+ All Categories
Home > Documents > PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO …livros01.livrosgratis.com.br/cp095902.pdf ·...

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO …livros01.livrosgratis.com.br/cp095902.pdf ·...

Date post: 03-Nov-2018
Category:
Upload: trandung
View: 212 times
Download: 0 times
Share this document with a friend
107
1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS NARRATIVA INFANTIL BRASILEIRA NO SÉCULO XXI: a personagem criança e a sociedade Luana Bitencourt Gomes Dra. Vera Teixeira de Aguiar Orientadora Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras, na área de concentração de Teoria da Literatura. Data da defesa: 21/01/2009 Instituição depositária: Biblioteca Central Ir. José Otão Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2009
Transcript

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

NARRATIVA INFANTIL BRASILEIRA NO SÉCULO XXI: a personagem criança e a sociedade

Luana Bitencourt Gomes

Dra. Vera Teixeira de Aguiar Orientadora

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras, na área de concentração de Teoria da Literatura.

Data da defesa: 21/01/2009

Instituição depositária: Biblioteca Central Ir. José Otão

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Porto Alegre 2009

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

2

DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

BANCA EXAMINADORA

Dr. Vera Teixeira de Aguiar

(Orientadora – PUCRS)

Dr. Charles Kiefer

(Banca examinadora - PUCRS)

Dr. Mara Jardim

(Banca examinadora - FAPA)

3

A literatura é um assunto sério para um país; ela é, no fim de contas, o seu rosto.

Louis Aragon

4

Dedico este trabalho aos meus pais, em especial

à minha mãe, Almerita Bitencourt. Também ao

meu noivo Ítalo Ogliari, pela paciência, amor e

ajuda técnica, sempre. Não posso esquecer de

todos aqueles que não cabem aqui e, da mesma

forma, minha irmã Larissa Bitencourt Gomes e

minha grande amiga Adriana Dalpiaz, pelo

fabuloso companheirismo.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, à professora Vera Teixeira de Aguiar, pela

orientação, dedicação e conhecimento transmitido no processo de elaboração

deste trabalho.

Agradeço, também, à Coordenação do PPGL, ao trabalho das meninas

da Secretaria e à Direção da FALE da PUCRS pela atenção e apoio.

Agradeço a todos os meus outros professores que aqui não foram

citados, pela oportunidade de aprender, sempre, coisas novas.

E, por fim, agradeço à CAPES, pelo recurso financeiro disponibilizado aos

meus estudos.

6

RESUMO

Neste estudo crítico e interpretativo abordamos a personagem de ficção,

seus principais aspectos, a figura da infância na narrativa infantil brasileira e sua

atual situação em nosso País. Buscamos, a partir disso, uma melhor compreensão

da caracterização da criança na narrativa infantil brasileira do século XXI. Temos o

objetivo de discutir seu papel dentro dos textos selecionados e verificarmos como

ela se relaciona com a sociedade que representa. Analisamos, dessa forma,

apoiados por estudiosos da teoria da literatura e da sociologia, os aspectos que

colaboram para a construção da personagem criança nos livros Valentina, de

Márcio Vassallo, O cachecol, de Lia Zatz, e Ponto de vista, de Ana Maria

Machado.

PALAVRAS-CHAVE

Narrativa infantil brasileira; personagem criança; sociedade brasileira

contemporânea

7

ABSTRACT

In this critical and interpretative study we approach the fictional character,

its main aspects, the figure of the childhood in the Brazilian children’s narrative and

its current situatuion in our country. From that on, we search for a better

comprehension of the child characterization in the Brazilian children’s narrative of

the 21st century. We aim to discuss her/his role within the selected texts and to

verify how she/he relates to the society which represents. Supported by theorists of

the Literary Tieory and Sociology, we analize in this way which aspests collaborate

to build the child character in the books Valentina by Márcio Vassallo, O cachecol

by Lia Zatz and Ponto de Vista by Ana Maria Machado.

KEY WORDS

Brazilian children’s narrative; child character; brazilian contemporany society.

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................. 9

1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS E HISTÓRICOS .........................................

1.1 A personagem literária ..........................................................................

1.2 A personagem criança na literatura infantil brasileira ......................

1.3 A criança no Brasil ................................................................................

12

12

22

34

1

2 A CRIANÇA NAS OBRAS LITERÁRIAS ..................................................

2.1 O reino de VALENTINA .........................................................................

2.2 As duas pontas d’O CACHECOL .........................................................

2.3 As diferenças em PONTO DE VISTA ...................................................

56

56

69

83

CONCLUSÃO ...............................................................................................

REFERÊNCIAS .............................................................................................

96

100

9

INTRODUÇÃO

A imagem que temos da sociedade brasileira atual é a da diferença, que

aparece de inúmeras formas no cotidiano dos indivíduos. De um lado, as classes

média e alta, que têm acesso aos bens e à informação: dela fazem parte sujeitos

cercados por tecnologia, mercadorias e oportunidades. Paralelo a essa realidade

encontra-se um “outro mundo”, que vive na marginalidade econômica e social: são

sujeitos que sofrem com a pobreza, a violência, o racismo, a exclusão e a falta de

oportunidades.

A sociedade contemporânea brasileira é bastante contraditória. Em áreas

como a da indústria, a do comércio e a da tecnologia ela é extremamente

desenvolvida. Já em outros setores, é primitiva, injusta e desumana, não

oferecendo condições básicas e simples de sobrevivência para o ser humano. Por

um lado, presencia-se a destruição do meio ambiente, a escravidão de todos os

tipos, os escândalos políticos e sociais, o desemprego e, principalmente, a perda

dos significados humanos e a descrença no próprio homem, enquanto o mundo

dos negócios, das finanças, da ciência e da cultura de massa crescem

desenfreadamente.

Essas múltiplas contradições geram inúmeras conseqüências no contexto

social, cultural e também nas artes, em específico, na Literatura. Sabemos que a

10

produção literária em geral é uma expressão artística que se manifesta através da

linguagem verbal, estando diretamente ligada à sociedade. Nunca podemos, pois

negar que a sociedade influencia na literatura.

Diferente dos outros gêneros, a literatura infantil é a única que definimos a

partir do destinatário, ou seja: a criança. A arte literária infantil, por ser produzida

para o pequeno leitor, o torna um elemento fundamental dentro da narrativa, em

que maioria das vezes ele atua como personagem principal. Por isso, é importante

percebermos o momento sócio-histórico em que o texto se constrói, pois, de

alguma forma, ele acaba discutindo uma determinada condição humana ou, como

é o nosso, a condição da criança.

Sob tal perspectiva, o presente estudo tem como objetivo mostrar como a

personagem criança está caracterizada em três obras da literatura infantil

brasileira do século XXI, relacionando-a ao contexto sóciopolítico, histórico e

econômico recente vivenciado pela criança brasileira de nossos dias. Isso nos

possibilitará um balanço para melhor compreendermos como se dá à

representação literária da criança na literatura a ela endereçada no Brasil.

Devemos a escolha das obras ao fato de serem atuais e terem como

personagens centrais do enredo a figura infantil. Valentina, de Márcio Vassallo, é

um livro que tem como protagonista uma menina que acredita ser uma princesa; O

cachecol, de Lia Zatz é uma história contada a partir do olhar de uma criança que

vem do meio rural para a cidade. E a última obra, Ponto de vista, de Ana Maria

Machado, é conduzida por dois meninos e uma grande amizade. As três narrativas

escolhidas trazem uma instigante visão da criança, suas curiosidades,

inquietações e medos, entre tantos outros sentimentos do mundo infantil.

Para entendermos como se dá a construção da personagem criança nas

obras escolhidas, seu papel desempenhado e como ela se relaciona com o social,

faremos uma investigação que se divide nas seguintes partes: a elaboração de um

capítulo com fundamentos teóricos e históricos, dividido em subcapítulos. No

primeiro, traremos a trajetória da personagem de ficção no contexto histórico e

literário. No segundo, apresentaremos enfoques referentes ao gênero infantil e a

11

personagem criança. E no terceiro, enfatizaremos o caminho percorrido pela

criança na história da sociedade brasileira, de meados de 1500 aos dias atuais,

levando em consideração o surgimento da infância e os elementos que a

configuram. A seguir, a partir de itens levantados nesses subcapítulos, faremos o

estudo das obras selecionadas para esse trabalho, elaborando um capítulo de

análise, intitulado “A criança nas obras literárias”, também subdividido em: “O

reino de Valentina”, “As duas pontas d’O Cachecol” e “As diferenças em Ponto de

vista”. Com isso, pretendemos observar, comparar e salientar aspectos de cada

uma das personagens infantis das três obras e relacioná-las ao cotidiano, às

aflições e ao estado de sobrevivência pelo qual a sociedade brasileira está

passando.

Pretendemos, com o estudo da construção da personagem criança em

textos literários atuais e produzidos especialmente para os pequenos, por fim,

acrescentar e contribuir para o gênero infantil, sem deixar de levar em

consideração a intenção da obra de aproximar e fazer com que o leitor mirim se

identifique cada vez mais com as figuras que fazem parte dessas narrativas.

12

1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS E HISTÓRICOS

1.4 A personagem literária

... quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minha faculdade de existência em sua totalidade e não para satisfazer unicamente a minha faculdade de raciocínio, que não representa, em sua, senão a vigésima parte das forças que estão em mim.

Dostoievski

Para que possamos compreender a construção de uma personagem,

devemos entendê-la como elemento fundamental da narrativa, um ser atuante

dentro da obra, estudado de diferentes formas no decorrer do tempo. Criada a

partir da observação do real, trata-se de uma figura coerente e de caráter rico e

exemplar quando bem construída pelo autor.

Aristóteles, ao tentar responder ao enigma dos seres ficcionais, destacou

a semelhança existente entre a personagem e o ser humano. Propôs-se a estudá-

la a partir do caráter da imitação, da mimeses, afirmando que “ao homem é natural

imitar desde a infância – e nisso difere ele dos outros seres, por ser capaz da

imitação e por aprender, por meio da imitação, os primeiros conhecimentos –; e

13

todos os homens sentem prazer em imitar”1. Para o filósofo, a personagem, no

entanto, não estaria ligada somente a uma simples representatividade do ser

humano, mas à sua importância na elaboração e todo o desenrolar da obra a partir

das ações por ela desempenhadas, uma vez que “não é imitação de pessoas e

sim de ações, da vida, da felicidade, da desventura”2.

A partir do século XX, o estudo sobre a personagem literária ganhou

fôlego. Foi abordada pelas teorias estruturalistas – imanentistas – conforme

função desempenhada dentro de uma estrutura narrativa, como quis Vladimir

Propp, Greimas, Eikhenbaum, entre outros, o que nunca fugiu completamente do

conceito aristotélico; e também a partir de uma relação sociológica. Neste último

caso, a personagem assume características estéticas e composicionais ligadas ao

meio e ao seu tempo – linha de pensamento, essa, que nos interessa aqui e que

também não abandonou por completo o conceito de mimese, até hoje estudado e

debatido.

Edward Morgan Forster, em seus estudos publicados em 1927, lançou

novas e relevantes luzes sobre o problema da personagem. Desenvolveu noções

não só para pensar o romance, mas, principalmente, para melhor compreender a

figura de ficção. Tratou-a como um dos componentes básicos para a construção

do universo romanesco e chamou-a de “homo fictus”: um ser criado pela mente do

romancista a partir de métodos de gestação antagônicos, ou seja, um sujeito

ficcional sempre envolvido em relações humanas. De acordo com o autor, ”sabe-

se mais sobre a personagem do que sobre o ser humano, uma vez que seu

criador é um só, ao contrário do homem real, que sofre muitas influências do

meio”3. Isso acontece porque a personagem literária seria um ser mais limitado,

mais simples, sem uma coincidência total entre a vida cotidiana do homem e a da

personagem.

Ampliando seus conceitos, Edward Forster classificou as personagens

literárias em dois principais tipos: plana e redonda – tipologia ainda respeitada. A

1 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 40. 2 Ibidem, p. 44. 3 FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo 1974. p. 43.

14

primeira, construída ao redor de uma única idéia, não possuí muita profundidade.

É linear e imutável ao longo da obra. Já a redonda, também conhecida como

esférica, ao contrário, é mais complexa, multifacetada e apresenta “imagens ao

mesmo tempo totais e particularidades do homem”4. É imprevisível. Surpreende

de modo convincente. Mas hoje podemos, contudo, usar essa classificação

considerando que há diversos níveis para cada tipo e assim como a possibilidade

de cruzamentos entre eles. Para Forster, o romance sempre foi um universo

organizado, coerente e lógico, bem ao contrário da existência concreta da

realidade em si. Sempre foi uma arte de abstração e interpretação, como objetivo

formalizar a realidade, o que também sempre ocorreu na criação de uma figura

fictícia.

Para uma melhor compreensão da trajetória da personagem literária e sua

construção com o passar dos séculos são fundamentais os estudos de George

Lukács, que convencionou chamar a figura fictícia de herói. Apresentou a

diferença entre a figura de ficção da epopéia de um período em que todos as

respostas eram encontradas nos mitos, e a personagem do romance, em que o

mundo não seria mais totalitário e evidente como na narrativa épica. Na epopéia

não havia questionamento, mas a ação da personagem. Significava um ideal a ser

seguido, a trajetória do humano que expressava a força e a grandiosidade de um

povo:

O herói da epopéia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial da epopéia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E com razão, pois a perfeição e completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria um todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se como interioridade, a ponte de tornar-se individualidade.5

4 Ibidem, p. 44. 5LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas cidades, 2000. p. 67.

15

A epopéia clássica apresentava um mundo fechado e perfeito, em que o

homem vivia no equilíbrio de uma existência. Sem caos, todas as coisas eram

previsíveis: “a epopéia dá forma a uma totalidade fechada a partir de si mesma, já

o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”6.

Na epopéia, segundo Lukács, encontramos um herói com seu destino já marcado,

traçado pelos deuses, que passava por várias situações humanas e as resolvia:

(...) a série de aventuras na qual o acontecimento é simbolizado adquire seu peso pela importância que possui para a fortuna de um grande complexo vital orgânico de um povo ou de uma estirpe. Que os heróis da epopéia, portanto, tenham de ser reis tem causas diversas, embora igualmente formais, da mesma exigência para a tragédia.7

Mas foi no romance que se deu o rompimento da harmonia entre o

homem e o universo. O grande diferencial surgiu no Romantismo com a

individualização do sujeito, tanto pessoal quanto econômica, resultado de toda a

inaptidão de um novo mundo, de uma nova estrutura econômica, social e cultural

que emergiu no final do século XVIII em países como França, Itália e Alemanha e

que se disseminou pelo restante da Europa como a primeira Revolução Industrial.

Foi o berço da preocupação com o individual, centrado no homem, nas relações

familiares, na vida privada e na intimidade que nascia com a burguesia moderna.

Com isso, o romance começou a tratar do privado e tornou-se um produto do

cotidiano. Restringia-se à realidade específica de um determinado sujeito. Não

apresentava mais a forma fixa da epopéia, diferenciando-se por fatores históricos

e filosóficos.

Epopéia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas intenções configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a configuração. O romance é a epopéia de uma era para qual a imanência do

6 Ibidem, p.60. 7 Ibidem, p. 67.

16

sentido da vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.8

O romance foi o berço do herói, que se apresentava instável e não linear

dentro do universo diegético. Devido a essa instabilidade, ele precisava

providenciar seu lugar no mundo. O protagonista do romance, então, começava a

apresentar uma certa maturidade e refletia sobre seu eu interior. Suas

características e transformações apareciam na ação e na não ação, as quais

correspondiam à sua interioridade. A inadequação entre homem e mundo exterior

na figura ficcional do romance aumentava de intensidade, pois a alma perdia toda

sua relação com o mundo das idéias e também com sua capacidade de tornar-se

o centro portador de uma totalidade épica.

Já no romance do século XIX, para Lukács, era possível notar uma outra

inadequação entre a alma e a realidade. A alma, sendo mais ampla e mais vasta

do que os destinos que a vida era capaz de oferecer, tornava o descompasso

entre o mundo e a interioridade cada vez mais forte. A problemática decisiva da

forma romanesca residia na perda do simbolismo épico e na substituição da fábula

pela análise psicológica. A elevação da interioridade a um mundo totalmente

independente não era um mero fato psicológico, mas um juízo de valor decisivo

sobre a realidade. No Romantismo, o caráter literário de todo o apriorismo em face

da realidade tornou-se consciente. O eu, destacado da transcendência,

reconheceu em si a fonte de todo o dever-ser: “A vida faz-se criação literária, mas

com isso o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor de sua própria vida e o

observador dessa vida como uma obra de arte criada”9.

A maior discrepância entre a idéia e a realidade, segundo Lukács, era o

tempo. Para o teórico, só o romance e sua forma de desterro transcendental deu

idéia de que era capaz assimilar o tempo real:

8 Ibidem, p.55. 9 Ibidem, p.124.

17

Somente no romance, cuja matéria constitui a necessidade da busca e a incapacidade de encontrar a essência, o tempo está implicado na forma: o tempo é a resistência da organicidade presa meramente à vida contra o sentido presente, à vontade da vida em permanecer na própria imanência perfeitamente fechada.10

Na epopéia, sempre apareceu a duração do tempo, mas não uma

duração real. Homens e destinos apareciam de forma intocada, não possuindo

uma mobilidade própria. Os heróis não experimentavam o tempo dentro da

composição literária, o tempo não lhes atingia a mudança. O tempo estava ligado

ao mundo divino. Foi na apenas forma do romance, em que a matéria foi a busca

e a incapacidade de encontrar a essência, que encontramos o tempo real. No

romance, toda a ação interna não passou de uma luta contra o poder do tempo.

O romance foi, e ainda é, a forma da virilidade madura, e foi dessa

maturidade que brotaram experiências temporais legitimamente épicas, pois

despertaram ações e nas ações haviam suas origens a esperança e a recordação,

experiências temporais que ultrapassavam o próprio tempo.

A estrutura do mundo romanesco apresentou uma totalidade heterogênia,

em que o sentido não fora posto, mas proposto. O romance tratou do movimento

progressivo do indivíduo, que o levava ao claro conhecimento de si, como a

epopéia de um mundo sem deuses: “O romance é a forma da aventura do valor

próprio da interioridade; seu conteúdo é a historia da alma que sai do campo para

conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provadas e, pondo-

se à prova, encontrar sua própria essência”11.

George Lukács apresentou, também, uma tipologia do romance. Falou do

romance de idealismo abstrato, com um herói demoníaco, possuidor de uma

consciência estreita demais para a complexidade do mundo exterior, que lhe

servia como teatro e substrato de seus atos. Tratou, da mesma forma, do romance

da desilusão, que apresentava um herói positivo, com uma consciência

excessivamente ampla para se adaptar ao mundo e liberto de toda a simbologia

10 Ibidem, p.129. 11 Ibidem, p.91.

18

épica. Tanto sua forma quanto sua trama se dissolviam em uma série de estados

de alma e análise psicológicas que conduziam o herói ao pessimismo e à

impotência. E por último, apresentou-nos o romance educativo, que não era nem

de resignação, como o primeiro caso, nem de desespero como o segundo, mas de

renúncia consciente, porque reconciliava o homem problemático com a realidade

concreta e social de maneira que seu destino já não era mais o de um individuo

solitário, mas o de um representante de destinos comuns, o que indicava toda sua

vertente marxista como teórico.

Também de vertente semelhante, sociológica, pois compreendeu, em A

personagem de ficção, a importância da figura ficcional relacionada com o mundo

externo dentro do momento sócio-histórico em que foi criada, Antônio Cândido

afirmou que uma personagem de qualidade assume traços de pessoa, interage,

revela, provoca e propicia as mais diferentes reações e emoções. Para Candido,

“as personagens, ao falarem, revelam-se de modo bem mais completo do que as

pessoas reais, mesmo quando mentem ou procuram disfarçar a sua opinião

verdadeira”12.

Partindo da perspectiva da personagem como agente de ação, como

aquela que representa para o leitor a possibilidade afetiva e intelectual para

consolidar a concretude da obra, Candido a classificou como o que há de mais

vivo no romance, mesmo sendo um ser fictício. É por meio da personagem que se

efetiva a relação entre o ser vivo e o ser fictício, ou seja:

A personagem é complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se os compararmos com o máximo de traços humanos que polulam, a cada instante, no modo de ser das pessoas.13

Seguindo, o autor revelou-se diretamente ligado às teorias de Foster.

Apontou que o fato de a personagem assumir muitas funções dentro da obra, não

12 CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 29. 13 Ibidem, p. 59-60.

19

quer dizer que possa traduzir e revelar uma vida na sua totalidade perfeita. Isso

depende muito de com que plenitude o autor apreende o mundo dentro da obra.

Conforme a sensibilidade com que o autor lê e vê a vida, com todos os seus

aspectos e, principalmente, como ele transporta isso para arte. Para Cândido, o

que até hoje acreditamos, “a grande obra de arte (ficcional) é o lugar em que nos

defrontamos com seres humanos de contornos definidos, em ampla medida

transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar (exemplar

também no sentido negativo)”14. A personagem existe para que o leitor contemple

e ao mesmo tempo viva as possibilidades humanas que sua vida pessoal

dificilmente lhe permite viver e contemplar: “De resto, quem realmente vivesse

esses momentos extremos, não poderia contemplá-los por estar demasiado

envolvido neles”. 15 É a ficção que nos permite contemplar tais possibilidades

devido ao modo de ser irreal de suas camadas profundas ”graças aos quase-

juízos que fingem referir-se a realidades sem realmente se referirem a seres reais;

e graças ao modo de aparecer concreto e quase–sensível deste mundo imaginário

nas camadas exteriores”.16

A ficção é um lugar privilegiado, em que o homem pode experimentar,

através de personagens variados, a plenitude de sua condição. É onde podemos

transformar-nos imaginariamente e vivermos outros papéis: entrarmos em contato

com um ser autoconsciente e livre. Quando tratamos de ficção narrativa,

pensamos em um enredo, em personagens, na vida que vivem, nos problemas

que enfrentam, no seu destino. Mas sabemos que o enredo existe devido às

personagens, e essas se relacionam com o enredo, ou seja, ambos estão ligados:

“A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos”17.

Uma narrativa ficcional baseia-se num certo tipo de relação entre o ser

vivo e ser fictício. Mas não podemos esquecer que há afinidades e diferenças

entre o ser real e o ficcional que são fundamentais para criar o sentimento de

verdade, de verossimilhança. Com isso, podemos dizer que uma narrativa nada

14 Ibidem, p. 43. 15 Ibidem, p. 46. 16 Ibidem, p. 46. 17 Ibidem, p. 54.

20

mais faz do que retomar a maneira fragmentada incompleta e insatisfatória com

que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Todavia, há uma

diferença entre uma posição e outra:

Na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. No romance, ela é criada, é estabelecida e racionalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é a vida, o conhecimento do outro.18

Estabelecemos, na vida, uma interpretação de cada pessoa. No romance,

o escritor busca algo parecido, porém, menos variável, já que essa é a lógica da

personagem. A nossa interpretação dos seres vivos varia de acordo com o tempo,

a conduta, entre outros elementos. No romance, também podemos variar nossa

interpretação da personagem, mas não podemos esquecer que o escritor já lhe

deu uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a sua existência e a

natureza do seu modo de ser.

Algumas personagens destacaram-se pelo fato de que o sentimento que

temos da sua complexidade é máximo, mas isso tudo é devido aos recursos de

caracterização, ou seja, aos elementos que o escritor utilizou para descrever e

definir determinada figura, dando-lhe a impressão de vida. O surgimento do

romance moderno, como já identificou Lucáks, aumentou o sentido de dificuldade

do ser fictício, diminuindo a idéia de esquema fixo, estático, pronto, conforme

afirmou Antonio Candido:

Isso é possível justamente porque o trabalho de seleção e posterior combinação permite uma decisiva a margem de experiência, de maneira a criar o máximo de traços psíquicos, de atos e de idéias. A personagem é complexa e múltipla porque o romancista pode combinar com perícia os elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se

18 Ibidem, p. 18.

21

compararmos com o máximo de traços humanos que polulam, a cada instante, no modo-de-ser das pessoas.19

O romance moderno, do século XVIII ao XX, foi de grande inspiração para

a construção psicológica das personagens. A revolução sofrida pelo romance no

século XVIII passou do enredo complicado com personagens simples para o

enredo simples, coerente e uno com personagem complicadas. Com isso, surgiu

na técnica de caracterização do século XVIII, duas famílias de personagens, que

Johnson chamava de “personagens de costumes” e “personagens de natureza”.

As primeiras eram aquelas que apresentavam traços distintivos, fortemente

escolhidos e marcados: “Estes traços são fixados de uma vez para sempre, e

cada vez que a personagem surge na ação, basta invocar um deles”.20 Eram

personagens dominadas por uma característica invariável, revelada desde logo. Já

a segunda família, das personagens de natureza, ia além dos traços superficiais,

não imediatamente identificáveis. Elas apresentavam características analíticas,

não pitorescas: distinção que Forster retomou posteriormente de maneira mais

ampla, falando em personagens planas e personagens esféricas.

Candido, com base em Fraçois Mauriac, nunca afirmou que o romancista

seria capaz de reproduzir a vida. Na medida em que fosse igual à realidade, o

romance seria um fracasso. No mundo fictício, as personagens obedecem a uma

lei própria: “São mais nítidas, mais conscientes, têm contorno definido – ao

contrário do caos da vida –, pois há nelas uma lógica pré-estabelecida pelo autor,

que as torna paradigmas e eficazes”.21

Baseando-se nas considerações de Mauriac, Antonio Candido também

transcreve uma classificação para a figura ficcional, levando em conta o grau de

afastamento em relação à realidade:

19 Ibidem, p. 59-60. 20 Ibidem, p. 61. 21 Ibidem, p. 67.

22

1- Disfarce leve do romancista, como ocorre ao adolescente que quer exprimir-se. Tais personagens ocorrem nos romances memorialistas.

2- Cópia fiel de pessoas reais, que constituem propriamente criações, mas reproduções. Ocorrem estas nos romancistas retratistas.

3- Inventadas, a partir de um trabalho de tipo especial sobre a realidade.22

Podemos entender, porém, que “só há um tipo eficaz de personagem, a

inventada; mas que essa invenção mantém vínculos necessários com a realidade

matriz, seja a realidade individual do romancista, seja do mundo que o cerca”23, o

que verificamos nos mais diversos gêneros narrativos, como a literatura infanto-

juvenil e suas figuras, nosso foco de estudo.

1.5 A personagem criança na literatura infantil brasileira

Um país se faz com homens e livros.

Monteiro Lobato

Para falarmos da personagem criança na narrativa infantil brasileira do

século XXI, torna-se necessário compreendermos melhor como essa figura

desenvolve-se, tecendo um panorama do gênero com foco na construção desse

ser fictício.

22 Ibidem, p. 68. 23 Ibidem, p. 69.

23

A literatura infantil, como já bem sabemos, surgiu na França no final do

século XVII e início do século XVIII. Isso porque a sociedade burguesa começou,

de certa forma, a “pensar” mais na criança. Tal literatura estava sempre aliada,

porém, à transmissão de valores e à educação, sendo que os primeiros textos

para crianças eram escritos por professores e pedagogos. Os textos produzidos

no gênero, assim, ressaltavam a obediência, a noção de certo e errado, sendo que

no final da narrativa a virtude era premiada e o vício, castigado. Atuavam como um

reforço à família e à escola na formação do homem.

Segundo Nelly Novaes Coelho, o gênero teve sua origem no meio

popular: “Toda as obras que se haviam transformado em ‘clássicos’ da Literatura

Infantil nasceram do meio popular (ou em meio culto e depois se popularizaram

em adaptações). Portanto antes de se perpetuarem como literatura infantil, foram

literatura popular”24. Isso porque o pensamento da criança se aproximou, sempre,

ao do homem primitivo, dotado de um caráter mítico. Assim como esse homem

ordenava seu cosmo através dos mitos, a criança apreende o real de maneira

peculiar, egocêntrica:

No povo (ou no homem primitivo) e na criança, o conhecimento da realidade se dá através do sensível, do emotivo, da intuição... e não através da realidade ou da inteligência intelectiva, como acontece com a mente adulta. Em ambos predomina o pensamento mágico, com sua lógica própria. Daí que o popular e o infantil se sintam atraídos pelas mesmas realidades.25

Foi a partir, então, do século XVII, com as narrativas antigas se difundindo

pela Europa, através de coletâneas populares de Perrault, e no século XIX com

Grimm, Andersen, entre outros, que adultos e crianças começaram a ouvi-las

juntos. Era costume das famílias reunirem-se para contar histórias, que

representavam, na conformação de suas personagens, segundo Sonia Salomão

24 COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: história, teoria, análise. São Paulo: Quíron, 1987. p. 21. 25 Ibidem, p. 21.

24

Khéde, os valores burgueses que surgiram entre o século XVII e XIX. A

universalidade dos contos de fadas, permitiu a percepção de uma tipologia de

suas personagens, que “são lineares e têm seus limites rigorosamente

delineados, correspondendo a imagens predeterminadas e características”26.

Segundo Khéde, nos contos de fadas as personagens são tipos,

marcados por um único traço, ou caricatura, surgindo, assim, os esteriótipos

como a bruxa malvada, a fada bondosa, o sapo que vira príncipe, entre tantos

outros. Tanto nos contos de fadas como nos contos maravilhosos, a

personagem criança é esporádica, simboliza o bom senso e a inteligência, ou

apresenta-se como vítima da autoridade familiar e “quando aparece, está ligado

à representação da fragilidade e da inocência (embora plena de bom senso) e

aos processos ritualísticos de iniciação”27.

Outras características básicas das personagens dos contos de fadas

foram ressaltadas por Khéde. Tratam-se, geralmente, de alegorias do bem ou do

mal; representam valores que se cruzaram através dos ciclos históricos e como

ritos de iniciação e forças da natureza. Apresentam, também, traços

tragicômicos e cumprem várias funções dentro da narrativa. As personagens

mais comuns são fadas e bruxas, devido à oposição entre as forças positivas e

negativas. Outros personagens comuns são as rainhas e reis, que representam

a fantasia do poder e os conflitos dos relacionamentos interpessoais. São,

muitas vezes, personagens que confrontam o leitor com a morte, o abandono, o

mundo adulto, o mal e a salvação.

Nessa mesma época começava, da mesma forma, a preocupação com a

escola e com a leitura, surgindo, assim, adaptações ao gosto dos pequenos de

resumos de livros que eram destinados a adultos. Os temas e motivos das obras

eram praticamente os mesmos já vistos nas narrativas primordiais. Os valores

ideológicos que dinamizavam essas tramas eram a luta pelo poder, a submissão

absoluta a autoridades como Deus, o rei e o pai, sem falar da boa conduta, da

boa vontade e obediência. 26 KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986. p. 19. 27 Ibidem, p. 20-21.

25

Paralelamente a essas coletâneas populares, surgiram livros não

populares e não necessariamente para crianças que acabavam se tornando

famosos como literatura infantil ou juvenil. Entre os que tiveram grande

repercussão, destacaram-se Aventuras de Robinson Crusué (1719), Viagens de

Gulliver (1726), Os novos contos de fadas (1856), Alice no País das Maravilhas

(1862), Vinte mil léguas submarinas (1869), Aventuras de Pinóquio (1881) e

Coração (1886). Segundo Novaes Coelho, todas elas expressaram o estilo

racionalista/romântico que hoje conhecemos como tradicional. Mas o interessante

é que essa literatura, diferente da anterior, passava a se preocupar com a vida

realmente vivida pelos homens, ou seja, havia uma preocupação de realismo.

Numa primeira fase, a matéria literária resultava de uma fusão entre o

registro do Real e a invenção do Maravilhoso, porque, nessa época, o mundo real

era modificado aceleradamente pela civilização cientificista e tecnológica que se

expandia, mostrando-se aos homens cada vez mais o fantástico, bastando que

eles o conquistassem.

Com o avanço do racionalismo cientificista, os contos de fadas e narrativas maravilhosas em geral passam a ser vistas como “estórias para criança”. Há um novo Maravilhoso a atrair os homens: aquele que eles descobrem no próprio Real (transformado pela Máquina) e também em si mesmos, ou melhor, no poder da inteligência Humana.28

Durante a época romântica, as obras tratadas como tradicionais passaram

a apresentar características bem específicas, que Novaes Coelho enumerou,

destacando onze pontos específicos: 1- A seqüência narrativa é linear, obedece à

sucessão normal dos acontecimentos; 2- O tempo é essencialmente histórico, os

acontecimentos se sucedem pela ordem do calendário e do relógio; 3- O ato de

contar continua presente na narrativa; 4- A crescente preocupação com o registro

realista da vida cria recursos estilísticos que expressam cada vez mais a realidade

objetiva dos fatos, seres, coisas, situações; 5- Surge um novo tipo de maravilhoso,

28 COELHO, Nelly Novaes. Op. cit. nota 24, p. 82.

26

onde as fadas e os objetos mágicos são substituídos pelas maravilhas científicas;

6- As personagens passam a refletir predominantemente a preocupação do autor

com a personalidade e o comportamento dos indivíduos e não somente os papeis

que desempenham no grupo social; 7- O espaço adquire importância; o cenário, o

ambiente social ou rural, destaca-se por provocar os acontecimentos, avançando

ou retardando a ação; 8- Da intenção de Realismo e Verdade, empoe-se a idéia

de nacionalismo; 9- A exemplaridade, ou seja, a crítica ao certo/errado das ações

humanas, que sempre foi marcante nas narrativas populares ou infantis do

período arcaico, sofre alterações; a antiga seriedade com que as críticas aos

homens eram feitas é substituída pelo humor; 10- No período romântico e realista,

são as formas de romance ou de novela que tendem a predominar; 11- O narrador

é uma voz que se torna cada vez mais familiar em relação ao leitor e serve de guia

ou companheiro para ele.

A partir do Romantismo, a noção de autor valorizou-se, sendo “aquele que

inventa a narrativa e transmite ao leitor a voz do narrador. O autor é aquele que se

sabe ou se quer testemunho do mundo e dos homens”29. No Brasil, esse percurso

não foi muito diferente. A literatura infantil brasileira nasceu no final do século XIX,

um momento em que “vários elementos convergem para formar a imagem do

Brasil como a de um país em processo de modernização”30, época em que a

economia brasileira repensa suas instituições políticas e culturais, inserindo-se no

molde capitalista e desenvolvendo sua economia:

Há um vínculo estreito entre o surgimento da literatura para crianças e um processo histórico que marca indelevelmente a civilização européia moderna e, por extensão, Ocidental. Trata-se da emergência das famílias burguesas, a que se associam em decorrência, a formulação do conceito de infância, modificando o status da criança na sociedade e no âmbito doméstico, e o estabelecimento de aparelhos ideológicos que visarão preservar a

29 Ibidem, p. 95. 30 LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: história, autores e textos. São Paulo: Global, 1986. p. 15.

27

unidade do lar, e especialmente, o lugar do jovem no meio social.31

Com isso, juntamente com a extinção do trabalho escravo e o crescimento

e a diversificação da população urbana, iniciava a existência de um possível

público consumidor de livros infantis e escolares. Foi o afloramento de toda uma

literatura nacional - e não só infantil – que buscava, também, o registro de uma

identidade. No entanto, “a contínua e cada vez mais intensificada influência sofrida

por intelectuais brasileiros por seus pares europeus torna o período um tempo rico

e complexo em termos de manifestações literárias”32, repercutindo, aqui, às vezes

adaptada e outras não à realidade brasileira, a estética francesa parnasiana e

simbolista. Para Zilberman e Lajolo, os primeiros textos da literatura infantil

brasileira eram compostos de adaptações e traduções de obras estrangeiras. As

obras destinadas ao pequeno leitor eram feitas por Carl Jansen, como Contos

seletos das mil e uma noites (1882), Viagens de Gulliver (1888), As aventuras do

celebérrimo Barão de Munchausen (1891) e D. Quixote de la Mancha (1901),

entre tantas outras publicações.

Na transição do século XIX para o XX, a literatura infantil brasileira, devido

ao projeto de modernização social-cultural, já se tornava algo permanente, mas

com um modelo cívico-pedagógico baseado nos clássicos europeus, suas

traduções e adaptações, que caracterizava boa parte do acervo do início do

gênero no Brasil. A adaptação dos textos infantis europeus para a nossa realidade

lingüística indicava, porém, um processo de nacionalização. Caminhando junto da

literatura brasileira em geral – que buscava, também, uma literatura mais nacional

– a literatura brasileira destinada às crianças paradoxalmente inspirava-se nas

obras francesas Le tour de la Frace par deux garçons, de G. Bruno, de 1877 e

Cuore, de De Amicis, de 1886. Tratava-se de um caminho natural de um povo há

pouco tempo independente. Na corrente nacionalista ainda, Afonso Celso

publicou, em 1901, Por que me ufano de meu país, época em que esse

31 ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1981. p. 4. 32 LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Op. cit. nota 30, p. 16.

28

pensamento nacional ganhava novas forças depois do Romantismo, motor das

origem dos movimentos e ideologias modernistas de 22.

De um lado, a literatura infantil se converte facilmente em instrumento de difusão das imagens de grandeza e modernidade que o País, através das formulações de suas classes dominantes, precisa difundir entre as classes médias ou aspirantes a elas no conjunto das camadas urbanas de sua população. De outro, inserida no bojo de uma corrente mais complexa de nacionalismo, a literatura infantil lança mão, para a arregimentação de seu público, do culto cívico e do patriotismo como pretexto legitimador.33

A missão patriótica da literatura infantil, exaltando a natureza brasileira e

todas as formas que já conhecemos através do Romantismo, teve a escola como

fundamental destinatária. Contudo, não podemos esquecer que eram textos que

trataram de temas como a caridade, a obediência, a aplicação nos estudos, a

importância da família, do trabalho, com função totalmente pedagógica. A

linguagem caía também em certo paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que se

preocupava com a criança e sua língua pátria – diferenciando-se do português

lusitano, também por uma questão de nacionalismo –, era extremamente erudita e

voltada para o ensino.

Com o Modernismo já instituído, a literatura infantil ganhou novos ares,

tendo, como principal mudança a incorporação de uma linguagem coloquial aos

textos direcionados para as crianças: uma direção à oralidade. Surgiu, também,

Monteiro Lobato, que rompeu com o padrão europeu de literatura infantil,

principalmente no que diz respeito ao folclore. Apresentou enredos e,

principalmente, personagens mais bem elaborados das que até então eram,

conhecidas:

Seu sucesso imediato entre os pequenos leitores ocorreu de um primeiro e decisivo fator: a realidade comum e familiar à criança, em seu cotidiano, é, subitamente, penetrada pelo maravilhoso,

33 Ibidem, p. 18.

29

com a mais absoluta verossimilhança e naturalidade. Com o crescimento e enriquecimento do fabuloso mundo de suas personagens, o maravilhoso passa a ser o elemento integrante do real.34

Segundo Sonia Salomão Khéde, toda a filosofia pragmática de Lobato

estava gravada nas cenas em que seus personagens questionavam os tabus e

convencionalismos, tornando-se um grupo coeso e com personalidade própria.

Lobato consegue, em sua primeira obra, criar personagens que cumprem diversas funções no Sítio do Picapau Amarelo. A mais importante delas é possibilitar a identificação do leitor mirim com o texto literário. Em segundo lugar, através de processos lúdicos e alegóricos está a relação intratextual e intertextual que os personagens estabelecem entre si e entre personagens de outros livros, inaugurando um diálogo rico pela discussão dos valores e das formas de viver.35

Monteiro Lobato desenvolveu seis personagens fixos para o Sítio:

Narizinho, Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia, Visconde e Emília, sendo todas

elas fundamentais e de mesma importância para a criação desse universo infantil

maravilhoso. Extremamente autônomas, essas figuras tiveram sempre como

oponentes não uma outra personagem, mas seus limites e tudo aquilo que não

conheciam e tentavam desvendar sobre o mundo. As aventuras essencialmente

vividas em grupo escritas por Lobato dependeram, de forma ininterrupta, da

colaboração de cada personagem em especial. Foram sempre ligados a um

mesmo objetivo, como uma perfeita engrenagem, com cada um colaborando de

forma particular. Visconde sempre colaborou, por exemplo, com a intelectualidade;

Dona Benta, com a experiência de vida e Emília, com sua esperteza.

Temos também Lúcia, a menina de sete anos e do Narizinho arrebitado

que foi apresentada em Reinações de Narizinho como morena como jambo,

apreciadora de pipocas e excelente na preparação de bolinhos de polvilho bem 34 OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. “Lobato: um expoente brasileiro”. Disponível em: http://www.graudez.com.br/litinf/autores/lobato/lobato.htm. Acessado em 30/4/2008. 35 KHÉDE, Sonia Salomão. Op. cit. nota 26, p. 55.

30

gostosos. Outra personagem perfeitamente construída foi Pedrinho, que vive na

cidade e escrevia cartas à prima programando as aventuras de suas esperadas

férias no Sítio. Corajoso, curioso e com espírito aventureiro, Pedrinho fora descrito

em Viagem ao céu como menino que não podia compreender umas férias

passadas em outro lugar que não fosse no Sítio do Picapau Amarelo. Dona Benta

Encerrabodes de Oliveira apareceu, também, como avó ideal, divertida, mas sem

deixar de ser educadora. Inteligente, enérgica, compreensiva, sensata e

carinhosa, sempre fora capaz de aceitar as mais fantásticas brincadeiras. E não

podemos nos esquecer de Emília, criada por Tia Nastácia, personagem de opinião

forte, decidida, questionadora e rebelde.

Contudo, tais criações não garantiram a autonomia da literatura infantil

como arte legitimada, não afetando a imagem de seus escritores: “O estímulo

parece ter sido outro: o mercado escolar, aparentemente, recompensava o esforço

de escrever para os jovens”36.

Na década de 40, com os problemas da Segunda Guerra Mundial, os

laços entre Brasil e Estados Unidos estreitaram-se. Foi quando o presidente

Roosevelt veio ao Brasil, promovendo uma grande aproximação cultural. Foi

época do surgimento da personagem Zé Carioca, criada por Walt Disney como

símbolo de nossa nacionalidade e tempo em que iniciava a grande entrada dos

produtos norte-americanos no País, trazendo idéias de modernização tecnológica.

Isso fez com que a literatura infantil mudasse o espaço de trânsito de suas

personagens. O que era o campo, como o próprio Sítio do Picapau Amarelo,

tornou-se a cidade, apontando uma nova direção – porém ainda muito pequena –

para os conflitos de suas figuras. Significava que o meio rural não fora

abandonado totalmente. Ele estava presente na memória dos avós e também

servia como um lugar de aventura e de volta às origens. Mas nem sempre as

personagens eram crianças, mas, muitas vezes, adultos que conduziam ou

narravam sobre os pequenos, ou jovens que cresciam no decorrer da narrativa.

36 LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Op. cit. nota 30. p. 62.

31

Nesse período, a produção literária infantil e juvenil pode ser distribuída

em duas grandes áreas, a do questionamento e a da representação, segundo a

intencionalidade que as movia. Conforme Novaes Coelho, “as primeiras

questionam o mundo, – procurando estimular seus pequenos leitores a

transformá-lo, um dia; as segundas representam o mundo, – procurando mostrar

(ou denunciar) os caminhos ou o comportamento a serem assumidos (ou evitados)

para a realização de uma vida mais plena e mais justa”37.

Para Coelho, ambas as áreas, se bem realizadas literariamente foram

importantes e complementares no processo de evolução da literatura, sem

esquecer que o principal objetivo era o de “dar prazer ao leitor, diverti-lo,

emocioná-lo ou envolvê-lo em experiências estimulantes ou desafiantes”38.

Jerônimo Monteiro entre a década de 40 e 50, seguidor de Monteiro

Lobato e de Olavo Bilac, podemos pensar assim, foi de um inovador, pois trouxe a

criança para dentro de sua literatura com mais autenticidade e, contrariando o

modelo pedagógico, escreveu, por exemplo, Bumba, o boneco que quis virar

gente. Criou personagens – que lembram, em partes, Emíla – sustentadas pela

rebeldia e que se transformaria, de certa forma, estereótipo do gênero. Salientou-

se, também, dentro dos limites estéticos de sua época, ao criar adultos diminuídos

e que passavam a ver o mundo com olhos de criança. A ótica da criança,

desenvolvida com mais cuidado, então, também foi tema para Alfredo Mesquita

em Silvia Pélica na Liberdade.

A partir da década de 60 e 70, então, o espaço urbano foi assimilado de

forma mais vigorosa pela literatura infantil, que se dedicou, segundo Lajolo e

Zilbermam:

à produção verossímil de cenários; condições de vida e valores da classe média brasileira que, a partir do final dos anos 50, iniciava-se em hábitos de consumo. Chegando aos arredores dos anos 70, essa reprodução eufórica de um Brasil moderno coexiste com a representação mais crítica de nossa realidade social urbana [...]

37 COELHO, Nelly Novaes. Op. cit. nota 26, p. 104. 38 Ibidem, p. 104.

32

O realismo dá seus primeiros passos trazendo para as histórias infantis personagens e ambientes cuja construção literária não omite problemas e crises comuns na vida brasileira contemporânea. Com isso, os livros vão assumindo um certo tom de protesto que acaba por tornar-se a diretriz de uma fértil vertente, cujo substrato ideológico vais progressivamente se radicalizando.39

Dessa forma, as personagens da literatura infantil começaram a se tornar,

como aconteceu no romance, mais complexas, mais aprofundadas

psicologicamente. A criança ganhou um papel de destaque na obra literária

destinada ao leitor infantil, ocupando espaços de evidência. Os textos passaram a

apresentar seres com interesses semelhantes aos dos leitores. É possível, de

acordo com Khéde, constatar que as personagens da literatura infanto–juvenil

brasileira contemporânea “nos levam para a discussão de perfis culturais onde

aparecem as questões de sempre: identidade, autoritarismo, ludismo,

malandragem, transformação social...”40. Isso faz com que nos identifiquemos com

elas, reconhecendo nelas parte de nossa identidade e de nosso imaginário. A

autora ressalta, ainda, que no texto para crianças e para jovens, para alcançar um

status literário, o papel da personagem é fundamental, seja ele representado como

personagem adulto, seja como personagem criança. Isso acontece porque a

literatura deve buscar a comunicação com o leitor mirim através de uma profunda

identificação com as personagens. Essa identificação pressupõe um

preenchimento por parte do leitor dos vazios significativos de toda a obra, como

aponta os estudos hermenêuticos de Paul Ricoeur e Hans Robert Jauss, ao

compreender a obra literária como um objeto artístico incompleto, em aberto,

sendo finalizado no ato da leitura, o que também nos remete aos estudos de

Wolfgang Iser.

Se as primeiras histórias infantis continham um enredo que muitas vezes

girava em torno do adulto e de seus conflitos e não apresentava

39 LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Op. cit. nota 30, p. 176-177. 40 Ibidem, p. 19.

33

necessariamente personagens infantis, como os já conhecidos contos de

Perrault, Grimm e Andersen, atualmente o caminho é outro. Os meninos passam

a ser heróis. A ação da personagem aproxima-se do leitor mirim, pois as

narrativas passam a focalizar a problemática da infância e tornam-se mais

identificáveis. “Saímos do ‘Era uma vez...’ das narrativas primordiais, para a

representação de crianças existentes numa determinada sociedade, num tempo

x e num espaço y”41. A criança, neste caso, ao se ver simbolizada no mundo

ficcional, pode estabelecer o confronto entre as suas vivências (a partir do herói)

e as vivências do adulto, situação que revoluciona a concepção do gênero:

O herói moderno traz em si a ambivalência de valores, agora relativizados. Um personagem poderá se apresentar fragmentariamente porque representa a crise de identidade, a busca de um novo papel social ou o desconcerto diante de valores velhos e novos que lhe parecem igualmente válidos.

Nesse sentido, o leitor se verá representado no texto – principalmente com o herói urbano – e o personagem cumprirá uma das funções básicas da obra de arte que é a de simbolizar o real.42

Segundo Nelly Novaes Coelho, podemos concluir que o que hoje define a

contemporaneidade de uma literatura infantil é:

Sua intenção de estimular a consciência crítica do leitor, levá-lo a desenvolver sua criatividade latente; dinamizar sua capacidade de observação e reflexão em face do mundo que o rodeia; e torná-lo consciente da complexa realidade-em-transformação que é a sociedade, onde ele deve atuar, quando chegar a sua vez de participar ativamente do processo em curso.43

41 Ibidem, p. 40. 42 Ibidem, p. 57. 43 COELHO, Nelly Novaes. Op. cit. nota 26, p. 105.

34

No entanto, os estudos acerca da personagem criança na recente

literatura infantil brasileira ainda são escassos, e sabendo que ela desenvolveu-se

com o passar do tempo sempre ligada à percepção da sociedade sobre a própria

criança, precisamos, antes de qualquer coisa, conhecermos, também, um pouco

mais da história da criança brasileira e seu lugar no Brasil do século XXI.

1.3 A criança no Brasil

Só sei que ninguém poderá ler no engasgar destas nuvens a mesma história que eu leio, comovido.

Ferreira Gullar

A criança sempre foi, na sociedade brasileira, um caso delicado. De

acordo com Mary Del Priore, em História das crianças no Brasil, o destino delas

atualmente é variado e incerto. Algumas trabalham, outras são amadas, outras

roubam, outras cheiram cola, outras estudam e outras são usadas, como bem

sabemos. Enganam-se, no entanto, aqueles que acreditam que um dia foi

diferente, o que não é verdade. Os problemas com a infância sempre existiram,

porém, de formas diferentes conforme o desenvolvimento cultural e político, o que

envolveu a maneira de percebê-la e representá-la.

Para Fábio Pestana Ramos, todos nós sabemos que o Brasil foi

descoberto oficialmente em 1500. Todavia, suas terras começaram a ser

povoadas somente a partir de 1530. Muitos homens e mulheres vieram nas naus

portuguesas do século XVI, mas poucos sabem da existência de crianças nessas

35

embarcações: “As crianças subiam a bordo somente na condição de grumetes ou

pagens, como órfãs do Rei enviadas ao Brasil para se casarem com os súditos da

Coroa, ou como passageiros embarcados em companhia dos pais ou de algum

parente”44.

A alta taxa de mortalidade infantil na Europa no decorrer da Idade Média

e mesmo em períodos posteriores interferia na relação dos adultos com as

crianças. A expectativa de vida das crianças européias, entre os séculos XIV e

XVIII, rondava os quatorze anos, e metade dos nascidos vivos não duravam até os

sete anos. Isso fazia com que as crianças fossem consideradas seres pouco mais

superiores do que os animais, e sua capacidade para o trabalho tinha de ser

aproveitada ao máximo enquanto vivos, o que justificava – junto à falta de mão-de-

obra adulta, à baixíssima renda das famílias e ao alto nível de orfandade – o

recrutamento da mão de obra infantil em larga escala na época: “um sentimento

de desvalorização da vida infantil que incentivava a Coroa a recrutar mão de obra

entre as famílias pobres das áreas urbanas”45, como os grumetes – marinheiros de

início de carreira. Porém, segundo Fábio Pestana Ramos, essa não era a única

forma de recrutamento que existia. Mais doloroso ainda era o que ocorria com as

crianças judias, que:

ao contrário das recrutadas entre as crianças carentes portuguesas, eram jogadas nos navios à revelia de seus pais e representavam para estes um grande perda afetiva. As implicações econômicas eram descartadas (sic) pois a maioria esmagadora dos judeus era possuidora de recursos para sobreviver, prescindindo do expediente de vender a mão-de-obra de seus filhos.

Em meados do século XVIII, o número de crianças na condição de

grumetes nos navios lusitanos chegava a ser o mesmo do número de marinheiros.

Enquanto os ingleses procuravam mão-de-obra através da escravidão negra, os

44 RAMOS, Fábio Pestana. A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. pp. 19-54. p. 19. 45 Ibidem, idem. p. 21-22.

36

portugueses optavam pela utilização dos pequenos, que eram tratados de forma

precária, sem espaço, sem condições mínimas, infectados por inúmeras doenças

e tendo, muitas vezes, que comer ratos e baratas para sobreviverem. De acordo

com Fábio Ramos, essas crianças obrigavam-se a abandonar o universo infantil

prematuramente para enfrentar o mundo adulto. Muitos deles eram sodomizados

por marujos da pior espécie e pouquíssimos conseguiam ultrapassar essa fase da

vida, chegando a traçar uma carreira na marinha portuguesa e alcançando,

raramente, uma pequena ascensão social tão desejada quando meninos em sua

primeira embarcação.

Os pajens, diferente dos grumetes, tinham um cotidiano menos árduo,

eram menos castigados e se alimentavam de forma mais adequada,

principalmente por servirem oficiais da embarcação, com tarefas mais leves e

menos arriscadas, como servir a mesa dos oficiais, arrumar-lhes os camarotes e

providenciar tudo o que estivesse relacionado ao conforto de seus superiores. As

condições de extrema brutalidade também ocorriam com as meninas desprovidas

de boa condição social. Os únicos que não sofriam tanto eram os pequenos que

acompanhavam seus pais ou parentes como simples passageiros.

As navegações e a preocupação com a Colônia trouxeram, também, os

padres da Companhia de Jesus, os jesuítas, que, através do objetivo de educar e

catequizar, se envolveram de forma bastante estreita com os pequenos, tanto

indígenas quanto portugueses. O ensino das crianças, principalmente indígenas,

de acordo com Rafael Chambonleiyron, se tornou central para os colonizadores.

Segundo o autor, a missão de educar e catequizar não pode ser pensada apenas

como um plano predeterminado, concebido antes do embarque, mas foi fruto da

própria experiência missionária dos padres no Novo Mundo. No entanto, essa

educação, trouxe, de acordo com Chambonleiyron, uma mudança importante da

concepção de infância:

É bem verdade que a infância estava sendo descoberta nesse momento no Velho Mundo, resultado da transformação nas relações entre indivíduo e grupo, o que ensejava o nascimento de

37

novas formas de afetividade e a própria “afirmação do sentimento da infância”, na qual a Igreja e o Estado tiveram um papel fundamental.46

Os jesuítas, quando se tratava de evangelizar e “educar”, preferiam as

crianças aos adultos, porque elas demonstravam menos resistência e pouco

contradiziam as leis cristãs, diferente dos índios adultos, que eram arredios. Isso

acontecia pelo fato de que além da facilidade de dominação dos pequenos, eles

serviriam como um meio de conversão dos mais velhos. As crianças, para os

jesuítas, constituiriam uma nova cristandade. Bem doutrinados e acostumados na

virtude, seriam firmes e constantes, substituindo as gerações passadas. Para

Chambonleiyron, os meninos educados na doutrina trazida pelos portugueses,

terminariam sucedendo aos seus pais, criando, assim, uma nova cultura: a dos

portugueses: “os meninos, além de fazerem progressos na doutrina, repreendiam

duramente seus pais, e delatavam aos padres os mais velhos, que teimavam em

praticar seus ‘horríveis costumes’”47, como a antropofagia, a nudez e poligamia,

sendo voltados à música, ao canto e toda a cultura portuguesa. Aprendiam, da

mesma forma, ofícios, casavam e viviam nos moldes cristãos.

Entre a Colônia e o Império, de acordo com Mary Del Priore, “o certo é

que, na mentalidade coletiva, a infância era, então, um tempo sem maior

personalidade, um momento de transição e [sic] porque não dizer, uma

esperança”48. Nesta época, a criança era a maior vítima dos problemas sócio-

econômicos e ligados à saúde, como epidemias, principalmente os mais

desprovidos de condição monetária. No entanto o século XVIII já trazia algumas

diferenças, como a preocupação dos pais com a fragilidade dos pequenos, o que

envolvia até mesmo questões supersticiosas, como bruxedos e quebrantos. Para

Del Priore, “a infância tinha aspectos mais práticos e menos teóricos. O mais

46 CHAMBONLEIYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. pp. 55-83. p. 58. 47 Ibidem, idem. p. 60. 48 PRIORE, Mary Del. O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império. In.: ____________. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. pp. 84-106. p. 84.

38

importante deles era, sem dúvida, o relacionamento afetivo entre pais e filhos”49. O

carinhos entre eles, nesta época, aumenta consideravelmente, principalmente por

parte do pai, que dedicava o tempo livre ao cuidado dos filhos. Todavia, o amor

materno também teve sua participação.

No que diz respeito à educação no século XVIII, seguia-se a severidade

dos padres jesuítas, que usavam da palmatória entre outros castigos físicos

severos. Pecados, vícios, mesmo cometidos pelas crianças, eram combativos

dessa forma. Isso não significava que não houvesse espaço para o lazer e a

diversão dos infantes, mesmo nas escolas, ainda jesuítas. Banho de rio, o jogo do

beliscão, o de virar bundacanastra, o jogo do pé-queimada, cantos, mímicas,

peões, pipas, miniaturas de arco e flecha, vara de pescar e brinquedos

confeccionados em barro ou madeira serviam para os momentos lúdicos.

A formação de uma criança para que se tornasse um adulto responsável

era grande preocupação de pais e educadores do período:

Obras do tipo Contos e histórias de proveito e exemplo, como a que escreveu Gonçalo Fernandes Troncoso, em 1575, ensinavam, por meio de história exemplares, o comportamento que era esperado, na sociedade portuguesa, de jovens de ambos os sexos. Temos como “a virtude das donzelas”, “os prejuízos das zombarias”, a desobediência dos filhos, a fé na doutrina cristã e todo um leque de outros “ensinamentos”, considerados fundamentais para uma boa educação eram visitados de forma a ficar gravados na memória da criança constituindo-se numa autêntica bula de moral e valores comuns.50

Essa preocupação educativa surgiu por uma percepção da criança como

um ser psicológica e fisicamente diferente do adulto. Isso não fazia com que

houvesse muitas melhorias para as crianças negras e pobres.

O século XVIII não foi muito diferente quanto à educação. As crianças e

os adolescentes eram, segundo Ana Maria Mauad, enquadrados no universo

49 Ibidem, idem. p. 95. 50 Ibidem, idem. p. 100.

39

adulto, que determinava os espaços e os princípios norteadores de seu

crescimento e educação. Era a rotina do adulto que ordenava o cotidiano das

crianças. No entanto, a criança começa a se tornar consumidora, e casas de

brinquedos começam a surgir, assim como médicos e outros profissionais que já

se especializavam em assuntos infantis: “Nas livrarias, um ou outro livro poderia

ser de interesse. O homem da barba azul e O gato com botas, para crianças, ou

Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas e Cinco semanas em um balão, de

Júlio Verne, eram os mais procurados na livraria Martins, localizada de fronte à

igreja do Porto”51.

Paralelamente a essa literatura universal, a literatura moralista trazia

títulos como Modelos para os meninos ou rasgos de humanidade, Piedade filial e

de amor fraterno, Obra divertida e moral, As manhãs da avó: leitura para a

infância, entre outras histórias, como: “Um menino que se despiu para cobrir o

irmão”, “O filho sensível”, “O menino que adotou um órfão”, “Um menino pedindo

esmola para sua mãe”, “Uma menina que quis morrer com seu pai” e “Docilidade

de um menino maltratado pela madrasta”.

De acordo com Marco Antonio Cabral dos Santos, no final do século XIX e

início do século XX, com o início da modernização, da industrialização e

urbanização, surgiu a preocupação em inserir a criança nesse cotidiano de

transformações. As modificações das formas e modos de viver, a deterioração das

condições sociais e os novos padrões de convívio fizeram com que a infância

fosse alvo de sérias preocupações com a criminalidade e a marginalidade que

começava a se proliferar e os pivetes, batedores de carteira e meninos de rua em

geral. Para o autor: “Freqüentemente, esses menores transitavam entre atividades

lícitas e ilícitas, servindo de mão de obra em pequenos serviços, e na falta desses,

entregando-se à prática de pequenos furtos e roubos, acobertando-se no intenso

fluxo de transeuntes nas calçadas paulistanas”52. Isso fazia com que a ocupação

da criança com o trabalho nas fábricas, na agricultura ou passagens pelos

51 MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o império. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. pp. 137-176. p. 147. 52 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. pp. 210-203. p. 219.

40

institutos disciplinares fossem vistos como uma fórmula para a solução de tais

problemas:

Os menores não escaparam daquelas políticas de repressão e contensão. Os novos padrões de convívio impostos entraram em choque com as formas habituais de ocupação do espaço urbano, resultando numa constante vigília e repressão das manifestações tradicionais de convívio. As brincadeiras, os jogos, as “lutas”, as diabruras e as formas marginais de sobrevivência daqueles garotos tornaram-se passíveis de punição oficial. Os meninos das ruas tornaram-se “meninos de rua”.53

Segundo Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, esse cotidiano de

fábricas e oficinas iniciado no final do século XIX esteve ligado sempre a

situações-limite para as crianças, como acidentes de trabalho, trabalho-forçado e

maus-tratos. Foi o tempo em que as classes e as diferenças de classe do mundo

capitalista começaram a ser definidas e bem acentuadas: “Durante a República

Velha o trabalho infanto-juvenil foi o espelho fiel do baixo padrão de vida da família

operária, pautada em salários insignificantes e em índices de custo de vida

extremamente elevados”54.

A imigração colaborou, também, para o crescimento do trabalho infantil,

cuja pobreza não deixava de rondar famílias que dependiam para sobrevivência,

em parte, do serviço dos próprios filhos. As crianças e os adolescentes deste

período eram incorporados no mundo do trabalho como se fossem adultos,

chegando a 40% da população das fábricas. Alimentos, bebidas, tecidos,

charutos, cigarros, vidros, metais, tijolos e móveis, entre outros produtos,

passavam pelas mãos das crianças, sendo tratadas de forma indiferente quanto

às particularidades e necessidades da infância e da adolescência. Para Esmeralda

Blanco:

53 Ibidem, idem. p. 229. 54 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. pp. 259-288. p. 262.

41

...o mundo do trabalho não subvertia a infância e a adolescência a ponto de excluir o lúdico de suas vidas. As brincadeiras dos menores teimosamente resistiam à racionalidade imposta pelo ambiente de trabalho e forma, ao longo do tempo, em nome da disciplina exigida nos regulamentos das fábricas e oficinas, o claro detonador de atitudes violentas.55

Essas brincadeiras dos pequenos, inadequadas para o ambiente de

trabalho, mas adequadas à idade, que faziam com que apanhassem e fossem

severamente castigados, demonstravam, por sua vez, como o emprego

indiscriminado de crianças e adolescentes em funções que não estavam

preparados e que envolviam riscos foi determinante em relação à história desses

trabalhadores no Brasil. A desobediência às regras e às normas impostas fazia

com que esses menores confirmassem como a condição infantil se sobrepunha,

em muitas situações, à de trabalhador.

As brincadeiras provavelmente quebravam a rotina esmagadora dos dias tão longos passados entre os muros dos estabelecimentos industriais, aliviavam a tensão que permeava a situação de trabalho, e resgatavam minimamente o direito à infância e à adolescência, tão negado a esses trabalhadores a partir do ingresso no mundo do trabalho.56

A partir da segunda metade do século XX, algumas coisas começaram a

mudar, principalmente quanto ao valor dado pela educação. Isso, no entanto, não

significou uma total resolução dos problemas ligados às crianças. Em nome da

preservação da ordem social, da educação pública obrigatória, da necessidade de

integrar as crianças e jovens pobres pelo trabalho, o Estado também passou a

zelar pela defesa da família monogâmica e estruturada. Integrar os indivíduos na

sociedade desde a infância passou a ser uma das principais tarefas do Estado,

desenvolvendo políticas sociais destinadas especialmente às crianças e

adolescentes. Mas o aumento da população e da pobreza de uma sociedade

55 Ibidem, idem. p. 268. 56 Ibidem, idem. p. 270.

42

capitalista sem condições monetárias só fez aumentar o número de crianças nas

ruas e longe das escolas, o que não é diferente hoje. O trabalho infantil só foi

abolido oficialmente no País a partir da década de 90.

Em 1988, o Brasil, antes mesmo de a Convenção sobre os Direitos da

Criança ser aprovada pela ONU em 1989 e virar uma lei internacional, colocou, no

artigo 227 da Constituição, que seria dever da família, da sociedade e do Estado

assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à

saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária; além de

colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,

violência, crueldade e opressão. Em 1990, cria-se o Estatuto da Criança e do

Adolescente – ECA, grande avanço para a sociedade brasileira.

Porém, o Brasil do século XXI, em todos os sentidos – globalizado

política, econômica e culturalmente, e sem nos esquecermos de todos os

problemas ligados às diferenças sociais –, torna-se cada vez mais complexo,

inclusive no que diz respeito à abordagem da situação atual da criança.

Novos tempos prenunciam uma nova infância, e mudanças estão por

todos os lados. A contemporaneidade vem acompanhada de uma explosão de

informações, que acaba por transformar as noções tradicionais ligadas ao mundo

infantil. Isso se dá porque essa fase não é simplesmente um momento biológico,

natural do crescimento, do tornar-se adulto. É muito mais: “O conceito

fundamental envolve o formato dessa fase humana, moldado por forças sociais,

culturais, políticas e econômicas que atuam sobre ela”57. A infância, sendo uma

criação da sociedade, está sujeita a mudar sempre que surgem transformações

mais amplas.

A mudança na realidade econômica, associada ao acesso das crianças a

informações sobre o mundo adulto, transformou drasticamente esse universo: “O

‘gênio’ da infância tradicional saiu da garrafa e não consegue voltar. Textos

57 STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. Sem segredos: cultura infantil, saturação de informação e infância pós-moderna. In.: _____________. (Org.) Cultura Infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. pp. 11-52. p.11.

43

recentes sobre o assunto, tanto na imprensa popular quanto na escolar, falam em

‘perda da infância’, ‘crianças crescendo muito rápido’ e ‘terror das crianças no

isolamento dos lares e comunidade fragmentados’”58. De certa forma, a infância

contemporânea e suas crises estão ligadas ao medo do isolamento que envolve a

ausência dos pais e a inexistência do espírito comunitário.

O acesso livre à informação e o crescimento da mídia no fim do século XX

criaram uma vertigem social. Atualmente são os interesses comerciais da mídia

que ditam a cultura infantil. Muitas crianças dependem da televisão para o

divertimento; isso faz com que sua visão de mundo seja constituída por novos

produtos, brinquedos, filmes, videogames, moda e literatura, que se esforçam para

criar identidades através do ato de consumo:

O acesso das crianças contemporâneas à cultura infantil comercial e à cultura popular não apenas as motivou a se tornarem consumidoras hedonistas mas também minou-lhes a inocência, o status resguardado das atribulações da existência adulta que as crianças vinham experimentando desde o advento da era da infância protegida na década de 1850 [...] A autoridade do adulto sobre a criança, sem dúvida, foi quebrada, mas não graças às mães feministas ou liberais inseguros. O acesso infantil ao mundo adulto através da hiper-realidade da mídia eletrônica subverteu a consciência das crianças contemporâneas, que se transformaram em seres dependentes e incompetentes.59

Os programas infantis, para Eleanor Hilty, tornaram-se constantes nos

lares, mas isso não significa que sempre são de qualidade. Tratam, muitas vezes,

de temas violentos e sexo explícito, através de linguagem inadequada. Seus

produtores defendendo que tais programas, por lidarem com situações delicadas,

como o divórcio, deficiência física, multiculturalismo, etc: “Antes de pretender que

os programas infantis de televisão sejam benéficos e de fazer uma avaliação

crítica, eu argumentaria de qualquer modo que eles merecem a mesma condição

crítica que a literatura infantil, livros didáticos, brinquedos, etc. As mensagens são

58 Ibidem, idem. p. 13. 59 Ibidem, idem. p. 33.

44

poderosas e de longa duração”60. Isso sem falar que a violência da TV, dos filmes,

dos videogames e até das músicas populares colocam uma criança no contato

com mais de mil assassinatos por ano. Esses veículos, de acordo com David

Barry, ensinam os pequenos que a violência é “engraçada, divertida, é fonte de

sucesso, é a primeira escolha do herói, é indolor, é sem culpa, é

recompensadora”, ou seja, continua Barry:

Se você olhar as crianças pequenas assistindo seu primeiro desenho, verá que elas literalmente aprendem quando rir. Rir não é uma resposta natural à violência. Mas elas aprendem, porque as outras crianças em volta delas riem. Porque há uma seqüência de riso, porque há música que lhes diz quando rir.61

Segundo Peter Mclaren e Janet Morris, no artigo “Power Rangers: a

estética da justiça falo-militarista”, “a unidade familiar, a cultura escolar e a

industria do entretenimento são todos dispositivos formalmente igualitários, que

tecem juntos o que poderia ser chamado de ideologias hegemônicas da cidadania

estatal”62.

Com a mídia impulsionando, a fronteira entre o mundo adulto e o mundo

infantil desintegra-se, com crianças e adultos negociando os mesmos escapismos

e enfrentamentos. As crianças agem como adultos e os adultos como crianças,

num profundo sentimento de nostalgia. Isso acontece porque a criança está em

alta no mercado e a mídia trabalha dia e noite para que esse importante grupo

consuma cada vez mais.

No entanto, essa cultura midiática e, principalmente, informacional e

norte-americanizada que o Brasil incorporou com todo o vigor, não pode ser

considerada como regra num país como o nosso: o país da diferença. Qualquer

60 HILTY, Elanor Blair. De Vila Sésamo a Barney e seus amigos: a televisão como professora. In.: STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. (Org.) Cultura Infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. pp. 109-131. p. 125. 61 BARRY, David. Screen violence: It’s killing us. Harvard Magazine, november-december of 1993. p. 40. 62 MCLAREN, Peter; MORRIS, Janet. Power Rangers: a estética da justiça falo-militarista. In.: STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. Cultura Infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. pp. 181-199. p. 183.

45

análise da vida infantil dos anos 90, de acordo com Shirley Steinberg e Kincheloe,

tem de se preocupar com as questões de injustiças raciais, de classe e opção

sexual: “Da perspectiva de muitas crianças pobres e das minorias, o mundo no

qual têm sido encorajadas a acreditar não vai muito longe [...] A cultura infantil

tem, muitas vezes, de providenciar uma fuga bem vinda de tão dura realidade”63.

Sem grandes sonhos, segundo as autoras, e carregados por um sentimento de

desesperança, esses pequenos não acreditam que suas próprias ações possam

fazer diferença.

A problemática da infância e da adolescência está em evidência tanto no

contexto internacional quanto na situação de nosso país, marcada por uma

história de exclusão, desigualdade e violência. Isso envolve narcotráfico,

agressões dentro do lar, exploração, miséria, repressão, discriminação, racismo,

negação do “outro”, etc., transformando as crianças em vítimas de um mundo

perverso que estamos construindo. Para Luiz Bazílio e Sonia Kramer, em Infância,

educação e direitos humanos:

De todo modo, a questão [a problemática da criança no Brasil] permanece e (permanecerá) no centro da cena política, e mesmo político eleitoral, enquanto persistirem as causas que engendram a injustiça e a desigualdade que, ao expropriar crianças e jovens dos seus direitos básicos, exibe a pior face da história social de exclusão e violência a que a população brasileira tem sido submetida. Outro aspecto presente na esfera da infância e da adolescência – e que nos parece se constituir também de problema – é o que poderíamos chamar de sua dupla fragmentação, visível tanto no que se refere aos estudos teóricos que orientam diagnósticos, pesquisas e avaliações, quanto no que diz respeito às políticas, desde o momento de sua concepção até a implementação de ações.64

Essa fragmentação ocorre devido ao fato de que a criança é reduzida,

muitas vezes, a faixas-etárias, a níveis de escolaridade ou a estratos ou grupos

sociais – com alguma marca em comum – ao invés de vista como uma categoria

63 STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. Op. cit. nota 57, p. 42. 64 BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Crotez, 2003. p. 13-14.

46

social constituída na história e influenciada por fatores econômicos, sociológicos e

políticos. De acordo com Sonia Kramer, a sociedade é extremamente desigual,

mas contestar a desigualdade não se confunde com denunciar o não-

reconhecimento das diferenças, porque:

a desigualdade, no limite, a desigualdade extrema, a falta radical de igualdade é a escravidão, uma situação em que os homens perderam de tal forma a propriedade que nem sequer são donos de si. Já o não-reconhecimento das diferenças – étnicas, religiosas, de gênero, de idade, etc – significa a discriminação e a exclusão e, no limite, a eliminação.65

Atualmente, segundo Kramer, cresce o esforço pelo conhecimento da

criança em vários campos, como nas diversas correntes da psicologia e da

Psicanálise, na História – e em particular na história social da criança e da família.

O significado ideológico e o valor social atribuído à infância têm sido objeto de

estudo, ajudando a entender que a dependência da criança em relação ao adulto

é fato social, não apenas natural. A distribuição desigual de poder entre adultos e

crianças tem razões sociais e ideológicas.

Os estudos críticos denunciam o desaparecimento da infância.

Perguntam, sempre, de que infância falamos, já que a violência contra as crianças

e a violência entre elas se tornou algo corriqueiro: um “contexto onde imagens de

pobreza e mendicância de crianças bem como o trabalho infantil exemplificam

uma situação em que o reino encantado da infância teria chegado ao final”66.

Trata-se, na era pós-industrial, de um possível fim para o “Era uma vez...”. A idéia

de infância, para a autora, uma das invenções mais humanitárias da modernidade,

estaria destruída. A mídia, a televisão, a Internet, o acesso das crianças ao fruto

proibido da informação adulta as expulsa de seu mundo. No entanto, podemos, 65 KRAMER, Sonia. Direitos da criança e projeto político pedagógico de educação infantil. In.: BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Crotez, 2003. pp. 51-81. p. 55. 66 KRAMER, Sonia. Infância, cultura contemporânea e educação contra a barbárie. In.: BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Crotez, 2003. pp. 83-106. p. 86.

47

hoje, perguntar, como propõe Kramer, se o término da infância, o

desaparecimento da infância não seria a destruição da própria dimensão humana

do homem contemporâneo? Ou seja: é a idéia de infância que está em crise ou a

crise está no indivíduo atual e em suas idéias? Nesse sentido, deve-se concordar

com Kramer:

As crianças são sujeitos sociais e históricos, marcados por contradições das sociedades em que vivem. A criança não é filhote do homem, ser em maturação biológica; ela não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará (adulto, no dia em que deixar de ser criança). Defendo uma concepção de criança que reconhece o que é específico da infância – seu poder de imaginação, fantasia, criação – e entende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem.67

A criança brasileira, hoje, está em contato com uma realidade hostil, que

não sabe lidar com a diferença. Os pequenos são especialmente vulneráveis às

violações de direitos, à pobreza e à iniqüidade, o que faz com que o sentido de

violência ultrapasse os maus-tratos físicos, apesar de eles também estarem

presentes. Vivemos uma grave situação de injustiça social, com grande número de

famílias pobres e miseráveis e com baixíssima renda e qualidade de vida ao lado

de poucos com muito, e cada vez essa diferença se acentua mais e é, da mesma

forma, cada vez mais exaltada pela mídia. Como afirma Kramer: “Cada um de nós

tem diante de seus olhos imagens de maus-tratos, abusos ou violação de direitos

humanos de que as crianças são vitimas”68.

O debate sobre a violência remete, sempre, a questões ligadas à

diferença, à exclusão e à marginalização. Para Luiz Bazílio e Sônia Kramer, em

“Solidariedade em tempos de violência: apontamentos e inquietações”, são muitas

as áreas que contribuem na tentativa de compreender o terreno em que a

violência se planta na sociedade contemporânea, marcada tanto por uma história

da desigualdade quanto pelo não reconhecimento dessa diferença: “A igualdade é

67 Ibidem, idem. p. 91. 68 Ibidem, idem. p. 95.

48

direito natural (Rousseau, 1978) e sua não-existência implica, em última instância,

a escravidão”69. Abordar a violência pelo viés da desigualdade e da exclusão é

levar em conta e compreender o processo de socialização vividos na história

passada e no atual momento. O Brasil possui uma situação onde essa

desigualdade é agravada por uma conjuntura de exclusão:

O contexto econômico e social não parece favorável; mas já o foi em algum momento? Historicamente, a violência foi sempre usada como uma marca de dominação de uma classe social sobre a outra, de um gênero, de uma idade, de um grupo social sobre o outro. Mas parece agora que ela se generaliza e se transforma em moeda corrente em nossa sociedade.70

De acordo com Andréia Mendes dos Santos e Patrícia Kriegger, as

crianças atuais passam a se caracterizar entre os hiper-realizados e os

desrealizados. Os primeiros, os que vivem em uma realidade virtual, pela qual têm

acesso a bens culturais como Internet, videogame e computador. Quanto aos

desrealizados, são os que vivem na rua e trabalham desde muito cedo:

“Independentes e autônomas reconstroem uma série de códigos através de sua

vida na rua e na noite, o que lhes dá certa autonomia cultural, por meio da qual

procuram realizar-se”71. Isso mostra que a desigualdade social existente no País,

hoje, não é menos dura com o mundo infantil.

É tempo, também, segundo as autoras, do amor narcísico em relação à

infância, em que os adultos esperam que as crianças gozem de uma plenitude e

de uma felicidade sonhada por eles sem considerar as possibilidades de

insatisfação daquelas. Enquanto as desprovidas estão nas ruas, vários fatores,

como o aumento da violência, fazem com que as com melhor condição financeira

permaneçam mais tempo dentro de casa, ao invés de irem aos parques, brincar 69 BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Solidariedade em tempos de violência: apontamentos e inquietações. In.: ______________. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Crotez, 2003. pp. 107-126. p. 110. 70 Ibidem, idem. p. 111. 71 SANTOS, Andréia Mendes dos; GROSSI, Patricia Kriegger. Infância comprada: hábitos de consumo na sociedade contemporânea. In.: Textos & Contextos, n 8, dez. 2007. p. 5.

49

nas ruas, andar de bicicleta, etc. A família contemporânea vem, assim como toda

a contemporaneidade, sendo modificada pelas transformações do mundo atual, e,

de acordo com Andréia Mendes e Patrícia Kriegger, “os sentimentos que emergem

destas novas situações, ou por aquelas que não existem mais, se encontram

subjacentes, fazendo com que as pessoas estejam, neste momento, mais

vulneráveis”72. Com toda essa vulnerabilidade em aberto, a mídia ganha espaço e

força, ou seja, tem seu trabalho facilitado referente aos pequenos consumidores.

Mas isso, também destaca as desigualdades sociais através das diferentes formas

de exclusão:

Uma ditadura da mídia que impõe desde padrões de consumo até padrões estéticos, presentes também nos produtos destinados ao público infantil. A mídia tornou-se tão poderosa ao transmitir verdades hegemônicas, que muitas vezes não são questionadas, são tomadas como certezas e são incorporadas ao nosso discurso de senso-comum.73

A mídia mostra, dia-a-dia, da mesma forma, a progressiva participação de

crianças e jovens no crime organizado, no tráfico, enquanto poderiam estar nas

escolas ou ingressando no trabalho. No entanto, essa abordagem midiática faz, m

disso, muitas vezes, uma fantasia, que tornando-a atrativa aos que não encontram

outros caminhos. Apresenta-o como um meio violento, mas fácil, quase heróico de

rebeldia. É a violência como posição social, aquisição de respeito e de identidade

ligada ao sonho de ser alguém ou, simplesmente, igual. Isso faz com que o limite

entre delito e brincadeira se dilua. A televisão afeta o comportamento das crianças,

a intensidade de qualquer outra emoção pode ser afetada por essa excitação,

possibilitando que a experiência televisiva encoraje certos comportamentos, como

os casos de violência, o uso abusivo de álcool e outros tipos de drogas. A

influência da sociedade de consumo, através dos meios de comunicação, em um

País conhecido pelas diferenças sociais, é decisiva na formação de valores

72 Ibidem, idem. p. 6. 73 ibidem, idem. p. 10.

50

dessas crianças. Muitas vezes, de acordo com Andréia Mendes e Patrícia

Kriegger, tais valores afirmam-se:

indo na contramão dos direitos sociais de cidadania, ou menosprezando laços afetivos. Um dos principais canais que a sociedade de consumo utiliza para seduzir à compra é a televisão. Através desta se apresentam duelos entre o bem e o mal, o belo e o feio, o “legal” e o “não-legal”. A imposição de padrões de consumo e o uso de propaganda como veículo de formação de consciências, associando status à determinada marca, impõem um debate urgente.

A reversão desse quadro, porém, a possibilidade de a criança não

enxergar, como acontece freqüentemente, o rumo da criminalidade como uma

saída para sua situação, como a busca pela igualdade, direito de consumo, só

poderia acontecer a partir de políticas sociais e de investimento para uma

perspectiva de inclusão e inserção na sociedade por outro caminho. Todavia, isso

parece estar muito distante da atual realidade, tanto para combater a violência

causada pela diferença quanto pela física e psicológica, pois todas sempre estão

relacionadas.

De acordo com Maria Amélia de Azevedo, a violência contra a criança

pode ser compreendida como qualquer ação ou omissão que provoque danos,

lesões ou transtornos a seu desenvolvimento. É nítida, no Brasil, a elevada

freqüência com que a violência ocorre no âmbito da família e das pessoas

próximas às crianças e aos adolescentes. Trata-se de agressões severas que

envolvem espancamento, humilhações verbais e até ameaças com arma de fogo

ou faca. Cerca de metade das crianças e adolescentes convivem com uma forte

violência psicológica direta ou indiretamente, seja através de experiência própria

ou pelo que assistem diariamente pela TV ou em sua própria comunidade. Muitos

adolescentes, também, passam por experiências sexuais traumáticas ou

perturbadoras, ou já testemunharam a mesma violência sofrida por algum membro

da família:

51

Ficou constatado que adolescentes que sofreram maus-tratos familiares sofrem mais episódios de violência na escola, vivenciam mais agressões na comunidade e transgridem mais as normas sociais, fechando assim um círculo de violência. Eles também têm menos apoio social, menor capacidade de resiliência e uma baixíssima auto-estima. A violência psicológica, por sua vez, mostrou-se mais presente entre aqueles com menos resiliência – capacidade de seguir em frente superando as dificuldades impostas pela vida, essencial para o desenvolvimento pessoal e para uma boa qualidade de vida do indivíduo consigo mesmo e com a sociedade. Percebe-se, assim, como essa forma de violência pouco valorizada pela sociedade é capaz de fragilizar a posição do adolescente e dos futuros adultos no mundo.74

No entanto, o mais curioso e que podemos não perceber no Brasil

contemporâneo é que cada vez mais essas crianças, independente de seus

padrões socioeconômicos, estão igualmente submetidas à violência familiar

praticada por pais e irmãos. Isso reforça a introjeção da violência nas relações

familiares como estratégias de comunicação e resolução de conflitos histórica e

culturalmente arraigadas na sociedade. A maior parte dos casos de violência

contra a criança acontece no espaço em que ela costuma passar mais tempo: a

casa. A família, entendida como um dos primeiros ambientes protetores da criança,

pode apresentar, em seu interior, relações não protetoras, causadas por

complexos fatores econômicos e culturais. Essas relações não protetoras no

ambiente familiar podem ser classificadas pelo menos de três formas:

• As práticas educacionais que fazem uso de violência física (castigo, palmadas, surras etc.).

• Os acidentes, as negligências, a síndrome do bebê sacudido e os abusos, incluindo o sexual.

• As ações ou omissões que levam à morte.75

74 AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. de Azevedo. “Um cenário em (des)construção”. In: UNICEF – Direitos negados: a violência contra crianças e o adolescente no Brasil. Brasília, 2005. pp. 15-27. p. 18. 75 Pequenas vítimas. In: UNICEF – O direito à sobrevivência e ao desenvolvimento. Brasília, 2006. pp. 21-40. p. 21.

52

Muitas vezes são esses os fatores que fazem a criança se afastar do

convívio da família, sujeitando-a a outras violências nas ruas ou em abrigos como

procurar, de forma desamparada, a vida do crime e das drogas. No Brasil,

segundo os estudos da UNICEF de 2006, só é possível conhecer números oficiais

de violência por meio de registros de morbimortalidade, porém a denúncia precisa

chegar até o setor de saúde ou de segurança pública, o que nem sempre

acontece.

É nesse ponto que se revela um dos maiores problemas de registro para a violência ocorrida em espaços privados: os casos não comunicados à área de saúde ou de segurança pública ficam de fora das estatísticas oficiais. Por ocorrer em geral em espaços privados, a violência pode ficar encoberta por meses ou mesmo anos até ser denunciada. Há um fator que colabora para que não seja notificada: a crença, difundida entre alguns adultos responsáveis por cuidados com a criança, de que tapas, castigos e outras violências físicas fazem parte da maneira de educá-la. Além disso, crianças pequenas não têm como denunciar a violência que sofrem, e, apesar dos avanços no reconhecimento legal de sua cidadania, sua palavra, em geral, é considerada fantasia.76

Boa parte dos casos de violência contra a criança não resulta,

necessariamente, em óbito, mas tem forte impacto na saúde e no

desenvolvimento infantil. De maneira geral as crianças pequenas estão mais

vulneráveis às agressões que acontecem no âmbito doméstico – tanto as fatais

como as não fatais. Entre as violências não fatais que ocorrem no âmbito

doméstico, destacam-se, além da violência física, a negligência, os abusos

sexuais e a violência psicológica.

O Brasil contemporâneo é um universo em que alguns têm muitos e

outros têm pouco, mas todos são atingidos pela rajada de informações e pelo

fantástico mundo das mercadorias. As crianças fazem parte disso, tendo um papel

considerável neste meio tanto como consumidores quanto como aqueles que

76 Idem, p. 22.

53

apenas observam esse mundo maravilhoso sem poder tocá-lo: talvez a maior de

todas as violências.

Isso porque consumir, hoje, para Jean Baudrillard, liga-se diretamente à

noção de felicidade, que nasce não da inclinação natural de cada indivíduo a

realizar seus sonhos, mas do mito da igualdade. A mercadoria, de acordo com o

filósofo francês, tem como principal objetivo o seu significado, não sua real

utilidade, ou seja, a lógica do consumo define-se como manipulação de signos. O

sujeito é o que consome ou faz parte de um determinado grupo devido àquilo que

consome:

nunca se consome um objeto em si (no seu valor de uso) – os objetos (no sentido lato) manipulam-se sempre como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no próprio grupo tomado como referência ideal quer demarcando-o do respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior.77

A vida em torno do consumo é orientada pela sedução, pelo desejo

sempre crescente e volátil. Uma sociedade de consumidores se baseia na

comparação universal, no jogo de alteridade, e por isso é dolorosa. Baudrillard

considera, por exemplo, o corpo como o mais belo e precioso objeto de consumo,

e diz que “administra-se e regula-se o corpo como patrimônio; manipula-se como

um dos múltiplos significantes de estatuto social”78. É o que o sociólogo polonês

Zigmunt Bauman, autor de Modernidade líquida, nos mostra, ao dizer que hoje: “a

vida desejada tende a ser a vida ‘vista na TV’. A vida na telinha diminui e tira o

charme da vida vivida: é a vida vivida que parece irreal, e continuará a parecer

irreal enquanto não for remodelada na forma de imagens que possam aparecer na

tela”79. E essa mesma fórmula se aplica ao Brasil, onde à problemática se agrava

77 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2003. p. 60. 78 Ibidem, p. 139. 79 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 99.

54

pela falta de poder aquisitivo, o que exclui uma gigantesca parcela da população

desse universo das maravilhas das mercadorias e lugares onde ela não tem

acesso, como shoppings, etc.

Se para o adulto é difícil conviver com esse tipo de diferença, com todos

os aspectos ligados ao consumo, por exemplo, para uma criança a questão

parece ser mais frágil ainda. Não é a toa que hoje encontramos tantos estudos, de

diversas áreas e em diversos países, ligados aos problemas da criança, como a

publicação de Stress e Violência na Criança e no Jovem80, organização de João

Gomes-Pedro a partir do simpósio internacional homônimo ocorrido em Portugal,

em 1999. Ou, do mesmo autor, A criança e a família do século XXI81, em que a

preocupação com a formação de um senso moral na criança e, nele, o seu sentido

de coerência está como uma dos principais desafios na nossa

contemporaneidade.

No Brasil, além dos estudos já citados, também é relevante referir o

conjunto de trabalhos organizado por Sônia Dalpiaz, Roselene Gurski e Marcelo

Spalding, intitulado Cenas da infância atual: a família, a escola e a clínica82. A obra

discute as condições da infância contemporânea sob o prisma do Direito, da

Psicologia, da Educação e da Psiquiatria. Apresenta os paradoxos do laço social

contemporâneo ligado às crianças, que, mesmo vistas como alvo prioritário de

proteção, estão contraditoriamente expostas ao individualismo e ao consumismo

de nosso tempo. Títulos, também, como Infância e violência no Brasil, de Hebe

Gonçalves, são cada vez mais comuns, o que nos indica a assustadora situação

nacional relacionada a esse tipo de assunto.

Percebemos, por fim, que a infância é muito mais heterogênea e muito

mais complexa do que muitas vezes imaginamos, e que estudá-la é pensar,

constantemente, em abordagens interdisciplinares, levando em conta os aspectos

80 Cf.: GOMES-PEDRO, João. (org.). Stress e Violência na Criança e no Jovem. Lisboa: Faculdade de Medicina. 1999. 81 Cf.: _____________. A criança e a família do século XXI. Lisboa: Dinalivro, 2005. 82 Cf.: DALPIAZ, Sônia; GURSKI, Roselene, SPALDING, Marcelo. Cenas da infância atual: a família, a escola e a clínica. Ijuí: UNIJUI, 2006.

55

culturais, políticos, econômicos e sociais, ou seja, tudo aquilo que movimenta um

determinado momento histórico.

Para pensarmos, no entanto, a criança na narrativa infantil do século XXI,

como ela está sendo representada nas mais recentes produções, nosso objetivo

aqui, devemos compreender o fato literário como uma representação dos

discursos sociais existentes em um determinado momento histórico. Isso porque a

autor da criação literária, agindo muitas vezes com o intuito de intervir nos

acontecimentos sociais através de respostas às questões com que se depara, é

um sujeito coletivo: o que se tem, pois, é uma forte relação entre o conteúdo da

obra literária e o conteúdo da consciência coletiva, ou seja, as maneiras de pensar

e de se comportar dos homens na vida cotidiana, o que nos abrindo grande

possibilidade de estudo desse material artístico para a compreensão da própria

realidade.

Nesse contexto, iremos analisar as personagens crianças nas obras

Valentina, de Márcio Vassallo, O cachecol, de Lia Zatz, e Ponto de vista, de Ana

Maria Machado, observando seus caracteres físicos (como idade e sexo) e

psicológicos, assim como a estrutura das relações familiares e sociais. Só então,

poderemos traçar alguns apontamentos significativos entre essas obras,

relacionando-as, para melhor compreendê-las.

.

56

2 A CRIANÇA NAS OBRAS LITERÁRIAS

2.1 O reino de VALENTINA

Crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Mas nem todas as respostas cabem num adulto.

Arnaldo Antunes

A primeira obra que analisamos trata-se de Valentina 1 , de Márcio

Vassallo, publicada em 2007. Autor de inúmeras obras infantis, como A princesa

Tiana e o sapo Gazé, O príncipe sem sonhos, A fada afilhada e O menino da

chuva no cabelo, Vassallo nasceu em 1967, no Rio. Jornalista, realiza palestras e

oficinas para crianças, pais e professores de todas as regiões do Brasil.

O autor é conhecido por combinar a temática urbana aos arquétipos dos

contos de fadas em histórias de personagens comuns e cotidianas, como uma

princesa que, depois de transformada em sapa, passa a viver feliz em um brejo

1 VASSALLO, Márcio. Valentina. São Paulo: Global 2007. Todos os fragmentos citados desta obra aparecerão, no decorrer do capítulo, com indicação, apenas, da página de que foram retirados.

57

disfarçado de castelo em Copacabana, ou um sapo “Don Juan” que se vangloria

em fazer as lagartixas subirem pelas paredes, ou um príncipe mimado que não

consegue sonhar porque ganha tudo dos pais extremamente consumistas, ou uma

fada madrinha, que, mesmo carente de colo e sem ter ninguém que cuide dela do

jeito que imagina, está sempre disponível para ouvir os problemas alheios pelo

seu celular.

A narrativa de Valentina não foge à temática. Apresenta como

personagem principal uma menina de baixa renda, filha única de um casal

trabalhador. A contextualização da obra abrange aspectos culturais e sociais de

nossa atual sociedade. A protagonista, Valentina, e sua família moram na zona

urbana, em uma favela do Rio de Janeiro, cenário já conhecido na arte

contemporânea de nosso país, tanto na literatura quanto na música e no cinema,

com a disseminação do Rap, Funk e dos famosos e populares Cidade de Deus e

Tropa de Elite. As favelas são espaços que surgem no Rio de Janeiro nas

primeiras décadas do século XX para abrigar os conjuntos populacionais, produtos

de ocupação ilegal, geralmente nas encostas da cidade, próximos aos bairros de

classe média, em que o tráfico, a partir da década de 80, de acordo com Bernardo

Sorj:

se transforma na principal instituição com poder na favela, diante da qual muitas das lideranças comunitárias se atrofiaram, e à qual se subordinaram ou se associaram, sob o risco de serem fuziladas, como aconteceu com dezenas e dezenas delas que questionaram o poder do tráfico.2

Valentina é uma menina que pensa ser uma princesa, acreditando que

seus pais são reis e sua casa um castelo “na beira do longe, lá depois do bem

alto” (p. 4), numa curiosa relação entre fantasia e realidade, um dos pontos mais

instigantes da obra. Com isso, faz do mundo fantástico não mais uma solução

2 SORJ, Bernardo. [email protected]: a luta contra a desigualdade na sociedade da informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 97.

58

para os seus problemas apenas internos, para resolução de conflitos

psicanalíticos, mas para uma possibilidade de fuga da realidade hostil, como

aponta Kramer, quando se refere às condições precárias em que a criança

brasileira contemporânea está inserida. O mundo dos contos de fadas, o universo

dos príncipes e princesas, dos castelos e coroas, aparece, pois, como válvula de

escape ou até mesmo um mecanismo de defesa para um cotidiano em que a

violenta diferença social torna-se, dia-a-dia, mais evidente.

Segundo Ivete Manetzeder Keil, antropóloga e consultora do UNICEFE,

em seu artigo “Diferença política e violência urbana: existe uma relação?”, das

inúmeras formas de violência existentes hoje, a desigualdade social brasileira é

uma de suas formas mais áspera, o que desencadeia as demais práticas

violentas. Isso justifica os tiroteios constantes existentes no morro em que

Valentina mora, tiros que a menina acredita serem baforadas de dragões: “E

mesmo quando os dragões do lugar apavoravam todo mundo e cuspiam fogo e

barulho para todos os lados(...) (p.10). A violência é presenciada e sentida por

pessoas que vivem à margem de uma sociedade desprotegida e que conforme

Bernardo Sorj:

é múltipla e tem como fonte principal o abandono secular ou a presença mínima do Estado em regiões onde se concentram os pobres e excluídos. Essa violência é particularmente sentida pelos moradores de favelas nas grandes cidades, dominadas por quadrilhas de traficantes de drogas em guerra (...).3

O narcotráfico é a violência como única forma de respeitabilidade dos

excluídos, fazendo com que jovens e crianças, mesmo não envolvidos diretamente

com o crime, convivam com essa realidade assustadora, como é o caso de nossa

protagonista, utilizando-se mais uma vez da fantasia como estratégia de escapar

do amedrontador real.

3 SORJ, Bernardo. A Nova Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 34.

59

A fantasia como forma de fuga de Valentina, porém, não está somente na

visão que a menina tem de si e de seus pais, considerados, como já dito, rei e

rainha, mas na transformação do próprio espaço como um reino e em seu barraco,

como um castelo: essa é uma solução encontrada pela criança para lidar com

todos os temas complexos e de difícil enfrentamento, como nos apontou Luiz

Bazílio e Sônia Kramer, causados pelos atuais paradoxos ligados a diferença,

como o próprio local onde Valentina mora. Isso porque, de acordo com Ivete

Manetzeder, o movimento global da sociedade brasileira e seu novo repertório de

violência tem como principais dificuldades. “o desemprego, a desigualdade, a

disposição geográfica, a estigmatização e a descriminação, isto é, causas

econômicas, sociais e culturais”4.

A narrativa não apresenta marcas temporais nítidas que precisem a idade

da protagonista, mas sua descrição física, com pernas compridas, orelhas de

abano e a existência de uns óculos de grau está clara. Indica uma criança comum,

simples e sem a beleza idealizada das princesas que encontramos nas fábulas

utilizadas por ela mesma, possibilitando a identificação total do leitor: um ser

humano comum que vive em uma realidade diferente das histórias clássicas. E

esse, como aponta Nelly Novaes Coelho e concordam outros estudiosos

contemporâneos que se dedicam ao estudo da figura de ficção, é um dos pontos

mais relevantes na construção de uma personagem: a possibilidade de o leitor se

ver representado no texto, em um lugar privilegiado. De acordo com Candido, o

indivíduo pode experimentar, através de personagens variadas, a plenitude de sua

condição, fazendo com que elas cumpram uma das funções básicas da obra de

arte, a de simbolizar o real:

Porque só quem chegava perto de Valentina é que via que a princesa tinha orelha de abano para escutar cochicho de nuvem e perna comprida para pular pensamento. O riso de Valentina

4 ibidem, p. 34.

60

esparramava pelo rosto que nem gato espreguiçado. E ela também tinha uns óculos espichados, que ficavam ali, na frente dos olhos, feito guarda-sóis transparentes. (p. 8)

Já que entendemos que a ilustração de uma obra infantil não é apenas

uma réplica do que está expresso no texto, mas, um elemento que constrói a

própria narrativa, o espaço e suas personagens, podemos ter uma melhor idéia de

Valentina no desenho de Suppa, ilustradora da obra. Só a partir dos traços da

artista é que conhecemos, em Valentina, sua coroa de jornal e sua saia de

plástico, o que dá a possibilidade de compreender melhor a condição social de

sua família e as particularidades composicionais da protagonista que não são

destacadas no discurso do narrador. Em Valentina, assim como em toda obra bem

elaborada dedicada ao pequeno leitor, a ilustração é peça chave para

examinarmos a criança representada nesta narrativa infantil brasileira do século

XXI, como podemos notar abaixo:

A imagem também nos mostra que Valentina, além de magra, é uma

menina mulata, pois seu pai é um homem branco e sua mãe de uma mulher

negra, o que remete a atuais discussões dentro da nossa sociedade envolvendo

61

preconceito racial e todos os problemas contemporâneos referentes à cor que

estão, hoje, em evidência. Mais uma vez, falamos de diferenças: temas abordados

cada vez com mais afinco pelas teorias pós-coloniais e culturais, que lutam contra

os discursos hegemônicos e eurocêntricos que até agora são estruturas rígidas e

sustentam, por exemplo, o racismo contra o negro. Nada estranho de entender,

pois até a metade do século XX em nosso País determinadas políticas de

branqueamento foram casos explícitos. Um exemplo disso foi o decreto n. 7.967,

de 1945, assinado por Getúlio Vargas, que estimulava a imigração, afirmando:

"Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, a necessidade de preservar e

desenvolver na composição étnica da população, as características mais

convenientes de sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador

nacional".

Esses problemas, em pleno século XXI, estão efervescentes, e as

propostas de políticas raciais, a partir de todas as possibilidades que o

pensamento contemporâneo abre para discussão, voltam à tona, como as

questões das cotas em universidades. Sabemos que o componente racial é um

grande responsável pela desigualdade no nosso país:

Os dados estatísticos e os estudos sociais mostram claramente que os negros na sociedade brasileira se concentram nos setores mais desfavorecidos da população e quem são na prática descriminados no mercado de trabalho – seja no acesso ao emprego seja na remuneração –, no sistema judiciário e pela polícia.5

As figuras dos pais de Valentina ilustradas têm justamente esse papel:

pôr em evidência à criança tais discussões. Faz com que o leitor mirim entre em

contato com esses conflitos e com essa realidade através da menina: uma

personagem que, em sua construção, convive com isso. Mas tal característica só

pode ser percebida, novamente, através da ilustração, pois não há no texto 5 Ibidem, p. 22.

62

nenhuma referência étnica ao casal, o que torna mais uma vez inevitável e

indispensável a leitura da ilustração para a compreensão do todo da obra, como é

possível perceber na imagem que segue:

A presença do casal composto por um homem branco e uma mulher

negra não é gratuita na narrativa, mas um exemplo do pensamento

contemporâneo pós-estruturalista (e culturalista), que objetiva desconstruir a

imagem estruturada e cristalizada que o indivíduo atual ainda possa ter em

relação às dicotomias raciais. Valentina, em sua construção, aparece, assim,

como uma criança que convive naturalmente com isso, sem questionar qualquer

tipo de possibilidade racista. A obra coloca o leitor dentro dessa realidade,

mostrando a ele que não importa a cor ou a raça para se ter uma família feliz e

bem estruturada, com pais amorosos e preocupados com o bem-estar e

desenvolvimento do filho.

Também não podemos deixar de abordar o nome dado à menina, que

designa e sugere uma personagem forte e valente, pois, Valentina vem do latim

"Valentinus", e é a forma feminina de Valentim, que significa: valoroso, forte, com

saúde, saudável. Isso nos remete a necessidade de força que a criança ter para

enfrentar os dilemas do Brasil de hoje: um país que, de acordo com Sonia Kramer,

63

evidencia o desaparecimento da infância através da violência corriqueira contra as

crianças. E não podemos esquecer que essa violência não é apenas um ato físico,

mas muito voltado à agressividade de apresentar um mundo a que ela não tem

acesso, uma desigualdade que, de acordo com Bernardo Sorj:

é geralmente medida em termos da diferença de renda entre indivíduos ou famílias. Sem dúvida essa diferença é fundamental, pois mede o poder aquisitivo de bens e serviços oferecidos no mercado. Contudo, não reflete o acesso diferenciado a bens e serviços coletivos geralmente assegurados pelo Estado. Entre eles podemos indicar o acesso a água corrente, transporte público, eletricidade, telefone, esgoto, segurança, moradia, coleta de lixo, saúde e educação. Assim é infinita a distância no meio urbano moderno (...)6

Se na era pós-industrial, como afirmam os teóricos dedicados ao estudo

da condição da infância hoje, temos um possível fim para o “Era uma vez...”, o que

Valentina faz, com valentia, é lutar contra esse fim, e mais uma vez podemos

entender o uso da fantasia para isso. É a luta contra uma realidade, de acordo

com Gunter Axt, onde “os mendigos se empilham pelas calçadas e a violência

explode pelas ruas”, e o cidadão parece, “independentemente de seu matiz

partidário ou ideológico ou de sua posição socioeconômica, ser cada vez mais

tomado pela desesperança”7.

Essa diferença em que convive Valentina está expressa na obra de

inúmeras formas, como a construção geográfica: o longe, onde ela vive, é seu

próprio morro, longe de tudo; e o próprio Tudo, que não é nada além do conhecido

asfalto, onde está a classe média, os shoppings, as lojas e tudo aquilo que não faz

parte do universo de Valentina: o universo do consumo, desse outro mecanismo

de exclusão da nossa contemporaneidade. Tal lugar pode ser definido, segundo

6 Ibidem, p. 21. 7 AXT, Gunter. Raízes de um Brasil contemporâneo: entre a poliarquia e a desagregação. In: AXT, Gunter; SCHÜLER, Fernando. Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Artes e Ofício, 2006. p. 54.

64

Sorj, como “espaços físicos onde pessoas, bens e produtos podem circular

livremente”8.

O Longe é um lugar onde vivem aqueles que estão distante de todas as

maravilhas atuais, que estão longe desse mundo fabuloso de mercadorias

assistidas ao televisor: longe de Tudo. Mas Valentina, como uma protagonista que

de forma alguma manifesta um comportamento passivo, tem um sonho: conhecer

o Tudo de perto. Seus pais, numa atitude que se pode interpretar como uma

possível defesa em relação a essa diferença, com essa desigualdade,

desconversam-na muitas vezes, dizendo que lá as coisas são diferentes. Mas

somente devido à insistência da menina, é que os pais tomam a decisão de levá-la

a conhecer o Tudo:

Alias, foi num dia assim, olhando para o lá embaixo, na beira de outro longe, que Valentina viu o tal lugar que as outras pessoas chamavam de Tudo. E a princesa foi com os olhos e com os pés conhecer Tudo de perto.(p.12).

A rainha e o rei diziam para a filha que era perigoso descer do castelo sozinha , que lá embaixo tudo era bem diferente de onde eles vivam e por isso foram juntos.(p. 14).

É conhecendo o Tudo, que a personagem se depara com um universo

materialista, onde tem seu primeiro contato com o mundo consumista. Valentina,

por muitas vezes não encontrar respostas para suas perguntas e por viver tão

longe do Tudo, tem somente em sua imaginação como é esse espaço de que

todos falam. Mas surpreende-se ao chegar no famoso lugar, onde presencia um

cotidiano de consumismo em massa, onde todos querem as mesmas coisas o

tempo todo, e que tudo parece superficial, sem grandes sonhos:

Só que quando chegou lá pela primeira vez, Valentina achou que em Tudo as meninas eram todas iguais. Afinal, todas usavam as

8 SORJ, Bernardo. Op. cit. Nota 3, p. 44.

65

mesmas roupas, todas falavam do mesmo jeito, todas gostavam das mesmas cores, dos mesmos passeios, das mesmas pessoas, todas queriam as mesmas coisas o tempo todo.(p.14).

O mundo das mercadorias, como fica claro no trecho anterior, é o mundo

esse, onde todas as meninas são iguais, todas têm os mesmos gostos. A obra

mostra, assim, que a criança também é uma vítima do mundo fantástico do

consumo e das mercadorias, às vezes, como consumidora ativa, ou apenas, como

no caso de Valentina, observadora de um mundo que ela não pode tocar.

Durante toda a narrativa a personagem apresenta-se como um ser

dinâmico, questionador e ativo. Mas é depois de conhecer o Tudo, o lugar onde

estão todas as coisas, que a protagonista reafirma sua autoconsciência, não só da

sua condição social, mas também em relação com o mundo que ela mesma criou.

Valentina sabe, agora, mais do que nunca, que é uma menina comum, que mora

em uma favela, que seus pais precisam trabalhar para o sustento da família, que

seu castelo só é mais um barraco na imensidão de um morro qualquer do Rio de

Janeiro, como mostra mais uma vez a ilustração:

66

A menina tem consciência de que o longe onde ela vive é bem distante do

outro longe, o tal lugar que as pessoas chamam de Tudo, e que uma barreira

gigantesca a separa do Tudo, barreira não só espacial e geográfica, mas uma

barreira feita de todos os elementos de uma sociedade desigual. O Tudo

continuará sendo um lugar em que Valentina vai só para passear com seus pais,

mas do qual jamais fará parte realmente. O Tudo é o lugar dos bens, o acesso ao

mundo moderno:

A cidadania no Brasil continuará a ser mais uma utopia que um conceito descritivo se não se cumprirem certas condições de igualdade social, especialmente em termos de acesso a bens coletivos, como educação, emprego e previdência. São condições para a participação ativa no mundo moderno, de inserção produtiva na vida social e do sentimento de pertencimento a uma comunidade com destino compartilhado.9

A fuga de Valentina não está somente na criação de um reino, mas

também de uma nova identidade. Para defender-se dessa realidade assustadora,

a menina se fecha em uma individualidade, criando uma identidade nova, diferente

do que realmente ela é, uma a menina simples que acaba se assumindo como

uma princesa, como pode ser percebido pela voz do narrador, ao afirmar:

“Princesa ela já era onde quer que estivesse.”(p. 17). Essa outra identidade

internalizada pela menina lhe dá coragem, representa para ela um papel de

destaque no mundo em que está inserida. A partir de agora ela não é só mais uma

criança que mora no morro; agora ela faz parte de uma “família real”, e seu lugar

de princesa é fundamental.

Conforme alguns estudiosos da sociedade contemporânea, as velhas

identidades estão em declínio, fazendo com que novas surjam para substituí-las. A

identidade do sujeito está cada vez mais fragmentada, fazendo com que ele crie

9 Ibidem p.26.

67

outras, muitas vezes contraditórias e fantasiosas como é o caso de Valentina.

Bernardo Sorj afirma que um dos responsáveis pela construção de uma nova

identidade é o próprio consumismo da sociedade atual:

O consumo é um dos componentes centrais na construção de identidade, a partir de afinidades de ordem subjetiva e não mais de questões públicas. Na arena pública, por sua vez, ganham cada vez mais espaços as questões relacionadas à intimidade e subjetividade. Nessa transformação se conjugam vários processos, além da eclosão do consumo, como a transformação do lugar da mulher e das relações entre os sexos, a valorização da subjetividade, a individualização e sua contrapartida: uma crise permanente do ego num mundo em constante mudança e cheio de incertezas.10

Nesse sentido, a real identidade de Valentina torna-se esquecida por ela,

fazendo com que essa nova identidade possua, segundo Sorj, “um forte

componente de auto-ajuda (embora não assumido geralmente como tal), de

fortalecimento da auto-imagem e da capacidade individual de enfrentar o

mundo”11. Isso aponta para uma válvula de escape que a protagonista cria para

lutar por sua sobrevivência cotidiana. Agora ela não precisa mais se preocupar

com a segurança, a miséria, a pobreza, a falta de poder aquisitivo dos pais, a

solidão e principalmente com a competitividade, pois não precisa de mais nada, já

que é uma princesa: ”Valentina vivia dizendo que não queria ser alguém na vida.

Ela dizia que já era alguém e pronto, não precisava ser mais ninguém.”(p.7).

Com base em tudo que foi dito, o autor de Valentina, Márcio Vassallo,

quer mostrar que, de alguma maneira, a criança atual, representada na narrativa

por Valentina, mesmo estando inserida em uma realidade tão cruel, ainda possui

uma visão otimista do mundo. Tal visão é representada por uma realidade

fantasiosa que a menina cria como uma fuga da verdadeira e dura realidade.

10 Ibidem p.91. 11 Ibidem p. 91.

68

Mesmo vivendo em um cotidiano de medo e até mesmo de insegurança,

a protagonista faz da fantasia um exercício de sobrevivência, transforma a favela

em que vive em um reino. A fantasia, então, pode ser entendida ao mesmo tempo

como uma fuga e também como uma visão otimista. Tanto de uma forma quanto

da outra, trata-se de uma maneira de criticar o próprio homem contemporâneo,

que parece não ver mais esperança em nada e que, de certa forma, não se

encanta mais com nada:

À medida que diminui o ritmo do crescimento econômico e as grandes cidades se transformam de pólos de crescimento em massas poluídas e inseguras, que a modernização econômica e a democracia política não alteram a desigualdade social, que se mantêm o acesso diferenciado à justiça ou a apropriação privada dos recursos do Estado, o perigo maior é que a esperança comece a desaparecer do horizonte do povo. Porque a esperança é um valor da sociabilidade, talvez o principal, um valor constitutivo não do futuro mas do presente. E são os valores de uma sociedade que determinam o horizonte do suportável e do insuportável, do desejável e do indesejável.12

Ao contrário do homem contemporâneo, que é um sujeito desencantado,

egoísta e individualista, Valentina é uma personagem que faz com que o leitor

mirim - não alienado da realidade em que vive- , tente ver nessa realidade um

sentido. Algo de bom e de belo pode dar significado à vida. É o faz de conta

contemporâneo usado para conseguir suportar a realidade, pois, mesmo ela

descendo até o Tudo e entrando em contato com sua verdadeira realidade, não

desfaz a fantasia.

12 Ibidem p.137.

69

2.2 As duas pontas d’O CACHECOL

Quando uma criança brinca, joga e finge; está criando um outro mundo. Mais rico e mais belo e muito mais repleto de possibilidades e invenções do que o mundo onde, de fato, vive.

Marilena Chauí

A segunda obra que analisamos é O cachecol13, de Lia Zatz, publicada

em 2004. A autora é formada em filosofia e pós-graduada em Ciências Políticas.

Em 1987, começou a trabalhar na área da literatura infantil e infanto-juvenil, e em

1990 participou da organização do Grupo Pastel, que desenvolve atividades

variadas, como edição de livros, oficinas de literatura, leitura e produção de textos

para educadores e criação de uma livraria especializada em literatura infanto-

juvenil.

No decorrer de sua carreira literária, Lia Zatz recebeu vários prêmios,

como o de melhor autora de literatura infantil e o prêmio Monteiro Lobato,

promovido pela Academia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil. Escreveu

inúmeras obras que receberam o selo Altamente Recomendável da Fundação do

Nacional do livro Infantil e Juvenil como: João x Sultão, Surléa-Mãe Monstrinha,

Lasar Segall: o pintor de almas. Além da área de leitura e literatura infantil, Lia

integra a Organização Não Governamental Amankay Instituto de Estudos e

13 ZATZ, Lia. O cachecol. São Paulo: Biruta 2004. Todos os fragmentos citados desta obra aparecerão sem a referência ao número da página, pois o livro não a apresenta.

70

Pesquisas, na qual se dedica a projetos editoriais voltados para o bem-estar

social, como o Guia de Financiadores Support, o Guia do Presente Solidário e o

guia SAMPA $EM para Jovens, com informações sobre o que a cidade oferece de

gratuito ou de baixo custo nas áreas da cultura, educação, saúde, trabalho,

esportes etc.

A autora é conhecida por sua preocupação com respeito ao incentivo à

leitura como forma de ampliar o universo cultural de crianças e jovens de famílias

de baixa renda. Essa preocupação transparece em seus livros, alguns dirigidos a

crianças em fase de alfabetização e outros com temas como questões de gênero

e raça.

O cachecol não foge da temática, pois apresenta a história de uma

menina que morava no meio rural, mas que, por diversos motivos, muda-se para a

cidade, ou melhor, para um morro da movimentada cidade de São Paulo, onde

vai, junto com a avó, morar com um tio seu.Tal deslocamento de sair do campo

para viver na cidade é um comportamento bastante comum na sociedade

brasileira desde as primeiras décadas do século XX. Segundo o sociólogo

brasileiro Bernardo Sorj: “A fronteira perdeu a capacidade de absorver parte das

migrações rurais”14. Devido a essa situação, muitas famílias migraram e ainda

migram para os grandes centros urbanos em busca de emprego, de melhores

condições de vida e, automaticamente, de integração no meio de consumo, como

aponta Sorj:

Enquanto para os migrantes do campo a obtenção de um trabalho manual na cidade, que assegurasse o sustento básico, já significava uma ascensão social, para as novas gerações as expectativas são de integração no meio de consumo urbano.15

O deslocar-se do campo para a cidade, em nova experiência de vida, com

choque de culturas e informações, é conseqüência das múltiplas desigualdades

14 SORJ, Bernardo. Op. cit. Nota 3, p. 83. 15 Ibidem p. 82.

71

existentes na sociedade contemporânea, que, conforme Sorj, “exige que o

indivíduo tenha de deslocar-se para entrar em contato com outro indivíduo ou

local”16. Esse deslocamento permite, de alguma maneira, que os indivíduos criem

uma ilusão de que é possível compartilhar e usufruir os bens e mercadorias

existentes nos centros de consumo, como aquele para onde migraram a avó e a

neta.

Um fato de destaque na narrativa é a forma como a neta e a avó pensam,

sentem e percebem essa mudança. A diferença entre a cidade e o campo é vivida

tanto pela menina, quanto pela avó, provocando alterações em todo o decorrer da

obra. De um lado o contentamento da menina por estar na cidade, em um lugar

colorido, cheio de pessoas e novidades. De outro, está a avó, assustada e

preocupada com a nova realidade. Tais visões que ficam claras no trecho a seguir:

Visão da menina:

O dia em que eu cheguei na cidade, eu e minha avó, puxa! Eu não sabia nem pra onde olhar: era tanta cor, tanta letra, tanta luz acendendo e apagando, tanta coisa nova, tanta coisa bonita...

Visão da avó:

O dia em que eu cheguei na cidade, eu mais minha neta, cruz credo! Não gosto nem de lembrar: era tanto carro, tanta construção, tanto barulho, tanta sujeira, tanta gente mal encarada...

O cachecol, por ser uma obra infantil, dá destaque para sua ilustração, o

que é algo indispensável para o todo da narrativa. Por se tratar de um único livro,

com uma única história, mas contada de forma diferente, por dois olhares opostos,

é que as imagens são fundamentais. O ilustrador Inácio Zatz brinca com as cores

e as formas para diferenciar o olhar da personagem criança do olhar da

16 SORJ, Bernardo. Op. cit. Nota 2, p. 39.

72

personagem adulta. A ilustração possibilita uma melhor compreensão e

identificação do leitor mirim, que pode perceber a diferença do olhar da menina –

que vê tudo de maneira multicolor e alegre, com cores vivas e radiantes – do olhar

da personagem adulta, a avó – que vê tudo com cores escuras, frias e

rebuscadas.

As ilustrações constroem e participam do enredo da obra, pois toda a

história está na perspectiva de ambas as personagens. O livro não apresenta

numeração de páginas, e pode ser lido tanto do começo para o fim como do fim

para o começo; ou melhor, não há um lado que seja efetivamente o começo ou o

fim, e é através das imagens que o leitor mirim acompanha a percepção da

menina e da sua avó. Ele é convidado a participar e a distinguir a visão de ambas

e acrescentar sentido à interpretação que cada uma das personagens tem do

momento que está vivendo. As imagens em O cachecol relatam uma visão

paralela de um mesmo lugar, uma mesma situação, um mesmo mundo, só que

vistos de forma diferente:

Visão da cidade pela menina

73

É possível notar a distância entre a percepção da menina e da sua avó

em relação à situação, ao lugar novo e desconhecido por ambas. A menina

acredita que a avó está sentindo a mesma coisa que ela. Entusiasmada com a

vida na cidade, a criança pensa que o mesmo acontece com sua avó, essa,

assustada com o barulho e com o movimento, pensa que a neta está sofrendo

como ela: “Minha avó virava prum lado, depois pro outro, acho que ela tava boba

que nem eu, querendo ver tudo de uma vez. Por mim eu ficava ali só olhando,

esquecida da vida.”

A posição da menina perante os fatos garante o olhar positivo e

entusiasmado que, segundo Ernâni Lampert, é uma atitude que deve fazer parte

do sujeito contemporâneo, para garantir seu bem estar na sociedade atual:

um sujeito que se desacomode, estabeleça um equilíbrio corpo e alma, dose o prazer com a sabedoria, aprenda a trabalhar as perdas e as incertezas. Um sujeito capaz de se reconciliar consigo mesmo, aceitar seus próprios limites, ser tolerante consigo mesmo. Um ser que saiba fazer o outro melhor e mais

Visão da cidade pela avó

74

feliz. [...] Um sujeito capaz de ser humilde, de silenciar, de encontrar sentido nas coisas [...]. 17

Mas tais características citadas por Lampert só aparecem na

personagem criança, que ainda vê esperança nas coisas. Enquanto isso, a avó,

que representa o adulto dentro da narrativa, mostra atitudes típicas da maioria dos

brasileiros contemporâneos, que vêem o futuro como algo incerto e sem grandes

ilusões. Ela tenta adivinhar o que a neta está sentindo: “A menina segurava firme

na minha mão, acho que tava morrendo de medo, que nem eu. Se eu pudesse,

voltaria pro sítio na mesma hora”.

A obra segue com a menina descrevendo tudo o que vê, todas as coisas

que despertam sua atenção: as luzes, os letreiros e os outros morros ao seu

redor. Com um olhar deslumbrado, segue rumo até casa onde o tio mora: “Eu tava

adorando, ia andando e olhando pra cima. Lendo tudo que é letra que tava escrita

em todo lugar”. Já o olhar da avó representa claramente o olhar pessimista e

negativo do adulto, como é possível perceber no seguinte trecho “Eu queria sair

daquele lugar o mais rápido possível. Mas, e pra onde é que eu ia? Chega no

centro e pede informação, meu filho tinha dito. E alguém sabia? Tinha uns que

nem respondia: gente mais sem educação!”.

O espaço é algo marcante na obra. Toda a narrativa acontece no morro. A

rotina da personagem criança acontece nesse novo lugar. O morro é para a

menina um lugar de novidades e descobertas, completamente o oposto do sítio

onde morava com sua avó. O cenário onde ocorre a narrativa é um espaço

urbano, lugar em que os costumes e hábitos são conhecidos pelo leitor mirim por

intermédio da televisão. Não é mais o cenário mágico e encantado, como o de

muitas obras destinadas à criança, mas um cenário em que a realidade, as

17 LAMPERT, Ernâni. Pós-modernidade e educação. In.: LAMPERT, Renâni. (Org.) Pós-modernidade e conhecimento: educação, sociedade, ambiente e comportamento humano. Porto Alegre: Sulina, 2005. pp.11-48. p. 45.

75

diferenças sociais e culturais e os conflitos são reais. A obra é realista, e, segundo

as idéias de Lajolo e Zilbermam (1986) podemos considerá-la como um protesto,

uma narrativa que tem como objetivo não omitir problemas e crises da sociedade

brasileira contemporânea, mas fazer uma crítica à realidade social. A realidade do

êxodo rural, a história de uma menina que precisou deixar seu lugar de origem, o

campo, para se adaptar e se ressocializar em lugar novo e diferente.

A sociabilidade da menina, que inicialmente é limitada à convivência com

avó, passa a se ampliar à medida em que ela começa a ter contato com os

moradores do morro e seus diferentes costumes. Sorj afirma: “O ser humano se

relaciona com o mundo através da cultura (isto é, de símbolos abstratos), que

determina a forma de perceber, compreender, interpretar e avaliar a experiência

transmitida pelos sentidos”18. É devido às diferenças culturais que a integração

entre a menina e as demais crianças não acontece de forma fácil, como pode ser

percebido neste fragmento: “Logo, logo eu já tava procurando fazer amizade com

as outras crianças. Ah, não foi fácil, não. Elas riam de mim”.

O contraste aparece também no contato com o universo das mercadorias,

o qual a personagem desconhece, pois nunca fez parte dele. O mundo da

tecnologia, dos shoppings e do consumismo em massa está presente na narrativa.

O choque cultural entre a cidade e o campo está no dia-a-dia da menina, que aos

poucos conquista seu espaço, mostrando seus conhecimentos e o valor que dá a

suas origens e às suas coisas de criança:

Elas riam de mim. Era porque eu falava com um r carregado. Era porque eu nunca tinha visto elevador, mêtro, revistinha, tênis de marca, shopping center. Não demorou muito, elas perceberam que eu era tão sabida quanto elas.

Eu sabia andar a cavalo, tirar leite de vaca, fazer queijo, pescar. Sabia fazer remédio de planta pra tudo quanto é doença: lombriga, febre, mau-olhado.

18 SORJ, Bernardo. Op. cit. Nota 3, p. 40.

76

O mundo infantil é também representado pelas brincadeiras de criança

existentes na obra, pois há referências típicas do universo infantil. As brincadeiras

voltadas para o real estão de acordo com o espaço e o ambiente vivenciado pelas

crianças, como podemos notar abaixo:

Na frente de cada casa que a gente passava, eu via criança. Numa tinha três meninas, assim, bem do meu tamanho, brincando de boneca; noutra, tinha dois garotos preparando uma pipa pra soltar; numa terceira, uma menina tavam enchendo o pneu da bicicleta. Na mesma hora, eu já sabia que ia me divertir bastante ali.

A obra não traz nenhuma referência quanto ao tipo físico, nome e idade

da personagem, destacando apenas que a menina já está crescendo e precisa ir

para a escola. Apresenta apenas algumas de suas características psicológicas,

como a alegria, simpatia e curiosidade. A personagem criança é uma das

narradora do texto, característica que lhe dá mais liberdade na narrativa e um

papel de destaque dentro da obra. A voz da menina aparece como algo importante

na construção da história, da característica apontada por Regina Zilberman (1986)

como diferenciadora das personagens encantadas dos contos de fada. Zilberman

afirma que as protagonistas atuais passam a ser mais realistas:

As jovens que, daqui pra frente, passam para o primeiro plano, não têm qualquer atributo mágico, não dispõem de auxiliares capazes de ações sobrenaturais, e vivem a mesma realidade cotidiana e problemática experimentada pelo leitor. Seu mundo é, digamos, “normal”, igual ao nosso, em que os bichos não falam, mortos não ressuscitam, príncipes não aparecem subitamente para mudar o curso da existência. No entanto, elas são insubmissas e ensinam amigos ou companheiros a atuar de maneira diferente, encontrando, assim, alternativas de vida ou comportamento, assim, alternativas de vida ou comportamento que podem torná-los mais

77

felizes ou, pelo menos, mais conscientes do que acontece em volta de si.19

A personagem de O cachecol tem consciência da situação que está

vivendo, e das coisas que acontecem à sua volta, sabe que tudo o que vê e o que

vive é a pura realidade, mas procura encontrar formas e caminhos diferentes para

amenizar a vida nova na cidade para ser feliz.

A presença de personagens como a avó e o tio representa um diferente

tipo de família, característica bastante comum hoje na sociedade contemporânea,

onde a estrutura familiar não é mais somente composta pelo pai, mãe e os filhos,

como era ideal até o final do século XX: um modelo que, segundo Maria Luiza

Dias, ”conquistou na sociedade o espaço que conhecemos hoje, onde se

desenvolve a relação afetiva direta entre pais e filhos, de forma a garantir o

desenvolvimento dos mais novos, através do processo de educação”.20 Mas com

o tempo, a estrutura familiar, e focamos aqui a brasileira, sofre alterações. A

separação dos pais, a união desses com outras pessoas, a ausência do pai ou da

mãe, avós e avôs criando netos, casais sem filhos são características bem

marcantes na sociedade atual. E não é diferente no caso da personagem, que é

criada pela avó, sem haver na obra nenhuma referência aos pais e irmãos da

menina. Tudo o que ela tem é sua avó e seu tio. Tal situação coloca o leitor mirim

diante de uma possibilidade que muitas vezes pode ser a dele, e daí o importante

papel de troca de experiência que a literatura infantil, como afirmam os teóricos,

que é de promover a identificação. Mostra também que, mesmo com ausência dos

pais, a família continua encarregada da formação da criança, oferecendo-lhe bens

morais e culturais, contribuindo para a construção do indivíduo.

19 ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetivar, 2005. p. 82-83. 20 DIAS, Maria Luiza. Vivendo em família: relação de afeto e conflito. Rio de Janeiro: Grall, 1992. p. 57.

78

A curiosidade e o olhar positivo, portanto, é uma característica da

personagem criança em O cachecol. A criança representada na obra é um ser

inteligente, pensante, enterado dos fatos e da realidade que vive, procurando dar

um sentido mais otimista para a vida e para o espaço de que agora ela faz parte:

Visão da menina:

De repente eu vi, ali, igualzinho meu tio falou, pendurada em cima do morro, cor de terra, com janela e porta verde, um coqueiro de um lado, uma primavera do outro!

A casa do meu tio, que linda! O Juca veio correndo receber a gente, fazendo o maior barulhão. Era um cachorro preto e grande, com cara de simpático, como eu sempre quis ter.

Visão da avó:

De repente a menina gritou: ó lá, a casa do tio! Eu olhei pro céu e agradeci, só podia ser a mão de Deus que tinha me guiado. Mas, logo pensei: o que esse meu filho tem na cabeça pra morar assim pendurado em cima do morro?

E precisava ter um cachorro com cara de assassino que só faltou devorar eu e minha neta quando a gente chegou? Precisava?

Visão da favela pela menina Visão da favela pela avó

79

A criança sempre foi um ser criativo, capaz de se adaptar às mais

variadas situações, capaz de reinventar a realidade. A personagem representa a

criança, que agora usa essas armas justamente para escapar de uma

contemporaneidade desigual e injusta. A menina faz parte de uma geração que,

segundo Sorj, desenvolve estratégias para se adaptar ao novo:

As novas gerações dos diferentes grupos sociais se vêem na necessidade de desenvolver estratégias diferentes para adaptar-se aos novos tempos. Esses novos tempos são de valorização da capacidade de leitura e interpretação da informação, do trabalho em rede e da adaptabilidade à mudança constante nas formas de organização e tecnologias.21

No decorrer da história, o tio da personagem decide descer o morro e ir à

cidade comprar tinta para o seu trabalho. Convida a menina e sua avó. A

personagem criança, demonstra grande alegria, pois só havia descido o morro

uma única vez e não tinha boas recordações. Mas a avó não recebe bem o

convite do filho, mostrando resistência ao passeio:

A única vez que eu tinha descido o morro foi pra tomar vacina e foi horrível. Doeu e eu voltei chorando. Agora, a gente ia descer pra se divertir. Mas a avó não queria ir de jeito nenhum, e também não queria que eu fosse. Disse que tinha muita coisa pra fazer, mas o tio deu risada. Disse que ia acabar meu cachecol e ele riu mais ainda.

A resistência da avó em ir a cidade, citada no trecho acima, pode ser

entendida como um comportamento comum do indivíduo contemporâneo que vive

um momento de insegurança, conforme afirma Ivalina Porto:

21 SORJ, Bernardo. Op. cit. Nota 3, p. 78.

80

Viver no momento atual é um processo cercado de dúvidas, incertezas e medos quanto ao presente e ao futuro que se descortina. Uma ameaça constante envolve o ser humano e cada ação se configura numa luta pela sobrevivência diante dos problemas que afetam o país e o mundo. Apesar do crescimento tecnológico e do progresso em todos os campos do conhecimento, vivemos uma preocupante situação de crise mundial que afeta a qualidade de vida em todos os aspectos: da saúde, social, econômico, cultural, psicológico, político e outros.22

O objeto que dá título à obra, um cachecol, é um elemento importante. É

no cachecol que a avó faz para a neta (e nas cores que escolhe para confeccionar

o presente para a menina) que a personagem adulta deposita todas as suas

angústias, sentimentos e expectativas. Para ela, o objeto representa os anseios e

o medo do novo. As cores que utiliza são escuras, frias, “cor de burro quando

foge”. São cores que a avó, com seu olhar de adulto, vê em tudo que a cerca. O

cachecol representa a vida nova que se faz a cada instante. O qual, ela não larga

um só minuto, nem mesmo para passear no centro da cidade: “Minha avó topou e

foi levando o cachecol junto. [...] olhava a cidade só um pouquinho, o tempo de

uma piscada, e engatava logo dez pontos de tricô; aí dava mais uma olhada, mais

uma piscadinha e lá iam mais vinte pontos”.

22 PORTO, Ivalina. Ambiente e comportamento humano. In.: LAMPERT, Renâni. (Org.) Pós-modernidade e conhecimento: educação, sociedade, ambiente e comportamento humano. Porto Alegre: Sulina, 2005. pp.103-132. p. 104.

81

Já para a personagem criança, o cachecol tem o mesmo significado que

para a sua avó, o de uma vida nova, porém, cheia de curiosidades, alegrias e

cores: um olhar diferente, um olhar positivo e esperançoso perante a nova

situação encontrada por ela. Assim como a avó, a menina deposita nas cores o

seu olhar para a vida nova na cidade. Todos os seus pensamentos estão

expressos nas cores que ela mistura no cachecol que a avó está fazendo para ela,

como é possível perceber no seguinte trecho:

Mas a avó queria porque queria só lã de cor escura, uma mais triste que a outra. O cachecol não era pra mim? Por que eu não podia escolher aquelas cores bonitas? [...] E, enquanto ela ficava lá escolhendo aquelas lãs horrorosas [...] sem que a avó visse, escolhemos um monte de lã colorida.

Ao longo da história, ambas, neta e avó, constroem juntas o cachecol,

mas cada uma sob o seu ponto de vista e a sua percepção da realidade. Vemos,

porém que a personagem criança, com a sua criatividade, curiosidade e

positividade, pensa e experimenta o mundo de uma maneira completamente

diferente de sua avó:

[...] toda vez que a vó tava lá na janela, distraída, olhando a vista, eu chamava o tio, a gente desentocava as lãs coloridas, eu ia lá bem de mansinho e amarrava um pedaço de lã amarela cor do sol na lã preta; passava um tempinho, lá ia o tio e amarrava um pedaço de lã vermelha cor de morango na lã cinza. Agora, sim, o cachecol tava ficando lindo, com cara daquela avenida movimentada da cidade, cheia de cartazes e gente colorida.

O cachecol é o lugar onde as duas depositam os seus desejos, medos,

sonhos, alegrias e incertezas. Ele representa dentro da narrativa uma metáfora do

inconsciente infantil e adulto, onde as cores carregam toda uma simbologia

82

especial. É através do cachecol que a personagem e sua avó reorganizam suas

vidas e o desconhecido por ambas.

Percebemos na obra uma ausência direta de diálogo entre a personagem

criança e a personagem adulta, o que não indica a imposição do adulto sobre a

criança. Ambas, tanto a menina quanto avó, imaginam o que a outra está

pensando ou sentindo, mas não falam sobre seus sentimentos. Tal atitude revela

que, devido à idade, a situação de cada uma e a própria história de vida fazem

com que elas entendam e percebam as situações de modo muito diferente. Mas,

tendo dificuldade de comunicação é a personagem criança de O cachecol que

leva o leitor mirim a uma identificação, pois é como ele, um ser aberto ao novo e

com uma grande e admirável capacidade de adaptação que o leitor se encontra.

Segundo Sorj, essa é uma característica não só da criança, mas da cultura

brasileira, que precisa enfrentar um mundo em constante transformação:

A cultura brasileira, com sua enorme plasticidade e abertura ao novo, com sua confiança no futuro e sua religiosidade sincrética, têm uma capacidade enorme de adaptação, de improvisação criativa, de uma absorção de novos padrões culturais sem preocupação excessiva com a proteção de particularismos e nesse sentido está posicionada de modo privilegiado para enfrentar um mundo globalizante.23

Essa adaptação é nítida na protagonista da obra, uma menina aberta para

a vida, com um olhar da criança contemporânea, que é ainda capaz de se admirar

e de se impressionar com as coisas, com a realidade. Diferente do adulto que não

tem esperanças, o olhar da personagem criança aproxima-se do leitor mirim, pois

a visão da menina torna as coisas ao seu redor mais identificáveis ao leitor, que,

como a personagem, se admira, questiona: “Agora, eu, olhava tudinho. Era tanta

coisa pra olhar que eu não dava conta. E tanta coisa pra perguntar que o tio não

conseguia responder tudo. No meio de uma resposta, eu já tava fazendo outra

pergunta. E ele ria e ria... eu adoro a risada do tio...”

23 Ibidem p. 129.

83

Ao contrário da sua avó, que representa o adulto sem perspectiva,

desencantado e sem esperança, a criança em O cachecol, mesmo consciente da

mudança, de ter que sair do campo para morar em um lugar novo, com pessoas e

costumes diferentes, procura ver na dureza da nova realidade do morro de São

Paulo o lado bom e colorido da vida. Como os papéis se invertem nas cenas finais

de cada personagem, o livro mostra a criança leitora que a vida está sempre em

transformação.

2.3 As diferenças em PONTO DE VISTA

A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

Vinícius de Moraes

A terceira obra que examinamos é Ponto de vista 24 , de Ana Maria

Machado, publicada pela editora Melhoramentos em 2005. A autora nasceu no Rio

de Janeiro em dezembro de 1941. É também jornalista, professora e pintora.

Ana Maria Machado é a primeira e até agora a única autora de livros

infantis e juvenis a fazer parte da Academia Brasileira de Letras. Publicou 115

24 MACHADO, Ana Maria. Ponto de vista. São Paulo: Melhoramentos 2005. Todos os fragmentos citados desta obra aparecerão, no decorrer do capítulo, com indicação, apenas, da página de que foram retirados.

84

livros, com os quais ganhou prêmios no Brasil e no Exterior, como o”Hans

Christian Andersen”, entre outros. Autora de inúmeras obras infantis, como De

olho nas penas, Raul da ferrugem azul, Bisa Bia Bisa Bel, entre tantos outros, é

conhecida mundialmente por seu talento, incrível criatividade e também por levar

seus leitores a diversos questionamentos através de uma linguagem

emancipatória e lúdica.

A obra Ponto de vista apresenta a história de dois meninos nascidos no

Rio de Janeiro, que, apesar de viverem na mesma cidade, estão separados por

fatores espaciais, culturais e sociais, confirmando as palavras de Bernardo Sorj: “A

desigualdade social tem um forte componente espacial”.25

Como já discutimos, a ilustração em uma obra infantil não é só um

complemento na narrativa, mas um texto que tem como função estabelecer um

diálogo com o texto verbal. Assim, a ilustração realizada por Ziraldo em Ponto de

vista merece, também, relevante destaque. É através dela que o ilustrador

apresenta as personagens, o espaço e o tempo. Ziraldo faz um casamento

perfeito entre a palavra e a imagem. Mostra, através da relação entre elas, as

diferenças e as semelhanças entre aspectos da vida e da experiência das

personagens.

Tais diferenças começam pelo lugar onde cada um dos protagonistas

mora. Enquanto um dos meninos vive em uma favela, no morro, o outro habita um

bairro nobre do Rio:

Gente de toda cor e tamanho. Cada um com o seu jeito e em seu lugar. Um menino lá no alto. Do morro. Outro menino lá no alto. Do prédio. Cada menino, um cisco de nada. Um ponto à toa.

25 SORJ, Bernardo. Op. cit. Nota 3, p. 22.

85

Uma criança pequena, quase perdida, numa cidade partida. (p.5)

Devido às suas condições sociais, os protagonistas da narrativa “só se

viam de vista”.(p. 6). Ambos estão separados por prédios, carros, paisagens e,

principalmente, por fatores econômicos e sociais. São crianças que, de certa

forma, estão separadas e isoladas em seu espaço, em suas particularidades, o

que é bastante comum na sociedade contemporânea, onde, de acordo com Sorj,

“dominam valores particularistas, em boa medida associados, mas não redutíveis,

ao uso patrimonialista do poder, que se sustenta na profunda desigualdade

social”.26

A separação existente entre as personagens fica clara na ilustração

abaixo:

A condição social de cada uma das personagens também está

representada, na obra Ponto de vista, no ato de brincar, comum ao mundo

infantil, indiferente da classe social de que fazem parte os pequenos. Assim,

cada um brinca à sua maneira, com as suas diferenças, e, como podemos

observar, isolado dos demais:

26 Ibidem p.8.

86

Um soltava pipa no azul sem fim. O outro andava de bicicleta no jardim. Um saí para a escola. O outro entrava no carro. Um voltava e ia pra rua. O outro ficava no quarto.(p.8)

Mas, mesmo em classes e condições diferentes, ambas as personagens

conservam aspectos característicos da criança, como sonhar, acreditar em um

mundo melhor e imaginar a vida como algo bom e belo:

Os dois sonhavam sonhos, curtiam um som, imaginavam um mundo bom. Um na quadra, lá na altura, O outro na varanda da cobertura. Um e outro. Cada um bem isolado. Cada um para o seu lado. (p. 9)

O isolamento por parte das crianças não é uma opção, mas uma maneira

de viver diferentes realidades, considerando formas de ver o mundo “numa cidade

partida”.(p.5). São crianças separadas pela cultura, por uma sociedade moldada

pela diferença e pela globalização. De um lado, está um menino, filho de pais

ricos, que mora em um belo bairro, estuda em uma boa escola, possui brinquedos

de todos os tipos, mas é sozinho. Do outro lado, fica um menino pobre, de família

humilde, morador de favela, que estuda, brinca, solta pipa, mas também é

sozinho. Ambos estão separados pela desigualdade da sociedade brasileira

contemporânea, o que não significa que essa desigualdade nunca existiu, mas

que apenas cresce de forma assustadora. Conforme o teórico Bernardo Sorj, em

sua obra [email protected], a luta contra a desigualdade na sociedade da

informação e os estudos sobre a desigualdade social:

analisam a distância entre os setores mais ricos e mais pobres da população, tomando como principal indicador à renda dos indivíduos ou famílias. A renda individual, sem dúvida, constitui um critério importante de desigualdade social, mas é só uma

87

dimensão da mesma. Igualmente importante, e até certo ponto mais decisiva, é a desigual de distribuição de bens e serviços públicos. Não poder contar com proteção policial, não ter acesso à rede de eletricidade, água, telefone ou esgoto e não dispor, nas proximidades, de serviços médicos ou escolas geram conseqüências dramáticas sobre a qualidade de vida das pessoas. 27

Ana Maria Machado usa de criatividade para chamar a atenção do leitor

mirim para as diferenças, que estão presentes em todos os lugares e de diversas

formas. Para isso, vale-se de vários elementos. Não só os meninos, que vivem em

realidades opostas, aparecem como exemplo disso, mas um golfinho, mamífero

que habita os oceanos e mares de todo o mundo, e uma gaivota, ave costeira que

passa a maior parte do tempo sobrevoando a superfície da água de mares e rios,

aparecem na história. Assim como as personagens, esses animais estão

separados pela espécie, hábitos e habitat, vivendo em lugares completamente

opostos, um no mar e outro no céu, tendo em comum apenas o espaço

intermediário entre o mar e o céu. O momento em que o golfinho salta e a gaivota

faz o seu vôo rasante sobre a água é o instante em que ambos se encontram, e

então não há mais distância entre eles:

Saltando na água, brincavam os golfinhos. Pulavam em arco, giravam em mergulho, rodeavam canoa. Gritavam bem alto fazendo barulho. (p.12) Planando no ar, brincavam as gaivotas. Subiam no vento, zuniam em mergulho, Gritavam bem alto fazendo barulho.(p.13)

27 SORJ, Bernardo. Op. cit. Nota 2, p. 33.

88

Tais imagens verbais e visuais não aparecem de forma gratuita na

narrativa; o golfinho e a gaivota mostram ao pequeno leitor que, apesar das

diferenças de espécie e de habitat, e, por conseguinte, de raça e de classe social,

uma boa amizade pode acontecer, basta estar aberto para isso, como observamos

na bela ilustração abaixo:

A obra não traz no texto escrito referências às características físicas dos

protagonistas, nem menciona a idade das crianças, mas indica que ambas

freqüentam a escola, escutam música, jogam bola, características que nos levam

a supor que elas possuam idade entre 9 e 11 anos, o que a ilustração, como

vimos, também nos aponta.

As diferenças estão expressas na obra de inúmeras maneiras. Uma delas

é o próprio espaço. A relação entre a favela e o bairro, o morro e o prédio, tão

próximos, mas tão distantes ao mesmo tempo, pode ser percebida no seguinte

trecho:

Como pode um viver assim com o outro? Tão longe e tão perto? Tão distantes e tão ao lado? Como se fosse um deserto e não um bairro animado.

89

Será que isso muda um dia? (p.14) Às vezes os dois até se olhavam, mas mal se viam. Um vendia bala no sinal fechado. Distraído o outro, no carro parado. (p.15)

A relação de conflito entre favela e bairro é uma das características da

metrópole contemporânea; é a imagem dos excluídos e dos integrados, dos

pobres e dos ricos, da marginalidade cultural e social e da cultura de centro. São

realidades opostas e que pouco se comunicam. Sobre isso, Bernardo Sorj afirma:

“A realidade das favelas ainda é pouco conhecida. Do lado do ‘asfalto’, a

sociedade não faz idéia como vive o morador da favela”28. E o mesmo acontece

com o morador da favela, que vê nos bairros de classe média o lugar onde os

bens de consumo, as mercadorias e o universo materialista estão presentes e ele

só os conhece de longe, dele não participando. Segundo Sorj, tais condições se

dão devido à proximidade de ambos:

28 Ibidem p. 120

90

O grande marcador que caracteriza historicamente a singularidade das favelas é o fato de estarem originalmente coladas aos bairros de classe média. Se isso foi um fator de tensão constante para os setores mais ricos, pela dificuldade de isolamento espacial, ao mesmo tempo funcionou, junto com outro espaço democrático, a praia, como ponto de encontro entre a cultura popular e a intelectualidade, o que produziu alguns fenômenos mais da cultura brasileira – seja na música popular ou no carnaval – e, em geral, uma relação complexa de atração e repulsa, de conflito e de confraternização interclassista.29

O trecho de Sorj citado acima revela uma situação que se confirma em

Ponto de vista, ou seja, a história de crianças nascidas em uma cidade partida.

Como crianças conscientes de suas condições sociais e econômicas, as

personagens isoladas e distantes, separadas por uma barreira social, um dia se

conhecem em um lugar comum, a praia. Tal espaço anula a cor e a classe social,

porque o mar e o sol são iguais para todos. Há, pois, um espaço em que as

diferenças e os preconceitos são esquecidos e o horizonte é o mesmo:

Mas um dia os dois se viram. Quando olhavam o mesmo mar, bem na mesma direção. Mudaram o ponto de vista: Um viu o outro feito irmão. Um dia de maré cheia, De ressaca, onda batida, comendo a faixa de areia entre o mar e a avenida. (p.16)

E é assim, na beira da praia, que surge o primeiro diálogo e uma grande

amizade entre os protagonistas:

_ Hoje nem dá futebol – disse um, desapontado. _ Está bom é pra surfar – falou o outro, animado. _ Quer prancha? Posso emprestar. (p.16)

29 Ibidem p. 95

91

A amizade entre as personagens cresce no decorrer da obra. Os meninos

passam a trocar experiências, confidências, e as diferenças que os separam vão

aos poucos sendo superadas. Através do contato pessoal, as personagens têm a

possibilidade de diminuir a distância e fortalecer laços de amizade,

companheirismo e solidariedade. Segundo Sorj, esse contato, essa rede, é uma

característica da sociedade atual, que possibilita a troca e o contato entre as

pessoas:

A sociedade brasileira é gregária, fundada na inserção em redes e, por extensão, na valorização dos contatos pessoais. Em todas as sociedades modernas as redes sociais e os laços de solidariedade continuam sendo um elemento central nas possibilidades de inserção no mercado e na sociedade.30

Barreiras de todos os tipos são quebradas pelas personagens que, juntas,

enfrentam os dilemas e as dificuldades de uma sociedade desigual e que muitas

vezes estimula a individualidade e o isolamento. É através da amizade, da troca e

da convivência que os protagonistas superam preconceitos e diferenças, como

notamos no fragmento abaixo:

Isso foi só o começo. Um bom começo. Deram pra sempre se encontrar.(...) Um ensinava a soltar pipa, fazer rap, Um bom samba batucar. O outro a tocar guitarra. E na Internet navegar. (p.18)

30 SORJ, Bernardo. Op. cit. Nota 3, p. 31.

92

No brincar, no se divertir, no lúdico — característica própria da infância —

as personagens deixam de lado suas diferenças e passam a vivenciar uma

realidade mais alegre, prazerosa e solidária que antes desconheciam. Segundo o

psicanalista inglês Donald Woods Winnicott, “é somente no brincar que o

indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e descobrir seu eu. Além disso, é

somente no brincar que é possível a comunicação”31. A experiência é vivenciada

pelos protagonistas da obra Ponto de vista, que descobrem na beira da praia não

só o seu “eu”, mas principalmente o “outro”, com suas semelhanças e

particularidades:

Torciam pro mesmo time. Os dois dominavam a bola. E na pelada da praia fizeram uma dobradinha que foi mesmo de arrasar. Um era bom artilheiro. O outro dava cada passe que era só finalizar. (p. 19)

Para Bernard Sorj, é comum, na sociedade atual, ver crianças e jovens

que, devido às condições sociais, perdem-se no mundo das drogas, do tráfico ou

muitas vezes, buscam caminhos que julgam ser mais fáceis e rápidos para um

reconhecimento, um “status” e uma sobrevivência social:

A juventude nos bairros pobres, quando não se integra no tráfico de drogas para obter por um breve momento dinheiro suficiente para realizar seus sonhos de consumo, se projeta e procura imitar os modelos de sucesso do esporte e dos grupos de música (rap, funk, hip-hop), principais canais de ascensão social para aqueles que dificilmente terão acesso à educação superior ou capital e à rede social necessária para triunfar na nova sociedade brasileira.32

31 WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 63. 9 SORJ, Bernardo. A Nova Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 82.

93

Tal situação não acontece com a personagem da narrativa, que também é

um morador de favela, mas que, ao contrário, descobre na amizade e na

solidariedade um lugar onde pode realizar seus sonhos e até mesmo mudar a sua

vida. É nas ondas do mar, na imensidão do oceano que as personagens crianças

dividem alegrias e desejos. O mar, na obra, adquire valor metafórico, pois não é

só um lugar de lazer e encontro, mas um espaço de transformação e mudança do

presente e também do futuro:

Foi crescendo a amizade mesmo quando eles cresceram. O mundo também crescia, para mais longe os levava atrás da onda perfeita. Torneio em outra cidade, campeonato em outro Estado, outra praia, outro país, em tudo que é continente. Em busca da perfeição. Procura do que não há. (p. 23).

A amizade cresce, as personagens, também. Elas passam de crianças a

adolescentes e fazem uma sociedade que nada mais é do que também uma bela

metáfora da reconstrução de um modelo social falido. Montam uma oficina de

pranchas, em que trabalham juntas, cada uma do seu jeito, mas nunca mais

separadas, nem partidas:

Um dos dois, habilidoso, fabricava, consertava, passava os dias metido com ferramentas, resina, maçarico e parafina. (p.26) O outro, menos jeitoso, comprava material e inventava modelo de prancha, roupa e cabelo, pintava estampa legal. Com os amigos falava e a novidade espalhava.

94

Desenhava coisa nova não tinha outra igual. (p.27)

Mesmo vivendo na sociedade contemporânea, marcada pelas diferenças

e pelo consumismo desenfreado, onde a competitividade e a falta de esperança

são fatores comuns, Ana Maria Machado mostra, através dos meninos

representados na obra Ponto de vista, que a criança atual, é consciente de seus

limites e diferenças, mas está disposta e aberta ao contato, à convivência e à

quebra de paradigmas; basta ter uma oportunidade. Não haver oportunidade é o

que podemos considerar como uma das grandes violências de nosso dia-a-dia.

Nesse sentido, Sorj destaca a importância das redes de ligações e de contatos

pessoais. Para o teórico, isso é “elemento básico para a sobrevivência numa

sociedade patrimonialista, gerando o prazer da convivência e valorização do

conhecimento de outras pessoas”33.

O valor da amizade e da convivência segue até o fim da narrativa, quando

as personagens aparecem adultas e com filhos, como mostra o trecho abaixo:

E até hoje, homens feitos, na hora em que dá vontade, lá saem os dois pra surfar. Vão pro mar, em onda descem, e levam os filhos, que crescem aprendendo a deslizar. (p.28) Sempre na mesma cidade, sempre na mesma amizade, numa alegria redonda de criança a brincar de amigo de verdade que não quer se separar. (p.29)

Diferente do homem contemporâneo, que os estudos sociológicos

apresentam como um ser concentrado apenas em si, individualista, rodeado por

dúvidas, incertezas e descrente no próprio homem, as personagens de Ponto de

vista, crianças moradoras de uma cidade partida, de realidades opostas, mostram 33 Ibidem p. 35.

95

ao leitor mirim que essa pode ser a história de qualquer menino nascido em

qualquer cidade partida. Não importa de que lado da cidade estamos, tudo é uma

questão de ponto de vista. O que importa é que, mesmo em mundo tão desigual, é

possível mudar a realidade e a vida:

— Olha só aqueles dois. Quando a gente tem vontade, muda a cidade e a vida. (p.35)

96

CONCLUSÃO

O trabalho que desenvolvemos dividiu-se em duas partes. Na primeira,

apresentamos o percurso da personagem, desde Aristóteles, que abordou a

semelhança entre o ser fictício e o ser humano a partir da imitação, passando pelo

século XX, em que o estudo da mesma ganhou forças com Edward Morgan

Forster, George Lukács, Antônio Cândido, entre outros, lançando reflexões para

melhor compreensão da figura ficcional.

Também, nessa primeira etapa, realizamos um estudo referente à

caracterização da literatura destinada ao pequeno leitor, bem como a sua origem e

a sua trajetória. Observamos seu papel enquanto gênero no decorrer da história e

verificamos sua função mediadora entre a infância e a sociedade no decorrer dos

tempos. Demos atenção especial ao desenvolvimento da personagem criança

dentro do gênero, percebendo como começou a ocupar um espaço em evidência,

um papel de destaque na obra literária voltada ao leitor mirim, aproximando-se

cada vez mais desse leitor.

Em seguida, traçamos o caminho da criança no Brasil desde o período da

descoberta, em que a infância era ignorada, até chegarmos ao momento do

século XXI, ao Brasil contemporâneo, um país marcado por uma história de

exclusão, desigualdade e violência, um universo em que alguns têm muitos e

97

outros têm pouco, um lugar em que a criança, com toda a atenção e posição

conquistadas com os séculos, precisa providenciar a fuga da realidade em que

vive.

Na segunda parte do estudo, com base nos aspectos teóricos levantados

anteriormente, analisamos três narrativas infantis brasileiras atuais. Em Valentina,

conhecemos uma menina, protagonista da história, que justamente colocou o leitor

frente a uma criança em fuga de sua realidade. Valentina é uma menina que

acredita ser uma princesa, que usa uma curiosa relação entre a fantasia e o real

como válvula de escape do cotidiano de diferenças em que vive. O imaginário

fantástico utilizado como subterfúgio pela menina aparece de diferentes formas na

narrativa. Ela não só pensa ser uma princesa e seus pais, reis, mas também

imagina o próprio espaço em que vive transformado, pois vê o seu barraco como

um castelo lindo e a favela em que passa seus dias como um reino encantado.

A linguagem visual, por sua vez, apresenta ao leitor uma Valentina,

contudo, que não se enquadra nos padrões idealizados de princesa, pois é magra

demais, mulata, usa óculos e tem orelhas de abano. Palavras e imagens, portanto,

colocam o leitor mirim em contato com os mais variados conflitos existentes em

nossa realidade, o que inclui o racismo entre tantas outras formas de

preconceitos, já que a menina tem um pai branco e uma mãe negra. Discute, da

mesma forma, a problemática da vontade de ter aquilo que não pode, da vontade

de ir a lugares onde sua classe social não lhe permite chegar e de saber lidar com

tudo isso a partir da imaginação e da esperança. Valentina, assim, cria uma nova

identidade para si mesma, refugiando-se em uma individualidade que lhe dá

alguma perspectiva para o assustador mundo das diferenças: a forma de

sobrevivência e auto-ajuda que encontra leva-a a não precisar mais se preocupar

com a miséria, segurança e falta de poder aquisitivo dos pais. Faz da fantasia um

exercício de sobrevivência, e, ao mesmo tempo, preenche todos os requisitos de

uma bela e bem construída personagem, consciente de sua situação, mostrando

ao pequeno leitor que há como encontrar felicidade onde ela parece não existir.

98

Em O cachecol, de Lia Zatz, nossa segunda obra estudada, nos

deparamos com a história de uma menina que se muda do interior para a cidade

com sua avó, para viver com o tio em uma pequena casa em um morro de São

Paulo. A obra traz, paralelamente, a visão da avó e a da menina sobre o grande

centro, explicitadas muito mais através das imagens do que das palavras.

Enquanto a mulher vê tudo com tristeza, medo, desesperança, cores frias, a

menina olha tudo com olhar positivo e entusiasmado, deslumbrada com o novo,

com essa cidade que aterroriza a avó. Tudo, na narrativa, desperta a atenção da

menina de forma otimista. Assim como em Valentina, a menina de O cachecol tem

consciência da situação em que vive, mas, mesmo assim, procura encontrar

formas e caminhos diferentes de ver tudo, amenizando as dores que uma

sociedade desigual pode lhe causar. O pequeno leitor, com isso, é colocado frente

a problemas socioeconômicos sem perder as esperanças, mas levado a perceber

que existe saída para as condições aparentemente ruins e uma maneira

esperançosa e sem maldade de lidar com toda a forma de contraste que nos

impõe a sociedade brasileira atual.

A terceira obra, Ponto de vista, de Ana Maria Machado, que encerra o

trabalho, apresenta a história de dois meninos diferentes em tudo. Enquanto um é

branco, de família bem estruturada financeiramente e morador do asfalto, o outro

é negro, de família pobre e morador de uma favela. Mas isso não impede que se

tornem amigos, quebrando todas as formas de preconceitos que tanto já

conhecemos e já discutimos aqui. Os meninos da obra estão separados por

fatores sociais e espaciais, vivendo em seus mundos, cada um com suas

particularidades.

Assim como as personagens de Valentina e O cachecol, os protagonistas

de Ponto de vista são crianças que sonham e acreditam em um mundo melhor. A

narrativa mostra ao leitor mirim que, indiferente da raça, e da classe social, uma

boa e verdadeira amizade pode ser construída, e que conflitos e diferenças podem

ser superadas. É através da troca de experiências e da convivência que os

meninos rompem as barreiras e diminuem a distância entre eles. Ambos mostram

99

ao pequeno leitor que é possível, com amizade e solidariedade, realizar sonhos e

mudar vidas.

Verificamos, após a análise das obras, que a criança, como personagem

nesse tipo de narrativa infantil brasileira do século XXI, apresenta-se como uma

figura extremamente realista, ligada ao meio em que vive, atuando de maneira

dinâmica, ativa e questionadora dentro do texto. Nos três livros, destacam-se

personagens capazes de admirar e de sonhar. São criança que, mesmo sabendo

de suas limitações e condições, estão aptas a dar um sentido às suas vidas: a

personagem Valentina, com o seu mundo de faz de conta; a menina de O

Cachecol, com o seu olhar positivo e colorido da vida; e, por fim, os protagonistas

de Ponto de vista, com sua amizade. Isso tudo nos mostra personagens

extremamente bem construídas, com força e autonomia dentro da narrativa, dando

ao leitor maior oportunidade de identificação, o que manifesta cada vez mais a

valorização da voz e da participação da criança como elemento central na

literatura infantil brasileira.

100

REFERÊNCIAS Obras teóricas e históricas

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

AXT, Gunter. Raízes de um Brasil contemporâneo: entre a poliarquia e a desagregação. In: AXT, Gunter; SCHÜLER, Fernando. Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Artes e Ofício, 2006.

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. de Azevedo. “Um cenário em (des)construção”. In: UNICEF – Direitos negados: a violência contra crianças e o adolescente no Brasil. Brasília, 2005.

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2003.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

101

BARRY, David. Screen violence: It’s killing us. Harvard Magazine, nov.-dec. of 1993.

BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2003.

BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Solidariedade em tempos de violência: apontamentos e inquietações. In.: _______. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2003.

CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987.

CHAMBONLEIYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: história, teoria, análise. São Paulo: Quíron, 1987.

DALPIAZ, Sônia; GURSKI, Roselene, SPALDING, Marcelo. Cenas da infância atual: a família, a escola e a clínica. Ijuí: UNIJUI, 2006.

DIAS, Maria Luiza. Vivendo em família: relação de afeto e conflito. Rio de Janeiro: Grall, 1992.

FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1974.

GOMES-PEDRO, João. (Org.). Stress e Violência na Criança e no Jovem. Lisboa: Faculdade de Medicina, 1999.

HILTY, Elanor Blair. De Vila Sésamo a Barney e seus amigos: a televisão como professora. In.: STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. (Org.) Cultura Infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo: Ática, 1986.

102

KRAMER, Sonia. Direitos da criança e projeto político pedagógico de educação infantil. In.: BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2003.

KRAMER, Sonia. Infância, cultura contemporânea e educação contra a barbárie. In.: BAZÍLIO, Luiz Cavalieri; KRAMER, Sonia. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2003.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: história, autores e textos. São Paulo: Global, 1986.

LAMPERT, Ernâni. Pós-modernidade e educação. In.: LAMPERT, Ernâni. (Org.) Pós-modernidade e conhecimento: educação, sociedade, ambiente e comportamento humano. Porto Alegre: Sulina, 2005.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, 2000.

MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o império. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

MCLAREN, Peter; MORRIS, Janet. Power Rangers: a estética da justiça falo-militarista. In.: STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. Cultura Infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. Lobato: um expoente brasileiro. Disponível em: http://www.graudez.com.br/litinf/autores/lobato/lobato.htm. Acessado em: 18 set. de 2008.

Pequenas vítimas. In: UNICEF – O direito à sobrevivência e ao desenvolvimento. Brasília, 2006.

PORTO, Ivalina. Ambiente e comportamento humano. In.: LAMPERT, Ernâni. (Org.) Pós-modernidade e conhecimento: educação, sociedade, ambiente e comportamento humano. Porto Alegre: Sulina, 2005.

103

PRIORE, Mary Del. O cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império. In.: ______. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

RAMOS, Fábio Pestana. A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

SANTOS, Andréia Mendes dos; GROSSI, Patricia Kriegger. Infância comprada: hábitos de consumo na sociedade contemporânea. In.: Textos & Contextos, n 8, dez. 2007.

SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In.: PRIORE, Mary Del. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

SORJ, Bernardo. A nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

SORJ, Bernardo. [email protected]: a luta contra a desigualdade na sociedade da informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe L. Sem segredos: cultura infantil, saturação de informação e infância pós-moderna. In.: _______. (Org.) Cultura Infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

WINNICOTT, Donald Woods. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1981.

ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetivar, 2005.

104

Obras literárias

MACHADO, Ana Maria. Ponto de vista. São Paulo: Melhoramentos, 2005.

VASSALLO, Márcio. Valentina. São Paulo: Global, 2007.

ZATZ, Lia. O cachecol. São Paulo: Biruta, 2004.

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo


Recommended