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Revisitando a Periodizao Do Portugus

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  • 7/26/2019 Revisitando a Periodizao Do Portugus

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    DOMNIOS DE LINGU@GEMRevista Eletrnica de Lingustica (www.dominiosdelingagem.org.br)

    Ano 3, - n 2 2 Semestre 2009 - ISSN 1980-5799

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    Revisitando a periodizao do portugus: o portugus mdio

    Esperana Cardeira*

    Abstract

    The aim of this paper is to clarify the definition portugus mdio (Middle Portuguese), describing thehistorical, social and cultural factors which lead to this phase of the history of our language andpresenting some variables that act as key phenomena to delimit the boundaries of Middle Portuguese.

    Key-words: Periodization, Middle Portuguese, elaboration, standardization.

    Variao, mudana e periodizao

    , nos nossos dias, um facto conhecido que as lnguas esto em permanente mudana. Ainda

    assim, ao lermos um texto antigo estranhamos a estrutura, o lxico, a grafia, mas conseguimos

    compreend-lo. Porqu? A verdade que a mudana no atinge a lngua como uma ruptura: a

    cada momento, novas estruturas emergentes combinam-se com elementos antigos de tal forma

    que a lngua, sendo um sistema dinmico e em contnua mudana, nos ilude com uma

    aparente estabilidade. A mudana, sempre presente na lngua, nunca demasiada ou seja,

    nunca pe em perigo a continuidade nem a comunicao. Embora o portugus esteja a mudar

    agora, neste preciso momento no nos apercebemos da mudana (mesmo que sejamos

    sensveis variao). Precisamos de olhar distncia: ento, sim, percebemos claramente que

    a nossa lngua mudou e que o portugus j no o que era.

    Qualquer falante sensvel variao, reconhecendo-a presente na sua lngua quer a nvel

    geogrfico quer na estratificao social. Parece claro que a variao existe na lngua emqualquer sincronia. Seria absurdo imaginar que em pocas passadas no houvesse, tal como

    hoje, variao social e regional na lngua. Significa isto que a variao no pode ser

    exclusivamente objecto de estudos sincrnicos. Uma vez que a dicotomia saussureana

    sincronia-diacronia se tem revelado insuficiente para dar conta do processo histrico da

    mudana lingustica, a investigao em lingustica histrica dever ter em conta a variao,

    tornando-se mais abrangente e completando-se com uma perspectiva diatpica, diastrtica e

    diafsica ou seja, encarando o sistema lingustico como um diassistema. Por isso, a escolha de

    *Doutorada em Lingustica Portuguesa, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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    um corpus para a observao de processos de mudana lingustica no pode deixar de

    materializar estas diversas perspectivas, seleccionando documentos de diferentes

    provenincias geogrficas, textos literrios e no literrios, originais e cpias, certides ou

    tradues: um corpus abrangente, necessrio para caracterizar de forma significativa uma

    determinada sincronia, ter que considerar que cada tipo textual espelha realidades

    lingusticas diversas. Mas imaginemos, por um momento, que o investigador dispe de um

    conjunto ideal de documentos: ainda assim, a lngua que ir estudar ser apenas e sempre a

    escrita, nunca a oral. Nunca poderemos saber, realmente, como se pronunciava o portugus

    em pocas passadas. No estvamos l. No podemos ouvir. A histria de uma lngua nunca

    , na verdade, toda a histria.

    Se a variao est presente na sincronia, ento a mudana, que implica variao, tambm

    estar sempre presente em qualquer lngua viva. certo que pode haver variao sem

    mudana e que podemos isolar duas ou mais variantes em coexistncia pacfica sem que,

    durante algum tempo, uma tendncia significativa para a escolha de uma delas seja

    claramente identificvel. Mais cedo ou mais tarde, contudo, ser de esperar que uma dessas

    variantes seja seleccionada enquanto superestrutura lingustica, configurando uma mudana.

    Assim, a variao sincrnica surge justamente como o veculo da mudana lingustica ao

    desfavorecer (e, logo, eliminar) determinadas variantes em favor de outras socialmente

    valorizadas. Quero com isto dizer que a variao e a mudana esto, necessariamente,

    presentes em qualquer sincronia, da decorrendo no me parecer legtima a dissociao

    sincronia/diacronia.

    Ora, se bvio que qualquer sincronia apresenta variao, tambm ser bvio que, uma vez

    que a mudana decorre da variao e ambas operam continuamente na lngua, a delimitao

    de fronteiras entre perodos na histria de uma lngua dever ser, inevitavelmente, artificial.

    Dito isto, a verdade que a investigao em lingustica histrica incide, precisamente, na

    comparao entre vrias gramticas sincrnicas deduzidas da observao de documentos

    escritos e na interpretao das diferenas entre essas gramticas como o desenvolvimento

    histrico da lngua, no pressuposto de que a lngua escrita desses documentos reflectir em

    maior ou menor grau a lngua falada na poca. Embora no tenhamos conscincia de que a

    lngua que falamos est a mudar, quando comparamos documentos escritos em pocas

    diferentes, reconhecemos diferenas entre essa lngua e a que falamos actualmente. Todavia,

    por muitos cortes sincrnicos que faamos, nunca daremos conta da continuidade da lngua:

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    se o processo de evoluo da lngua fosse um processo descontnuo, ento sim, existiriam

    rupturas entre fases sucessivas e teramos claramente conscincia da mudana.

    Em suma: se o investigador esquecer a variao lingustica e a continuidade da evoluoacabar por criar artificialmente um estado de lngua que, ao corresponder a uma mdia

    deduzida dos dados concretos que recolheu, nunca poder dar conta da realidade que pretende

    descrever. com este problema que se depara quem pretende estabelecer perodos na histria

    de uma lngua. Como traar fronteiras num sistema que evolui na continuidade? E por qu ou

    para qu? Simplesmente porque o nosso pensamento precisa de pontos de referncia.

    Dividimos a nossa vida em etapas, passamos pela infncia, adolescncia, idade adulta, terceira

    idade... Dividimos a histria da humanidade em eras. Fazem-nos falta, estas balizas, para nos

    situarmos. O mesmo se passa com a histria de uma lngua. Pela sua prpria natureza, a

    evoluo da lngua torna artificial qualquer diviso cronolgica precisa mas as vantagens que

    uma tal periodizao apresenta, enquanto instrumento de trabalho, justificam as repetidas

    tentativas dos historiadores da lngua.

    O problema o seguinte: como delimitar perodos na histria de uma lngua? Quando comea

    e quando acaba um perodo? A evoluo de uma lngua determinada no s por factores

    estritamente lingusticos mas tambm por mudanas histricas, econmicas, sociais, culturais,que se materializam em profundas transformaes na mentalidade dos falantes. Que factores e

    que momentos deveremos considerar fundamentais na histria da lngua que falamos? As

    propostas de periodizao tm respondido a esta questo de modos diversos: umas partem das

    divises tradicionais da histria, outras baseiam-se na produo literria, outras, ainda,

    referem-se, exclusivamente, aos factos lingusticos. A periodizao de uma lngua, sendo

    artificial, depende de consideraes subjectivas. No , por isso, nem poderia ser, consensual.

    Atribuir uma designao a uma determinada fase da histria de uma lngua implica um

    complexo de consideraes de ordem histrica e cultural, alm de lingusticas. No so

    questes pacficas a delimitao temporal, a nomeao e definio de um perodo histrico.

    Dar nome a uma fase histrica do portugus j defini-la, enform-la em determinada viso:

    o perodo trovadoresco ser um perodo literrio, enquanto galego-portugus uma

    designao que pode ser conotada com uma perspectiva histrica, literria ou lingustica.

    Talvez por isso, em obra recente (2006), Introduo Histria do Portugus, Ivo Castro

    considere ser mais interessante e prximo da verdade repartir a histria do portugus em dois

    ciclos ou movimentos sucessivos de crescimento. O primeiro o ciclo daformao da lngua

    (sculos IXa XV), em que a lngua acompanha o movimento da Reconquista, virando-se para

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    sul. O segundo ciclo, da expanso da lngua, corresponde ao perodo dos Descobrimentos,

    quando o portugus se consolida em Portugal e se instala fora da Europa. Esta proposta de

    Castro espelha de forma mais realista a histria da nossa lngua mas no nos permite ignorar

    as propostas tradicionais, que intentam estabelecer fronteiras mais precisas:

    L. Vasconcellos

    (1911)

    S. Silva Neto

    (1957)

    P. V. Cuesta

    (1971)

    Lindley Cintra

    (Castro 1999)

    E.

    Bechara

    (1991)

    At sc. IX

    (882)

    Pr-histrico Pr-histrico

    Pr-literrio Pr-literrio

    At c.1200

    (1175)

    Proto-

    histrico

    Proto-

    histrico

    At

    1385/1420Arcaico

    Trovadoresco Galego-

    portugus

    Antigo Arcaico

    At

    1536/1550

    Comum Pr-clssico Mdio Arcaico

    mdio

    At

    sc. XVIII Moderno Moderno

    Clssico Clssico Moderno

    Sc. XVIII

    em diante

    Moderno Moderno Hodierno

    O portugus mdio

    O perodo que vou tentar definir aqui o do portugus mdio. Enquanto Leite de

    Vasconcellos considera o portugus arcaico uma fase alargada que se estende desde o

    surgimento dos primeiros textos escritos em portugus at meados do sculo XVI, Serafim da

    Silva Neto, na esteira de Carolina Michalis (1946), subdivide o portugus antigo em duas

    fases: atrovadoresca, at 1350, e o perodo doportuguscomum(que corresponde quele que

    Michalis designava como perodo da prosa histrica). As designaes que Michalis usa

    (trovadoresco e prosa histrica) mostram-nos um olhar sobre a evoluo lingustica que

    decorre claramente do destaque dado produo literria. Outros factores podem ser tomados

    em considerao: Pilar Vzquez Cuesta, Lindley Cintra e Evanildo Bechara apresentam

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    propostas que se fundamentam nos efeitos lingusticos de grandes transformaes histrico-

    sociais. Estas transformaes decorrem da crise dinstica que, culminando na batalha de

    Aljubarrota em 1385, instaura uma nova dinastia. Com D. Joo Ie a dinastia de Avis, a antiga

    aristocracia declina e sobe ao poder a burguesia. Com a revoluo poltica e social d-se,

    tambm, uma revoluo lingustica: Lisboa torna-se o centro do pas e local de elaborao da

    norma.

    Na classificao de Pilar Vzquez Cuesta, este perodo de profundas transformaes

    designado como portugus pr-clssico e na de Lindley Cintra como portugus mdio.

    Evanildo Bechara (1991) retoma este termo, propondo a seguinte periodizao: fase arcaica

    at final do sculo XIV, fase arcaica mdiadurante todo o sculo XVe at primeira metade

    do XVI, quando comea a fase moderna.

    Aos factores polticos acrescenta Dieter Messner (1983 e 2002) um elemento que ter,

    tambm, contribudo para a mudana lingustica: o crescimento dos centros urbanos, custa

    de um movimento migratrio das populaes rurais 1 , que se traduziu em renovao da

    estrutura scio-poltica e econmica tradicional e que favoreceu a simplificao e nivelamento

    da lngua (ou seja, uma koinizao) para permitir a comunicao entre falantes de variedades

    diversas. durante esta fase de koinizao que se situa o portugus mdio.Clarinda Maia (1986) e Ramn Mario Paz (1998) introduzem, ainda, outro aspecto a ter em

    conta na caracterizao do portugus mdio: o processo de diferenciao entre o galego e o

    portugus. At ao sculo XIVportugus e galego constituem uma unidade que se foi definindo

    atravs de um processo de distanciamentoem relao s outras lnguas romnicas; do sculo

    xv em diante, enquanto o portugus sofre mudanas que o encaminham no sentido da

    elaborao2de um padro que ter como modelo a lngua literria, na Galiza castelhanizada o

    galego sobrevive apenas no uso oral.

    Consideremos, portanto, que o perodo trovadoresco constitui uma fase comum galego-

    portuguesa que termina com a separao entre portugus e galego, no momento em que a

    vitria da burguesia sobre a aristocracia rural nortenha, simbolizada pela batalha de

    Aljubarrota, determina a deslocao do centro vital do reino para o sul e que Lisboa, se torna

    1Segundo Messner, as pestes dos finais do sculo XIVtero dizimado grande parte da populao, particularmente

    nas cidades. As populaes rurais convergiram, ento, para os centros urbanos.

    2 Uso os termos distanciamento e elaborao no sentido klossiano (sobre esta questo, vd. Joseph 1987;desenvolvo estes conceitos em Cardeira 2005).

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    o grande (e crescente) centro urbano do pas. Mais do que um perodo de convivncia entre

    formas arcaicas e aquelas que viro a perdurar, o portugus mdio um perodo,

    relativamente curto, em que se registam mudanas que anunciam, j, o portugus que hoje

    falamos:

    portugus antigo portugus mdio

    hiatos Resoluo de hiatos: crase; ditongao; insero de

    consoante ou semivogal

    Trs terminaes nasais:

    -ANU >--o

    -AM,-ANT,-ANE>-

    -UM,-UNT,-ONE,-UDINE> -

    Unificao das terminaes nasais:

    -w

    Particpio passado (2 e 3conj) udo Particpio passado ido

    -d- na 2pes.plural Sncope de -d- e ditongao

    Terminao paroxtona em vil/-vel Terminao paroxtona emvel

    Duas sries de possessivos:

    tona: ma ta sa / Tnica: ma tua sua

    Desaparecimento da srie tona dos possessivos

    Palavras em -agemmasculinas/femininas Palavras em -agemfemininas

    Nomes uniformes em -or, -ol, -s Biformizao dos nomes

    Predomnio da coordenao Introduo da subordinao

    O quadro acima mostra que durante o perodo a que chamamos portugus mdio a lnguaretomou um modelo latino que a renovou e enriqueceu, e que serviu de suporte sua

    gramatizao a partir do sculo seguinte ( durante o portugus mdio que se verifica a

    introduo da subordinao na construo frsica, em oposio a uma construo tpica do

    portugus antigo, em que predominava a coordenao; do mesmo modo, desaparecem ou

    substituem-se vocbulos arcaicos e alarga-se o lxico com recurso a emprstimos do latim).

    Mostra, tambm, um conjunto de solues niveladoras e tendencialmente inovadoras que

    poderemos relacionar com um processo de koinizao (a resoluo de hiatos, a substituio da

    terminao udodo particpio passado da 2 e 3 conjugaes por ido, a sncope de -d- na 2

    pessoa do plural da flexo verbal, a substituio da terminao paroxtona vil por -vel, o

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    desaparecimento da srie tona dos possessivos ma, ta, sa, a regularizao e fixao do

    gnero em formas nominais). Este to largo conjunto de mudanas em to curto espao de

    tempo no pode ser casual e, julgo, deve ser encarado como indcio claro de um processo de

    elaborao lingustica em curso.

    Que factores determinaram estas mudanas? Para elas contribuiram uma fora poltica (a

    emergncia do conceito de nao), uma fora cultural (o desenvolvimento da prosa e a sua

    divulgao pela imprensa) e uma fora social (os Descobrimentos): estes trs vectores foram

    determinantes para a normativizao e fixao (i.e., para a estandardizao) do portugus

    europeu.

    Desde finais do sculo XIV e ao longo dos sculos XVe XVI, a sociedade portuguesa sofreuprofundas alteraes. Iniciou-se uma nova dinastia e mudaram as classes detentoras do poder.

    Portugal ganhou uma nova capital, o poder deslocou-se para Lisboa e o saber para a

    Universidade. A revoluo de 1383-1385, ao determinar a queda da antiga nobreza

    setentrional, determinou, tambm, uma rejeio das suas caractersticas lingusticas,

    substitudas pelas da regio em que a nova corte se instala. Foi assim que a variedade dialectal

    da rea centro-meridional, terra reconquistada e repovoada, lugar de encontro de gentes e

    dialectos e, por isso, lugar de koinizao

    3

    , se constituiu como base de normalizaolingustica. Norte e sul opunham-se j, em consequncia das estratgias da Reconquista e do

    repovoamento: um norte-noroeste de terras antigas, densamente povoado, estvel,

    dialectalizado, centro da produo trovadoresca e ligado Galiza, demarcava-se de um

    centro-sul morabe, reconquistado, de populao rarefeita e com uma lngua homogeneizada

    pelo repovoamento. No sculo XV este eixo centro-meridional tornou-se o modelo sobre o

    qual se construiu a elaborao lingustica do portugus, funcionando como fora centrpeta e

    absorvendo as distintas reas dialectais, deixando margem as caractersticas do norte.

    Quando observamos a actual estruturao dialectal da faixa ocidental da Pennsula Ibrica

    apercebemo-nos de que uma antiga unidade histrica e lingustica, o galego-portugus dos

    Cancioneiros medievais, se ramificou em duas lnguas. A norte do Minho o galego, reprimido

    durante sculos. A sul, e virado para o mar, o portugus, que sofreu, a partir do sculo XV, um

    processo de elaborao que o instituiu como idioma nacional. A diviso geogrfica que o

    portugus conhece actualmente, em variedades setentrionais e centro-meridionais,

    3Uso o termo koinizao no sentido em que Siegel (1985) o aplica, como um resultado estabilizado da misturade subsistemas lingusticos.

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    corresponde a dialectos primrios e secundrios. Os dialectos primrios constituem os

    formados na rea original do galego-portugus, que abrangia a regio de Entre-Douro-e-

    Minho, a Galiza e a zona ocidental das Astrias. No norte, da Galiza ao Douro, o

    repovoamento, iniciado ainda no perodo em que a reconquista partia das Astrias e Leo,

    acrescentou a uma antiga populao rural novos senhores que se apossaram de terras e

    pessoas. A fronteira poltica entre o Reino de Portugal e a Galiza, imposta a uma populao

    estvel e densa, no conseguiu quebrar a unidade lingustica nem nivelar a riqueza dialectal

    que a sua estabilidade, densidade e antiguidade justificam. Os dialectos secundrios, por outro

    lado, so o resultado da colonizao lingustica interna portuguesa no centro e sul. Nestes

    territrios de colonizao, a mistura de populaes vindas quer de norte quer de oeste,

    transportando consigo uma diversidade de variedades lingusticas, materializou-se no

    nivelamento dialectal e na apetncia para a inovao. Assim, os dialectos setentrionais

    portugueses so, de algum modo, a continuao dos dialectos galegos, distinguindo-se

    claramente de uma rea de dialectos centro-meridionais, mais homognea e inovadora, em

    que se elaborou a norma do portugus. Ao Entre-Minho-e-Douro, terra de senhores e

    mosteiros, ope-se o Entre-Douro-e-Tejo, terra de concelhos e do rei (a sul do Douro,

    principalmente entre o Mondego e o Tejo, o repovoamento teve um carcter municipal,

    concentrando-se em torno das cidades e ao longo das principais vias). Do vale do Tejo para

    sul, do repovoamento praticado pelas ordens militares resultaram vastas propriedades e fraca

    densidade populacional. Foi nestas terras novas que foram criados os concelhos de tipo

    perfeito, institudos pelo rei com a outorga de um foral que modelava uma completa

    organizao municipal. Os dialectos portugueses centro-meridionais, foram, portanto,

    forjados em terras reconquistadas e repovoadas, onde a necessidade de comunicao entre

    falantes de variedades diversas propiciou o desenvolvimento de uma espcie de lngua franca,

    simplificada e regularizada4(i.e., koinizada). Foi esta lngua franca, tornada lngua materna danova comunidade, que serviu de base posterior elaborao quando, aps a crise de 1383-

    1385, Lisboa se tornou um atractor de gentes e interesses e a Corte de Avis uma fora

    centrpeta que lanou os fundamentos de um idioma nacional.

    4Referindo-se ao processo de koinizao no espanhol da Amrica, Beatriz Weinberg (1994: 47) afirma que era

    ms fcil para los hablantes que posean determinadas oposiciones perderlas que para quienes no las tenanadquirirlas e que en la alternativa de aprender una variedad con mayor nmero de oposiciones o una variedadsimplificada, les resultaba mucho ms sencilla la segunda possibilidad. Penso que as mesmas afirmaes sepodem aplicar a Portugal.

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    O incio do sculo XV marca, tambm, uma nova fase na histria de Portugal, a fase da

    expanso. Ivo Castro (2006) chama-lhe ciclo da expanso da lngua, afirmando que se

    sucede ao ciclo de formao da lngua. Silva Neto (1961: 3-4), que tambm identifica dois

    grandes ciclos na evoluo do portugus, distingue a formao do domnio lingustico

    portugus (determinada pela Romanizao, de sul para norte, e pela Reconquista, de norte

    para sul) daformao da lngua nacional (que decorre da constituio do Estado). Podemos

    encontrar um paralelismo entre esta perspectiva e a de Kloss (divulgada por Muljai), que

    considera duas fases no nascimento dos idiomas: na primeira, a fase do distanciamento, a

    lngua diferencia-se das outras lnguas da mesma famlia; a segunda fase determinada pela

    criao de foras centrpetas (centralizao do poder, constituio de modelos sociais e

    desenvolvimento da conscincia de pertena a uma comunidade) que iniciam um processo de

    unificao lingustica, eliminao da diversidade dialectal e elaborao de um idioma

    nacional. esta segunda fase que nos interessa, j que nela que se insere o portugus mdio.

    O momento em que o eixo vital do reino se desloca para sul , tambm, o momento em que se

    instaura uma monarquia centralizadora, que pretende afirmar e consolidar Portugal dentro e

    fora da Pennsula. A corte de Avis promove a constituio de uma identidade nacional, com

    base na distanciao portuguesa em relao a Castela, aos castelhanos e aos portugueses que

    por eles tomaram partido. O portugus diferencia-se, assim, no s do castelhano mas tambm

    dos dialectos setentrionais falados pela antiga nobreza portuguesa. E os portugueses comeam

    a adquirir conscincia de que integram uma comunidade (uma nao) que partilha valores (a

    defesa do territrio, a histria, as crenas, a lngua). Lembremos que so os prncipes de Avis

    que inauguram, em Portugal, o perodo a que Michalis chama da prosa histrica,

    escrevendo, traduzindo e mandando escrever e traduzir.

    Para que uma lngua se torne um idioma nacional precisa de passar por um complexo

    processo de elaborao e estandardizao que combina a influncia de variados factores de

    ordem histrica, social, cultural, econmica e, at, lingustica. Se podemos considerar o

    galego-portugus como uma lngua essencialmente potica, j o portugus mdio alargou o

    seu campo a todos os ramos de pensamento e a todos os tipos de produo textual. Ora, uma

    vez que a lngua medieval no poderia responder s necessidades que o desenvolvimento

    literrio implicava - nomeadamente no campo dos conceitos abstractos -, a elaborao

    lingustica materializou-se, ainda, num significativo enriquecimento do lxico atravs de

    neologismos que so, em grande parte, latinismos. Embora D. Dinis tivesse j convertido oportugus em lngua oficial, a lngua de ensino era, ainda, o latim: na Universidade, o estudo

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    da Gramtica ainda consistia em aprender a ler e escrever latim. O modelo lingustico

    presente no esprito dos alfabetizados era, portanto, o latim. Assim, se o latim era encarado

    como modelo, que melhor fonte para colmatar as lacunas da chamada linguagem vulgar?

    Por isso, um processo de grande expresso a partir do sculo XV o da relatinizao do

    portugus. Os novos prosadores, falta de vocbulos portugueses recorreram, de novo, ao

    Latim. D. Duarte, por exemplo (e note-se que D. Duarte no gostava de usar palavras

    latinadas e tentava dar-lhes feio portuguesa ou explicava-as dizendo, p. ex. no Leal

    Conselheiro: da yra seu proprio nome em nossa lingoagem he sanha), sentiu necessidade de

    recorrer ao latim: satisfao, malcia, circunstncia, abstinncia, infinito, fugitivo, evidente,

    intelectual, abranger, apropriar ou reduzir, so exemplos de latinismos incorporados no

    portugus, no sculo XV, pela mo do rei. Esta relatinizao do portugus que se verificou a

    partir do sculo XV explica as chamadas formas divergentes que resultam, em geral, da

    reintroduo de termos j existentes, num momento em que os processos evolutivos activos

    na lngua so j outros. claro que se muitas palavras novas entraram na lngua durante este

    perodo, muitas outras desapareceram (trigana pressa, femena ateno, avisamento

    prudncia), mudaram de sentido (mantimentomanuteno,falecimentofalta, instrumento

    acta) ou foram substitudas (ensinanapor ensinamento,perdoanaporperdo).

    Se a partir do sculo XV, a histria de Portugal e do portugus deixou de confinar-se a uma

    estreita faixa ocidental na Pennsula Ibrica, j que os descobrimentos e conquistas levaram a

    lngua aos mais distantes pontos do mundo, tambm trouxeram para Portugal novas gentes e

    novas culturas. O contributo da expanso portuguesa no pode ser medido apenas pelas

    conquistas territoriais, pelo contacto dos portugueses com outros povos ou pela implantao

    da lngua em paragens remotas. Acompanhando o movimento exgeno existiu, desde meados

    do sculo XV, um processo de recrutamento de uma nova camada populacional, composta

    essencialmente por escravos africanos, que ia preenchendo a lacuna deixada pelos

    portugueses que partiam. Estes africanos vieram a constituir uma fatia significativa da

    populao portuguesa quer nas zonas rurais quer nas zonas urbanas, principalmente em

    Lisboa5. A sua presena na sociedade teria, forosamente, algum impacto no favorecimento

    da simplificao e nivelamento lingusticos, fortalecendo a deriva do portugus meridional.

    Ferno Lopes descreve Lisboa como uma cidade de muitas e desvairadas gentes; ser de

    5Estima-se que chegassem a atingir cerca de 10% da populao rural a sul do Douro logo no princpio do sculoXV.Em meados do sculo XVILisboa teria uma populao de 100 mil habitantes, dos quais cerca de 15 milseriam africanos.

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    admitir que estes contactos inter-culturais tenham criado nos portugueses no s uma nova

    viso do mundo mas tambm uma maior conscincia da sua prpria identidade e de pertena a

    uma comunidade, no confronto com o outro.

    Desde meados do sculo XVI, data em que surgem as primeiras gramticas do portugus (de

    Ferno de Oliveira, em 1563, e de Joo de Barros, em 1540) a fixao e normalizao da

    lngua tornam-se o ponto fulcral do pensamento metalingustico: no quadro do movimento

    dos Descobrimentos portugueses, a questo da lngua, presente em toda a Europa, ganha, em

    Portugal, uma importncia acrescida pela necessidade de ensinar a lngua aos povos

    colonizados. Ao louvor da lngua portuguesa e sua valorizao enquanto factor de

    consolidao de um imprio, aliou-se o interesse pela codificao. A fixao de uma norma

    lingustica tornou-se um objectivo dos gramticos (ainda na primeira metade do sculo XVI,

    Joo de Barros ilustra estes interesses, ao escrever um Dilogo em louvor da nssa

    Lingugem, uma Gramtica e uma Cartinha). A imprensa, entretanto, permite uma maior

    difuso do pensamento e a produo literria em portugus aumenta e torna-se mais acessvel.

    Concluso

    As histricas circunstncias reuniram, no Portugal do sculo XV,um conjunto de factores que

    promoveram a mudana lingustica. O poder poltico abandonou os dialectos setentrionais e

    deslocou-se para sul, regio j anteriormente sujeita a grandes movimentos populacionais,

    resultantes dos processos de reconquista e repovoamento. antiga populao veio juntar-se

    uma nova camada, na sequncia da expanso portuguesa, criando um melting-pot favorvel

    mudana. Simultaneamente, o desejo de afirmao da lngua nas terras onde os portugueses

    se iam fixando, promovia o pensamento metalingustico. Oliveira e Barros e os que se lhes

    seguiram codificam uma lngua que no j a medieval mas a emergncia de um novo

    patamar lingustico, mais prximo da modernidade. Desenvolve-se a conscincia de uma

    identidade nacional que permite a estandardizao da lngua, materializada nas gramticas,

    nos dicionrios, nas cartinhas para aprender a ler e escrever. E, paralelamente codificao da

    lngua, procede-se sua elaborao. As viagens, as descobertas, o encontro com o outro, so

    objecto de descries em que a lngua surge crescentemente depurada, lanando as bases de

    um idioma nacional.

    A lngua um conceito poltico e social, que ultrapassa o mbito lingustico, e o portugus

    tornou-se um idioma nacional precisamente quando Portugal cresceu para alm de uma

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    estreita faixa ocidental na Pennsula Ibrica. A empresa nutica alargou os horizontes

    portugueses e criou um quadro favorvel elaborao e consolidao da lngua portuguesa

    como idioma nacional e smbolo de um imprio.

    Referncias bibliogrficas

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