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Profissionais para Reorientar o Modelo Assistencial. Quantos e...

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Profissionais para Reorientar o Modelo Assistencial. Quantos e Quais? Which Health Professionals and How Many Are Needed to Reorient the Health Care Model? José Justino FaleirosJ o médico de família deve proteger seus pacientes dos especialistas inapropriados e os especialistas dos pacientes inapropriados. John Fry PALAVRAS-CHAVE RESUMO -Política de Saúde; ., . Ao longo do século 20, ocorreram t~s geraçOes de refonnas em sIstemas de saude. Quanto maJor a "- Saúde da Família; orientação de sistemas de saúde para a Atenção Primária, melhores os resultados de cuidados em ~ Recursos Humanos em relaçãOaos custos. A avaliação de necessidades/demandasé realizada por excel&cia no nfvel primário Saúde; dos sistemas d~ saúde e é onde a estrutura dos mesmos pode frustrar ou facilitar a adequada explora- -Cuidados Primários de ção das especialidades. AsfunçOes dos diferentes nfveis da atenção dfnica e da saúde pública são Saúde. apresentadas,assim como os diferentes nfveis administrativos. A gestão dos reCUJ:5OS humanos de um sistfma de saúde orientado para a estratégia do Programa de Saúde da FamBia necessita de 50% de médicos de lamBia. As demais especialidades -mais de 60 -resultariam em relativamente pequenas proporçOes de especialistas gerais, subespecialistas e profissionais da saúde pública. Estas alteraçOes I caracterizam mudança de paradigma, não apenas um especialista a ser acrescido aos já existentes, i determinam mudanças no ensino de medicina e geram inconláveis conflitos que, só poderão ser j suplantados por meio de amplos entendimentos entre todos os protagonistas, indusive o públic9. :i KEY-WORDS ABSTRACT J I -Health Policy; During the 2Jh century there have been three overIapping generations of health systems refonns. .The greater the orientation towards primary care, the better the outcomes of care in relation to costs. -Faffi1ly Health; Needs assessment is main/y the role ofprimary care, and that is where the strudure Dfthe health care HealthManpower; system can frustrate or faci/itate exploitation of the spedalized lields. The fundions of eadllevel of -PrimaryHealth Care. dinica! care and ofpublichealth are presented here, along with the respedive administrative levels. ' Human resources Inanagement in a health system, induding primary care, requires some 50% of fami/y practitioneJ:5. The otheJ:5 specialties -more than 60 -nonnally involve relative/y smaUer propoJtions of general specialists, super-specialists, and publichealth peJ:5onneL This means not on/y a dlange of paradigm (rather than merely adding one more spedalist to otheJ:5), but also dlanges in medica! training; meanwhi/e giving rise to count/ess conflicts that can on/y be resolved through broad agreements by alI protagonists, induding the lay publico I i Recebido em: 29/04/2002 i Reencammhado em: 06/12/2002 Aprovado em: 16/01/2003 'Professor Adjunto, Departamento de Medici"" Social, Facu/dadede Medici"", Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.
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Page 1: Profissionais para Reorientar o Modelo Assistencial. Quantos e Quais?bvsms.saude.gov.br/bvs/is_digital/is_0403/pdf/IS23(4)116.pdf · a necessidade de uma mudança radical, que tornasse

Profissionais para Reorientar o ModeloAssistencial. Quantos e Quais?

Which Health Professionals and How ManyAre Needed to Reorient the Health Care

Model?José Justino FaleirosJ

o médico de família deve proteger seus pacientes dos especialistas

inapropriados e os especialistas dos pacientes inapropriados.

John Fry

PALAVRAS-CHAVERESUMO

-Política de Saúde; ., .Ao longo do século 20, ocorreram t~s geraçOes de refonnas em sIstemas de saude. Quanto maJor a

"- Saúde da Família; orientação de sistemas de saúde para a Atenção Primária, melhores os resultados de cuidados em

~ Recursos Humanos em relaçãO aos custos. A avaliação de necessidades/demandas é realizada por excel&cia no nfvel primário

Saúde; dos sistemas d~ saúde e é onde a estrutura dos mesmos pode frustrar ou facilitar a adequada explora-

-Cuidados Primários de ção das especialidades. AsfunçOes dos diferentes nfveis da atenção dfnica e da saúde pública sãoSaúde. apresentadas, assim como os diferentes nfveis administrativos. A gestão dos reCUJ:5OS humanos de um

sistfma de saúde orientado para a estratégia do Programa de Saúde da FamBia necessita de 50% de

médicos de lamBia. As demais especialidades -mais de 60 -resultariam em relativamente pequenas

proporçOes de especialistas gerais, subespecialistas e profissionais da saúde pública. Estas alteraçOesI

caracterizam mudança de paradigma, não apenas um especialista a ser acrescido aos já existentes,

i determinam mudanças no ensino de medicina e geram inconláveis conflitos que, só poderão ser

j suplantados por meio de amplos entendimentos entre todos os protagonistas, indusive o públic9.

:i KEY-WORDS ABSTRACT J

I -Health Policy; During the 2Jh century there have been three overIapping generations of health systems refonns.

.The greater the orientation towards primary care, the better the outcomes of care in relation to costs.-Faffi1ly Health; Needs assessment is main/y the role of primary care, and that is where the strudure Df the health care

HealthManpower; system can frustrate or faci/itate exploitation of the spedalized lields. The fundions of eadllevel of

-PrimaryHealth Care. dinica! care and of publichealth are presented here, along with the respedive administrative levels. '

Human resources Inanagement in a health system, induding primary care, requires some 50% of

fami/y practitioneJ:5. The otheJ:5 specialties -more than 60 -nonnally involve relative/y smaUer

propoJtions of general specialists, super-specialists, and publichealth peJ:5onneL This means not on/y

a dlange of paradigm (rather than merely adding one more spedalist to otheJ:5), but also dlanges in

medica! training; meanwhi/e giving rise to count/ess conflicts that can on/y be resolved through broad

agreements by alI protagonists, induding the lay publico

Ii Recebido em: 29/04/2002i Reencammhado em: 06/12/2002

Aprovado em: 16/01/2003

'Professor Adjunto, Departamento de Medici"" Social, Facu/dadede Medici"", Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

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José Justino Faleiros. Profissionais para Reorientar o Modelo Assistencial. Quantos e Quais?--

INTRODUÇÃO Este trabalho pretende contribuir para esta ampla discus-

Hoje e a cada dia, a vida de grande número de pessoas são, endereçando-se a estas questões essenciais, na complexaestá nas mãos de sistemas de saúde. Desde o nascimento se- tarefa de mudar o modelo assistencial no Brasil.

guro de urna criança sadia até cuidados dignos oferecidos para

frágeis idosos, sistemas de saúde têm responsabilidades vi- O QUE É UM SISTEMA DE SAÚDE? OStais e contínuas para as pessoas, ao longo da sua trajetória de DETERMINANTES DE SAÚDE E UMA POÚTICA

vida!, INTEGRADORA. A TERCEIRA GERAÇÃO DE

Fatores tão diversos corno desenvolvimentos tecnológi- REFORMAScos, a dinâmica demográfica e o crescente envolvimento de No complexo mundo atual, pode tomar-se difícil dizer

usuários provocam alterações na provisão dos cuidados mé- exatamente o que é um sistema de saúde, em que ele consiste,

dicos em todo o mund02. onde começa e termina. Urna definição de sistema de saúde

No Brasil, mudanças no modelo assistencial estão sendo inclui todas as atividades cujo objetivo seja o de promover, restau-

implementadas. Os recursos humanos, físicos, tecnológicos e rar ou manter saúde.

farmacêuticos deverão ser redimensionados. Os serviços prestados por profissionais estão claramente

Todas as tarefas a serem enfrentadas pelos profissionais dentro destas premissas. Corno estão as ações prestadas porda saúde demandarão quadros técnicos qualificados e moti- curandeiros tradicionais e todos os usos de medicação, sejam

vados, o que implica urna política de recursos humanos para prescritos por provedor ou nã06.o setor saúde ainda por ser construída no país3. Quatro amplos elementos -biologia humana, ambiente,

Na rede pública, até porque é pública, o caso (clínico) não estilo de vida e organização dos cuidados médicos -deter-

é de ninguém. Na rede privada, o paciente, por sua conta e minam os níveis de saúde de populações humanas. Foi pro-

risco, migra de consultório em consultório, freqüentemente posta urna política integradora para sistemas de saúde nosbuscando a opinião de vários especialistas, novamente sem a anos 807. Nela, as estratégias de intervenções foram classifi-

mínima troca de informações entre eles4. cadas nas seguintes categorias: 1) promoção de saúde; 2) pro-

No momento atual de expansão da estratégia do progra- teçãode saúde; 3) cuidados de saúde; 4) pesquisa em saúde.

ma de saúde da família (PSF), prioridade assumida pelo go- As relações entre os detenninantes de saúde e as intervenções

vemo federal corno eixo condutor da reorientação do modelo estão representadas na Figura 1. Estas, resumidamente, in-

assistencial, a temática de recursos humanos mantém-se corno cluiriam:um dos pontos-chave nos foros de discussão dos gestores do .Promoção de saúde -disseminação de informações,

SUS5. habitação, emprego, educação;

Reorientar o modelo assistencial implicará discussões .Proteção de saúde -saúde ocupacional, poluição do

propositivas e, principalmente, ações mais específicas. ar, água, segurança de alimentos;Em primeiro lugar, admitir que será necessário construir .Cuidados de saúde -cuidados pessoais médicos, odon-

um novo sistema de saúde claramente explicitado, inclusive tológicos, de enfermagem, farmacêuticos, imunizações,

para o público. Depois, surgem outras questões relativas aos diagnóstico, tratamentos, reabilitação;

recursos humanos do pretendido novo modelo. .Pesquisa em todos os elementos determinantes de

Quantos e quais são os profissionais necessários para saúde.

operá-lo? Trabalhando onde? Ganhando quanto? Quais são Os fatores socioculturais e ambientais têm amplas reper-as funções da medicina clínica e da saúde pública? cussões nos níveis de saúde:

Determinantes de saúdeIntervenções

Ambientais Socioculturais Comportamentais Biológicos,

Cuidados de saúde xxxxxxxxx xxxxxxxxx

Proteção de saúde xxxxxx

Promoção de saúde xxxxxxxxx xxxxxxxxxx

Pesquisa em saúde xxxxxx XXXXXXXXX xxxxxxxxxx XXXXXXXXX

Figura 1. Uma estratégia política integradora7.

REVlsrA BRASILEIRA DE FJ)UCAçAQ MÉDICA

56 Rio de J..e;ro, .27, o' I, i.o./.b" 2003

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José Justino Faleiros Profissionais para Reorientar o Modelo Assistencial. Quantos e Quais?,---, -

.Baixo status socioeconômico é, provavelmente, o mais Esta abordagem refletiu a experiência com projetos de

poderoso fator isolado que contribui para mortalidade e controle de doenças nos anos 1940 em países como Africa

morbidade prematuras, não somente nos EUA, mas em do Sul, República Islâmica do Irã e a então Iugoslávia. Tam-

todo o mundo. O excesso de mortalidade, associado com bém China, Cuba, Tanzânia, Costa Rica e Sri Lanka adicio-

baixo status socioeconômico, é mediado por fatores em naram 15 a 20 anos de expectativa de vida ao nascer, com

todos os determinantes de saúde. O ambiente adverso custos relativamente baixos, em apenas duas décadas. Em

nos quais os pobres vivem, especialmente na infância, é cada caso, houve um forte compromisso de assegurar um

um forte candidato para ser responsabilizado pelo aglo- nível mínimo de todos os serviços de saúde, alimentação,merado de comportamentos que causam danos à saúde, educação, juntamente com o adequado suprimento de água

além dos fatores de risco biológicos e socioculturais. potável e saneamento básico. Adotando,a APS como estra-

Homens cujos pais foram pobres durante a sua infância tégia para atingir o objetivo de "Saúde para Todos", a OMS

eram mais prováveis de se engajar em comportamentos e o Unicef, conjuntamente em 1978, revigoraram os esfor-

de risco à saúde e tinham maiores níveis de fatores psi- ços para levar os serviços básicos de saúde universalmen-

cossociais, como desesperança e hostilidade, do que ho- te. Apesar destes esforços, muitos deles foram considera-

mens cujos pais tinham sido prósperos8; dos fracassos parciais. A provisão de recursos era inade-

.Pobreza material é um fator de risco não somente para quada; os trabalhadores tinham pouco tempo para ativida-

doença mental, mas, também, para o seu desfecho in- des preventivas e de alcance na comunidade, seu treina-

satisfatóri09; mento e equipamento eram insuficientes para os proble-

.Apesar de toda a excitação causada pela denominada mas enfrentados; a qualidade dos cuidados era freqüente-

nova genética e as preocupações com poluição e a emer- mente caracterizada como "primitiva" mais do que "pri-

gência de novas infecções, as variáveis sociais perma- mária", quando a APS era limitada aos pobres e aos servi-

necem os mais importantes determinantes de saúde. Os ços mais simples6.níveis educacionais gerais para as mulheres, em países Os serviços de referência, que são uma particularidade

em desenvolvimento, têm maior efeito na saúde da fa- de serviços de saúde e uma necessidade para seu adequado

mília do que qualquer outro fator isoladolo; desempenho, tornaram-se difíceis de operar a contento.

.Pobreza não somente exclui as pessoas dos benefícios Como conseqüência, países continuaram a investir em cen-

de sistemas de saúde, mas também as limita de partici- tros urbanos de nível terciário. Todos estes processos leva-

par nas decisões que afetam sua saúdell. ram a uma convergência gradual do que a OMSdenomina

Durante o século 20, ocorreram três reformas nos siste- "novo universalismo": serviços de alta qualidade, definidos

mas de saúde. A primeira geração viu a fundação dos siste- principalmente por critérios de custo-efetividade, para to-

mas nacionais de saúde e a extensão de sistemas de segurida- dos, mais do que todos os cuidados possíveis para toda a

de social para nações de renda média, a maioria delas nos população ou os cuidados mais simples e básicos para os

anos 1940 e 1950 nos países ricos e algo mais tarde nos países pobres.mais pobres. Na década de 60, muitos dos sistemas fundados Esta terceira geração de reformas implica ênfase em re-

uma ou duas décadas antes estavam sob grande pressão. Al- cursos financeiros e regulação pública, mas não necessaria-

tos custos, especialmente com os aumentos do volume e da mente a provisão pública de serviços. Também implica esco-

intensidade dos cuidados hospitalares, em ambos: países de- lhas explícitas de prioridades entre intervenções, respeitan-senvolvidos e em desenvolvimento. Estudos sobre o que os do o princípio ético de que pode ser necessário e eficiente

hospitais faziam revelaram que mais da metade dos gastos se racionar serviços, mas é inadmissível excluir grupos intei-

destinavam a intemações que tratavam condições como diar- ros da população. As idéias de responder mais às deman-

réia, malária, tuberculose e infecções respiratórias agudas, que das, tentando com mais ênfase assegurar acesso aos pobrespoderiam ser manejadas ambulatorialmente. Foi reconhecida e enfatizando o financiamento, incluindo subsídios, mais do

a necessidade de uma mudança radical, que tornasse os siste- que apenas provisão dentro do setor público, estão incorpo-

mas mais apropriados em relação a eficiência, eqüidade eaces- radas em muitas das atuais reformas da terceira geração.

sibilidade. Esta segunda geração de reformas, portanto, viu a Estes esforços são mais difíceis de caracterizar do que as re::

promoção da Atenção Primária à Saúde (APS) como a rota formas anteriores, pois elas se devem a uma variedade mai-

para se obter cobertura universal em perspectivas de viabili- or de razões e incluem mais experimentações em suas abor-

dade econômica6. dagens6.

REVIsrA BRASIlEIRA DE FDUCA~O MÉDICA

57 Rio de )0.';'0, ,.27. .0 I, io../obr. 2003

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José Justino FRIeiras Profissionais para Reorientar o Modelo Assistencialo Quantos e Quais?~~- r '0_'_'0 ~ -"'__-0'

OS CUIDADOS MÉDICOS PESSOAIS. QUATRO '11 h d P 1 --aman O a opu açaoNfvEIS DE CUIDADOS E DE ADMINISTRAÇAO. ASBASES POPULACIONAIS DE UM SISTEMA DESAÚDE QUE INCLUA O MÉDICO DE FAMfuA

Para atender às necessidades de cuidados pessoais de

saúde, um sistema que inclua a APS ou a estratégia do PSF

necessita abarcar quatro níveis distintos de atenção:

.Um primeiro nível não profissional, informal, os auto-

cuidados;.O nível da APS é aquele nível de atenção prestada por

profissionais generalistas, o médico de família;.O nível de Atenção Secundária, prestado por especia-

listas gerais;

.O nível de Atenção Terciária, prestado por subespecia-

listas. CUIDADOS ADMINISTRAÇÃOA APS pode ser vista como um conjunto de atividades,

como um processo, um nível de cuidados, uma e;stratégia para Figura 2. Níveis de cuidados e administraçãoJ3.

organizar o sistema de saúde como um todo e como uma filo-sofia. O conceito de níveis de atenção médica -ou seja, a ção de 1.000 adultos (> 16 anos de idade), num período de um

APS como primeiro contato dentro de um sistema de atenção mês, 750 adoecerão, 250 consultarão um médico, 9 serão hos-

médica que inclui os níveis acima citados -foi descrito pela pitalizados, 5 serão referidos para outro médico 'e 1 será refe-

primeira vez pela Comissão Millis, nos EUA, há mais de trin- rido para um centro médico universitário. Estes atendemta anos, e foi enriquecido ao longo dos anos, particularmente amostras enviesadas de 0,0013 dos "doentes" adultos e 0,004

por John Fry. Duas escolas de pensamento surgiram sobre APS: dos pacientes na comunidade. De onde estudantes das pro-a primeira com um paradigma biomédico, com foco em cui- fissões de saúde devem obter um conceito irrealista das tare-

dados médicos para o indivíduo; a outra tem um paradigma fas da medicina tanto nos países ocidentais quanto nos paísesmais amplo, biopsicossocial, e enfatiza a saúde da população em desenvolvimentoJ5.

servida, assim como o indivíduo. Esta última abordagem é Médicos tendem a ignorar ou menosprezar os autocuida-também denominada Atenção Primária orientada para a co- dos, que, entretanto, são a maior parte -aproximadamente

munidadeJ2. dois terços -dos cuidados tomados pelos adultos ao adoece-

No Brasil, o PSF é considerado como estratégia estrutu- rem. Estaria aí a explicação, ao menos parcial, da popularida-

rante dos sistemas municipais de saúde e tem demonstrado de e do sucesso de práticas alternativas?

potencial para provocar um importante movimento de reorde- Não resolvido o problema, a consulta a um profissional énação do modelo vigente de atenção. Suas diretrizes apontam decidida, e este profissional fará o que é denominado primei-uma nova dinâmica na forma de organização dos serviços e ro contato, no sistema formal.

ações de saúde, possibilitando maior racionalidade na utiliza- O Brasil atual opera um sistema virtualmente sem APS,

ção dos níveis de maior complexidade assistencial e resultados orientado para especialistas. Usuários consultam os mais di-

favoráveis nos indicadores de saúde da população assistidal4. ferentes especialistas: pediatras, ginecologistas, cardiologis-

Sejam quais forem as perspectivas, existem dentro de cada tas, internistas, endocrinologistas, dermatologistas, cirurgiõessistema certos níveis comuns e inevitáveis de cuidados e de e psiquiatras, entre outros. Neste modelo, os cuidados ten-

administração com papéis e funções similares. Cada nível está dem a tomar-se irracionais, fragmentados, com incalculáveis

relacionado com diferentes bases populacionais e tipos de perdas econômicas de escassos recursos e de precioso tempo

doenças (Figura 2)13. de profissionais.Todos os níveis profissionais de atenção médica trabalham Em inúmeras circunstâncias, não existe uma clara respon-

em equipe, incluindo outros profissionais da área saúde. sabilidade por ações realizadas, nem pelo não atendimento

Quando adultos adoecem (illness), primeiro recorrem aos de necessidades.autocuidados. Dados obtidos em estudos sobre os cuidados Um sistema explicitamente planejado e coerente admitiria

médicos nos EUA e Reino Unido sugerem que, numa popula- os três níveis profissionais acima descritos seguindo parâmetros

REVISTA BRASIlEIRA DE FDUCAçAO MÉDICA

58 Rio d, J,o,iro, v.270 .' 10 i,.',bL 2003

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racionais: profissionais generalistas fariam um primeiro contato QUANTOS E QUAIS PROFISSIONAIS,

em quaisquer circunstâncias, ou seja, dariam atendimento para TRAB~LHANDO ONDE, GA~HANDO QUA~TO?todas as idades, os dois sexos e problemas ou sintomas em quais- FUNÇOES DA MEDICINA CLINICA E DA SAUDE

quer órgãos ou sistemas do organismo humano, não importan- PÚBLICA

do a gravidade da situação ou as circunstâncias econômicas do A gestão de recursos humanos é um problema maior na

paciente. Este seria o nível da APS ou a estratégia do PSF. formulação de políticas de saúde e na operação de sistemas

Pacientes cujo problema não pudesse ser diagnosticado de saúde.

e/ou tratado neste nível deveriam ser referidos para o nível Os diferentes profissionais, clínicos e não clinicos, que fa-

secundário. Este nível seria acionado por profissionais do PSF zem cada intervenção individual ou de saúde pública aconte-

mais do que por pacientes. cer são o mais importante insumo de um sistema de saúde. O

Há de se considerar que entre 70 e 90% de todas as doen- desempenho de um sistema de saúde depende, em última aná-

ças são manejadas no ambiente do paciente: a sua casal6. lise, dos conhecimentos e da motivação das pessoas responsá-

Os profissionais do nível secundário seriam os especia- veis pela execução dos serviços. Em geral, não existem respos-

listas gerais: cirurgiões gerais, ginecologistas, pediatras, of- tas fáceis na área de desenvolvimento de recursos humanos.

talmologistas, psiquiatras, dermatologistas, cardiologistas e Sem gestão, o mercado de habilidades humanas leva anos,

otorrinolaringologistas, entre outros. mesmo décadas, para responder aos sinais do mercad06.

Situações mais complexas exigiriam intervenções de pro- Quantos profissionais? Trabalhando onde? Quanto pagar

fissionais altamente especializados em locais centralizados. por seus serviços? Quais as suas funções? Estas seriam per-

A especialização tomou-se essencial em medicina, pois é guntas básicas a serem formuladas por gestores de recursos

impossível para um único clínico ser um expert em mais do humanos na área saúde, no setor público ou privado.

que pequena parte ou apenas num único órgão. Se esta fosse Alguns países tentaram racionalizar os números de seus

a única variável na equação, seria lógico instalar unidades profissionais da saúde, mas a variação entre países se mos-

centrais para tratar todas além das condições mais freqüen- trou considerável. No Canadá, por exemplo, a taxa de médi-

teso Entretanto, tal política não é funcional, a menos que o cos para a população era de 17:10.000, comparada com

paciente já tenha sido corretamente diagnosticado e não te- 1,4:10.000 no Haiti. Taxas de enfermeiros para médicos tam-

nha mâis do que uma doença importante. Existem, natural- bém variavam amplamente, com 4:1 no Canadá e 6:1 na Fin-

mente, outros fatores na equação: idosos têm freqüentemente lândia, comparadas com 0,6:1 na Bolívia e fndi.a com 0,65:118.

várias condições sérias, cada qual exigindo um especialista Entre os médicos também existem amplas variações em

diferente, e as pessoas se apresentam aos seus médicos com suas diferentes áreas de atuação. Somente um terço de todos

sintomas mais do que diagnósticos. Mais ainda, pacientes têm os médicos dos EUA está no setor primário, comparado com

desejos conflitantes -obter os melhores tratamentos e ser mais de 50% no Reino Unido, Austrália, Alemanha e França.

tratados o mais perto de suas casas, tanto quanto possível. A Entretanto, os EUA gastam US$ 3.000 per capita/ano, quase

superespecialização também tem seus perigos porque muito 14% do Produto Nacional Bruto, ou três vezes mais que o Reino

poucos pacientes com sangramento retal têm câncer colo-re- Unido. A renda líquida de radiologistas, anestesistas e mui-

tal, e uma menor proporção ainda daqueles com indigestão tos cirurgiões é de quase US$ 300.000 anuais, comparada com

têm câncer de estômagol7. US$ 100.000 para médicos do setor primário. Tudo isto para

Existem pelo menos três razões para transferir pacientes índices de saúde muito similares aos do Reino Unido, e ainda

para centros altamente especializados: uma em cinco pessoas não está coberta por seguros-saúde. As

.Condições raras em que habilidades e treinamento não pessoas estão insatisfeitas, e muitas temerosas de sua incapa-

podem ser obtidos, a menos que o tratamento seja cen- cidade de pagar custos extras de doenças sérias, mesmo es-

tralizado -por exemplo, tumores na cabeça e pescoço, tando seguradasl9.

câncer em crianças; Os médicos brasileiros foram recentemente objeto de

.Condições que necessitem habilidades técnicas especi- abrangente estudo. Suas especialidades, sua renda, seus de-

ais -por exemplo, cirurgia de carótida, cirurgia uroló- sejos econômicos foram assim delineados: dentre as 64 espe-

gica reconstrutora; cialidades reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina,

.Condições que necessitem grandes equipes e/ou equi- 14,170;0 se dedicavam à pediatria; 12,04% à ginecologia-obste-

pamentos caros -por exemplo, doença hepática com- trícia; 8,12% à medicina interna; 6,07% à cirurgia geral; 2,980;0

plexa e cirurgia cardíaca1\ à medicina geral comunitária; os demais, às outras especiali-

REVISTA BRASILEIRA DE FlJUCAçAO MÉDICA

59R;od'j",;w,u1"'I,j,,f,b'2uO3

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José Justino Faleiros Profissionais para Reorientar o Modelo Assistencial. Quantos e Quais?-

dades. Tinham vinculação com o setor público 71,7%i 79% ca ao PSF, a divisão de todas as mais de 60 especialidades e

consideravam sua atividade profissional desgastantei 35% subespecialidades resultaria em relativamente pequenas pro-

declararam renda entre R$1.00l e R$ 2.000 mensais; esta mes- porções de especialistas e de subespecialistas. Os especialis-

ma proporção (35%) desejava renda entre R$ 4.00l e R$ 8.000 tas gerais em cidades de médio porte e nas regiões metropoli-

mensais2O. tanas, quase sempre no nível "distrital" do sistema de saúde,

Este estudo evidenciou que os médicos dedicados à APS servindo populações de até 500 mil pessoas. Os subespecia-

-ou à estratégia do PSF -(2,98%) estavam em menores pro- listas no nível "regional" do sistema, atendendo a popula-

porções que anestesistas (4,950;0) ou oftalmologistas (3,61%). ções entre 500 mil e 5 milhões de pessoas.Um indicador da orientação de um sistema de saúde é a Não existe nenhuma dificuldade na definição de funções

proporção de médicos dedicados a especialidades ou à APS. de especialistas ou de subespecialistas, cada um na sua área

Um estudo realizado em dez nações industrializadas de competência. O que existe são outros problemas, especial-

mostrou que, quando a proporção dos médicos ativos está mente para o SUS. Os pagamentos realizados pelo SUS são

acima de 75% nas diferentes especialidades, o sistema é ori- considerados baixos -e de fato são; muitos especialistas ou

entado para as especialidades e não para a APSi valores entre subespecialistas se recusam a trabalhar por tais valores, este é

50 e 750;0 são considerados intermediários. Somente quando um tipo de problema. Outro seria adequar a quantidade de-

estes valores estiverem abaixo de 50% considera-se um siste- les no SUS de maneira q~e não ocorram duas disfunções gra-

ma orientado para a APS21. ves e indesejáveis: ociosidade ou sobrecarga de trabalho.Quanto pagar para generalistas e especialistas? Uma alta Neste modelo de sistema de saúde, incluindo o PSF, os

taxa das médias de salários de médicos da APS para especia- especialistas e os subespecialistas deverão compreender que

listas (0,9:1 ou mais) indica incentivo para APS. Baixas taxas seus modos de trabalho seriam modificados. Eles trabalhari-

(0,8:1 ou menos) são consideradas incentivo para sistemas am como consultores e não fazendo primeiro contato. Nos

orientados para especialistas. Taxas entre 0,8 e 0,9 são tidas ambientes clÍnicos do pretendido sistema, o que importa é a

como intermediárias21. relação entre os três níveis profissionais, comunicação, cola-

Quantos generalistas? Trabalhando onde? Quais as suas boração entre eles, fluxo de pacientes ágil e eficaz. Especialis-

funções? Um sistema de saúde orientado para APS -ou à tas, subespecialistas, médicos de família e suas respectivas

estratégia do PSF -exige que a maioria dos médicos, pelo equipes deverão trocar experiências, conhecimentos, apoios,menos 50% deles, se dediquem à APS, numa taxa informações. Onde? Nos ambulatórios, nos hospitais, nos

médico:população de aproximadamente 1:2.000. postos de saúde, na casa de pacientes, ao telefone, na intemet

Os generalistas são necessários em zonas rurais, em pe- e em contatos informais.quenas cidades, em cidades de médio porte em regiões me- Aqui, neste ponto, surgem enormes potenciais para cola-

tropolitanas. Ou seja, são os médicos que se apresentam na borações, para propostas inovadoras em vários sentidos. Para

ponta do acesso ao sistema de saúde, universalmente. acolhimento humano e personalizado de indivíduos em so-

Sua função será sempre no nível "local" do sistema. De- frimento, para diagnósticos mais precoces, para cuidados e

vido à sua proximidade com a população, podem orientar os tratamentos mais racionais, para evitar duplicação de gastos

autocuidados. Fazem o primeiro contato, diagnosticam e tra- e, quando possível, longas esperas. Enfim, haveria cuidados

tam problemas de saúde, referem pacientes para os níveis se- mais racionais, eficazes, eficientes e humanizados do que os

cundário e terciário. Fazem, em conjunto com outros profissi- existentes hoje no Brasil.onais, prevenção de doenças e promoção de saúde, nos limi- Em medicina, é impossível a um só profissional dominar

tes de suas competências. Em termos ideais, com responsabi- todo o conhecimento e todas as técnicas dia~ósticas e tera-

lidades definidas -"sua" população-alvo. pêuticas. Assim, os médicos de família devem reconhecer seus

Na Europa, os melhores balanços nas relações de custo- limites e referenciar para hospital e especialistas, quando as

benefício são encontrados no Reino Unido, Holanda e Dina- necessidades surgirem. Por outro lado, os hospitais e os espe-

marca, países onde médicos de família têm listas pessoais de cialistas deveriam reconhecer que, para usarem todo o seu

pacientes e referem para cuidados especializados. Espanha e conhecimento e habilidades -que não são poucos -, é ne-

Portugal, onde existem centros de APS, sem listas pessoais, cessá ria uma adequada seleção de pacientes pelo médico deA d 1 22 f ' 1.

vem em segun o ugar .aml ia.

Quantos especialistas e subespecialistas? Trabalhando Quantos profissionais da área de saúde pública? Traba-

onde? Quais as suas funções? Se metade dos médicos se dedi- lhando onde? Quais as suas funções? A área da saúde pública

REmTA BRASIlEIRA DE FDUCAçAO MÉDICA

60 RIo de Joaciw, ..27, n' I, j.../ob. 200)

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exige outras considerações, pois deve ser a área mais difícil gulação, enfrenta sua crise entre mais mercado, mais Estadode caracterizar. Seus objetivos são claros o suficiente -redu- ou mais comunidade, a saúde coletiva apresenta-se como umzir doenças e manter a saúde de populações. Sua extensão é, campo aberto a novos paradigmas, numa luta contra-hege-portanto, ampla. Igualmente amplas são as estratégias dispo- mônica a favor da emancipação. As instituições acadêmicas eníveis para alcançar seus objetivos. É esta amplidão que colo- de serviços de campo da saúde poderão reatualizar suas con-ca a disciplina em risco de confusão sobre sua natureza e de cepções e práticas acerca da saúde pública, explorando opor-fragmentação e desorganizaçã023. tunidades de diálogo e de construção de alianças entre orga-

Na Inglaterra, existem cerca de 30 médicos de família para nizações não-governamentais e organismos de governo paracada médico ligado à saúde pública. É pouco provável que o enfrentamento dos problemas e desafios da saúde27.

exista um profissional de saúde pública, envolvido com APS,para uma população de 500 mil ou mais, e usualmente será APS, A ESTRATÉGIA DO PSF IMPORTA? TEMuma atividade em tempo parcial24. CONSEQÜÊNCIAS? O QUE É, O QUE NÃO É O

O âmago das funções da prática de saúde pública inclui a NÍVEL PRIMÁRIO DE ATENÇÃO

monitoração dos níveis de saúde de populações e seus deter- Médicos da APS são os únicos, entre todas as especialida-minantes; prevenção e controle de doenças, danos e incapaci- des, capazes de manejar cerca de 90% de todos os pacientesdades; promoção de saúde e proteção do ambiente. Poucas com asma, depressão, hiperlipidemia, hipertensão, hipotireoi-destas funções essenciais são realizadas em altos padrões, dismo, problemas emocionais agudos e infecções de ouvidos,mesmo nas nações mais prósperas25. garganta, pulmões, intestinos, pele, vagina e trato urinário. Na

O dinamismo que caracteriza o perfil de saúde da popu- Inglaterra, o governo notou que 90% dos contatos entre a po-lação brasileira, exaustivamente evidenciado, demanda, em pulação e os serviços de saúde ocorrem no nível da APS, umprimeiro lugar, a construção urgente de um sistema de vigi- impressionante total de 225 milhões de consultas em 1986. Existelância e monitorização capaz de acoIJlpanhar não apenas a cerca do dobro de médicos da APS, quando comparados comevolução das doenças transmissíveis, mas que se estenda à consultores em todas as especialidades combinadas. Cerca dedesnutrição infantil, à mortalidade materna e perinatal e às 95% das pessoas com idade acima de 75 anos estão sob os cui-doenças crônico-degenerativas e seus fatores de risc03. dados de médicos da APS. Esta especialidade é a única em que

O futuro da área de saúde pública é, atualmente, objeto os médicos trabalham regularmente no próprio ambiente dode amplos debates em outros países, assim como no Brasil. paciente: a casa dele; trabalham freqüentemente com váriosSão discutidas alternativas para o futuro da saúde pública, membros da família, além de usarem terapeuticamente a rela-nos marcos do pensamento e das exigências da pós-moderni- ção médico-paciente, construída ao longo de décadas. Esta é adade. Com base nos aportes do pensamento pós-moderno, é única parte do sistema de saúde na qual o paciente pode esco-proposta uma agel1da de desafios a serem enfrentados pela lher e mudar o seu médico, e é também o melhor lugar para"Nova Saúde Pública". Especificamente, são propostos novos estudar o balanço da seriedade dos problemas de saúde28.aportes conceituais para lidar com as relações subjetivo-obje- Embora o nível primário da atenção médica tenha estastivo e coletivo-individual no campo sanitári026. possibilidades, potencialidades e vantagens, ele irá competir

Ainda em nosso país, existem amplas abordagens do ob- por recursos econômicos com os outros dois níveis profissio-jeto possível da promoção-saúde-enjermidade-cuidado, da propos- nais, em nítida desvantagem, pois os orçamentos disponíveista da /INova Saúde Pública/l, da construção de novas teorias, são usualmente capturados pelos provedores politicamenteenfoques e métodos da epidemiologia e da planificação em mais fortes, como hospitais e especialistas, em vez de seremsaúde, além de investigações concretas que buscam a aplica- utilizados de acordo com as necessidades da populaçã06.ção de métodos das ciências sociais no campo da saúde cole- Os cuidados especializados sempre demandam mais re-tiva. Esta pode ser considerada um campo de conhecimento cursos que os cuidados básicos, porque é desenvolvida maisde natureza interdisciplinar, cujas disciplinas básicas são a tecnologia para manter vivas pessoas seriamente doentes, doepidemiologia, o planejamento/administração de saúde e as que programas para prevenir doenças ou reduzir desconfor-ciências sociais. Esta área do saber fundamenta um âmbito de to causado por doenças mais freqüentes, problemas que nãopráticas transdisciplinar, multiprofissional, interinstitucional ameacem a vida. Um sistema de saúde orientado exclusiva-e transetorial. O campo da saúde pública não se encontra imu- mente para especialidades tem outro problema: a especializa-ne nem à crise de paradigmas, nem à transição paradigmáti- ção ameaça os objetivos da eqüidade. Nenhuma sociedade temca. Enquanto a saúde pública institucionalizada, refém da re- recursos ilimitados para prover os cuidados de saúde. Cuida-

REVISTA BRASlIElRA DE FDUr.AçAO MÉDICA

61Riod,jon,iro,,27,nOI,jon/obc200J

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José Justino Fllleiros Profissionais ~ara Reorientar o Modelo Assistencial~ Quantos e Quais?--

dos especializados são mais caros do que os cuidados primá- para promoção de saúde na comunidade. Significa também

rios e, portanto, menos acessíveis a indivíduos com menos reconhecer que o setor saúde, isoladamente, não tem potên-

recursos para pagar por eles. Mais ainda, os recursos necessá- cia para proporcionar saúde plena à população. Outros seto-

rios para cuidados que utilizam alta tecnologia competem com res, como educação, habitação e saneamento, entre outros, são

aqueles que são requeridos para prover serviços básicos, par- fundamentais.

ticularmente para pessoas incapazes de pagar por eles21. Dentro das transformações propostas, a APS ou a estraté-

AAPS cuida não somente dos 90% dos problemas de saú- gia do PSF é apenas um dos níveis dentro do sistema. Especi-de de uma dada população, acima delineados. Incorporando alistas gerais, subespecialistas, além de outras profissões da

outros profissionais, ela pode executar, permanentemente, área saúde, todos têm papéis relevantes a serem desempenha-outras ações fundamentais na prevenção primária de doen- dos e considerados. Obviamente, a coordenação de todas as

ças, como imunizações e estímulo à amamentação. Pode fazer atividades toma-se complexa.

prevenção secundária de doenças, através de rastreamento Se em países industrializados as vantagens deste modelo

(screening), onde houver evidências da efetividade de tais pro- podem ser evidenciadas, no Brasil, onde uma significativa

cedimentos, como, por exemplo, na prevenção secundária de parte da população é pobre, a APS ou a estratégia do PSF temcâncer de colo uterino. O PSF lida com necessidades, no nível um enorme potencial a ser explorado em futuro próximo.

"local" do sistema de saúde, sem utilizar alta tecnologia, com Nos anos recentes, houve crescimento considerável do PSF

custos relativamente baixos. Os custos da APS ou a estratégia no Brasil: no período 1996-99, passou-se de 847 equipes em

do PSF para o sistema são pequenos, quando comparados aos 228 municípios para 4.945 equipes em 1.970 municípios. Para

custos hospitalares. Pode ainda educar sobre vários aspectos o ano 2000, a meta do MS era alcançar 11 mil equipes29.

relevantes da saúde humana. Num país de dimensões continentais como o Brasil, com

Devido a esta situação ímpar, como mostrado na Figura as conhecidas e intensas desigualdades locais e regionais, a2, a APS pode ser comparada a um sanduíche: na parte inferi- implantação do PSF, seguramente, não será homogênea. Em

or, em suas relações com "sua" população-alvo, e na parte' locais pobres nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Su-

superior, em suas' relações com os hospitais e os especialistas. deste ou Sul, em zonas rurais ou em pequenas cidades, atual-

A APS é o local por excelência para avaliar necessidades, mente sem cuidados médicos ou com cuidados precários, o

e, com base nesta avaliação, o sistema de saúde utilizar apro- PSF será bem-vindo, de fácil implantação, produzirá resulta-

priadamente as diferentes tecnologias e os especialistas. É o dos imediatos. Em cidades de médio porte e nas regiões me-local onde cuidados podem ser oferecidos a todos, indepen- tropolitanas, onde já existe em atividade outro modelo -ori-

dentemente de circunstâncias econômicas ou classe social. Para entado para especialistas -, a implantação do PSF será muitose obter o máximo de desempenho, médicos de família de- mais laboriosa, envolverá muito mais negociações técnicas e

vem ser habilitado~ para lidar com todos os problemas de políticas, enfrentará uma miríade de conflitos de interesses.

saúde daquela comunidade, a despeito do estágio da doença Isto tudo no interior de um sistema único enquanto princípioou de sua severidade. Tudo isto em relações de custo/efetivi- órientador, mas flexível quanto às formas organizacionais, de

dade mais favoráveis, quando comparadas com vários espe- modo a dar conta das diversidades econômicas, sociais e cul-

cialistas fazendo primeiro contat022. turais do país. Isto é, único, mas não p~dronizado30.

Com o progressivo e continuado crescimento no volume Existem dificuldades adicionais. No município de São

dos conhecimentos e das tecnologias ocorrido no século pas- Paulo, por exemplo, a violência é alegada, em certas regiões,

sado, o estabelecido acrescenta novas especialidades médi- como fator impeditivo de trabalho de profissionais da saúde.

cas, de acordo com o surgimento de necessidades. Em espa- De acordo com levantamento do Sindicato dos Médicos de

ços de tempo relativamente curtos, outras novas especialida- São Paulo, 40,8% dos profissionais relataram algum tipo de

des serão necessárias. violência em seu local de trabalh031.

Entretanto, a APS ou a estratégia do PSF não é apenas Outro aspecto a ser imediatamente considerado é a qua-uma especialidade a mais a ser acrescida aos especialistas lida de dos cuidados oferecidos pelo PSF; Nenhuma nação

existentes. Esta estratégia é mais do que isto, é mais ampla, desenvolveu arranjos satisfatórios para a monitorização da

significa mudar o paradigma da assistência médica, transfor- qualidade de cuidados oferecidos em APS32.

mando o modelo assistencial. Significa levar em conta neces- Esta !1l°nitorização, no Brasil, poderia ser colocada na

sidades e demandas da população. O foco'do sistema de saú- agenda da saúde pública? Das academias? Das secretarias

de passa de cuidados episódicos de indivíduos em hospitais municipais? Dos conselhos municipais de saúde? Ou deveria

RE\1SfA BRASILEIRA DE FDUCAC).O MÉDICA

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estar a cargo das entidades de classe? Através de revisão de saúde pública e das outras profissões da área saúde. Em soci-

pares? Talvez fosse lógico imaginar que cada "distrito" de edades democráticas, o público, além de ser informado, pre-cerca de 100.000- 500.000 pessoas fizesse arranjos, criasse cisa participar ativamente de decisões que afetarão sua saú-

mecanismos para essa finalidade. Este aspecto receberia am- de.pIa atenção de gestores do SUS, das diferentes esferas gover- Ou, melhor ainda, como na proposta da Saúde Coletiva:

namentais e da sociedade brasileira como um todo. uma das formas de enfrentar os desafios da Saúde com Eqüida-

Seja como for, a implantação da estratégia do PSF de boa de será constituir sujeitos sociais comprometidos com novas

qualidade, com aportes adequados e suficientes de estrutura utopias, e estabelecer canais de comunicação com outros su-

física, pessoal e tecnologias simples mas eficazes, permitirá jeitos sociais que passem da condição de usuários ou destina-

antecipar algumas conseqüências: melhor e mais organizado tários de serviços públicos e de políticas de saúde para um

acesso ao sistema, independentemente de circunstâncias eco- patamar mais elevado, de parceiros e cidadãos27.

nômicas do indivíduo ou daquela população; melhorias sig-nificativas na qualidade de vida da população brasileira, es- CONCLUSÕES

pecialmente dos mais pobres, no curto praz~. Ainda se pode As descrições da evolução de sistemas de saúde feitas pelaesperar que as responsabilidades institucionais e individuais OMS sugerem que, no Brasil, a segunda (inclusão do PSF) e a

se tomem mais precisas. O às vezes confortável conluio do terceira ("novo universalismo") geração de reformas deverão

anonimato pode ser minimizado ou talvez eliminado. Tam- ocorrer simultaneamente.bém se espera maior participação da sociedade nas difíceis e Pobreza constitui ameaça à saúde, em todas as categorias

dolorosas decisões relativas à saúde, entre outras. de seus determinantes. O modelo de sistema de saúde maisI

Entretanto, outras conseqüênci~s emergem: os especialis- apropriado, com melhores relações de custo-efetividade para, tas e os hospitais deverão também reorientar, reformular suas atingir a todos, é aquele orientado para o PSF. Nele, a quanti-

práticas e suas abordagens, seus modos de trabalho. As aca- dade e a qualidade de trabalho dos outros dois níveis profis-

demias clínicas e de saúde pública deverão rever seus papéis sionais -secundário e terciário -dependem da adequada

nesta mudança de modelo. seleção de pacientes no nível primário. Médicos de família

Neste modelo, a quantidade e a qualidade do trabalho deverão tomar-se a maioria dos profissionais -50% ou mais.

dos especialistas dependerão da seleção de pacientes feita pelo Mudanças inevitavelmente provocam desacordos de opini-

médico de família; o que se denomina a função de gate-keeper. ões, conflitos e confrontações. Tais dificuldades só poderão ser

Deveria ser esclarecido, para o público, que esta função não suplantadas por meio de amplos entendimentos, em que lide-

quer dizer que se esteja negando acesso a especialistas, mas ranças e visões dos profissionais das distintas áreas, além de efe-

representa uma utilização mais racional, mais eficaz e efici- tiva participação do público, terão papéis a desempenhar. Pro-

ente do sistema, dentro de limites econômicos estabelecidos curar convergências em nossas ações, não confrontações esté-

pela própria sociedade. reis, é uma perspectiva para todos nós, profissionais da saúde.

A quantidade de especialistas deverá sofrer alterações,

uma nova composição na proporção de médicos e das outras REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

profissões da área saúde será necessária. As academias deve- 1 W ld H I h O .. (WHO) Ov . I Th-, or ea t rgarnzatIon .erv1ew n: e

rao, tambem, passar por processos de reonentaçao. Sao, por- W ld H lth R H I h S I . P for ea eport. ea t ystems: mprovmg er or-

tanto, sltuaçoes que, ao serem planejadas e pnnc1palmenteao G .WHO ' 2000mance. eneva. , .serem executadas, vão lidar com vários conflitos, competiçõesd ,. tu . I .A' d d C nfl .2. Whitehouse C, Roland M, Campion P, Editors. Teachin ge varias na rezas, mc US1ve econom1cas e e po er. o 1-t --.

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REmA BRA5ILEIRA DE FDUCA~O MÉDICA

63 Rio do joo.;ro, v.27, o. I. j.o.f.b,. 2003

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REVISTA BRASILEIRA DE FDUCAC).O MÉDICA

64 Róo d, J"'óro, v27, ," 1, i.,I.b.. 2003


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