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Práticas de Educação Musical

Date post: 30-Sep-2015
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Práticas de Educação Musical
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REVISTA DA ABEM | Londrina | v.22 | n.33 | 121-136 | jul.dez 2014 121 resumo Considering the diversity of the actuation areas of the musical teacher in the contemporaneity, this research intends to discuss some aspects of the religious contexts of musical education through the analysis of the class diaries composed in the classes of Educative Practices in Music Education course of Federal University of Santa Maria. Besides theoretical contributions of the narratives on music and the autobiographical investigation, the considerations developed here have been achieved from the articulation with researches which have been characterized by the investigation on religious contexts, thus seeking subsidies to better comprehend the narratives of the students/teachers in training in this areas, their dilemmas and their pedagogical cogitations. The categories of analyses have been built through the research, dialoguing with quotidian theories, comprehending that the educative practices don’t occur in the void, but from experiences which we develop in the world. KEYWORDS: musical education areas, religious, narratives, classroom daily. ANDRÉ MÜLLER RECK Departamento de Música, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (Santa Maria/RS) [email protected] ANA LÚCIA LOURO Departamento de Música, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (Santa Maria/RS) [email protected] MARIANE MARTINS RAPÔSO Colégio Antônio Alves Ramos e Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi (Santa Maria/RS) [email protected] Frente às constatações da diversidade dos espaços de atuação do educador musical na contemporaneidade, este artigo pretende discutir alguns aspectos dos contextos religiosos de educação musical, por meio da análise dos diários de aula produzidos nas disciplinas de Práticas Educativas I e II do curso de Licenciatura em Música, da Universidade Federal de Santa Maria. Além dos aportes teóricos das narrativas em música e da investigação (auto) biográfica, as considerações aqui produzidas foram plasmadas a partir da articulação com pesquisas que têm se caracterizado pela investigação em contextos religiosos, procurando, assim, subsídios para melhor compreender a narrativas dos alunos-professores em formação nesses espaços, seus dilemas e suas reflexões pedagógicas. As categorias de análise foram construídas no decorrer da pesquisa, em diálogo com as teorias do cotidiano, compreendendo que as práticas educativas não se dão num vácuo, mas sim a partir de experiências que nós realizamos no mundo. PALAVRAS CHAVE: espaços de educação musical, religião, diários de aula. abstract Práticas de educação musical em contextos religiosos: narrativas de licenciandos a partir de diários de aula MUSICAL EDUCATION PRACTICES IN RELIGIOUS CONTEXTS: NARRATIVES OF GRADUATIATING STUDENTS FROM CLASS
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  • Prticas de educao musical em contextos religiosos: narrativas de licenciandos a partir de dirios de aula

    REVISTA DA ABEM | Londrina | v.22 | n.33 | 121-136 | jul.dez 2014121

    resumo

    Considering the diversity of the actuation areas of the musical teacher in the contemporaneity, this research intends to discuss some aspects of the religious contexts of musical education through the analysis of the class diaries composed in the classes of Educative Practices in Music Education course of Federal University of Santa Maria. Besides theoretical contributions of the narratives on music and the autobiographical investigation, the considerations developed here have been achieved from the articulation with researches which have been characterized by the investigation on religious contexts, thus seeking subsidies to better comprehend the narratives of the students/teachers in training in this areas, their dilemmas and their pedagogical cogitations. The categories of analyses have been built through the research, dialoguing with quotidian theories, comprehending that the educative practices dont occur in the void, but from experiences which we develop in the world.

    KEYWORDS: musical education areas, religious, narratives, classroom daily.

    Andr Mller reck Departamento de Msica, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (Santa Maria/RS) [email protected] AnA lciA louro Departamento de Msica, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (Santa Maria/RS) [email protected] MAriAne MArtins rApso Colgio Antnio Alves Ramos e Escola Estadual de Educao Bsica Augusto Ruschi (Santa Maria/RS)

    [email protected]

    Frente s constataes da diversidade dos espaos de atuao do educador musical na contemporaneidade, este artigo pretende discutir alguns aspectos dos contextos religiosos de educao musical, por meio da anlise dos dirios de aula produzidos nas disciplinas de Prticas Educativas I e II do curso de Licenciatura em Msica, da Universidade Federal de Santa Maria. Alm dos aportes tericos das narrativas em msica e da investigao (auto) biogrfica, as consideraes aqui produzidas foram plasmadas a partir da articulao com pesquisas que tm se caracterizado pela investigao em contextos religiosos, procurando, assim, subsdios para melhor compreender a narrativas dos alunos-professores em formao nesses espaos, seus dilemas e suas reflexes pedaggicas. As categorias de anlise foram construdas no decorrer da pesquisa, em dilogo com as teorias do cotidiano, compreendendo que as prticas educativas no se do num vcuo, mas sim a partir de experincias que ns realizamos no mundo.

    PaLaVRaS CHaVE: espaos de educao musical, religio, dirios de aula.

    abstract

    prticas de educao musical em contextos religiosos:narrativas de licenciandos a partir de dirios de aulaMusical education practices in religious contexts: narratives of graduatiating students froM class

  • RECK, Andr M. ; LOURO, Ana L. ; RAPSO, Mariane M.

    REVISTA DA ABEM | Londrina | v.22 | n.33 | 121-136 | jul.dez 2014122

    introduo a multiplicidade dos espaos de atuao para o educador musical na contemporaneidade tem sido cada vez mais evidenciada na literatura da rea de educao musical (Oliveira, 2003; Del Ben, 2003; Almeida, 2005; Tourinho, 2006; Louro, 2008; Kleber, 2008; Santos, 2011; Penna; Barros; Mello, 2012). Dentre vrios fatores que contribuem para o destaque de

    espaos de educao ditos no-formais na atualidade, Maria Glria Gohn aponta algumas

    mudanas na economia, na sociedade, no mundo do trabalho, nas mdias, e nos documentos

    internacionais de educao (Gohn, 1998). Assim, espaos de educao musical emergem frente

    s novas configuraes sociais, tornando-se marcos de uma poca e contextos caractersticos:

    projetos sociais, ONGs, oficinas, estdios de gravao, corais, comunidades sociais, casas de

    repouso, educao infantil, formao continuada de professores, mdias, igrejas, programas

    sociais, etc.

    Essa constatao, embora j reincidente, ganha importncia quando pensamos que

    tais espaos de educao inspiram uma srie de saberes, relaes e estratgias especficas,

    dadas as particularidades dos contextos socioculturais. A importncia se redobra quando nos

    remetemos aos espaos de formao dos professores de msica e nos perguntamos at que

    ponto as instituies de ensino superior tm relacionado as discusses entre os novos espaos

    de atuao e a formao do educador musical.

    Almeida (2005) constata o crescente nmero de investigaes sobre os processos de

    transmisso e apropriao musical em locais como projetos comunitrios, grupos musicais ou

    programas de rdio e televiso. No entanto, conforme a autora, poucas so as pesquisas que

    articulam esses espaos de atuao profissional e formao inicial (Almeida, 2005, p.49).

    Ao investigar as habilidades do educador musical para atuar em ONGs, por exemplo, Oliveira

    (2003) relata uma srie de aspectos necessrios ao docente, que vo alm da formao musical:

    o vesturio, o repertrio de termos e grias na fala, habilidade de relacionamento, entendimento e

    anlise das estruturas de funcionamento das instituies, flexibilidade, capacidade de anlise das

    diferentes situaes-problemas, alm de inmeros detalhes que iro facilitar ou no a afinidade

    profissional e emocional do professor com o seu trabalho na instituio. Porm, muitos desses

    pontos no so trabalhados nos cursos de treinamento de professores de msica (Oliveira,

    2003, p.96).

    possvel constatar que temas referentes aos mltiplos espaos, geralmente denominados

    no-formais, tm aumentado gradativamente. Se por um tempo a produo do conhecimento

    esteve focada sobre e para a educao musical formal, com os anos, outros temas passaram

    a compor as pautas investigativas, tais como a educao musical no-formal e em espaos

    alternativos, processos de auto-aprendizagem, educao musical e mdias; dentre outros

    (Bellochio, 2003, p.2).

    Essa talvez tenha sido uma virada epistemolgica da rea quando assimilamos

    a proposta de sistematizao da rea de educao musical feita por Kraemer

    (1995), fundamentada no princpio de que a prtica pedaggica musical encontra-

    se em vrios lugares, ou seja, os espaos onde se aprende e ensina msica so

    mltiplos e vo alm das instituies escolares. (Souza, 2007, p.28)

    Nesse sentido, pretendemos contribuir com as discusses sobre as possibilidades e os

    desafios de pensar a educao musical em contextos religiosos, tomando como dados alguns

    dirios de aula, produzidos durante as disciplinas de Prticas Educativas I e II, do curso de

  • Prticas de educao musical em contextos religiosos: narrativas de licenciandos a partir de dirios de aula

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    mltiplos espaos de educao musical

    1. vemos o aumento das pesquisas que se localizam nas tendncias crticas do pensamento pedaggico e curricular e nos estudos culturais e sociais ps-crticos. Entre crtico e ps-crtico no h necessariamente superao, mas um alargamento da anlise da dinmica do poder, misturando-se categorias dos estudos

    Licenciatura em Msica da Universidade Federal de Santa Maria, no ano de 2013. A partir da

    anlise dos dirios de aula de dois licenciandos, produzidos na perspectiva de Zabalza (1994),

    que atuaram em espaos religiosos, foi possvel propor algumas questes que se articulam

    discusso entre a formao do educador musical e seus possveis espaos de atuao. O

    cotidiano dos alunos e professores, entendido como uma complexa trama de significaes

    sociais, torna-se ponto de reflexo para o ensino musical nos mltiplos espaos da sociedade.

    Santos (2003, p.50) aponta quanto a histria do pensamento pedaggico-musical tem sido a histria das prticas pedaggicas institudas, e que

    [...] s recentemente buscamos compreender a lgica do funcionamento das

    prticas sociais de ensino e aprendizagem musical marginais ao discurso

    pedaggico oficial (desenvolvidas paralelamente ao discurso pedaggico oficial

    e que nos acostumamos a chamar de no formais). (Santos, 2003, p.50)

    Tratando da relao de transmisso e apropriao entre as pessoas e a msica, a

    pedagogia da msica no se esgota ao investigar os processos que ocorrem em ambientes

    institucionalizados de prticas educativas e se estende alm, mergulhando no fluxo da dinmica

    social e das prticas cotidianas.

    A msica uma construo humana. na natureza social e pessoal das relaes

    que o ser humano estabelece com a msica, que se elaboram significados e

    que uma sociabilidade se constri pela e com a msica. A educao musical na

    contemporaneidade est baseada nesse entendimento da msica como prtica

    socialmente construda, que influencia e influenciada pelo contexto do qual

    faz parte, sendo uma prtica social baseada na interao referenciada scio-

    histrica-culturalmente entre pessoas e msicas, e no meramente no produto

    musical em si mesmo, como se este pudesse existir sem a interveno humana.

    (Ribas, 2008, p.146)

    Ao investigar a produo de conhecimento em Educao Musical no Brasil, Santos (2003)

    aponta novas perspectivas, com influncias de tendncias da pedagogia crtica e ps-crtica1,

    que tm colocado em pauta temticas como: identidades sociais e culturais, pedagogizao

    cultural, os princpios que sustentam as escolhas de procedimentos, contedos, sequncia de

    ensino, etc. O peso recai sobre o mltiplo, a alteridade, o diverso, expresso nas maneiras de se

    relacionar com a msica (organizao, sistematizao, transmisso), conforme se do em seus

    contextos especficos. Observam-se a pluralidade ao invs de padronizaes, generalizaes

    tericas, assim como a utilizao de mtodos etnogrficos de pesquisa.

  • RECK, Andr M. ; LOURO, Ana L. ; RAPSO, Mariane M.

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    O trnsito de elementos tericos e analticos produzidos em outros campos do

    conhecimento, em especial nas chamadas cincias humanas, contribui para um alargamento

    de possibilidades interpretativas na Educao Musical. Pesquisas qualitativas, com distintos

    aspectos metodolgicos e com abordagens sociolgicas e antropolgicas, tm focado mltiplas

    narrativas e experincias musicais, contribuindo para a construo de concepes musicais

    que permitam ajustar seus sistemas de validade e organizao a partir das relaes e das

    significaes que se estabelecem em determinado contexto. Outros olhares tm provocado a

    sugesto de novas leituras em educao musical:

    Vemos o desenvolvimento de pesquisas realizadas em grupos com prticas

    musicais de tradio oral - como o jongo, o congado, o funk, o rap, grupos

    musicais de rua, rodas de capoeira, samba, choro, bandas de rock formadas

    por adolescentes e jovens brasileiros, a banda Lactomia (Salvador, BA) e seu

    sistema de ensino e aprendizagem musical, o aprendizado de danas dramticas

    (o Cavalo-Marinho) e do repertrio de cultos afro-brasileiros. Vemos pesquisas

    baseadas em histria de vida de msicos das ruas, de chores, dos que tiram

    msica de ouvido e aprendem sozinhos, de professores e de estudantes sobre

    sua relao com msica no cotidiano social, familiar, escolar. E registros sobre

    processos de ensino e aprendizagem musical vivenciados por adolescentes na

    escola e sua utilizao em fazeres musicais no escolares. (Santos, 2003, p.55)

    Trabalhos como o de Arroyo (1999) e Queiroz (2004), de orientaes etnogrficas, discutem

    sobre a ampliao da perspectiva antropolgica na formao do educador musical e colocam

    nfase na relao entre as prticas musicais e seus significados culturais.

    Se a cultura entendida como uma rede de significados, de acordo com Geertz

    (1989), as prticas de educao musical, escolares ou no escolares, so

    espaos de criao e recriao de significados e, portanto, de cultura. Nesse

    sentido, educao musical deve ser muito mais do que aquisio tcnica; ela

    deve ser considerada como prtica cultural que cria e recria significados que

    conferem sentido realidade. Essa interface da educao musical com a cultura

    encontra, na Antropologia, uma sustentao terica capaz de desvelar rea um

    novo sentido, como prtica cotidiana e como rea acadmica de conhecimento.

    (Arroyo, 2000, p.19)

    Souza (2008), a partir de um vis sociolgico, tem promovido debates a respeito de

    uma Educao Musical que compreenda os sujeitos em seus cotidianos. As msicas que o

    sujeito produz e consome em seu dia-a-dia so vivenciadas de acordo com sua posio

    em determinada trama de relaes sociais, e suas preferncias e renncias musicais so

    influenciadas por elementos que fazem sentido a partir de seus significados, inseparveis de

    seu contexto.

  • Prticas de educao musical em contextos religiosos: narrativas de licenciandos a partir de dirios de aula

    REVISTA DA ABEM | Londrina | v.22 | n.33 | 121-136 | jul.dez 2014125

    A anlise dos dirios de aula, aqui proposta, trabalha as narrativas como uma das perspectivas para a reflexo do professor de msica. Tal abordagem procura estudar os

    fenmenos relacionados a aprender e ensinar msica a partir de relatos orais ou da escrita de

    dirios de aula:

    [...] os dirios de aula so alternativas de reflexo na formao e na atuao

    profissional de professores na construo de caminhos de subjetivao

    e no encaminhamento de dilemas musicais e pedaggico-musicais, nos

    seus mais diversos meios de atuao. Alm disso, representam um meio de

    compartilhamento de angstias e alegrias, sucessos e insucessos das prticas

    docentes mais variadas. (Louro et al, 2014, p.27)

    Os dirios so, dessa maneira, instrumentos sensveis capazes de lidar com a subjetividade

    dos professores, seus encontros e desencontros nas prticas docentes em contextos cada

    vez mais plurais e complexos, dados seus liames culturais. Em meio s mltiplas demandas

    exigidas pelo mundo contemporneo ao educador musical, os dirios podem ser dispositivos

    de subjetivao, atravs da compreenso e reflexo dos seus modos de ser (Louro et al, 2014,

    p. 25).

    Nesse sentido, a pesquisa se posiciona com alguns olhares contemporneos no campo da

    educao:

    [...] um dos grandes desafios atuais da formao de professores profissionais a

    mudana dos fundamentos do paradigma que orienta a formao de professores

    de um sistema determinista, de causalidade, de dualidade, de pensamento linear,

    de uma viso fragmentada para um paradigma que reconhece a interdependncia

    existente entre os processos de pensamento, de construo do conhecimento e

    do vivido. (Peres, 2006, p.62)

    Tendo em vista que os docentes se inserem em um contexto fluido, mvel, que no possui

    estruturas e relaes determinadas rigidamente, mas que sofre constantes mudanas durante

    as relaes de trabalho e de afeto (uma vez que a docncia exige no s conhecimentos

    profissionais prticos e tericos, mas tambm o exerccio do cuidado das e nas relaes de

    docentes com seus alunos e alunas), interessante que eles possam desenvolver alternativas

    que permitam expor suas angstias e seus problemas. Igualmente relevante criar espaos de

    reflexo mais aprofundados que os conduzam reafirmao de si enquanto profissionais e a

    outras possibilidades de compreenso, organizao e racionalizao de sua prtica docente.

    Nesta perspectiva, as narrativas apresentam-se como forma de observao a partir de

    exerccios de reconstituio das prticas docentes e de poetizao do cotidiano profissional,

    sua realidade e seus modos de ser e agir enquanto professores e professoras. Ainda, a narrativa

    surge como uma das possibilidades de distanciamento do vivido, uma vez que a reconstituio

    do que aconteceu permite, mesmo que por meio de uma viso unilateral do acontecido (pois

    nas narrativas s temos a verso do professor), reavaliar as situaes ocorridas e repensar as

    potencialidades de sua ao. De acordo com Ranghetti:

    perspectiva (auto)biogrfica: narrativas sobre as prticas educativas

  • RECK, Andr M. ; LOURO, Ana L. ; RAPSO, Mariane M.

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    O exerccio de (re)olhar-se na tentativa de aproximar-se do incio do fio que tece/

    teceu a trama do prprio mundo vivido, possibilita rever-se no cenrio de um

    tempo/espao de formao, e filtrar, das experincias vividas, das afeces

    sentidas, o movimento destes tempos/espaos histricos. Isto desafia a

    questionar o sentido que o ser humano, em especial, o ser humano professor

    atribui formao profissional. (Ranghetti, 2004, p.1)

    A retomada da prtica docente por meio das narrativas permite tambm que a

    profissionalidade de professores e professoras seja analisada como uma atividade humana, para

    que se compreenda mais atentamente o contexto e as particularidades em que ela se insere

    e se atenue as cobranas e presses em relao aos erros, aos fracassos, ao inesperado e

    s impossibilidades da prpria condio humana. No porque as narrativas funcionem como

    justificativas para os insucessos da vida profissional, muito menos que nos dispensem de uma

    prtica profissional comprometida. Mas porque permitem o desenvolvimento de uma atividade

    consciente de suas particularidades e tambm de suas limitaes, na medida em que as

    narrativas promovem: um registro do tempo kairs - tempo qualitativo -, no qual esto inscritas

    as marcas e interferncias que, de certa forma, desenham os contornos da identidade pessoal e

    profissional (Ranghetti, 2004, p.4 - grifo da autora).

    Deste modo, as narrativas so alternativas para que professores e professoras, na releitura

    de suas atividades docentes, retomem a constituio de seu ser professor e de seu fazer

    docente, analisando suas incertezas e seus desassossegos, vislumbrando formas de agir frente

    s demandas cotidianas. Peres assim se expressa quanto ao fato:

    Isso nos remete a pensar sobre o quo importante , durante a formao do(a)

    professor(a), trabalharmos com as incertezas e com as invisibilidades, com

    o intuito de exercitarmos a inveno, a intuio e a sensibilidade diante das

    demandas do cotidiano. (Peres, 2006, p.52)

    Ora, a formao de professores e professoras no acontece somente durante seus estudos

    formativos, mas representa um evento contnuo nas suas vivncias profissionais, por meio de

    outros estudos, do enfrentamento da prtica, da organizao de contedos, da construo de

    sua atuao frente aos alunos e das formas como se relaciona com outros agentes do locus em

    que se insere (diretores, coordenadores de projetos sociais, pais, diretores de ONGs, produtores

    culturais, lderes comunitrios, entre outros).

    As prprias relaes representam uma questo fundamental do exerccio da docncia. Os

    imprevistos, constantes no percurso de nos tornarmos professores e professoras, advm das

    demandas do cotidiano, na relao com os espaos educativos e com o que ela representa:

    relaes de saber e relaes de poder (Peres, 2006, p.51). Quanto a esta questo, Tardif aponta

    que, em grande parte, o trabalho pedaggico dos professores consiste precisamente em gerir

    relaes sociais com seus alunos. por isso que a pedagogia feita de tenses e dilemas, de

    negociaes e de estratgias de interao (Tardif, 2007, p.132).

    Acreditamos que no s a gerncia das relaes com alunos e alunas, mas tambm a

    conduo das relaes com seus pares, com seus superiores e com os outros entes da

    comunidade na qual o professor est inserido, represente um dos grandes aprendizados

    a ser desenvolvido na docncia. E as particularidades destas relaes levam condio

  • Prticas de educao musical em contextos religiosos: narrativas de licenciandos a partir de dirios de aula

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    apresentada pelo autor da docncia enquanto campo de incertezas e de dilemas e que exige o

    desenvolvimento de tecnologias e formas de interao e organizao social. Para Tardif:

    Ensinar , portanto, fazer escolhas constantemente em plena interao com os

    alunos. Ora, essas escolhas dependem da experincia dos professores, de seus

    conhecimentos, convices e crenas, de seu compromisso com o que fazem,

    de suas representaes a respeito dos alunos e, evidentemente, dos prprios

    alunos. (Tardif, 2007, p.132)

    Nesse sentido, preciso considerar que a formao de professores e professoras no

    se encerra em certezas e em prticas imutveis, mas que se d na conexo direta com seus

    espaos e com sua prpria vida. Assim, importante que docentes dominem no s teorias

    educacionais, mas que tenham tambm meios para tratar das emergncias da vida e das

    complexidades de relaes humanas que afluem nos espaos educacionais (Peres, 2006, p.53).

    O professor sempre estar trabalhando em um contexto passvel de compreenso, utilizando

    diversos estudos cientficos e teorias educacionais, ferramentas fundamentais em sua atuao,

    mas com objetos de trabalho que, de uma forma ou outra, sempre fogem ao seu controle (Tardif,

    2007, p.132). Como nos indica este autor:

    No exerccio cotidiano de sua funo, os condicionantes aparecem relacionados

    a situaes concretas que no so passveis de definies acabadas e que

    exigem improvisao e habilidade pessoal, bem como a capacidade de enfrentar

    situaes mais ou menos transitrias e variveis. (Tardif, 2007, p.49)

    Nessa perspectiva, as narrativas de si2 se apresentam como mecanismo de reflexo e

    tambm de enfrentamento de situaes em constante transformao, tendo em vista que as

    relaes estabelecidas entre professores e alunos no se encerram ou so determinantes por

    uma s experincia. Ainda que se trabalhe com o mesmo grupo de alunos, articulam dentro

    da sala de aula atores com outras experincias e vivncias, transformando-os e exigindo que

    professores se adaptem ao contexto vivido.

    Professores e professoras podem utilizar das narrativas como um meio de embrenhar-se

    em suas significaes e razes docentes. Como afirma Oliveira, As narrativas de si nos fazem

    adentrar em territrios existenciais, em representaes, em significados construdos sobre a

    docncia e sobre as aprendizagens elaboradas a partir da experincia (Oliveira, 2006, p.182).

    Narrar-se, escrever sobre si, responde a uma injuno social (Artires, 1998, p.3). Nesta

    necessidade de registrar o que se viveu, de se afastar do vivido e de, finalmente, refletir sobre

    as experincias, podemos compreender nossos processos formativos, uma vez que estamos

    sempre nos tornando professores (Peres, 2006, p.54). Mas esse arquivamento no se d

    simplesmente e nem corresponde a uma realidade. Muito menos representa uma busca por

    2. A expresso narrativas de si tem sido utilizada, pensada e discutida, principalmente a partir das abordagens (auto)biogrficas no campo educacional (Delory-Momberger, 2012; Abraho, 2004; Souza, 2007; Cunha, 1997). Embebidos por tais aportes, entendemos as narrativas de si em sua dinmica de recontar o vivido para localizar novas aprendizagens no s no acmulo do passado, mas na reflexo dos momentos presentes, destacando-se como uma abordagem que leva o desenrolar do tempo em forma de narrativa para a contextualizao de novas aprendizagens (Louro et al, 2014, p.20).

  • RECK, Andr M. ; LOURO, Ana L. ; RAPSO, Mariane M.

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    algum tipo de verdade. Antes, nossas narrativas representam acordos com a realidade, em que

    nos tornamos capazes de manipular nossa existncia (Artires, 1998, p.3). Abrimos caminhos

    para ordenar vivncias na construo de sentidos desejados para nossas vidas, sejam estes

    sentidos intrnsecos ou extrnsecos s nossas prticas. O narrador pode assumir o papel de

    espectador da prpria existncia, observando questes amplas de seu contexto especfico,

    contribuindo para nossas vivncias e mesmo para o compartilhamento de reflexes entre nossos

    pares.

    As disciplinas de Prticas Educativas I e II so oferecidas como componentes curriculares do curso de Licenciatura em Msica, da Universidade Federal de Santa Maria, desde 2005, em

    virtude da reestruturao curricular operacionalizada naquele ano. O objetivo geral das ementas

    oferecer ao licenciando em Msica a experincia de realizar um estgio em ambientes no

    oficializados de ensino. No currculo geral do curso em questo, essas disciplinas podem ser

    entendidas como um contraponto (prtico e terico) em relao aos estgios supervisionados

    na educao escolar.

    Essas disciplinas pretendem tambm discutir os saberes e os conhecimentos

    necessrios ao educador musical, ao transitar pelos mltiplos espaos profissionais, debatendo

    suas possibilidades de atuao. A concepo dessas disciplinas pode ser entendida no sentido

    de que a educao musical e a msica sempre desempenharam papis dinmicos na sociedade

    e, portanto, sempre ocuparam novos espaos, geraram e atenderam novas demandas (Freire,

    2001, p.3).

    Nossa inteno ao trabalhar com os dirios de aula foi no sentido de que os licenciandos

    pudessem, valorizando suas subjetividades, (re)pensar sobre suas prticas de forma crtica e

    problematizadora. Conforme Louro, nessa perspectiva, o relato surge como uma necessidade

    de narrar o vivido, aquilo que alm do cumprimento puro e simples de tarefas se materializa na

    reflexo sobre a interseco dos atos profissionais de professor de msica e a vida do prprio

    sujeito que ensina (Louro, 2008, p.64).

    Durante os dois semestres, os espaos escolhidos para a realizao dos estgios pelos

    licenciandos foram diversos: aulas particulares, oficinas de msica, cursos pr-vestibulares,

    projetos sociais, coros de empresas, projetos de extenso, dentre outros. Por sua vez, dois

    licenciandos realizaram seus estgios em contextos religiosos (um coral luterano e um coral

    catlico), de modo que o recorte da anlise de dados se d a partir dos seus dirios.

    Os dirios selecionados foram produzidos por Leonardo e Aline3, nas Prticas Educativas

    II e I, respectivamente. Leonardo atuou como regente de um coral na Igreja Luterana, enquanto

    Aline props uma oficina coral para membros da Diocese Catlica, ambos no interior do Rio

    contextuali-zando a pesquisa

    3. Os nomes reais foram substitudos por pseudnimos, preservando o anonimato dos licenciandos.

    4. Alm dos textos gerais lidos na disciplina (Gohn, 1998; Oliveira, 2003; Almeida, 2005), os licenciandos pesquisaram e apresentaram textos que se relacionavam com suas prticas. Assim, Leonardo apresentou o texto de Teixeira (2005) e Aline, a monografia de Nogueira (2012).

  • Prticas de educao musical em contextos religiosos: narrativas de licenciandos a partir de dirios de aula

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    Grande do Sul. Os licenciandos relataram suas experincias em oito dirios de aula e produziram

    um artigo final relacionando seus escritos com os referenciais discutidos durante as disciplinas4.

    Reflexes a partir dessas disciplinas j foram realizadas por Louro (2008), que investigou os

    dilemas dos alunos-professores em formao, narrados em dirios de aula. Ao (re)contar o vivido

    das prticas educativas realizadas, os alunos-professores em formao trouxeram questes que

    permearam o debate sobre metodologias de aulas centradas no aluno (Louro, 2008).

    Embora seguindo as pegadas metodolgicas de Louro (2008), ou seja, tomando as

    narrativas a partir dos dirios de aula dos licenciandos, a presente pesquisa se distingue ao focar

    os espaos religiosos em particular. Esse recorte se d em virtude da nossa insero em uma

    linha de debate em educao musical, que tem se caracterizado por pesquisas e reflexes em

    torno da relao msica-religio.

    Alm dos aportes tericos das narrativas em msica (Torres, 2008; Louro, 2008; Louro et al.,

    2014) e dos dilemas pedaggicos (Zabalza, 1994), as anlises aqui produzidas tambm foram

    plasmadas a partir da articulao com pesquisas que tm se caracterizado pela investigao em

    contextos religiosos (Reck, 2011; Lorenzetti, 2013, Cattelan, 2012), procurando assim, subsdios

    para melhor compreender as narrativas dos alunos-professores em formao nesses espaos,

    seus dilemas e suas reflexes pedaggicas. As categorias de anlise foram construdas no

    decorrer da pesquisa, em dilogo com as teorias do cotidiano, compreendendo que as prticas

    educativas no se do num vcuo, mas a partir de experincias que ns realizamos no mundo

    (Souza, 2008).

    Em outros momentos j tivemos a oportunidade de escrever que o contexto religioso, do ponto de vista da educao musical, um contexto complexo (Reck, 2011). Dessa forma,

    os espaos aqui investigados revelam algumas de suas particularidades a partir dessa

    complexidade, apontando para alguns aspectos que se tornam relevantes para o educador

    musical (re)pensar suas prticas nesses ambientes. Tambm podemos pensar em como articular

    essas especificidades com os cursos superiores de formao para professores de msica.

    Referindo-se ao contexto da igreja catlica, Lorenzetti aponta:

    A msica no contexto da igreja tem suas particularidades, como a atividade

    musical constante, o repertrio utilizado, a exposio pblica dos executantes, os

    instrumentos e agrupamentos musicais utilizados, a formao do profissional que

    atua nesse contexto, os contedos abordados e devido a isto, deve ser refletida

    com seriedade e deve ser oferecida uma boa formao para aqueles que atuam

    nesse contexto. (Lorenzetti, 2012, p.15)

    Talvez possamos iniciar nossas reflexes a partir de relatos das especificidades das prticas

    musicais no mbito dos ambientes investigados. Tanto Leonardo como Aline ressaltam que

    o carter musical est intimamente ligado aos ritos, o que lhe confere certas caractersticas,

    direcionando as atividades musicais. Conforme relato de Leonardo em um de seus dirios:

    Como o grupo tem a obrigao de cantar em dois cultos mensais, deixamos

    combinado com os pastores que os mesmos ficariam responsveis por

    contextos religiosos como espaos de educao musical

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    entregar a relao das msicas da celebrao com, no mnimo, duas semanas

    de antecedncia, para que o grupo tenha ao menos dois ensaios antes do

    compromisso. (Leonardo, dirio 1, 2013)

    Aline, na produo do relatrio final da disciplina, vai alm de seu relato e fundamenta suas

    observaes a partir dos referenciais estudados:

    Nossas prticas foram inicialmente pensadas como uma preparao para o

    sbado, aliando as questes tcnicas s msicas que deveriam ser cantadas,

    conforme liturgia dominical, pois nas igrejas, a msica se alia religiosidade dos

    leigos e se expressa por meio de grupos que se propem s prticas musicais

    dentro do espao religioso, muitas vezes por meio do canto (Nogueira, 2012,

    p.6). Com isso, buscvamos ensaiar para o dia seguinte, o sbado, dia em que

    ocorriam as missas na nossa comunidade. (Aline, relatrio final da disciplina,

    2013)

    A indissociabilidade entre prticas musicais e a ritualizao, no entanto, oferece algumas

    consideraes, ampliando a ideia de uma simples funcionalidade musical. Cattelan (2012), ao

    relatar suas experincias como msico na igreja catlica, descreve que no me considero

    simplesmente um msico cuja funcionalidade tocar nas missas. Igualmente, tenho conscincia

    de que estou inserido dentro de uma conjuntura de igreja, religiosa e espiritual, com objetivos

    mais amplos (Cattelan, 2012, p.28).

    Conforme Lorenzetti (2102):

    A msica no um simples acessrio, mas algo essencial. um espao que

    no neutro, pois exige uma roupa apropriada para as aes litrgicas (...).

    um espao que envolve os sentidos; o olfato, por meio de incensos; a audio,

    pela msica e pela leitura; a viso, com imagens e cores; o tato, pelo aperto de

    mo. um espao feito de muitas pessoas, de muitos momentos, de muitas

    celebraes. Cada espao, e a igreja inclui-se nisso, corresponde um tipo de

    identidade. (p.12)

    Todavia, embora voltadas para o trabalho litrgico, Aline pde desenvolver em suas aulas

    alguns momentos de trocas com outras msicas. Dessa forma, podemos perceber as margens

    de atuao para que o educador possa contribuir com suas experincias de formao. Ao utilizar

    a msica Tumba, tumba, Aline conta que explicou aos participantes que no deveramos

    somente pensar nos cantos de missa, mas tambm dar espao a outras vivncias (Aline,

    dirio 1, 2013). Nesse sentido, Aline traz para sua aula alguns elementos de seus estudos em

    Educao Musical:

    Nesse momento, recordei-me de um professor holands, que me disse que a

    aula precisa iniciar com uma atividade legal, pois a aula est s comeando,

    passar para o repertrio mais difcil, que o motivo pelo qual esto ensaiando,

    e finalizar com algo divertido, para que todos queiram comparecer no prximo

    encontro. (Aline, dirio 1, 2013)

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    Mais adiante, Aline expe seu dilema ao utilizar determinadas msicas e pensa na

    possibilidade de mudar o foco do repertrio, mas levando em considerao que a msica

    religiosa no pode sair totalmente da prtica, pois a oficina foi fundamentada nela (Aline, dirio

    5, 2013). Utilizando-se de msica como Asa Branca (Luis Gonzaga/Humberto Teixeira) e Minha

    Cano (Chico Buarque), Aline expressa em seus relatos o descongelamento das fronteiras entre

    msica religiosa e no-religiosa, complexificando as possibilidades de atuao do educador.

    Ao se aproveitar da oportunidade do ensaio religioso para trazer outros repertrios, Aline

    busca um caminho de ensino que dialoga com o horizonte de significados (Souza, 2008)

    dos alunos - nesse caso, suas prticas religiosas -, ao mesmo tempo em que amplia suas

    possibilidades de escuta (Souza; Torres, 2009). Assim, ela passa no s a ensaiar o repertrio,

    mas a ter uma inteno de aprendizado de novos contedos musicais para seus alunos, dentro

    de uma perspectiva das teorias do cotidiano para a aula de msica. Nesse sentido, conforme

    enuncia Teixeira, a atividade coral pode ser entendida como uma prtica de ensino-aprendizagem

    repleta de significados, de modo que ao/ regente compete compreender as funes do cantar

    em coro, a fim de proporcionar aos cantores uma aprendizagem musical significativa (Teixeira,

    2008, p.189)

    Para Leonardo, o repertrio sugerido pela igreja acabava por lhe revelar certas surpresas,

    de modo que muitas vezes as escolhas do que seria cantado partia de uma deciso da pastora.

    Conforme relata:

    A pastora chega para mim e diz que fez umas pequenas alteraes nas msicas

    do culto do domingo. Nesse momento me passou um calafrio pelo corpo todo.

    Detalhe que, as pequenas mudanas eram apenas: a incluso de trs msicas

    e a substituio de outra. Ou seja, foi o mesmo que jogar o ensaio anterior

    praticamente no lixo, mas no vou entrar em detalhes quanto valorizao do

    profissional. (Leonardo, dirio 3, 2013)

    Assim, escrever sobre este dilema, no sentido que trata Zabalza (1994), faz com que o

    regente busque encontrar maneiras de lidar com esta improvisao de repertrio, comum a

    muitos ambientes religiosos5. Desta forma, a escrita dos dirios busca certo entendimento da

    situao, localizando as circunstncias dilemticas, para lidar com ela.

    Alm das especificidades relatadas, os ambientes religiosos tambm apresentam uma srie

    de elementos e desafios pedaggicos constantes em outros espaos educativos, ditos no-

    formais. Esse trnsito entre o que familiar a outros espaos de atuao e o que lhe particular,

    pela sua contextualidade, coloca o educador musical numa posio de relatividade, exigindo da

    sua formao estratgias plurais e criativas

    Oliveira (2003), ao se referir ao Terceiro Setor6 como espao de educao musical, enfatiza

    a capacidade de flexibilidade do educador, sem, contudo, o profissional ser desorganizado e

    sem objetivo, estrutura ou metas (p.96). Essa flexibilidade, que pode ser exigida em relao ao

    5. Importante notar que o modelo de improvisao, descrito por Leonardo, relacionado aos aspectos organizacionais dos ritos, no uma generalidade nos ambientes religiosos, sendo que outras formas de improvisao podem ser entendidas como partes fundamentais dos ritos religiosos. Para anlise no contexto catlico, ver Cattelan (2012) e na cultura gospel, Reck (2011).

    6. Segundo Kleber (2008), o terceiro setor refere-se Sociedade Civil Organizada e o termo faz contraponto com o Estado, considerado o Primeiro Setor, e com o Mercado, considerado o Segundo Setor. (p.215)

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    repertrio, arranjos, grupos musicais, instrumentos, etc, tambm foi sentida pelos licenciandos

    em suas prticas.

    Chegado o domingo, dia da minha estreia frente ao coral. Pois bem, a surpresa a

    que me refiro veio uma hora antes do inicio do culto. A pastora chega para mim e

    diz que havia mais duas msicas novas que ela havia includo (...) Eu ento falei

    que o coral no estava preparado para cantar essas msicas, pois no haviam

    ensaiado. Mas a pastora se mostrou irredutvel em sua deciso. Conversei com

    os cantores e perguntei se conheciam as msicas. Uma delas era conhecida e

    disseram que no havia problema em cantar juntos. J para a segunda msica

    eu tive que pegar o microfone e cantar sozinho, pois era pouco conhecida, tanto

    dos cantores quanto da comunidade, e ainda havia uma dificuldade para pegar

    o tom. (Leonardo, dirio 3, 2013)

    A instabilidade da frequncia dos participantes foi apontada por Almeida (2005) como

    uma caracterstica em oficinas de msica. Ainda que os ensaios mencionados no possam

    ser caracterizados estritamente como oficinas, no sentido descrito por Almeida, podemos

    apontar algumas semelhanas entre tais espaos de educao musical. Conforme a autora,

    esse aparecer e no reaparecer, ou reaparecer um ms depois (p.46) se explica porque na

    educao no-formal ou no-escolar a deciso de aprender voluntria. No caso de Aline, essa

    instabilidade contextualizada pelo carter da comunidade: nesse dia compareceram apenas

    cinco participantes, pois estamos em poca da trezena a Nossa Senhora Medianeira e muito

    desses participantes esto em preparao para a primeira eucaristia, dentre eles catequistas e

    catequisandos, por esse motivo o dficit de alunos (Aline, dirio 5, 2013).

    Lidar com este fenmeno conhecido como clientela flutuante outro tipo de dilema que

    o professor em ambientes religiosos pode se deparar. Para Aline, localizar o evento marcante do

    calendrio religioso como motivo da ausncia dos participantes do coro a auxilia a compreender

    que esta ausncia dos participantes momentnea e circunstancial. Ao narrar sobre o fato, ela

    traa um acordo com a realidade encontrando, se no solues, pelo menos uma anlise

    reflexiva das circunstncias que geram uma situao dilemtica para a sua prtica de regente,

    dentro de um ambiente religioso.

    Finalizando, cabe salientar que a anlise da maneira como os dilemas so descritos nos

    dirios para auxiliar a reflexo de pessoas no papel de educadores no , de modo algum, restrita

    ao ambiente religioso. E se, nesse caso, estava inserida junto formao inicial de um curso de

    Licenciatura em Msica, tambm poderia ser pensada em contextos de formao continuada, ou

    para a reflexo de professores de Msica no incio de carreira, como temos nos debruado em

    outros escritos (Rapso, 2014).

    Na concepo de Zabalza (1994), as prticas educativas se do numa realidade social e dinmica com caractersticas que as diferenciam em cada lugar e a cada momento. A

    impossibilidade de generalizao de tais prticas, pelos seus contextos particulares, no minimiza

    suas possibilidades de anlise. Assim, se conjuga a outras reflexes sobre os mltiplos espaos

    algumas consideraes

  • Prticas de educao musical em contextos religiosos: narrativas de licenciandos a partir de dirios de aula

    REVISTA DA ABEM | Londrina | v.22 | n.33 | 121-136 | jul.dez 2014133

    de educao musical que, discutem essas questes e argumentam no sentido de mostrar a

    necessidade de conhecer esses espaos para uma atuao mais efetiva dos professores de

    msica (Almeida, 2005, p.51).

    As situaes dilemticas (Zabalza, 1994) podem ser melhores compreendidas a partir dos

    relatos dos dirios e de sua anlise, tanto em artigos, para que outros professores reflitam a partir

    deles, quanto da discusso na aula da formao inicial, para que o autor dos dirios e a turma

    possam refletir sobre estas situaes. Nesta anlise, buscamos pontuar, a partir dos dirios de

    dois alunos-professores em formao, algumas situaes presentes em contextos religiosos,

    almejando apontar especificidades desses contextos dentro de uma abordagem de Educao

    Musical em mltiplos espaos.

    importante destacar que tais reflexes no pretendem criar uma espcie de mtodo

    de educao musical religioso, nem privilegiar determinadas denominaes religiosas. O

    lugar desta discusso pensarmos em possibilidades de incluirmos os contextos religiosos,

    abrangendo todos os modos de religiosidades, na pauta de uma Educao Musical pensada a

    partir das configuraes contemporneas de produo e (re)significaes da Msica.

    A pretenso desse texto foi, portanto, discutir sobre as possibilidades e os desafios de

    uma Educao Musical marcada pelos contextos sociais, pelas idiossincrasias de cada espao

    e as diferentes estratgias que o educador musical deve dispor ao atuar nesses ambientes. Ao

    estendermos essa discusso formao de professores, podemos nos perguntar se os cursos

    superiores em Msica tm promovido problematizaes acerca dos espaos de Educao

    Musical que emergem no fluxo das experincias sociais.

    Conforme Almeida (2010):

    [...] saber como os cursos de licenciatura em msica esto preparando os seus

    alunos para tratar a diversidade dentro da universidade e, futuramente, em

    seus locais de trabalho, nos dar subsdios para uma discusso mais ampla e

    aprofundada sobre o tema (p.51).

    Nesse sentido, a reflexo dos licenciandos sobre suas prticas educativas, narradas a partir

    da escrita de dirios reflexivos, desperta algumas inquietaes. A nfase dos contextos religiosos,

    apenas um recorte das mltiplas dimenses sociais possveis, se insere num panorama mais

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    Andr Mller Reck Doutorando pelo Programa de Ps-Graduao em Educao, da Universidade

    Federal de Santa Maria - PPGE/UFSM. Professor substituto no Departamento de Msica, da UFSM (Santa

    Maria/RS).

    Ana Lcia Louro Professora Associada do Departamento de Msica, da Universidade Federal de Santa

    Maria, e docente pesquisadora do Programa de Ps-Graduao em Educao, da Universidade Federal

    de Santa Maria - PPGE/UFSM (Santa Maria/RS). [email protected]

    Mariane Martins Rapso Licenciada em Msica pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestre

    em Educao pelo Programa de Ps-Graduao em Educao - PPGE/UFSM. Atua como Professora de

    Msica no Colgio Antnio Alves Ramos e na Escola Estadual de Educao Bsica Augusto Ruschi, na

    cidade de Santa Maria - RS.

    Recebido em 07/07/2014

    Aprovado em 08/09/2014


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