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RETURNING TO THE WHOLE Será pouco conhecida em Portugal a obra de James EM...

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135 RETURNING TO THE WHOLE EM EDIMBURGO Etnográfica, Vol. I (1), 1997, pp. 135-143 RETURNING TO THE WHOLE EM EDIMBURGO ANTÓNIO MEDEIROS Lendo a partir de Portugal, parece que consigo surge pela primeira vez um nome hispânico importante na antropologia norte-americana, onde os autores tinham nomes de origem anglo-sáxónica ou da Europa central... JAMES FERNANDEZ — Bem... Na América há uma grande mistura de sangues, que toca a quase toda as pessoas. É problemático dizer- -me de origem hispânica. Por um lado, o que posso dizer é que há muito tempo que me dedico ao estudo do mundo hispânico. Há Será pouco conhecida em Portugal a obra de James Fernandez. No entanto, um olhar atento sobre as bibliografias citadas por outros antropólogos, mais referidos e prezados na produção caseira, deixa sugerida a importância da influência de Fernandez na literatura antropológica americana mais recente. Sendo um homem de variados terrenos, o autor é simultaneamente um teórico importante. São, por exemplo, incontornáveis e muito pertinentes as reflexões que tem vindo a desenvolver sobre o lugar dos tropos na construção das culturas. É corrente ver reconhecida a obra maior de James Fernandez — Bwiti. An Ethnography of the Religious Imagination in Africa (1982) como um dos trabalhos especializados de maior relevo até hoje produzidos sobre África. No que respeita à Espanha, por outra parte, o autor tem pesquisa feita e textos dispersos por vários lugares; também uma audiência atenta e alguns díscipulos, entre os antropólogos, nativos ou estrangeiros, que ali desenvolveram trabalhos. Na obra de James Fernandez, as reflexões teóricas mais aprofundadas — que suscitam um universo vasto de referências eruditas —, misturam-se muitas vezes com uma etnografia densa, minuciosa e imaginativa, tocando eventualmente um registo picaresco que é fresco e surpreendente. A surpresa de encontar um nome hispânico nas bibliografias norte-americanas era, até há um tempo recente, importante. Como um dos meus colegas, facilmente imaginava Fernandez com a figura estereotipada de um chicano. Ambos ficámos surpreendidos por encontrar um “celta” — como me dizia aquele colega, sabendo que ninguém sabe o que isso significa exactamente. Esta entrevista tem um teor um pouco biográfico, servindo assim para apresentar Fernandez no contexto nacional, de um modo genérico. Como em todas as biografias redime-se aqui o tempo — e a redenção do tempo e do espaço são temas muito queridos do entrevistado — propõe-se um returning to the whole, seguindo um título de James Fernandez. A conversa realizou-se em Edimburgo, nos fins de Outubro de 1996, por ocasião do ciclo de conferências comemorativo dos 50 anos de antropologia na Universidade da cidade. Ali, James Fernandez foi conferencista convidado de uma das sessões plenárias. Num dos dias seguintes, acedeu muito simpaticamente à realização desta entrevista, que foi conduzida em castelhano. Por ANTÓNIO MEDEIROS Entrevista com JAMES FERNANDEZ
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RETURNING TO THE WHOLE EM EDIMBURGO

Etnográfica, Vol. I (1), 1997, pp. 135-143

RETURNING TO THE WHOLEEM EDIMBURGO

ANTÓNIO MEDEIROS — Lendo a partir dePortugal, parece que consigo surge pela primeiravez um nome hispânico importante naantropologia norte-americana, onde os autorestinham nomes de origem anglo-sáxónica ou daEuropa central...

JAMES FERNANDEZ — Bem... Na América háuma grande mistura de sangues, que toca aquase toda as pessoas. É problemático dizer--me de origem hispânica. Por um lado, o queposso dizer é que há muito tempo que mededico ao estudo do mundo hispânico. Há

Será pouco conhecida em Portugal a obra de JamesFernandez. No entanto, um olhar atento sobre asbibliografias citadas por outros antropólogos, maisreferidos e prezados na produção caseira, deixa sugeridaa importância da influência de Fernandez na literaturaantropológica americana mais recente. Sendo umhomem de variados terrenos, o autor é simultaneamenteum teórico importante. São, por exemplo,incontornáveis e muito pertinentes as reflexões que temvindo a desenvolver sobre o lugar dos tropos naconstrução das culturas.

É corrente ver reconhecida a obra maior de JamesFernandez — Bwiti. An Ethnography of the ReligiousImagination in Africa (1982) — como um dos trabalhosespecializados de maior relevo até hoje produzidos sobreÁfrica. No que respeita à Espanha, por outra parte, oautor tem pesquisa feita e textos dispersos por várioslugares; também uma audiência atenta e algunsdíscipulos, entre os antropólogos, nativos ouestrangeiros, que ali desenvolveram trabalhos.

Na obra de James Fernandez, as reflexões teóricasmais aprofundadas — que suscitam um universo vastode referências eruditas —, misturam-se muitas vezes comuma etnografia densa, minuciosa e imaginativa, tocandoeventualmente um registo picaresco que é frescoe surpreendente.

A surpresa de encontar um nome hispânico nasbibliografias norte-americanas era, até há um temporecente, importante. Como um dos meus colegas,facilmente imaginava Fernandez com a figuraestereotipada de um chicano. Ambos ficámossurpreendidos por encontrar um “celta” — como medizia aquele colega, sabendo que ninguém sabe o queisso significa exactamente.

Esta entrevista tem um teor um pouco biográfico,servindo assim para apresentar Fernandez no contextonacional, de um modo genérico. Como em todas asbiografias redime-se aqui o tempo — e a redenção dotempo e do espaço são temas muito queridos doentrevistado — propõe-se um returning to the whole,seguindo um título de James Fernandez.

A conversa realizou-se em Edimburgo, nos fins deOutubro de 1996, por ocasião do ciclo de conferênciascomemorativo dos 50 anos de antropologia naUniversidade da cidade. Ali, James Fernandez foiconferencista convidado de uma das sessões plenárias.Num dos dias seguintes, acedeu muito simpaticamenteà realização desta entrevista, que foi conduzida emcastelhano.

PorANTÓNIO MEDEIROS

Entrevista comJAMES FERNANDEZ

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Entrevista comJames W. Fernandez

muitos anos que estamos a trabalhar nasAstúrias (James Fernandez e a sua mulherRenate Lellep Fernandez). É também verdadeque tenho família ali, mas também a tenho naEscócia ou na Irlanda, ainda que maisdistante.

AM — Os seus primeiros interesses de estudofocaram-se em África. Isto era pouco correnteentre os antropólogos americanos nos anos 50?

JF — Eu fiz a minha licenciatura na North-western University, e ali era importante apresença de Melville Herskovits, que era umafricanista conhecido. Isto facilitava ashipóteses de trabalhar em África. Assim,depois, quando se pôs a necessidade deescolher um terreno para trabalhar, surgiu aoportunidade de conseguir uma bolsa e irpara lá.

AM — Em Bwiti demonstra conhecer muito bema bibliografia colonial espanhola acerca da GuinéEquatorial. Assim, não teria sido mais óbvia aescolha deste terreno, em vez do Gabão?

JF — Eu queria estudar os Fang, que serepartem entre a Guiné e o Gabão. Aliás, é naGuiné que eles têm uma presença maisimportante, em termos relativos. Masaconteceu que não me foi possível conseguiruma autorização das autoridades espanholas,sempre muito desconfiadas acerca do que euqueria realmente fazer. Assim, pude trabalharcom os Fang no Gabão, que era nesse tempouma colónia francesa, depois de terempassado por lá os alemães até ao fim daPrimeira Guerra. Ali foi mais fácil conseguiressa permissão. Depois acontecia-me ir falarcom os guardas espanhóis num postofronteiriço, durante o trabalho de campo, sempoder passar para o outro lado...

AM — Em África, então, era preponderante apresença de antropólogos britânicos...

JF — Sim, tinham a presença maisimportante, mas também os franceses faziamtrabalhos e tinham possessões muito vastas.

Herkovits tinha trabalhado no Daomé, queestava sob o domínio dos franceses.E também estavam lá os portugueses. Aliás,era muito díficil para nós conseguirpermissão dos portugueses para fazerestudos nas áreas que dominavam nos anos50, por razões políticas, por causa desuspeitas de que os americanos iam animaros projectos independentistas. Eu conheci...Não sei se te diz alguma coisa o nome deEduardo Mondlane?

AM — Sim.

JF — Eu conheci-o, foi um grande amigomeu em Northwestern, onde ele também fezos seus estudos ...

AM — De antropologia?

JF — Sim, aliás... de sociologia.

AM — Depois ele morreu...

JF — Morreu, bem... mataram-no, a PIDE ouos seus próprios companheiros, não se sabeaté hoje. Morreu com uma explosão, nomomento em que abria um pacote de livros,conhecerás essa história...

AM — A filha de E. Mondlane também éantropóloga, julgo?

JF — E o filho... A mulher, por sua vez ésocióloga. Bom, essa foi outra etapa, mas oquero dizer é que nos anos 50 havia emNorthwestern várias pessoas vindas dascolónias africanas, vindas nomeadamente daÁfrica portuguesa. Ali já havia entãovontades de independência, e por isso osportugueses... bem, foi sempre difícilconseguir permissão para fazer estudosnessas áreas, porque tinham a suspeita, aliáscom alguma razão, de que podiam ser emseu desfavor. No meu caso... nunca fui umrevolucionário nesse sentido, militante, aindaque sempre me tenham sido simpáticas ascorrentes independentistas, como se espelhanos meus trabalhos.

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RETURNING TO THE WHOLE EM EDIMBURGO

AM — Fez trabalhos em vários contextosafricanos. Esses anos de passagem entre asdécadas de 1950-1960 foram tempo deindependências, conheceu vários processos?

JF — Sim, durante os anos 60 trabalhei umpouco por toda a parte em África — Áfricado Sul, Rodésia, Quénia, Togo, Gana eBenim —, estudando movimentos religiosos.Este foi um tempo muito afirmativo, demuitas esperanças. Então, muitos dos novosestados tentavam resistir à incorporação e àdependência político-económica do Ocidente.Hoje em dia conhecemos os resultados destesprocessos... !

AM — Quando é que se decidiu a trabalhar emEspanha?

JF — Isso aconteceu devido à seguintecasualidade: nos meados dos anos 60, quandochegou a família toda ao Togo para fazertrabalho de campo — eu e a minha mulher,que também é antropóloga, e dois filhos —por pouco não perdemos uma das criançasali, com uma doença que apareceu derepente, e... quase que não a pudemos curar.Chegámos quase ao último momento da suavida e apenas nesse último momentoencontrámos um medicamento, umtratamento, que permitiu salvar essa meninade dois anos e picos... de 26 meses. Aquilofoi um pavor, como é fácil de imaginar,especialmente para a minha mulher. Destemodo, no meu próximo projecto, dois anosdepois, nos meados dos anos 60, a minhamulher não quis continuar, não quisacompanhar-me com os filhos. Então nessemomento eu disse: bem, porque é que nãolançamos um projecto no Norte de Espanha.Isto foi uma casualidade. A minha mulhernão quis expor uma vez mais as crianças auma vida bastante perigosa, à vida decampo, muito fora do âmbito dos hospitais,que estão nos grandes centros. Foi então quedecidimos começar este projecto, que já corredesde 1966.

AM — Quando escolheu as Astúrias, maisprecisamente, foram importantes as razões

sentimentais, relacionadas com as origens dosseus avós?

JF — Sim... é verdade, bem... do meu avô,que tinha vindo para a América há mais decem anos; foi em 68 do século passado... nãohá tanto tempo. Sabia, todavia, que tinhafamília ali. Mas não fazemos estudos na zonaonde estão radicados estes familiares, quisevitar essas dificuldades. Como tu sabes,temos feito estudos nas montanhas, naszonas mineiras. Os meus familiares vivemnuma zona chamada Bajo Nalon — emGrado e San Román — que é sobretudo umazona de agricultura e de fruticultura.

AM — Tinha conhecido as Astúrias de menino?

JF — Não, não, como se nota. Eu não tenho odomínio do espanhol de alguém que o faloutoda a vida.... perdemos o espanhol. O meuavô casou-se com uma irlandesa; era ela,claro, estando na América, que determinava oidioma falado em casa. O meu avôestabeleceu-se em South Bend, um pequenopovoado de Indiana, comprando uma loja detabacos. Bem, ele tinha chegado comotrabalhador a Cuba, como enrolador decharutos, logo se passou para a Florida, emseguida para Chicago e, já casado, assentouali, nesse povoado de Indiana. Isso explicaa perca do espanhol na minha família, omeu pai tampouco aprendeu a falarespanhol.

AM — A Espanha vista de longe, da América,terá imagens mais reconhecidas e atraentes —também para estudo — na Andaluzia ...

JF — Sim, é verdade que no respeita aosestereótipos que temos da Espanha, estes serelacionam com Sul, o flamenco, os touros.Propõem-se mais contrastes nestas imagens,no que se refere às identidades respectivas deambas as nações.

AM — E D. Quixote?

JF — Sim, D. Quixote também, mas esses nãosão estereótipos que circulam só na América,são antes, nomeadamente, do mundo anglo-

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Entrevista comJames W. Fernandez

AM — Em Bwiti já eram muito salientes as suaspreocupações com o papel das metáforas naconstrução da cultura Fang. Esse será um temaque resiste até hoje?

JF — A construção da cultura foi sempre umtema que esteve comigo. Sim, continuopreocupado com esta questão, não abandoneium tema assim tão rico como é esse dametáfora, ou melhor, da articulação da vida eda articulação da realidade. A metáfora...todos os tropos, usa-se menos a palavrametáfora a favor de uma noção maisrebuscada e mais ampla de tropo. Bem... é odinamismo da interacção, da relação entre ostropos que me interessa mais. A minhateoria... a preocupação mais importante aolongo da minha carreira, tem sido o apreçodos efeitos da imaginação na vida social.Quero dizer que o meu tema, o meu projecto,tem sido o de entender sempre maisprofundamente os efeitos da imaginação, osefeitos da imaginação na teoria social e navida humana, de um modo geral.

AM — Isso estava proposto em Bwiti?

JF — Sim, estava, esse foi um ponto que quisfazer claro desde o primeiro capítulo. Eutomo sempre como muito importante, comocoisa muito séria, o papel da imaginação navida humana... como todos os poetas ofazem.

AM — Na sua etnografia surgem propostasmuitas metáforas, luminosas algumas, na minhaopinião...

JF — Queres dizer o registo de metáforasencontradas no terreno?

AM — Não propostas por si, como modo deesclarecer perspectivas próprias.

JF — Ah! Dizes que no momento de teorizareu utilizo muito as metáforas. Sim, éverdade, é verdade. Mas toma nota do factode que tento sempre distinguir as metáforasque são minhas e as metáforas do campo,

-americano. Quis identificar na minhaconferência a sua importância. Estesemblemas servem para fazer sentido. Servem,por exemplo, para identificar o que é aEspanha, por intermédio de um contrasterevelador relação à América.

AM - Os seus trabalhos parecem-me muitooriginais, na escolha dos objectos e no seutratamento. Por outra parte, percebe-se umapermanência muito forte de alguns temas, aolongo de décadas...

JF — Sim, é verdade.

AM — Em 1962, escreveu um artigo sobre asrelações entre o folklore e o nacionalismo, umtrabalho que não encontrei...

JF — Sim, esse é um tema de sempre. Esseartigo teve uma publicação quase privada daAssociação de Africanistas, saiu numapublicação... bom... quase privada.

AM — Referia-se então ao contexto africano,exclusivamente?

JF — Sim, mas ultimamente publiquei umtratando o mesmo tema . “Folklore as anAgent of Nationalism”, era o título do meuprimeiro artigo e o mais recente chama-se“Folklorists as Agents of Nationalism”, tendosaído em 1986. Assim, tenho dois artigosseparados por vinte e tantos anos tratando domesmo tema, ainda que, naturalmente, deperspectivas e com enfoques distintos.

AM — Quais são os seus temas de trabalho maisrecentes?

JF — Apesar do reflexivismo e do sentido deparcialidade de todas as nossas pesquisas,que chegou a afectar-nos a todos nesta idadepós-moderna, eu continuo a trabalharprincipalmente um grande tema que játinha sido posto por Aristóteles e por Vico— o problema do papel ocupado pelaimaginação figurativa no comportamentohumano.

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RETURNING TO THE WHOLE EM EDIMBURGO

sabes, da gente... há que distinguir. É certoque todos as utilizamos. A metáfora érealmente iluminante... ontem, no meudiscurso, na conferência que ouviste, servi-me da Fábula das Abelhas, citando BernardMandeville, que a tinha usado para referir osparadoxos que se pode perceber existirementre os vícios privados e os benefíciospúblicos.

AM — Também faz poesia?

JF — Sim, de vez em quando, mas não souum poeta muito publicado, a verdade é que éalgo com circulação apenas familiar.A minhapoesia está na etnografia que faço. Masadmiro muito os poetas e leio-os muito.É curioso que vários dos meus alunos sejampoetas publicados. Por exemplo JosebaZulaika, que escreveu sobre os Bascos aviolência basca, é um belíssimo poeta.Também Ruth Behar, que trabalhou em León,tem publicado poesia. Conheces estasmonografias?

AM — Sim, conheço. Também Paul Frederich,outro antropólogo que será sobretudo conhecidocomo poeta, participa em Beyond Metaphor, ovolume colectivo que organizou há algum tempo.

JF — Paul Frederich é muito importante. Tempublicada muita poesia. É por outro lado umantropólogo muito bom...

AM — Tem trabalhado no México?

JF — Bem... além de tudo, ele é também umpoliglota. É na verdade um homem quemaneja muitas matérias... trabalhou naRússia, Grécia, México, bom... é um demóniode conhecimentos, tendo em conta os váriosinteresses e actividades que desenvolve.

AM — Julgo que ele é muito pouco conhecido emPortugal...

JF — De facto é um homem demasiadopouco conhecido. Tampouco fazemreferências ao seu trabalho aqui, na Inglaterra

James Fernandez em Edimburgo, fotografado por António Medeiros

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Entrevista comJames W. Fernandez

ou na Escócia. Conhecerás um trabalho deleintitulado “Los Príncipes de Nararanja”?

AM — Conheço um livro seu, mas com outrotítulo, dos anos 70, à volta de histórias de vida derevolucionários em Naranja... será um trabalhomais antigo.

JF — Este chama-se “Los Príncipes deNaranja”, a inspiração deste trabalho está emMaquiavel e na grande obra O Príncipe.Sabes, Friederich ali aproxima o trabalho decampo no México usando como referência opensamento de Maquiavel. Compara omaquiavelismo no México nos dias darevolução de há tempos, claro... a revoluçãomexicana, de encontro às ideias expostas porMaquiavel. É um trabalho muito interessante,interessantíssimo.

AM — De que data ?

JF — Bem ... é um trabalho que saiupublicado nos meados anos 80. Mas averdade é que toda a obra de Paul Friederiché muito importante. Ele é bem poucoconhecido, como disse, mas não sei porquê.Talvez porque se dedica a várias coisas aomesmo tempo... então os especialistas têmtido a tendência de pensar que este homem éum pouco leviano enquanto antropólogo. Istonão é verdade, as suas obras sãoprofundamente radicadas no trabalho decampo. Verás... verás quando consultaresesse seu livro, que, além de tudo, é muitoexperimental.

AM — Julgo que foi um dos primeirosantropólogos americanos a serem influenciadospor Lévi-Strauss. No entanto, a sua preocupaçãocom a importância das metáforas tem inspiraçõesvariadas?

JF — Bom, de certo modo é verdade, masLévi-Strauss tem muitas influências deJakobson. Este foi um homem que eu limuito. O que posso dizer-te é que sobretudoesta influência foi importante para mim.Também importante foi aquilo que aparece

eleito na obra de Lévi-Strauss sob influênciade Jakobson. Talvez possa dizer que foiimportante a referência à obra de Jackobson ede Lévi-Strauss. Quanto às metáforas, maisprecisamente, e às influências que se marcamna minha obra... eu não quero negar aimportância de Lévi-Strauss, mas tão-sóespecificar aquilo que é influência sua, noque me toca.

AM — Foram mais variadas as inspirações... dosfilósofos, como sugeriu?

JF — Sim os filósofos, antes que todosGiambatista Vico, o grande sábio napolitanodo século XVIII. Vico mais do que ninguém...Mas não posso esquecer Aristóteles, que temalgo sobre as metáforas. Este é, ao fim e aocabo, um tema de sempre. Nós somos seres, éalgo da vida, somos seres que não podemosentender-nos sem fazer uso das metáforas,dos tropos.

AM — Os seus alunos têm boa vontade para lerVico?

JF — Bom... por força benévola maior. Vico édifícil de consultar!

AM — Os tropos para si têm sido preocupaçãoconstante, mas parece-me que têm sido umapreocupação muito própria, pessoal, relativamenteisolada durante vários anos na antropologia. Lium livro de Michael Herzfeld, onde também seencontrava essa preocupação. Ali eram muitosalientes as referências aos seus trabalhos etambém a G. Vico...

JF — Sim, está no seu livro sobre a Grécia,Anthropology Through the Looking Glass, que...sim, é verdade... é bom. Mas ultimamente oscognitivistas de Berkeley — George Lakoff,M. Johnson , etc. — fizeram trabalhos sobre aimportância da metáfora nos cursos defilosofia. Foste ver a conferência de FredrikBarth... ele fez referências a Lakoff e ao seutrabalho, criticando-o por ser demasiadoelementar, esquemático. É muito verdade. Oscognitivistas não entendem verdadeiramente

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as experiências humanas, pelo menos a umnível de participação como os antropólogos.O nosso contributo é esse: o de somar adimensão da experiência humana a estesesquemas, como os de Lakoff e Johnson.Quando comecei a falar da metáfora, asminhas primeiras publicações sobre esteassunto saíram nos anos 60, 67-68-69. Até aíquase ninguém na antropologia lhe atribuíauma importância especial, muito menos sefalava de tropos. Isto modificou-se muito nosúltimos dez ou doze anos. Inclusivamente,nas conferências plenárias, aqui, emEdimburgo, quase toda a gente lhe fezreferências. Tornou-se um tema que, se não écandente, é pelo menos imprescindível. Nomomento de falar de cultura, no momento defalar sobre a criação, sobre a construção dacultura, os conferencistas tiveram de referir--se, quase todos, à metáfora. É palavra quehoje é muito frequente. Mas, toma nota quenos anos 60-70, quando comecei a falar distoe, nomeadamente, quando fiz umaaproximação mais composta do tema,publicando aquele artigo — “The Mission ofMetaphor in Expressive Culture”, que é de1974 —, quase ninguém lhe atribuíaimportância. Apenas alguns poucos, comoRenato Rosaldo, os Rosaldo, e logo MichaelHerzefeld, este nos anos 80, a partir de 1981,lhe prestaram atenção.

AM — Renato Rosaldo é da sua geração?

JF — Não exactamente, eu tenho talvez maisuns dez anos do que ele. Bem... Rosaldo é dageração de 60, príncipios de 70, eu sou dageração de 50, príncipios de 60. Ele ainda nãotem cabelos brancos como eu, enquanto voupodendo dizer que tenho algum cabelo.

AM — Tem planeado fazer nas Astúrias umaobra de fundo, com a importância de Bwiti noque toca ao seu trabalho em África?

JF — Tenho várias coisas. Acaba de sair esteano uma colecção de textos. Todavia, estouainda a trabalhar na etnografia grande quelevará o título Felechosa, nome daquele sítio

onde mais se tem focado o nosso trabalho...Mas o seu subtítulo será “An Ethnographyof the Social Imagination”. Bwiti tinha comosubtítulo “An Ethnography of the ReligiousImagination”, este será sobre a imaginaçãosocial. Há, assim, uma pequena diferença notítulo, mas que é com certeza, à partida,importante.

AM — Será tão volumoso como Bwiti, estepróximo trabalho?

JF — Bem, sim, já tenho vários capítulosescritos, julgo que é impossível escrever umaetnografia sem lhe dedicar muitas páginas.Não sei se poderemos publicar tanto... masestamos a trabalhar nisso. Este será umtrabalho escrito em conjunto com a minhamulher, que tem trabalhado muito nasAstúrias. Foi por sugestão sua quecomeçámos a trabalhar em Espanha, e hojeem dia é ela que é a asturianina. Aliás nospueblos onde trabalhamos tenho o apodo deJaime da Renata. É ela a referência — ascoisas passam-se como se eu fosse umhomem de fora casado ali. Aconteceu que naprimeira vez que ali fomos, depois de algunsdias eu parti para África, deixando-a sozinha.Então as pessoas adoptaram-na, pensandoque aquele homem que passara tãorapidamente abandonara a pobrezinha. É daíque hoje sou o Jaime da Renata.

AM — Dos seus textos asturianos, um dos meusfavoritos será “Poetry in Motion: BeingMoved...” É muito evocativo de cenas quepresenciei no Minho, assim picarescas, como a quesuscita o jogo de palavras “piononos en el campoamor” no seu artigo. É muito peculiar na suaetnografia o registo de episódios assim tão vivos.

JF — Tenho sempre muito em atenção osaspectos picarescos do quotidiano. Esseepisódio no autocarro funcionou como ummomento revelador. Julgo que, de vez emquando, há momentos reveladores na vidahumana. São momentos que contêm umsentido muito profundo quanto às relaçõeshumanas, às dificuldades que existem entre

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Entrevista comJames W. Fernandez

as pessoas, quanto aos pensamentos distintosde homens e de mulheres, às dificuldadesque se põe às raparigas quando entram naidade madura, às relações jocosas com oshomens, por exemplos. Esses momentosreveladores contêm muitas vezes tropos —examinando-os podemos chegar acompreender os dinamismos presentes navida em sociedade. Por isso é costume meucomeçar cada capítulo de uma etnografia, porexemplo, com um desses momentosreveladores como o que presenciei entreOviedo e Arriondas, no autocarro das LineasEconómicas.

AM — Fala dos desafios poéticos nas Astúrias: látambém podem ser cantados? Há “cantores aodesafio” no Minho, Lisón-Tolosana tem um artigosobre este tema na Galiza...

JF — Há também cantigas dessas nasAstúrias, mas eu não as estudei. Creio que naGaliza é mais exuberante. Justamente, essassão expressões interessantes, porque lançamno ar figuras, tropos novos. Eu estive naGaliza, mas não me aproximei deste tema.Também os Bascos têm essas formas decontenda poética muito desenvolvidas, os ...não me lembra agora o nome que lhe dão.Acaba de sair um livro interessante sobre issopublicado pela Universidade de Nevada, emReno. Quase que diria que são os Bascos quetêm desenvolvido mais esta prática de lançarum desafio e ter de responder-lhe em verso.São os bertsolariak, é assim que se chamamem basco a estes contendores poéticos.É gente que espontaneamente se põe face aum auditório, depois lançam-lhes umaquestão à qual todos eles têm que deresponder poeticamente no momento:responde o primeiro, o segundo tem depegar na deixa...

AM — Cantando?

JF — Sim, cantando. Bem, alguns não opoderão fazer, mas a maioria cantando.

AM — O professor conhece bem a produçãoantropológica feita em Espanha. Pergunto-lhe se

conhece alguma coisa do que se tem feito emPortugal?

JF — Sim, alguma coisa, mas não muito,lamentavelmente... É certo que dou nauniversidade um curso que tem a ver comEspanha e a área mediterrânica, e trato daliteratura em inglês sobre Portugal, de BrianO’Neil, por exemplo ...

AM — De Pina Cabral...

JF — De Pina Cabral sim, de Cutileiro ealgum mais, bem... a literatura publicada eminglês. É muito difícil convencer aosestudantes norte-americanos — porque vivemno centro do império — a aprender e aconsultar coisas que não estejam em inglês.Inclusivamente, em cursos mais específicossobre Espanha, tenho muitas dificuldades emconvencê-los a ler em espanhol. Para asminhas próprias publicações, é claro que játenho lido coisas em português.

AM - Está a ensinar agora em Chicago?

JF — Sim, na Universidade de Chicago.

AM — Que relações percebe existirem hoje emdia entre o trabalho dos antropólogos e asreivindicações nacionalistas ou regionalistas. Nãolhe parece que continuam a ser práticas gémeas,em determinadas circunstâncias?

JF — O que se passa em Espanha podefuncionar como um bom exemplo paraatestar esses casos. A nova Constituiçãoespanhola, que deu lugar às comunidadesautónomas, diz que para ter direito àautonomia uma província ou região tem dedefender-se quanto à originalidade da suacultura...

AM — Provar?

JF — Sim, provar a originalidade da suacultura. Isso, é claro, suscita imediatamente apresença dos antropólogos que são estudiososda cultura. Por isso nas Astúrias, pelo menos,e seguramente também na Galiza, desde hámuito tempo foram os antropólogos que

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entraram aí na batalha do regionalismo paraafirmar a cultura local. Sim, mas há umproblema... porque muitas vezes osnacionalistas vão um pouco mais adiante darealidade para garantir que a sua cultura éoriginal. E eu... claro... assististe ontem àminha conferência?

AM — Sim.

JF — Naquele mapa das Astúrias quemostrei, que foi editado, as Astúrias estavamali isoladas, sem relações com a Galiza ouLeón. Então, claro, querem defender a culturaoriginal asturiana sem fazer referências àcultura leonesa ou galega... há um cortar dedistâncias excessivamente rápido...

AM — Julgo que havia alguma ironia nas suasreferências às edições “celtistas” que podem serencontradas por lá…

JF — Sim, bom... as pessoas têm os seusdireitos, evidentementente. Há essa influência

que está distanciada, mas, todavia, há algoque resta. Há... sim, há um aspecto doassunto que pode ser ironizado. A herançacéltica em Espanha é bastante mais longínquado que aqui na Escócia ou na Irlanda, mastambém há aqui uma invenção de heranças,como acontece por lá.

AM — Creio que procurou fazer umaaproximação equilibrada de todos esses “dilemas”num artigo recente, nos Ensayos en Honor deCarmelo Líson?

JF — A aproximação equilibrada desses“dilemas”, se é que ela existe, encontra-se noreconhecimento das dinâmicas dacategorização — em reconhecer a importânciado jogo das categorias na condição humana.Encontra-se no reconhecimento do modocomo até que ponto inventamos porintermédio de narrações poderosas as nossasidentidades: as nossas ideias e sentimentosacerca de quem são os nossos e dos que nãoo são.


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