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REVEJ@_0_completa

Date post: 20-Jan-2016
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REVEJ@ 1 REVEJ@ - Revista de Educacao de Jovens e Adultos, v. 1, n. 0, p. 1-108, ago. 2007
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Expediente

REVEJ@ - Revista de Educação de Jovens e Adultos, v. 1, n. 0, p. 1-108, ago. 2007 NEJA-FaE-UFMG. Belo Horizonte. Agosto de 2007. ISSN: 1982-1514 CAPA Tema: Diversidade Técnica: Colagem com panos Sob o paradigma da educação como um direito que se estende ao longo da vida, a Educação de Jovens e Adultos encontra na diversidade múltiplas formas de expressão. Encontramos a diversidade no sujeitos da EJA através de identidades de classe, geração, gênero, etnia, cultura, crença, dentre outros, que se constituem em interação nos mais variados espaços de diálogo, de práticas de formação, políticas, formas de pensamento, de organização social, habilidades e saberes. Inspirados pelo fundamento da diversidade como elemento de identidade da EJA, buscamos representá-la como mais uma forma de expressar um mundo que acreditamos híbrido, que questiona qualquer hierarquização ou dicotomias excludentes. É neste lugar que colocamos a EJA e é a partir dele que a REVEJ@ se propõe a operar como um espaço de interlocução e produção de conhecimento com vistas à construção de uma sociedade de diferentes vivendo em igualdade de condições e oportunidades.

Equipe de Produção de Arte

A REVEJ@ é uma publicação eletrônica do Grupo de Estudos e Pesquisas em EJA, vinculado ao Núcleo de Educação de Jovens e Adultos da Faculdade de Educação da UFMG. Sua periodicidade é quadrimestral. Ela é gratuita e está disponível para acesso no endereço http://www.reveja.com.br.

Equipe Editorial Equipe de Trabalho

Coordenador: Leôncio José Gomes Soares Analise de Jesus da Silva

Editor Responsável: Luiz Olavo Fonseca Ferreira Gilmara de Souza Gomes

Jornalista Responsável: Mirella Augusta Carvalho Jerry Adriani da Silva

Secretária: Fernanda Aparecida Oliveira R. Silva Magda Antunes Martins

Comitê Editorial: Ana Paula Ferreira Pedroso Júlio César Ferreira

Comitê Editorial: Emmeline Salume Mati Rosa Cristina Porcaro

Comitê Editorial: Isamara Grazielle Martins Coura Sônia Maria Alves de Oliveira Reis

Comitê Editorial: Lígia Vilela Félix

Comitê Editorial: Raquel Miranda Vilela

Layout e Arte: Cristiane Fernanda Xavier

Layout e Arte: Juliana Gouthier Macedo

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Sumário

Editorial ............................................................................................................................... 04

Balanço da EJA: o que mudou nos modos de vida dos jovens-adultos populares?

Miguel Arroyo ....................................................................................................................... 05

De Hamburgo a Bancoc: a V CONFINTEA revisitada

Timothy D. Ireland ................................................................................................................ 20

A Educação Continuada e as políticas públicas no Brasil

Sérgio Haddad ....................................................................................................................... 27

O legado de Paulo Freire: passado ou atualidade?

Osmar Fávero ........................................................................................................................ 39

Brasil 10 anos sem Paulo Freire

Sonia Couto Souza Feitosa .................................................................................................... 45

Educação de Jovens e Adultos e Juventude: o desafio de compreender os sentidos da presença dos jovens na escola da “segunda chance”

Paulo Carrano ....................................................................................................................... 55

Educação de Jovens e Adultos: movimentos pela consolidação de direitos

Jane Paiva .............................................................................................................................. 68

Práticas de leitura na EJA: do que estamos falando e o que estamos aprendendo

Cláudia Lemos Vóvio ............................................................................................................ 85

As estatísticas da alfabetização

Vera Masagão Ribeiro ........................................................................................................... 97

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Editorial

O crescimento dos estudos e das pesquisas em Educação de Jovens e Adultos – EJA –

necessitava ser acompanhado de canais que dessem visibilidade a essa expansão. Para contribuir na divulgação dessa intensa produção, nasce a REVEJ@ – Revista de Educação de

Jovens e Adultos. Uma revista com objetivo de estreitar e facilitar o acesso desta produção aos seus leitores em potencial: educadores, pesquisadores, estudiosos, formuladores de

políticas públicas, etc. Optar por uma revista “eletrônica” significa potencializar esse objetivo: rapidez, amplitude, acessibilidade, articulação com outros sites, diversidade de mídias (textos,

fotos, áudios e vídeos) e interatividade. Regularmente, muitas pesquisas são apresentadas no Grupo de Trabalho de EJA da

ANPEd, no Seminário de Educação de Jovens e Adultos do COLE, nos Colóquios Paulo Freire na UFPE, nos Telecongressos do SESI, na SBPC, dentre outros. Acrescente-se a esses

eventos a realização anual dos ENEJAs – Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos – e das plenárias dos Fóruns Estaduais de EJA. Essa rica e diversificada produção

tem sido registrada, muitas vezes, apenas nos anais dos respectivos eventos. Esperamos, assim, com o lançamento da REVEJ@, incrementar o intercâmbio entre investigadores e

interessados, fortalecer a rede já existente, bem como incentivar e estimular novos estudos e pesquisas na EJA.

Com periodicidade quadrimestral, a REVEJ@ disponibilizará, nesta perspectiva, vários serviços em seu site: textos reflexivos, pesquisas, notícias, eventos, glossário, links, etc.

Esta revista eletrônica está vinculada ao NEJA – Núcleo de Educação de Jovens e Adultos, da UFMG que, com mais essa iniciativa, se inscreve no cenário nacional contribuindo para a

configuração do campo da EJA no Brasil. O Conselho Editorial tem uma composição que contempla a diversidade regional e um significativo número de membros que participa

intensamente das atividades que envolvem a EJA. Esse número de lançamento foi organizado solicitando contribuições de educadores e

pesquisadores reconhecidos na área, apresentando textos que tratam da EJA, em alguns de seus aspectos mais gerais: Cláudia Vóvio (práticas de leitura), Jane Paiva (fóruns de educação

de jovens e adultos), Miguel Arroyo (especificidades), Paulo Carrano (juventude), Sérgio Haddad (educação continuada), Vera Masagão (indicadores de avaliação de alfabetismo e

analfabetismo). A revista traz, ainda, Osmar Fávero e Sônia Couto discorrendo sobre os 10 anos da ausência do educador Paulo Freire e seu legado e, também, as reflexões de Timothy

Ireland acerca da CONFINTEA. A concretização da idéia, que deixou de pairar no ar e ganhou chão, por meio da

produção técnica, só foi possível graças a disponibilidade, o compromisso e a competência da equipe. Agradecemos ao aceite dos convidados que hora inauguram, como primeiros autores,

nossa revista. A continuidade da REVEJ@ incorporará as sugestões de aprimoramento enviadas por

seus leitores que também estão convidados a encaminharem seus artigos a serem apreciados, segundo as normas para submissão de trabalhos.

Leôncio Soares

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Balanço da EJA: o que mudou nos modos de vida dos jovens-adultos populares?1

Miguel Arroyo 2

Resumo: Este artigo é uma reflexão acerca das especificidades da educação de jovens e adultos e de seus sujeitos, apresentada na comemoração dos nove anos do Fórum Mineiro de Educação de Jovens e Adultos. Trata-se de um balanço desse período, abordando o campo da formação, das políticas públicas e a própria história do Fórum Mineiro. Considerando que qualquer uma dessas abordagens, ainda que imprescindíveis, deixam escapar algumas marcas da EJA, essa reflexão nos convida a direcionar nosso olhar sobre quem são os sujeitos que vêm demandando a educação de jovens e adultos. Desenvolve o argumento de que a juventude, os adolescentes e os adultos populares estão, hoje, mais demarcados pela concretude de suas histórias de vida, de seus trabalhos, de suas maneiras de sobreviver em um presente que é mais importante que o futuro. Qualquer tentativa educacional que proponha enquadrar esses sujeitos em categorias muito amplas os desfigura, do mesmo modo que qualquer forma de educação generalista, os distancia. Logo, reconstruir essa trajetória nos leva a questionar em que medida foi possível partir da vida humana para pensar os currículos, os tempos, os saberes e, sobretudo, as imagens que vêm sendo construídas sobre o que é ser jovem e adulto da EJA. Educadores, educandos, pesquisadores e gestores devem buscar os caminhos que articulem a vida concreta dos sujeitos da EJA e suas especificidades, para a partir daí construir um currículo e uma escola que possam atender as suas necessidades.

Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos, Currículo, Formação; Trabalho.

Introdução

O artigo se propõe a fazer um balanço sobre a Educação de Jovens e Adultos – EJA, por

ocasião do nono aniversário do Fórum Mineiro de Educação de Jovens e Adultos, enfocando

alguns pontos que considero serem imprescindíveis para se avaliar essa trajetória. Inicio

abordando que o olhar será sobre quem são esses sujeitos que têm demandado a educação de

jovens e adultos e suas marcas, que vêm se aprofundando nestes últimos dez anos, seus

modos de vida, de sobrevivências, de trabalhos. Proponho que o balanço da trajetória da EJA

comece por um balanço das trajetórias nas formas de viver – mal-viver dos jovens e adultos

populares que voltam ao processo de educação. Que essas trajetórias sejam o fio condutor

para se pensar os currículos, os tempos e, sobretudo, as imagens que vêm sendo construídas

sobre o que é ser jovem e adulto na EJA.

Elementos para um balanço

É muito bom refletir sobre os nove anos do Fórum Mineiro de Educação de Jovens e Adultos

com educadoras e educadores que vêm construindo ao longo de nove anos, a nova cara, a

nova face, o novo rosto da EJA. À medida que vamos construindo o novo rosto, uma nova

face, uma nova imagem da EJA, também, vamos nos construindo como educadoras,

educadores, com uma nova face, um novo rosto, uma nova auto-imagem. A pergunta que 1 Tema desenvolvido por ocasião da 67ª plenária do Fórum Mineiro de Educação de Jovens e Adultos, realizada na Faculdade de Educação da UFMG, no dia 29 de junho de 2007, ocasião que se comemorou o 9º aniversário desse Fórum. 2 Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da UFMG.

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todos nós estamos nos fazendo na comemoração dos nove anos do Fórum Mineiro, sem

dúvida, é a seguinte: o que aconteceu ao longo desses anos que marcaram a EJA, que nos

marcaram e que marcas seriam essas? Por onde começar esse balanço?

Podemos começar esse balanço pelo Fórum pelo seu percurso nos seus nove anos de

existência. Poderíamos começar por aí, pela construção desse Fórum, as reuniões, as

temáticas, os relatos de práticas, as análises densas. Acho que fazer uma reconstrução de nove

anos do Fórum mereceria um bom trabalho de pesquisa e produção coletiva. Poderia, também,

acompanhar como esse percurso do Fórum vem contribuindo na reconstrução dos nove anos

da EJA, no nível de políticas públicas do MEC, da SECAD. Poderíamos, também, reconstruir

os nove anos na área da formação de professores, de educadores e de educadoras da EJA.

Que educadores, que educadoras para a EJA foram se conformando?

Mas penso que qualquer balanço que começa por aí fica desfocado. Que quero dizer? Que

começar o balanço perguntando-nos por nós, pelo Fórum, por nossa formação, pelas políticas

da EJA, até pelos pareceres do CNE e outros tantos, seria um começo desfocado. Onde estaria

o verdadeiro foco para um balanço? Essa é a primeira questão que gostaria de colocar, porque

creio que esse balanço não vai terminar aqui. Ele vai continuar em cada um dos encontros do

Fórum Mineiro e em cada um dos municípios do Estado.

Os sujeitos da EJA e suas marcas

Estou sugerindo que o melhor caminho para fazer esse balanço é buscando saber o que

aconteceu ao longo desses últimos nove anos com os próprios jovens e adultos. A pergunta

poderia ser esta: que traços têm caracterizado ou que marcas poderíamos encontrar na

construção dos jovens e adultos populares? O que lhes afeta mais? O que os desestrutura? O

que os interroga? Como eles se interrogam sobre si mesmos, sobre a sua própria construção?

Isso significa que vamos focar nosso olhar nessa pergunta. Que traços vêm caracterizando ou

que marcas vêm configurando a juventude e a vida adulta populares?

Poderíamos destacar uma primeira constatação. Parece-me que ao longo desses últimos anos,

cada vez a juventude, os jovens e os adultos populares estão mais demarcados, segregados e

estigmatizados. Não está acontecendo o que se esperava, ou seja, que esses jovens fossem se

integrando, cada vez mais, na juventude brasileira. Ao contrário, penso que o que está

acontecendo é que as velhas dicotomias, as velhas polaridades da nossa sociedade (e um dos

pólos é o setor popular, os trabalhadores, e agora nem sequer trabalhadores) não estão se

aproximando de uma configuração mais igualitária, ao contrário, estamos em tempos em que

as velhas polaridades se distanciam e se configuram, cada vez mais, com marcas e traços mais

específicos, mais diferentes, mais próprios. Mais distantes. A juventude popular esta cada vez

mais vulnerável, sem horizontes, em limitadas alternativas de liberdade.

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A EJA se defronta com essas polarizações na forma de viver o ser jovem-adulto popular e

qual é o projeto educativo diante dessa realidade? A EJA tem que ser uma modalidade de

educação para sujeitos concretos, em contextos concretos, com histórias concretas, com

configurações concretas. Sendo que qualquer tentativa de diluí-los em categorias muito

amplas os desfigura. Eu diria que os últimos anos foram tempos de deixar, ainda, mais

recortadas essas configurações do que venha a ser jovem e adulto popular.

A EJA tende a configurar-se, cada vez mais, como um projeto de educação popular dos

jovens e adultos jogados à margem. Daí, podemos tirar uma conclusão: a EJA continua tendo

sentido enquanto política afirmativa desse coletivo cada vez mais vulnerável. Não poderá ser

diluída em políticas generalistas. Em tempos em que essa configuração dos jovens e adultos

populares em vez de se diluir está se demarcando, cada vez com mais força, a EJA tem de

assumir-se como uma política afirmativa com uma marca e direção específica. Esta é a

primeira constatação que gostaria de deixar ressaltada. Ou seja, o que estou sugerindo é que

deveríamos pesquisar mais sobre essa configuração social e cultural dos jovens e adultos

populares com os quais trabalhamos. Insisto em dizer que os últimos dez anos foram anos de

polarização. Anos de distanciar esses jovens e adultos ainda mais do que já estão distanciados,

ou segregados, de um projeto nacional de integração, de participação no trabalho, na riqueza,

na cultura e no conhecimento.

Pode ser que esta análise pareça um pouco pessimista, mas, talvez, seja realista. Quem

convive com esses jovens e adultos deve se fazer essa pergunta: de onde esses jovens e

adultos que freqüentam a EJA estão mais próximos? Seria dos jovens e adultos das camadas

médias? Ao contrário, estão cada vez mais distantes. Na pobreza, miséria, sub-emprego,

vulnerabilidade. Esse seria o primeiro ponto que sugiro para o balanço.

A partir dessa primeira questão, que seria mais geral, teríamos que ir avançando no balanço e

poderíamos destacar alguns outros pontos, que de alguma forma comprovariam o que

apresento sobre esse maior distanciamento, essa configuração da especificidade de ser povo,

de ser trabalhador, desempregado, de ser jovem e adulto dos setores populares. Quais seriam

esses traços que poderíamos destacar?

Saberes, sobrevivência, empregabilidade: a razão do presente entre os jovens e adultos

O primeiro traço é o desemprego. Há alguns dias, a imprensa destacou muito uma notícia de

que houve aumento de emprego. Todos nós temos que estar muito atentos a esses dados que

aparecem na imprensa e até, mesmo, procurar ter acesso aos estudos onde se fundamentam

esses dados. O emprego aumentou sim, mas aumentou, sobretudo, na área informal. O

trabalho informal triplicou enquanto que o trabalho formal pouco aumentou. Que querem

dizer esses dados? Querem dizer que os jovens e adultos da EJA, certamente, estão entre esses

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que ajudaram a triplicar o trabalho informal. Esses jovens e adultos não estão se incorporando

no trabalho formal, por que não há oferta de trabalho formal. Ao contrário, eles têm que

sobreviver do trabalho informal. O horizonte para eles, inclusive ao terminarem alguma fase

da educação básica, seja o que chamam de quarta série, de oitava série, ou até a educação

média, talvez seja o trabalho informal, o sub-emprego, a sobrevivência mais emediata.

O que significa isso para um jovem e adulto, que nem sequer pode se considerar trabalhador

formal, mas terá que se identificar como trabalhador informal por toda a vida? Creio que o

traço mais sério de tudo isso é a insegurança. Um trabalhador informal não tem segurança.

Hoje pode estar aqui, amanhã pode estar lá. Hoje vive de um biscate, amanhã tem que sair

atrás de outro. Depende do que aparecer. Se estiver na época de alho, vende alho, se estiver na

época de maçãs, vende maçãs, ou qualquer outro produto da safra. Ele não tem uma

configuração clara de trabalhador. Ao contrário, ele vai criando uma idéia de alguém que está

atrás do que aparece. E estar atrás do que aparece é não ter horizonte, é não construir um

caminho. Não projetar-se no tempo como horizonte é estar atrás do tempo, não controlar o seu

tempo humano. Diria que esses jovens e adultos já perderam até o que Chico Buarque tanto

falava: esperando alguém, esperando o trem, esperando o amanhã, esperando emprego. Isso

porque esse horizonte da esperança pertencia a uma sociedade industrial, onde o jovem tinha

como horizonte um emprego, mais ou menos qualificado, dependendo da formação que ele

tivesse.

Nesse modelo de trabalho não formal, de trabalho informal, onde a maior parte dos jovens e

adultos que estudam na EJA estão, essa esperança se perde. Não se vive da esperança de um

futuro, tem que se viver é dando um jeito no presente. O presente passa a ser mais importante

do que o futuro. Isso traz conseqüências muito sérias para a educação, porque a educação

sempre se vinculou a um projeto de futuro. Inclusive, penso que esses mesmos jovens que

acodem a EJA ainda sonham que através da educação terão outro futuro. Mas o problema é

que eles podem também estar enganados, ou ser enganados pela escola e levados a se

esquecerem que a idéia do futuro se perdeu e que o agora, o presente incerto, substitui o

futuro. O futuro se distanciou e o presente cresceu. Isso é muito típico das vivências do tempo

da juventude popular.

O futuro se distancia e, conseqüentemente, o presente se amplia. Uma coisa é estudar para o

futuro e outra coisa é preparar-se para sobreviver num presente esticado, sempre esticado, sem

horizontes de futuro. Isso nos obriga a mudar os nossos discursos em relação a educação. Até

da EJA. Esta tende a apresentar-se aos jovens-adultos como a última porta para o futuro. No

discurso da educação persiste o discurso das promessas de futuro e, talvez, o discurso deveria

ser da garantia de um mínimo de dignidade no presente. Esta abordagem muda, e muito, o

foco do olhar. Com os jovens e adultos com que trabalhamos, o que temos que fazer é evitar

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discursos do futuro e falar mais no presente. Intervir mais no seu presente do que prometer

futuros que não chegarão.

Mas que radicalidade desestabilizadora encontrar nessas formas de viver o presente?

Teríamos que caracterizar bem quais são as formas concretas de sobrevivência, de trabalho

informal a que esses jovens e adultos estão, quase que irremediavelmente, atrelados. Ao

menos pelas estatísticas, não há criação de empregos. Há tantos candidatos na fila da

empregabilidade, outros conseguirão esses empregos antes que eles, restando-lhes durante

muito tempo, quase que a vida toda, apenas o trabalho informal. Isto nos mostra que esses

jovens e adultos estão condenados ao que poderíamos chamar de um estado de permanente

vulnerabilidade nas formas de viver. Viver significa para eles ter o que comer, ter um salário,

ter uns trocados. Quando até essas bases do viver são incertas, a incerteza invade seu viver.

Há alguns dias, estava em São Paulo naquele caos do trânsito. E quanto mais caos, mais gente

vendendo água, vendendo tudo. Parecia um supermercado ambulante. Tudo o que você

imagina, você pode comprar. Quem estava lá vendendo? Jovens e adultos populares! A maior

parte homens, poucas jovens. Jovens e adultos de trinta, vinte e cinco, quarenta anos, dezoito

anos, dezesseis anos. É esse o trabalho a que me refiro. Essa situação depende muito do dia.

Se um dia estiver com muitos engarrafamentos, então dá para chegar em casa com mais

trocados. Se o trânsito flui, aquele dia é um dia perdido. Que segurança humana, que

segurança enquanto gente poderá fazer parte desse emaranhado de formas de viver? Talvez

alguns deles estudem na EJA, ou talvez já tenham chegado à conclusão de que pouco

adiantará estudar na EJA para ser vendedor nos engarrafamentos. Mas pode ser que estejam

na EJA. E qual EJA a se configurar para esse tipo de vulnerabilidade de formas de viver? É

uma pergunta que temos que fazer se quisermos realizar um balanço profundo, sério. Para

tanto, teríamos que pensar em alguns pontos que fazem parte da profissão, do ofício de

educadores e educadoras da EJA.

Poderíamos pensar: que currículos seriam necessários para essa juventude e vida adulta nesses

níveis de vulnerabilidade, nesse trabalho informal? Se observarmos os currículos da educação

básica, seja fundamental, seja média, e aquelas propostas que repetem o currículo da educação

fundamental e média para a EJA, pode-se perceber que tudo o que se valoriza nesses

currículos é voltado para o emprego seguro. É qualificar sabendo matemática, biologia, física,

química, português e gramática. Esse trabalho informal não aparece nos currículos como

realidade e como forma de trabalho, nem como horizonte. Nós nunca nos colocamos: que

qualificação seria necessária para enfrentar esse tipo de vida? Os caminhos para esses jovens

e adultos continuam pensados para chegar à universidade ou, ao menos, qualifica-los para um

bom emprego, para passar num concurso. Os currículos não foram pensados para essa

situação instável, porque se supunha que era provisória e para poucos. No momento que essa

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condição se tornou permanente e para milhões, a escola continua, ingenuamente, preparando

para um trabalho que não existe e para saberes supostamente necessários para a seleção em

trabalhos que não existem. É possível que estejamos repetindo currículos da EJA com esses

saberes, supostamente, para capacitar para trabalhos que não existem. Penso que, no mínimo,

teríamos que ter um pouco de senso crítico.

Não se trata de não ter currículos. Não se trata de não ter conhecimento. Não se trata de negar

o conhecimento, mas que conhecimento? É preciso muito conhecimento para sobreviver nessa

vulnerabilidade, tanto mais do que para sobreviver na segurança do trabalho. Não obstante,

ainda, não inventamos currículos e conhecimentos e capacidades, saberes para essa

vulnerabilidade, para esse trabalho informal. Não seria essa uma tarefa nossa? Nessa questão,

o Fórum não teria um “que fazer” importantíssimo? Tentar encontrar conhecimentos, saberes,

competências, que qualifiquem para uma situação que se torna permanente e

permanentemente vulnerável e insegura, mas que nem por isso dispensa saberes,

conhecimentos e qualificação. Essa seria, ao meu ver, uma das primeiras questões a serem

trabalhadas.

Que currículos reinventar? Ao menos currículos que dêem centralidade aos conhecimentos

sobre esses mundos do trabalho informal, da sobrevivência. Análises sobre o momento

histórico que leva a essa vulnerabilidade de um dos direitos mais humanos, o trabalho.

Análises sobre a história do trabalho e de sua precarização. Conhecimentos que esclareçam

suas indagações, que os ajudam a entender-se como indivíduos e sobretudo como coletivos.

Tão vulneráveis, em percursos humanos tão precarizados. A função de todo conhecimento é

melhor entender-nos no mundo e na sociedade.

Currículos que os capacitem para ter mais opções nessas formas de trabalho e para se

emancipar da instabilidade a que a sociedade os condena. Conhecimentos e capacidades que

os fortaleçam como coletivos que os tornem menos vulneráveis, nas relações de poder. O

movimento operário buscou fortalecer os trabalhadores com saberes, consciência, poder.

Como fortalecer aqueles coletivos submetidos a formas de trabalho tão precarizados e

instáveis? Que papel poderá ter a vivência de projetos de educação?

Desde Paulo Freire todos aprendemos que, sobretudo, na educação de jovens e adultos temos

que partir dos saberes dos educandos e de suas vivências. A pergunta que teríamos que fazer

seria: mas que saberes se aprendem vendendo formas de viver tão instáveis? Que saberes

aprendem esses jovens ambulantes? Vão com eles para a EJA? Aprendemos que o trabalho é

princípio educativo, mas podemos imaginar que o trabalho informal, o trabalho pela

sobrevivência, seja educativo? Se reconhecermos que essas formas de trabalho são

formadoras, como devemos trabalha-las pedagogicamente? Aqui cabe esta pergunta que não é

fácil de responder, mas que teremos de colocar com toda força: que saberes aprende um

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adolescente, um jovem e um adulto que passa anos e anos nesses processos de sobrevivência

tão instáveis? O que ele se pergunta sobre a vida, sobre a natureza, sobre a sociedade, sobre o

trabalho, sobre a família, sobre a sua condição como homem, como mulher? Às vezes é pai ou

mãe de dois filhos, três filhos, mãe. Que interrogações ele se faz? Como deixar que aflorem

essas indagações, para organiza-las e trabalha-las nos currículos?

Para sobreviver na vulnerabilidade é necessário enfrentar mais indagações do que para

sobreviver na segurança, muitas mais, só que são outras. Quais? Não teríamos que levantar

quais são, pensá-las e dialogar com os jovens e adultos sobre isso? Abrir espaços para que

eles coloquem as suas indagações sobre a vida, sobre a sua condição, sobre seu futuro, sobre a

cidade, a sociedade, o lugar em que foram jogados com se fossem restos, entulho de

construção de seres humanos? Esta, talvez, seria uma das questões mais sérias na área do

currículo: que o trato teórico dessas indagações seja o núcleo fundante.

Currículo e EJA ou tempos e saberes revisitados?

O currículo fala pouco sobre o trabalho. É curioso que os currículos sempre partem do

pressuposto de que preparam para o trabalho. A imagem de educando que o currículo tem é de

empregável, então o capacitemos para a empregabilidade, formemos um currículo por

competências para uma suposta sociedade do trabalho. A pergunta teria que ser: que saberes

sobre o trabalho teríamos que transmitir nos cursos da EJA? Não se trata de fugir de enfrentar

o trabalho, mas há muitas formas de capacitar para o trabalho. Uma delas é tornar os

educandos e educandas mais competentes para um mundo cada vez mais competitivo, em

função dos processos de produção seletiva. Isso é uma forma. Mais há outra forma que o

movimento operário mundial nos ensinou, o movimento operário mundial não renunciou a

formar um trabalhador(a) competente, a trabalhar com competência no trabalho. Mas o que

ele mais destacou é o que a burguesia nunca quis, que ele entendesse muito bem dos mundos

do trabalho. Os saberes sobre os mundos do trabalho são mais do que as competências para

enfrentar um concurso ou um emprego.

Não proponho que se ignore o trabalho nos currículos da EJA. A proposta é de que

aprendamos com o próprio movimento operário internacional a centralidade de conhecer os

mundos do trabalho. Ser competente para entendê-los e para enfrentá-los e não simplesmente

para se integrar e se acomodar. O problema é que não temos nem o direito de escolher entre

essas propostas diferentes. As formas concretas de inserção dos jovens-adultos populares tem

de ser o ponto de partida para nossas escolhas.

Não podemos esquecer que os jovens e adultos retornam para a escola com muito custo,

depois de percursos tão truncados pelo próprio sistema educacional. Qualquer tentativa de

fazer da EJA, insisto, um centro de formação de competências para um trabalho que não

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existe, já é um fracasso. É um fracasso como educadores, como EJA, é um fracasso,

sobretudo, para os jovens e adultos que esperavam outras capacidades para enfrentar esse

trabalho informal de sobrevivência onde estão jogados. Não estamos propondo, insisto, um

currículo para mantê-los na sobrevivência mas para serem mais livres no presente, ter mais

opções de supera-la, sem promessas ingênuas de futuro.

Como articular tempo de trabalho informal e tempo de EJA?

Levando em conta que o trabalho continua sendo nuclear na vida desses jovens e adultos, qual

concepção de trabalho estamos enfatizando? Teríamos que falar muito mais do não trabalho

de jovens e adultos, ou do trabalho que estamos chamando aqui de informal, pela

sobrevivência? Seria conveniente colocar isso no foco das análises, do balanço, nestes nove

anos do Fórum Mineiro. Mas, essa caracterização que tento trazer aqui do desemprego e das

formas de trabalho a que são submetidos esses jovens e adultos, além de interrogar os

currículos, penso que devem interrogar, também, a organização da própria EJA e a

organização dos tempos da EJA, sobretudo.

Uma coisa é o tempo de um trabalhador que sabe a hora que entra, a hora que sai e das oito

horas de trabalho, e outra coisa é o tempo de um sobrevivente em situações informais de

trabalho. Ele não tem tempo, ou melhor, ele não controla seu tempo, ou ele tem que criar o

seu tempo. Porém, não é um tempo que ele cria como bem quer. Esse tempo tem que ser

criado em função do ganho de cada dia. Ele poderá terminar as seis da tarde se aquele dia foi

bom, mas poderá tentar continuar vendendo pipocas, água ou quiabos, se aquele dia foi mal.

O tempo dele é tão instável quanto a sua forma de trabalhar. Conseqüentemente, diante dessa

caracterização dos tempos de trabalho pela instabilidade, que tempos de EJA se atreverão a

ser estáveis?

Diante dessa instabilidade dos tempos do viver, de trabalhos informais e tempos de escola,

não teríamos que redefinir os tempos de escola, os tempos da EJA, e torná-los o mais flexíveis

possível? Os tempos de cada dia e de cada noite teriam que ser repensados, assim como os

tempos do tempo da EJA. Tomemos como exemplo essa divisão que ainda fazemos de

primeiro e segundo estágio ou segmento. O que significa, então, “segmento”? A Maria está no

primeiro segmento , na 4ª, e o namorado está no segundo segmento, na 5ª? Seria melhor que

deixássemos de primeira à quarta, de quinta à oitava, mesmo que já nos envergonhemos disso.

Mas como não somos capazes de partir da vida humana e dos tempos vividos no trabalho,

sempre partimos de séries, segmentos, níveis, anos, aí caímos na situação em que a EJA se

encontra. A questão que coloco é como estruturar os tempos do aprendizado, da socialização,

do domínio de conhecimentos. Há formas rígidas de aprender o conhecimento para quem não

tem outra coisa que fazer na vida e há formas que têm que ser repensadas e reinventadas para

quem não tem controle do seu tempo. Lembremos que muitos(as) dos educandos(as) da EJA

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chegam com percursos truncados pela dificuldade de articular tempos de sobrevivência e

tempos de escola.

É muito mais complicado um bom projeto de educação de garantia do conhecimento para

quem não tem o domínio dos seus tempos do que para quem tem domínio dos seus tempos.

Penso no meu neto que acorda às sete horas e vai para a escola e na parte da tarde faz os

deveres. Mas ele não tem nada o que fazer. E como fica o menino da rua? E o adolescente que

luta pela sobrevivência? A maior parte dos jovens e adultos da EJA são vítimas, exatamente,

da rigidez dos tempos escolares desde o pré-escolar e, ainda, teimamos que eles se adaptem à

mesma rigidez no tempo da EJA. Será que não há percepção de que não é possível obrigar

jovens e adultos que não dominam os seus tempos, que têm que esticá-los, sempre, para poder

sobreviver, a modelos rígidos de organização dos tempos escolares? Não esqueçamos que um

jovem e um adulto já têm uma travessia longa, uma travessia de saberes, de percepções, de

indagações, que tentou responder, ainda que não saiba ler nem escrever. Não é só quem sabe

ler e escrever que se faz indagações sérias e busca respostas sérias. Essa é a nossa concepção

letrada que não valoriza os saberes aprendidos na leitura do mundo. Como articular

letramento e leitura do mundo?

Há experiências muito interessantes que tentam perceber esses jovens e adultos como

trabalhadores na sobrevivência, no trabalho informal, buscando vincular o direito à educação

básica com a qualificação para esse tipo de trabalho. Como exemplo, temos a experiência na

cidade de Guarulhos. Logo no primeiro dia de entrada na sala de aula, na EJA, se faz um

mapeamento de que tipo de trabalho esses jovens fazem. Antes de se perguntar em que série

eles terminaram, perguntava-se em que trabalhos estão inseridos. Ou em que não trabalho, ou

em que trabalho informal ou em que forma de sobrevivência estão inseridos.

Essa passava a ser a primeira preocupação. Considerá-los como alguém que luta por

sobreviver em formas, às vezes indignas, mas possíveis de trabalho. Antes de vê-los no seu

percurso escolar, vê-los no seu percurso de trabalho. Uma vez feito esse mapeamento, tentar

criar grupos próximos de trabalho. Se há alunas que trabalhavam na área de salão de beleza,

manicure, estética, porque não formar um grupo de identidades de trabalho? Não de

identidades de ano onde pararam, mas de trabalho. Ou se há bombeiros, ou marceneiros, ou

donas de casas, cozinheiras, se formavam grupos. A idéia é que esses grupos saíam mais

qualificados para esses trabalhos. Pode ser qualificação no sentido do próprio trabalho, se

marceneiro, se bombeiro, se eletricista. Ou pode ser, também, em torno de uma questão que

todo trabalho informal tem como horizonte: se estabelecer por conta própria. Essa é uma das

características: o querer se estabelecer por conta própria. Mas, o que precisaria para se

estabelecer por conta própria? Essas meninas, adolescentes ou jovens, que trabalham no

campo da estética, que precisariam? Teriam que ter um projeto que equacionasse o que

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significa alugar uma garagem para instalar um salão de beleza? Em que bairro? Qual o custo?

E a mobília? E a clientela? Capacitá-las para enfrentar os espaços tão estreitos, mas possíveis

de sobreviver.

Isso se vai fazendo ao longo da EJA e, ao mesmo tempo, se vão vinculando os conhecimentos

da educação básica a cada um desses momentos, desses processos. Esta é uma forma, mas há

muitas outras. Entretanto essa coragem de redefinir as formas de formar exige redefinir os

tempos. Muitas propostas progressistas de trabalhar pedagogicamente os currículos terminam

por perder-se quando caem em estruturas rígidas de tempos, segmentos, carga horária,

segmentação por disciplina e por mestres licenciados. Volta a pergunta, como repensar os

tempos de escolas, as lógicas temporais em que organizamos os cursos de EJA levando em

conta o não controle do tempo ou a instabilidade dos tempos de sobrevivência a que estão

submetidos os jovens e adultos.

As flores noturnas também têm cheiro...

Uma segunda questão a ser abordada, a violência. A violência aumentou, assustadoramente.

Cada ano que passa estamos mais atolados nas violências, múltiplas violências de nossas

sociedades. Ou o discurso, o medo e a violência estão aumentando.

Creio que essa é uma das grandes interrogações da contemporaneidade para a educação, a

violência. A violência que nos chega pela mídia, que nos chega pelos jornais. Mas a minha

pergunta é essa: como a violência vulnera a juventude e os adultos que freqüentam nossas

escolas? Isso quando as freqüentam, porque a violência, muitas vezes, não permite que a

freqüentem. A EJA não é um lugar, uma reserva ecológica aonde a violência não chega. Ela

nos invade por todo lado. Hoje falamos tanto da violência nas escolas. Mas a violência chega,

nos invade e, sobretudo, o discurso sobre a violência a cada dia se infiltra mais. Eu diria que a

categoria violência passou a ocupar um lugar muito próximo da categoria terrorismo. É a

prima mais próxima do terrorismo. O que antes era violência, agora é terrorismo. E o que

antes era indisciplina, agora é violência.

Quando participo de debates sobre violência nas escolas, a primeira pergunta que faço é: mas

o que estamos chamando de violência? Os meninos não querem saber nada, se levantam,

saem, chutam tudo. Mas, sempre foi assim. Antes falávamos indisciplinados e agora falamos

violentos. É muito mais grave chamar a uma criança, a um adolescente, de violento do que de

indisciplinado. É destrutivo de auto-imagens ouvir na mídia que o povo é violento, que a

adolescência e juventude populares são violentas. Até onde, como educadores desse jovens-

adultos populares, não nos deixaremos contaminar com essas visões tão negativas do povo? O

discurso da violência infanto-juvenil está instalado nas escolas. Até a docência olha com

outros olhos os adolescentes e jovens populares. E a EJA estará se deixando contaminar por

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mas essa mão negativa? Talvez vê-los como violentas é um dos traços marcantes da última

década.

A violência passou a ser uma nova categoria segregadora, classificatória. E o que ela traz de

novo? A violência traz de novo para as escolas uma outra divisão. A escola sempre trabalhou

com categorias, sempre separou. O que as violências estão trazendo de novo é que se trata de

um referencial ético, não de um referencial cognitivo. Violento não é aquele que tem

problemas de aprendizagem, mas que tem problemas de conduta, de valores. Essa categoria

que estava distante da escola, a categoria moral, para classificar as pessoas e os alunos, está

entrando de cheio, agora. Isso muda os tipos de classificação, de hierarquização, de

polarização. Antes as escolas mandavam para a EJA adolescentes com problemas de

aprendizagem, agora os mandam por problemas de indisciplina, de violência. Outra visão da

EJA está em jogo.

Os jovens e adultos populares hoje não são vistos pela mídia, pelos intelectuais e até pela

escola como diferentes em capacidades de aprender, mas como diferentes em termos morais,

éticos. O povo que até agora era visto como coitado, atolado em tradições, atolado em

misticismos, era o povo ordeiro, bom, mas muito tradicional, que trabalha muito, ignorante

mas bom, lerdo, confiável. Agora, esse povo deixou de ser bom, deixou de ser ordeiro. Agora

é violento. O medo do povo agora é pela sua maldade, pela sua violência ameaçadora.

Creio que como educadores ainda não percebemos o que está acontecendo na disputa dos

imaginários sobre o povo. E nesses imaginários sobre o povo, entram os jovens e adultos

populares. Como que isso está afetando até o emprego? Como confiar com essas condutas,

com essa cara, com essa roupa, com essa cara ameaçadora, mesmo tendo um nível de

escolaridade? Desconfia-se não pela falta do título, mas porque pobre hoje não é confiável. Os

setores populares sabem que estão sendo cada vez mais segregados pela sua suposta

moralidade, que se desconfia mais de seus valores. Estão cada vez mais nas estatísticas e nas

listas dos violentos, nos noticiários de violência, nas ocorrências policiais...

Temos que estar muito atentos às coisas que acontecem. Quando aqueles três ou quatro

adolescentes, jovens, dos morros, pobres, negros fizeram aquela barbárie de levar – disseram

que não sabiam – aquela criança pelas ruas do Rio de Janeiro, morrendo, todos nós ficamos

chocados. As análises que vimos na mídia e, inclusive da academia, eram para condená-los.

Por outro lado, quando a análise é sobre jovens, de classe média alta, que bateram na

empregada que estava esperando o ônibus, por a terem confundido com uma prostituta, o que

se viu foi o discurso não de condenação, mas de tentar entender como é possível que quem

tem tudo em casa, que estuda em colégios bons, chegue a esses níveis de violência.

A própria violência é diferente quando é violência de pobre ou quando é violência de rico.

Ricos merecem um psicólogo para entendê-los, os pobres merecem polícia, camburão, ou

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eliminá-los para que não voltem a ser violentos. Que imagem de jovem e adulto popular está

sendo construída em nossa sociedade? Até onde as propostas de educação-socio-educativas

não contaminarão as propostas de EJA?

A percepção da violência, das reações que se têm às violências juvenis mostra o quanto

estamos polarizando a visão da juventude. Se compararmos nossos alunos e alunas com

flores, uma metáfora tão cara à Pedagogia, diríamos que a EJA é a hora das flores noturnas,

parafraseando uma linda música, Flores Noturnas, do cubano Rodriguez. A EJA trabalha com

flores noturnas. A professora que hoje trabalhou de manhã, com crianças, trabalha com flores

diurnas. São mais flores, têm outro cheiro as flores de manhã cedo com o orvalho, do que a

noite, sem sol, sem estrelas e sem luas? Sem valores, sem a pureza angelical das crianças bem

nascidas?

Esta é a realidade com a qual estamos nos defrontando. Então a pergunta: como trabalhar a

questão ética dentro de um programa de educação de jovens e adultos? Se estamos num

momento em que o divisor de águas são valores, são condutas e uma visão moralizante, será

que não poderíamos nos contrapor trabalhando dimensões éticas? Será que não é possível

mostrar que esses jovens e adultos que vão à EJA têm valores? Não apenas reconhecer que

tem saberes, mas tem valores. Nesse momento estamos construindo um outro referente de

jovem e adulto popular. Então temos que pensar em outro projeto de EJA, não pode ser mais

o mesmo.

A questão que se coloca é que qualificação ética para essa sociedade sem ética, sem valores e,

sobretudo, que auto-imagem ética construir com os jovens em que a sociedade os vê como

ameaça e como não éticos? Que importância tem essa questão como educadores? Será que

nos currículos haverá lugar e tempo para reconstruir imagens mais positivas do povo?

Infelizmente, temos uma escola tão conteudista, tão cientificista, tão pragmatista e tão

positivista que, aí, a ética e os valores não entram, não cabem. Como abrir lugar?

Estamos, insisto, em uma disputa de imaginários do povo no campo da ética, no campo dos

valores. Então a pergunta tem que ser bem diferente: qual é o papel do educador nessa disputa

de um referente ético para o povo, em tempos em que esse referente está tão ameaçado? A

questão da ética passou a ser um dos mais refinados, mais perversos mecanismos de

segregação do povo, não por ser incapaz, não porque não tem dinheiro, mas porque não tem

valores. Ele não merece confiança das elites porque não tem valores, e, talvez, não mereça

nem a confiança de seus educadores e educadoras, porque, também, estes os vêem sem

valores. Haveria a possibilidade de olhar os educando com outros olhares?

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Algumas perspectivas

Mais um ponto a destacar, que me parece muito importante quando queremos nos aproximar

do que vem acontecendo com os jovens e adultos que freqüentam a EJA. Os movimentos

sociais. Quando talvez vocês estejam desanimados, lembrem-se dos movimentos sociais. Os

movimentos sociais são o que há de mais oxigenado, de mais vida, de mais estimulante e

confortante em nossa sociedade. Os movimentos sociais populares nos trazem outra vida,

outra visão do povo. A grande disputa hoje, no imaginário sobre o povo, se dá, sobretudo,

pelos movimentos sociais. Porque apesar de toda essa propaganda de que o povo não tem

valores apesar dos alertas: “cuidado com o povo”, “devagar com o povo”, “desconfia do

povo”, “desconfia dos jovens e adultos”, apesar de tudo isso os movimentos sociais populares

estão gritando que merecem confiança como coletivos populares. E merecem confiança por

quê? Porque são populares e porque mostram outra face, outro rosto, outra imagem do povo.

Uma imagem positiva.

Não de um povo pacato, de um povo levado pelo cabresto, de um povo ordeiro, mas ao

contrário, está se mostrando um povo desordeiro. Mas não desordeiro pela violência, mas

desordeiro pela defesa dos direitos. Essa é a diferença e esse é um ponto importante. Esses

coletivos populares, negros, quilombolas, do campo, sem terra, sem teto, sem universidade,

sem transporte, todos os “sem”, todos aqueles a quem foi negado o direito a ser gente, hoje se

organizam e mostram sua cara como coletivos.

Lutam por direitos coletivos, não individuais. Lutam pelo direito à educação, mas não

separado do conjunto dos direitos sociais, humanos. Terra e educação, não só educação, teto e

educação, território e educação. Sinto que esse ponto é o mais importante em nossa história

recente. Acho que nós não temos ainda uma reflexão no campo da EJA que vincule a EJA

com os movimentos sociais. Ainda vemos a EJA como um amontoado de indivíduos que

tentam refazer percursos escolares individuais truncados. Dificilmente vemos neles coletivos

populares.

Reconhecer os jovens e adultos como membros de coletivos seria um horizonte muito

interessante para a EJA. Superar a idéia de que trabalhamos com percursos individuais, para

tentar mapear que coletivos freqüentam a EJA. O coletivo negro, o coletivo mais pobre, o

coletivo de trabalhadores, o coletivo dos sem-trabalho, o coletivo das mulheres. Que coletivos

são esses? É muito diferente pensar um currículo para indivíduos, para corrigir percursos

tortuosos individuais, do que pensar em um currículo para coletivos. Pensar em

conhecimentos para coletivos, em questões que tocam nas dimensões coletivas, pensar na

história desses coletivos. Um ponto que chama muito a atenção nesses coletivos é a luta por

sua identidade, a luta por sua cultura: cultura negra, memória africana, memória quilombola,

memória do campo, memória das mulheres do campo, memória dos atingidos pelas barragens.

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Essas são as grandes questões que eles colocam. Mas quando eles chegam na escola, ninguém

lembra que é atingido pela barragem, que é quilombola, que é do campo, que é do MST, não

importa. É simplesmente alguém que está no estágio A, no estágio B, no primeiro segmento,

no segundo segmento. O que hoje existe de mais rico são essas lutas coletivas, essas lutas

pelos direitos coletivos, essa cultura coletiva. O que isso poderia significar para um currículo

da EJA?

Se o movimento feminista, por exemplo, colocou em cima da mesa da sociedade, da

academia, da política, a luta pela identidade, pelos direitos da mulher, como isso entra na

EJA? Ou não entra? Na hora de fazer um percurso, estudar história, por exemplo, tem que ser

a história da política, a história das barbas do imperador? Por que não pode ser a história das

mulheres? Por que não pode ser a história dos negros? A história dos quilombolas, a história

do campo, a história dos “sem”? Por que não poderia ser outra história, outra forma de contar

a história? Por que não fazemos isso? Porque não consideramos esses coletivos populares

como sujeitos de história, mas como pacientes de história. Ou nem pacientes, mas como

alguém que deveria conhecer a nossa história. Nos falta a história popular, nos falta montar

um currículo de EJA que ajude esses coletivos a se entenderem, a se conhecerem, a saberem

de sua história.

Os coletivos diversos, diferentes, desiguais se manifestam

Não poderíamos deixar de tratar aqui sobre a questão da diversidade. O tema da diversidade é

um tema posto na nossa sociedade com especial destaque em décadas recentes. Diversidade

de gênero, de raça, de território, a diversidade. Diversidade que se converteu em diferenças e

em desigualdades. Hoje os movimentos sociais trazem uma marca, a marca de afirmar os

coletivos diversos. De defender a diversidade, de não querer anular suas diversidades em

políticas de integração, em espaços amorfos, sem rosto, sem cor. A pergunta que teríamos que

colocar, que projeto de EJA seria sensível e daria conta desse movimento para reconhecer os

diversos? Ou ainda, será que temos um projeto em que o diverso não aparecem, em que todos

somos iguais, em que todos somos filhos de Deus, todos somos cidadãos, todos somos EJA?

Há muita reflexão que poderá fundamentar projetos de EJA que reconheçam, respeitem e

incorporem a diversidade sócio-educacional de gênero, território dos jovens e adultos

populares.

E, finalmente, aqui caberia destacar o movimento dos jovens. Apesar de toda essa

negatividade, é os jovens reagem enquanto jovens. Há favelas onde toda essa vulnerabilidade

aparece com traços tão dramáticos que grupos de jovens, até de adolescentes, se organizam

lutando pela elevação cultural daquela favela, como agentes culturais. Tentam criar um centro

cultural, criar um centro da memória da própria favela. Fazer levantamentos e pesquisas com

os fundadores, com os que restam dos primeiros ocupantes da favela, para que contem as suas

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lutas. Tudo isso registrado, para dar outra imagem da favela para aquela comunidade. Isto está

acontecendo. Hoje os agentes culturais mais presentes nos lugares mais degradados em

termos econômicos, sociais e culturais são adolescentes e jovens. Como incorporar na EJA

essa dimensão, já que esse é um dos traços mais marcantes, mais positivos da juventude

popular?

Se alguns traços são negativos, pela precarização da vida com que se defrontam, há também,

os horizontes que vêm dos movimentos sociais, dos movimentos jovens, da luta pela

diversidade, dos movimentos culturais. E a EJA? E os dez anos de EJA? E o Fórum? Para

onde caminhou? Continuamos no mesmo lugar? Repetimos as velhas políticas? Estamos,

totalmente, apegados a uma forma escolar de EJA? Não conseguimos sair dessa forma

escolar? Ela nos oprime, nos domina, nos limita e nos sentimos incapazes? O Poder Público,

as Secretarias de Educação e os Conselhos de Educação nos obrigam a impor essa forma

escolar? Nos obrigam a encaixar os jovens-adultos tão vulneráveis nessa forma escolar? A

mesma que os reprovou e segregou?

Há dez anos, muitas propostas escolares, como a “Escola Plural”, a “Escola Candanga”, a

“Escola sem Fronteiras”, a “Escola Cabana”, a “Escola Cidadã”, tentaram desescolarizar a

escola popular para acrescentar outras dimensões. Elas trabalharam a cultura, a diversidade, as

auto-imagens os valores, a ética, a estética. Se tudo isso era nossa bandeira, já se passaram

dez anos, doze anos. Foi no final dos anos 80 com Paulo Freire em São Paulo, depois em

Ipatinga e em tantos lugares. A pergunta que nós temos que fazer agora é: o que restou de

tudo isso? Na medida em que avançamos nessa direção, também colocamos que “EJA

Plural”?, Que “EJA Cidadã”? Que “EJA Candanga”? Que EJA?

Atualmente, os sistemas de educação, que pareciam caminhar nessa direção, estão de volta?

Para trás, para o que era mais tradicional, mais conteudista, mais positivista, mais utilitarista e

se este é o novo-velho horizonte, tenhamos certeza que a EJA vai ficar marcada por esse

positivismo, por esse cientificismo, por esse pragmatismo, assim como todos os nossos

sonhos, talvez.

Afinal, em nossas mãos estão mais nove ou dez anos para construir uma EJA que acompanhe

o direito dos jovens-adultos populares a uma vida mais humana. Como? Aproximando-nos do

que há de mais dinâmico em nossa sociedade, os movimentos sociais populares que retomam

bandeiras que foram da educação de jovens e adultos: a transformação social, a libertação e

emancipação.

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De Hamburgo a Bancoc: a V CONFINTEA revisitada3

Timothy D. Ireland

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Resumo: Neste artigo, traçamos uma breve retrospectiva da V Conferência Internacional de Educação de Adultos – CONFINTEA, realizada em Hamburgo (Alemanha) em julho de 1997, à luz da Reunião de Balanço Internacional da V CONFINTEA (CONFINTEA V Midterm Review Meeting), ocorrida em Bancoc (Tailândia) em setembro de 2003. Tentamos constatar se houve avanços em relação às metas e objetivos estabelecidos em Hamburgo já na iminência da próxima Confintea a ser realizada no Brasil em 2009. Caracterizamos as duas conferências (Hamburgo e Bancoc) como sendo, em parte, atos de resistência em defesa da educação de adultos. Sugerimos que a VI CONFINTEA, em 2009, representará uma oportunidade de renovar a agenda para a próxima década, imprimindo nela perspectivas e demandas atuais das nações em desenvolvimento.

Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos; Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA); Congressos de Educação.

Prólogo

Embora este artigo tenha sido escrito originalmente logo depois da Reunião de

Balanço Intermediário da V CONFINTEA (CONFINTEA + 6), em 2003, ele guarda certa

relevância neste período, em que se iniciam os preparativos para a VI CONFINTEA a ser

realizado no Brasil, provavelmente em maio de 2009. Os preparativos, inevitavelmente,

implicam num momento de balanço sobre o saldo das ações desenvolvidas na última década à

luz da agenda estabelecida em Hamburgo em 1997. Para poder avançar, a VI CONFINTEA

terá que ‘prestar contas’ sobre o período anterior antes de buscar estabelecer uma nova agenda

para a próxima década. Como “Conferência categoria dois” da Unesco, os estados membros

são obrigados a apresentar relatórios das suas ações no campo da educação de adultos. A

partir desses relatórios, será possível traçar um estado da arte ou pelo menos um retrato

pontual dos avanços e retrocessos e dos desafios e das perspectivas. Os relatórios devem

levantar, inclusive, questionamentos sobre como ‘mensurar’ os resultados alcançados no

campo. A Agenda para o Futuro apresenta, sem dúvida, uma matriz útil como ponto de

partida para essa discussão.

Decidimos manter o texto original, com pouquíssimas alterações, esperando que ele

dialogue com o momento atual em que o Brasil se prepara tanto para sediar a conferência de

2009, quanto para avaliar os esforços envidados pelos governos e pela sociedade civil para

enfrentar os desafios postos uma década atrás:

3 4 Doutor em Educação pela Universidade de Manchester. Professor do Programa de Pós Graduação em Educação de Adultos da UFPB. Diretor Nacional de Educação de Jovens e Adultos do MEC/SECAD.

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“A educação de adultos (...) torna-se mais que um direito: é a chave para o século XXI; é tanto conseqüência do exercício da cidadania, como condição para uma plena participação na sociedade. Além do mais, a educação de adultos é um poderoso argumento em favor do desenvolvimento ecológico sustentável, da democracia, da justiça, da igualdade entre os sexos, do desenvolvimento socioeconômico e científico, além de ser um requisito fundamental para a construção de um mundo onde a violência cede lugar ao diálogo e à cultura de paz baseada na justiça. A educação de adultos pode modelar a identidade do cidadão e dar um significado à sua vida. A educação ao longo da vida implica repensar o conteúdo que reflita certos fatores, como idade, igualdade entre os sexos, necessidades especiais, idioma, cultura e disparidades econômicas”.5

A V CONFINTEA revisitada

Quem teve o privilégio de participar da V Conferência Internacional de Educação de

Adultos - CONFINTEA (Hamburgo, julho de 1997) e, depois, da recente Reunião de Balanço

Intermediário da V CONFINTEA (CONFINTEA V Midterm Review Meeting), realizada em

Bancoc, Tailândia, de 6 a 11 de setembro de 2003, inevitavelmente se coloca pelo menos duas

questões: para que servem esses grandes seminários internacionais? E, apesar da precariedade

dos dados existentes e dos processos avaliativos, foi possível constatar em Bancoc algum

avanço com respeito às metas e aos objetivos estabelecidos em Hamburgo seis anos antes?

Neste breve texto, não tenho a pretensão de analisar esses dois momentos e o que foi

alcançado, mas, sim, tecer comentários do ponto de vista de alguém que experimentou os dois

momentos e, nos seis anos que separaram os mesmos, passou mergulhado numa prática

acadêmica e intervencionista no campo da educação de jovens e adultos, num dos estados

brasileiros que apresenta maiores índices de analfabetismo do país6.

As Conferências Internacionais de Educação de Adultos acontecem com intervalos de

aproximadamente 12 anos. A Conferência anterior a Hamburgo foi realizada em Paris, na

França, em 1985. Em todas as cinco conferências realizadas até agora, a UNESCO foi a

principal agência promotora. Existe uma forte impressão de que a Educação de Adultos

poderia ter desaparecido da agenda política sem a insistência da UNESCO em convocar essas

conferências. Assim, primeiro em Hamburgo e depois, talvez com ainda mais ênfase, em

Bancoc, tivemos a impressão de estar participando de um ato de resistência. Em Hamburgo,

mais de 1.500 participantes, incluindo representantes políticos de 135 Estados-Membros, e,

pela primeira vez, representantes de Ongs, sem voto, mas com direito a voz, afirmaram a sua

compreensão da educação como direito humano básico, para jovens e adultos de todas as

5 Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos, in Educação de jovens e adultos: uma memória contemporânea 1996-2004, Brasília: MEC/UNESCO, 2004, pp. 41-42. 6 O Estado da Paraíba apresenta uma taxa de 29,7% de analfabetismo entre jovens e adultos acima de 15 anos (IBGE 2000). Porém, junto com outros estados como Acre, Piauí, Ceará, Goiás e Rio Grande do Sul, está comprometido em reduzir drasticamente os índices de analfabetismo até o final de 2006.

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idades. Declararam o seu entendimento da aprendizagem e formação de adultos como chave

para o século XXI e para a nova sociedade da informação, e como processo que acompanha a

vida toda. Frisaram, através da Declaração de Hamburgo, o potencial da aprendizagem e

formação de adultos para “fomentar o desenvolvimento ecologicamente sustentável, para

promover a democracia, a justiça, a igualdade entre mulheres e homens e o desenvolvimento

científico, social e econômico, bem como para construir um mundo em que os conflitos

violentos sejam substituídos pelo diálogo e por uma cultura de paz baseada na justiça”.

Em Bancoc, um grupo bem menor de pessoas, em torno de 300, de mais de 90 países,

foram convocadas para, juntas, avaliar em que medida as recomendações estabelecidas em

Hamburgo tinham sido alcançadas e os compromissos cumpridos. Porém, quem esteve

presente na Tailândia teve a impressão de que a reunião intermediária possuía uma

importância política maior no sentido de garantir a própria continuidade das CONFINTEA’s,

marcando a próxima para o ano 2009. O fato de ter somente 50 países representados por

delegações oficiais não pode ser ignorado7. Porém, apesar disso e das limitações que

marcaram a sua fase preparatória e a sistemática adotada durante a reunião, Bancoc

representou senão o fortalecimento do campo, pelo menos, a sua capacidade de sobrevivência

num ambiente adverso.

Nos seis anos que separaram Bancoc de Hamburgo, testemunhamos grandes mudanças

no cenário mundial. Não há como negar o crescimento do processo conhecido diferentemente

como globalização, mundialização ou ocidentalização e o concomitante ‘enraizamento’ do

fenômeno de um exacerbado individualismo, promovido pelas políticas neoconservadoras,

tomando como base filosófica o apelo ao liberalismo individual e como lógica a eficiência

insuperável do mercado. Eventos mais recentes sugerem que o vácuo deixado pela luta contra

o comunismo foi substituído pela luta contra o terrorismo e o fundamentalismo islâmico,

caracterizando-se, esta situação, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, como “uma

combinação de democracia política com fascismo social”. Há, aparentemente, uma

preocupação maior com o meio – desenvolvimento econômico – do que com o fim – o direito

fundamental ao bem-estar da população mundial como um todo, que a educação de adultos se

propõe a promover. Os princípios éticos estão sendo substituídos por princípios de etiqueta –

em que tudo tem o seu preço. Quem tiver recursos compra, quem não os tiver passa sem.

7 O Governo Brasileiro submeteu um documento de balanço (Relatório Nacional da Educação de Jovens e

Adultos, Ministério da Educação, Brasília, setembro de 2003) mas não enviou uma delegação oficial.

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Saímos de Hamburgo cautelosamente otimistas. Em várias partes do mundo, a

CONFINTEA fora precedida e preparada por um processo de mobilização nacional que se

negou a morrer, e que a realização da conferência ajudou a dar visibilidade. No Brasil, esta

mobilização deu início a um processo – o movimento dos Fóruns estaduais de educação de

jovens e adultos e dos Encontros Nacionais de Educação de Jovens e Adultos (ENEJA’s)8-

que vem crescendo desde 1996, e, na ausência de uma política governamental consistente,

forjou um espaço plural para uma articulação entre os diversos atores sociais envolvidos no

campo da educação de jovens e adultos. Porém, infelizmente, o compromisso com o conceito

de educação como um processo continuado que se estende ao longo da vida, com ênfase na

aprendizagem, não se consolidou nem nas políticas nem nas práticas. Reafirmamos em

Hamburgo e continuamos acreditando que “só um desenvolvimento centrado no ser humano e

uma sociedade de participação baseada no pleno respeito dos direitos humanos pode conduzir

a um desenvolvimento sustentável e eqüitativo”. Porém, à luz das políticas unilaterais de ação

preventiva, a realidade não inspira tanta confiança. Até o próprio conceito de educação de

adultos que a Declaração de Hamburgo veiculou e os dez temas que estruturaram tanto os

debates em Hamburgo, quanto a própria Agenda para o Futuro, pela sua amplitude e

profundidade, estabeleceram metas e objetivos que dificilmente seriam alcançados e, de

relevância para Bancoc, seriam quase impossíveis de avaliar e ‘mensurar’.

No intervalo entre Hamburgo e Bancoc, foram lançadas ou reforçadas novas

iniciativas no campo da educação em nível mundial pelos organismos bi e multilaterais, que

revelam uma falta de coerência entre si e que não se articulam de maneira orgânica com as

recomendações da V CONFINTEA para a alfabetização e educação básica de adultos. O

Marco de Ação de Dakar redimensionou as metas de Educação para Todos, estabelecidas em

Jomtien em 1990, determinando a redução de analfabetismo em 50% até 20159. De acordo

com Torres, o objetivo principal em Jomtien não era somente garantir educação básica – a

satisfação de necessidades básicas de aprendizagem – para a população mundial, mas

redefinir a visão e o escopo da educação básica10. Lamentavelmente, entre Jomtien e Dakar,

8 Os ENEJAs vêm sendo realizados anualmente desde 1998 (Curitiba, 1998; Rio de Janeiro, 1999; Campina Grande, 2000; São Paulo, 2001; Belo Horizonte, 2002; Cuiabá, 2003). O VI ENEJA será realizado em Porto Alegre em setembro de 2004. 9 A meta 4, do Marco de Ação de Dakar, propõe: “Atingir, até 2015, 50% de melhora nos níveis de alfabetização de adultos, especialmente para as mulheres, e igualdade de acesso à educação fundamental e permanente para todos os adultos”. 10 Nesta visão ampliada da educação básica, esta não seria mais restringida a um certo período (infância), nem a uma instituição específica (escola) nem a um tipo único de conhecimento (currículo escolar oficial), mas reconheceria que aprendizagem inicia ao nascer e acompanha a vida toda; que o conhecimento tradicional e a herança cultural de cada grupo social possuem um valor e uma validade intrínsecos para cada sociedade; e que a

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na maioria dos países em desenvolvimento, dentro da meta de educação básica, se deu

prioridade para a educação primária para todos que, proposta como piso mínimo, tornou-se

teto máximo. Ao mesmo tempo, a promessa de educação para todos se reduziu à educação

para todas as crianças e adolescentes (dando prioridade às do sexo feminino), excluindo ou

dando atenção marginal para a educação e aprendizagem de adultos. As Metas de

Desenvolvimento do Milênio da ONU sequer fazem referência ao desafio do analfabetismo e

a Iniciativa de Via Rápida (Fast Track Initiative), coordenada pelo Banco Mundial, também

restringe o escopo da proposta à educação básica para crianças e adolescentes. Resta saber

como as recomendações da V CONFINTEA para a alfabetização e educação básica de adultos

serão integradas com o Plano Internacional de Ação da Década de Alfabetização das Nações

Unidas - UNLD (2003-2012), na perspectiva da aprendizagem ao longo da vida.

Chegamos de volta a Bancoc. Apesar da presença do Banco Mundial, do PNUD, da

União Européia e de outras agências, avaliamos que, para a maioria dos governos, a educação

de adultos continua sendo uma atividade de importância marginal na agenda das políticas

educacionais que corre o risco de ser reduzida a uma meta escolar mínima de educação básica

para todos: leia-se, no caso brasileiro, ao máximo de ensino fundamental. Os conceitos de

educação continuada e educação como aprendizagem no seu sentido amplo de um processo

que possui uma centralidade fundamental para a consolidação e o aprofundamento da

democracia, a igualdade de oportunidades e a afirmação do papel social das mulheres, não

foram postos em prática em muitos países. Porém, o fato da educação de adultos junto com o

ensino superior estarem incluídos para negociação no Acordo Geral sobre Comércio em

Serviço – GATS, da Organização Mundial de Comércio – OMC, sugere que o mercado

novamente é mais perspicaz que muitos governos.

No caso brasileiro, o relatório que o Ministério da Educação apresentou em Bancoc

apontou as iniciativas tomadas para concretizar os compromissos assumidos em Hamburgo.

De um lado, as parcerias com os sistemas municipais e estaduais de educação e Ongs vem

sendo aprofundadas. O Programa Fazendo Escola apóia técnica e financeiramente a oferta de

Educação Fundamental para Jovens e Adultos por Estados e Municípios. Em 2001, investiu

189,7 milhões de reais: em 2004, o programa está orçado em 420 milhões de reais. O aumento

no investimento vem acompanhado de um aumento expressivo do número de alunos

abrangência dessa mesma aprendizagem vai além de escolarização (vida familiar, comunidade, local de trabalho, mídia, etc.) envolvendo educação não formal e aprendizagem informal. (Torres, R.M. One decade of Education for All: the challenge ahead. IIEP: Buenos Aires, 2000. p.17)

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matriculados no ensino fundamental especialmente nas Regiões Norte e Nordeste e do

número de municípios que oferecem EJA em cursos presenciais com avaliação no processo.

De outro lado, no tocante à dimensão legal, a elaboração das Diretrizes Nacionais de

Educação de Jovens e Adultos (Resolução No. 01/2000, do Conselho Nacional de Educação)

reforçou o direito à escolarização para jovens e adultos, apontando a importância da formação

específica – inicial e continuada – de professores e a “formulação de propostas pedagógicas

coerentes com as especificidades desta modalidade”.

No campo do direito à educação, em 2003, o governo brasileiro implementou o

Programa Brasil Alfabetizado por meio de parcerias entre o Ministério da Educação, Estados,

municípios e entidades organizadas da sociedade civil com vistas à superação do

analfabetismo no país. No primeiro ano do programa, foram investidos 142 milhões de reais

e, em 2004, 162 milhões de reais. De acordo com o então Ministro, Tarso Genro: “O

tratamento de destaque concedido à modalidade de ensino ‘Educação de Jovens e Adultos’,

contemplando a alfabetização e todo o processo de aprendizagem, formal, não-formal ou

informal, expressa, portanto, os contornos de uma agenda orientada pela articulação entre o

aumento da qualidade dos sistemas de ensino e a construção das bases para a eqüidade e

inclusão educacional, considerando, de forma prioritária, os elementos da diversidade

étnica, racial, cultural e regional da população brasileira”.11

Fica evidente, tanto no caso brasileiro como na maioria dos países em situações

parecidas com o do Brasil, que a EJA precisa ser compreendida como investimento e não

somente como item de consumo social e que a inclusão da educação e aprendizagem de

adultos em todas as iniciativas de desenvolvimento e programas sociais representará uma

contribuição essencial à prosperidade econômica, desenvolvimento sustentável, coesão social

e solidariedade. Não há como implementar políticas efetivas de educação de jovens e adultos

sem os recursos financeiros que traduzem a vontade política em práticas de qualidade

duradouras. O Encontro de Bancoc constituiu um ato de resistência às pressões diversas para

quem a EJA representa, no melhor, uma excrescência. Reverter a “regressão inquietante”

reconhecida na Chamada à Ação e à Responsabilização e preparar-nos melhor para a VI

CONFINTEA, em 2009, exigirá esforços redobrados da UNESCO e dos governos nacionais

comprometidos com um mundo mais justo e solidário. Não existem soluções fáceis, mas é

difícil imaginar um futuro melhor que não dê a devida importância à educação e

aprendizagem de adultos. 11 Alfabetização como Liberdade, Brasília: UNESCO/MEC, 2004, 2a edição, p. 06.

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Post-scriptum

A Declaração de Hamburgo sobre a Aprendizagem de Adultos (sempre traduzida de

uma forma incorreta em português como a Declaração de Hamburgo sobre a Educação de

Adultos) e a Agenda para o Futuro estabeleceram uma pauta ambiciosa para a educação de

adultos. Os críticos diriam ‘excessivamente ambiciosa’, além de refletir uma perspectiva

demasiado ocidental e hemisfério norte: a abrangência das tarefas e proposições ultrapassa a

capacidade e a competência da aprendizagem de adultos responderem. No fundo, a tradução

em português continua representando a forma limitada com que se tem desenvolvido o que no

Brasil se chama de educação de jovens e adultos. A perspectiva da aprendizagem de todos ao

longo da vida tem sido reduzida à perspectiva da educação ou escolarização de todos durante

um curto período da vida.

A realização da VI CONFINTEA, no Brasil, em 2009, representa um enorme desafio

para nosso país e outros países do sul. Constitui uma oportunidade de renovar a agenda para a

próxima década e para imprimir naquela agenda a perspectiva e as demandas dos países em

desenvolvimento, tanto os seus governos como também as suas respectivas sociedades civis

organizadas. Será o momento de reafirmar que “apenas o desenvolvimento centrado no ser

humano e a existência de uma sociedade participativa, baseada no respeito integral aos

direitos humanos, levarão a um desenvolvimento justo e sustentável. A efetiva participação de

homens e mulheres em cada esfera da vida é requisito fundamental para a humanidade

sobreviver e enfrentar os desafios do futuro”12. Embora o conceito de educação para todos ao

longo da vida tenha se tornado um clichê, continua representando uma demanda e um direito

fundamental. Talvez por ser muito abrangente e impessoal, precisamos acrescentar agora, ao

conceito básico de educação para todos ao longo da vida, uma frase que gera um novo

enfoque: educação para todos e cada um ao longo da vida.

12 Op. Cit. MEC/UNESCO, 2004, p.41.

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A Educação Continuada e as políticas públicas no Brasil13

Sérgio Haddad14

Resumo: O artigo discute o conceito de Educação Continuada frente às mudanças e demandas do mundo atual. Se, anteriormente, sob a influência da UNESCO, tal conceito remetia principalmente à idéia de formação e aprimoramento profissional visando à adaptação do cidadão frente a um mundo em mudanças, a Educação Continuada, em tempos atuais, abarca a formação cidadã para a participação democrática e o desenvolvimento humano. Neste último sentido, na América Latina, a Educação Continuada utiliza como campo de referências idéias produzidas pelo movimento de Educação Popular, além das teorias ligadas ao Desenvolvimento Humano e aos Direitos Humanos. Tem, portanto, uma característica menos de adaptação e mais de conflitividade frente a um mundo cada vez mais desigual e injusto. A Educação Continuada, no entanto, em qualquer sentido aqui pensado, não se dissocia da luta por uma boa escolarização básica que atinja a todos. Remete ainda a um modelo de sociedade educativa na qual a Educação Continuada é parte integrante do todo social, unindo os sistemas formais e escolares de jovens e adultos, assim como a educação não formal. Palavras-chaves: Educação Continuada: Educação Popular; Políticas Públicas; Educação de Jovens e Adultos.

Educação Continuada não é um conceito novo, mas nestes últimos anos vem

ganhando especial relevância, tendo em vista as recentes transformações no mundo do

trabalho e no conjunto da sociedade. Educação Continuada é aquela que se realiza ao longo da

vida, continuamente, é inerente ao desenvolvimento da pessoa humana e relaciona-se com a

idéia de construção do ser. Abarca, de um lado, a aquisição de conhecimentos e aptidões e, de

outro, atitudes e valores, implicando no aumento da capacidade de discernir e agir. Essa noção

de educação envolve todos os universos da experiência humana, além dos sistemas escolares

ou programas de educação não-formal. Educação Continuada implica repetição e imitação,

mas também apropriação, ressignificação e criação. Enfim, a idéia de uma Educação

Continuada associa-se à própria característica distintiva dos seres humanos, a capacidade de

conhecer e querer saber mais, ultrapassando o plano puramente instintivo de sua relação com

o mundo e com a natureza.

Há meio século, as atribuições específicas da família, da escola e das igrejas, no que se

refere à educação, não eram freqüentemente questionadas. Nas sociedades ocidentais

contemporâneas, entretanto, devido às novas formas de organização da produção, da política e

do cotidiano das pessoas, a educação tradicionalmente promovida por esses espaços não

parece mais responder às demandas da sociedade. Especialmente a escola passou a ser

questionada em relação aos seus limites para prover as necessidades educativas das pessoas.

13 Texto publicado com o mesmo nome (Haddad, 2001), agora revisto e ampliado para apresentação no seminário International Policy Dialogue for Lifelong Learning (2~6 Setembro de 2007), Changwon, República da Korea.

14 Doutor em Educação é Coordenador Geral da Ação Educativa e Diretor Presidente do Fundo Brasil de Direitos Humanos.

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O paradigma da sociedade contemporânea é a mudança constante dos processos de produção

e das formas de relação social, devido à introdução de novas tecnologias que rapidamente

ficam superadas e à ampliação vertiginosa das possibilidades de comunicação e produção de

informações. Esse cenário evoca, necessariamente, o princípio da flexibilidade dos processos

educativos e, portanto, o imperativo de ampliar o conceito de educação para além dos

sistemas escolares. A necessidade de informação passa a ocupar cada vez mais espaço na vida

dos indivíduos, não só das crianças, mas também dos adultos.

Tradicionalmente, a educação e a freqüência à escola eram associadas principalmente

a uma certa fase da vida – a infância – enquanto a idade adulta era associada ao mundo do

trabalho e a terceira idade à interrupção ou diminuição drástica das atividades de forma geral.

Tais associações vão se rompendo à medida que o mercado de trabalho passa a exigir

atualização permanente dos conhecimentos e também à medida que a expectativa de vida das

pessoas aumenta e a terceira idade passa a ter um peso crescente no perfil demográfico e na

economia dos países. Além da necessidade de atualização constante de conhecimentos

imposta pelas características do mercado de trabalho e das novas formas de organizar a

produção, outro fator que impõe o tema da Educação Continuada é a própria redução do

tempo que as pessoas despendem trabalhando ao longo de suas vidas. Historicamente, as

jornadas de trabalho tendem a diminuir, as pessoas começam a trabalham com mais idade e

têm uma sobrevida maior depois da aposentadoria. Resultado: há mais tempo vital disponível

para dedicar à aprendizagem.

Nos últimos anos, vem crescendo o reconhecimento de que há muitas aprendizagens

que têm melhores condições de se realizar fora da escola. As empresas passam a assumir

tarefas de qualificação profissional já que, no ritmo em que as mudanças tecnológicas

ocorrem, dificilmente haveria tempo hábil para que os novos conhecimentos requeridos

fossem assimilados aos currículos escolares. Por outro lado, cada vez mais se espera que a

escola garanta a aquisição de habilidades e atitudes que tornem o trabalhador apto para

aprender sempre e de forma autônoma. Na idéia de Educação Continuada, portanto, está

também implícito o princípio de que deve haver complementaridade entre os diversos

universos educativos. As zonas de interseção e interdependência entre a educação formal e a

não formal tornam-se mais visíveis não só no que se refere à qualificação profissional, mas

também a outros âmbitos de vivência que sofrem impactos da modernização, como o lazer, a

cultura, o convívio familiar e comunitário.

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Nos países de primeiro mundo, observamos um aumento progressivo de ofertas

variadas de educação de adultos. Em países como a Suécia ou o Japão, pelo menos 50% da

população está engajada em algum programa de formação, segundo indicam pesquisas

recentes. São países que não enfrentam problemas de déficits em relação à educação básica

obrigatória, e mesmo assim dedicam recursos à promoção de oportunidades educativas para

os adultos, visando não só a qualificação profissional, mas também a formação para a

cidadania.

No Brasil não é diferente. Pesquisa recente indica existir um número elevado da

população de jovens e adultos que participa de programas de aprendizagem continuada, tanto

no que se refere à qualificação profissional quanto ao desenvolvimento pessoal. Pesquisando

o comportamento da população do município de São Paulo, entre 15 e 64 anos, Ribeiro

identifica que

quase a metade dos entrevistados (45,6%) declararam haver participado de algum programa educativo nos 12 meses que antecederam a entrevista: 19,5% no ensino formal – nos níveis fundamental, médio ou superior – e 26,1% em programas de ensino não-formal, voltados à qualificação profissional ou ao desenvolvimento pessoal. Outros 15,1% declararam não ter feito cursos nos últimos 12 meses, mas que já tinham feito algum em período anterior. (RIBEIRO, 1999, pág. 114).

Talvez o mais antigo campo de referência destas práticas educativas seja aquele

produzido e disseminado no âmbito da UNESCO e que teve forte repercussão após a segunda

guerra mundial nos chamados “países subdesenvolvidos”. Nascido como uma preocupação

em favor da educação das massas constituídas pelos adultos analfabetos das regiões

“atrasadas”, a UNESCO inicialmente colocou ênfase na alfabetização, disseminando

campanhas nacionais, baixou conceitos como “educação de base”, “alfabetização

funcional” e outros (BEISIEGEL, 2004). Posteriormente, a UNESCO volta-se à idéia de

Educação Permanente, tendo como fundamentação os desafios frente a um mundo em

mudança e a necessária condição de adaptação do ser humano a estas mudanças. Como

desdobramentos, as práticas educativas voltam-se para os processos de transmissão de

conhecimentos e técnicas que permitam uma melhor adaptação da sociedade em processos de

mudanças sociais. Tal concepção compõe uma das matrizes do pensamento da Educação ao

Longo da Vida.

Ao mesmo tempo, tanto nos países do norte como nos do sul, existem extensas redes

de práticas educativas que na América Latina se reconhecem tradicionalmente como Grupos

de Educação Popular, voltados à formação política e incentivo ao protagonismo na

comunidade ou nas questões sociais amplas. Essa idéia de organizar pessoas em torno de

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círculos de cultura, marca registrada das propostas de Paulo Freire para a educação dos

adultos no Brasil nos idos anos 60, concretiza-se de diferentes maneiras nos diferentes países.

As motivações para o associativismo nesses países podem ser as mais variadas, mas em

grande parte das experiências é central o interesse pela manutenção de espaços de ação social,

formação cultural e política.

O conceito de Educação Popular leva consigo a idéia de conflituosidade ao invés de

adaptabilidade na medida que politiza o processo educativo e amplia a compreensão da sua

prática para além dos muros escolares. Desde o final dos anos 60, na América Latina em

particular, a Educação Popular15 constituiu-se num importante referencial teórico e

instrumental para práticas educativas voltadas para o fortalecimento de diversos atores sociais

e políticos (sobretudo movimentos sociais) no terreno da sociedade civil. O conceito de

Educação Popular tem sido renovado ao longo dos anos e tem incorporado novos aspectos,

principalmente os que se referem à natureza cultural e às novas condições de democracia

vivida nos países da América Latina. Basicamente, o conceito está vinculado à idéia de um

trabalho educativo voltado às classes populares e que tem por sentido a idéia de mobilização,

organização e ganhos de consciência destes setores visando a transformação das suas

condições de vida. Durante os anos em que predominavam ditaduras militares, nos anos

setenta e oitenta, práticas educativas valorizaram o fortalecimento de setores empobrecidos da

sociedade civil16 - movimentos sociais e populares – com vistas a uma maior participação

destes setores na cena pública pela democratização da sociedade. Com a abertura

democrática, grande parte desde movimento deslocou-se para atuar nos espaços de

interlocução com o poder público. Tais processos podem ser identificados, por exemplo, em

ações educativas voltadas à formação de agentes para participação nos conselhos de políticas

públicas, nos orçamentos participativos e em trabalhos de escolarização com financiamento

público. A Educação Popular passou a atuar no fortalecimento destes espaços públicos

ampliados, onde a presença da sociedade civil garante maior controle social e maior peso dos

interesses populares nos contextos das políticas públicas.

Outros permaneceram com seus trabalhos voltados às práticas educativas nos

movimentos, como é o caso das vastas experiências nos assentamentos rurais, em particular

15 Dentre várias obras, ver Brandão (1984), e Hurtado (1993) 16 Não se trata aqui de recuperar toda discussão de sociedade civil e esfera pública observada nas ciências sociais no Brasil, mas de reconhecer que o conceito de sociedade civil adquire maior visibilidade sobretudo com o processo de democratização (Avritzer,1993; Dagnino, 2002; Reis 1995; Costa, 1994 e 1997). Lourdes Sola considera que, não obstante a diversidade de modos de abordagem, há pontos de forte convergência entre os autores quando examinam a cultura política, os valores e os desenhos institucionais como elementos importantes a conformar a sociedade civil em uma perspectiva democrática (Sola, 1998, p.767).

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aqueles produzidos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST. Há, aí, sem

dúvida, um novo campo de prática e aprendizagem voltadas para o estudo e a compreensão

destas práticas sociais de natureza educativa, onde a dimensão política é realçada como fator

central.

Outro campo importante de prática em ações de Educação Continuada diz respeito a

um amplo movimento que une a valorização e o respeito dos direitos da pessoa humana aos

processos de desenvolvimento. Foi incorporado ao pensamento nacional por forte influência

de ações da sociedade civil em contextos globais, seja através dos ciclos das conferências

sociais da Organização das Nações Unidas ONU, seja por movimentos globais que atuam

para ter uma presença pública nos debates e na pressão pelo redirecionamento das políticas

dos organismos internacionais e nos acordos entre governos. Esta inspiração internacional

influi, nos contextos nacionais de cada país da América Latina, nos movimentos de Direitos

Humanos que vinham da tradição de luta pelo respeito aos direitos individuais e direitos

políticos na oposição à ditadura militar. Tal influência amplia o espectro de atuação destas

organizações, incorporando a promoção e a defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais

e ambientais (DHESC).

A matriz teórica referida ao Desenvolvimento Humano, implementada pelos

trabalhos do PNUD, baseada principalmente nos escritos de Amartya Sen, relaciona a idéia do

desenvolvimento à expansão das liberdades humanas. Contrastando com as visões mais

restritas que identificam o desenvolvimento com o crescimento do Produto Nacional Bruto

(PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização

social, as liberdades não seriam apenas os fins primordiais do desenvolvimento, mas, também,

um dos meios principais para se chegar a ele. Para que tais objetivos possam ser alcançados,

Sen reforça a idéia valorativa de que tal concepção está baseada na noção do ser humano

como agente:

Com oportunidades sociais adequadas, os indivíduos podem efetivamente moldar seu próprio destino e ajudar uns aos outros. Não precisam ser vistos, sobretudo, como beneficiários passivos de engenhosos programas de desenvolvimento. Existe, de fato, uma sólida base racional para reconhecermos o papel positivo da condição de agente livre e sustentável” (SEN, 2000, pág. 26).

As ações educativas nesta visão servem para aumentar a capacidade participativa em

processos de ampliação das liberdades, forma motora de implementar o desenvolvimento.

No plano dos estudos relativos aos Direitos Humanos, a noção contemporânea

reafirma a unidade indivisível entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos,

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sociais e culturais. Esta indivisibilidade é condição básica para a realização plena da

democracia ao unir os direitos individuais e a liberdade política com as condições necessárias

para que tais liberdades possam se realizar, quais sejam, as condições de trabalho, educação,

saúde, um meio ambiente adequado, entre outras. Estão, também, referidos nesta

indivisibilidade a identificação, o respeito e o tratamento específico das condições particulares

que diferenciam grupos sociais por suas características de gênero, raça, etnia, idade, local de

moradia, entre outras.

O campo teórico recente da análise da conformação e implementação dos Direitos

Humanos tem como base duas características principais. A primeira, refere-se ao fato do ser

humano manter uma capacidade nata de aprender e ensinar em função da sua condição

evolutiva.

A reflexão filosófica contemporânea salientou que o ser do homem não é algo de permanente e imutável: ele é, propriamente, um vir-a-ser, um contínuo devir. E isto, por duas razões. Em primeiro lugar, porque a personalidade de cada ser humano é moldada por todo o peso do passado. Ademais, a essência do ser humano é evolutiva, porque a personalidade de cada indivíduo, isto é, o seu ser próprio, é sempre, na duração de sua vida, algo de incompleto e inacabado, uma realidade em contínua transformação. (COMPARATO, 2004, p.28)

A segunda característica é a condição de agente do ser humano, condição esta

necessária à implementação e efetivação dos Direitos Humanos. O ser humano é o avalista

dos processos de constituição dos Direitos Humanos; seu ativismo permite a criação, o

reconhecimento e a ação por parte do poder público. É o movimento da sociedade, a chamada

“cidadania ativa”, a impulsionadora e a referência das ações do poder público, diferentemente

da cidadania passiva, aquela outorgada pelo Estado, com a idéia moral da tutela e do favor.

(BENEVIDES, 1991).

Os dois fatores acima fundamentam as razões dos processos educativos na lógica da

formação e criação de agentes para realização dos Direitos Humanos. Uma prática de

Educação Continuada.

Estudos recentes trataram de identificar perspectivas comuns ao conceito de Direitos

Humanos e de Desenvolvimento Humano (SEN, 2000 e O’DONNELLs/d). Entre estas

características está a idéia do ser humano como agente e suas condições para que tal se dê,

dentre elas, subjacente, a idéia de processos educativos.

“Los conceptos de desarrollo humano y de derechos humanos comparten una

subyacente perspectiva universalista del ser humano como un agente. Esta perspectiva

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conduce a la pregunta de cuáles serían las condiciones, capacidades y/o derechos básicos que

normalmente permiten a un individuo funcionar como un agente.” (O’DONNELL , s/d). Uma

delas, sem dúvida alguma, é a Educação Continuada.

Os marcos conceituais desta educação estão definidos nas seguintes características de

práticas educativas:

- uma educação que nasce das necessidades dos educandos;

- uma educação que é construída tomando por base o diálogo entre educador e

educando;

- uma educação que é crítica, sob o ponto de vista dos seus conteúdos, o que significa

tratar dos temas que são significativos para os educados, buscando explicações sobre

eles;

- uma educação que é reveladora da realidade onde estão inseridos os educandos, de

forma a aumentar a sua consciência sobre os problemas que afetam a sua vivência;

- uma educação que mesmo tomando temas universais e nacionais, dialoga com a

cultura regional e local, valorizando suas expressões e seus códigos;

- uma educação que é voltada à prática, sem desconsiderar os aspectos teóricos que

fundamentam os diversos conteúdos.

São estas matrizes que, junto com a tradicional educação escolar de jovens e adultos,

conformam o campo da Educação Continuada.

Educação Continuada e escolarização

Uma pessoa que completar 65 anos terá vivido, aproximadamente, 570 mil horas. Se

trabalhar durante 40 anos, 40 horas por semana, terá dedicado ao trabalho 83 mil horas. Se

dormir em média 8 horas por dia, terá tido cerca de 190 mil horas de sono. Isso significa que

sobrariam quase 300 mil horas para empregar em outras atividades úteis que não o trabalho

propriamente dito. Uma fração grande dessas horas extra-trabalho será certamente ocupada no

processo de escolarização, que tende a se alongar cada vez mais, e por iniciativas posteriores

de formação ao longo de toda a vida. O aumento do tempo livre também favorece o

associativismo, por meio do qual se constituem comunidades de aprendizagem, se multiplica

e se redistribui o capital cultural dos grupos. Qualquer modalidade de organização social

implica num forte componente educativo. Além disso, aumenta significativamente o consumo

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de bens culturais, de turismo e de lazer, principalmente entre aqueles que têm níveis

educativos mais altos. Se anteriormente o conceito de Educação Permanente remetia

principalmente à idéia de desenvolvimento profissional, a Educação Continuada, tal como

vem sendo concebida atualmente, abarca a formação para a vida e o desenvolvimento humano

em sentido amplo. Nessa linha de abordagem, Educação Continuada nos remete, em última

instância, ao conceito de sociedade educativa, na qual a formação e a realização das

potencialidades humanas são identificadas como partes integrantes de todas as práticas

sociais.

Esse enfoque da Educação Continuada exige a universalização da educação básica e a

abertura de oportunidades de formação ao longo da vida acessíveis ao conjunto da população.

Também são necessárias condições sociais e econômicas para acessar esta educação. Sabemos

que a realidade do terceiro mundo é muito diferente em quase todos os aspectos, no entanto o

tema da Educação Continuada não deixa de ser relevante nessa parte do globo. O problema

nos países do terceiro mundo refere-se principalmente à reprodução das desigualdades por

meio da distribuição inequitativa de oportunidades educativas que, tendo início já nas

primeiras séries do ensino básico, pode prolongar-se com agravantes também no que se refere

à Educação Continuada.

Esse fenômeno ocorre porque, em muitos casos, a possibilidade de aproveitar

oportunidades de Educação Continuada depende de que se tenha tido acesso a uma educação

básica de qualidade, que garanta a aquisição da leitura e escrita e outras habilidades,

interesses, atitudes e valores que permitirão à pessoa seguir aprendendo em diferentes

contextos. O caso brasileiro é um bom exemplo pois as desigualdades na área educacional são

bastante grandes. Nós ainda temos 14 milhões de analfabetos acima de 15 anos, nós ainda

temos 44,6% das crianças de 4 a 6 anos excluídas do acesso à educação infantil, nós ainda

temos 8,6 % das crianças de 7 a 9 anos e 0,5 % das crianças de 10 a 14 anos fora da escola.

Sabemos também que, uma grande parte dos que conseguem agora ingressar no sistema

escolar tem que enfrentar o problema do fracasso, gerado por fatores escolares e extra-

escolares, que produz uma baixa média de escolarização na população brasileira..

Essa situação gera um outro problema concomitante ao analfabetismo absoluto que

atinge 14 milhões de brasileiros jovens ou adultos. Trata-se do analfabetismo funcional,

situação que caracteriza pessoas que tiveram uma experiência escolar insuficiente para

garantir o domínio de habilidades como a leitura, a escrita e o cálculo num grau que

corresponda às demandas do mundo do trabalho ou de outras dimensões do cotidiano. Se nós

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somarmos aos 14 milhões de analfabetos as pessoas que têm menos de quatro anos de ensino -

período mínimo de escolarização que garantiria esses aprendizados básicos - chegaremos a

uma cifra próxima de 40 milhões, que representa 32% da população brasileira com 15 anos ou

mais que não têm o domínio da leitura e da escrita.

Indicadores gerais como esses citados acima precisam ser ainda complementados por

outros que mostram como as desigualdades educacionais se expressam também entre regiões,

etnias, homens e mulheres. O índice de analfabetismo entre brasileiros com mais de 15 anos

chega a 23% no Nordeste, enquanto esse índice é de 7,7% na região Sul. Se tomarmos apenas

a zona rural nordestina, a taxa sobe para 38,3%, muito acima da média nacional, que é de

13%. Com relação a gênero, o Brasil apresenta uma situação curiosa pois, entre os países do

terceiro mundo, o nosso é um dos poucos em que o grupo das mulheres já exibe indicadores

de escolarização melhores do que o dos homens. Entretanto, se consideramos a variável cor

da pele, verificamos que entre as mulheres brancas o índice de analfabetismo é 12,6%,

enquanto entre as mulheres negras é de 32,7%. Se tomarmos ainda os dados relativos à renda

familiar em 1990, constataremos que entre os que têm renda maior que 2 salários mínimos, os

analfabetos representam apenas 3,8%, mas são 45% entre aqueles cuja renda familiar per

capita não ultrapassa ¼ do salário mínimo. Da mesma forma que um índice geral de

analfabetismo não é suficiente para revelar como as desigualdades se expressam na sociedade,

também não é possível enfrentar esse problema só com políticas universais. Precisamos de

políticas corretivas, que atendam a necessidades de grupos específicos, e que atinjam os focos

onde os déficits educacionais são mais graves.

Aceitando-se o princípio de que uma boa escolarização básica é condição essencial

para a realização da Educação Continuada, precisamos repensar o papel das políticas públicas

de educação. Em trabalho recente, a educadora equatoriana Rosa Maria Torres (2003) faz uma

análise importante do que veio ocorrendo com as políticas educacionais dominantes nos

países de terceiro mundo. Nesse trabalho, ela se propõe a fazer um balanço da década desde a

Conferência Mundial de Educação para Todos de 1990, na Tailândia. Essa conferência,

convocada pela UNESCO, UNICEF, PNUD e pelo Banco Mundial, produziu uma declaração

que se pautou por uma concepção ampla de educação para todos, independente de faixa etária,

baseada no conceito de necessidades básicas de aprendizagem. A idéia era focalizar a

aprendizagem e não o ensino, e, levando-se em conta as necessidades básicas de

aprendizagem dos diferentes grupos, estabelecer políticas que articulassem diversas formas de

educação. No desenvolvimento desse conceito de necessidades básicas, sete aspectos foram

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abordados: sobrevivência, desenvolvimento das próprias capacidades, vida e trabalho dignos,

participação democrática, melhoramento da qualidade de vida, tomada de decisões e

aprendizagem permanente.

Todos esses aspectos nos remetem a uma concepção ampla de Educação Continuada.

O que Rosa Maria Torres demonstra nesse estudo é que esses conceitos principais da

declaração Educação para Todos foram gradativamente restringidos e traduzidos de forma

muito empobrecida nas políticas de reforma educativa executadas na última década nos países

do terceiro mundo, em grande medida sob orientação dos próprios organismos internacionais

que capitanearam a declaração. Mostra que a idéia de educação para todos foi interpretada

pelos reformadores como educação somente para crianças e adolescentes. Perdeu-se assim o

princípio de uma educação que se realiza do nascimento à morte continuamente. Nessa visão,

o espaço da educação de adultos no âmbito das políticas educacionais ficou restrito, quase

desaparecendo em alguns casos. Outro estreitamento produzido pela corrente hegemônica das

reformas educativas é o foco exclusivo no sistema escolar de ensino primário ou fundamental,

desconsiderando outras instâncias educativas importantes como os meios de comunicação de

massa, por exemplo.

Ao avaliar seu desempenho durante os primeiros 10 anos pós Dakar, o governo

brasileiro fez um balanço positivo baseado no fato de que aumentou o número de crianças na

escola. Sabemos, entretanto, que há pouco o que mostrar em relação à qualidade da educação,

porque qualidade exige uma visão mais ampla que não se restrinja ao indicador de freqüência

à escola, ou mesmo à aquisição de conteúdos mínimos que possam ser medidos por testes

padronizados. Aí temos um outro estreitamento conceitual apontado por Rosa Maria Torres: a

interpretação do “básico” como “mínimo” e não como “necessário” para responder às

exigências da participação social, levando-se em conta pelo menos aqueles sete aspectos

mencionados anteriormente. As reformas educativas, na verdade, vêm dando ênfase aos

aspectos econômicos e gerenciais. Importa a formação da mão de obra para o capital do que a

formação do cidadão para a sociedade. Importa o ajuste econômico dos sistemas escolares

públicos à lógica neoliberal da reforma do estado, do que o investimento social que a

Educação Continuada proporciona para a sociedade em geral. Por outro lado, como ampliar as

oportunidades de aprendizado numa sociedade em que aumenta a concentração da renda, o

desemprego e a exclusão cultural? Como melhorar a qualidade da escola sem melhorar a

qualidade do sistema social como um todo? A conceito de Educação Continuada, que inclui a

educação escolar fundamental, exige que se considerem as influências dos problemas sociais,

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econômicos, políticos, ambientais e culturais no trabalho escolar, exige que se reconheça que

o modelo econômico dominante não é compatível com princípios de equidade educativa.

Hoje há uma globalização das comunicações e dos sistemas produtivos, comerciais e

financeiros. Pouco temos a comemorar sobre os impactos desta globalização do ponto de vista

social, educacional e ambiental. Muitos dos limites impostos às políticas educacionais, assim

como às demais políticas sociais, são conseqüência de um modelo de desenvolvimento que é

baseado apenas nos aspectos econômicos e financeiros da globalização.

Com esses elementos em vista podemos compreender de maneira mais contextualizada

e abrangente a emergência desse conceito de Educação Continuada. Minha hipótese é que a

imagem de uma sociedade contemporânea tecnologizada e globalizada, que impõe a

necessidade da Educação Continuada, ajusta-se mais facilmente a uma parcela dessa

sociedade global: os países do primeiro mundo, que combinam uma educação formal de

qualidade com práticas de educação não formal. Para que possamos compartir a

responsabilidade sobre os destinos da sociedade global com todos os países, e com todos os

segmentos envolvidos, é preciso superar um modelo de desenvolvimento que promove a

exclusão de uma parcela da sociedade e que, portanto, é incompatível com o preceito de

educação para todos. Sem perder de vista essa problemática mais ampla, é preciso pensar

alternativas de políticas que integrem ações em diferentes planos tendo em vista a real

necessidade de ampliar as oportunidades de desenvolvimento para todas as pessoas ao longo

de sua vida.

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O legado de Paulo Freire: passado ou atualidade?

Osmar Fávero17

Resumo: Destaca Paulo Freire como importante educador brasileiro que em muito contribuiu para o processo de construção da democracia no Brasil. Afirma que o conjunto de sua obra não apresenta contradições, e sim temas recorrentes que acabam sendo revistos, complementados e ampliados. Aponta a relevância do princípio de libertação defendido por ele e apresenta os fundamentos de sua obra (a prática por ele desenvolvida e por ele refletida) e discorre brevemente sobre algumas categorias nela presente, tais como práxis, esperança, conscientização, cultura e diálogo. Conclui afirmando que a dimensão ética da pedagogia de Paulo Freire é o que lhe confere intensa atualidade e distinguida importância, podendo ser designada como uma pedagogia do direito

à educação.

Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos; Educação Popular; Paulo Freire.

Nos últimos anos tenho retomado sistematicamente a leitura de Paulo Freire, por

exigência do Doutorado em Educação da Universidade Federal Fluminense, no qual atuo

como orientador de teses e responsável por uma disciplina obrigatória. Nessa disciplina,

estudamos o pensamento de alguns educadores brasileiros, em particular procurando

identificar a contribuição desses educadores, através de suas obras e de suas ações, ao

processo de construção da democracia no país.

Como não podia deixar de ser, Paulo Freire é um dos educadores escolhidos. Em princípio,

por questões de método, procuramos privilegiar sua contribuição nos anos de 1960, a partir de seus

dois primeiros e fundamentais livros: Educação como prática da liberdade (Paz e Terra, 1967) e

Pedagogia do oprimido (Paz e Terra, 1970). Mas, para identificar as raízes da crítica que faz à

educação escolar brasileira, algumas delas a partir de Anísio Teixeira, alguns doutorandos lêem e

trazem para a discussão do grupo os primeiros escritos por ele publicados: Educação e atualidade

brasileira (Recife, 1959) e “Escola primária para o Brasil” (RBEP, 1961). Por sua vez, para entender

essa produção, recorremos à Pedagogia da esperança (Paz e Terra, 1992) e Cartas a Cristina (Paz e

Terra, 1994). Mais que isto: alguns doutorandos encarregam-se de retomar leituras por eles feitas

ainda na graduação e de rever práticas educativas realizadas enquanto profissionais, à luz da

pedagogia de Paulo Freire. Tanto de minha parte, na posição de educador/educando, quanto na

posição dos educandos/educadores, (re)lendo e (re)descobrindo Paulo Freire, vivemos e

experimentamos lições de sua pedagogia; cada um busca livremente seu caminho e compartilha com o

grupo suas (re)descobertas. O próprio grupo liberta-se do enquadramento cronológico inicial, lendo

17 Doutor em Educação pela PUC-SP professor titular do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFF.

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(alguns relendo) e discutindo (ou rediscutindo) alguma de suas obras mais atuais, por exemplo,

Pedagogia da autonomia (Paz e Terra, 1996) e a última Pedagogia da indignação (Unesp, 2000).

Dessas leituras e releituras, salta aos olhos uma primeira constatação: a obra de Paulo Freire,

no seu conjunto, não apresenta contradições. Desde os primeiros escritos, trabalha sobre temas

recorrentes, explicitando, revendo, complementando, ampliando. É um caminho em espiral, coerente

todo o tempo.

É fácil identificar também a libertação como o princípio fundamental de sua concepção de

educação, presente já nos primeiros escritos e claramente assumido desde a Pedagogia do oprimido.

Esse princípio provém do humanismo cristão, de raízes européias, sobretudo francesas, reelaboradas

no Brasil. Na segunda metade dos anos de 1950 e no início dos anos de 1960, cristãos “progressistas”

procuram concretizar, inicialmente na Ação Católica, da qual Paulo Freire fez parte, depois nos

movimentos de cultura e educação popular, dos quais Paulo Freire foi um dos grandes animadores, sua

opção por um trabalho social e político, decorrente de sua vivência religiosa.

Já está bastante estudado esse movimento de intelectuais universitários e secundaristas que se

lançaram ao encontro de operários e camponeses e estudantes, numa tentativa de interlocução com os

mesmos, tendo em vista introduzir mudanças radicais na sociedade brasileira, nos idos de 1960

designadas como “reformas de base”, no bojo do governo populista de Jango Goulart. Por maiores que

sejam as críticas ao populismo e ao vanguardismo e mesmo à pretensa “ingenuidade” desses

participantes e movimentos aos quais estavam ligados, não se pode negar, individualmente, a

honestidade da opção de muitos e, coletivamente, a riqueza até hoje não repetida dos então chamados

movimentos de cultura popular. O preço pago por essa opção, por Paulo Freire inclusive, foi muito

alto: prisão, exílio, “cassação branca” dos que permaneceram no país. Os movimentos, por sua vez,

com exceção do MEB, por ser ligado à Igreja católica, foram extintos.

Esse caminho não foi feito isoladamente por Paulo Freire. Foi o caminho de toda uma geração,

jovem em sua maioria, que Paulo Freire pode entender e orientar e da qual soube colher o que de mais

rico tinha a oferecer: a opção pela construção de um projeto de transformação da realidade, no qual à

educação, entendida e praticada como ato político, era reservado papel fundamental.

É importante entender Paulo Freire como o educador que, naqueles anos, melhor sintetizou e

sistematizou o essencial das propostas educativas de então, no primeiro momento, como um sistema

de educação de adultos, experimentado na sua primeira fase de alfabetização, da qual Educação como

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prática da liberdade é o fundamento e o relato. Logo mais, essa proposta é aprofundada teoricamente

na experiência de alfabetização de adultos do Chile, em condições de trabalho que lhe permitiram o

diálogo enriquecedor com parceiros destacados, brasileiros exilados e chilenos comprometidos com

reformas radicais em seu país, no Governo Allende. Essa oportunidade e esses contatos permitiram a

Paulo Freire um mergulho na literatura marxista, cujo produto é a Pedagogia do oprimido. Mas não

só; Extensão ou comunicação? (ICIRA, 1969 e Paz e Terra, 1970) amplia enormemente a abordagem

da educação como um fato cultural e os escritos reunidos em Ação cultural para a liberdade (Paz e

Terra, 1976) explicitam conceitos fundamentais, clareiam afirmações, reafirmam categorias de

análise.18

A (re)leitura dessas obras nos mostra como Paulo Freire vai ampliando a primeira noção,

ainda abstrata, de pessoa humana para ao conceito de oprimido, situando-o e datando-o, como

exigência das próprias experiências feitas, e progressivamente incorporando a categoria de classe

social. Mais tarde, inclusive por aceitação de críticas a ele feitas, incorpora também as noções de etnia

e gênero, ampliando cada vez mais a abrangência dos mesmos conceitos.

O motor da explicitação dos fundamentos da obra de Paulo Freire é a prática por ele

desenvolvida e por ele refletida (ou reflexionada, como prefere dizer). Trata-se da categoria práxis, ou

seja, o movimento ação/reflexão/ação. É significativo que, desde as primeiras experiências como

educador, ainda no SESI de Pernambuco, Paulo Freire pense a educação de jovens e adultos a partir

dos problemas vividos por esses jovens e adultos e oriente sua prática no sentido de assumir esses

problemas como “situações de aprendizagem”. Ou seja: compreender e fazer compreender as raízes

desses problemas, na exploração de uma sociedade injusta e de um sistema econômico-social

excludente. Daí a valorização do “saber de experiência feito” para, refletindo sobre ele, criticando-o,

ampliando-o, entender a realidade para transformá-la.

Encontramos presente em toda sua obra também a categoria esperança: o homem faz a

história; o homem pode mudar o mundo. É limitado, contingenciado pelas condições concretas da

realidade, mas não é determinado por elas. Pode, e deve, mudar o mundo, com sua inteligência e com

sua ação. Por sua vez, a educação é, ou deve ser, instrumento dessa ação, na medida em que possibilita

18 Uma doutoranda que trabalhou diretamente com Paulo Freire nos disse, durante uma discussão motivada por Ação cultural para a liberdade, que Paulo Freire teria afirmado, em certa oportunidade, considerar esse pequeno livro como um dos seus melhores, lastimando ser pouco valorizado.

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ao homem tomar consciência da realidade em que vive e, em consequência, agir para transformar essa

realidade, tendo em vista a construção de uma sociedade justa e fraterna.

Decorre daqui a categoria conscientização, utilizada por Paulo Freire e pelos participantes da

maioria dos movimentos de cultura e educação popular do início dos anos de 1960. Mas a educação

para Paulo Freire não se restringe ao ensino escolar, nem muito menos ao treinamento profissional.

Trata-se da formação do homem, considerado como ser inacabado, em permanente processo de auto-

formação.

Entender o homem como ser inacabado e a educação como processo permanente de

“acabamento” decorre de ampla discussão, em âmbito mundial, provocada pelas limitações dos

sistemas escolares e que deu origem aos estudos de educação permanente e às propostas de educação

continuada.19 Embora teoricamente promissores, esses estudos foram e têm sido mal-entendidos e mal-

aplicados, ou simplesmenete reduzidos pragmaticamente à reconversão profissional. No caso

brasileiro, seu uso foi restringido no que diz às propostas de ensino supletivo, nos anos de 1970, e,

atualmente, na formação continuada dos profissionais da educação. Mas é pedra fundamental na

pedagogia de Paulo Freire. Na medida em que se queira, por exemplo, ainda, criar uma nova

organização curricular para jovens e adultos, no ensino regular noturno ou no ensino supletivo,

efetivamente tem-se de tomar como ponto de partida a experiência vivida (e sofrida) por esses jovens e

adultos. Esse movimento significa trabalhar, em outro nível e com auxílio de outros instrumentos, o

saber provindo dessa experiência, vivido e aprendido. E exige também que os educadores se re-

eduquem, nesse trabalho e para este trabalho, ainda e sempre na práxis, como ação/reflexão/ação.

Nesse processo, é fundamental partir da cultura, entendida como conjunto de significações e

representações de um modo de viver, confrontado com outros modos de viver. Nos anos de 1960, a

“descoberta” da cultura e cultura popular, esta para muito além do folclore, como fundantes de todo o

processo educativo foi seguramente um dos pontos mais ricos das experiências criadas. Suas origens

são diversas: Germano Coelho, no MCP – Movimento de Cultura Popular, e Vera Jaccoud, no MEB –

Movimento de Educação de Base, redefiniram criativamente, para o Brasil, perspectivas e propostas

nascidas na Europa, sobretudo na França; Moacyr de Góes, na Campanha “De pé no chão também se

aprende a ler”, assume o mote que nos chegou, acredito, pela Revolução Cubana: “Nenhum povo é

19 Entre nós, essas noções foram trabalhadas particularmente por Pierre Furter, na ocasião perito da Unesco no Brasil e depois na Venezuela, principalmente em seus livros Educação e vida (Vozes, 1966) e Educação

permanente e desenvolvimento cultural (Vozes, 1974).

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dono de seu destino se antes não é dono de sua cultura”; Carlos Estevam e Ferreira Gullar também

assumiram para o CPC – Centro Popular de Cultura da UNE – União Nacional de Estudantes

conceitos específicos de cultura e de cultura popular, com outras conotações. A colaboração mais

acabada veio do entendimento do século XX como o momento da “civilização da cultura”, proposto

por Pe. Henrique de Lima Vaz, S.J. e assumido, em termos de cultura popular, pela Ação Popular e

pelo MEB. Mas, coube a Paulo Freire e sua equipe no Serviço de Extensão Cultural da então

Universidade do Recife, genialmente, com base no conceito antropológico de cultura, criar as famosas

“fichas de cultura” que inauguraram o sistema de alfabetização de adultos, no caso brasileiro, e o

sistema psicossocial, no caso chileno. Foi a partir dessa sistematização que Paulo Freire elaborou,

ainda nos início dos mesmos anos 1960, uma nova concepção de educação de adultos, com ampla

aceitação pela maioria dos movimentos de educação e cultura popular, e lançou as bases para uma

nova concepção geral de educação.

Outra categoria fundamental na pedagogia freireana, desde a experiência dos

“círculos de cultura” adotados no sistema de alfabetização de adultos, mas presente em toda

ação cultural e educativa é o diálogo: ninguém educa ninguém; os homens (e as mulheres,

dirá Paulo Freire depois) se educam numa relação dialógica, de saberes e afetos. O diálogo

viabiliza metodologicamente o movimento da práxis: partir do vivido e do sabido (se

quisermos, partir do senso comum), discuti-lo, criticá-lo, ampliá-lo (na direção do bom

senso). para daí não só mudar sua visão de mundo, mas transformar o mundo. Vale lembrar

uma frase várias vezes repetida por Paulo Freire, para a alfabetização: não apenas ler a

palavra, mas ler o mundo através da palavra, para transformá-lo.

A partir daquele princípio fundamental e dessas categorias, recoloca-se a função política da

educação e o papel simultâneo de competência técnica e compromisso político do educador, cuja ação

deve ser fundamentalmente ética, no respeito ao educando, que é também educador, e na coerência de

sua ação. Esses elementos definem uma nova pedagogia, a pedagogia de Paulo Freire. Embora

formulada inicialmente como educação de adultos e experimentada como alfabetização de adultos, de

fato encontra-se em Paulo Freire uma pedagogia como concepção geral de educação.20

O fundamento antropológico de sua pedagogia é o ser humano como ser inacabado e de comunicação, e a sua vocação para ser mais. Por isso, o amor e a esperança são uma necessidade ontológica. Mas a história é uma possibilidade que se realiza num

20 Argumentação desenvolvida por Agostinho Reis Monteiro, da Universidade de Lisboa, na comunicação “Paulo Freire e o direito à educação”, apresentada no I Encontro Internacional sobre Paulo Freire (São Paulo, Instituto Paulo Freire, abril de 1998), à qual pertence a transcrição que segue.

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cenário de politicidade, onde é impossível a neutralidade. Por consequência, a educação é fundamentalmente uma questão e uma forma de poder, cuja legitimidade deve ser problematizada. Daí a centralidade da eticidade da educação. (p. 8)

Em síntese, a pedagogia de Paulo Freire é revolucionária; é um resgate do sentido da utopia. E

é exatamente sua dimensão ética que lhe confere intensa atualidade e distinguida importância. Em

termos radicais, é uma pedagogia do direito à educação.21 Por isso a permanência de sua obra e de seu

pensamento; por isso, a atualidade de sua pedagogia.

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21 Conforme Agostinho Reis Monteiro, citado, p. 10.

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Brasil 10 anos sem Paulo Freire

Sonia Couto Souza Feitosa22

"Eu gostaria de ser lembrado como alguém que amou o mundo, as pessoas, os bichos, as árvores, a terra, a água, a vida".

(Paulo Freire, Pedagogia da indignação, 2001)

Resumo: O artigo tem como principal objetivo fazer um balanço das inúmeras experiências consolidadas no Brasil e no mundo que carregam a rica herança deixada por Paulo Freire. Dez anos se passaram desde a morte de Freire e seu legado ainda continua vivo em ações espalhadas pelos mais diversos campos sociais. Fóruns, seminários, colóquios, encontros, movimentos sociais e educacionais mantém viva as intenções, as preocupações, as ações e as utopias que Freire divulgou ao longo de toda a sua vida. Neste artigo, poderemos compreender como as idéias de Paulo Freire e seu amor incondicional para com os excluídos e oprimidos de todo o mundo servem de inspiração a inúmeros educadores progressistas, que diante de suas experiências, resignificam e ampliam o legado deixado por este homem que amou as pessoas e o mundo.

Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos; Movimentos Sociais e Educação; Educação; Paulo Freire; Movimento de Educação Popular; Educação Popular.

Dentre as muitas mensagens deixadas por Paulo Freire, essa, proferida poucos dias

antes de sua morte, traduz o que de mais humano havia nesse grande educador. Ele não

desejou ser lembrado pelos livros que escreveu, pelas palestras que proferiu, pela presença

marcante no mundo, tampouco pelas idéias que inspiraram tantos educadores e educadoras.

Ele gostaria de ser lembrado como alguém que teve a imensa capacidade de amar. Essa

afirmação não teria a credibilidade que tem, não fosse a coerência existente entre essas

palavras e a militância desse educador em favor dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo. O

amor ao qual Freire se refere traduziu-se nas suas obras, nas palestras, em suas idéias

inspiradoras, na luta em favor de uma educação libertadora. E é encharcado dessa

amorosidade que nós, educadores e educadoras comprometidos com essa educação, buscamos

dar continuidade ao seu legado.

Dez anos após ter partido, suas idéias estão cada vez mais vivas, inspirando nossas

práticas educacionais, justificando nossas ações de mobilização social, impregnando de

sentido nossa luta por uma educação que promova a justiça, a paz e a solidariedade, princípios

básicos da educação defendida por Freire.

Paulo Freire tinha um sonho que não se concretizou. Sonhava em ver a virada do

século, por considerar emblemática essa passagem. No entanto, nem durante toda a sua vida

sua presença esteve tão materializada. O início do novo século foi marcado, entre outras

22 Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Professora, Assessora Educacional, Coordenadora de Projetos de Educação de Jovens e Adultos do Instituto Paulo Freire.

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importantes manifestações, pelo advento do Fórum Social Mundial que conseguiu pela

primeira vez unir a esquerda em torno de uma agenda comum. Em suas várias edições, os

Fóruns inauguraram uma fase de retomada e de reinvenção da utopia. Inspirado pelas idéias

freirianas, pautaram temas que exigiam, acima de tudo, transformação de consciências. Não

podemos esquecer que essa foi uma das principais preocupações de Freire desde o início de

sua atuação como educador progressista. Promover a passagem da consciência ingênua para a

consciência crítica foi o grande objetivo do conhecido Método Paulo Freire. Segundo ele “A

pessoa conscientizada tem uma compreensão diferente da história e de seu papel nela. Recusa

acomodar-se, mobiliza-se, organiza-se para mudar o mundo.” (Cartas à Cristina, 1994).

O primeiro Fórum Social Mundial realizado em janeiro de 2001 teve Paulo Freire

como homenageado. O slogan “Um outro mundo é possível” surgiu na primeira edição do

Fórum como prenúncio de uma utopia a ser conquistada. A construção desse outro mundo só

seria possível se superássemos a visão fatalista de que não há como promover mudanças. Em

seus últimos escritos, Freire nos alertava contra a inexorabilidade, contra o fatalismo, contra a

paralisação. Ele dizia

[...] “Há um sinal dos tempos, entre outros que me assusta: a insistência com que, em nome da democracia, da liberdade e da eficácia, se vem asfixiando a própria liberdade e, por extensão, a criatividade e o gosto da aventura do espírito. A liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem sendo submetida a uma certa padronização de fórmulas, de maneiras de ser, em relação às quais somos avaliados. É claro que já não se trata de asfixia truculentamente realizada pelo rei despótico sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre seus vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados, pelo dono da fábrica sobre seus operários, pelo Estado autoritário sobre os cidadãos, mas pelo poder invisível da domesticação alienante que alcança a eficiência extraordinária no que venho chamando de “burocratização da mente”. Um estado refinado de estranheza, de “autodemissão” da mente, do corpo consciente, de conformismo do indivíduo, de acomodação diante de situações consideradas fatalísticamente como imutáveis. É a posição de quem encara os fatos como algo consumado, como algo que se deu porque tinha que se dar da forma como se deu, é a posição, por isso mesmo, de quem entende e vive a História como determinismo e não como possibilidade”. (FREIRE, 1997, p. 128-129, grifos do autor).

Com essas palavras Freire chamava-nos a atenção para a necessária resistência a esse

estado de paralisação e ao fortalecimento da possibilidade do sonho, pois como ele dizia

“para se construir um novo mundo é preciso antes sonhá-lo”. O Fórum Social Mundial

cumpria essa determinação, reunindo pessoas para promover o sonho coletivo de um mundo

melhor. Podemos então dizer que o slogan do Fórum surgiu a partir de uma das afirmações de

Freire. Ao dizer, em seu último livro publicado em vida que “o mundo não é, o mundo está

sendo” (FREIRE, 1997), ele reitera a possibilidade de um outro mundo possível.

Mesmo ausente fisicamente dos Fóruns, sua teoria estava presente, contribuindo

significativamente com as discussões e encaminhamentos. Hoje, passados seis anos desde sua

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primeira edição, o Fórum Social Mundial já percorreu países aglutinando pessoas em torno de

uma causa comum: a construção desse outro mundo possível e necessário.

Com o objetivo de ampliar as discussões no campo da Educação, já iniciadas no

Fórum Social Mundial (FSM), surge o Fórum Mundial de Educação (FME) com fortíssima

inspiração freiriana. Desde sua criação, o FME tem reunido educadores do mundo inteiro para

discutir a educação nesse novo século. A pauta desses fóruns consiste na certeza de que

“devemos compreender de modo dialético a relação entre a educação sistemática e a mudança

social, a transformação política da sociedade. Os problemas da escola estão profundamente

enraizados nas condições globais da sociedade.” (Medo e Ousadia, 1987, p. 157).

O Brasil deu a largada inicial nesse movimento que contou com a adesão de

educadores dos diferentes continentes. Com edições anuais, o FME é hoje um dos eventos

mais significativos na Educação, pois congrega os segmentos escolares, governo, movimentos

sociais, universidades, enfim, todos os envolvidos no processo educativo.

Tamanha força tem as idéias de Freire que espaços específicos para discussão de suas

teses epistemológicas foram criados. Um desses espaços foi o Fórum Internacional Paulo

Freire, com edições bianuais, que tem como objetivo principal reunir freirianas e freirianos

para reflexão e reinvenção de suas idéias. O Fórum Paulo Freire consiste, portanto, num

espaço de estudo e atualização do legado de Paulo Freire, bem como de fortalecimento de

vínculos entre pessoas e organizações que desenvolvem trabalhos e pesquisas na perspectiva

da filosofia freiriana. O primeiro Fórum Internacional Paulo Freire aconteceu no Brasil em

1998. Em 2.000 o fórum foi realizado na cidade de Bologna, Itália. Em 2002 aconteceu em

Los Angeles, na Califórnia. Em 2004 ele foi realizado na cidade do Porto, em Portugal. Em

2006 em Valência na Espanha e em 2008 ele será novamente realizado no Brasil. Nessa

edição, dez anos após sua primeira realização, busca-se fazer um balanço do que tem sido

esses anos sem a presença física de Freire.

Mas esse não foi o único espaço criado para dar continuidade ao legado freiriano. Em

Recife, no Nordeste brasileiro, berço do educador, também são promovidos encontros

internacionais com o nome de Colóquio Internacional Paulo Freire, tendo como objetivos a

discussão acerca da atualidade de seu pensamento; a sua contribuição para a construção de

uma sociedade includente; analisar processos de práxis cidadãs construídas sob o referencial

freiriano; socializar experiências sócio-educativo-culturais, referenciadas no pensamento do

educador, vivenciadas em ambientes educativos, escolares e não escolares e divulgar

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resultados de pesquisas e estudos, baseados nas idéias de Paulo Freire, que visem contribuir

para a construção de um mundo mais justo e humano. De 1998 até a presente data, foram

realizados cinco colóquios internacionais, sempre nos meses de setembro e outubro, em que

se comemoram o aniversário de Paulo Freire e a Semana de Alfabetização. Em 2007 o

Colóquio Paulo Freire será realizado entre os dias 30 de agosto a 02 de setembro de 2007 no

Campus da Universidade Federal de Pernambuco em Recife.

A memória e a presença de Paulo Freire continuam ocupando lugar privilegiado no

coração das pessoas que o conheceram pessoalmente ou por meio dos seus escritos. Ao

completar dez anos de seu falecimento, muitas homenagens estão sendo prestadas. Entre elas,

podemos destacar: sessões solenes na Câmara dos Deputados, lançamento de documentário

sobre Paulo Freire, seminários, debates, fóruns de estudo, feira de educação, simpósios, ciclos

de leitura, criação da Rede Paulo Freire, encontro de educação popular, ciclos de palestras,

lançamentos de livros, colóquios nacionais e internacionais etc. Muitas outras homenagens

certamente estarão acontecendo e é todo esse movimento em favor da preservação de sua

memória que nos dá a certeza da presença de Freire no mundo.

Muito conhecimento tem sido produzido a partir de suas idéias. Inúmeras dissertações

e teses em torno de suas teorias são defendidas diariamente. O legado deixado por Paulo

Freire se expandiu de tal forma nesses últimos dez anos que se fala hoje em uma comunidade

freiriana internacional. Essa comunidade pode ser percebida por meio do trabalho de muitos

grupos de estudos e formação, cátedras, centros de pesquisas, institutos, escolas, espaços

culturais, entre outros, que, inspirados na biobibliografia de Freire, emergem em centenas de

lugares no mundo.

Educadoras e educadores continuam dialogando com as idéias de Freire. Mas esse

diálogo só é possível pela riqueza de conceitos presentes em suas obras. Em seus muitos

escritos, Freire concebeu importantes categorias e resignificou outras. Muitas delas pautaram

sua vida pessoal e profissional a ponto de se confundirem com seu jeito de ser. Amorosidade,

coerência, inacabamento, esperança, criticidade, diálogo, utopia, ética universal, práxis,

radicalidade, curiosidade e tantas outras estiveram sempre presentes na sua vida, na relação

que estabelecia com as pessoas e com as diferentes culturas.

Podemos observar em sua rica biografia que Freire foi um homem à frente de seu

tempo. Muito antes da expansão do uso das tecnologias a serviço da educação, Freire já

utilizava os recursos tecnológicos existentes na época. Nos anos 60, quando desenvolveu uma

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inovadora experiência de alfabetização de adultos em Angicos, Rio Grande do Norte, Freire

utilizou um projetor de slides para trabalhar situações existenciais que problematizavam o

conceito de cultura. Ao denominar a sala de aula de Círculo de Cultura ele imprimiu uma

nova lógica, não somente espacial, mas fundamentalmente interativa, cooperativa, coletiva.

Ao denominar o educador como animador de debates Freire já mostrava a importância de

garantir a fala do educando, da sua efetiva participação e reafirmava o papel de mediação que

deve ser exercido pelo educador. Essas práticas, bastante inovadoras para a época, mostram o

valor que Freire atribuía à utilização de diferentes linguagens, e diferentes tempos e espaços

de aprendizagem.

Também muito antes das pesquisas sobre a Psicogênese da Língua Escrita, realizadas

por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, Freire já trabalhava com o conceito de Construtivismo.

Mesmo que não tenha usado essa palavra, muitos dos princípios dessa epistemologia estão

presentes na teoria freiriana desde a sua gênese. Sabemos que Freire não desenvolveu uma

pedagogia da alfabetização. Ele contribuiu com a criação de uma pedagogia que privilegia o

desenvolvimento da consciência crítica e estabeleceu uma relação horizontalizada entre

educador e educando, criando com isso bases para o desenvolvimento de uma pedagogia

crítica e libertadora, tratando o analfabetismo como problema social, que só será resolvido

com um profundo processo de mobilização social.

Freire se denominava um “menino conectivo”. Realmente ele foi capaz de conectar

diferentes categorias em torno de um projeto comum: libertar homens e mulheres da opressão

e dominação. Essa foi sua bandeira e sua luta, luta aguerrida, feita de boniteza e doçura.

E como estaria essa luta hoje se Paulo Freire estivesse vivo? Sobre o que estaria

escrevendo? Como reagiria diante dos fatos que se apresentam?

Como homem de visão prospectiva que sempre foi, certamente estaria questionando a

conjuntura atual sempre na perspectiva da denúncia e do anúncio. Essa conjuntura mostra que

estamos vivendo uma democracia de fachada. Somos cada vez mais dependentes do

capitalismo. Vivemos numa globalização marcada pelo domínio da mercadoria. A

desigualdade social aumenta criando um fosso quase que intransponível entre as camadas

mais ricas e as camadas mais pobres da sociedade. O painel de mudança climática da ONU

traz uma informação hegemônica: há um crescente aquecimento da atmosfera. Fala-se hoje

até em exilados climáticos referindo-se aos povos que já não conseguem viver em seus locais

de origem em razão das mudanças climáticas que alteram a paisagem e as condições de

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sobrevivência. Certamente essa seria, como ele já deu indícios muito antes desses fatos se

agravarem, uma de suas grandes abordagens.

Creio que ele estaria nos alertando para a emergência de se construir uma nova cultura

política e um novo processo emancipatório. Ele já nos alertava há dez anos atrás que as

práticas transformadoras não se darão pela tomada do poder, mas pelas novas formas de

organização das relações sociais e econômicas. Novas lógicas, novos valores precisam ser

construídos a partir de debates envolvendo toda a sociedade. As ações transformadoras não

serão desencadeadas por um “salvador da pátria”, por um ícone que magicamente transforme

as relações de poder cristalizadas e solidificadas pelo tempo. Espera-se que cada ação

individual possa gerar ações transformadoras que somadas promoverão uma significativa

conquista coletiva.

A quem cabe então a responsabilidade em continuar a luta inacabada de Freire?

É importante que educadores, educadoras e instituições que estudam o pensamento e

obra de Paulo Freire tenham essa preocupação. Essas são investigações que permitem

enfrentar os problemas atuais por meio da presença de Paulo Freire, não só pelo que ele

escreveu, mas pelo que estaria escrevendo se estivesse vivo.

Estamos, de forma crescente e impetuosa, destruindo o planeta. Os excluídos de hoje

são os excluídos da terra. Há os que a exploram, maltratam, aproveitam-se dela espoliando-a.

Estes são os opressores, os opressores da terra. Uma pedagogia capaz de resgatar a crença na

possibilidade de superação da desigualdade, da opressão foi sempre uma preocupação de

Freire. Embora não tenha sido um pedagogo, ele transitou pela Sociologia, Antropologia,

Filosofia e, valendo-se da síntese dialética que fez de todas essas áreas do conhecimento, nos

deixou um consistente compêndio pedagógico. A sua opção por escrever diferentes

“Pedagogias” (do oprimido, da esperança, da autonomia, da indignação) mostra a importância

que deu a essa área do conhecimento. E para nos contagiar com essa preocupação Paulo

Freire buscou travar com seus leitores um diálogo quase pessoal. Seus escritos em forma de

cartas (à Cristina, à Guiné Bissau) tinham como proposta manter um diálogo íntimo e

profundo com seus interlocutores. Com isso Freire nos desafia a agir, tirando-nos do

imobilismo. Temos, portanto, o dever de fazer de nossa ação pedagógica um instrumento em

favor da transformação.

Que balanço podemos fazer do Brasil após dez anos sem Paulo Freire? Fizemos bom

uso da herança intelectual que ele nos deixou? Estamos sendo capazes de multiplicar essa

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riqueza? Estamos cuidando para que nossos sucessores tenham também acesso a ela?

Conseguimos enfrentar o imobilismo, o fatalismo ingênuo e dar início à concretização do

nosso projeto de sociedade?

Cabe-nos nesse momento vislumbrar um futuro de possibilidades e educar no presente

para que possamos concretizar num futuro próximo o sonho de Freire que é também o nosso.

Após dez anos, temos hoje um Brasil que pouco avançou no campo educacional. A

universalização da escola pública de boa qualidade ainda é uma utopia. O analfabetismo

adulto alcança patamares vergonhosos. O jovem ingressa cada vez mais jovem nos cursos

para adultos, professores são mal preparados e remunerados e a violência alcança todos os

espaços, não poupando nem o espaço escolar.

No entanto, no que diz respeito à Educação de Jovens e Adultos tivemos alguns

avanços. Embora ainda tenhamos índices muito altos de analfabetismo adulto, foram criadas

muitas ações em prol dessa modalidade. Nesse período cresceram os fóruns de EJA por todo o

Brasil. Articulados por meio de uma rede eletrônica (Portal dos Fóruns), educadores e

educadoras lutam por políticas públicas para EJA que efetivamente garantam a superação dos

problemas educacionais já mencionados.

Cada fórum tem sua forma de se organizar. Com autonomia e baixo ou nenhum grau

de institucionalização, os fóruns de EJA, em sua maioria, contam com um colegiado de

organização composto por administrações públicas, universidades, Sistema S, ONGs,

movimentos sociais, educadores etc. Esse colegiado é responsável, entre outras coisas, pela

agenda dos encontros, definição da pauta e coordenação das plenárias. Na Comissão Nacional

de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), o fórum tem lugar garantido

por meio de um representante indicado pelos fóruns estaduais.

Os Encontros Nacionais de EJA (ENEJAs) se consolidaram também nesse período. O

primeiro encontro foi realizado em 1999, dois anos após a morte de Freire e de lá pra cá foram

se fortalecendo chegando esse ano a sua 9ª edição. Com delegação eleita pelos fóruns

estaduais, o encontro configura-se como um espaço de discussão de temáticas, de análise da

EJA que temos e de elaboração e encaminhamento de propostas coletivas que visem à

construção da EJA que queremos. Embora seja um espaço eminentemente político, o ENEJA

também apresenta-se como num espaço de formação pedagógica pois como nos ensinou

Freire, o político e o pedagógico são indissociáveis.

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Mas não ficam por aí os avanços no campo da EJA. Pautados na experiência do

MOVA São Paulo, instituído por Paulo Freire durante sua gestão como Secretário Municipal

de Educação (1989-1992), vários municípios brasileiros optaram por implantar o Movimento

de Alfabetização (MOVA) no combate ao analfabetismo adulto. Muito diferente do que até

então se desenvolvia, esse movimento tinha como proposta político-pedagógica partir das

experiências alfabetizadoras dos Movimentos Populares que deveriam ser recriadas por todos

os envolvidos no processo educacional e ampliadas pelos métodos científicos de investigação

da realidade educativa, cultural, social e econômica do país.

O MOVA prestou uma significativa contribuição ao desenvolvimento da teoria e das

práticas de educação de jovens e de adultos. Seu exemplo foi e continua sendo seguido no

Brasil, com repercussões inclusive no exterior. Segundo Nelly Stronquist (1997, p. 20), da

University of Southern California (EUA), é um exemplo de “educação para a cidadania”,

baseado numa visão sócio-cognitiva do processo de alfabetização. Para ela, o MOVA não

apenas promovia o diálogo entre professores e estudantes, mas se constituiu num grande

processo de conscientização onde os conteúdos e objetivos enfocavam as desigualdades

sociais, explorando suas causas.

O poder de mobilização que o MOVA criou trouxe consigo uma maior participação

dos envolvidos nas questões políticas, econômicas e sociais das suas comunidades e do Brasil

como um todo. Ações de mobilização social passaram a ter visibilidade, expandiram-se

experiências de cooperativismo, economia solidária e outras ações de cunho popular. O

MOVA mostrou ser possível uma relação de parceria entre poder público e sociedade civil,

que, mesmo sendo difícil, tensa, conflituosa, é necessária e rica. É por meio dessas práticas

que a democracia se concretiza.

Para fortalecer essa proposta foi criada a Rede MOVA, que congrega diferentes

experiências de MOVA no Brasil. Essa rede promove encontros bianuais em nível nacional

além de encontros regionais.

Diferentes tipos de fóruns, Redes de educadores e de instituições, Encontros de

Educação de Jovens e Adultos, todos esses movimentos mostram que não foram dez anos sem

Freire. Cada uma dessas ações foi inspirada na práxis desse grande educador.

Outras redes existem com referencial freiriano. Dentre elas destacamos a Rede de

Apoio à Ação Alfabetizadora do Brasil (RAAAB). Criada em 1986 é dedicada ao intercâmbio

e sistematizações de experiências, à formação de educadores de jovens e adultos sob

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inspiração do paradigma da educação popular e à mobilização em torno de políticas públicas

para a área. Hoje, os fóruns assumiram parte das funções da Rede, cabendo ainda a ela a

formação de educadores por meio da revista Alfabetização e Cidadania. Desde sua criação a

Rede já publicou dezenove revistas com artigos, relatos de práticas e resenhas de livros.

O Instituto Paulo Freire, uma das instituições que buscam dar continuidade do legado

freiriano vem, ao longo desses dez anos, aproximando pessoas e instituições que trabalham a

partir de suas idéias. Para melhor cumprir essa finalidade, o IPF busca desenvolver pesquisas

e implementar planos, programas e projetos nos campos da educação, da cultura e da

comunicação. De 1997 para cá foram criadas sub-sedes do Instituto Paulo Freire em Los

Ângeles (Estados Unidos), Porto (Portugal), Valência (Espanha), Durban (Africa do Sul),

Calcutá (India) Milão (Itália), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Suiça, Romênia

e na ilha de Malta, entre outras.

São muitas as ações ligadas ao nome e às idéias de Freire, mas muito ainda temos que

fazer, nós educadores progressistas. Temos, por herança, esse legado e o dever de socializá-lo.

Esse artigo tem o objetivo de fazer um balanço do que foram esses dez anos sem Freire. No

entanto, buscamos muito mais do que constatar a abrangência e inserção de suas idéias nos

diferentes campos do conhecimento. Buscamos, acima de tudo, cumprir esse compromisso

ético-político-pedagógico reafirmando a importância desse legado e a necessidade de ampliá-

lo e reinventá-lo.

Que nos próximos dez anos e nos outros que virão tenhamos não somente a memória,

mas a presença de Freire cada vez mais forte, viva e transformadora.

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Educação de Jovens e Adultos e Juventude: o desafio de compreender os

sentidos da presença dos jovens na escola da “segunda chance”

Paulo Carrano23

Resumo: O artigo chama a atenção para a expressiva presença dos jovens na EJA e discute o desafio que os educadores enfrentam para a compreensão dos sentidos culturais da presença destes sujeitos na escola. E indaga sobre como podemos trabalhar para construir espaços escolares culturalmente significativos para jovens e adultos. Aponta para o estabelecimento de uma relação compreensiva como “porta de acesso” aos jovens, principalmente através da recuperação de trajetórias de vida. Parte do pressuposto de que muitos dos problemas que “explodem” na sala de aula têm origem em incompreensões sobre os espaços não escolares. Analisa a necessidade de compreender os processos mais amplos de socialização do jovem. Problematiza as representações da juventude na sociedade, refletindo sobre as muitas maneiras de ser jovem na atualidade. Apresenta as questões de identidade pessoal e coletiva como processos de interação e conflito. Faz uma crítica aos currículos rígidos e uniformizados das escolas, pontuando que estas ainda não reconhecem as culturas juvenis como possibilidade de inclusão e transformação.

Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos; Juventude; Ambiente Escolar; Socialização.

É notável o crescente interesse que o tema da juventude vem despertando no campo da

Educação de Jovens e Adultos. A preocupação com os jovens na EJA está, em grande medida,

relacionada com a evidência empírica que eles e elas já constituem fenômeno estatístico

significativo nas diversas classes de EJA e, em muitas circunstâncias, representam a maioria

ou quase totalidade dos alunos em sala de aula. Entretanto, para além da dimensão

quantitativa expressa pela presença cada vez mais significativa desses jovens, parece haver

certo ar de perplexidade – e, em alguns casos, de incômodo revelado – frente a sujeitos que

emitem sinais pouco compreensíveis e parecem habitar mundos culturais reconhecidos por

alguns professores como social e culturalmente pouco produtivos para o desafio da

escolarização. Ou se pensarmos nos termos da reflexão de Pierre Bourdieu, jovens oriundos

de famílias com baixo “capital cultural” e que experimentaram acidentadas trajetórias que os

afastaram do “tempo certo” da escolarização.

Alguns professores (e também alunos mais idosos) parecem convencidos de que os

jovens alunos da EJA vieram para perturbar e desestabilizar a ordem “supletiva” escolar.

Outros, demonstram sua vontade em aprofundar processos de interação mas reconhecem seus

limites para despertar o interesse desses que, sob certos aspectos, se apresentam como

“alienígenas em sala de aula” (Green & Bigum, 1995). Quais estratégias poderiam

despertar os sentidos para uma presença culturalmente significativa dos jovens da EJA

23 Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense - Pesquisador do CNPQ- email:[email protected]

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no espaço da escola? Esta parece ser uma pergunta chave para a reorganização curricular e a

articulação de processos educativos social e culturalmente produtivos no cotidiano escolar.

Para enfrentar o desafio disso que temos chamado de “juvenilização da EJA”,

deveríamos caminhar para a produção de espaços escolares culturalmente significativos para

uma multiplicidade de sujeitos jovens – e não apenas alunos – histórica e territorialmente

situados e impossíveis de conhecer a partir de definições gerais e abstratas. Neste sentido,

seria preciso abandonar toda a pretensão de elaboração de conteúdos únicos e arquiteturas

curriculares rigidamente estabelecidas para os “jovens da EJA”. A aposta – e por extensão

também o risco – estaria na realização do inventário permanente das trajetórias de vida

(Bordieu, 1996) e escolarização e na atenção necessária aos reais interesses e necessidades de

aprendizagem e interação desses sujeitos com os quais estamos comprometidos no tabuleiro

escolar da “segunda chance” que é a EJA. Desta forma, a articulação do processo educativo

dos jovens da EJA deixaria de ser visto apenas como escolarização e assumiria toda a

radicalidade da noção de diálogo da qual nos fala Paulo Freire. Uma ética da compreensão da

juventude que “habita” a EJA. É sobre isso que gostaria de falar.

Compreender. Este é o título de um dos capítulos do livro “A Miséria do Mundo” de

Pierre Bourdieu (1997). O mestre-sociólogo francês alerta para a necessidade de um exercício

de reflexividade frente à interação social entre pesquisador e pesquisado que o processo de

entrevista provoca numa pesquisa. Esta busca do agir reflexivo teria, em última instância, a

finalidade de elaboração de uma comunicação não violenta e que fosse capaz de reduzir os

efeitos da “intrusão” que a situação de entrevista pode significar para o entrevistado. Nas

palavras do próprio Bourdieu (1997):

É efetivamente sob a condição de medir a amplitude e a natureza da distância entre a

finalidade da pesquisa tal como é percebida e interpretada pelo pesquisado, e a finalidade que

o pesquisador tem em mente, que este pode tentar reduzir as distorções que dela resultam, ou,

pelo menos, de compreender o que pode ser dito e o que não pode, as censuras que o

impedem de dizer certas coisas e as incitações que encorajam a acentuar outras (695).

É sob esta perspectiva do estabelecimento de uma relação compreensiva que gostaria

de iniciar nosso diálogo sobre a presença dos jovens na Educação de Jovens e Adultos.

Guardando-se as devidas proporções entre uma situação de pesquisa sob a direção de um(a)

pesquisador(a) e um processo de ensino-aprendizagem conduzido pelo um(a) educador(a), é

possível dizer que estamos diante de um mesmo campo de interação simbólica. Campo capaz

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de produzir (re)conhecimentos e proximidades, mas também distâncias e estranhamentos

entre sujeitos situados em distintos lugares sociais; pesquisadores e pesquisados, professores e

alunos.

O educador e amigo Moacyr de Góes contou-nos uma história que exemplifica a

importância de fazer do gesto educativo uma relação compreensiva. Conto de memória e

mantenho o sentido da narrativa sem preocupar-me com a precisão das palavras. Um padre-

educador da cidade de Natal impressionava a todos com sua capacidade de ensinar o latim a

crianças muito pobres da periferia da cidade. Perguntado sobre o “método” que utilizava para

ensinar, disse: “como faço para ensinar latim ao João? Para ensinar latim ao João eu primeiro

conheci o João. Fui à sua casa, descobri do que ele gostava, descobri sua árvore preferida,

fiquei seu amigo; primeiro conheci o João, o latim veio depois”. Esta é uma história simples

que nos convida a encontrar no sujeito do conhecimento a verdadeira centralidade dos

processos de ensino aprendizagem.

Deixo, então, aos professores e professoras da EJA a tarefa política, educativa e

porque não dizer afetiva de descobrir na recuperação da trajetória de seus jovens alunos e

jovens alunas as “portas de acesso” ao sujeito que pode conhecer na medida em que é re-

conhecido no jogo da aprendizagem escolar. E passo, então, a apresentar alguns elementos

sobre a socialização contemporânea dos jovens que podem contribuir para a compreensão

sobre o que é viver a juventude nos dias de hoje. Parto do princípio de que muitos dos

problemas que os educadores enfrentam nas muitas salas de aula e espaços escolares deste

país com os jovens alunos têm origem em incompreensões sobre os contextos não escolares,

os cotidianos e os históricos mais amplos, em que esses estão imersos. Dito de outra forma

torna-se cada vez mais improvável que consigamos compreender os processos sociais

educativos escolares se não nos apropriarmos dos processos mais amplos de socialização.

Concordo com Marilia Spósito (2003) que defende que adotemos o ponto de vista de

uma sociologia não escolar da escola, ou seja, que busquemos compreender os tempos e

espaços não escolares dos sujeitos jovens que estão na escola mas que não são, em última

instância, da escola. Este jovem aluno cada vez mais jovem que chega às classes de EJA

carrega para a instituição referências de sociabilidade e interações que se distanciam das

referências institucionais que se encontram em crise de legitimação.

O novo público que freqüenta a escola, sobretudo adolescente e jovem, passa

constituir no seu interior um universo cada vez mais autônomo de interações, distanciado das

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referências institucionais trazendo novamente, em sua especificidade, a necessidade de uma

perspectiva não escolar no estudo da escola, a via não escolar (...). A autonomização de uma

sub-cultura adolescente engendra para os alunos da massificação do ensino, uma reticência ou

uma oposição à ação do universo normativo escolar, ele mesmo em crise. A escola cessa

lentamente de ser modelada somente pelos critérios da sociabilidade adulta e vê penetrar os

critérios da sociabilidade adolescente, exigindo um modo peculiar de compreensão e estudo.

(Spósito, 2003:19-20)

Quem, então, é este jovem aluno que chega para a EJA cada vez mais jovem? A

resposta para esta pergunta pode ser encontrada no inventário sobre o surgimento dos jovens

como atores sociais significativos em nossas sociedades. Podem-se apontar algumas

condições históricas, políticas, econômicas e culturais para o surgimento da juventude como

categoria social a partir da década de 50; com o pós-guerra surgem efeitos que incidiram

decididamente sobre o campo das gerações: uma nova ordem internacional geográfica e

politicamente redesenhada na qual os vencedores puderam impor estilos de vida e valores.

Impossível não lembrar aqui do filme Juventude Transviada estrelado por James Dean como

ícone desta emergência da juventude como símbolo de uma época.

Um dos traços civilizatórios mais significativos das sociedades ocidentais é que

crianças e jovens passam a ser vistos como sujeitos de direitos e, especialmente os jovens,

como sujeitos de consumo. A expansão da escola, a criação de mercado cultural juvenil

exclusivo e a postergação da inserção no mundo do trabalho são marcas objetivas da

constituição das representações sociais sobre o ser jovem na sociedade. A realização plena

deste ideal de jovem liberado das pressões do mundo do trabalho e dedicado ao estudo e aos

lazeres é objetivamente inatingível para a maioria dos jovens das classes trabalhadoras.

Entretanto, este ideal-tipo de vivência do tempo juventude é, contudo, visivelmente existente

no plano simbólico.

A juventude é apenas uma palavra, afirmou Bourdieu (1983). Porém, ela é também

uma noção social que assumiu força material inequívoca desde que foi assumida

coletivamente pela sociedade. “... a juventude não é mais que uma palavra, uma categoria

construída, porém as categorias são produtivas, fazem coisas, são simultaneamente produtos

de acordo social e produtoras de mundo” (Reguillo, 2000).

Ainda com Reguillo (2000), apontamos três elementos que dão sentido ao mundo

juvenil e explicam a emergência da juventude como sujeito social:

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1. As inovações tecnológicas e suas repercussões na organização produtiva e simbólica da sociedade – aumentam as expectativas e a qualidade de vida – as pessoas passam mais tempo na escola;

2. A oferta de consumo cultural a partir da emergência de uma nova e poderosa indústria cultural;

3. O discurso jurídico que estabelece o contrato social que prevê formas de proteção e punição aos infratores – as políticas públicas tutelares orientadas para o controle do tempo livre juvenil – a ausência de políticas que apostem na autonomia, na organização e naquilo que os jovens podem fazer sozinhos e com a colaboração dos adultos. Políticas do controle e da percepção do jovem como um carente, um vulnerável ou perigo iminente.

As passagens entre os tempos da infância, da adolescência, da juventude e vida adulta

podem ser entendidas como “acordos societários”. De certa forma, as sociedades estabelecem

acordos intersubjetivos que definem o modo como o juvenil é conceituado ou representado

(condição juvenil). Em algumas sociedades os rituais de passagem para a vida adulta são bem

delimitados e se configuram em ritos sociais. Em nossas sociedades urbanas, principalmente,

as fronteiras encontram-se cada vez mais borradas e as passagens de época não possuem

marcadores precisos. Algumas dimensões marcavam o fim da juventude e a entrada no mundo

adulto: terminar os estudos, conseguir trabalho, sair da casa dos pais, constituir moradia e

família, casar e ter filhos. Estas são “estações” de uma trajetória societária linear que não pode

mais servir para caracterizar a “transição da juventude para a vida adulta”. A perda da

linearidade neste processo pode ser apontada como uma das marcas da vivência da juventude

na sociedade contemporânea. Assim, é preciso ter em conta as muitas maneiras de ser

jovem hoje. Em conjunto com a representação dominante, ou definição etária, sobre aquilo

que é o tempo da juventude, os jovens vivem experiências concretas que se aproximam mais

ou menos da “condição juvenil” representada como a ideal ou dominante. Em outras palavras,

nem todos os jovens vivem a sua juventude como uma situação de trânsito e preparação para

as responsabilidades da vida adulta. Os educadores precisam, então, estar atentos à

pluralidade de situações e trajetórias labirínticas que configuram um quadro múltiplo dos

modos de viver a “transição da vida adulta”. Isso significa dizer, por exemplo, que para

jovens das classes populares as responsabilidades da “vida adulta” chegam enquanto estes

estão experimentando a juventude.

Os baixos níveis de renda e capacidade de consumo redundam na busca do trabalho

como condição de sobrevivência e satisfação de necessidades materiais e simbólicas para a

maioria dos jovens. Isso demarca um modo particular de vivência do tempo de juventude que

não se identifica com aquilo que o senso comum intui como o modelo do jovem com o direito

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assegurado de viver a moratória social (Margulis e Urresti, 1996) que lhe permitiria ser

liberado da necessidade do trabalho, dedicar-se à formação, aos estudos, ao associativismo e

aos lazeres. A trajetória de busca e inserção no mundo do trabalho dos jovens, especialmente

os das famílias mais pobres, é incerta, ou seja, estes ocupam as ofertas de trabalho disponíveis

que, precárias e desprotegidas em sua maioria, permitem pouca ou nenhuma possibilidade de

iniciar ou progredir numa carreira profissional. A informalidade é crescente à medida que se

desce nos estratos de renda e consumo do beneficiário do emprego. O aumento da

escolaridade, em geral, coincide com maiores chances de conseguir empregos formais, algo

decisivo para os jovens, considerando que o desemprego juvenil no Brasil é, em média, quase

três vezes maior que o do conjunto da população.

Participação juvenil e escolarização

Quanto à qualidade do ensino (fundamental e médio), a situação brasileira é de

crescente piora nos índices de qualidade que afeta, de forma mais intensa e preponderante, a

rede escolar pública. As desigualdades regionais e intra-regionais que se verificam nas

estruturas básicas da vida material também se expressam na diferenciação do acesso e

permanência na escola, aos aparelhos de cultura e lazer e aos meios de informação,

especialmente no difícil acesso dos jovens mais empobrecidos a computadores e Internet. Isso

é algo que se configura como a face contemporânea da histórica exclusão dos pobres aos

benefícios científicos e tecnológicos nas sociedades do modo de produção capitalista,

particularmente quando se consideram aqueles situados na periferia do sistema. As melhores

condições de acesso à informação e aos bens culturais, somados a maior escolaridade,

colocam os jovens das classes altas em posições mais favoráveis à participação social, cultural

e política. Pesquisas apontam que a participação estudantil, por exemplo, é quantitativamente

superior nos estratos que representam os jovens mais ricos e escolarizados (IBASE/POLIS,

2005; Abramo & Branco, 2005). Para aqueles que lograram chegar ao ensino médio é

acentuada a distorção idade-série que demonstra o percurso intermitente – reprovações,

abandonos e retornos – dos jovens pobres em sua relação com a escola. É preciso considerar

que o acesso aos mais altos níveis da educação escolar é elemento chave para ampliar

possibilidades de participação no mundo social e também para propiciar situações de

engajamento e de aprendizado ligados às próprias instituições de ensino.

Além das dificuldades de acesso e permanência na escola, os jovens enfrentam a

realidade de instituições públicas que se orientam predominantemente para a oferta de

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conteúdos curriculares formais e considerados pouco interessantes pelos jovens. Isso implica

em dizer que as escolas têm se apresentado como instituições pouco abertas para a criação de

espaços e situações que favoreçam experiências de sociabilidade, solidariedade, debates

públicos e atividades culturais e formativas de natureza curricular ou extra-escolar.

Pesquisa recente (IBASE/POLIS, 2005) revelou a percepção de jovens que dizem que

a escola não abre espaços nem estimula a criação de hábitos e valores básicos da participação.

Esta situação é mais grave para os jovens pobres que praticamente só possuem esta instituição

para o acesso a estes bens simbólicos. É possível afirmar que se encontra configurada uma

nova e refinada desigualdade formativa entre os jovens segundo a inserção de classe,

especialmente, quanto à participação em cursos de informática, língua estrangeira, esportes,

artes e cursos pré-vestibulares. A vantagem, também neste caso, pende para os jovens mais

ricos e estudantes das escolas particulares. A escolarização é determinante para a prática da

leitura; os dados da pesquisa acima referida informam que os jovens mais escolarizados lêem

mais, assim como estudantes de escolas públicas lêem menos que os jovens das escolas

privadas.

O desafio da interpretação dos sinais emitidos pelos jovens

O sociólogo italiano Alberto Melucci (2004 e 2001) afirmou que os jovens são a ponta

de um iceberg que se compreendida pode explicar as linhas de força que alicerçarão as

sociedades no futuro. Hoje, os jovens possuem um campo maior de autonomia frente às

instituições do denominado “mundo adulto” para construir seus próprios acervos e

identidades culturais. Há uma rua de mão dupla entre aquilo que os jovens herdam e a

capacidade de cada um construir seus próprios repertórios culturais. Este maior campo

simbólico que os jovens possuem para se fazerem sujeitos a partir de escolhas não

determinadas pelos adultos e as instituições é fonte de muita tensão nos ambientes familiares

e escolares. Outro sociólogo, o português Machado Pais (2006), compara esta autonomia do

presente com o passado trazendo as noções de espaços lisos e estriados. Se no passado os

jovens transitavam por espaços estriados com as marcas das imposições dos adultos, hoje, os

espaços estão relativamente lisos para que os jovens imprimam suas próprias marcas. Isso

significa dizer que um dos princípios organizadores dos processos produtores das identidades

diz respeito ao fato dos sujeitos selecionarem as diferenças com as quais querem ser

reconhecidos socialmente. Isso faz com que a identidade seja muito mais uma escolha do que

uma imposição.

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Não estou querendo dizer, contudo, que os sujeitos são totalmente livres para construir

as suas próprias identidades. Nascemos em determinada classe, cidade e país. Nosso corpo

traz marcas que nos distingue positiva ou negativamente na sociedade. Nossos pais nos legam

determinados capitais culturais mais ou menos vantajosos para a integração social. Digo isso

para criticar a tese pós-moderna do nomadismo, ou seja, de que a identidade é um campo

de livre escolha. O que somos seria apenas uma questão de força de vontade. Isso não é

verdadeiro. Quando as oportunidades objetivas de inserção e integração social são

extremamente desiguais compromete-se o campo simbólico de autonomia de determinados

sujeitos desigual e inferiormente posicionados na sociedade. Bourdieu cria a metáfora das

linhas do metrô de Paris que nos apresenta muitas opções de deslocamento, mas, ainda sim,

limita nossos trajetos uma vez que as linhas são previamente construídas. Somos, em verdade,

o resultado de complexo jogo de interações entre nossas escolhas individuais, as relações

intersubjetivas e as coerções que nos impõem as estruturas sociais.

A questão da identidade pessoal e coletiva precisa ser concebida como um

processo de interação e conflito. Os sujeitos, ao elegerem uma identidade colocam-se em

conflito com outros que a contestam. E a solução dos conflitos está relacionada com os

recursos disponíveis aos contendores. A capacidade de escuta e argumentação são dois

recursos fundamentais que quando deixam de existir provocam situações de violência. É

importante que os educadores percebam isso, pois, muitos dos conflitos mal resolvidos

existentes entre os jovens entre si e entre estes e as instituições são provocados pelas

dificuldades de tradução de sinais que não são decifrados adequadamente pelos sujeitos

envolvidos. É nesta situação que se processa uma crise de sentidos entre jovens, instituições

e sujeitos adultos. As instituições parecem não perceber que não se pode educar ou

negociar valores na ausência de uma linguagem em comum e de espaços democráticos

onde os conflitos possam ser mediados.

Outra fonte de tensão entre jovens e educadores encontra-se na entrada das culturas

juvenis nos espaços escolares. As expressões juvenis estão voltadas para a coesão de seus

grupos de referência – aquilo que chamamos por vezes de referências tribais – códigos,

emblemas, valores e representações que dão sentido ao pertencimento a grupos. A relação dos

jovens com seus grupos de referência provoca choques com os valores das instituições

(especialmente a escola e a família). O mercado tem conseguido ser muito mais hábil em

perceber estes sinais para dialogar lucrativamente com as culturas juvenis e gerar espaços de

pertencimento. As escolas por sua vez...

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As identidades juvenis podem ser compreendidas a partir de três recortes. O primeiro

recorte se refere ao espaço que se desdobra em duas dimensões: o espaço dado e o território

como espaço construído. O espaço dado é representando pela cidade que preexiste aos

indivíduos. O território, entretanto, é o espaço cotidiano construído pelos atores juvenis. O

espaço nesta perspectiva se torna uma extensão do próprio sujeito onde se mesclam a

identidade e a memória do grupo. O segundo recorte se relaciona com a alteridade, a

necessidade do outro para a constituição do “nós” do grupo. O terceiro recorte se refere à

necessidade de a identidade se mostrar para se manter. Os jovens atores urbanos transformam

o espaço dado e anônimo da cidade em território onde constroem laços objetiváveis,

comemoram-se, celebram-se, inscrevem marcas exteriores em seus corpos que servem para

fixar e recordar quem são. Essas marcas se relacionam com processos de representação,

verdadeiras objetivações simbólicas que permitem distinguir os membros dos grupos no

tempo e no espaço (Cruz, 1995). As marcas podem ser objetivadas no próprio corpo (uma

tatuagem) ou mesmo habitar o corpo com adereço da identidade pessoal e coletiva. Quantas

vezes não assistimos conflitos provocados, por exemplo, pelo uso de bonés e outros signos de

identidade em escolas que não permitem essas referências nos espaços escolares?

Os jovens moradores de espaços populares produzem territórios de identidade, muitas

vezes, transformando estigmas em símbolos de afirmação coletiva. Este parece ser o caso de

bonés, roupas e músicas que “incomodam” aqueles que não pertencem ao grupo mas que

contribuem para dar visibilidade social aos sujeitos. A relativa ignorância dos adultos acerca

dos sentidos das práticas juvenis é frequentemente fonte de mal-entendidos, incompreensões e

intolerâncias.

Pais (2003) compreende as razões pelas quais os jovens podem identificar o espaço

escolar como desinteressante, uma vez que eles não se reconhecem numa instituição onde

suas culturas não podem se realizar nem tampouco podem se fazer presentes. Parece não

haver chance de negociações entre os espaços lisos – que permitem aos jovens transitar sem

as marcas prévias das instituições do mundo adulto – e os espaços estriados – cujas principais

características seriam a ordem e o controle. Para esse pesquisador português, a escola, apesar

de ser um espaço onde o jovem pode gostar de estar presente, ainda não reconhece as culturas

juvenis como possibilidade de inclusão e transformação. É exatamente isso que tais culturas

(re)clamariam: inclusão, reconhecimento e pertença. Parece que nos encontramos, então,

diante de um paradoxo: a escola tem como uma de suas marcas históricas o conservadorismo,

a manutenção das relações de poder e, as culturas juvenis, em sua maioria, têm o gosto pela

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mudança. O que fazer, pergunta José Machado Pais: transformamos a escola, ameaçando com

isso as relações sociais ou silenciamos a juventude negando os jovens como sujeitos

possuidores de culturas próprias?

Junto com o reconhecimento e o acolhimento da diversidade cultural juvenil a

instituição escolar deveria ser também espaço público de experimentação e aprendizagem da

vivência da cultura democrática. Os grupos juvenis, por si só, são espaços insuficientes para a

vivência da vida pública. Mas como o jovem pode aprender a ser sujeito da vida democrática?

Concordo com Touraine (2000) quando este diz que o indivíduo se faz sujeito quando

consegue articular um “projeto de vida”. Esta idéia de sujeito combina três elementos: 1. A

resistência à dominação; 2. O amor de si mesmo – a liberdade pessoal como condição

principal de sua felicidade e objetivo central; e 3. O reconhecimento dos demais sujeitos e o

respaldo dado às regras políticas e jurídicas que dão ao maior número de pessoas as

maiores possibilidades de viver como sujeitos. Estes são princípios que enxergam a

democracia como cultura a ser aprendida e praticada e não apenas um conjunto de regras

institucionais.

As escolas deveriam se perguntar permanentemente sobre os esforços que têm sido

empreendidos para que os jovens encontrem as condições necessárias de se fazerem sujeitos

de suas próprias vidas e também sobre como promover processos de socialização que

orientem os jovens para a vivência de culturas democráticas. É neste sentido que o tema da

violência não deveria ser reduzido a uma questão de segurança pública somente, mas tratado

como assunto cultural e político. Quando a noção de público perde sua força articuladora,

quando se evaporam as razões para se “estar juntos” fortalece-se a noção de que a violência

pode ser uma solução possível para os conflitos e de que as formas paralelas de ilegalidade

podem ser alternativas para a resolução dos problemas.

Um dos grandes desafios da contemporaneidade passou a ser a construção da unidade

social em sociedades marcadas por significativas diferenças e desigualdades pessoais e

coletivas. Escutar a si e ao outro se torna, portanto, a condição para o reconhecimento e

a comunicação. Esta parece ser uma das mais importantes tarefas educativas, hoje: educar

para que os sujeitos reconheçam a si mesmos e aos outros em esferas públicas democráticas.

Isso, talvez, seja mais significativo do que ensinar conteúdos que podem ser aprendidos em

muitos outros espaços e tempos. Para escutar numa relação solidária é preciso, contudo,

assumir a própria identidade, entrar em relação com a diferença e rejeitar as desigualdades

que venham a configurar a constituição das coletividades humanas.

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A presença de jovens alunos na EJA deveria ser expressão de que a escola é parte

efetiva de seus projetos de vida. E de que eles e elas estão exercendo seus direitos à educação

básica republicana e de qualidade e não apenas participando de um mero jogo funcional de

correção de fluxo escolar ofertado em instituições de espaços e tempos deteriorados.

Articulando currículos e espaços-tempos escolares culturalmente significativos

Os educadores da EJA têm o desafio de trabalhar numa modalidade da educação na

qual a homogeneidade dos sujeitos não é a tônica dominante. A idéia de homogeneidade – de

faixas etárias, de tempos de aprendizagem, de conhecimentos etc – que pode até fazer algum

sentido em algumas circunstâncias educacionais, é, por definição, inviável nos tempos e

espaços da EJA. Nos espaços da EJA os sujeitos são múltiplos e ainda que existam sujeitos

com perfis similares é preciso estar atento para as trajetórias de vida que sempre são

singulares e portadoras de potencialidades que podem não se revelarem de imediato. O

desafio do conhecimento na EJA não pode ser circunscrito àquilo que alunos e alunas devem

aprender, ele também é provocação para que educadores e educadoras aprofundem seus

conhecimentos – suas compreensões – sobre seus sujeitos da aprendizagem. Já que não temos

a resposta, podemos caprichar na pergunta: como contribuir para a constituição de uma escola

flexível em conjunto com esses múltiplos sujeitos da EJA que chegam até nós com as

marcas da desigualdade de oportunidades (Ribeiro, 2004)?

Aprender a trabalhar com as experiências prévias dos jovens alunos, aliás, que estes

sejam entendidos como sujeitos culturais e portadores de biografias originais e não apenas

alunos de uma dada instituição. O mito da intencionalidade pedagógica como a viga mestra da

educação não permite a emergência dos acasos significativos, das surpresas reveladoras, da

escuta do outro e nem permite que alunos e professores corram o risco da experimentação. Os

jovens, mesmo aqueles das periferias onde cidade não rima com cidadania, são mais plurais

do que aquilo que a instituição escolar deseja receber. A escola espera alunos e o que chega

são sujeitos com múltiplas trajetórias e experiências de vivência do mundo. São jovens que,

em sua maioria, estão aprisionados no espaço e no tempo – presos em seus bairros e

incapacitados para produzirem projetos de futuro. Sujeitos que, por diferentes razões, têm

pouca experiência de circulação pela cidade e se beneficiam pouco ou quase nada das poucas

atividades e redes culturais públicas ofertadas em espaços centrais e mercantilizados das

cidades. Jovens que vivem em bairros violentados, onde a violência é a chave organizadora

da experiência pública e da resolução de conflitos.

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Talvez seja possível pensar as possíveis reorganizações curriculares não apenas como

estratégias funcionais de favorecer o ensino-aprendizagem, mas como políticas educativas e

culturais que permitam reorganizar espaços e tempos de compartilhamento de saberes,

ampliar a experiência social pública e o direito de todos às riquezas materiais e espirituais das

cidades. Por que não pensar o currículo como tabuleiro de xadrez, onde algumas peças se

movem com alguma previsibilidade e linearidade e outras peças como cavalos, reis e rainhas

que fazem movimentos surpreendentes. Esta é uma metáfora de crítica aos currículos rígidos

e uniformizadores que tentam comunicar e fazer sentido para sujeitos de múltiplas

necessidades e potencialidades. É assim que enxergo o desafio cotidiano de organização de

currículos flexíveis capazes de comunicar aos sujeitos concretos da EJA, sem que com isso se

abdique da busca de inventariar permanentemente a unidade mínima de saberes em comum

que as escolas devem socializar.

Não se trata, contudo, de negar o planejamento pedagógico (da intenção do plano),

mas de praticar a escuta e a atenção que pode nos lançar para o plano dos afetos, das trocas

culturais e do compromisso político entre sujeitos de diferentes experiências e idades. Por que

não? Não é isso que as pesquisas e a nossa própria experiência têm narrado, ou seja, que são

aqueles espaços, tempos e sujeitos escolares nos quais os alunos e alunas encontram atenção e

cuidado que lhes fortalece o sentido de presença na instituição escolar?

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Educação de Jovens e Adultos: movimentos pela consolidação de direitos Jane Paiva

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Resumo: O presente artigo discute o papel fundamental da constituição dos Fóruns de EJA em todo o país, nos últimos 11 anos, para o estabelecimento de uma grande rede de articulação na luta pelo direito à educação de jovens e adultos. Tais Fóruns têm como principal objetivo inverter o rumo histórico das agendas públicas dos governos federal, estaduais e municipais, quando a EJA tinha lugar quase invisível, defendendo a implantação e a consolidação de importantes conquistas legais. Reconhecer a educação como um direito para todos os segmentos populacionais (independente de classe, raça, gênero, idade) ainda faz parte da luta pela construção de uma sociedade cidadã e plural. Nesse sentido, inserir a educação de jovens e adultos efetivamente no conjunto das políticas públicas de direito se torna um desafio para diferentes governos e para a sociedade como um todo. Diante desse cenário, o movimento dos Fóruns ganha expressão, por meio da construção de uma agenda pela EJA, que vem sendo sustentada pela mobilização de amplos setores da sociedade organizada, congregando movimentos sociais e sindicais, organizações não-governamentais, entidades de pesquisa, universidades e setores técnicos.

Palavras-chaves: Educação de Jovens e Adultos; História da Educação; Políticas Públicas; Fórum de Educação de Jovens e Adultos .

A constituição de fóruns em todo o país, nos últimos 11 anos, estabeleceu uma grande rede de

articulação para lutar pelo direito à educação de jovens e adultos (EJA). Com o principal objetivo de

inverter o rumo histórico das agendas públicas dos governos federal, estaduais e municipais, quando a

EJA tinha lugar quase invisível, vivem os fóruns, ao longo desse tempo, o papel central de

protagonistas em defesa da implantação e consolidação de importantes conquistas legais. Essas

conquistas não dispensam o revisionamento de sentidos e práticas incorporados à EJA, o que, em

verdade, é mais difícil do que formular leis.

Educação como direito humano fundamental tem sido a premissa básica dos que defendem a

educação para todos e alargam os sentidos da inclusão. Em se tratando de educação de jovens e

adultos, no entanto, o caminho se alonga, diante de significativas conquistas legais, mas de poucas

práticas expressivas.

Desde 1990, com a Conferência de Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia, o realce

dado à educação ao longo da década deixou marcas históricas. Entendendo a educação não apenas

como tarefa dos sistemas educativos, mas em diferentes campos da ação humana, como elemento

central para construção social, política e cultural de um povo, ampliou sua abrangência de forma a

incluir as necessidades básicas de aprendizagem, tanto no domínio da escrita, da leitura e da

aritmética, como também no fortalecimento da visão ética de jovens e adultos, valorizando as

aprendizagens ativas, revalorizando o aporte cultural de cada pessoa e comunidade e incentivando a

solidariedade.

Desde a Conferência do Meio Ambiente (ECO-92) no Rio de Janeiro, quando se iniciou o ciclo

de conferências da ONU preparatórias para o terceiro milênio; passando pela de Mulheres em Beijing

24 Profª. da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da área de educação de jovens e adultos. Drª. em Educação pela Universidade Federal Fluminense.

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em 1994; de Assentamentos Humanos (HABITAT II) em Istambul em 1996; a de Educação de

Adultos (V CONFINTEA) em Hamburgo, em 1997; de Populações, no Cairo, em 1998, entre outras,

chegando à de Dacar, em abril de 2000, marcando dez anos de Jomtien, para o balanço da década, o

lugar da educação esteve mantido para acordar com os países metas e pontos de chegada, em defesa de

um novo século que se aproximava, mais humano, mais igual, menos apartador.

Contraditoriamente a esse pacto internacional, discutido e firmado pelos países membros da

ONU em declarações, agendas e outros documentos — que entre nós têm força de lei — a política

educacional em todo o mundo seguiu de marcha-a-ré em relação a investimentos, recursos e

prioridades a ela dispensados. As concepções sobre educação como serviço, e não como direito,

tensionando as conquistas das populações, ainda se coloca como uma espada que a Organização

Mundial do Comércio (OMC) brande contra os países mais pobres, em busca do máximo lucro até em

setores antes preservados no modelo capitalista.

Dacar, no balanço realizado, feito sobre as metas fixadas em Jomtien, constatou que todos os

países, sem exceção, chegaram ao ano 2000 em situação educacional mais precária do que tinham em

1990, investindo menos do que o faziam há dez anos. Nessa trajetória, ganharam destaque os

organismos multilaterais que atuam na questão educacional e que, de modo geral, têm tido importância

central na difusão de novas abordagens, responsáveis ainda pelo financiamento de inúmeros projetos

de impacto sobre os países em desenvolvimento. Entretanto, os projetos, concebendo a educação como

serviço prestado/mercadoria ou como ações de cunho compensatório, desmontam e reorientam

políticas em países periféricos, influindo desde o currículo aos sistemas de avaliação; do ensino

fundamental à universidade e à pós-graduação, no que tange à educação, à ciência e à tecnologia.

Reconhecer a educação como um direito para todos os segmentos populacionais, independente

de classe, raça, gênero, idade entre outros ainda faz parte da luta pela construção de uma sociedade

cidadã e plural.

Nesse quadro, inserir a educação de jovens e adultos efetivamente no conjunto das políticas

públicas de direito é um desafio para diferentes governos e para a sociedade como um todo. Beisiegel

(1997, p. 31) alerta que:

[...] durante muito tempo ainda, as miseráveis condições de vida de amplos setores da população e as condições de funcionamento do próprio sistema no país continuarão a produzir elevados contingentes de jovens analfabetos. O sistema escolar não pode ignorá-los.

Dessa forma, a sociedade civil ganha um papel extraordinário na consolidação de direitos,

particularmente os relacionados à EJA. A despeito do reconhecimento dessa realidade, constatam-se

avanços significativos no campo das ordenações jurídicas, legislações, acordos, ampliação do acesso e

o reconhecimento de novas práticas em que o sujeito ganha centralidade nos processos educacionais.

Assim, a formulação e execução de novas políticas públicas acompanham um movimento da

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sociedade organizada, não como espaço de outorga do Estado, mas como movimento de resistência,

levando à incorporação de direitos e, conseqüentemente, à perspectiva de inclusão de uma diversidade

de sujeitos. Tal movimento ganha expressão, por meio da construção de uma agenda pela EJA, que

vem sendo sustentada pela mobilização de amplos setores da sociedade organizada, congregando

movimentos sociais e sindicais, organizações não-governamentais, entidades de pesquisa,

universidades e setores técnicos.

Este é, sem dúvida, o dilema do mundo contemporâneo, que mesmo em regimes produtores de

exclusão, obrigatoriamente carece do fortalecimento de uma concepção de educação voltada para o

regime de colaboração entre as esferas governamentais e não-governamentais, em que,

necessariamente, a sensação de agravamento da exclusão social demanda do Estado políticas públicas

eficazes na área social, principalmente voltadas para os setores populacionais mais vulneráveis às

transformações econômicas.

Sendo assim, os modelos de gestão baseados no desenvolvimento de articulações vêm-se

mostrando como caminhos bastante promissores, tanto no sentido de agilizar as ações da área social

quanto de contribuir para a democratização do Estado. Certamente, pela consolidação de modelos de

gestão baseados no diálogo com a sociedade organizada, não mais se reproduzirá o desrespeito à

conquista constitucional do direito de todos à educação, como aconteceu no Brasil na última década,

expressa pela prioridade quase absoluta à universalização do ensino fundamental, justificando a opção

e o descaso com a EJA pela idéia obsoleta de que se todas as crianças forem alfabetizadas, “fecha-se”

a torneira que produz o analfabetismo e a baixa escolaridade do jovem e adulto.

Nesse sentido, o desafio está em assumir a necessidade de se pensar a alfabetização no

contexto da continuidade da EJA, já que a pirâmide etária da população analfabeta mostra que a

condição de analfabeto não é limitada à população idosa: o nível é também alto entre crianças, jovens

e adultos (SOUZA, 1999, p. 17). As elevadas taxas de baixa escolarização ou escolarização precária

entre os jovens garantem a manutenção dos índices de analfabetismo na população. Souza (1999, p.

17) alerta, que “[...] se não forem revertidas as condições de propagação da população com baixo

nível educacional através das gerações, fração significativa da população se encontrará em situação

de pobreza educacional nas próximas décadas”. O que significa dizer que, considerando as condições

existentes hoje, o Brasil só se aproximaria dos índices de outros países sul-americanos na década de

2010. Dessas políticas equivocadas, à Lei do FUNDEF25 excluindo as matrículas de jovens e adultos

da contagem, com vista a recursos, tudo foi promovido pela inspiração em modelos centralizadores,

unificados e “aplicados” de cima para baixo, pelos que “sabem” e que, por isso mesmo, formulam as

propostas educacionais para os que “não sabem”.

25 FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério/MEC.

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A aprovação recente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de

Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), em substituição ao FUNDEF, parece um

mecanismo de reversão das condições apontadas nos estudos projetados, especialmente porque inclui

na perspectiva do direito não apenas o ensino fundamental, mas toda a educação básica, a saber:

educação infantil (de 0 a 6 anos); ensino fundamental; ensino médio e a modalidade educação de

jovens e adultos (nos níveis fundamental e médio). Caminha-se, assim, pela iniciativa da reserva de

recursos, para a expansão do direito constitucional até o ensino médio, incluindo a educação infantil.

Construindo novos espaços de luta política

Nesse contexto histórico, profissionais da educação de diferentes setores governamentais e

não-governamentais do estado do Rio de Janeiro, no Brasil, foram pioneiros ao assumir o desafio de

construir novas relações, tendo por objetivo principal a discussão das políticas educacionais

determinantes do cotidiano dos vários segmentos da educação e a socialização de informações de

cunho político, pedagógico, administrativo, financeiro etc.

Com essas preocupações, iniciou-se em junho de 1996, quando da discussão nacional

preparatória para a V Conferência Internacional de Educação de Adultos, uma estratégia de

incorporação da EJA aos direitos expressos em políticas públicas, pautada na articulação informal de

entidades públicas, não-governamentais e educadores em geral, conhecida como Fórum de Educação

de Jovens e Adultos. Este, o primeiro instalado, seguindo-se a ele o Fórum Permanente de Educação

Infantil. Mais adiante, foram criados, também no Rio de Janeiro, os Fóruns de Educação Especial, de

Ensino Médio e de Financiamento da Educação, todos de periodicidade mensal. No correr do tempo,

apenas o de EJA e o de Educação Infantil conseguiram se manter íntegros, sem rupturas de qualquer

espécie.

Por articulação informal, deve-se entender que os Fóruns não têm “dono”, não são propriedade

de nenhuma instituição, mas resultam do esforço político de várias pessoas/entidades que acreditam na

idéia e na possibilidade de gestão compartilhada e cooperativa para tomar decisões e propor

alternativas. Significa dizer que o poder circula, não está centralizado, não é hierárquico. Além disso,

por não exigir representação de entidades, seus participantes são autônomos nas deliberações que

tomam, independente das posições e cargos que ocupam, o que implica, necessariamente, uma

negociação constante dos “desejos” acordados nos Fóruns com os limites expressos pelos poderes

constituídos em todos os níveis. Por meio deles, foi possível fortalecer e consolidar uma rede de

saberes de baixa competitividade e alta cooperatividade, permitindo que todos assumam lugares iguais

nas negociações que são ali estabelecidas.

Tal estratégia, certamente, contribuiu para a desconstrução de posturas e atitudes

centralizadoras, adquiridas ao longo de muitos anos em nossa sociedade, possibilitando o

estabelecimento de relações paritárias e solidárias, fatores decisivos para um processo de

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democratização da educação nas esferas locais, como preconiza a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional — Lei nº. 9394, de 20/12/1996 (LDBEN).

Questões como essas, trazidas à tona na trajetória dos Fóruns, conferem a eles o caráter de

vasto campo de investigação, sobretudo pelo desconhecimento que ainda se revela acerca das

instâncias locais de ação política e de administração públicas.

O crescimento do Fórum de EJA/RJ ocorreu na mesma proporção em que passou a abordar,

progressivamente, temas variados, abrangentes e afetos às questões prementes do cotidiano dos

educadores e das redes públicas, funcionando, muitas vezes, como espaço privilegiado de formação.

Guarda, ainda, como característica marcante, o fato de contribuir para a ampliação dos olhares

voltados para a educação e para a interlocução de diferentes posições políticas, sem que isto signifique

adesão a uma específica. Por ser aberto a todos, aos poucos a participação de secretarias municipais de

educação e de outros órgãos de governo tornou-se tão significativa quanto a de educadores

independentes, de instituições privadas e de organizações não-governamentais, de universidades, de

entidades filantrópicas e de movimentos sociais.

Aspecto fundamental do sucesso dessa experiência é o fato de o Fórum não constituir instância

formalmente vinculada a determinado órgão ou entidade. Apenas manteve, sempre, uma secretaria

assumida por uma entidade, para as tarefas de rotina, como o envio de correspondência, de mensagens

eletrônicas, de informações e a organização das reuniões mensais, mobilizando recursos disponíveis na

instituição que o sedia, temporariamente, sem, no entanto, deter controle institucional sobre ele, o que,

sem dúvida, mantém e legitima as ações realizadas. A instância deliberativa das atividades do Fórum é

a plenária, que toma decisões sobre os eventos, convidados, temáticas, outras participações e tomadas

de posições políticas.

O modelo de gestão adotado pelo Fórum EJA/RJ sustenta-se, basicamente, no compromisso

político e técnico dos partícipes. O regime de colaboração tem possibilitado desenvolver ações

altamente qualificadas a custos irrisórios, a partir dos recursos disponíveis para as práticas de rotina

das diversas instâncias envolvidas.

Tão pesada quanto a iníqua distribuição da riqueza e da renda é a brutal negação que o sujeito iletrado ou analfabeto pode fazer de si mesmo no convívio social. Por isso mesmo, várias instituições são chamadas à reparação desta dívida. Este serviço, função cogente do Estado, se dá não só via complementaridade entre os poderes públicos, sob o regime de colaboração, mas também com a presença e a cooperação das instituições e setores organizados da sociedade civil. A igualdade e a liberdade tornam-se, pois, os pressupostos fundamentais do direito à educação, sobretudo nas sociedades politicamente democráticas e socialmente desejosas de uma melhor redistribuição das riquezas entre os grupos sociais e entre os indivíduos que as compõem e as expressam. (Parecer CEB, 2000, p. 7).

A experiência fluminense deu frutos em muitos outros Estados, com a colaboração de pessoas

do Rio de Janeiro, e depois de outras pessoas dos fóruns que se iam formando, para iniciar atividades

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semelhantes. Com isso, já se contabilizam na atualidade 26 Fóruns estaduais e um distrital (DF), além

de 52 fóruns regionais, representando uma importante rede nacional.

Cada um desses Fóruns tem modelos diferenciados, modos de organização e de operação,

exigindo estudos e conhecimento de suas formas de gestão; da resistência feita às propostas

homogeneizantes que encontram acolhida em governos autoritários; e o fortalecimento de seus modos

de operação (como constituidores de núcleos de poder).

Assumindo o Fórum EJA/RJ como movimento social

Uma nova forma de participação e de exercício da democracia, no interior dos movimentos

sociais teve o significado de resistência ao regime vigente, especialmente durante os anos de chumbo,

assim chamados os tempos de ditadura militar no Brasil, que acompanhou os vários regimes

autoritários de países latino-americanos.

Os estudos de Sader (1988), ao buscar compreender a luta dos trabalhadores no Brasil, no

período 1970 a 1980, apontam o surgimento de novos atores sociais, ampliando e diversificando os

novos grupos organizados em defesa de direitos: por moradia e terras, e por direitos sociais e culturais

modernos. A esses novos movimentos populares, em disputa por interesses relacionados a outras

ordens do direito, chamaram-se novos movimentos sociais, cujo eixo das reivindicações era por

liberdade e justiça social. Não apenas sindicatos ou partidos políticos tomavam a si a bandeira desses

princípios, o que fez haver uma multiplicidade e ampliação de grupos sociais organizados de

diferenciadas maneiras.

A distensão política e a ruptura com o modelo autoritário e a volta da democracia, em meados

da década de 1980, fazem declinar a participação popular, denominada pelos analistas como crise dos

movimentos sociais, que perdem visibilidade e poder de pressão, conquistados no longo período

anterior. Para Gohn (2005), isto não significa o fim dos movimentos, nem o enfraquecimento de sua

representação no cenário sociopolítico, mas sim a reorganização interna e externa quanto à sua atuação

e seu papel na sociedade.

A partir daí, e por toda a década de 1990, o enfoque dos movimentos ultrapassa as questões do

trabalho, que caracterizaram também os anos 1980 e 1970, para assumirem novas demandas de origem

não-popular, tais como o direito de mulheres, de um ambiente sustentável, de opção sexual etc.,

traduzindo uma categoria de direitos de quarta geração, contrapondo-se “às visões totalizadoras e

macrossociais que só destacavam os sujeitos sociais do mundo do trabalho” (GOHN, 2005, p. 73-74).

Outros significados vão sendo incorporados na política, concentrados no cotidiano e

organizados, na recém-sociedade democratizada, contra a sociedade política, representada por seus

aparelhos e, principalmente, pelas políticas públicas. ONGs e o chamado terceiro setor disputam com

os novos movimentos alianças e parcerias por demandas sociais, junto ao poder público, e conflitos se

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estabelecem com lideranças dos movimentos sociais, pela cooptação freqüente desses atores pelas

instâncias de poder, tanto pelo apoio à institucionalização dos grupos que representam como à

participação em cargos públicos. A política neoliberal desse tempo histórico acirra as contradições dos

movimentos e desqualifica as lutas, produzindo alternativas individualistas sedutoras que

desmobilizam e enfraquecem a luta coletiva, por resolverem situações individualizadas difíceis,

produzidas pelas novas exclusões que o neoliberalismo traz como fundamento do modelo.

Na área da educação, movimentos, fóruns, conselhos passam a constituir as bases do

funcionamento das escolas públicas de ensino fundamental e de políticas voltadas para crianças e

adolescentes, resguardando espaço para representações da sociedade civil, o que passa a ser incluído

na agenda dos movimentos: a construção de uma nova forma de expressar a cidadania.

O Fórum EJA/RJ surge, então, nesse contexto, como um novo movimento social, na metade

dos anos 1990, instaurando também novos métodos de ação, práticas e, no contexto político

contemporâneo desempenha papel relevante, na contribuição à formulação de políticas públicas para a

EJA, consolidando-se como importante articulador político, local e nacional, para a área.

Sustentar o Fórum como um típico movimento social tem apoio em Gohn (2002, p. 251-252),

para quem movimento social é:

[...] ação sociopolítica construída por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura econômica e política de um país, criando um campo político de força social na sociedade [...] trata-se de coletivos que no processo de ação sociopolítica desenvolvem uma identidade de forma que se apresentam como atores coletivos.

Quando se observa o Fórum, percebe-se que se configura como um espaço em que diversos

atores sociais, de diferentes concepções, identificam-se em torno da problemática das políticas de EJA

no país, unem forças e criam estratégias que, para Certeau (1994, p. 99), significam o controle de

relações de poder a partir do momento em que o “sujeito de querer e poder” pode afastar-se das

situações conflitantes do cotidiano, conferindo uma visão ampliada sobre os “alvos”. Pela estratégia é

possível dominar elementos que permitem controlar uma relação ou adversário e constituir um novo

poder.

Certeau (1994) também permite compreender o lugar do Fórum pela autonomia, indo além das

táticas para tentar alterar a realidade da educação de jovens e adultos, pois o que se “ganha pelas

táticas não se conserva”. O poder de pressionar e propor alternativas ao modelo vigente, criando uma

identidade coletiva de diferentes representações possibilita atuar por meio de estratégias, podendo

prever situações, antecipar-se às ações do poder público com postulação teórica própria, “que sustenta

e determina o poder de conquistar para si um lugar próprio”. (CERTEAU, 1994, p. 100).

A identidade, no entender de Gohn (2002) e Melucci (2001), é consolidada pelo princípio de

solidariedade e construída por valores culturais e políticos partilhados pelo grupo, em espaços

coletivos não-institucionais. Também a militância é um princípio inerente aos movimentos sociais e,

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aliada à solidariedade, igualmente induz à identidade coletiva. Intimamente ligada ao envolvimento

político e à convicção, provoca paixões por uma determinada causa e indignação contra injustiças.

Como a solidariedade, a militância manifesta afetividade e sensibilidade do olhar, ao colocar-se no

lugar de outra pessoa, e apesar da ação autônoma dos sujeitos, a luta só é possível pelo coletivo.

(SILVA, 2001 In: www.sedes.org.br/Centros/Cepis . Acesso 28 ago. 2005).

Quando Melucci (2001) trata de solidariedade e militância, reafirma que as diferenças nem

sempre convivem de forma harmoniosa, prevalecendo, no mais das vezes, conflitos e tendências

opostas no interior dos movimentos que, pela negociação põem-se em acordo para defender e propor

causas e tarefas comuns. Nos espaços públicos, os discursos que articulam e as práticas que realizam

criam um imaginário de homogeneidade, negador da democracia, pois esta exige o exercício da

divergência e da pluralidade de pensamentos:

Quando se fala de movimento social, refere-se, geralmente, a um fenômeno coletivo que se apresenta com uma certa unidade externa, mas que, no seu interior, contém significados, formas de ação, modos de organização muito diferenciados e que, freqüentemente, investe uma parte das suas energias para manter unidas as diferenças. (MELUCCI, 2001, p. 29).

Esse caráter conflitivo, no caso da EJA, estabelece-se principalmente pela estigmatização de

que são vítimas os não-alfabetizados e os não-escolarizados que passam, pela lógica do poder e da

sociedade desigual, capitalista, de vítimas a responsáveis pelo atraso do desenvolvimento social, e de

seu próprio fracasso, o que impediria a “natural” emancipação das camadas populares. A ausência do

Poder público, mitigada, faz a responsabilidade recair sobre os próprios sujeitos.

A composição do Fórum permite a compreensão desta afirmativa, pois agrega inúmeras

instituições que desenvolvem trabalhos na área da educação de jovens e adultos, como sindicatos,

outros movimentos sociais, professores da rede pública e privada, estudantes universitários,

universidades públicas e privadas e, ainda abarca, principalmente, componentes das administrações

públicas — redes estadual e municipais de ensino —, que passam a estar, em conjunto, planejando,

organizando e propondo encaminhamentos em comum, apesar de suas divergências teóricas,

metodológicas, ideológicas. Os encontros permanentes que o Fórum propicia contribuem para a

convivência de seus integrantes, resultando em aprendizados múltiplos, como do respeito ao diferente

e do exercício da tolerância.

O Fórum “está em movimento”. Ribeiro (1995) aponta essa característica — o movimento —

como fundamental para reconhecer a natureza de um movimento social. Estar em ação, portanto, inclui

realizar um conjunto de práticas que permitem valorizar a voz dos oprimidos como discurso político,

possibilitando a participação em espaços públicos, construindo modelos institucionais mais

democratizados em relação a outros grupos, movimentos, interlocutores. Portanto, o Fórum EJA/RJ

não está só, mas integra uma rede de movimentos sociais, como alertado por Scherer-Warren (1993).

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Para a autora, uma rede de movimentos sociais se sustenta nas ligações e conexões

estabelecidas entre práticas culturais e interpessoais da vida cotidiana e que se vão entrelaçando a

outros sujeitos e espaços para além do movimento social. Por essa perspectiva, e como o próprio

Fórum se caracteriza, este se assume como uma articulação informal que busca criar uma rede de

experiências, de relações interpessoais, interinstitucionais e de práticas culturais distintas na área da

educação de jovens e adultos, que visa a constituir uma “força de pressão institucional mais ampla”

(SCHERER-WARREN, 1993, p. 119).

Scherer-Warren (1993, p. 120) destaca, ainda, as várias formas organizativas dos movimentos

populares, articulados em nível local, regional e nacional e com grande capacidade de multiplicação,

sempre em busca de construir um caráter mais duradouro — o caso do Fórum EJA/RJ, já com onze

anos de existência.

O pluralismo organizacional e ideológico é outra característica das redes de movimentos,

observável também na composição do Fórum que guarda, no entanto, um princípio comum a ser

compartilhado pelo diverso conjunto de atores sociais.

A tendência de que os movimentos latino-americanos extrapolem a esfera local, passando a

transitar na esfera regional e transnacional também é característica ressaltada por Scherer-Warren

(1993), e real na prática política do Fórum EJA/RJ, que se enlaça em outras redes da América Latina,

por meio de seus participantes, com intensidades variadas.

Álvares, Dagnino e Escobar (2000, p. 37) utilizam a metáfora do tecer da aranha, a teia, ao

referirem-se às redes, assim denominadas por Scherer-Warren. A idéia de “teias de movimentos

sociais” conduziria ao aspecto intricado e precário dos múltiplos laços e imbricações estabelecidos

entre os movimentos, entre os participantes individuais e entre outros atores da sociedade civil e do

Estado. A compreensão assumida neste trabalho é a de que tanto a teia, como a rede são imagens

tridimensionais que, mesmo quando se utiliza a primeira metáfora — a teia —, que segue uma

regularidade estrutural, há conexões, laços e nós que também a rede, com outro tipo de regularidade,

exige. Importa, aqui, destacar o aspecto de que a tessitura dessas muitas e possíveis conexões traça um

mapa de interesses, desejos, sonhos, direitos, e que dependendo dos conteúdos desse mapa, os

percursos escolhidos são diferenciados, cabendo unicamente a sujeitos de vontade a escolha desses

caminhos, o que significa dotar a rede de direção político-ideológica.

Para se avaliar a força social de um movimento é preciso perceber suas contribuições às

mudanças sociais, “avanços e retrocessos”, segundo a participação e a contribuição das ações coletivas

desses movimentos, em determinado período da história (GOHN, 2002, p. 258).

A formulação e a execução de novas políticas para a EJA acompanham o constante

movimento do Fórum, que resiste às práticas de outorga do Estado, buscando a incorporação de

direitos e, conseqüentemente, a inclusão da multiplicidade de sujeitos. Tal movimento ganha

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expressão e força por meio da construção de uma agenda para a área, sustentada pela mobilização do

Fórum EJA/RJ e dos demais Fóruns parceiros do país, o que só foi possível pelas inúmeras discussões

que o movimento conseguiu estabelecer.

Mesmo em contexto político não favorável, o movimento Fórum se fez presente e atuante nas

ações macro para a EJA, como em tempos de prioridade para a educação de crianças, no governo FHC

e durante o processo de elaboração e diálogo com o relator Jamil Cury, para a consolidação das

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (Parecer CEB/CNE nº.

11/2000), um dos marcos legais mais relevantes para este segmento.

O Fórum tem, ainda, desempenhado um importante papel na ampliação e na mudança de

concepção referente à EJA, junto aos municípios do interior do estado, que participam constantemente

dos encontros mensais.

Direito e cidadania são categorias operantes na compreensão dos novos movimentos sociais da

década de 1990 — em pauta no processo de redemocratização desde os anos 1980 — e incorporados

pela pluralidade de atores sociais que surgem. Especialmente no caso Fórum EJA/RJ, apresentam-se

como elementos-chave para entender sua ideologia e seu projeto político.

No movimento Fórum, os direitos sociais se destacam, na luta pela garantia do direito à

educação, particularmente na área da educação de jovens e adultos. Fazer a reparação de uma

realidade histórica de direitos negados e de impedimento ao pleno exercício da cidadania de grupos

marginalizados é uma das finalidades da luta, por ser a educação um bem cultural de direito e essência

humanas.

Aliada à cidadania, a educação, indispensável para o exercício cidadão na sociedade,

possibilita aos sujeitos sua emancipação e o desenvolvimento de potencialidades. Neste caminho, a

educação de jovens e adultos torna-se “mais do que um direito”, mas uma possibilidade de viabilizar o

desenvolvimento humano de todas as pessoas, independente da idade. Por ela a cidadania apresenta-se

como conseqüência e condição para a plena participação na sociedade, como expressa a Declaração de

Hamburgo sobre a Educação de Adultos, da qual o Brasil é signatário.

Assim, o direito à participação nas decisões e formulações políticas para a EJA, bem como o

direito dos sujeitos para estarem em espaços formais de educação e do aprender por toda a vida,

apresentam-se como prerrogativas que operam no interior do Fórum EJA/RJ, que podem ser

entendidos como um processo de redefinição da cidadania, questionando o modelo político que impera

e sinalizando para novas formas de relações sociais e uma nova cultura política.

Reconstruindo a prática política e o poder no tecido social

O Fórum, ao se autodenominar articulação informal, traduz sua organização, alertado para o risco de

uma progressiva formalização das ações, típica dos movimentos sociais. Ao manter-se na

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informalidade, busca introduzir lógica diferenciada na sua estrutura, fomentando nova cultura política

e organizacional, na esfera da sociedade civil, podendo-se constatar o potencial para a destituição de

práticas autoritárias e de exclusão, relativas aos que detêm o poder. A esse respeito, Rezende (1985,

apud WARREN, 1993, p. 51) sinaliza o importante papel dessa nova forma de organização na

mudança de tais práticas na cultura política do país:

Os movimentos sociais não podem ser pensados, apenas, como meros resultados da luta por melhores condições de vida [...]. Os movimentos sociais devem ser vistos, também (e neles, é claro, os seus agentes), como produtores da História, como forças instituintes que além de questionar o Estado autoritário e capitalista, questionam, com sua prática, a própria centralização/burocratização tão presentes nos partidos políticos.

A cooperação é componente dessa força instituinte, o que tem resultado no desenvolvimento

de ações firmes, a custos inexpressivos, oriundos de atividades realizadas por instituições parceiras.

Porque o poder não se concentra em nenhuma representação, não há hierarquias que privilegiem e

demarquem posições. A colaboração e a responsabilidade compartilhada é prática presente desde sua

criação, mantendo sua dinâmica e fortalecendo a ação política.

Atuando no campo político e ideológico e formulando novas estratégias de ação, encontra

modos de gestão que apontam perspectivas de resistência capazes de interferir, em muitos casos, nas

políticas locais e até nacionais, até que venham a ser assumidas como políticas públicas, dada a

relevância da participação e da consciência do lugar político dos educadores, qualquer que seja a

posição que ocupem nas instituições de que fazem parte. Firmando posicionamentos, demonstra o

comprometimento, a organização, a seriedade e a força diante da educação de jovens e adultos, além

da preocupação de estar sempre buscando novos caminhos para alcançar resultados concretos e

expressivos.

O modelo de gestão baseado no desenvolvimento de articulações vem-se mostrando um

caminho bastante promissor, tanto no sentido de agilizar as ações da área social quanto de promover a

democratização do Estado, pela ocupação do espaço deixado por este, quando não cumpre o dever

constitucional de oferta do ensino fundamental para todos, independente da idade.

O Fórum, como os demais novos movimentos sociais, integra um leque de experiências

recentes que apenas iniciaram o processo de mudança da cultura política, mas que, pela contundência

de suas intervenções na sociedade, exige compreender sua prática política, assim como o papel dos

agentes ou interlocutores, em sua consolidação e legitimação.

Redes e articulações: a mobilização nacional

Essas expressões do movimento social têm procurado ir além da esfera local, em busca de

conquistar maior força e visibilidade diante da sociedade, gerando novas significações para os

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movimentos sociais que ampliam suas pautas e visões cotidianas restritas ao localismo, para alargar as

ações e o conhecimento sobre a realidade nacional.

Os vínculos firmados com variados parceiros se expandiram de tal forma que a experiência

fluminense deu frutos em muitos outros Estados, com a colaboração de “mediadores” do Rio de

Janeiro e, depois, de outras pessoas dos novos Fóruns formados, para iniciar atividades semelhantes.

Com isso, o movimento Fórum EJA/RJ espraiou-se no território brasileiro e cobriu todos os estados e

o Distrito Federal, além de se fazer presente também como fóruns regionais, especialmente no caso

daqueles estados muito grandes, pela necessidade de fortalecer a luta, descentralizando as ações

estratégicas.

A idéia de realizar, anualmente, encontros nacionais, ampliando a agenda pública de EJA,

surgiu no evento ocorrido no Paraná, após um ano de Hamburgo, em 1998, por convocação da Oficina

Regional da UNESCO – OREALC / Chile, para um balanço do encaminhamento das ações firmadas.

A experiência bem-sucedida animou os participantes a manterem um vínculo anual que, desde aí, não

mais se interrompeu.

A primeira edição do Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos (ENEJA) realizou-

se em 1999 no Rio de Janeiro, já com o expressivo apoio do Fórum RJ ao esforço de articulação com

múltiplos parceiros de nível nacional e internacional — o Fundo das Nações Unidas para a Educação,

a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Ministério da Educação (MEC), o Serviço Social da Indústria

(SESI/Departamento Nacional) e o Serviço Social do Comércio (SESC Nacional e Regional), o

Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o Programa Alfabetização Solidária (ALFASOL), o

Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), a União Nacional dos Dirigentes

Municipais de Educação (UNDIME) entre outros, que tentavam fazer o MEC assumir, de forma

diferente da que vinha assumindo, a EJA.

A segunda edição, em 2000, em Campina Grande, na Paraíba, juntou as Secretarias municipais

local e de João Pessoa, principalmente, com o apoio da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do

Fórum PB, interiorizando o II ENEJA, e enraizando-o no Nordeste, com toda a complexidade da

elevada demanda.

Em 2001, o Fórum São Paulo, juntando-se à Prefeitura de São Paulo então eleita, do Partido

dos Trabalhadores, realizou o III ENEJA, desenhando um modelo beneficiador de um largo conjunto

de professores da rede pública da capital. Já nesse momento, 11 Fóruns eram registrados pela plenária

constitutiva do evento.

Foi a vez do Fórum Mineiro, em 2002, assumir a coordenação local, em Belo Horizonte, para

acolher os participantes de todos os estados, que integravam delegações de mais Fóruns formados,

reafirmando a disposição de continuar em marcha o movimento nacional organizado dos Fóruns EJA,

em sua quarta edição.

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O Fórum Mato Grosso sediou, em Cuiabá, 2003, a quinta edição nacional, demonstrando o

vigor com que o movimento avançava; em 2004, o Fórum Rio Grande do Sul, em Porto Alegre,

acolheu, no âmbito da tradição que vem sendo construída nos últimos anos de que “outro mundo/outra

educação é possível”, o VI ENEJA.

Em 2005, o Fórum do Distrito Federal, associado ao Grupo de Trabalhos e Projetos de

Alfabetização (GTPA), de ação de longa data na periferia da capital federal, organizaram em Brasília

o encontro nacional, o VII ENEJA.

Por último, em 2006, o Nordeste acolheu em Pernambuco a VIII edição, anunciando o IX para

o Paraná em 2007 e o retorno ao Rio de Janeiro em 2008 para marcar os dez anos dos eventos

nacionais, voltando ao ponto de partida.

De caráter propositivo, a participação nesse evento nacional faz-se por meio de delegações

indicadas pelos Fóruns estaduais e regionais, segundo critérios de representação, por segmentos. Uma

rede eletrônica, além das reuniões presenciais de representantes de fóruns, sob o chamamento do

MEC, nos últimos anos, contribui imensamente para atualizar e disseminar informações, reforçada,

mais recentemente, pela criação do portal autônomo dos Fóruns26, espaço eletrônico de construção

permanente, troca e de inúmeras possibilidades, estimulada e dinamizada pelo Fórum EJA/DF.

Uma parceria que nos Encontros Nacionais desempenhou papel fundamental, principalmente

quando o poder público na área mantinha-se reticente e afastado das demandas políticas dos Fóruns,

questionando as ações que se vinham desenvolvendo, foi a Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no

Brasil (RAAAB). Esta Rede, originária do Nordeste em meados dos anos 1980, em prol da

alfabetização empreendida por organizações não-governamentais, cuja expressão máxima foram as

Feiras de Alfabetização (a última em Recife, 1997, em data imediatamente seqüente à da V

CONFINTEA), foi perdendo o lugar protagônico da resistência em benefício dos Fóruns, que na

prática conseguiram a adesão e a formação de uma rede muito maior e mais potente, do que o modelo

com o qual a RAAAB se forjara. Embora permaneça associada aos Fóruns e aos ENEJAs, com

visibilidade inconteste para muitas questões, inclusive em relação ao Conselho de Educação de

Adultos para a América Latina (CEAAL), em outros casos atua como coadjuvante, o que de forma

alguma tem significado seu desprestígio. Pelo contrário, foi fortalecida, desde que em 1999 sofreu

reformulações profundas, abrindo-se para a realidade social da EJA, que incluía múltiplos atores, para

além das ONGs. Pode-se dizer que a RAAAB, que sustentou a organização nacional dos Fóruns, na

atualidade recebe dele a deferência e o legítimo lugar da tradição de luta dos movimentos sociais —

uma espécie de velho sábio com quem se dialoga e a quem se dedica tempo e escuta atenta.

Os Encontros Nacionais também têm reservado significativo espaço para a reunião e troca de

experiências dos fazeres dos Fóruns, possibilitando reconhecer diferentes concepções, metodologias e

26 Ver página http://www.forumeja.org.br

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estratégias de atuação, em direção ao sentido democrático da luta pelo direito de todos à educação,

reforçando o conjunto de ações nacionais, mediante a representação de pessoas de todos os fóruns do

país na área.

Como espaço político sintonizado com os momentos históricos, afirmando e consolidando

estratégias, posições e compreensões acerca das políticas públicas nacionais e dos movimentos

internacionais que se fazem na área, os Encontros têm a finalidade última de interferir nessas políticas,

em defesa do direito de todos à educação.

Dois documentos são produtos desses Encontros Nacionais: um relatório-síntese, lido,

discutido e aprovado com as incorporações da plenária final, e um relatório completo, sistematizando

todas as atividades realizadas durante o evento, além de moções e encaminhamentos típicos de eventos

dessa natureza.

A ação em rede dos Fóruns EJA na constituição de políticas públicas

A luta pelo direito ao ensino fundamental, preceito constitucional; a busca por políticas de

financiamento para a área; a luta pela formação continuada de professores e de assessoramento à

construção de projetos político-pedagógicos, e a definição de uma política de Estado são, basicamente,

as pautas que compõem a constante ação deste movimento.

O momento que sucedeu à eleição do primeiro Governo Lula foi de muita apreensão e de

empenho em defesa dos acúmulos que os Fóruns haviam realizado. Manifesto e documentos foram

subscritos e encaminhados ao Presidente e ao Ministro Cristovam Buarque27, buscando canais de

interlocução formais e partidários, capazes de restabelecer o diálogo entre sociedade e governo.

Com a posse do novo Governo, o Programa Fome Zero, junto ao Brasil Alfabetizado passaram

a constituir prioridades, este último resgatando o direito de todos ao saber ler e escrever, e enfrentando

uma das faces da desigualdade e da opressão sobre as classes populares.

Poder-se-ia pensar que a luta dos Fóruns estava coroada de êxito, no entanto, não bastava

pensar a alfabetização, se o direito constitucional, colocando sobre o Estado o dever da oferta do

ensino fundamental para todos, independente da idade, não estava garantido. Mais do que isto, a

educação de jovens e adultos, entendida como um processo muito além da alfabetização, não era

assegurada como dever do Estado.

Conforme a Declaração de Hamburgo (UNESCO, 1997, p. 3), essa modalidade se traduz por

processos de aprendizagem, formais ou não-formais, pelos quais “as pessoas cujo entorno social

considera jovens e adultos desenvolvem suas capacidades, enriquecem seus conhecimentos e

melhoram suas competências técnicas ou profissionais”, de forma a atender suas próprias

27 Ministro da Educação no primeiro ano do Governo Lula.

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necessidades e as da sociedade, compreendendo, ainda, “oportunidades de educação informal e

ocasional existentes em uma sociedade educativa e multicultural”.

A interlocução, no entanto, passou a acontecer, assegurando aos Fóruns um representante

titular e um suplente na Comissão Nacional de Alfabetização28, com a defesa da continuidade para os

programas de alfabetização, sem o que, nem o direito, nem a possibilidade de formar leitores e

escritores autônomos da própria pronúncia do mundo é possível.

Quase ao mesmo tempo, outros embates estaduais — e alguns municipais — tinham vez.

Desde 2000 era devido à sociedade a formulação dos Planos de Educação, tanto estaduais, quanto

municipais. Os Fóruns envolveram-se também nessa tarefa, em defesa da EJA, participando de

organizações diferenciadas que aconteceram.

No Rio de Janeiro, por exemplo, a proposta foi vigorosa, e um conjunto de atores defendeu e

trabalhou pelo I Congresso Estadual de Educação, com vista a formular, à semelhança da iniciativa

nacional, o Plano Estadual de Educação. Em ação, o Comitê-Rio produziu alianças na sociedade

organizada, incluindo-se aí o Fórum EJA/RJ, para dar conta da tarefa, contrapondo-se ao poder

público, que chamava a si e a um grupo de notáveis por ele mesmo nomeado, a responsabilidade pela

formulação do Plano.

Em síntese, pode-se afirmar que os Fóruns têm-se configurado como uma das estratégias dos

chamados “trabalhadores sociais”, principalmente os educadores, docentes e professores, entre outros,

para continuar a desenvolver seu trabalho frente às contradições do mundo social.

Vivendo-se uma época de crise de confiança no Estado, no bem público e no respeito pela

coisa pública, e diante dos aspectos perversos da globalização econômica, Bourdieu (1998, p. 13)

alerta para a necessidade de acender o fogo do encontro, o “contrafogo” e, para isso, destaca a

importância da recusa à submissão aos lugares-comuns. Os espaços e as redes criados pelos Fóruns de

EJA, sem dúvida, constituem “contrafogos” para os envolvidos na difícil tarefa de fazer história por

meio da educação.

Os Fóruns ao criarem resistências nacionalmente organizadas, foram capazes de interferir, em

muitos casos, nas políticas locais e nacionais, no sentido de que, cada vez mais, possam ser assumidas

como políticas públicas, dada a relevância da participação e da consciência do lugar político de

educadores, qualquer que seja o cargo que ocupem nas redes de ensino, instituições, universidades,

ONGs etc.

28 A Comissão, depois da mudança de Ministro, ao final do primeiro ano de Governo, teve novo caráter, refletido na forma como foi designada: Comissão Nacional de Alfabetização e de Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA). Esta Comissão, de caráter consultivo, por meio de vários membros defendeu as mudanças de concepção que os movimentos consideravam necessárias, diante do Ministro Tarso Genro: continuidade da alfabetização, garantida como fundamento da construção do direito ao ensino fundamental para todos, independente da idade e do processo pedagógico de aprender a ler e a escrever, o que exige tempo e permanência.

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O Brasil tem, certamente, um novo cenário na EJA, e cada vez mais esses novos atores

coletivos estão se empenhando para que sejam reconhecidos como interlocutores legítimos das

instâncias do poder central — MEC, especialmente, representando a vontade e o compromisso de

educadores e de instituições fazedoras da educação de jovens e adultos, em múltiplos espaços do país.

A disposição dos Fóruns em assumir compromissos políticos efetivos — mantendo sobretudo a sua

autonomia —, como parceiros, com ânimo suficiente para mudar as condições em que a EJA vem se

realizando no âmbito de ação local, regional e nacional, adiciona-se à rede de pessoas, afetos e

subjetividades postos em relação. Por meio deles, Fóruns, toma-se consciência de que as práticas

cotidianas são capazes de alterar as lógicas do jogo político, desde que se as organize para além de

táticas (CERTEAU, 1994), e sim como estratégias de resistência e de transformação.

As experiências dos Fóruns, entretanto, assim como as de conselhos, comissões etc., estão

repletas de tensões, de contradições, mas possibilitando um rico aprendizado sobre um outro modo de

fazer política, ao tentar estabelecer novas culturas políticas e de participação, o que não é fácil.

Os Fóruns, para além da missão de ampliar a compreensão de EJA, clareando toda a riqueza

que lhe é inerente, tem o horizonte do direito à educação para todos como força motriz, abrindo-se

para novas possibilidades e necessidades do fazer educativo. Resgatando Freire (1997, p. 154) “o

sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se

confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”.

A sustentabilidade dos Fóruns é resultante dessa abertura e da disposição para a transformação

de um modo de fazer educação, compreendendo a dimensão solidária e intercultural que essa prática

exige. Poucas experiências com esse caráter têm, ou tiveram, tanta permanência. Vida longa para os

Fóruns de EJA!

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Práticas de leitura na EJA:

do que estamos falando e o que estamos aprendendo

Cláudia Lemos Vóvio29

Resumo: Resumo: O artigo aborda os variados sentidos atribuídos à leitura, aos modos de ler e aos objetos implicados em situações em que pessoas interagem e se apropriam desses bens culturais relacionados à escrita. A leitura é apresentada como objeto produzido nas/pelas relações entre grupos humanos, em tempos e espaços sociais específicos sendo, portanto, variável, o que traz implicações para as práticas educativas que se realizam nas turmas de EJA. Uma das conseqüências dessa abordagem é a ampliação do horizonte da leitura, admitindo variados objetos, modos de ler, comportamentos, gestos e gostos e focalizando uma variedade de práticas invisíveis e um número surpreendente de vozes e discursos apagados ou não reconhecidos socialmente. Também discute como as condições sociais e históricas afetam essa atividade humana e as possibilidades de acesso e apropriação desses bens por educadores e estudantes nas propostas pedagógicas que compartilham.

Palavras-chaves: Leitura, Desenvolvimento da Leitura, Letramento, Educação de Jovens e Adultos, Hábitos de Leitura.

Atualmente, ao falarmos sobre a leitura estamos nos referindo a um objeto produzido

nas/pelas relações entre grupos humanos, em tempos e espaços sociais específicos sendo,

portanto, variável. Essa forma de conceber os atos de ler realizados por sujeitos em situações

específicas, no plural, opõe-se a um enfoque que toma a leitura como um ato invariável,

homogêneo, que tem como objetos um pequeno conjunto de gêneros e autores tomados como

legítimos e dignos de se ler, que depende do hábito e da freqüência com as pessoas praticam.

Quando lançamos mão do termo práticas de leitura estamos nos referindo a atividades

humanas, intensamente afetadas pelas condições sociais e históricas particulares que

configuram modos de ler, os usos da leitura, os sentidos e suas possíveis significações, bem

como os modos de aprender e ensinar a ler e os materiais necessários e possíveis de serem

lidos30.

Ao discorrermos sobre as práticas de leitura nesse artigo esperamos trazer à baila

algumas significações que constituem os discursos sobre esse objeto, que os (re)constroem,

valoram e que revelam significados e sentidos possíveis, porque historicamente situados,

ideologicamente constituídos e impregnados por múltiplas vozes sociais31. São esses

movimentos de pôr em contato, de comparar, de colocar em jogo as significações e os

sentidos atribuídos socialmente ao ato de ler que se busca apresentar e que se constituem em

chaves para refletirmos sobre as práticas de leitura que empreendemos nos programas de

29 Mestre em Educação, pela Faculdade de Educação da USP. Doutoranda em Lingüística Aplicada, no Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp. Assessora do Programa de Educação de Jovens e Adultos da Ação Educativa 30 Cf. Chartier 2003; Galvão e Batista 1999; Kleiman 2001, 2002. 31 Cf. Bakhtin, 1981.

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educação de pessoas jovens e adultas a fim de propiciar e ampliar o processo de formação de

leitores. Assumimos que as turmas de EJA constituem-se em espaços de práticas de leitura e

que tanto os educadores que planejam e mobilizam propostas para a aprendizagem que

envolvem o ato de ler como os estudantes que se mobilizam para aprender e tomar

familiaridade com novas práticas e objetos que respondam a suas necessidades e interesses

tomam parte e formam-se mutuamente como leitores nessas ações compartilhadas.

Sobre o que estamos falando?

Quando assumimos que as práticas culturais, especificamente, aquelas relacionadas ao

ato de ler e ao universo da escrita, são criações humanas e variáveis, conseqüentemente,

ampliamos o horizonte dos objetos da leitura, dos modos de ler, dos comportamentos, dos

gestos e dos gostos que os sujeitos podem admitir frente à leitura. Esse modo de compreender

a leitura tem o potencial de fazer emergir uma variedade de práticas e um número

surpreendente de vozes e discursos apagados ou não reconhecidos por aqueles que acreditam

que a leitura é um ato invariável e único, que há um leitor idealizado a que todos devem

corresponder e que é somente por meio da educação escolar que se pode adquirir tal conjunto

de habilidades e atitudes.

Persistem em nossos dias discursos nos mais variados âmbitos que apregoam que o

leitor é aquele que lê o livro e alguns gêneros literários e de divulgação científica, sendo esses

materiais os maiores representantes do patrimônio cultural ou da Cultura a que todos

deveriam ter acesso, seguidos dos jornais e revistas. Proclamam ainda que são leitores aqueles

que gostam e apresentam uma disposição positiva frente a certos gêneros, os literários

preferencialmente, que têm o hábito e lêem com freqüência e que praticam certos tipos de

consumo cultural. Esse leitor ideal parece ter se apropriado dos modos de ler daquele dos

críticos literários32, dos intelectuais e de certa classe de pessoas que incluem uns poucos que

lêem determinados livros — “livros lidos por muitos não servem; bons são aqueles que

poucos lêem, menos entendem e menos ainda gostam” (Abreu, 2001, p. 155). Ao conceber a

leitura e leitor dessa maneira, estabelece-se uma hierarquia de objetos, de gêneros e de

suportes, define-se o que é ler, e, na mesma operação, escalona-se os leitores segundo os

objetos que consomem, as oportunidades de acesso e a freqüência com que lêem, excluindo os

não-leitores33. Nesse enfoque, quanto menos praticada e partilhada, maior o valor da leitura,

32 Cf Kleiman 2001. 33 Cf. Abreu, 2001; Tardelli, 2003

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pois se tem implícito que a maioria não é leitor ou não se comporta dentro do padrão e não

realiza o tipo de leitura almejada.

Os discursos sobre a leitura e leitores idealizados atravessam a história da leitura no

Brasil em diversos períodos, como nos aponta Abreu (2001) e são “decorrentes da

delimitação implícita de um certo conjunto de textos e de determinados modos de ler como

válidos e o desprezo aos demais” (p. 154). Compreendida como um bem em si e conjunto de

competências que se adquire e que constitui o patrimônio cultural legítimo, está pressuposto

que a leitura deve ser transmitida e difundida a todos. Assim, aqueles que crêem no mito e no

poder transformador da leitura e dos livros podem buscar a identificação com esse “leitor”,

talvez impossível, já que idealizado, que possui certas competências, disposições e gostos,

tendo a escolarização como a via de iniciação e o meio para chegar à leitura. Nessa

perspectiva, como ressalta Kleiman (1995), uma tendência marcante é a de considerar os

efeitos de aprender a ler sobre os sujeitos como sendo sempre iguais, homogêneos, e

colocando a leitura como condição necessária para a participação na espécie humana ou ainda

como dotando aqueles que a praticam de qualidades superiores e até espirituais.

Numa outra mirada, quando nos referimos às práticas de leitura estamos falando de

processos de tomar familiaridade, de aprender e de ocupar e desempenhar papéis nas mais

variadas situações e âmbitos sociais. Nessa forma de concebê-la, temos a possibilidade de

reconhecer pluralidades no interior de sociedades e grupos humanos34. O enfoque da

diversidade aponta para aqueles que atuam em processos educativos para a necessária

mudança das lentes com as quais se observa o mundo social, as práticas humanas e os sujeitos

envolvidos nesses processos. Trata-se de abrir mão do enfoque da unidade e assumir um

outro, ancorado nas idéias de multiplicidade, heterogeneidade e variação nos modos de

praticar a leitura, nos objetos que se pode ler e nas formas como as pessoas se apropriam dos

texto e fazem usos deles localmente, em situação.

Essas formas de observar e compreender as práticas de leitura são constituídas e

fortemente influenciadas pelos Estudos do Letramento desenvolvidos nos últimos 25 anos que

concebem as práticas de uso da escrita como algo necessariamente plurais: sociedades

diferentes e grupos sociais que as compõem têm variadas formas de letramento, tendo

variados efeitos sociais e mentais em contextos sociais e culturais específicos. Os letramentos

são vistos como conjuntos de práticas, como formas de usar a linguagem e dar sentido tanto à

fala como à escrita. Essas práticas discursivas estão integralmente conectadas com as 34 Cf. Chartier, 2003; Kleiman, 1995; Lahire, 2006; Osakabe, 2005.

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identidades e a consciência de si das pessoas que as praticam; uma mudança nas práticas

discursivas resulta em mudanças de identidade35, já que colocam esses sujeitos em novas

posições e formas de interação.

Outra característica fundamental dessa vertente, que tem o pesquisador inglês Brian

Street (1984 e [1993] 2004) como um dos principais representantes, é o reposicionamento das

pesquisas etnográficas e inter-culturais, deixando de lado a prática de comparações e

distinções e abrindo espaço para a percepção das diferenças, não como equivalentes, mas

como possibilidades inscritas e socialmente situadas. Esse modelo se pauta por uma

compreensão etnográfica e teoricamente mais adequada aos significados das práticas letradas

na vida das pessoas. Para o autor e outros pesquisadores que se alinham a essa perspectiva,

como Kleiman no Brasil, as práticas letradas, a leitura, a escrita e a oralidade, são tomadas

como fundamentalmente ligadas às estruturas sociais e às estruturas de poder. Nas palavras de

Street

A construção do letramento está imbricada nas práticas discursivas e nas relações de poder na vida cotidiana: está socialmente construída, materialmente produzida, moralmente regulada e tem significado simbólico que não pode reduzir-se a nenhum destes. (Street, [1993] 2004, p. 90).

Significa dizer que as práticas de leitura definem-se e ganham concretude em

contextos sociais relacionados às atividades e às interações que ocorrem no interior das

culturas, especificamente nos eventos mediados e organizados pela escrita. E é a partir desses

eventos que chegamos às práticas reais que implicam interações entre pessoas e a apropriação

de instrumentos culturais — chegamos ao que as pessoas fazem com a escrita e podemos

identificar o que textos e tais situações de uso significam para elas. A produção das pesquisas

sobre o conjunto de práticas sociais relacionadas aos usos, à função e aos possíveis efeitos da

aquisição da escrita na sociedade, empreendidas a partir dessa vertente, colaborou para

reposicionar o papel da linguagem nas sociedades, atualizar sentidos atribuídos à

alfabetização36 e à escolarização e ao processo de aprendizagem das práticas de leitura.

Colaborou para percebermos que o fato de os sujeitos tomarem parte em práticas nas quais a

escrita é central não produz resultados ou efeitos homogêneos37, mas sim heterogêneos,

dependentes dos contextos, papéis, objetivos e formas de interação que os guiam em

atividade, o que remete à possibilidade de obter configurações singulares, no interior de

35 Cf. Barton, Hamilton et. al., 2000; Gee [1986], 2004; Kalman 2004; Kleiman, 1995, 2001. 36 Ver Kleiman (1995, 2001), Ribeiro (1999, 2003). 37 Ver por exemplo os trabalhos de Lahire, 2002, Oliveira (2004) e Oliveira e Vóvio (2003) e Vóvio (1999).

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grupos sociais e da complexa e diversificada sociedade moderna38. Assim, se os leitores

interagem em distintos mundos letrados, tomam parte de variadas comunidades que usam a

escrita para diferentes fins, suas possibilidades de ação, de tomar parte em outras práticas

culturais, bem como suas competências e repertórios construídos, podem, portanto, variar.

Resumindo, abordagem sócio-histórica cultural advindas dos Estudos do Letramento39

propiciou a revisão dos efeitos homogêneos da aprendizagem da escrita sobre os sujeitos40, a

formulação de novas orientações para o desenvolvimento de abordagens de aprendizagem da

linguagem escrita41, a constatação de que as pessoas, ao compartilharem práticas de uso da

escrita, constroem conhecimentos, antes mesmo de ocuparem os bancos escolares. É

importante ressaltar que a disseminação destes estudos no Brasil esteve diretamente

relacionada às novas problemáticas que se colocavam no horizonte do processo de

escolarização, entre elas a expansão e democratização do acesso à educação básica, sem as

mudanças que necessariamente deveriam acompanhar este processo; as avaliações e a questão

do fracasso escolar identificadas pela implementação de sistemas nacionais e locais de

avaliação42; ou ainda a compreensão do que as pessoas efetivamente fazem com a linguagem

escrita, para além de saber sobre seu estado ou condição de analfabetas43.

O reconhecimento das diferentes práticas de leitura tem amplificado a atribuição

educativa e complexificado a formação de leitores. Como bem sintetiza Dionísio (2005),

saber usar a escrita em nossa sociedade nesse enfoque envolve,

(...) manter um repertório vasto e flexível de práticas, desempenhar papéis e activar recursos que dêem expressão às dimensões operativas, culturais e críticas, actuando, tanto: como decodificador, pela mobilização de recursos necessários para abrir o código dos textos escritos, reconhecendo e usando traços e estruturas convencionais da organização do texto; como participante textual, participando na construção de sentidos, tendo consideração, por relação com suas experiências e conhecimentos sobre outros discursos, textos e sistemas de significação, os sistemas de sentido específicos de cada texto; como utente [usuário] de textos, usando-os pragmaticamente, negociando as relações sociais à volta dos textos, sabendo sobre eles e agindo nas diferentes funções sociais e culturais que eles desempenham na

38Cf. Lahire, 2002, 2006; Oliveira e Vóvio, 2003. 39 Muitas dessas contribuições são advindas também dos estudos realizados pela escola New Literacy Studies – NLS (Novos Estudos do Letramento39). Essa abordagem situada dos estudos do letramento, como bem aponta Kleiman (1995), colaboram para operar mudanças em realidades desiguais, nas quais se perpetuam hierarquias, se assistem a crescente marginalização e estigmatização de grupos sociais por meio de instrumentos como a escrita. 40 Ver Vóvio (1999) e Oliveira e Vóvio (2003) 41 Um dos principais impactos é a incorporação destas teorias na produção de parametrizações curriculares nacionais, no delineamento de critérios para a avaliação de materiais didáticos distribuídos às redes públicas de ensino, na produção editorial de livros didáticos de língua portuguesa, por exemplo. 42 Ver os dados e avaliações implementadas pelo SAEB, em âmbito nacional e Saresp, em âmbito estadual, por exemplo. 43 Cf Ribeiro 1999.

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sociedade (por exemplo, na escola) e compreendendo que estas funções afectam o modo como os textos são estruturados, o seu tom, o seu grau de formalidade e a organização dos seus elementos constitutivos (p.76)

Nesse sentido os processos de aprendizagem devem focalizar as práticas culturais

relacionadas à escrita e suas variadas modalidades de uso, para além daquelas de que

tradicionalmente a escola se ocupou. Aprender a ler e praticar a leitura, nessa perspectiva,

“implica saber como funcionam os textos nas diversas práticas socioculturais” (Kleiman,

2002, p. 31) e pode colaborar para que as pessoas possam transitar com familiaridade entre

diversas práticas culturais e em diferentes instituições, conscientes de seus papéis,

possibilidades e modalidades de ação. Contribui para que as pessoas saibam buscar

conhecimentos e informações para continuar aprendendo ao longo de toda a sua vida.

Conceber dessa forma a leitura acarreta uma série de conseqüências para o desenho de

políticas educacionais e para a organização de programas educativos. Aponta para a

necessidade da conexão destes com práticas sociais e, em especial, com aquelas que se

mostram relevantes e emancipatórias para os estudantes (Torres, 2000; Kleiman, 2001, 2002).

Sobre o que estamos aprendendo?

Ao assumirmos a concepção que admite a pluralidade temos uma série de questões

para a elaboração de projetos, programas educativos, atividades a fim de que possamos

propiciar oportunidades variadas para a formação de leitores críticos, capazes de transitar em

meio aos diferentes textos disponíveis nas sociedades letradas e usá-los para variados fins,

fazendo com que convirjam para suas necessidades e interresses. Consoantes a esse enfoque,

os programas de educação de pessoas jovens e adultas, seja no âmbito escolar ou informal,

colocam-se a favor de promover experiências de que abarcam um conjunto amplo,

compreendendo desde as situações de leitura com as quais as pessoas convivem localmente,

em seu cotidiano, até aquelas que, globalmente, se disseminam e são necessárias para a plena

inserção desses sujeitos na sociedade da qual fazem parte. Programas filiados a essa

perspectiva prestam-se à ampliação de repertórios, à tomada de consciência sobre os usos e

funções da escrita em nossa sociedade e, com isso, promovem aprendizagens, muito mais

complexas do que as de decodificar o texto escrito, possibilitando aos estudantes continuar

aprendendo ao longo de toda a vida. É comum pensarmos que um conhecimento fundamental

para ler é aquele que se refere à decodificação. Mas, ao ler, as pessoas colocam em jogo mais

do que isso. Sendo uma atividade social, cada qual interage trazendo sua bagagem

experiencial, seus propósitos, conhecimentos de mundo, intenções, representações sobre o ato

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de ler, sobre si mesmo e sobre os outros. Nos atos de ler, portanto, estão envolvidos diversos

elementos que vão além de conhecer letras e relacioná-las aos sons que representam.

Assumir essa perspectiva emancipatória nos processos de formação de leitores traz

para aqueles envolvidos em práticas educativas varias questões, como já dito. A primeira

delas é a de conhecer as práticas de leitura locais. Sabemos muito pouco sobre as práticas de

leitura, sobre seu funcionamento em contextos diversos, por exemplo, o que e como se lê nas

comunidades do campo, ou, em âmbitos diversos, como na religião, práticas associativistas e

comunitárias. Muitas vezes essas práticas estão relacionadas a práticas orais e coletivas muito

distintas daquelas de que se ocupa tradicionalmente a escola. Sabemos muito pouco sobre as

posições atribuídas e acatadas pelos participantes nessas situações, por exemplo, o que se lê,

de quem é a responsabilidade de ler, para quem se lê, qual é o papel do texto e como se

interpretam o texto escrito. Sabemos muito pouco sobre o que significam essas práticas para

esses grupos e comunidades. Portanto, conhecê-las e identificá-las exige trocar nossas lentes

para observarmos os comos e os porquês das práticas de leitura que ocorrem em cada local, o

modo como a escrita é usada e os para que, as maneiras como as pessoas se envolvem nessas

práticas e como elas as significam.

Pessoas jovens e adultas em processo de escolarização convivem com situações e

materiais de leitura os mais variados em suas casas, na rua por onde andam, no trabalho, na

religião, nas atividades de lazer. Todos relacionados às atividades desenvolvidas nesses

âmbitos nas quais se constroem representações sobre o que é ler, como se lê, sobre ser ou

tornar-se leitor, o que pode ser lido e que tipos de materiais e textos são valorizados

socialmente (reconhecidos como legítimos de serem lidos). São idéias, opiniões e pontos de

vista sobre si mesmos e sobre os outros, sobre ações, materiais construídas nas experiências

compartilhadas com leitores, nas imagens e discursos veiculados pelos meios de comunicação

e nas situações que compartilham cotidianamente, que influem no modo como se engajam na

aprendizagem da leitura. Essas representações são acionadas em variados momentos e podem,

por meio das atividades e interações que se realizam nas turmas de EJA, serem confirmadas,

transformadas, ressignificadas e/ou apagadas, por isso, é importante conhecer esse universo

para saber como e o que se pode oferecer de interessante e útil para os sujeitos e compreender

suas réplicas a essas propostas.

Outro desafio, na assunção desse enfoque da diversidade, diz respeito a como proceder

para que as pessoas nas situações de aprendizagem familiarizem-se com novos gêneros do

discurso. Segundo Kleiman (2002), a aprendizagem da leitura sob a perspectiva dos Estudos

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do Letramento, implica saber como funcionam os textos nas diversas práticas socioculturais.

Depreendemos dessa afirmação pelo menos duas conseqüências para a ação educativa na

EJA. A primeira refere-se à inserção dos estudantes em práticas legitimadas e que permitam o

trânsito cultural por variados âmbitos sociais. Significa que temos o desafio de apresentar uma

diversidade tal de situações de interação nas quais a escrita está presente que, de modo geral,

correspondam às práticas socialmente valorizadas de uso da linguagem escrita e necessárias

as demandas sociais mais amplas. A segunda refere-se ao fato de que aprendemos de acordo

com valores, conhecimentos e necessidades que estão condicionadas localmente e que dizem

respeito às motivações e aos interesses dos sujeitos. Significa que ao atuar na EJA temos que

descobrir os gêneros com os quais os estudantes estão familiarizados (orais e escritos) e suas

preferências; considerando-os como pontos de referência para apresentar novos, adequando o

processo de aprendizagem à realidade social dos estudantes e de suas comunidades, tornando

esse processo mais significativo para todos envolvidos. De necessidades de aprendizagem

presumidas e comuns a todos, passaríamos a necessidades localmente negociadas e em função

de demandas, interesses dos grupos envolvidos.

Relacionado ao desafio anterior temos outro: o de considerar que as práticas de leitura

estão envolvidas por conhecimentos os mais diversos, em geral aqueles advindos de nossas

experiências, nas quais lemos ou ouvimos textos escritos. No ato de ler acionamos saberes

construídos em nossas histórias de vida, além de conhecimentos lingüísticos sobre o

funcionamento do sistema da escrita, sobre o vocabulário, sobre os diferentes gêneros, estilos,

autores, modalidades (oral, escrita, áudio-visual, etc.) entre tantos outros. Também envolvem

conhecimentos sobre o modo como os textos foram produzidos, quem está envolvido nessa

produção, de que modo tornaram-se públicos, em que veículo ou suporte ele foram

publicados, como circulam entre nós. As atividades de leitura passam, desse modo, a serem

orientadas tanto pelo que já sabem os estudantes e por seus interesses como pelas exigências

do gênero em questão, em termos de sua composição, estilo e condições de produção e

circulação social. Isso quer dizer que os critérios para a organização de uma seqüência de

aprendizagem pauta-se pela consideração de que a maior parte dos estudantes que iniciam ou

retomam seus estudos na juventude ou vida adulta teve pouca oportunidade de analisar e

conhecer as características dos textos escritos para além da escuta e manipulação de alguns

deles e de que há textos que demandam um maior conhecimento dos recursos lingüísticos

(gênero do discurso, estilo e escolhas léxicas) de que lançou mão seu autor para que a leitura

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seja levada a cabo, bem como das características visuais que o definem (configuração,

organização de imagens, títulos etc.) e do suporte no qual se apresenta.

Outro desafio é o de resignificar o processo de aprender a ler. Em vez de ler para

aprender a ler, a leitura só tem significado quando guiada por objetivos, mediada por

problematizações, conhecimentos e necessidades daqueles que se envolvem na atividade.

Aprender a ler e praticar a leitura teriam que ser deslocados tornando-se eixos que articulam

aprendizagens mais gerais relacionadas à identificação de problemas e questões que os

sujeitos consideram importantes de solucionar, à busca de informação e conhecimento que

geram novas formas de compreender a realidade e interpretá-la, ao desenho de ações coletivas

para intervir na realidade e transformá-la. As atividades de leitura e a seleção de gêneros

estariam articuladas às temáticas e aos projetos de trabalho abordados nas turmas. Sendo as

atividades de leitura guiadas por objetivos e elaboradas de modo a que se desenvolvam em

contextos significativos para as pessoas jovens e adultas envolvidas.

Tal deslocamento exige um ambiente que disponibilize acervos variados com

diferentes materiais (impressos e áudios-visuais, por exemplo), de gêneros e textos

significativos, que tratam de temas e assuntos de interesse de jovens e adultos. Teriam lugar

nesse acervo também os materiais que os estudantes gostam e com os quais costumam

conviver. Um destaque especial no processo de aprendizagem pela própria função da EJA é o

objetivo de ler para aprender, que implica a organização de propostas coletivas que abordam

informações, conhecimentos e competências substanciais para o tratamento de temas e

problematizações. Assim, a organização desses acervos demandaria a inclusão de textos

informativos de diversas áreas do conhecimento, textos jornalísticos, relatos históricos, textos

literários e didáticos, além de listas, esquemas, tabelas, gráficos, mapas e imagens; todos

voltados à apreensão de novos conhecimentos por parte dos estudantes. A apropriação desses

textos pelos estudantes estaria atravessada por oportunidades de aprender estratégias de

estudo, que vão acompanhá-los no enfrentamento de atividades nos mais variados âmbitos.

Por fim, conceber as práticas de leitura desse modo também reposiciona o papel do

educador. A ação do educador nessa perspectiva pauta-se por realizar atividades com seus

estudantes, mediando a aprendizagem por meio do estabelecimento de diálogo entre todos e a

apropriação dos textos, a fim de que ambos possam atribuir sentidos coletivos e individuais ao

que lêem. Essa mediação também está pautada pelo planejamento de ações que visam a

definição de um objetivo para a leitura do texto em questão, a mobilização de conhecimentos

prévios pelos estudantes para lidar com o tema, assunto e tipo de texto a ser estudado e a

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oferta de informações que facilitem a leitura pelos estudantes (aquelas que caracterizam o tipo

de texto, o tratamento de conceitos e informações, histórico e caracterização do autor).

Considerações finais

É no espaço da recepção e da apropriação do texto pelas pessoas que se insinua uma

produção que dá origem a gestos, pensamentos, gostos, disposições, discursos e práticas

diversos. Mesmo os grupos e sujeitos em posição de maior vulnerabilidade, como o caso de

pessoas não ou pouco escolarizadas, não se encontram desarmados no campo social, eles não

estão desprovidos de recursos culturais próprios e, sobretudo, de capacidade de reinterpretar e

de se apropriar das produções culturais que não fabricam e que lhes são impostas em maior ou

menor grau44. Nem inteiramente dependentes, nem inteiramente autônomas, nem pura

imitação, nem pura criação, as produções culturais dos grupos em situação de maior

vulnerabilidade social precisam ser observadas na e a partir da situação em que são

construídas e que as constituem. A força de modelos culturais impostos não anula o espaço

próprio de sua recepção, não se resume à submissão, à interdição e à imobilidade, podendo

assumir os mais diversos contornos: de resistência, de rebeldia, de dormência, de recriação,

entre tantos outros. Em Certeau (1994), essa ação humana resulta num conjunto de maneiras

de viver com a dominação que se fabrica no cotidiano, nas atividades ao mesmo tempo banais

e renovadas a cada dia, uma produção multiforme e disseminada, portanto, visível apenas nos

modos de operar desses sujeitos, nos usos que fazem dos produtos culturais.

É a partir do contexto social e histórico específico que as práticas de leitura, seus

objetos, os modos de ler e leitores são constituídos. É no jogo social, em que sujeitos ocupam

posições peculiares que podemos acessar a essa maneira de fazer e as significações dessas

práticas. Ao estabelecermos uma relação de interdependência entre as diferentes práticas de

leitura, a multiplicidade de maneiras de ler e de objetos da leitura, e a variação gerada pelas

condições sócio-históricas e culturais assumimos novas formas de compreender, abordar e

problematizar esse objeto multifacetado, tendo como elementos centrais os textos e seus

leitores. Por este enfoque, as práticas de leitura não se encontram inextricavelmente

relacionadas a um único objeto (o livro), não se definem por uma forma particular de ler

(silenciosa e solitária). Não se localizam exclusivamente na mente das pessoas, como um

conjunto de habilidades a serem aprendidas, e também não residem nos textos. Não podem ser

alcançadas meramente pela determinação de sua freqüência, hábito, pela posse de objetos ou

44 Cf. Certeau, 1994.

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pelo pertencimento estrito a classes, grupos ou áreas sociais. Como toda atividade humana, é

essencialmente social e pode ser localizada na interação entre as pessoas (Kleiman, 1995).

Enfim, parece claro, que, quando a leitura abarca os contornos expostos até aqui, seu

ensino e aprendizado são tarefas complexas. Ao tomar a perspectiva da diversidade, das

práticas de leitura, implica conceber os processos de aprendizagem como exercícios de

cidadania, à medida que promovem efeitos e significações que, de um lado, se conectam ao

que querem e necessitam os sujeitos da aprendizagem e, de outro, se colocam a favor da

inserção de jovens e adultos na sociedade da qual fazem parte.

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As estatísticas da alfabetização

Vera Masagão Ribeiro45

Resumo: O artigo analisa as diversas metodologias de medição das habilidades e práticas de leitura junto a populações, abordando as estatísticas geradas pelo IBGE, pelas avaliações dos sistemas educacionais e estudos amostrais realizados no Brasil e no exterior. Descreve com maior detalhe a metodologia e os resultados do INAF – Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional, estudo empreendido pela Ong Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro, que vem mensurando as habilidades e práticas de leitura e escrita da população brasileira de 15 a 64 anos desde 2001. Mostra-se a evolução dos níveis de habilidade da população medidos por meio de suas escalas, uma relativa à leitura e escrita e outra às habilidades matemáticas. Descreve também as diferentes práticas de leitura e escrita no ambiente de trabalho e ainda a prática de leitura de livros de diversos gêneros. Com base nesses indicadores, critica a insistência das políticas públicas em campanhas de alfabetização embaladas pelo afã de baixar taxas de analfabetismo. Conclui afirmando que os estudos sobre a cultura escrita, tanto com viés quantitativo quanto qualitativo, principalmente as avaliações independentes e criteriosas dos programas de alfabetização e educação de adultos, são essenciais para que possamos estabelecer planos mais realistas e eficazes para elevar os níveis educacionais da população.

Palavras-chaves: Alfabetização, Analfabetismo, Alfabetismo, Letramento, Leitura-Escrita, Avaliação-Indicador.

Grandes tendências

O interesse por mensurar as condições de alfabetização da população não é novo em

nosso país. De fato, as estatísticas oficiais sobre a alfabetização no Brasil remontam ao final

do século XIX e, como observa Ferraro (2002), constituem o mais antigo indicador das

condições educacionais da população de que dispomos. O Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) apura até hoje esse índice com base na auto-avaliação da população

recenseada sobre sua capacidade de ler e escrever um bilhete simples e, ainda que os critérios

dos recenseadores ou da população recenseada possam ter variado ao longo do tempo, é

possível construir uma série histórica consistente, que mostra que o analfabetismo entre

brasileiros com 15 anos ou mais veio decrescendo paulatinamente no último século, de 65,3%

em 1920 para 13,6% em 2000 (Ferraro, 2003), chegando a 10,9% em 2005, segundo a Pnad

(Henriques e Ireland, 2006).

Esse método de medição, ainda que tenha um valor para a manutenção de séries

históricas nas estatísticas educacionais, vem sendo cada vez mais questionado por

especialistas da área. Tendo em vista teorias atuais sobre o processo de aquisição da escrita e

sobre os seus usos efetivos nas diversas esferas sociais, é difícil sustentar uma abordagem

dicotômica, que visa estabelecer uma única linha divisória entre analfabetos e alfabetizados.

Cada vez mais, é preciso compreender a leitura e a escrita como práticas culturais e como

competências multidimensionais, que abarcam diversos tipos e níveis de habilidades. Entre

45 Doutora em Educação pela PUC-SP e coordenadora de programas da Ação Educativa

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conhecer algumas letras, assinar o próprio nome, reconhecer palavras, retirar uma informação

num pequeno aviso, copiar uma receita, ler uma passagem em voz alta com pouquíssima ou

com razoável fluência, analisar o editorial de um jornal ou redigir uma carta comercial, onde

caberia a linha divisória que divide os alfabetizados dos analfabetos? Saber ler e escrever um

bilhete simples é uma definição operacional, utilizada pelo IBGE, mas outros países usam

critérios algo diferentes, enquanto alguns países com altíssimo grau de desenvolvimento

educacional, como Holanda, Suécia ou Suíça, nunca incluíram perguntas desse gênero em

seus levantamentos censitários (Unesco, 2005).

O conceito de alfabetismo funcional, disseminado internacionalmente pela Unesco a

partir da década de 1960, representou um primeiro esforço de superar uma visão dicotômica

referindo-se à capacidade de efetivamente usar as habilidades de leitura e escrita de modo a

responder as demandas do contexto. O conceito trazia também implícita a idéia de que,

atingido um certo patamar de habilidades e o uso efeito, evitar-se-ia a chamada “regressão ao

analfabetismo”, ou perda das habilidades por desuso. O conceito de alfabetismo funcional

animou uma campanha internacional de alfabetização de adultos coordenada pela Unesco

entre 1966 e 1973; num primeiro momento, o foco estava nas habilidades associadas ao

aumento da produtividade, mas paulatinamente, passou a abranger outras dimensões como a

participação cidadã, a convivência familiar e comunitária e o próprio desenvolvimento

cultural. Tratava-se, entretanto, de um universo amplo e variado de demandas sociais de usos

da leitura e escrita, diferente para cada contexto e mesmo para cada indivíduo, tornando

praticamente impossível estabelecer algum critério operacional necessário para a geração de

estatísticas. Diante desse problema, a Unesco sugeriu a utilização dos anos de estudo da

população como um indicador proxi (aproximado) das condições de alfabetização funcional

da população.

Na América Latina, comumente se utilizou o patamar de quatro séries completas para

indicar a condição de alfabetismo funcional. Entretanto, não existem evidências que permitam

determinar objetivamente uma quantidade precisa de anos de escolarização suficientes para se

chegar a um nível de alfabetização “funcional” e “estável”. Um primeiro aspecto a considerar

é que a qualidade da escolarização pode variar, assim como as condições e motivações extra-

escolares para manutenção e desenvolvimento das habilidades (Wagner, 1999). Os resultados

das avaliações dos sistemas de ensino brasileiro, como Saeb ou a Prova Brasil, comprovam,

com eloqüência, que quatro anos de estudo podem significar coisas muito diferentes em

termos de aquisição de habilidades de leitura, de acordo com o grau de desenvolvimento

econômico da região, o tipo de escola pública ou privada, a zona urbana ou rural e mesmo o

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sexo do alunado. Além disso, persiste ainda a dificuldade de fundamentar um critério único

sobre o nível ou tipo de habilidade que deveria ser considerado suficiente.

Mais recentemente, os surveys baseados em amostras de população, incluindo testes

de leitura e questionários sobre práticas de leitura e escrita em diversos contextos oferecem

dados mais detalhados sobre a distribuição da cultura escrita nas populações. Com base em

estudos nacionais realizados em países do norte, a Organização para Cooperação Econômica e

Desenvolvimento (OECD) e o Instituto de Estatísticas do Canadá conduziram o International

Adult Literacy Assessment (IALS), uma iniciativa que, entre 1994 e 1998, recolheu dados

comparativos de 19 países, quase todos na Europa e América do Norte. No IALS, o termo

analfabetismo nem sequer aparece, pois seu foco é definir e comparar, entre populações com

alto grau de escolaridade, níveis de habilidade de alfabetismo em diversos domínios –

compreensão de prosa, textos esquemáticos e quantitativos – além de reunir um amplo

conjunto de dados sobre usos da leitura e da escrita na vida diária, especialmente no contexto

de trabalho, além de outras informações sobre a inserção profissional, oportunidades de

capacitação, renda, etc (OECD & Statistics Canada, 2000). Em 2003, o estudo passa a

mensurar diretamente também habilidades de resolução de problemas, passando a se chamar

Life Skills Survey (ALL). No primeiro relatório do ALL, os autores reafirmam essa nova

perspectiva: não se trata de distinguir entre analfabetos e alfabetizados; uma determinada

habilidade é definida como um contínuo de proficiência e mensurada por meio de uma escala,

cuja interpretação permite indicar o quanto os adultos são capazes num certo domínio (OECD

& Statistics Canadá, 2003). Em 2005, a Unesco passou a conduzir uma iniciativa visando

adaptar essa mesma metodologia de estudo do alfabetismo para países pobres, com índices

muito mais baixos de escolarização: além de analisar mais detalhadamente os níveis mais

baixos de proficiência, o Literacy Assessment and Monitoring Programme (LAMP) se propõe

a estudar também o que chama de habilidades componentes da alfabetização como a

identificação de letras e palavras, fluência, vocabulário, etc. (Unesco, 2005)

Em todas essas iniciativas, algumas tendências comuns se verificam: em primeiro

lugar, uma visão multidimensional do alfabetismo, envolvendo leitura, escrita e

processamento de informação numérica, nas quais se podem distinguir ainda sub-habilidades

componentes; em segundo lugar, a combinação de medição direta das habilidades por meio de

testes com coleta de informações sobre práticas de leitura e escrita em diferentes esferas de

vivência. Ainda que dentro dos limites do que é possível aprender por meio de estudos em

larga escala, onde se compara, pelos mesmos critérios, subgrupos populacionais bastante

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distintos, essas novas metodologias procuram apreender o fenômeno do alfabetismo de modo

mais qualitativo, sob diversas dimensões.

Uma perspectiva brasileira

No Brasil, a única medida de alfabetismo baseada em surveys, com medição direta de

habilidades por meio de testes, além de coleta de informações detalhadas sobre práticas de

leitura, escrita e cálculo matemático na vida diária é o Indicador Nacional de Alfabetismo

Funcional (Inaf), iniciativa de duas organizações não governamentais brasileiras: a Ação

Educativa e o Instituto Paulo Montenegro. A Ação Educativa tem como missão a defesa de

direitos educacionais, atua na área de pesquisa e informação, desenvolvimento de programas

de educação de adultos, mobilização social e advocacy. O Instituto Paulo Montenegro é

ligado a uma grande empresa de pesquisa que atua em toda a América Latina – o IBOPE – e

tem como objetivo canalizar recursos financeiros e técnicos da empresa e de terceiros para

iniciativas de interesse social sem finalidade lucrativa. O objetivo dessas organizações, ao

idealizar o Inaf, foi oferecer à sociedade informações sobre as condições de alfabetismo da

população adulta brasileira, de modo a fomentar o debate público sobre o tema e subsidiar a

formulação de políticas de educação e cultura (Ribeiro, 2003).

O Inaf Brasil é feito com base em pesquisas anuais realizadas junto a amostras de 2

mil pessoas representativas da população brasileira de 15 a 64 anos em todas regiões do país,

em zonas urbanas e rurais. Em entrevistas domiciliares, são aplicados testes e questionários

aos sujeitos que compõem a amostra. Em 2001, 2003 e 2004, o levantamento abordou a

leitura e escrita, em 2002 e 2004, as habilidades matemáticas.

Para a elaboração dos instrumentos, partiu-se da construção de uma matriz que inclui

diversas esferas da experiência cotidiana onde materiais escritos estão presentes. Para cada

uma, listaram-se os suportes e tipos de textos escritos correspondentes a diversos objetivos

que motivam a leitura e escrita (distrair, informar, registrar, controlar, etc). Finalmente,

elencaram-se também as habilidades de leitura e escrita envolvidas nessas diferentes práticas,

por exemplo, localizar o material escrito em que uma informação desejada pode ser

encontrada, identificar o tema central de um texto, localizar nele informações específicas,

comparar informações de diferentes textos, estabelecer relações entre fato e opinião, mobilizar

dados necessários à redação de um texto, identificar o destinatário do texto e suas

necessidades de informação sobre o tema tratado e muitas outras. Processo semelhante foi

feito com relação às práticas e habilidades que envolvem representações e cálculos

matemáticos. Nos questionários, procurou-se fazer um levantamento extenso de informações

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sobre práticas de leitura, escrita e cálculos. Focalizaram-se o acesso e o uso de quatro

materiais escritos principais: livros, revistas, jornais e computadores. Outros materiais escritos

foram incluídos e suas finalidades de uso averiguadas, considerando seis esferas de vivência:

doméstica, do trabalho, da participação cidadã, da educação e da religião.

Os resultados dos testes foram analisados tendo em vista a conceituação das

habilidades num contínuo. Um primeiro passo foi analisar as características dos itens que

foram realizados com sucesso por pessoas com diferentes desempenhos (escore total) e, com

base nessa análise, caracterizar níveis de habilidade de acordo com faixas de desempenho. As

tarefas que serviram para caracterizar certo nível de habilidade são aquelas realizadas

corretamente por pelo menos 75% das pessoas naquela faixa de escore total.

Depois disso seria preciso qualificar cada um desses níveis estabelecendo um

julgamento: qual nível de habilidade seria aceitável e qual deveria ser caracterizado como

insuficiente? Com base na análise das demais informações coletadas pela pesquisa e em

diálogo com consultores especialistas, chegou-se à seguinte definição: os sujeitos que não

respondessem pelo menos 2 itens foram classificados como analfabetos e os demais em três

níveis de alfabetismo. O termo analfabeto funcional – ainda que de uso corrente na mídia –

não foi utilizado, pois, a rigor, mesmo habilidades muito limitadas têm funcionalidade em

certos contextos. A manutenção do termo analfabeto, por outro lado, visou chamar a atenção

para uma situação que ainda é significativa em países como o Brasil, nos quais significativas

parcelas da população têm baixa renda e baixa escolaridade, e nos quais a problemática do

analfabetismo é pauta das políticas sociais e educacionais.

Os três níveis de habilidade de alfabetismo e habilidades matemáticas estão descritos

no quadro a seguir:

Quadro 1 – Habilidades que caracterizam os Níveis de Afabetismo do Inaf

Leitura Habilidades Matemáticas

Analfabetismo Não domínio das habilidades medidas. Não domínio das habilidades medidas.

Alfabetismo – Nível Rudimendar

Localizar uma informação simples em enunciados muito curtos, um anúncio ou chamada de capa de revista, por exemplo.

Ler e anotar números de uso freqüente – preços, horários, números de telefone – de medir um comprimento com fita métrica, localizar uma data num calendário.

Alfabetismo – Nível Básico

Localizar uma informação em textos curtos ou médios (notícia ou manual de instrução, por exemplo), mesmo que seja necessário realizar inferências simples.

Ler números naturais, independente da ordem de grandeza; ler e comparar números decimais que se referem a preços; contar dinheiro e fazer troco; resolver situações envolvendo operações usuais de adição e subtração ou mesmo multiplicação, quando não conjugada a outras operações.

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Alfabetismo – Nível Pleno

Localizar mais de um item de informação em textos mais longos, comparar informação contida em diferentes textos, estabelecer relações entre as informações (causa/efeito, regra geral/caso, opinião/fonte), ater-se à informação textual quando contrária ao senso comum.

Adotar e controlar uma estratégia na resolução de problemas que demandam a execução de uma série de operações, por exemplo, tarefas envolvendo cálculo proporcional e porcentagens; interpretar gráficos e mapas.

Em 2006, a equipe do Inaf dedicou-se ao aperfeiçoamento da metodologia utilizada.

Introduziu a Teoria da Resposta ao Item (TRI) – metodologia usada nos estudos

internacionais sobre alfabetismo adulto, assim como nas grandes avaliações educacionais no

Brasil e no exterior –, de modo a viabilizar o desenvolvimento de instrumentos de avaliação

mais precisos e flexíveis. Com base em estudo especial feito junto à população carcerária

paulistana (IPM/Funap, 2006), foi possível comprovar que as habilidades de leitura e

matemática medidas pelo Inaf podem ser abordadas como uma única dimensão cognitiva,

relativa à capacidade de operar com informações escritas – verbais e/ou numéricas – para

enfrentar as demandas e aproveitar oportunidades de comunicação e acesso à informação

presentes em nosso contexto. Já em 2007, a equipe passou a trabalhar na interpretação de uma

escala combinada, procurando identificar as semelhanças existentes nas operações lógicas que

as pessoas dominam em cada nível da escala, operações essas implicadas na capacidade de

ler, processar informações e interpretá-las. Outro importante ganho metodológico que se faz

com a utilização da TRI é a possibilidade de gerar um banco de itens com base no qual podem

ser produzidos instrumentos específicos para estudos especiais, cujos resultados sejam

comparáveis com os da população brasileira. Como se comentará mais adiante, a avaliação

de programas, especialmente os voltados a jovens e adultos, é uma enorme lacuna a ser

preenchida no âmbito das políticas educacionais.

Alguns resultados

Os resultados do Inaf obtidos ao longo desses cinco anos mostram que o país vem

fazendo avanços pequenos no que se refere à ampliação das capacidades de leitura, escrita e

cálculo da população. Na faixa etária investigada, o Inaf identificou, em 2005, 7% de pessoas

na condição de analfabetismo absoluto. No terreno das habilidades matemáticas, esse

percentual é menor – apenas 2% em 2004. Em ambos os domínios, entretanto, há

aproximadamente 30% de pessoas que demonstram um domínio muito rudimentar das

habilidades, só sabem ler os números e realizar operações muito simples, ler textos muito

breves e localizar informações muito evidentes. Só 26% para a leitura e 23% para a

matemática mostram que têm domínio pleno das habilidades (Tabela 1).

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Tabela 1 – Evolução dos níveis de alfabetismo (Inaf 2001 – 2005)

Leitura e escrita Habilidades Matemáticas

2001 2003 2005 Diferença 2002 2004 Diferença

Analfabetismo 9% 8% 7% -2 pp 3% 2% -1 pp

Alfabetismo – Nível Rudimentar

31% 30% 30% - 1 pp 32% 29% -3 pp

Alfabetismo – Nível Básico

34% 37% 38% + 4pp 44% 46% + 2 pp

Alfabetismo – Nível Rudimentar

26% 25% 26% - 21% 23% + 2 pp

Corroborando todos os estudos internacionais, o caso brasileiro evidencia que o

aumento da escolaridade é o principal fator a promover o alfabetismo, tanto no que se refere

às habilidades quanto às práticas de leitura, escrita e cálculo matemático. Os resultados

mostram, entretanto, que as aprendizagens correspondentes a cada grau de ensino são bastante

desiguais e que, para a grande maioria, a baixa qualidade da educação oferecida compromete

enormemente os ganhos em que a ampliação das oportunidades de escolarização deveriam

resultar. Os quatro anos de escolaridade que supostamente garantiriam a alfabetização

funcional, de fato, não se mostram suficientes para que uma grande parcela supere o nível

rudimentar de habilidades. Entre pessoas que têm menos que esse patamar, a situação é ainda

mais alarmante, pois aproximadamente um terço se encontra ainda na condição de

analfabetismo absoluto. Só entre a população com pelo menos o ensino fundamental completo

é que mais de 80% atingem os níveis básico ou pleno das habilidades, tanto em leitura quanto

em matemática (IPM & Ação Educativa, 2004 e 2005).

O grande peso do nível de escolaridade na determinação dos níveis de alfabetismo se

explica, por um lado, pelo fato de que é na prática escolar que essas habilidades são ensinadas

e exercitadas de forma sistemática por longos períodos. Além disso, as credenciais escolares

franqueiam o acesso aos contextos e práticas sociais onde tais habilidades poderão, com mais

ou menos intensidade, serem aplicadas, mantidas, aperfeiçoadas e ampliadas após o processo

de escolarização. Quando se está estudando o alfabetismo junto à população jovem e adulta é

fundamental considerar as oportunidades de uso da leitura e da escrita que as pessoas têm em

seu dia-a-dia, condicionados por seu tipo de ocupação e a seu nível de renda, entre outras

variáveis.

O trabalho constitui para essa população uma esfera de vivências crucial, que catalisa

demandas, oportunidades e motivações para que as pessoas sigam aprendendo ao longo da

vida e utilizando a língua escrita para informar-se, planejar e comunicar-se. Para investigar as

práticas nessa esfera, o Inaf pergunta às pessoas que estão trabalhando ou já trabalharam

alguma vez, que materiais lêem e escrevem em seu trabalho. Oferece-se uma lista de dezoito

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itens e o entrevistado pode citar ainda outros. Os tipos de materiais mais lidos no trabalho,

segundo levantamento de 2005, são: bilhetes (26%), jornais (25%), revistas (23%), relatórios

(22%), pedidos ou comandas (19%), agendas ou calendários (17%), faturas, notas fiscais,

recibos ou duplicatas (17%) manuais de instrução (15%), plantas mapas ou desenhos técnicos

(11%), entre muitos outros. Os materiais escritos com mais freqüência são bilhetes (30%),

pedidos ou comandas (22%), relatórios (22%), contas e orçamentos (18%), faturas, recibos,

notas fiscais e duplicatas (13%), agenda (18%), formulários (13%), cartas, ofícios e

memorandos (11%). Proporções bastante significativas de pessoas não lêem (32%) e nem

escrevem (38%) nada no contexto de trabalho. A proporção dos que lêem ou escrevem três ou

mais tipos de materiais e que, portanto, fazem usos mais diversificados de suas habilidades de

alfabetismo corresponde, respectivamente, a 23 e 30%. Como era de se esperar, as pessoas

com maior nível de habilidade são as que têm, no ambiente de trabalho, maiores demandas de

leitura e escrita, como mostra a Tabela 2.

Tabela 2. Quantidade de tipos de materiais que lê no trabalho, segundo o nível de alfabetismo (Inaf

2005)

Total Alfabetismo

Nível Rudimentar Alfabetismo Nível Básico

Alfabetismo Nível Pleno

Tipos de materiais de leitura

Nenhum 32% 50% 27% 9%

Um 17% 20% 19% 12%

Dois 12% 10% 16% 9%

Três ou mais 38% 20% 38% 70%

Tipos de materiais de escrita

Nenhum 38% 56% 31% 17%

Um 14% 25% 30% 21%

Dois 25% 9% 17% 19%

Três ou mais 23% 10% 22% 43%

É fato, portanto, que as demandas de leitura e escrita no ambiente do trabalho são

restritas para a maioria da população. Uma abordagem estritamente economicista, que procure

vincular desenvolvimento econômico à elevação dos níveis de habilidade de forma muito

simplista, não deve chegar a bons resultados. As chamadas demandas sociais a que o

alfabetismo responde, entretanto, abarcam não somente às atividades produtivas, mas as

possibilidades de consumo cultural e participação social de forma geral, atuando também

nesse âmbito para produzir desigualdades. Ao investigar esses outros domínios, o Inaf verifica

que, considerando os baixos graus de escolarização e renda de parcela importante da

população, o interesse dos brasileiros pela leitura é significativo: 68% dos entrevistados

afirmam que gostam de ler para se distrair; 79% afirmam que lêem livros ainda que de vez em

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quando; 35% afirmam que lêem jornal pelo menos uma vez por semana; 28% afirmam ler

revistas pelo menos uma vez por semana.

O tipo de leitura que as pessoas realizam varia, evidentemente, de acordo com o nível

alfabetismo. A leitura de inspiração religiosa é freqüente em todos os grupos, independente do

desempenho, certamente porque o tipo de leitura realizada nessa esfera não corresponde à

leitura de tipo analítica que o teste demanda. Outros tipos de leitura são mais freqüentes entre

pessoas com níveis mais elevados. É interessante observar que a poesia já aparece com

freqüência semelhante à do nível pleno já no nível básico, evidenciando mais uma vez que há

leituras de ordem subjetiva onde não necessariamente são mobilizadas as habilidades

analíticas verificadas no teste. Já a leitura de livros de ficção, história e biografias, livros

técnicos e de orientação pessoal mantém uma correção bastante linear com o nível de

alfabetismo.

Gêneros de livros que os alfabetizados costumam ler, por níveis de habilidade – INAF 2005

TOTAL Alfabetizados

Nível Rudimentar

Alfabetizados Nível Básico

Alfabetizados Nível Pleno

Bíblia ou livros religiosos 45% 46% 48% 47%

Romance, aventura, policial, ficção 30% 19% 32% 49%

Livros didáticos 21% 16% 19% 33%

Poesia 15% 12% 18% 19%

Biografia, relatos históricos 15% 9% 16% 26%

Livros técnicos, de teoria, ensaios 11% 4% 9% 22%

Auto-ajuda, orientação pessoal 11% 5% 9% 22%

Não costuma ler livros 21% 29% 15% 7%

Outro aspecto que uma investigação sobre habilidades e práticas de alfabetismo não

poderia deixar de investigar é o acesso às tecnologias de comunicação e informação, já que,

hoje em dia, o computador é também um importante veículo de textos escritos. Os dados

mostram, entretanto, que seu uso é muito reduzido na população: só 19% utilizam

computador pelo menos uma vez por semana, 6% utilizam eventualmente, enquanto 75% não

utilizam (Inaf 2005). Outro recurso tecnológico mais simples, entretanto, é bem mais

disseminado junto à população: 47% afirmam usar habitualmente a calculadora para realizar

operações em seu dia-a-dia. Em algumas questões do teste de habilidades matemáticas, a taxa

de utilização desse instrumento supera os 70% (IPM & Ação Educativa, 2004). Apesar de seu

uso favorecer as possibilidades de acerto do item no teste, os usuários nem sempre são bem

sucedidos na resolução do problema. Em parte por não dominarem seus recursos, mas

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também, e principalmente, porque a resolução de problemas não depende apenas da execução

dos cálculos, mas capacidade de elaborar e executar, controladamente, um plano de resolução

e verificar a pertinência do resultado. Frente a esse grau de disseminação do uso da

calculadora junto à população, é surpreendente que os programas de educação básica para

crianças e adultos não a utilizem com recurso pedagógico com mais freqüência; tanto para

que mais pessoas aprendam a usá-la com eficiência como para que possam dedicar-se mais à

compreensão das situações-problema e das relações numéricas do que com a mecanização dos

procedimentos de cálculo.

Indicações para as políticas

A pesquisa sobre o alfabetismo funcional no Brasil revela, portanto, um país onde a

cultura letrada está amplamente disseminada, mas de forma muito desigual. Da população

alfabetizada, um contingente significativo utiliza as habilidades de leitura e escrita em

contextos restritos e demonstra habilidades também restritas nos testes de leitura e habilidades

matemáticas. Apesar de todos os níveis de alfabetismo serem funcionais – ou seja, úteis para

enfrentar pelo menos algumas demandas do cotidiano – só os que se classificam no nível

pleno apresentam domínio das habilidades avaliadas, fazendo usos mais intensos e

diversificados da leitura e da escrita em vários contextos.

A escolaridade é fator decisivo na promoção do alfabetismo da população. A pesquisa

revela como os déficits educacionais se traduzem em desigualdades quanto ao acesso a vários

bens culturais, oportunidades de trabalho e desenvolvimento pessoal que caracterizam as

sociedades letradas. Se necessário um indicador único relativo a anos de escolaridade para

dimensionar o alfabetismo funcional da população, mais apropriado seria que oito anos de

escolaridade fossem considerados como mínimo para se atingir essa condição. A pesquisa

mostrou que os percentuais de pessoas nos níveis básico e pleno de alfabetismo – tanto em

leitura e escrita quanto em habilidades matemáticas – ultrapassam os 80% da população só

entre aqueles com ensino fundamental completo, grau educacional que a Constituição

brasileira determina como direito de todos os cidadãos, independentemente da idade, e cuja

oferta gratuita é obrigação do estado.

Diferente do que muitas vezes é divulgado na mídia, os brasileiros, de uma forma

geral, não são avessos à leitura. Dois terços dos entrevistados afirma que gostam de ler para se

distrair e o Brasil ainda tem muito o que investir na promoção do acesso gratuito a materiais

escritos, não só livros, mas também revistas e jornais e, principalmente, aos computadores e à

Internet.

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Diante de tanto conhecimento já acumulado sobre a alfabetização como fenômeno

cultural complexo, de sua associação com a questão das desigualdades em geral e em

particular com as de oportunidades educativas, não deixa de ser espantoso que as campanhas

de combate ao analfabetismo, na sua acepção mais restrita, ainda tenham tanto apelo nas

políticas dos governos nacionais e dos organismos internacionais (Ribeiro e Batista, 2005).

Preocupados em fazer baixar o “número mágico” – a porcentagem de pessoas na população

que consideram que não sabem ler e escrever – os governos ainda promovem campanhas para

alfabetização inicial de adultos, sem reconhecer e enfrentar adequadamente as dificuldades

para chegar até a população alvo, sem investir suficientemente na qualidade pedagógica, sem

equacionar adequadamente a oferta de oportunidades de continuidade e quase sempre obtendo

resultados muito abaixo das expectativas. Diante do malogro, o caminho tem sido muitas

vezes criar uma certa confusão de números para a opinião pública, encobrindo dados

censitários com quantidades de inscritos nos seus programas.

O fato é que diversos planos nacionais ou multilaterais já incluem em seus preâmbulos

essa visão ampla da alfabetização como promoção da cultura escrita, reconhecem a

importância da escolarização básica, do acesso aos livros e outros impressos, assim como às

novas tecnologias da comunicação (OEI, 2006). Entretanto, ao estabelecer suas metas e

previsões orçamentárias, onde de fato se explicitam as orientações e condições para a ação, os

planos retornam ao universo restrito: definem metas de atendimento para alfabetização inicial

de jovens e adultos – quase sempre propondo de forma irrealista a “erradicação do

analfabetismo” como primeiro passo a ser dado – sem metas mais concretas em relação às

oportunidades de continuidade de estudos na educação básica ou qualificação profissional, de

educação não formal, de acesso a livros, outros impressos e às novas tecnologias de

comunicação. Essa foi, por exemplo, a inspiração do mais recente programa nacional, o Brasil

Alfabetizado, cujos resultados frustraram o Ministério da Educação, pois grande parte dos

milhões de adultos atendidos não eram de fato os que se declaram analfabetos, mas pessoas

com baixa escolaridade, não afetando – portanto – as estatísticas nem atendendo

adequadamente as necessidades educativas do público atendido.

Os estudos sobre cultura escrita – tanto no viés qualitativo quanto qualitativo – mas

principalmente avaliações independentes e criteriosas dos programas de alfabetização e

educação de adultos são essenciais para que possamos estabelecer planos mais realistas e

eficazes para elevar os níveis educacionais da população. Infelizmente, ainda existe muita

carência nesse sentido e mesmo educadores progressistas resistem às avaliações porque, nesse

campo, elas são quase sempre utilizadas como veredicto, ou para glorificar os sucessos da

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política ou para condenar a alfabetização e educação de adultos como políticas “ineficazes”

do ponto de vista econômico. Nesse contexto, é essencial, antes de mais nada, afirmar,

enfaticamente, que a educação – da qual a alfabetização faz parte – é um direito de todas as

crianças, jovens e adultos. Com base nesse princípio, então, poderemos avaliar os planos e

políticas em curso, visando aperfeiçoá-los com diretrizes mais coerentes quanto a estratégias e

recursos necessários para colocá-las em prática.

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