lugares onde cada um pertencia, até de olhos fechados. Quanto tempo passara ali, enquanto criança? Muito. Tanto quanto Leonardo. Mas alguém passara mais, muito mais. Alguém passara dias e noites naquele lugar e esse alguém deixara na biblioteca uma marca profunda. Esse alguém fora a sua irmã gémea.

O necromante entrou atrás de si, segurando numa candeia de petróleo que lançava uma alumiação alaranjada ao redor. Como gostava aquele homem de objectos de outros tempos, de antiguidades perdidas! Talvez fosse por essa razão que ele continuava a seu lado, por considerá-la uma espécie de antiguidade intemporal que se perdera no presente. Por vezes pensava-se assim mesmo, quem sabe devido à influência de viver numa aldeia durante tantos anos, só com Leonardo, Landar e Andersen. O viver deixava sempre as suas marcas na vida.

Desviou o olhar para o negro piano de cauda, sobre o qual Leonardo pousou a candeia de vidro. Aquela cena de pôr Liriana a tocar piano fora demasiado macabra, da parte de Laura, ela que sempre detestara aquele instrumento que os pais a obrigaram a aprender a tocar. Demonstrara de facto que não desaprendera a arte da música, de uma forma no mínimo dramática e assustadora.

Por fim, voltou-se para o seu alvo, explorando os pormenores delineados na tela, os traços suaves e belos, os mesmos traços que descreviam a maldade dos orbes esmeraldinos que enfrentava. Avançou até ao retrato, ficando a meros centímetros de distância daquela face tão similar à sua, os olhos azuis fitando os verdes. O reflexo da luz conferia uma vida única ao olhar do retrato, uma vida deturpada que ainda existia, presa algures,

Page 191: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 191 -

mas que por ali não regressaria. A assombração cessaria nessa noite, aquela ligação lúgubre que estragara a paz de muitos anos.

Ergueu o braço que segurava a adaga élfica e, num golpe final, enterrou-a com força no local onde se situaria o coração da irmã gémea, caso a tela fosse feita de carne e osso. Não aconteceu qualquer fenómeno fora do normal, nem Alexandrina o esperava. Deixou que a lâmina escorregasse pela pintura, cortando o vestido e o corpo da imagem. Não sentia qualquer prazer pelo acto que perpetrava, mas uma raiva profunda fervia-lhe no peito sempre que cruzava o olhar com o da imagem, obrigando-a a desferir golpes cada vez mais violentos. Soluçou, enquanto pedaços do retrato lhe caiam aos pés, tão mortos como sempre deveriam ter estado, e só parou quando a figura feminina desaparecera, e o olhar de esmeralda se apagara daquela biblioteca, para não mais se iluminar.

�*�

Escuta-o reclamar, Quem dita Presente e Futuro. Do silêncio ergue-se soturno,

Cavalgando cumes de montanhas E vales do outro mundo. Possui o poder das Eras,

A força que das feras se extinguiu. É o Passado, é ele que vos espreita �os confins esquecidos do tempo. É ele, aquele que em piedade e dó

Se desmoronou para não mais voltar. Mas voltou.

(Passado)

No árido planalto de Rnedar Mormar, os ventos sopravam contraditórios, resmungando com a sua própria

solidão. Ao redor de todo ele, estavam montadas tendas de vigia, em cada uma habitando dois elfos, de simples cota de malha vestida e espada embainhada presa à cintura. Todos eles tinham ampla vista para o centro do vasto planalto abandonado pelos deuses. Nada mais ali vivia para além de ervas amareladas e ressequidas, com sede de chuva que nunca chegava. Mas não só.

A alguns centímetros do ponto central, erguia-se uma espécie de estátua, tão invulgar quanto um machado estaria entre um campo de flores, uma estranha chaga que se distinguia na paisagem, brilhando ao sol e luar, e reluzindo mesmo quando nenhum destes se mostrava. O cristal revestia-a por completo, inquebrável, dizia-se. No entanto, a um olhar mais atento que nunca chegaria, notar-se-ia que estalara em vários pontos, num rendilhado que percorria toda a cristalina e angulosa escultura sem forma. No interior, era possível dar-se conta de dois olhos esmeraldinos, fixos no nada. Porém, emanavam o que de ódio seria inimaginável para qualquer um. E prometiam mais que vingança, se tal pudesse existir.

Vinyriah encontrava-se presa, mas viva. O negro coração batia como um Âmbar das Trevas, latente, escondido. E esperava, absorvendo em redor tudo o que podia: esperança, amor e poder. Era feito de matéria de buracos negros, esses que tudo sugam para o nada. Fá-lo-ia também. O que era As-Holan, o Âmbar da Luz? Em comparação a ela, não era nada. Testaria o quão infinita era a fonte de energia daquele cristal dos deuses, com o seu eterno apetite de Vida.

E, com sorte ou azar, com certeza venceria. “Pois ela era a Senhora das Trevas, a Senhora do Mal, e o Mal prevalece, mesmo quando os Bons

pensam que venceram. Ele volta sempre.”

Page 192: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 192 -

� Glossário I �

Pequeno dicionário de Cleriamn para a língua corrente

� Almorin – Sul

� Cisladen ceri niman sorulin, oraia i norlin ceri truense. Donar der lnimar Imtharien – Mundo que vives escondido, revela a imensidão que deténs. Nós te invocamos Imtharien.

� Dagar – Norte

� Desthis si Thornigan in sa Midarvia – Livro do Sol e da Lua.

� Dyriam ceri der ordiria, milne amarion liam rinfil. Dyriam ceri der ordiria, merian ê sird ceri truense

– Fecha que te ordeno, pelo sagrado povo antigo. Fecha que te ordeno, prende o mal que deténs.

� Dyriam ceri der ordiria, milno ére, Lirdian sise Thelerse – Fecha que te ordeno, por mim, Filha dos Tempos.

� Fian nimani i heare sa assanae lia. Fian sen ladnar irsah ceri vir joernar elle ceveron si sandanorin.

Saê sandanor. �imani kermori ellir nios valnorês. Uranien êr ceri der gilie in emosar sen argani. – Clamo viva a realeza da essência tua. Clamo à alma sadia que se entrança na bruma do esquecimento. Não esqueças. Viva estás nos seus meadros. Escuta os que te chamam e retorna à luz.

� Gladhari – Crescente.

� Iaminarse sa Rianor – Lobos da Lua

� Inlehar adar ê origir sise Fnagohor – Repousa sob o olhar dos deuses

� Inlehar Rithirian adian,

Ceri der thomid ye peri lndori; Inlehar ye rlyrise lios Maiar ye adian devirian; Inlehar ceri der imyari Ye amharse cil mathese se �iadin; Inlehar bian olorise Ceri der irlodar milno heligirese.

Repousa princesa minha, Que te embalo em vosso berço; Repousa em sonhos teus, Só em minha companhia; Repousa que te aqueço Em puros beijos de Deus; Repousa até despertares Que te espero por eternidades.

� Kirdanl der manir i lia minial nerdy – Abre-te para a tua fiel serva.

� Laranir – (nascer) Este

Page 193: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 193 -

� Lylthane Sarvanir – Doce Primavera

� Margar ngal – vampiro

� �iadinar Elmorin – Deusa Graciosa

� �ialian – Olá � �iarda Liduine – Estrela poente. � Rithirian Alexandrina – Princesa Alexandrina.

� Seriar omorir der – Bom reencontrar-te.

� Sirin Amenofan – Brisa Amena.

� Valem in saê vaner, ériam iemar ceri fae solem ê aridh sise Fnagohors. Uthilien vir ê eheridar, milno

bredin jianur milno Hadnianarse, Erwildorse in Rlosagorse, lessir bhidel soer, vass-hâll elle isiara, fiam i fallasórin sa unevom – Amigo e não aliado, sou aquela que vos quer o bem dos deuses. Passarei se o permitires, por caminhos trilhados por fadas, elfos e dragões, quando também eles, unidos na harmonia, clamavam a sinfonia da plenitude.

� Valmiamar – Mãe

� Virian Vorgan – Bailarinas Mortais (Bailarinas da Morte)

� Vorgir – (morrer) Oeste

Page 194: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 194 -

� Glossário II �

Adlarian – Elfo e Senhora de Nelgadir, consorte de Penservon, mãe de Ilnosianar Aldara Sacrir – Humana, mãe de Arden e Cisdahen, morta por Zunaris a mando de Vinyriah Alexandrina Adriática – Senhora da Mansão Adriática e madrinha de Liriana. Alexis – Ver Alexandrina Adriática Âmbar da Luz – As-Holan ou Pedra Viva, cristal precioso e mágico, um poderoso gerador de energia Âmbar das Trevas – Vorgamar, pedra preciosa e mágica de que são feitos os sabres de Landar, um consumidor de energia vital. Âmbar do Crepúsculo – Ithilvan, pedra preciosa e mágica que armazena energias para uso posterior. Anabela – Mãe de Liriana Andersen – Mordomo da Mansão Adriática Aniria – Deusa dos Bosques Ankh – Cruz egípcia Ardanir Riargion – Senhor do palácio de Ranar Arden Sacrir – Filho de Aldara e irmão de Cisdahen Arinorin – Mãe de Nyan, habitante da cidade de Ranar As-Holan – ver Âmbar da Luz Asfaloths – Malfadados, diz-se que se criaram dos maus sentimentos de todos os deuses. São criaturas muito poderosas, e a sua maldade iguala o seu poder, assim como a aparente beleza. Benadh – Elfo, guarda de uma pequena aldeia de Nelgadir Bervanor – Deus da Sabedoria Cajó – Cágado de estimação de Liriana Celam – Deus das Águas Ciana – Seres aquáticos que habitam o Mar do Interior Cisdahen Sacrir – Irmã de Arden e filha de Aldara Cleriamn – Língua antiga de Nelgadir, falada ainda por elfos, feiticeiros e senhores de sabedoria. Eldaniel – Elfo servidora de Nelgadir Elfo %orhen – Raça de elfo a que pertence Landar, também chamados metamorfomagos. Elgardo – Pai de Alexandrina Elil – Deus da Guerra Elmar – Gnomo dos bosques, habitante de Nelgadir Ezlabiel – Árvore Mãe. Árvore gigantesca que se encontra situada numa ilhota, em Nelgadir. Ghanir – Falecida filha de Nalir e Rorin Herioz – também chamado de Merlin, mandou construir o palácio Ranar e fez profecias de que muitos ainda se recordam. Iaminarse sa rianor – lobos gigantes servidores de Midarvia Ilnosianar – Príncipe de Nelgadir, filho de Penservon e Adlarian Imtharien – Mundo paralelo ao planeta Terra Inorian – Elfo, servidora de Nelgadir Ithilvan – ver Âmbar do Crepúsculo Karnaugh Eifmar – Homem que combateu numa arena de Ranar. Lago Midarvia – Grande lago situado em Nelgadir e donde nasce o riu Thornigan. Reza a lenda que foi formado pelas lágrimas da Deusa. Landar se Phanir – Elfo Norhen, possuidor das espadas Virian Vorgan. Laura Adriática – Irmã de Alexandrina Leonardo d’Ávila – Médico legista, amigo de Alexandrina. Liriana – Filha de Anabela e Lourenço, afilhada de Alexandrina, respectiva dona da casa onde foi passar férias. Lourenço – Pai de Liriana e primo de Alexandrina Midarvia – Deusa Mãe, criadora do Tudo e do Nada, consorte de Thornigan. %alir – Serviçal de Ardanir Riargion, esposa de Rorin %elgadir – Chamada Terra dos Elfos, local onde moram alguns dos elfos que habitam Imtharien.

Page 195: photo.goodreads.comphoto.goodreads.com/documents/1335631777books/13484355.pdf- 7 - * Perscruto o mar da incerteza ˆo canteiro a níveo florido. Que não carece da ebúrnea beleza,

- 195 -

�iadinar Elmorin – Espada forjada em As-Holan para Liriana �iarda Liduine – Espada de Alexandrina %ólice – Um dos júris do conselho de Nelgadir %yan – Filha de Arinorin Olsomae – Elfo, guarda de uma pequena aldeia em Nelgadir Ondorianir – Deus do Destino Palácio Estherel – Palácio de Ardanir Riargion, localizado em Ranar Penservon – Elfo, Senhor de Nelgadir, consorte de Adlarian Ponte Ehlenia – Também chamada ponte da esperança, atravessa o rio Thornigan, levando até Nelgadir. Rafael – Rapaz da aldeia onde se localiza a Mansão Adriática Ranar – cidade de Selnar Irgir, onde mora Ardanir Riargion Rassora – perigoso e violento ser marinho que habita os abismo do Mar do Interior Rnedar Mormar – Terra fronteiriça com Selnar Irgir Rorin – Marido de Nalir, servidor de Riargion Rotherm – Localidade onde se situa a casa de Arden e Cisdahen Sala Arganian – Sala onde são feitos conselhos e julgamentos, no palácio de Nelgadir Scanethum – Deus da Morte Selnar Irgir – local onde se situa Ranar e Nelgadir Senhora das Fadas – ver Zaneryah Thimirian – Deusa dos Sonhos Thornigan – Deus do Sol, consorte de Midarvia Vila Pouca da Beira – Aldeia portuguesa onde se situa a Mansão Adriática Vinyriah – Feiticeira Viviane – Mãe de Alexandrina Vorgamar – ver Âmbar das Trevas Yuri – Urso de peluche de Liriana Zaneryah – Senhora das Fadas e filha da Deusa dos Bosques, Aniria Zeus – gato de estimação de Alexandrina Zunaris – Monstros criados por Scanethum, através da essência vital desnaturada dos humanos.


Recommended