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PREVISÕES TRADICIONAIS DE TEMPO E CLIMA NO CEARÁ: O ......menor escala, na Fundação Cearense de...

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19 Sociedade & Natureza, Uberlândia, 19 (2): 19-31, dez. 2007 Previsões tradicionais de tempo e clima no Ceará: O conhecimento popular à serviço da ciência Marcelo Theophilo Folhes, Nelson Donald PREVISÕES TRADICIONAIS DE TEMPO E CLIMA NO CEARÁ: O CONHECIMENTO POPULAR À SERVIÇO DA CIÊNCIA Traditional weather and climate forecasts in Ceará: lay knowledge in the service of science Marcelo Theophilo Folhes Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais Doutor em Sensoriamento Remoto pelo INPE [email protected] Nelson Donald University of East Anglia Antropôlogo pela Universidade do Arizona (EUA) Doutor em Antropologia Aplicada pela Universidade do Arizona (EUA) [email protected] Artigo recebido para publicação em 09/04/2007 e aceito para publicação em 07/08/2007 RESUMO: Este artigo trata da interpretação das manifestações da natureza que estão associadas com as previsões meteorológicas e que é atribuída às pessoas que possuem aguçada sensibilidade de observação. As previsões elaboradas pelos sertanejos, com base em sua experiência empírica, podem ser importantes para as projeções climáticas feitas, com base probabilística, por instituições de meteorologia. Durante uma pesquisa de campo, realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 1998, quando foram visitados seis municípios do estado do Ceará, cada qual representando diferentes regiões climáticas, foram entrevistadas 484 famílias de agricultores. Entre outros objetivos, o trabalho proporcionou uma melhor compreensão sobre os métodos populares de previsão tradicionais de tempo e clima. Partindo do pressuposto de que tanto as previsões populares como as dos institutos de meteorologia são, naturalmente, sujeitas a erros e por isso estão em constante aprimoramento, o melhor entendimento sobre o uso das previsões empíricas por parte do sertanejo pode, contudo, influenciar a aceitação de qualquer outra tentativa de predizer as condições climáticas. Palavras-chave: Previsões meteorológicas; previsões tradicionais; seca; Ceará. ABSTRACT: This article examines the meteorological interpretations of phenomenon that are made by careful observers of nature. The climate forecasts, made by the sertanejos and based on empirical observations, have relevance for the probability-based climate forecasts developed by meteorological institutions. In 1998 research was carried out in six different municípios and microclimates during the months of January and February. A total of 484 household interviews were conducted. One research objective was to better understand the lay methods involved in developing weather and climate forecasts. Both the lay forecasts as well as the institutional forecasts are incomplete and constantly improving. Increasing our understanding of how empirically based forecasts are used by the sertanejos is one way to influence the
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Previsões tradicionais de tempo e clima no Ceará: O conhecimento popular à serviço da ciênciaMarcelo Theophilo Folhes, Nelson Donald

PREVISÕES TRADICIONAIS DE TEMPO E CLIMA NO CEARÁ:O CONHECIMENTO POPULAR À SERVIÇO DA CIÊNCIA

Traditional weather and climate forecasts in Ceará:lay knowledge in the service of science

Marcelo Theophilo FolhesInstituto Nacional de Pesquisas Espaciais

Doutor em Sensoriamento Remoto pelo [email protected]

Nelson DonaldUniversity of East Anglia

Antropôlogo pela Universidade do Arizona (EUA)Doutor em Antropologia Aplicada pela Universidade do Arizona (EUA)

[email protected]

Artigo recebido para publicação em 09/04/2007 e aceito para publicação em 07/08/2007

RESUMO: Este artigo trata da interpretação das manifestações da natureza que estão associadas com asprevisões meteorológicas e que é atribuída às pessoas que possuem aguçada sensibilidade deobservação. As previsões elaboradas pelos sertanejos, com base em sua experiência empírica,podem ser importantes para as projeções climáticas feitas, com base probabilística, porinstituições de meteorologia. Durante uma pesquisa de campo, realizada nos meses de janeiroe fevereiro de 1998, quando foram visitados seis municípios do estado do Ceará, cada qualrepresentando diferentes regiões climáticas, foram entrevistadas 484 famílias de agricultores.Entre outros objetivos, o trabalho proporcionou uma melhor compreensão sobre os métodospopulares de previsão tradicionais de tempo e clima. Partindo do pressuposto de que tanto asprevisões populares como as dos institutos de meteorologia são, naturalmente, sujeitas a errose por isso estão em constante aprimoramento, o melhor entendimento sobre o uso das previsõesempíricas por parte do sertanejo pode, contudo, influenciar a aceitação de qualquer outratentativa de predizer as condições climáticas.

Palavras-chave: Previsões meteorológicas; previsões tradicionais; seca; Ceará.

ABSTRACT: This article examines the meteorological interpretations of phenomenon that are made bycareful observers of nature. The climate forecasts, made by the sertanejos and based onempirical observations, have relevance for the probability-based climate forecasts developedby meteorological institutions. In 1998 research was carried out in six different municípiosand microclimates during the months of January and February. A total of 484 householdinterviews were conducted. One research objective was to better understand the lay methodsinvolved in developing weather and climate forecasts. Both the lay forecasts as well as theinstitutional forecasts are incomplete and constantly improving. Increasing our understandingof how empirically based forecasts are used by the sertanejos is one way to influence the

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acceptance of other methods of predicting climatic conditions.

Keywords: Meteorological forecasts; traditional forecasts; drought; Ceará

percepções das populações locais a respeito dainstabilidade climática típica do semi-árido corres-ponde ao primeiro passo para tornar acessível e útil,principalmente aos agricultores de sequeiro, asinformações geradas pelas novas tecnologias deprevisão de tempo e clima. Através de entrevistasfeitas com agricultores de várias regiões do estadodo Ceará, este artigo explora a relevância do co-nhecimento empírico do sertanejo quando, atual-mente, se pretende popularizar as previsões climá-ticas.

Sabe-se que a moderna tecnologia de pre-visão climática utiliza supercomputadores, modelosmatemáticos-físicos, imagens de satélites e instala-ções modernas, como já é realidade no Centro dePrevisão de Tempo e Estudos Climáticos do INPE(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e, emmenor escala, na Fundação Cearense de Meteoro-logia e Recursos Hídricos (FUNCEME). Supõe-seque um bom sistema de previsão climática seja defundamental importância como um instrumento àdisposição dos agricultores quando do planejamentoda produção agrícola. Por conseguinte, torna-se ne-cessária a tarefa de investigar a forma pela qual ossertanejos interpretam as incertezas do clima semi-árido, e como incorporam esse conhecimento nodesenvolvimento e disseminação de novas previsões.

Pesquisas junto aos produtores rurais mos-traram que o nível de utilização das informações cli-máticas pelos agricultores de sequeiro ainda é muitobaixo (LEMOS et al., 2001; FOLHES et al., 1999).Elas constataram que as informações meteorológicascolocadas à disposição dos agricultores cearenses nãosão compreendidas e usadas como esperam os ser-viços de meteorologia. Na verdade, apesar dos esfor-ços destas instituições, parece não haver ainda umaforma apropriada para transmitir a informação cli-mática aos agricultores e, tão pouco, de forma mais

INTRODUÇÃO

Há muito tempo o fenômeno das secas temsido apontado como uma das principais causas doatraso do processo de desenvolvimento do Nordestedo Brasil, de modo geral, e do estado do Ceará, emparticular (PAULINO, 1992; LEITE, 1985; VILLA,2000; SOUZA, 1986). A argumentação é funda-mentada na constatação de que as secas provocamo colapso da produção agropecuária, o desman-telamento do sistema produtivo e a destruição dosmeios de produção acumulados à custa de grandessacrifícios.

A histórica vulnerabilidade a que está ex-posta a maior parte da população nordestina emdecorrência da instabilidade climática, é intensificadapelas ocorrências de períodos de seca. As secasocorrem em seu enorme bolsão trópico semi-árido,que compreende cerca de 900 mil km2, segundo oscritérios de semi-aridez adotados pela antiga Supe-rintendência do Desenvolvimento do Nordeste –SUDENE, atual Agência do Desenvolvimento doNordeste – ADENE (CODEVASF, 1998). Dentro doNordeste brasileiro, o Ceará corresponde ao estadoda federação mais vulnerável aos efeitos das secasvisto que o semi-árido ocupa quase a totalidade doseu território.

No semi-árido cearense, o sertanejo luta paraconviver com os obstáculos naturais, adaptando seusmodos de vida às imposições de um meio ambienteextremamente hostil. Ele cria estratégias de sobre-vivência apoiadas em conhecimentos empíricos acu-mulados ao longo de muitas gerações, e coloca aseca no centro de sua estratégia econômica e de vida,para, assim, minimizar o risco de perdas e de fracassona produção dos meios de sobrevivência.

Este trabalho sugere que o entendimento das

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abrangente aos tomadores de decisão. Por outro lado,ocasionalmente os meteorologistas reclamam que ogoverno não presta atenção necessária à informaçãoclimática, particularmente devido ao fato de previsõesclimáticas serem probabilísticas (FUNCEME, 2002).

A importância cultural das “experiências”acumuladas em determinadas circunstâncias ambien-tais tem sido vista como um elemento crucial para odesenvolvimento de estratégias sustentáveis para odesenvolvimento agrário. Essa abordagem baseia-sena necessidade de se entender os conhecimentos eas habilidades dos agricultores que vivem num am-biente particularmente difícil, além da importânciade se realizarem estudos sobre o conhecimento tradi-cional em relação aos fenômenos climáticos.

No semi-árido cearense não faltam as supers-tições, crendices e observações relativas às previsõesde tempo e clima, que são constantes preocupaçõesdo sertanejo (SERAINE, 1983; BARROSO, 1949).Chamam-se “experiências” os fatos ou razões emque se baseiam tais prognósticos, enquanto que os“profetas das chuvas” são os personagens do folclorecapazes de interpretar os sinais oferecidos pela na-tureza e traduzi-los em previsões meteorológicas.Cabe ressaltar que as previsões populares do tempoe do clima não são exclusivas do Nordeste brasileiro(ANTUNEZ DE MAYOLO, 1981; MAGALHÃES,1952). Assim, é muito provável que as “experiências”de chuva do agricultor nordestino tenham corres-pondência entre outros povos.

O que se discute é que as previsões elabo-radas pelos profetas da chuva, com base em suaexperiência empírica, podem ser um complementoimportante para as previsões climáticas realizadas,com base probabilística, por institutos de pesquisameteorológica. Dado que a decisão de quando plantaré tomada individualmente por cada produtor rural eque na mente de todo sertanejo existe um “profetada chuva”, torna-se de fundamental importância aconsideração do conhecimento empírico por partedo conhecimento científico. Essa aproximação pode-ria trazer maior credibilidade à informação climáticae melhorar os canais de comunicação, beneficiando

em última instância o produtor rural do semi-árido.

Portanto, este artigo apresenta resultadosparciais obtidos do projeto de pesquisa multidisciplinar“As implicações sociais e políticas das previsõesclimáticas: o Ceará como estudo de caso no Nordestebrasileiro”, realizada por pesquisadores da Univer-sidade do Arizona (UA), Universidade Federal doCeará (UFC) e FUNCEME (LEMOS et al., 1997).A principal motivação da pesquisa se resumiu emlevantar informações úteis para o processo de análisedas políticas públicas especialmente responsáveis emresponder às secas, e, ainda, traçar um perfil da vul-nerabilidade social da população pobre e rurícola doCeará.

De forma que o objetivo deste artigo é con-tribuir com o entendimento e a divulgação do conhe-cimento popular. Para isso, foram reunidas e agru-padas as informações empíricas de previsão do climae do tempo, após consultar um banco de dados com484 depoimentos. O que segue é a tentativa de classi-ficação dos fenômenos da natureza e sua relaçãocom o comportamento do clima e, sobretudo, com apossibilidade ou não de ocorrer precipitação.

CARACTERIZAÇÃO DAÁREA DE ESTUDO

O levantamento dos depoimentos aconteceude janeiro a fevereiro de 1998. Durante esse períodoforam pesquisados seis municípios, cada um repre-sentando diferentes regiões climáticas do Ceará, desdea região do Cariri, localizada no sul do estado, até olitoral norte cearense. A Figura 1 apresenta a locali-zação dos municípios visitados no território do es-tado.

As condições climáticas no Ceará são influ-enciadas pela conjugação de diferentes sistemas decirculação atmosférica que tornam complexa sua cli-matologia. Salienta-se ainda, a existência de fatoresgeográficos e outros que atuam sobre as condiçõesclimatológicas em interação com os sistemas zonaise regionais de circulação atmosférica, tais como:latitude, influências orográficas, forte insolação,

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elevadas taxas de evaporação e, principalmente, amarcante irregularidade das chuvas no tempo e no

espaço (Roucou et al., 1996).

Figura 1. Localização dos municípios pesquisados no estado do Ceará.

O ritmo sazonal é marcado pelo regime dechuvas, constituindo-se por duas estações: seca echuvosa. De acordo com Ferreira (1973), enquantoa ocorrência de chuvas de verão, período popular-mente conhecido no Ceará como “inverno”, estárelacionada aos deslocamentos das massas de ar,principalmente da Massa Equatorial Norte, os pe-ríodos prolongados de seca relacionam-se à pene-tração da Convergência Intertropical. O regime dechuvas no Ceará, como em praticamente todo oNordeste brasileiro, é altamente concentrado naestação chuvosa: cerca de 90% dos totais pluvio-métricos ocorrem em apenas seis meses. Nos sertões,

o período mais chuvoso corresponde aos meses demarço e abril, e a pluviosidade anual está em tornode 550 milímetros; enquanto no litoral e nas serras,ela supera 1.000 milímetros e o regime de precipitaçãoé mais bem distribuído, de dezembro a junho.

A manifestação da instabilidade climática naregião Nordeste também resulta da ocorrência dofenômeno El Niño Oscilação Sul (ENOS). O ENOSpode ser definido como um fenômeno associado aosistema oceano-atmosfera no Oceano Pacífico, o queprovoca importantes conseqüências para o clima emtodo o globo (ANEEL, 1999). No Nordeste brasileiro,

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o ENOS traz sérios prejuízos, pois intensifica a secana região. No entanto, a ocorrência do fenômenoENOS e seus impactos na região está igualmenteassociada ao que acontece também no OceanoAtlântico, ou seja, ele é influenciado por uma outracomponente oceânica, além do Oceano Pacífico(NOBRE, 1998).

A análise dos dados dos postos pluvio-métricos, localizados em quatro dos seis municípiosestudados, revela que a precipitação possui umavariância inter-anual significativa, e que esse indicadorvaria de município para município, em um mesmoano, como pode ser observado na Figura 2. Osmesmos gráficos mostram também que os episódiosde seca, como os que ocorreram em 1983, 1987,1993 e 1998, são associados com uma queda ex-pressiva na produção de grãos. A redução do volumede chuvas nestes anos coincidiu com a ocorrênciado fenômeno El Nino. Ao passo que nos anos de1985, 1986, 1989, 1994 e 1995, moderadas e fortes

precipitações possibilitaram aumentos consideráveisna produção de grãos.

Entretanto, a relação direta entre a produçãoagrícola e o regime de chuvas não pode ser explicadaa partir da simples observação da medida anual daprecipitação. Numa região onde o uso da terra écaracterizado por cultivos de sequeiro, os totaisdiários de precipitação correspondem à medidas maisrelevantes do que simplesmente o conhecimento dostotais anuais das precipitações pluviométricas. Issose justifica pela ocorrência de períodos de estiagens,em plena estação das chuvas, que não podem serdetectados quando se analisam isoladamente os totaisanuais de precipitação. As estiagens ajudam a pro-mover desequilíbrios hidrológicos e significativa va-riabilidade da distribuição do total mensal de chu-vas, como se pode constatar na Figura 3. Ademais,inexiste previsibilidade da ocorrência destes fenôme-nos climáticos seja através das previsões feitas combase científica ou por meio dos sinais da natureza.

Figura 2. Séries temporais de precipitação e produção de grãos (milho, feijão e arroz), nos município de Barbalha,Parambu, Guaraciaba do Norte e Boa Viagem. Fonte: FUNCEME.

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De forma geral, a agricultura de baixo ren-dimento apoiada nos consórcios formados pelasculturas de milho e feijão é pouco desenvolvida e semantém em moldes tradicionais de cultivo; a pro-dução destina-se praticamente à subsistência. Essetipo de agricultura fundamentado no sistema deprodução caracterizado pelo complexo culturas desubsistência-pecuária é altamente vulnerável aofenômeno das secas, como pode ser comprovadoobservando os gráficos da Figura 2. Portanto, devidoaos grandes riscos que são inerentes à atividadeagropecuária, sobretudo em condições de semi-aridez, o peso das rendas externas (trabalho assa-lariado temporário, atividades complementarescorrespondentes, trabalho urbano de alguns membrosda família, aposentadoria, remessas de imigrantes,etc) pode ser decisivo para a sobrevivência dessasfamílias. Os fatos históricos revelam que a regiãovem sendo marcada por períodos especialmentesecos provocando migrações em massa, afetandomilhões de pessoas, desestruturando a economiaregional e refletindo-se em várias outras regiões dopaís (VILA, 2000).

MATERIAIS E MÉTODO DEINVESTIGAÇÃO

Na etapa inicial do trabalho, foi realizada uma

pesquisa exploratória da região, buscando selecionaros municípios que fossem representativos das dife-rentes regiões climáticas das quais a amostra deentrevistados derivaria. Além da média histórica dasprecipitações, foram consideradas as diversas formasde exploração e prática agrícolas, infra-estruturassociais e produtivas e a condição de vida da popu-lação rural. Durante esta primeira etapa, iniciou-se oprimeiro contato com as autoridades e instituiçõeslocais. Esperava-se, no final, encontrar diferençassignificativas no que diz respeito à vulnerabilidadeda população rural nos municípios selecionados, emface das secas periódicas que historicamente assolamo estado.

Durante a pesquisa exploratória diversas lis-tas de associações de agricultores foram coletadasnos sindicatos rurais, as quais continham os nomes eo endereço dos associados. Atualmente, a grandemaioria dos produtores rurais cearenses pertence aalguma associação de agricultores, através da qualeles adquirem acesso aos principais programasgovernamentais ligados à promoção do desenvolvi-mento rural. Além disso, a condição de associadoconfere aos agricultores meios de garantir, no futuro,o direito à aposentadoria rural. Portanto, para os finsda pesquisa, as listas de associados serviram comomaterial básico para se proceder à amostragem.

Figuras 3. Totais de precipitação ocorridas no mês de março, em Parambu. Fonte: FUNEME.

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Dessa forma, foi definida uma amostraaleatória probabilística simples de aproximadamente80 famílias de agricultores em cada um dos seismunicípios selecionados, totalizando 484 entrevistas.A grande maioria das famílias entrevistadas residiana zona rural. Em alguns casos, as famílias selecio-nadas residiam em centros urbanos ou eram proprie-tárias ou arrendatárias de terra.

Feita a análise das informações obtidas nasentrevistas com os agricultores cearenses, dentre ou-tras informações, descobriu-se um número signifi-cativo de previsões populares que foram colhidasdurante os trabalhos de campo. Esses depoimentosrepresentam uma manifestação do variado folcloredos sertões, serras e litoral cearenses que insiste emse manter vivo apesar de todo o aparato tecnológicoe de novos prognósticos climáticos.

Para a elaboração deste trabalho foi necessá-rio consultar o banco de dados de 484 depoimentos,reunir e agrupar as informações que foram consig-nadas neste artigo. Portanto, segue na próxima seçãouma tentativa de classificação dos elementos de quese socorrem os sertanejos para tirar as conclusõessobre se, no próximo ano, haverá seca ou chuva.

A pesquisa empregou uma metodologiabaseada na integração de ferramentas qualitativas equantitativas. Para a análise das implicações dasprevisões climáticas, foram conduzidas entrevistasformais em uma amostra de 484 famílias de agricul-tores rurais, em seis municípios cearenses: Limoeirodo Norte, Barbalha, Boa Viagem, Parambu, Itaremae Guaraciaba do Norte (Figura 1).

Para o diagnóstico foi especialmente elabo-rado um modelo de questionário padronizado queseguiu um roteiro de entrevista pré-estabelecido. Omaterial foi criado com base nos depoimentos acumu-lados durante as primeiras etapas da pesquisa econtou também com questões abertas que permitiramacompanhar o fio condutor do pensamento dosagricultores. A fim de evitar erros ou lacunas natipologia do questionário, e para aperfeiçoar o trei-namento da equipe de pesquisadores, um pré-teste

foi conduzido numa comunidade rural próxima àFortaleza.

PREVISÕES POPULARESDE TEMPO E CLIMA

Em geral, o sertanejo nordestino costumaobservar os sinais que revelam algo sobre o clima dopróximo ano. A seu modo, ele interpreta fatos danatureza e os relacionam com previsões empíricasdo clima. Para saber de antemão se o ano vai serseco ou chuvoso, os conhecedores dos sinais fazemsuas “experiências”. Os depoimentos acabaram reve-lando um rico universo de previsões populares declima e tempo, que aqui estão organizadas em gruposde “experiências”.

A observação do canto, atitude e condutados animais estão reunidas no primeiro grupo. Damesma forma, o comportamento da vegetação lem-brado pelos adivinhadores mereceu um grupo àparte. A posição das constelações, o círculo da lua, omovimento os astros, a forma das nuvens, o compor-tamento das marés e o vento constituíram um novoagrupamento. E, finalmente, as crenças religiosas nãopoderiam deixar de faltar neste trabalho.

A associação do comportamento dos animaiscom a chegada de chuva ou de seca é evidente emmuitos relatos registrados em todos os municípiosvisitados. Tais observações são freqüentemente usa-das pelos agricultores locais para antecipar os fenô-menos climáticos. Mais de dez animais, entre insetos,pássaros, roedores, peixes e grandes mamíferos,foram mencionados.

As formigas foram as mais lembradas pelosentrevistados. Um agricultor de Guaraciaba do Norte,por exemplo, disse que as formigas quando constroemsuas casas em lugares altos e secos é sinal de chuvaà vista. Outro agricultor lembrou que formigas lim-pando o ninho, colocando os ovos para fora, no finaldo ano, indica a chegada de chuva. Algumas pessoasentrevistadas no município de Boa Viagem atribuíramo fato de marimbondos (Polistes spp.), abelhas (Apismellifera) e moscas (Musca domestica) invadirem

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as casas dos moradores à chegada de tempo chuvoso.Grandes revoadas de formigas também são sinais dechuva. Por outro lado, o desaparecimento repentinodos insetos no final do ano é, para um agricultor deLimoeiro do Norte, sinônimo de tempo seco.

Muitos dos agricultores entrevistados afir-maram que podem prever a ocorrência de chuvas ede seca apenas observando o ninho do pássaro co-nhecido como joão-de-barro (Furnarius rufus). Seo ninho tem a frente virada para o poente, significaboas chances de ocorrerem chuvas, e se o pássaro ofaz com a frente virada para o nascente, significamaior probabilidade de tempo seco. Aliás, a presençade muitos ninhos de pássaros e o canto alto e persis-tente da coruja (Speotyto cunucularia), da siriema (Ca-riama cristata), do sapo cururu (Bufos spp.) e do xe-xéu (Cacicus cela), nos primeiros dias do ano, tam-bém representam sinais tradicionais de tempo chuvoso.

Em Boa Viagem, um entrevistado que cos-tuma caçar na região lembrou que, no mês denovembro, a presença de três ou quatro filhotes detatu (Tolypeutes tricinctus) abrigados na toca é umbom sinal de chuva. Por outro lado, toca de tatusem cria indica clima seco na próxima estação. Outrosentrevistados de Itarema descreveram a súbita saídados caranguejos dos buracos, nos últimos meses doano, como uma indicação da chegada de chuva. Nestamesma época, se a traíra (Hoplias malabaricus) e ocurimatã (Prochilodus lineatus), peixes comuns nosmaiores açudes de Parambu, aparecerem ovadas ésinal que vão desovar nas águas novas.

Além das observações do comportamentoanimal, alguns agricultores contam ainda com os sinaisdas plantas para antever as mudanças do tempo e doclima. O florescimento e a frutificação farta dealgumas árvores, o aparecimento de gramíneas ouleguminosas nos campos, e a exsudação de goma oude água do tronco de árvores nativas são exemplosde grupos de manifestações na natureza que foramregistradas pelos pesquisadores.

Segundo produtores rurais de Limoeiro doNorte, a estação chuvosa poderia ser antecipada

através da observação de algumas árvores após ocorte de seus troncos ou galhos. A chegada da chuvaestaria próxima se, no último mês do ano, o corte docajueiro (Theobromo cacao L.) revelar oaparecimento de muita resina, ou se for presenciadaa exsudação de goma no pau-branco (Auxemmaoncocalyx Allemao Taub.), ou água transpirando domufumbo (Combretum leprosum Mart.), dacatingueira (Caesalpinia bracteosa Tul.) e do sabiá(Mimosa caesalpinifolia Benth.). No entendimentodo sertanejo: “as árvores choram a água do orvalhoda noite”.

A quadra invernosa será boa se o mandacaru(Cereus jamacaru P.DC.) florescer em janeiro, ma-nifestação muito lembrada pelo homem do campo,ou se o mesmo acontecer com o cipó-vermelho(Lundia cordata Dc.), o pau d’arco (Tabebuia serra-tifolia Nicholson) em junho, o buriti (Mauritia fle-xuosa L.), o juazeiro (Zizyphus joazeiro Mart.), ocumaru (Amburana cearensis A. Smith.) em setem-bro, o umbuzeiro (Spondias purpúrea L.) em dezem-bro e a carnaúba (Copernicia prunifera (Mill.) H.Moore) no verão, assim como o flamboyant (Flam-boyant sp.), a mangueira (Mangifera indica L.), alaranjeira (Citrus aurantium L.) e o jasmim (Cissam-pelos sympodialis Eichl.).

Agricultores de Parambu associaram a che-gada de chuvas com a boa frutificação do pau-mocó(Luetzelburgia auriculata Ducke) e da emburana decheiro (Amburana cearensis A. Smith.), de setembroa outubro. Mas esta observação não é exclusiva deParambu. Em Boa Viagem, um dos entrevistadosrelatou que o coco catolé (Syagrus olearacea) carre-gado de frutos é sinal de longo inverno. Em Barbalha,onde é comum encontrar diversas espécies depalmeiras, a macaúba (Acrocomia aculeata (N. J.Jacquin) Loddiges) repleta de cocos é sinal de tempoúmido. Dois agricultores observaram também que aabundante frutificação do babaçu (Orbignyaphalerata Mart.), do pequi (Caryocar coriaceumWittm.), do marmeleiro (Croton sonderianus Muell.),da aroeira (Schinus terebenthifolius Raddi) e damangueira significa que a estação de chuva seráantecipada.

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O aparecimento do milho-de-cobra (Dra-contium asperum C. Koch) e do feijão bravo (Dio-clea grandiflora Mart.) no campo agrícola é outrosinal da natureza usado pelo homem do campo.Agricultores de Parambu disseram que se o milho decobra encher suas espigas de grãos significa que oinverno para o próximo ano pode ser confirmado.No entanto, se as espigas crescerem chôchas a secaserá inevitável. A mesma associação acontece com ofeijão bravo.

Até mesmo o sinal das algas foi mencionadopor alguns informantes em Itarema. Segundo ospescadores, quando algas de várias cores (espéciesindeterminadas) surgem na água do mar é sinal dechuva porvir. Um dos entrevistados acredita numinverno bom quando, no final do ano, aparecer oque ele chama de “gelo” ou “rapé”, algas que entramjunto com a maré na desembocadura dos riachos.Os relatos sobre os sinais da maré também estão,logicamente, concentrados em Itarema, onde muitosinformantes disseram que maré cheia na entrada doano significa bom inverno. Nesse mesmo dia se omar apresenta-se em ressaca é sinal de que o invernoserá bom.

Boa parte dos agricultores entrevistadosalegou usar os fenômenos que acontecem naatmosfera da Terra ou até mesmo os astros paraespecular sobre a chegada de chuva ou de seca. A“experiência” mais divulgada pelos informantes é,com certeza, a da “barra” de nuvens — faixa estreitade nuvens — que se ergue do nascente, exatamenteno amanhecer dos primeiros dias do ano. Umagricultor de Limoeiro do Norte prefere observar aprimeira lua cheia de janeiro: caso a lua se eleve ouse ponha por detrás da barra, as chances de ocorreremintensas precipitações são grandes.

Outras associações entre o clima e a lua fo-ram registradas. Um velho agricultor de Boa Viagemrelatou que se a primeira lua cheia de janeiro sairvermelha por detrás de uma barra de nuvens indicaque a estação será chuvosa, mas se ela surgir prateadaé sinal de seca. Se a lua desponta no céu envolta deum círculo muito colorido a chuva é esperada no dia

seguinte, e se o círculo é esbranquiçado e recorrentedurante o final da estação seca é sinal de chuvas napróxima estação. Não menos importante para algunsagricultores, o ângulo da lua representa uma indicaçãopara a previsão climática. Outro entrevistado em BoaViagem fez a seguinte referência: “O mais importan-te é acompanhar o movimento da lua. Quando elaestá virada para o nascente é sinal de bom inverno”.

Relâmpagos riscando o céu a partir desetembro e, especialmente, na noite de natal é umindício da chegada da estação chuvosa. Para umagricultor de Guaraciaba do Norte, a confirmaçãoda chegada das chuvas se dá quando relampeja nolado do nascer do sol, nos primeiros dias do ano. Jápara um observador de Itarema, quando o vento vemdo norte e formam-se depois nuvens no sul, aprobabilidade de chover é grande.

Lembrada em todos os municípios por ondea equipe passou, a estrela D´Alva (planeta Vênus)aparece como sendo um astro tão importante comoa lua. De acordo com um entrevistado de Parambu,por exemplo, no ano em que a estrela D´Alva surgeno nascente é prenúncio de estação chuvosa. EmItarema, se a estrela se mostra visível na direção domar, em dezembro, significa bom sinal. Enquantoque para um agricultor de sequeiro, que vive na áreade várzea de Limoeiro do Norte, quando a estrelaD´Alva se distancia da lua e desaparece e, ao mesmotempo, surgem três novas estrelas no céu, pode-seesperar chuva para o próximo ano. Outro informanteda mesma região lembrou o rastro de nuvens quecorre no céu, do mar para o sertão, e que ele chamade “sinal de giração”, indica a chegada de chuva napróxima estação. Assim como muitos redemoinhosou rajadas de ventos circulares durante o verãotambém significa que a produção agrícola estarágarantida.

A direção do vento também foi associada às“experiências”, em Parambu. Segundo um agricultor:“Logo antes da chegada do inverno, acende-se umavela e se observa a direção da fumaça que sobe. Sea fumaca se inclina na direção do nascente, significainverno bom. Mas se a fumaça levanta inclinada para

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o poente, significa inverno ruim”. Outro sertanejoconfirmou o sinal: “Quando a fumaça da lenha quei-mada vai no rumo do nascente, vai haver inverno”.Em Barbalha: “Quando a fumaça do cigarro vai parao poente, chove, se for para a direção contrária nãochove”. Em Boa Viagem: “Queima o mato e observaa direção da fumaça, se for em direção ao nascenteé bom inverno”. E finalmente em Itarema: “A gentetem muita fé nos ventos. Quando o vento do nortesopra forte é um grande sinal de chuva”.

A maioria dos agricultores acredita quealgumas previsões climáticas podem estar associadascom certos dias santos. Por exemplo, se durante oamanhecer do dia de Santa Luzia, 13 de dezembro,aparecer uma “barra” de nuvens no horizonte éprevisto um inverno chuvoso. E é exatamente comSanta Luzia que a experiência das pedras de salestá associada, a mais informada pelas pessoas nosmunicípios visitados. Contam os agricultores que estaexperiência deve ser feita em jejum no dia 12 dedezembro, ou seja, na véspera do dia santo. Expostaao sereno da noite, o sertanejo coloca sobre o telhadoou qualquer outra superfície lisa três pedras de salque representam os meses de janeiro, fevereiro emarço. A pedra de sal que amanhecer mais molhadarepresenta o mês do início das chuvas. Foram regis-tradas pequenas variações no número de pedras desal usadas na experiência. Ainda no dia de SantaLuzia, um agricultor de Parambu disse que costumaplantar sementes de melancia e abóbora “no seco”,e se elas germinarem é sinal de um bom inverno. Nogeral, os agricultores o consideram um bom dia paraarriscar o plantio. Em Itarema, pescadores afirmaramque a maré quando aparece muito alta no dia deSanta Luzia e no primeiro dia do ano é sinal deinverno promissor.

Em Barbalha, um entrevistado afirmou quese não chover até o dia de São Tomé, 21 de dezem-bro, provavelmente só choverá em janeiro do pró-ximo ano. Outros garantem a vinda da estação chu-vosa se, nesse mesmo dia, uma leve neblina umedecero ar. Ainda em Barbalha, município onde maisagricultores percebem a importância da religião nadeterminação do clima, localizado na região do Cariri

onde Padre Cícero nasceu, o dia de Santos Reis, 6de janeiro, pode ser um sinal de inverno se apareceruma “barra” longa no céu no momento do pôr dosol.

Nossa Senhora das Candeias, cujo dia secomemora em 2 de fevereiro, foi mais lembrada pelosagricultores de Boa Viagem. Pode-se contar com bominverno se nesse dia, pela manhã, o vento soprar afumaça para o lado do nascente e, melhor ainda seráse chover exatamente nesse dia. Mas se o dia ama-nhecer claro e sem nuvens implica dizer que haveráestiagem. Em Guaraciaba do Norte, um agricultorcomentou que na procissão de São Sebastião, 20 dejaneiro, os galhinhos de laranjeira levados pelasbeatas não murcham se “Deus quiser um bom invernopara o próximo ano”. Relâmpagos no dia 8 dedezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição,significa ótimo prenúncio de inverno.

Praticamente todos os agricultores acreditamque se não chover ate o dia 19 de março, dia de SãoJosé, padroeiro do Ceará, o plantio e, conseqüen-temente, toda a produção agrícola estará ameaçada.O dia de São José representa a última esperança dechuva para os agricultores que dependem dela parasobreviver.

A IMPORTÂNCIA CULTURAL DASPREVISÕES POPULARES

A importância das “experiências” vai alémda capacidade de percepção das evidências empíricasencontradas na natureza por parte dos “profetas daschuvas”. Seu conhecimento também proporciona umolhar rápido sobre o ponto de vista do sertanejo,bem como sobre a forma típica de interação do ho-mem do sertão com a natureza. Certamente, as pre-visões populares não se limitam em tentar antever osucesso ou fracasso da safra agrícola, na verdade,as profecias fornecem também um entendimento dovínculo desses indivíduos com o meio natural.

Tais “experiências” não somente procuraminterpretar os sinais da natureza, mas também darsignificado aos fenômenos que nela ocorrem. Por

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exemplo, o homem do campo que percebe a mudançano comportamento das formigas e associa esta mu-dança com a chegada das chuvas, ao mesmo tempo,está explicando o porquê da reação do inseto aoestímulo dado pelas condições meteorológicas. Deforma que a sensibilidade dos profetas tem duplafunção: atribuir significado aos fenômenos queocorrem na natureza, e interpretar o significado doseventos.

Muitos acreditam que a previsão popularmereceria ter sua qualidade reconhecida pela comu-nidade científica que cada vez mais tenta oferecer àpopulação o uso das previsões climáticas feitas combase probabilística. Enquanto as “experiências” rea-lizadas pelos “profetas das chuvas” são multi-dimensionais, ou seja, servem a uma variedade depropósitos culturais, as previsões científicas sãosomente tentativas de prever o comportamento doclima no futuro, elaboradas sem qualquer referênciacultural para muitos dos agricultores que, na grandemaioria, possuem baixo nível de escolaridade. Talvez,os climatologistas desconheçam que os agricultoresde sequeiro do semi-árido brasileiro tomam decisõesacerca das práticas agrícolas com base em muitosoutros fatores, como por exemplo, no tamanho dafamília e da mão-de-obra disponível, nas fontes derenda usadas no financiamento da produção agrícola,na idade do agricultor, na condição de pobreza dafamília, etc. Na verdade, não foram poucos os entre-vistados nesta pesquisa que afirmaram que mesmose existissem mecanismos perfeitos de previsão cli-mática, e se os mesmos indicassem para uma eventualseca, os agricultores ainda sim plantariam suas roçasnas primeiras chuvas (FINAN e NELSON, 2001).Para muitos, o risco de não plantar significa inevita-velmente o comprometimento da segurança alimentarda família no futuro próximo. Exatamente por isso,as previsões populares não são originalmente conce-bidas como preceito no cumprimento das decisõesem torno da atividade agrícola. Ao contrário, as“experiências” mostram-se sobretudo como umacontribuição ao entendimento dos fenômenosnaturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que os agricultores do Ceará, emparticular, possuem seu próprio sistema de moni-toramento que os ajudam a se prevenir contra ostraumáticos eventos climáticos. Esse sistema, que sebaseia em observações tradicionais e empíricas doambiente circundante e que passadas entre as váriasgerações, forma a estrutura pela qual os sertanejosinterpretam a instabilidade climática da região e suasimplicações diretas na produção agrícola de sequeiroe na pecuária.

A impressão que se tira é de que os sertanejosmais antigos são aparentemente mais familiares comesses grupos de “experiências” e tradições orais e,talvez, no passado depositavam mais confiança nasprevisões populares ou, até mesmo, se guiavam porelas antes de decidir sobre o planejamento agrícola— plantar ou não, o que e quando cultivar; é umahipótese. Mas uma coisa é certa, o conhecimentodos métodos tradicionais e populares de previsãoclimática serve como ponto de referência para ossertanejos, na tentativa de entender o potencial e aslimitações dos modernos prognósticos climáticos. Nãoseria insensato afirmar que os agricultores que estãocientes do grau de incerteza de suas próprias pre-visões, estariam mais abertos para a idéia de que asmodernas previsões estejam sujeitas também a erros.O agricultor não ignora a complexidade e dificuldadeem prever um elemento tão instável e indeterminadoquanto o clima no semi-árido nordestino.

A opinião de que suas previsões não maisfuncionam como costumavam no passado — “Ostempos estão confusos”; “Eu sempre observo a natu-reza, mas agora está muito confuso, tem muito des-matamento. Acho que o homem esta provocando aseca...”; “As “experiências” não valem mais nada,hoje está tudo trocado. As coisas estão muito dife-rentes do passado. Antes fazíamos uma experiênciae a leitura era certa, hoje nada mais dá certo”; “Hojeas “experiências” estão difíceis; o homem matou osbichos e matou a natureza, desmatando tudo”. —pode, contudo, influenciar a aceitação de qualqueroutra tentativa de predizer as condições climáticas.

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Ademais, estas observações empíricas coincidem comos resultados de pesquisas recentes que verificarama ocorrência de tendência nas séries temporais detemperatura do ar e precipitação. Silva (2004) eAmbrizzi et al. (2007), por exemplo, encontraramtendências de aumento significativo na temperaturado ar e de diminuição das precipitações, no Nordestebrasileiro.

Por outro lado, hoje, os próprios cientistasdão sinais de que começam a reconhecer a impor-tância dos sinais oferecidos pela natureza e que sãointerpretados pelos profetas sertanejos. O reco-nhecido meteorologista Carlos Afonso Nobre, em seudiscurso no Seminário de Tropicologia, em Recife,fez a seguinte referência: “Às vezes as pessoas tidascomo profetas, na verdade o que percebem sãoalgumas coisas realistas. Por exemplo, no interior doCeará, principalmente, esses profetas às vezes falam:quando os ventos, em novembro, dezembro e emjaneiro, são do norte haverá inverno bom. Mas, naverdade, eles estão enxergando esse fenômeno emgrande escala, de alguma maneira, e vice-versa,quando os ventos não são do norte, falam que oinverno vai ser fraco. Então, sempre há uma razãona natureza por detrás destas pertubações climáticas”(NOBRE, 1998).

A comunhão dos conhecimentos tem acon-tecido na prática quando, nos últimos anos, sempreno mês de janeiro, profetas e cientistas cearenses sereúnem em dois eventos paralelos na cidade deQuixadá. O Encontro dos Profetas Populares e oSeminário de Estudos Climáticos ressaltam o valordas profecias do homem do campo e o conhecimentodos homens que trabalham com a tecnologia moderna.Este tipo de encontro representa o primeiro passo natentativa de incorporar atributos culturais às previsõesclimáticas divulgadas pelos institutos de pesquisa.Apesar de tudo, os agricultores reconhecem que asprevisões populares estão também sujeitas a erros,mesmo aquelas elaboradas pelos mais respeitados“profetas das chuvas”. Entretanto, estas profeciasaté hoje possuem muita credibilidade, pois seusignificado vai além de fornecer simples previsõesmeteorológicas.

Quais lições podem ser tiradas das “expe-riências”? Pois mestres desta ciência não param deensinar: o profeta Augusto Silva, do Cariri, autor doAlmanaque do Ano, uma publicação que orienta osagricultores do Cariri sobre a importância do co-nhecimento do clima, diz que procura na naturezaas informações que a ciência não oferece com se-gurança. Chico Leiteiro e Chico Mariano, conhecidosprofetas de Quixadá. Expedito Epifânio, de Ocara,faz suas previsões estudando o comportamento dasabelhas. Pedro Nogueira Lima, conhecido em Ubajaracomo o “Profeta da Chuva”, explica que deve-seprimeiro observar as condições do inverno no Piauípara depois saber como será o inverno no Ceará.Antônio Lemos, de Fortaleza. Enfim, todos esseshomens e muitos outros ainda desconhecidos podemser importantes aliados da ciência convencional.

Para aqueles sertanejos mais curiosos ecapazes de fazer leitura existem raras publicaçõesque circulam pelos sertões e que trazem as “expe-riências”, crendices e profecias, muitas vezes deautores anônimos. Segundo o depoimento de umagricultor de Limoeiro do Norte, “profecia tem nolivro do Lunaro”, em referência à cartilha LunárioPerpétuo que Magalhães (1995) cita do livro de FelipeGuerra, Secas contra a seca, “tem para muitossertanejos ainda a força das Escrituras Sagradas”.Mas não fica atrás a maioria dos sertanejos que nãoconhece o alfabeto, já que podem contar com ocompositor e intérprete Luiz Gonzaga que, em Xotedas Meninas, canta: “Mandacaru quando floresce lána seca é sinal que a chuva chega no sertão...”

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