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Revista black rocket ed6

Date post: 09-Mar-2016
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Revista especial de natal - Feliz Natal Zumbi!
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Page 1: Revista black rocket ed6

Dez.2 0 1 3

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Aguinaldo PeresAguinaldo Peres

Carlos Relva

Charles Dias

Joshua Falken

Leonardo Carrion

Ubiratan Peleteirow w w . r e v i s t a b l a c k r o c k e t . n e t

NOVAS DICAS PARA ESCRITORES COM

Bia Nunes de Sousa

TRIPULAÇÃO PASSAGEIROS ESPECIALMENTE CONVIDADOS

Douglas EralldoDouglas Eralldo

Karen Alvares

Rita Maria Felix da Silva

Sabrina Picolli da Silva

Zé Wellington

Page 3: Revista black rocket ed6

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Revista de Ficção CientíficaNúmero 06 - Dezembro 2013

Feliz VermelhoKaren Alvares 30

Desejo a vocês nataismais felizesCharles Dias 36

Missão rotineiraJoshua Falken 44

NecromaniaRita Maria Felix da Silva 52

Editorial 4

A guerra dos inomináveisLeonardo Carrion 56

O número umUbiratan Peleteiro 78

Violência domésticano NatalZé Wellington 10

Trégua de NatalAguinaldo I. Peres 14

O Peru de NatalCarlos Relva 20

Revisório Bia Nunes de Sousa 93

Os mortos caminharãosobre a terra [artigo]Sabrina Picolli da Silva 5

DesconectadosDouglas Eralldo 88

Coordenação e EdiçãoCHARLES [email protected]

RevisãoBIA NUNES DE SOUSA

[email protected]

EditoraçãoCARLOS RELVA

[email protected]

Para contatar os autores:

Aguinaldo [email protected]

Bia Nunes de [email protected]

Carlos [email protected]

Charles [email protected]

Douglas [email protected]

Joshua [email protected]

Karen [email protected]

Leonardo [email protected]

Rita Maria Felix da [email protected]

Sabrina Picolli da [email protected]

Ubiratan [email protected]

[email protected]

Ilustração da capa: Victor Flk Negreirowww.estivador.deviantart.com

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Charles DiasCoordenador e [email protected]

Confesse que por esta você não esperava: umasemana depois de lançarmos a quinta edição daRevista Black Rocket – que atingiu a marca demais de dois mil downloads em apenas quarentae oito horas –, publicamos esta edição especialde Natal.Esta é a primeiríssima edição de contos de ficçãocientífica com a temática Natal Zumbi lançadano Brasil. É a Revista Black Rocket inovando

como sempre! Assim, o sucesso de nossa missão é total: surpreendemosnossos leitores com este ataque duplo de excelentes contos de ficçãocientífica 100% brasileiros e conquistamos a todos definitivamente.Por que juntar natal e zumbis para esta edição especial? Primeiro,

porque os zumbis nunca foram tão populares. De personagensdesprezados, ganharam os holofotes e se tornaram estrelas. Segundo,porque, de todas as épocas do ano, o Natal durante um apocalipsezumbi seria muito mais duro para os coitados que lutam pelasobrevivência.Esta edição, com toda certeza, será uma ótima companhia para o seuNatal, um lembrete para aproveitar esta época antes que os parentespassem a te ver como parte da ceia e você se sinta como o pobreGodofredo. Não sabe quem é o Godofredo? Então leia esta edição daRevista Black Rocket e descubra da melhor maneira.

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Detentores de todos os holofotes da ficção científica nos últimos anos, os zumbis, cujasorigens históricas e folclóricas podem ser remontadas até os tempos bíblicos, estão longe deser um fenômeno recente. Ainda que sua popularidade e sua presença no imaginário popularse devam, em especial, às obras de George Romero e, mais recentemente, ao hit das HQsadaptado para a TV The Walking Dead, de Robert Kirkman, a mitologia desses seres en-volve rica simbologia e abre espaço para amplas discussões em váriasáreas do conhecimento.

Origem: o zumbi histórico

A palavra “zumbi” é de origem africana e historicamentetem o significado de “essência da alma”, a centelha maispura da existência, sem a influência de nenhum outro as-pecto cognitivo. Não há muitos pontos em comum para com-paração entre o estereótipo do zumbi de hoje e aquele quesurgiu a partir das crenças e rituais relacionados aos povosafro-caribenhos praticantes do vodu: atualmente, o zumbi édescrito como um ser que morreu, foi enterrado e posterior-mente retornou à vida por meios não conhecidos, em estadocatatônico, desprovido de personalidade e guiado por instinto.Por sua vez, o zumbi oriundo do vodu caracteriza-se como apessoa morta que é ressuscitada por um sacerdote ou feiticeiro ese torna seu servo, incapaz de expressar vontade própria. A fina-lidade do zumbi no contexto histórico-cultural caribenho era aservir como mão de obra escrava, em especial na lavoura, e tal eraa justificativa para sua criação. Algo completamente diferente daideia que domina o imaginário dos fãs de ficção científica.

Um dos primeiros registros sobre zumbis foi um artigo escrito pelo jornalista e antro-pólogo Lafcadio Hearn para a Harper’s Magazine em 1889. Ele passou dois anos na Martinicarecolhendo histórias locais, e sua atenção foi imediatamente captada pelos “mortos que ca-

Os mortos caminharão sobre a terra:a trajetória dos zumbis na história, natradição e na ficção

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Zumbireal?

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

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minham”, que acabaram sendo o fio condutor de sua reportagem, a despeito de toda a relu-tância por parte dos povos caribenhos em fornecer mais detalhes sobre o assunto.

Ao longo da década de 1980, o antropologista e botânico canadense Wade Davis pas-sou quatro anos no Caribe, três deles no Haiti, estudando os fundamentos da “zumbificação”relacionada aos rituais vodu. Em seus ensaios “A serpente e o arco-íris”(1985) e “Passagemdas trevas: a etnobiologia do zumbi do Haiti” (1988), ele descreve a administração e osefeitos de pelo menos duas drogas – uma neurotóxicas, a tetrodotoxina (TTX) e outradissociativa, derivada da Datura, que causam, respectivamente, um status de morte aparente,que permite o enterro do indivíduo e a reanimação em um período de cerca de oito horas, eum estado de confusão mental e dissociação da realidade. Isso tudo associado à crença locale seus efeitos psicológicos levaria o “zumbi” a aceitar sua nova condição de trabalhadorescravo. Os trabalhos de Davis foram bastante criticados pela comunidade científica, quenão os ratificou em momento algum. Atualmente trabalhando como explorador da NationalGeographic, Wade Davis ainda sustenta a validade de seu trabalho e afirma que o intuito desua pesquisa “não é mostrar que exista uma linha de produção de zumbis no Haiti, mas que oconceito se baseia em algo real”. A teoria do “zumbi farmacológico” voltou à tona recente-mente, quando a imprensa divulgou o surgimento de novas drogas recreativas sintéticas (umadelas foi denominada “sais de banho” nos Estados Unidos) capazes de gerar comportamen-tos de violência extrema, quadros psicóticos com dissociação da realidade e atos de caniba-lismo que, rapidamente, foram comparados ao comportamento zumbi, mas dessa vez levan-do em conta a definição de zumbi midiático que veremos a seguir.

O zumbi midiático

Os zumbis nunca tiveram o mesmo status dos lobisomens e dos vampiros, que contavam comamplo retrospecto cultural e folclórico e apresentavam em seu currículo várias lendas e atémesmo livros, a exemplo de Dracula, de Bram Stoker. Considerados irrelevantes no cenárioda indústria cinematográfica ligada ao terror, os zumbis acabavam sendo os protagonistas defilmes de baixo orçamento ou quando se desejava mostrar o pior cenário de terror possível.

Foi em 1932, com White Zombie, estrelado por Bela Lugosi, que oszumbis ganharam as telas dos cinemas pela primeira

vez, após o sucesso tímido das produções deterror iniciadas na década anterior. Uma apos-ta ousada dos produtores Victor e EdwardHalperin, tanto em termos de investimentoquanto em relação à incerteza da aceitação doprojeto. Filmado em onze dias e com um orça-mento de 50 mil dólares, o filme acabou sendoum sucesso inesperado, rendendo cerca de 8 mi-lhões de dólares em bilheteria. Estes númerostornam-se ainda mais impressionantes quandolembramos que a estreia ocorreu no período pós-crise de 1929, em uma época em que a populaçãoamericana já estava previamente aterrorizada pelaGrande Depressão. Se o contexto histórico foi umadas influências para o filme ou se o sucesso pode

SABRINA PICOLLI DA SILVA

WhiteZombie

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ser atribuído ao estado de terror da população americana naquele momento, ainda é motivode debate.

Naquela época, os zumbis ainda eram inspirados pelo que se conhecia das crençascaribenhas. Muitas produções de baixa qualidade surgiram após White Zombie, condenandoos filmes de terror por décadas à má fama. Até 1964, com I eat your skin, de Del Tenney, nãoseríamos apresentados ao zumbi com características canibais e, portanto, mais próximo daimagem que temos na atualidade. Mais uma vez o contexto histórico precedeu à ressurreiçãodo gênero. A Guerra Fria, o anticomunismo e a caça às bruxas, a rivalidade entre os EstadosUnidos e a União Soviética e o temor da ameaça nuclear deixaram marcas na indústria cine-matográfica e, consequentemente, nos filmes de terror, que adotaram nuances de ficção cien-tífica e deixaram para trás em defini- tivo o zumbi haitiano para entrar em um universoficcional completamente diverso.

Da mistura de extraterrestrese zumbis (como em Invasores invi-síveis, de 1959) a outras obras pou-co dignas de nota, o caminho estavapronto para a grande virada, que vi-ria em 1968, com George Romero eseu A noite dos mortos-vivos.

Com baixo orçamento (114mil dólares), praticamente pago dobolso dos produtores, A noite dosmortos-vivos alcançou, no mundointeiro, uma bilheteria aproxima-da de 30 milhões de dólares.Romero consolidou a figura dozumbi como um canibal de movimentos lentos emarcha arrastada, irracionais e, de certa forma, letárgicos. Aqui também consolida-se o este-reótipo da aparência zumbi: esfarrapados, fétidos, corpos decompostos e, com frequência,perdendo pedaços. Os filmes de Romero trouxeram novo fôlego ao gênero terror, não pou-pando o público de cenas sangrentas, corpos despedaçados e cabeças destruídas.

Romero também trouxe outra conotação ao zumbi, totalmente afastada do mito origi-nal que o inspirou: o de representante de pesadas críticas sociais dirigidas ao mundo contem-porâneo. Tanto nesse filme como nos que o sucederam, Romero parte da premissa de que ozumbi não passa de um reflexo da humanidade, sendo considerado o ser humano em seu maisalto grau de pureza, livre de todas as imposições sociais. O holocausto zumbi retratado emseus filmes mostra seu descrédito no contexto social americano da época, no governo ameri-cano e na defesa do país, não poupando críticas também à sociedade de consumo e ao precon-ceito. Romero, ao longo de suas obras, parece deixar bem claro o tempo todo o quanto jáestamos vivendo o apocalipse zumbi, ainda que não haja corpos em decomposiçãoperambulando pelas ruas e atacando pessoas, elevando o entretenimento e a adrenalina gera-da pelos filmes de terror ao patamar de reflexão. O cenário de desolação e a completa deses-perança da raça humana tiveram em sua obra a sua mais forte metáfora.

O zumbi de Romero também sofreu adaptações ao longo dos anos, ao, por exemplo,transformarem-se em seres dotados de velocidade (Extermínio, 2008) ou mesmo alguma

OS MORTOS CAMINHARÃO SOBRE A TERRA

A noite dosmortos-vivos

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capacidade cognitiva, como o uso de ferramen-tas (Dia dos mortos, 2007), ou de comunicaçãoe planejamento de objetivos (Survival of theDead, 2010), chegando à extrema velocidadee violência (Guerra Mundial Z, 2013).

As teorias sobre o surgimento doszumbis também cortaram definitivamenteseus laços com suas origens haitianas, sendoatribuídas mais frequentemente a infecçõespor vírus mutantes ou criados em laborató-rio, influências extraterrestres ou castigo di-vino; em muitos casos, nem se fala em umapossível origem. Também há grande varia-ção nas espécies que podem ser atingidaspela “zumbificação”, que pode ser exclu-sivamente humana ou extensiva a outrasespécies, animais e vegetais, como nos jo-gos da série Resident Evil.

Os zumbis na atualidade

Ao que tudo indica, a partir de 2010, finalmenteos zumbis conseguiram conquistar o mesmostatus de vampiros, lobisomens e outras cria-turas fantásticas, e tudo começou com a adap-tação para a TV da premiada história em qua-drinhos do escritor americano RobertKirkman. A série The Walking Dead estreouna televisão em 31 de outubro de 2010 e,desde então, vem quebrando recordes de au-diência; no presente momento, é a série detelevisão de maior audiência na história daTV americana.

A saga de Rick Grimes e seu grupode sobreviventes, em um cenário pós-apocalíptico, no qual toda a civilizaçãocomo a conhecemos desapareceu e a Terraestá tomada por zumbis, chamados na série de “walkers”,foi recentemente criticada por George Romero, que referiu-se a ela como “uma novela que,de vez em quando, mostra zumbis”; Romero considera que os produtores se afastaram com-pletamente do “zumbi enquanto crítica social” criado por ele. Público e crítica especializada,no entanto, não compartilham a mesma opinião de Romero. Para eles, o foco, de fato, não sãoos zumbis, mas sim a natureza humana e as perguntas existenciais que eventualmente nosfazemos: em uma situação de extremo perigo, quem realmente somos? Quais serão nossosvalores? Qual o lugar da ética e da moral em um mundo que já não é mais aquele que conhe-cemos? Os zumbis, nesse contexto, não são mais apresentados como veículos de uma crítica

SABRINA PICOLLI DA SILVA

Guerra Mundial Z

The Walking Dead

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9OS MORTOS CAMINHARÃO SOBRE A TERRA

social, mas sim como a concretização de todos os nossos maiores temores, a personificaçãode todas as situações ameaçadoras que colocam em xeque nossas crenças, até mesmo naquiloque somos; passaram a ser uma metáfora do mundo em que vivemos e do horror que nos fazperder o sono, sob diversos aspectos. Essa é a visão que, declaradamente, todos os que estãoenvolvidos na série são unânimes em defender. A despeito de quaisquer diferenças ideológi-cas, The Walking Dead também busca inspiração, em parte, nos zumbis de Romero – o quenão é novidade, uma vez que Gregory Nicotero, produtor executivo e responsável pelo de-partamento de maquiagem e efeitos especiais da série,começou sua carreira em Terra dosmortos (1985).

Os zumbis no cotidiano

Graças a esse grande sucesso, a figura dos zumbis curiosa-mente também tem sido utilizada com finalidade educacio-nal e de orientação à população. O Centro de Controle ePrevenção de Doenças (CDC), agência federal americana,lançou uma série de materiais em seu site visando orientaras pessoas sobre o que fazer e como se preparar para oapocalipse zumbi, acrescentando que “tais medidas podeme devem ser tomadas em caso de outros tipos de desastres, tais como terremotos, guerras,

ataques terroristas, tsunamis, tornados etc.”. Ou seja, uma maneira bem humorada deorientar e preparar a população para a ocorrência de todo equalquer desastre. Mais recentemente a Universidade daCalifornia/Irvine lançou um curso online de quatro sema-nas chamado “Society, science, survival: Lessons from theAMC’s The Walking Dead” [Sociedade, Ciência, Sobrevi-vência: lições de The Walking Dead], que aborda todos osaspectos científicos, médicos, sociológicos e antropológicosapresentados pela série de TV, com vasto material e palestrasde especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento. É oapocalipse zumbi como fator de promoção da cultura geral edo estudo em vários âmbitos.

Não pode deixar de ser citado também o popular TheZombie Survival Guide [Guia de sobrevivência zumbi], de MaxBrooks, um manual de sobrevivência totalmente geek e cerca-do de zumbis por todos os lados, leitura obrigatória para os fãsde terror e ficção científica e que, de uma maneira descontraída,atinge o mesmo objetivo – ainda que não propositadamente –das páginas zumbis do CDC.

SABRINA PICOLLI DA SILVA é apaixonada por cultura pop, terror,literatura e Comic Con. É, orgulhosamente, membro da equipe detradução e de criadores de conteúdo do fansite brasileirowalkingdeadbr.com. É formada em medicina e estudante de fotografia.

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|Zé|Wellington|

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Um pesadelo que pareciater ficado no passadoprecisa ser enfrentadonovamente quando osmortos começam a

caminhar sobre a terra.

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

Zé WZé WZé WZé WZé Wellingtonellingtonellingtonellingtonellington é administrador por formação, escritor por paixão. Quadrinista amador, nerd profis-

sional. Com a banda Sobre o Fim, lançou dois trabalhos, participou de diversos festivais musicais

regionais, incluindo a seletiva nordestina da VANS TOUR 2009, e obteve o primeiro lugar no Con-

curso Bem-Vindo Clube Empire Records. Nos quadrinhos, é o criador e roteirista do projeto

Interlúdio, indicado ao Troféu HQMIX 2010 na categoria Melhor Edição Única Independente. Tem

participado de diversas coletâneas e revistas especializadas em literatura fantástica e quadrinhos.

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Quando deu a notícia no jornal na TV, a apresentadora não evitava olhar torto para seucolega e marido do outro lado da bancada. Imaginava como estariam os trigêmeos em casa,aguardando os pais para a ceia de Natal.

— Estão por todo o planalto. O Ministério da Defesa ainda não se pronunciou, masacredita-se que se trate de algum experimento descontrolado. Que Deus nos ajude. Boa noite.— Encerrou categórica e sem conseguir evitar um soluço. Foi seguida de um boa-noite aindamenos animado do outro jornalista.

Em casa, Penha estremeceu. O dia sobre o qual o pastor sempre falara havia chegado.Podia ficar tranquila, tendo pagado o dízimo religiosamente em dia nos últimos meses? Dis-pensou os convidados da ceia de Natal, sentou-se na velha rede e começou a rezar.

Pela internet, especialistas especulavam a origem da infecção. Os primeiros casos, ra-pidamente isolados na China e na Índia, eram quase iguais no restante do mundo. Rússia,Japão, um caso isolado na Alemanha, mas suficiente para infectar Berlim inteira. A lógicaapontava para um caso no Brasil nos próximos dias. No aniversário de um mês da apariçãodo primeiro morto-vivo, um gari do Espírito Santo teve um enfarto e, dois segundos depoisde cair morto, avançou no pescoço de uma mendiga que, trinta segundos depois, deixou cairno chão o apetitoso sanduíche que tinha ganhado de um executivo e abocanhou seu bebêmaltrapilho. Rapidamente as regiões sul e sudeste do país estavam dominadas, assim comoArgentina, Uruguai e uma parte do Chile.

Penha tinha desistido de ir à igreja logo na primeira semana. Nenhum monstro haviaaparecido na sua cidade ainda. Sem monstros, sem mordidas. Sem mordidas, sem monstros.Simples assim. Com o exército barrando as entradas da cidade, aquele local parecia seguro.Foi quando ouviu que em alguns cemitérios os velhos mortos também estavam querendolevantar. Mandou Osmar Filho e Vera Lúcia para a casa de sua irmã. Sozinha em casa sentou-se na cadeira de balanço e se pôs a tricotar. Não ia demorar.

As maiores capitais do mundo estavam em quarentena. A ONU aconselhava a crema-ção de todos os que morressem durante aquele período. Houve protesto de diversos gruposreligiosos contrários a transformação dos defuntos em cinzas. Nos Estados Unidos, duasigrejas pregavam a autotransmortização como um retorno aos primórdios e à inocência des-pida dos pecados capitalistas. Uma onda de suicídios se iniciou. Agora bastava morrer parase tornar um morto-vivo.

A porta do quintal gemeu e Penha se agitou. Desajeitada, pegou a única arma quedispunha: uma velha vassoura de palha. Ficou tremendo atrás da porta, esperando, até omomento em que um gato preto entrou na sala. Respirou aliviada e pensou que deveria sepreparar melhor para o que estava por vir. Com a infecção, as licenças para armas de fogotinham sido dispensadas. Penha comprou um calibre trinta e oito, mesmo o vendedor ofere-cendo um modelo automático. Seu pai tinha tido um desses e uma vez até deixou que elaatirasse em uma porção de garrafas. Penha precisava de algo familiar naquele momento.

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Com as transmissões de TV interrompidas, as pequenas rádios AM locais eram a únicaforma de as pessoas ficarem atualizadas sobre a infestação. Eram cinco da manhã quando orepórter policial noticiou que um cientista indiano havia descoberto uma vacina à base dealho capaz de evitar a infecção.

— Não vai trazer de volta seu parente, mas vai evitar o súbito apetite por miolos casovocê seja mordiscado — disseram com palavras mais bonitas na coletiva de imprensa.

Sem novas infecções, em um mês a população de zumbis tinha diminuído em sessentapor cento. Voluntários, a maioria caipiras das cidades interioranas sobreviventes, formaram oexército de espingardas que parou a proliferação dos desmortos. Em mais alguns dias tudoaquilo seria passado. Hollywood já tinha pelo menos três filmes engatilhados, um deles oinusitado ponto de vista de um zumbi, estrelado por Bill Murray.

Era dia vinte e quatro de dezembro quando Penha ouviu as boas-novas no rádio, senta-da no quintal de casa. Pensava em ligar novamente para as pessoas convidando-as para aceia. Respirou devagar, deliciando-se com o cheiro das fezes do galo que criava no fundo dacasa. Mal tinha se virado para entrar quando uma mão brotou do terreno arenoso e segurouseu calcanhar. Penha reagiu instintivamente chutando o membro, que parecia estar em estadoavançado de decomposição. Correu para dentro de casa, mas antes de fechar a porta observouo cadáver levantar-se desajeitadamente. “Ainda parece o mesmo bêbado de sempre”, nãoconseguiu evitar pensar. Empurrou a velha máquina de costura à frente da porta e correu atéseu quarto, desenrolando o trinta e oito de um velho lenço, primeiro presente de namoro.Podia ouvir o som da porta do quintal sendo esmurrada com violência. A última pancadapareceu ter derrubado a velha Singer no chão. Penha se posicionou no corredor. Queria encará-lo. O invasor caminhava lentamente com a cabeça baixa, puxando uma perna. Penha tremia,mas mantinha a arma apontada para o defunto, que interrompeu sua caminhada e olhou nosolhos da desesperada mulher.

— Precisa engatilhá-la, meu bem — disse o desmorto, com suas carcomidas cordasvocais.

Penha deu um pulo para trás quando percebeu que ele podia falar.

— Como estão os meninos? O Osmarzinho ainda tá dando trabalho pra professora? —prosseguiu o cadáver, puxando uma minhoca de dentro da boca. — Comparado a isto, suacomida até que não é tão ruim — continuou tagarelando com aquele meio sorriso irônico quePenha tinha aprendido a odiar. O zumbi sentou-se na cadeira de balanço no corredor da casa.Parecia tranquilo e à vontade enquanto olhava os enfeites de Natal.

Pilhas de corpos eram queimadas em praças públicas sob muitas comemorações. Natelevisão, várias pessoas diziam ter voltado da desmorte. Uma mulher lutava na justiça paracontinuar casada com um morto-vivo. Dois chineses anunciaram fábricas de calçados movi-das a trabalho zumbi. Podia ser o fim da mão de obra barata e do trabalho escravo nos paísessubdesenvolvidos.

— Eu devia saber que cada surra que te dei foi pouca — continuou o desmorto na salade Penha. — Achei que tu sabia onde era teu lugar e olha o que tu fez comigo no dia de Natal.

ZÉ WELLINGTON

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Penha tentava respirar devagar e se concentrar quando alguém tocou a campainha. EraTonico, vizinho da frente. Penha não queria abrir a porta e ter de explicar por que o cadáverdo marido, que ela dizia ter fugido de casa sem dar explicações, estava ali, balançando-se navelha cadeira. Permaneceu em silêncio e mal percebeu quando o zumbi levantou-se rapida-mente e agarrou-a pelo pescoço.

— Faz um ano, né? Tu bota veneno na minha comida e acha que eu vou deixar por issomesmo? Vou te dar uma surra que você nunca mais vai esque...

Antes que o zumbi pudesse terminar de falar, Penha enfiou o cano do revolver em seuolho putrefato. Atordoado, o morto-vivo cambaleou até a porta do quintal, onde Penha oacertou com sua panela de pressão, forçando-o a sair da casa. Ficou tentada a terminar oserviço com o trinta e oito, mas o barulho podia chamar a atenção do vizinho. Pegou a garrafade álcool embaixo da pia da cozinha e despejou sobre o marido. Antes de acender o fósforo,Penha contemplou o desmorto por alguns segundos. Ele parecia incomodado com a ardênciado combustível. O zumbi queimou durante pelo menos quinze minutos.

Discursos decorados por cientistas condecorados se tornaram um clichê na televisão.Por um instante todas as guerras foram esquecidas e as diferenças entre raças e religiõespareciam nunca ter existido. O mundo parecia ter mais paz do que antes. Na ceia de Natal, asfamílias mais unidas. À meia-noite, Penha chorava enquanto varria as cinzas do alpendre doseu quintal.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO NATAL

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|Aguinaldo|Peres|

Uma das mais terríveisguerras da história dahumanidade termina deforma muito pior que

qualquer soldado jamaisimaginou.

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A charrete sacolejou pela estrada de terra por alguns quilômetros até chegar ao chalé dedois andares próximo ao lago Wakapitu na província de Otago. O homem de terno e chapéucinza subiu os degraus do alpendre e bateu na porta. Foi atendido por um senhor com mais desessenta anos, barba e cabelos rajados de branco, olhos azuis, que vestia camisa branca,colete e calças de lã escuras.

— Esta é a casa do senhor Henri Walker?

O velho estudou o visitante com cuidado.

— Você dever ser o repórter do Canberra Guardian.

— John Newman, ao seu dispor.

Os dois homens trocaram um firme aperto de mão e entraram. Henri apontou umacadeira à mesa de jantar rústica.

— Aceita uma bebida?

— Por que não? Foi um longo caminho desde Queenstowt.

— Meu uísque escocês acabou há muitos anos, mas esse DoubleWood não é mal.

Henri encheu dois copos com o líquido dourado. John deu um bom trago. Pela janelaviam-se os picos brancos dos Alpes do Sul.

— A Nova Zelândia é um bonito lugar...

— Nós, escoceses do norte, gostamos do frio e das montanhas. Isto aqui não me deixaesquecer o que perdemos por causa da Grande Guerra.

John tirou do bolso do paletó um caderno e um lápis.

— É sobre isso que vim entrevistá-lo. O senhor estava lá em 1914? Durante a tréguade Natal?

— Sim, eu estava lá. Estava com os Gordons! Oitavo batalhão do primeiro GordonHighlanders. Fomos mobilizados após a Batalha de Flandres. Desembarcamos em Calais nodia vinte e quatro de novembro e seguimos em marcha rápida até a Frente Ocidental. —Henri sorriu. — Foram os dois dias mais gloriosos de minha vida. Mais de quinhentoshomens marchando sob o sol do final de outono francês. E eu ia à frente, como o membromais novo do Corpo de Gaitas, intercalávamos a “The Cock O’ the North” com a “St. Andrew’sCross”. As pessoas deixavam seus afazeres e saíam de casa para nos ver passar. Crianças nosseguiam, mulheres lançavam flores. — O velho soldado ergueu o copo num brinde. — AosGloriosos Gordons!

John acompanhou o brinde e aguardou em silêncio.

— Coisa bem diferente nos aguardava em Ypres. Acampamos numa fazenda nos arre-dores da cidade. A plantação sumira dando lugar a mato seco pisado, a casa exibia buracos debala, o celeiro queimara até o chão. A cidade estava pior, quase reduzida a escombros pelosbombardeios de ambos os lados. Costumávamos brincar, dizendo que quem derrubasse oúltimo prédio seria o vencedor.

“Como estava contando, acampamos e fomos direto para as trincheiras, que se estendi-am de Paris ao Mar do Norte. Um labirinto de ratos para ratos, protegido com arame farpadoe montes de terra, nunca fundo o suficiente para ficarmos em pé ou largo para deitarmos.

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Com a neve fria e úmida a região tinha se tornado um imenso lamaçal. Não foi preciso muitopara descobrir que não eram somente as balas inimigas que matavam; bastava uma visita àsenfermarias improvisadas.”

Henri encheu os copos.

— As trincheiras inimigas ficavam tão perto que podíamos ouvir os boches peidando.Na primeira semana xingávamos eles em inglês, na segunda em alemão e na terceira, játrocávamos cumprimentos e cigarros que lançávamos amarrados em pedras.

O rosto do repórter denotava espanto.

— Acha estranha esse camaradagem entre inimigos? Pois fique sabendo que a guerradeveria ter terminada na Batalha de Marne se não fosse a soberba dos generais e dos políti-cos; os alemães não tinham força suficiente para conquistar a França ou nós para expulsá-los.Aquilo era uma briga de crianças birrentas que brincavam com a vida de milhares de solda-dos e civis.

“Enquanto isso, nós, os soldados, tratávamos apenas de sobreviver mais um dia nastrincheiras, nos escondendo das balas, dos obuses e das bombas de gás. Quando surgia algumcomandante com ordens do quartel-general para tomarmos uma colina ou recuperarmos umriacho, fazíamos a nossa parte. Tudo tão inútil. O que conquistávamos num dia era perdidono outro e vice-versa, sempre ao custo de muito sangue, nosso e dos alemães. Ao final decada escaramuça, somente nos restava a tarefa de erguer a bandeira da trégua e recolher oscorpos.

“Por isso, não estranhe a nossa camaradagem. Éramos todos pobres-diabos, famintos,enregelados. Atolados na lama, lutando numa guerra sem fim, sem vencedores, esperandopela bala que nos levaria para casa.”

— E então a guerra terminou — lembrou John, sabendo que aquele era o momento peloqual esperava. — No Natal de 1914.

— As notícias corriam rápidas pelas trincheiras — continuou Henri. — Sabíamos queos ataques franceses ao longo da Frente Ocidental tinham fracassado por causa do mau tem-po, que os alemães estavam reforçando suas defesas, que os britânicos estudavam a possibi-lidade de trazer tropas da África, que até o papa havia conclamado as nações que cessassemas hostilidade para celebrar o nascimento de Cristo. Ninguém queria lutar na neve e nos doislados do front comentava-se sobre uma trégua de Natal, uma grande festa de confraterniza-ção, um movimento pelo fim da guerra. Isso deixou o Estado-Maior da Força Expedicionáriapreocupado. Então o major-general Aylmer Haldane convocou uma reunião da terceira divi-são no dia vinte e dois de dezembro. Eu fui, acompanhando o tenente-coronel KingsleyDoyle.

“A reunião foi na sede de uma vinícola na região de Hazebrouck. No rádio, antes doencontro, o primeiro-ministro inglês conclamara os soldados à luta: ‘Se não acabarmos coma guerra, a guerra vai acabar conosco’. Foi uma reunião conturbada. Os comandantes dosbatalhões estavam apreensivos, os soldados estavam cansados; a trégua seria boa para a mo-ral das tropas. O Estado-Maior achava a situação um absurdo, uma ruptura na cadeia decomando. Os generais mais afoitos queriam uma grande ofensiva. Contudo, a solução finalfoi dada pelo MI10.”

— O serviço secreto inglês? — John perguntou, anotando os detalhes.

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— Ele se identificou como capitão Smith, da Diretoria de Inteligência Militar. Suasinstruções foram para que ninguém interferisse na rotina dos soldados, para que fosse mantidaa normalidade no front. Ele também distribuiu aos oficiais uma caixa com fogos de artifícioque deveriam ser usados na noite da véspera de Natal.

— Fogos de artifício?

— Era o que pareciam. Alguns oficiais chegaram a ficar ofendidos, mas o capitão Smithexplicou que aquilo era uma nova arma desenvolvida por um americano chamado HowardLovecraft. Já ouviu falar dele?

— Não que eu me lembre. Quando retornar à redação vou procurar nos arquivos. O queaconteceu depois?

— Nada. Os auxiliares pegaram as caixas e todos retornaram aos seus batalhões. Asordens vieram de cima, do próprio marechal John French.

“O dia vinte e quatro de dezembro amanheceu com chuva fria e fina, do tipo que escor-re pelo capacete e entra por dentro do casaco. Os soldados se revezavam na vigília: olho noFritz, dedo no gatilho. As trincheiras alemãs pareciam abandonadas. No almoço foi servidauma porção extra, a chuva parara. Os rifles e os morteiros permaneceram em silêncio. Sere-no. Tranquilo.

“Aquilo foi muito estranho. No front nunca se está em paz, há sempre uma tensão no ar,a espera por um disparo ou uma explosão. Parecia um sonho, um dia de domingo ou feriado.Alguns homens fumavam apoiados nas armas, outros jogavam cartas onde o chão já estavaseco.

“Ao cair da noite, algo começou. Nas linhas inimigas, surgiram pequenas luzes. Donosso lado foi uma correria! Os soldados se posicionaram, rifles apontados, aguardando oataque ou ordens para atacar. Contudo os oficias não sabiam o que fazer, eles apenas observa-vam pelos binóculos os alemães colocarem velas acessas ao longo da trincheira. Então elescomeçaram a cantar.

Henri sorriu.

— Pode imaginar a nossa situação, escondidos e assustados, apontando nossas armaspara alemães cantores. Os soldados caíram na risada. Alguém gritou: “Feliz Natal, Fritzs!” Ede lá gritaram: “Feliz Natal, Tommies!” Outras saudações foram gritadas. Nossos homenslargaram as armas e começaram a cantar, eu toquei “Silent Night” com a gaita. Não demoroupara que saíssemos de nossos postos para cumprimentar os novos “amigos” numa noite decéu claro e lua crescente. Assim começou a Trégua de Natal. À meia-noite, ambos os ladossaudaram os fogos de artifício.

“O Comando ficou estarrecido com as notícias, sempre existe alguém para dar com alíngua nos dentes. Um grupo foi formado para vigiar o front e montar um relatório com onome de todos os oficiais e soldados que ousassem confraternizar com o inimigo no dia deNatal. Antes que o dia amanhecesse, dois cabos, o tenente responsável pela operação e eusubimos uma colina próxima e nos abrigamos num ninho de metralhadora que estava aban-donado por ser alvo fácil para a artilharia alemã. Pelos binóculos, observávamos a movimen-tação e informávamos ao tenente que anotava nomes, postos e atividades.

“O primeiro foi um oficial alemão que deixou sua trincheira e começou a atravessar oque chamávamos de Terra de Ninguém. Logo um capitão do regimento de Nottinghamshire

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saiu do nosso lado. Mas eles não se cumprimentaram, passaram um ao largo do outro sem seolhar. De ambos os lados, soldados deixavam suas trincheiras e caminhavam lentamente.Não havia alegria, não havia confraternização, eles apenas vagavam. E nos anotávamos.

“Então estourou o inferno. Disparos e gritos de horror, não das trincheiras; os sonsvinham dos acampamentos, das enfermarias, dos ranchos. Corremos esperando encontraralemães infiltrados, mas o que vimos foram soldados atirando nos próprios companheiros. Eo que mais atemorizava era que eles não caíam, não gritavam, não sangravam; cambaleavamcom o impacto das balas e continuavam caminhando, a pele pálida, a boca aberta, os olhosarregalados. Grunhindo baixinho e constantemente, eles não usavam armas, apenas as mãose os dentes. Estavam mortos, e os mortos andavam e matavam os vivos que, mortos, volta-vam a andar e matar, num círculo amaldiçoado e aterrador.

“No caos atirava-se nos mortos e nos vivos. Quando alguma resistência era organizada,provava-se inútil. Os malditos não se detinham, nem as granadas os paravam. Eles se arras-tavam pelo chão ou seguiam sem partes do corpo, e quem fosse pego estava condenado.

“Fugimos. Não foi uma retirada organizada, simplesmente corríamos para o mais longeque podíamos, corríamos para casa, para a segurança. E pelo caminho pegávamos o queaparecia: comida, água, cavalos, carroças. Caíamos exaustos e lá ficávamos sem dormir,atentos, assustados, prontos para correr ao primeiro sinal de perigo.

“Quando cheguei a Calais, o porto estava caótico. Alguns oficiais tentavam impor aordem e eram ignorados, escaramuças ocorriam ao redor dos barcos, e os fugitivos embarca-vam ou tomavam qualquer coisa que flutuasse. Num desses distúrbios fui lançado ao mar,mas tive sorte: um grupo de soldados irlandeses me içou para o barco deles. No dia trinta dedezembro, desembarquei em Dublin.

Henri esvaziou seu copo.

— Assim terminou a guerra. Para mim foi apenas um mês entre a glória, a desilusão eo desespero.

John apertou o ombro do velho soldado.

— Fiquei vagando por Dublin por dois dias até conseguir transporte num cargueiro queia para Aberdeen. Mas nunca cheguei à Escócia. A tripulação, com medo das notícias quechegavam pelo rádio, sequestrou o navio e rumou para os Estados Unidos. No porto, ficamosde quarentena; os ianques temiam que uma nova variante da raiva estivesse levando à loucu-ra a população da Europa. O New York Times anunciava a queda de Paris e Berlim, os inimi-gos na guerra compartilhavam o mesmo destino. — Henri suspirou. — O resto é história.

— Você acha que a infecção foi causada pelos fogos de artifício do MI10? – pergun-tou o repórter.

— Somente Deus sabe a resposta, os demais já estão mortos. — Henri deu de om-bros. — Pode ter sido coisa dos boches, eles gostavam de fazer experiência com bombasde gás. Ou algum ato de desespero dos franceses, ou vingança dos belgas. No final, oprimeiro-ministro Herbert Wells estava certo, aquela foi “a guerra que acabaria comtodas as guerras”.

— Obrigado pelo uísque e pela história. — John se levantou.

— Velhos soldados gostam de contar velhas histórias.

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Os dois homens trocaram um aperto de mão. Na saída, quando o repórter já se aproxi-mava da charrete, Henri perguntou:

— É verdade que o Japão caiu?

— Ainda não há confirmação oficial, mas navios que passaram ao largo da costa japo-nesa informaram terem visto grandes nuvens de fumaça. O mar não é empecilho para eles;pode atrasá-los, mas não os detém.

— Que o Senhor tenha piedade da nossa alma.

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O que o Natal, umperu, dois policiais,zumbis e batatas

transgênicas têm emcomum?

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1.

Godofredo estava todo todo com suas companheiras quando, do nada, uma grande mãoagarrou-lhe o pescoço.

Desesperado, tentou livrar-se da ameaça a todo o custo, mas a garra apertava-lhe tantoa fina garganta que já sentia suas forças se esvaírem. Quanto mais se debatia, mais eraestrangulado. Tentou gritar, pedir ajuda, mas não tinha fôlego. E suas companheiras nãofizeram nada, fugindo assustadas, preocupadas mais com a própria vida do que com a dele.

Quando já ia desfalecer, seu raptor jogou-o num espaço tão apertado que mal podia semexer. E enquanto selava por completo o confinamento, Godofredo pode ver seu semblantede olhos enlouquecidos e o sorriso sardônico de dentes e mais dentes.

Então, só escuridão.

2.

(Trecho em áudio do diário pessoal do biólogo Saturnino Gentil. Registro feito há setedias. Material apreendido pela polícia.)

A nova safra de batatas transgênicas respondeu bem ao tratamento. Alguns tubérculoschegaram a superar em vinte por cento o tamanho e o peso dos melhores exemplares dacolheita anterior, o que já considero um grande sucesso. E, claro, continuam igualmentesaborosos, mesmo cultivados a quarenta graus!

E tenho certeza de que um acréscimo maior de maropan na mistura não afeta em nadao sabor e favorece enormemente a plasticidade fenotípica das batatas, que apresentam folhase raízes mais fortes e crescimento rápido em ambiente controlado. Agora testaremos essaespantosa capacidade morfológica em outros ambientes. Os fungos maropânicos têm a mesmacapacidade do micorriza de aumentar a absorção de água e sais minerais pelas raízes eainda evitam o surgimento dos principais parasitas que atacam as batatas. Sei que é umexagero da minha parte dizer isso, mas não consigo parar de pensar que a fome mundialestá com os dias contados.

Ah!, já ia me esquecendo: estou convencido de que as batatas realmente respondembem à música. E preferem Beethoven! Elas têm um gosto musical bem mais apurado doque o meu.

Hoje meu assistente, Edgar, ajudará novamente no preparo da amostragem que enviareipara análise. Ele tem mais prática na coleta e no armazenamento dos tubérculos.

Não quero que nada dê errado desta vez.

3.

— Peraí, deixa ver se entendi direito: não foram os animais que transmitiram o vírus?— perguntou Garibaldo, o policial mais jovem.

— É o que estou tentando colocar na sua cabeça, rapaz! Já disse mil vezes que não —respondeu Jerônimo, o outro policial. Na casa dos cinquenta, com cabelos ralos e grisalhos epele escura, sentava no banco do motorista do Interceptor-Rex estacionado numa ruazinhaqualquer com acesso à via principal. Deu uma mordida generosa no pão integral antes de

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continuar de boca cheia. — O vírus está aí no ar até hoje, mas felizmente só os AB sãocontaminados.

— Isso eu sei. Tenho alguns conhecidos que precisam usar traje de proteção a vida todapor causa do tipo de sangue. Mas por que não podemos mais comer carne se o perigo não sãoos animais? Confuso isso, não?

— Para vocês que nasceram depois da epidemia tudo é confuso! Um pouco antes dapraga começar, há uns 30 anos, o movimento vegetariano estava em alta. Aí os zumbis surgirame todo mundo começou a dizer que a culpa era da carne de vaca, depois do porco, depois dasaves, etc., etc., etc. E apesar de só um grupo sanguíneo ter sido atingido pela moléstia, omundo virou uma grande bagunça e aí ficou difícil desmentir qualquer boato.

— E por que esse movimento vegetariano ficou tão forte naquela época? — Garibaldoesfregou a mão na nuca recém-aparada.

— Ora, porque descobriram que os animais pensam e sentem como nós.

— Meninos, missão para vocês nesta véspera natalina! — interrompeu a mulher deuns quarenta e poucos anos que surgiu na tela do computador de bordo. Bonita, apesar dosdentes grandes e da maquiagem carregada, tinha uma voz charmosa e provocante.

— O que foi desta vez, Sônia? — perguntou Jerônimo, num tom desinteressado. Tinhaacabado de lanchar e lambia os dedos.

— Um registro de sequestro no Aviário Colorado, fofinho — continuou a policial, semmuita formalidade. — O suspeito é o biólogo da USP Saturnino Gentil e a vítima GodofredoLe Blair, cidadão meleagris produtivo. Estão num Palio cinza, placa NMV 1968; antes doacionamento da camuflagem de localização, seguiam pela Marginal Pinheiros no sentidoJaguaré. Isso há uns minutinhos.

— Meleagris? Um peru? — indagou Garibaldo, novamente com o cacoete de coçar anuca. — O que ele quer com um peru?

— É por isso que vocês precisam pegar ele, gatinho. Pra gente descobrir...

As bochechas de Garibaldo rosaram e Jerônimo riu para dentro.

— OK, Sôn... Central — corrigiu, tentando ser mais formal. Em seguida ligou a sirenee o giroflex. — Estamos próximos e iniciaremos a perseguição. Câmbio final.

— Será que estão indo para Osasco? — Mesmo evitando os olhos do parceiro, o temorde Garibaldo era visível.

— É o que parece... Zona vermelha zumbi! — exclamou Jerônimo, arregalandointencionalmente os olhos. Assustar os novatos sempre o divertia.

— Quer que eu dirija? — perguntou Garibaldo.

— Não quero, não. Você passa em tudo o que é buraco e hoje as minhas hemorroidasestão me matando!

Logo o Romero 3000 preto chegou à Marginal. Essas viaturas tinham o apelido deInterceptor, em homenagem ao filme Mad Max, e Rex, por causa da robusta armação demetal soldada no para-choque, que parecia a mandíbula de um dinossauro. Chamada de mata-

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defunto, essa estrutura era usada para atropelar os zumbis. O Interceptor-Rex era o veículopadrão da polícia de fronteira.

— Bolsão zumbi à frente, logo após a ponte! — gritou Garibaldo, da forma comohaviam lhe ensinado na academia. Firme na mão direita a pistola ponto quarenta.

— Segure-se aí! — disse Jerônimo — Vou passar o mata-defunto neles!

Havia uma centena de mortos-vivos à frente. A maioria com roupas esfarrapadas eencardidas, alguns nus. Todos de pele seca, retesada e cinza cadavérica. Lentamente cruzavama avenida em direção ao leito seco do rio Pinheiros, represado para evitar uma via de acessorápido das criaturas às zonas esterilizadas.

Garibaldo nunca tinha visto tantos zumbis de perto. Na verdade, só havia se aproximadode um morto-vivo uma vez, na aula de zumbiologia da academia. Mas aquele estava preso,imobilizado numa maca e não oferecia perigo algum. Ele e os colegas até fizeram piadinhascom a criatura, comparando-a com o sargento Diniz, o apático e magricelo professor deinfectologia.

Mas o impacto dos primeiros zumbis contra o mata-defunto mexeu com os nervos dojovem policial. Uma coisa era um zumbi amarrado numa cama, outra bem diferente era verum punhado deles correndo em direção ao Interceptor-Rex como predadores atrás da caça eouvir o baque seco de seus ossos sendo violentamente quebrados.

E quanto mais o veículo avançava, mais zumbis vinham ao encontro. E cada vez maisenraivecidos. Garibaldo se sentia o invasor agora, o invasor de um mundo zumbi. E apesar detão despersonalizados, tão mortos, havia alguma vida naqueles seres abomináveis. Umresquício da vida que tiveram um dia. Afinal, já tinham sido homens, mulheres, crianças. Eolhar para as crianças era o mais difícil...

Nem mesmo quando o sangue negro e semicoagulado dos zumbis espirrou e embaçouo para-brisa da viatura, essa cena se apagou da cabeça de Garibaldo.

No trevo sobre o rio Pinheiros, o Interceptor-Rex parou.

— O que foi? — perguntou Garibaldo, que ainda se sentia aturdido pela experiênciacom os zumbis.

— O biólogo não veio por aqui — disse o policial veterano, pensativo.

— Por que diz isso?

— O bolsão zumbi... os atropelados... Você viu algum atropelado? Algum atropeladoantes de começarmos os atropelamentos?

— Não — respondeu Garibaldo, sem entender aonde Jerônimo queria chegar. — Aavenida estava limpa.

— Então, isso prova que ele não passou por lá.

— Mas realmente seria muito difícil atropelar um bando de zumbis com um Palio.

— Mais uma razão para ele não ter passado por lá — Jerônimo parecia satisfeito comsuas deduções lógicas.

— Mas se ele não foi para Osasco, para onde foi?

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— Não sei... Mas ele é biólogo da USP, não?

— A Cidade Universitária?! — A incredulidade de Garibaldo fez seu cacoete voltar. —Você acha que ele foi para lá? Mas aquilo está abandonado há anos!

— E por isso é um bom lugar para se esconder.

4.

(Registro feito há três dias.)

Aconteceu de novo, as amostras estragaram! Irritado, tentei responsabilizar Edgar,mas sei que a culpa não é dele. Pelo menos não diretamente... É difícil explicar isso, mas asimples presença do meu assistente parece influenciar a cultura de batatas, que começa asabotar o meu trabalho. Digo isso porque a imunidade delas aos parasitas cai...deliberadamente. Sim, sei que é um absurdo essa ideia, a de que existe uma senciência portrás disso, mas como evitá-la? Afinal, só a minha intenção de chamar Edgar para uma novacoleta de batatas já deixa as folhas murchas, empalidecidas...

E quando começamos a coleta, elas se suicidam no que parece um ato final e desesperadopara mostrar revolta ou para poupar o restante da plantação. Sim, pode ser uma atitudeextrema de sacrifício pelas demais batatas!

Mas o que seria isso? Um sexto sentido das plantas? A evolução teria dado a elas acapacidade de perceber as intenções dos animais? De ler seus pensamentos? Uma percepçãoextrassensorial?

Meu Deus, eu não sei mais o que pensar...

5.

— Deram uma olhada no Instituto de Biologia? — perguntou Sônia da Central.

— Sim, foi um dos primeiros lugares onde procuramos — respondeu Garibaldo. Adupla de policiais estava a horas percorrendo o campus e a noite logo cairia.

— E o de Biociências na Rua do Matão?

— Também. E a rua está um matão só mesmo. — O jovem tentou fazer graça, mas otom de voz saiu errado. — Aliás, toda a Cidade Universitária está tomada pela vegetação, oque atrapalha bastante nosso trabalho. Sem contar que isto aqui é bem grande! Seria melhorse tivéssemos reforços...

— Eu sei, gatinho lindo, mas as outras unidades estão ocupadas no momento — lamentouSônia. — Além do mais, o palpite de Jerônimo pode estar errado.

— Tem que estar certo — interveio o velho policial. — O biólogo seria louco se fugissepara a ZVZ.

— Mas ele está louco, fofinho. Está completamente pirado! Câmbio final.

— Como pode ter tanta certe... — Jerônimo não terminou a pergunta. Sônia já haviadesligado.

Os policiais se entreolharam desconfiados.

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Seguiu alguns minutos de silêncio. E enquanto o Interceptor-Rex percorria as ruasesburacadas, seus dois ocupantes procuravam algum sinal do biólogo.

— Vamos lá, o que é que foi? — disse Jerônimo, quebrando o silêncio.

— Acho que a Central está omitindo informações — respondeu Garibaldo.

— Não é disso que eu estou falando! Você está com cara de bunda desde que a gentepassou por aqueles zumbis.

— Hã...?! Mas... — Garibaldo se atrapalhou — É só impressão sua.

— Tem certeza? Por um momento pensei que esse trabalho fosse pesado demaispara você.

— O que é isso! — Garibaldo exibia agora um sorriso amarelo. Em seguida fechou orosto, respirou fundo e suspirou baixinho. — Tinha uma criança...

— O quê?

— Tinha uma criança... Tinha uma menina com os zumbis. O mata-defunto pegou ela...— Garibaldo estava cheio de reticências.

Jerônimo parou o carro.

— Meu jovem, aquilo não era uma menina.

— Eu sei, mas já foi um dia. Já foi uma menina cheia de sonhos. E o maldito víruszumbi acabou com todos esses sonhos. — Os olhos do jovem se encheram de lágrimas.

— Vou repetir: aquilo não era uma menina. Era uma coisa que queria apenas comer asua carne. Aquilo era menos que um animal. Se você não pensar assim, rapaz, não vai aguentareste trampo por muito tempo. Agora se recomponha e concentre-se na missão, OK? Atéporque estou vendo o veículo do biólogo atrás daquelas árvores...

— Você está falando sério? — Garibaldo estava um pouco envergonhado e secava aslágrimas com as costas da mão.

— Sim, estou — disse Jerônimo, com os olhos semicerrados e apontando para trêspatas-de-vaca — Bem ali, quase no muro.

— É verdade! O Palio cinza!

— Vamos acabar logo com isso, então? — O velho policial checava o moral de Garibaldo.

— Vamos!

— Você está bem mesmo?

— Sim. Vamos lá! — O sorriso de jovem agora era sincero e confiante. Desabafar fez-lhe bem.

Os dois desceram da viatura com as armas em punho e, em surdina, dirigiram-se para aconstrução mais próxima do carro do biólogo. Era um prédio de dois andares, também tomadopelas plantas. Mesmo assim, as letras garrafais na fachada estavam bem visíveis: Faculdadede Medicina Veterinária e Zootecnia.

— Apesar de assustador, principalmente agora que está escurecendo, este campus poderiater servido de refúgio quando a praga começou. Até notei que as paredes ao redor do complexoforam reforçadas... — comentou Garibaldo.

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— É. Só que tem gente que acha que tudo começou aqui...

Lá dentro, numa cozinha escura, bagunçada e empoeirada, jazia o corpo decapitado eassado de Godofredo, com farofa, batatas transgênicas e pedaços de laranja, numa travessasobre a mesa improvisada.

E Saturnino apreciava a terrível cena com olhar de satisfação...

Não esperaria até a noite. Sabia que estava sendo procurado. Acendeu duas velas esentou-se. Mas quando estava prestes a decepar uma coxa do pobre e morto cidadão meleagrislembrou-se de que havia esquecido o vinho tinto no porta-malas do carro. Iria buscar pois,para ele, consumar o ritual macabro sem a bebida não teria a mesma graça.

Para Garibaldo, a entrada do prédio de veterinária, escura e com todas as vidraçasquebradas, era bem sinistra.

— Será que o biólogo está tão maluco que trouxe o peru aqui para tratá-lo? — faloubaixinho.

— Era só o que faltava — respondeu Jerônimo também num sussurro. Pisava comcuidado na grama alta que saía até das frestas na calçada.

Nisso, Saturnino surgiu das sombras com a faca que ia fatiar Godofredo.

— Largue isso! — ordenou Jerônimo aos gritos, apontando a pistola para o biólogo.

— Vocês não entendem? — disse, com um sorriso doentio e olhos alucinados. Ergueua faca e continuou: — Nós vamos todos morrer...

— Você com certeza vai se não largar essa faca agora mesmo!

Saturnino olhou pensativo para o objeto que segurava, deu duas piscadelas e deixouescorregar da mão lentamente. A faca mal caiu no chão e Garibaldo atacou o biólogo por trás,algemando-o.

— Nós vamos todos morrer de fome mesmo, sabiam? — disse calmamente, como seestivesse falando com amigos, e enquanto era levado para o Interceptor-Rex — O que eu fizcom o peru não é nada...

— Pelo jeito Godofredo dançou — deduziu Jerônimo. — Quem vai lá pegar o corpo?

— Eu é que não entro aí sozinho! — sentenciou Garibaldo. — Pode ter zumbis lá dentro.

— Então vamos os dois. O biólogo não vai para lugar nenhum mesmo.

— Minha nossa! Que cheiro é esse? — disse Garibaldo. O odor de carne queimadaempesteava todo o local do crime.

— Pare com isso, meu jovem! — censurou Jerônimo, surpreendentemente — O cheiroestá muito bom!

— Foi o que eu disse...

Gargalharam misteriosamente, inconvenientemente. Depois, um silêncio expectante.

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— Isso é mórbido... — por fim, pensou alto o jovem policial.

— Mórbido? Na verdade esse aroma me lembra da ceia de Natal que a minha mãefazia... — Jerônimo estava inacreditavelmente saudoso!

— Nunca comi carne. Mas esse cheiro...

Outro silêncio expectante. Olharam para os restos mortais de Godofredo uma vez mais,como se velassem um corpo. Mas não era esse o propósito... Pensamentos horríveis pululavamna mente de ambos.

— Acho que é porque hoje ainda não almocei... — Garibaldo procurava desculpasenquanto observava um gomo de laranja deslizar lentamente do peito oleoso do cadáver paraa farofa. — Mas, só por curiosidade, que gosto tem?

— É uma carne tenra e saborosa — disse Jerônimo, palavra por palavra, como sehipnotizado.

Mais um silêncio expectante...

— Se você for, eu vou... — fechou Garibaldo, firmando um pacto sinistro.

Meia hora depois os policiais abriram a porta de trás da viatura. Jerônimo ainda tiravaum naco de carne dos dentes com a língua!

— Seus maníacos! — gritou Saturnino, ensandecido — Você comeram tudo?!

— Tome isto e cale a boca! — Jerônimo jogou uma coxa de Godofredo nas mãosalgemadas do biólogo. — E coma logo, antes que eu mude de ideia! Aliás, as batatas nãoestavam boas.

Os olhos de Saturnino saltaram, o sorriso sardônico voltou e a boca se encheu deágua. Parecia um cão raivoso! Abocanhou a coxa como se fosse o último punhado decomida na Terra.

6.

(Último registro. Ontem.)

Batatinhas infernais! Vocês viram o que fizeram comigo? Por que resolveram arruinarminha vida desse jeito? Disseram que vocês não servem nem para dar aos zumbis! E agorasou a maior piada da comunidade científica! Vão ouvir Metallica o dia inteiro por isso!

Afinal o que vocês são, suas desgraçadas? Sencientes? Inteligentes? Mas onde fica osistema nervoso de vocês, hein?

Por mais ridículo que pareça, começo a acreditar no que disse Cleve Backster sobre ainteligência das plantas, quando testou aquela Dracena massangeana com um polígrafo, nolivro A vida secreta das plantas e até nos estudos de Jagadish Chandra Bose.

Não acredito que o maropan seja a causa dessa inteligência. Os fungos devem terapenas acentuado essa capacidade de vocês.

E o que planejaram agora? E o que vão fazer comigo? Matar-me?! Querem me fazerde adubo? Inteligentes... Sim, inteligentes. Claro, isso explicaria tudo... Explicaria tudo bemdemais. Terrivelmente bem demais...

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Inteligentes...

Mas, Deus, eu estava tão absorvido pelo problema das batatas transgênicas que sóagora percebo a gravidade da situação. Não, vocês não podem ser inteligentes! Sabem asconsequências que isso traria para o mundo?

Meu Deus do céu... Não, não...!

7.

— A Central está chamando! — Garibaldo, ressabiado, apontou para o íconepiscando na tela.

— Atenda, ora! — reclamou Jerônimo.

— E se o biólogo disser alguma coisa?

— Que credibilidade esse maluco tem? Além do mais, ele nem pode ouvir nossa conversacom este vidro à prova de balas. — Jerônimo bateu com o nó do dedo no vidro grosso àscostas. — Sem contar que ameacei largá-lo na ZVZ se der com a língua nos dentes.

Garibaldo lançou-lhe um olhar de reprovação.

— O que queria que eu dissesse para ele? — perguntou o velho veterano — Vamos,atenda logo!

— Olá, meninos! — cumprimentou Sônia — Boas notícias?

— Sim — respondeu Jerônimo —, capturamos o sequestrador.

— Maravilhoso! E a vítima?

— Quase completamente canibalizada.

— Que horror!

— Sim, horrível — concordou Garibaldo. — Mas sobrou material para a perícia.

— Puxa, ele comeu um peru inteiro... — Sônia pensou alto e fez um bico no esforço defechar a boca de dentes avantajados.

— Agora, Sônia, abre o jogo: o que a Central está escondendo da gente? — Jerônimolançou um olhar fulminante para a bela senhora.

— Escondendo? A Central de Operações? Ah, já sei! Desculpem-me, rapazes, mas opessoal que trabalhava com o biólogo solicitou que mantivéssemos a causa de seucomportamento alterado em sigilo. Temiam que, se essa informação caísse nas mãos daimprensa, provocaria mal-estar na população. Mas acabou que os repórteres não aparecerampor aí e a informação escapou de qualquer jeito mesmo...

Os policiais ficaram boiando.

— Calma, queridinhos! — ela continuou. — Já saiu até na Globo. Toma aí o link.

— “Índia registra primeiros casos de contaminação zumbi em indivíduos do grupo B”— leu Jerônimo.

— Opa, mandei o link errado! É outra matéria. Vou abrir o link aqui. Vejo vocês nacentral para a troca de presentes. Beijinhos e feliz Natal!

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Abriram o link e ouviram a voz do repórter do telejornal:

“Nesta manhã, o biólogo da USP Saturnino Gentil, de quarenta e cinco anos, numacesso de loucura, incendiou a horta do laboratório em que trabalhava, após destruir comuma foice a nova variedade de batatas transgênicas que desenvolvia. Vejam as imagens dascâmeras de segurança do laboratório.

“Não satisfeito, o biólogo ainda arrombou uma aviário e sequestrou o cidadão meleagrisprodutivo Godofredo Le Blair. Em seguida fugiu, acredita-se, para o município de Osasco.As buscas ao sequestrador e ao refém continuam.

“O renomado biólogo Saturnino Gentil se dedicava ao estudo de batatas gigantes háquase cinco anos, como parte de um projeto da ONU para erradicação da fome causada pelainfestação zumbi e pela proibição do consumo de carne.

“A resposta para o quadro psicológico alterado do biólogo pode estar no registro pessoalque mantinha. Apesar dos resultados negativos, os peritos que verificaram os documentosdizem a pesquisa corrobora em muito outros estudos, principalmente do Conselho FederalÉtico para Biotecnologia em Não Humanos, que afirmam que as plantas sentem e pensam.Assim, todos os vegetais passariam da categoria de Seres de Dignidade, já superior aos zumbis,para o de Cidadãos Produtivos.”

— E essa agora? — Jerônimo estava surpreso.

— Mas o que a gente vai comer? — perguntou Garibaldo, temendo uma resposta, fosseela qual fosse.

Antes que Jerônimo arriscasse dizer qualquer coisa, o jovem policial emendou umasugestão. Uma que lhe escapou da boca e em que já se arrependia de ter pensado:

— Carne de zumbi?

O PERU DE NATAL

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|Karen|Alvares|

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Uma mãe amorosa edeterminada tenta daraos filhos o presente

mais precioso que poderiaimaginar e para isso

prepara uma deliciosa ceiade Natal que promete ser

inesquecível.

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

Karen AlvaresKaren AlvaresKaren AlvaresKaren AlvaresKaren Alvares vive em Santos (SP) e escreve desde a adolescência. Seu trabalho foi publicado em

diversas antologias da Editora Draco e da Andross. Publicou de maneira independente os livros

Noites negras de Natal e outras histórias e Horror em gotas. Seu livro Alameda dos pesadelos está

em fase de edição. Adora terror, mundos fantásticos, chocolate e gatinhos.

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O cemitério estava silencioso. O silêncio era mesmo o som mais apropriado para essetipo de lugar.

Sofia estava parada diante da campa de Miguel. Era um túmulo simples, apenas umburaco com uma pedra negra e o nome dele em letras prateadas, além de uma estrelinha paraa data de nascimento e uma cruz para a data de falecimento. Era um daqueles modernoscemitérios verticais. Os mortos são tantos que a terra se tornou insuficiente. É preciso empilhá-los como caixas.

Ela não tinha o que reclamar do lugar. Era sóbrio, limpo e tinha uma ótima vista para acidade. A lápide de Miguel ficava no décimo andar, primeira fileira de baixo para cima, demodo que ela e os dois filhos, Diogo e Artur, podiam se sentar no chão e conversar com ele.Se é que falar com uma pedra poderia ser chamado de conversa. Mesmo assim, Sofia nãoimpedia seus filhos de fazerem isso, especialmente Artur, o mais novo, de nove anos. Eletinha apenas seis quando o pai se fora, morto em um acidente de trabalho. Seu rosto ficaradesfigurado e os filhos nem puderam dizer adeus como gostariam. Miguel fora velado em umcaixão fechado, para ninguém ver seu rosto.

Bem, isso não era de todo verdade. Mas apenas Sofia sabia disso. Era melhor assim.Sofia não tinha remorsos, apesar de ter doído vê-los desconsolados daquela maneira. Mas elasabia – e logo eles saberiam também – que aquele não fora um adeus de verdade.

Ela ficou observando os filhos em silêncio. Diogo, o mais velho, que completariadezesseis anos no próximo ano, era o típico garoto que desejava ser mais durão do que real-mente era. Ele olhava fixamente para o nome do pai gravado na pedra, piscando várias vezes,alisando as costas do irmão pequeno com doçura e cumplicidade. Sofia não o via chorar amorte do pai desde o enterro, havia três anos. Mas ela sabia muito bem o quanto o filho sentiaa falta de Miguel, principalmente agora, na fase tão difícil da adolescência. Ter apenas umamãe nessa época de descobertas talvez não fosse o suficiente para um garoto. Já Artur, tãojovem, não tinha vergonha de chorar. Talvez fosse a idade, talvez sua personalidade dócil esensível. Miguel costumava dizer que ele era um menino especial.

Seja lá qual fosse o jeito de seus filhos, Sofia sabia muito bem que eles sofriam. E naquelaépoca tudo se tornava muito pior. Mas ela estava muito perto de acabar com toda aquela dor. Conti-nuou olhando para o túmulo, aquele que representava uma mentira. A mentira que os salvaria.

Faltava um dia para o Natal.

Ela passou a noite em claro. Mais uma.Eles moravam em uma casa com porão. No Brasil isso não é nada comum, mas Miguel

construíra-o para os dois. Era perfeito para o laboratório. As experiências em que eles traba-lhavam não poderiam ser realizadas na superfície, muito menos perto de seus filhos. Etampouco poderiam realizá-las nos laboratórios da universidade. Especialmente aquela.

Por isso, depois de dar boa noite aos filhos, prometendo um Natal inesquecível, comoeles não tinham há três anos – na verdade, eles mal comemoravam o Natal, pois não havianada ser comemorado –, Sofia se trancou em seu laboratório particular. O mesmo que dividi-ra por tanto tempo com Miguel. Ainda o fazia, para falar a verdade.

Ela sabia que ele aprovaria o que ela estava fazendo. Mais do que isso, ele ficariaorgulhoso. E agora Sofia estava tão próxima que quase conseguia ouvir novamente sua voz,

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sentir seu cheiro e sua presença. Só mais um pouco, Miguel. Só mais um pouco. Logo estare-mos juntos novamente.

Ela pingou o último agente químico que faltava. A mistura, antes de cor amarelada, tor-nou-se escura e viscosa, negra como lodo. Sofia ergueu o béquer na altura dos olhos. Eraimpossível enxergar qualquer coisa ali. Era um líquido que ela jamais tinha visto, algo borbulhantee pulsante, quase vivo. Depois de tanto tempo, ela finalmente encontrara a solução do mistério.

Era aquilo que ela procurara por todos aqueles anos. As pesquisas começaram antesmesmo da morte de Miguel – e foram, talvez, o motivo de sua partida –, mas Sofia acelerou-as depois disso. O acontecimento fora quase como um catalisador para sua descoberta. Elanão poderia ter se sentido mais motivada.

Ela sorriu, talvez seu maior e mais sincero sorriso depois de tantos anos. Sentiu aslágrimas molharem os olhos. A primeira vez desde que Miguel se fora. Parecia que ela tinhaguardado todas elas para aquele momento, quando o veria novamente, quando tudo teriavalido a pena. Todas as noites mal dormidas. Todo sofrimento. Toda dor.

Sofia pousou o béquer na mesa de aço. Pescou uma seringa nova e limpa na gaveta e,com ela, sugou parte do líquido negro. Foi preciso uma seringa grande e de ponta grossa, jáque o líquido era tão viscoso quanto petróleo. Ela bateu duas vezes na ampola, observando asubstância pulsar. Quase podia ouvi-la respirar, sentir, pensar.

A mulher caminhou até o enorme armário da parede. Havia ali uma única gaveta, largao suficiente para que uma pessoa se esgueirasse lá dentro. Ela aumentou a temperatura eabriu a gaveta; um vapor de gelo subiu até o teto, banhando seu rosto em ar frio. Ali, dentrodaquele freezer, fora a morada final de seu companheiro, seu maior rival e parceiro, seugrande amor.Mas não mais.

Sofia sentiu as lágrimas se tornarem mais grossas, abundantes, enquanto alisava comternura o rosto gelado de Miguel. Ele tinha uma expressão inquieta no rosto, como se malpudesse esperar para retornar e encontrá-la novamente.

Quando ele acordasse ficaria orgulhoso. Era a sua pesquisa afinal, e Sofia a concluíracom êxito. Era o que ele queria. Seria o melhor dos natais.

Sofia acariciou devagar o peito nu do marido, carinhosamente. Sorriu. Logo estaremosjuntos de novo. Com um algodão umedecido, ela limpou a pele, já descongelada depois deum tempo fora da temperatura baixa do freezer. Faltava pouco agora.

Ela prendeu a respiração, fechando os olhos por um instante, imaginando cenas de umpassado que lhe fora roubado, da família que formaram um dia... Tudo poderia ser seu nova-mente, bastava um único movimento.

Sofia só respirou novamente quando injetou o líquido negro no corpo de Miguel. Ago-ra eles voltariam a respirar, juntos.

— Eu não entendo porque você está fazendo tudo isso, mãe... — Diogo reclamounum sussurro, segurando uma enorme travessa de arroz com passas. Ele mantinha os olhosno irmão, tomando cuidado para que ele não o ouvisse. Artur estava perfeitamente feliz,dispondo talheres sobre a mesa e arrumando-os com cuidado. — Por que voltar a comemo-rar o Natal agora?

KAREN ALVARES

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A mãe devolveu-lhe um sorriso misterioso. Ela cuidava com dedicação de um frangoassado com batatas no forno; só preparara esse tipo de prato quando o pai deles estava vivo.Diogo não via sentido em fazer isso agora.

— Porque nós merecemos essa felicidade, Diogo — Sofia disse, sorridente como elenão a via há anos. — Nós somos uma família e vamos, sim, comemorar o Natal. Olhe paraseu irmão, ele está tão feliz!

Isso era verdade. Artur realmente estava contente. Se aquela encenação toda era parafazê-lo feliz, talvez Diogo engolisse sua inquietação e fingisse estar tudo bem até que final-mente acreditasse na mentira. Ele depositou a travessa quente de arroz na mesa. Ajeitou umpano de prato embaixo dela e, quando o fez, percebeu algo errado.

— Artur, seu cabeção, colocou quatro pares de talheres na mesa e quatro pratos. Somossó três, seu bobo.

O menino ergueu os olhos para o irmão e emburrou a cara.— Bobão é você, Diogo! Eu coloquei certinho! Não foi, mãe?Sofia estava trazendo um pote cheio de maionese e colocando-o sobre a mesa quando o

filho menor puxou a barra de sua saia e perguntou novamente:— Não foi, mãe?— Foi sim — ela respondeu com naturalidade, o mesmo sorriso de antes no rosto.Diogo não sabia o porquê, mas isso estava começando a deixá-lo inquieto. Não era um

sorriso normal. Era sinistro.— Pedi pro Artur colocar quatro pares de pratos e talheres e ele fez direitinho, olha só!

— Ela bagunçou o cabelo do filho, que sorriu de orelha a orelha e mostrou a língua para oirmão mais velho.

— Mãe! — Diogo se virou para Sofia, franzindo as sobrancelhas. — Por que você estáfazendo isso? O que significa?

— Significa que este será o melhor Natal de todos! — ela respondeu, usando novamen-te aquele sorriso que incomodava Diogo. — E por falar nisso, a ave está quase pronta!

Ela mandou que eles se sentassem e esperassem. Alguns minutos depois, tirou a grandefôrma de alumínio do forno. O cheiro era realmente delicioso. Diogo sentiu saudade dosNatais de quando o pai estava vivo. Será que conseguiriam comemorar novamente, mesmocom aquele lugar vazio à mesa? Ele olhou para o irmão, que tinha os olhos brilhantes, quasehipnotizado pela comida.

Sofia colocou o frango na mesa e trouxe o garfo grande e a faca afiada que o pai usavapara fazer as honras no Natal. O garoto se levantou, oferecendo-se para ajudar a mãe. Ela,porém, espetou cuidadosamente o garfo e a faca na ave e falou para o filho se sentar.

— Meninos, tem uma pessoa que vai passar o Natal com a gente!— Quem? — Artur olhou para os lados como se esperasse que alguém escondido atrás

da geladeira pulasse e dissesse “oi”.— Vocês vão ver! — a mãe respondeu animadíssima, juntando as mãos e olhando de

um filho para o outro. Diogo notou que os olhos dela estavam brilhantes e molhados.— Mãe...— Eu vou buscá-lo! Só esperem, meninos! Não comam nada! — ela recomendou,

especialmente para Artur, que já estava tentando arrancar uma lasca da pele do frango. Sofia

FELIZ VERMELHO

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caminhou até a porta da cozinha e olhou com carinho para os dois filhos. — Vocês vão ver,meninos... Vai ser tudo como antes. Nós vamos ficar bem.

Nós vamos ficar bem, ela tinha dito. Diogo jamais esqueceria essa frase.

Os irmãos esperaram por vários minutos, olhando de um para o outro por cima dagrande ave de Natal assada. O cheiro era insuportavelmente delicioso e até mesmo Diogoteve que se controlar para não começar a cortar a droga do frango para acalmar o estômago.Artur também estava impaciente; começara a bater o pé no chão como sempre fazia quandose sentia entediado.

— A mãe tá demorando, né? —– ele falou de repente.

Diogo respondeu com um resmungo. Estava olhando para a porta da cozinha com aten-ção, tenso. Quem a mãe teria ido buscar, afinal? Por que todo aquele mistério?

— Tô com fome — Artur insistiu.

— A mãe falou pra esperar!

— Mas tô com fome!

Quando Diogo estava prestes a se levantar e procurar a mãe, os dois ouviram passos nasala. Pareciam arrastados, lentos. Artur espichou a cabeça pela porta para enxergar. Já Diogo,de onde estava sentado, não conseguia ver direito. Ele distinguiu a silhueta da mãe, amparandoalguém com o braço, uma sombra indistinta, alta, mas um tanto inclinada, como se sentisse dor.

Foi então que Artur gritou:

— PAI!

Diogo levantou depressa, derrubando a cadeira e recuando até a parede da cozinhaquando viu a pessoa que a mãe trazia junto a si. Talheres caíram com estardalhaço no chão, acadeira produziu um ruído seco ao bater no piso frio, mas o próprio Diogo não conseguiuproduzir nem um único som. Ele só se espremia na parede gelada, cada vez mais, com sequisesse transpô-la, afundar-se nela e sumir.

— PAI! PAI! — Artur continuou gritando e correu para abraçar a figura de Miguel.Sofia estava sorridente e encarava Diogo com uma expressão de confusão.

— O que foi, filho? Não está feliz? É seu pai, vivo, conosco!

Não, aquele não era seu pai. O que Diogo via, e ninguém mais parecia enxergar, era ocorpo do pai inexplicavelmente de pé. Ele tinha os ombros caídos, os joelhos quase cedendocom o peso, olhos vermelhos e mortiços, o cabelo ralo e pálido. Sua pele tinha uma aparênciaesquisita, meio azulada, meio escura, com um aspecto de carne apodrecida; em alguns pon-tos, ela tinha caído, revelando os músculos vermelhos por baixo dela. Mas o pior era a boca.

Estava caída, amortecida. Ele babava. Os dentes apodrecidos estavam arreganhados,como presas à mostra. E então veio a cena que Diogo encontrava todos os dias em pesadelos.

O pai, ou o monstro que tomara seu lugar, finalmente se dera conta de que havia ummenino abraçado a suas pernas moles e finas. Ele cravou os dedos longos com unhas pútridasnos ombros de Artur, abaixando-se lentamente, produzindo um ruído rançoso ao mesmotempo em que expunha os dentes próximos à pele do menino.

Aquilo era loucura.

Diogo não pensou duas vezes. Pulou sobre a mesa, chutando pratos e fazendo voarlonge travessas de comida fresca. Ele se jogou na direção do irmão, empurrando-o. Ouviu

KAREN ALVARES

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algo se rasgar, como um tecido, mas continuou segurando Artur entre os braços, puxando-opara longe daquela criatura.

Foi quando começou o pandemônio.Artur gritou. Diogo baixou o olhar e viu que o menino estava sangrando; havia um

corte feio e enorme desde seu ombro até o cotovelo. Com horror, o garoto foi capaz de ver osossos do irmão, uma massa assustadoramente branca em meio a todo aquele vermelho queempapava sua camisa. Artur chorava e urrava de dor. Ao mesmo tempo, aquilo estendia asmãos pegajosas na direção dos garotos.

— VÁ EMBORA! – Diogo gritou, sabendo que era inútil. Ele viu a mãe, parada logoatrás do pai, pálida e paralisada, tão pequena que parecia uma criança perdida. — MÃE,FAÇA ALGUMA COISA!

— Não, não era assim que eu queria... Pensei que viveríamos como antes... Não... —Ela balbuciou palavras sem sentido enquanto as lágrimas vertiam sem parar.

Diogo ergueu Artur no colo, sentindo o sangue transbordar em sua camisa, completa-mente apavorado. O irmão desfalecera pela dor e o sangue perdido. O pai ainda avançava,esticando os braços, produzindo aquele ruído enrolado e rouco, um grunhido aterrorizante.

Diogo recuou, ainda com o irmão nos braços, procurando algo, alguma arma que pu-desse utilizar, qualquer coisa que ao menos distraísse aquela coisa que possuíra o corpo doseu pai. O corpo do seu pai. Como viera parar ali?

— O que você fez, mãe? — Diogo perguntou, engasgado, cheio de horror, finalmentecaindo em si. Ele sentia o sangue quente do irmão em seus braços, seu corpinho pequeno efrágil desfalecido e imóvel. — O que você fez?

— Miguel... — ela chamou com a voz fraca. — Não, Miguel, eu não trouxe você para isso...Foi então que ela se jogou em cima do marido em um abraço doloroso. O pai se virou

para ela, babando e urrando, e a abraçou também. Por um instante, Diogo apenas viu os dois,como eles eram realmente, um casal que um dia se amou, os seus pais. Mas logo o abraço setornou vermelho e o pai beijou o pescoço da mãe em uma mordida feroz.

— Mãe...— Miguel... Ah, Miguel... — ela sussurrava entre lágrimas.A última lembrança que Diogo teve dos pais foi a imagem daquele abraço mortal.Ele deixou a casa, correndo alucinado por ruas escuras e vazias, passando por casas

iluminadas por luzes coloridas e figuras sorridentes e vermelhas do Papai Noel. O burburinhoe as vozes felizes sobrepunham a seus gritos de horror e desespero. Ele correu e correu,gritando por ajuda, batendo na porta das casas até que alguém o acudiu.

Ele pousou o corpo ensanguentado e frágil do irmão no asfalto negro, que logo setornou vermelho. Ele ainda tinha os olhos fechados. Não poderia, não poderia estar morto...Por favor, não esteja morto.

Uma ambulância encheu a rua de som e luzes. Diogo observou, desesperado, osparamédicos colocarem seu pequeno irmão em uma maca. Quando um deles tentou imobilizá-lo, Artur acordou. Nós vamos ficar bem, a mãe deles dissera.

Mas os olhos de Artur já estavam vermelhos como os do pai.

FELIZ VERMELHO

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|Charles|Dias|

Sozinho nas montanhasna noite de Natal, um

sobrevivente do apocalipsezumbi escreve uma carta

para improváveisdescendentes.

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Em alguma montanha de Minas Gerais, 28 de dezembro de 2015

“Meus queridos filhos, netos, bisnetos e descendentes em geral,

Em breve fará um ano que meu mundo acabou, mas continuo vivo. Olhando para o quejá enfrentei, não sei dizer como e por que ainda estou vivo. Sorte? Providência divina? Aca-so? Já pensei em todas essas possibilidade e algumas outras, mas não cheguei àa conclusãoalguma; nem sei se um dia chegarei ou mesmo se isso importa.

Engraçado como minha vida se resumiu de uma hora para outra a duas coisas:, incerte-zas e risco iminente de morte. E pensar que todas as dezenas de preocupações mundanas queme atormentavam, de uma hora para a outra, perderam a essência e a razão de existir.

É claro que vocês já sabem como tudo aconteceu e como começou, com certeza muitomelhor que eu, mas me dou o direito de contar minha versão. Afinal de contas, sou umsobrevivente, um veterano dessa guerra realmente mundial. Nossa, sinto-me como uma da-quelas múmias egípcias, testemunha de um mundo que não existe mais... Mas, afinal decontas, não é isso mesmo que sou?

Pouco antes do Natal de 2013, a tão profetizada, romantizada, desacreditada e temidapraga incontrolavelmente mortal surgiu na China (tinha de ser de lá) e tomou rapidamente omundo. Algo com sintomas como de catapora com resfriado forte que causava morte súbitaapenas alguns dias depois de contraída. Gente caindo morta como moscas pelo mundo todo,nos aeroportos, ruas, casas sem que nunguém pudesse fazer nada. E então os mortos sereergueram, sedentos de carne humana, irracionais, selvagens, agressivos. O mundo se tor-nou uma tela de cinema, um seriado de zumbis que parece não ter fim. O mundo acabou nocomeço do novo ano, rápido, muito mais rápido que se imaginava.

Os sobreviventes precisavam de armas para se defender. Se nos Estados Unidos issoera fácil, afinal de contas por lá todo mundo tinha armas de fogo, na maior parte do mundotudo foi muito mais difícil. No Brasil encontrar armas é difícil, munição então é coisa rara.Quem encontra e tem, evita usar para ter quando realmente precisar. Espadas samurai?Não, apelamos para os bons e velhos facões de cortar mato, com sorte um daqueles maislongos de cortar cana-de-açúcar … sendo que foices também são muito práticas quando seaprende a manejá-las.

Sou sobrevivente porque sou imune. Teria sido muito mais fácil se tivesse sido conta-minado, mas já que não fui não me deixarei derrotar tão fácil, afinal de contas, nunca fuidesistir sem antes tentar de tudo para evitar isso … nossa, como hoje isso soa ao mesmotempo tão verdadeiro e ao mesmo tempo tão irreal.

De minha vida antes da praga ficaram apenas as lembranças que, sinceramente, nãogosto de trazer à tona porque preciso sobreviver e lembranças matam. Já vi muitos se entre-garem por conta de lembranças, outros tantos morrerem por idiotices causadas por lembran-ças. Se um dia isso terminar, lhes contarei minhas lembranças. Tenho várias boas bem guar-dadas para isso, mas ficarão assim por enquanto.

Em tempo, não me culpem por ficar indo e voltando de assuntos diversos. Se estives-sem sozinhos nessa casinha abandonada no meio do campo numa noite quente de verão, luacheia alta no céu, jazz tocando do tocador de MP3 (o mundo pode ter acabado mas não

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voltamos totalmente à idade da pedra), tendo como companhia uma boa garrafa de vinhodepois da melhor refeição em meses, tentando escrever uma carta para futuros filhos, ne-tos, descendentes que talvez nem existirão, vocês também ficariam zanzando de assuntoem assunto.

Pois bem, voltando à minha história trágica. Morava e trabalhava na enorme São Paulo,sim, exatamente onde hoje somente existem escombros radioativos depois da bomba nuclearque usaram para esterilizar uma das maiores cidades do mundo, juntamente com o Rio deJaneiro. Minha sorte foi ter saído de lá antes para ficar com minha família no interior. Mesmotendo me antecipado, sair de carro se mostrou impossível, já que muita gente teve a mesmaideia. Mas não estou vivo à toa, fui esperto e não levei muita coisa. Quando não foi maispossível seguir de carro, na primeira oportunidade roubei uma moto e mesmo sem nunca terandado em uma me livrei da maldição das estradas congestionadas.

Roubar sempre foi errado e deve continuar no futuro civilizado que espero que seja ode vocês, mas em épocas de grandes turbulências isso se torna uma necessidade … e convivobem com isso. Roubei, roubo e com toda certeza farei isso muito mais vezes do que gostaria,mas não de forma indiscriminada, tenho uma ética para esse assunto … que também nãofalarei dela agora porque perderei o fio da minha história, ainda mais que acabei de abrir asegunda garrafa de vinho.

Pois bem, roubei uma moto e segui meu caminho em meio ao caos reinante. Adesinformação era grande, o medo maior ainda, o desespero avassalador. Também não erapara ser diferente. Imagine estar dentro de um carro fugindo com sua família e do nadaalguém morre lá dentro. Apesar de demorar em média doze horas para os mortos retornaremcomo zumbis, tempo mais que suficiente para queimá-los, não era muita gente que aceitavafazer isso com pais, filhos, esposas, noivos, namoradas.

Está aí uma coisa interessante, como acabar com um zumbi. Muita gente morreu … eainda morre … por não saber fazer isso adequadamente. Basicamente, há três tipo de zumbis:

1 - Os recém reanimados, que são os mais fortes, ágeis e agressivos;

2 - Os de meia-idade, que já não são tão ágeis, mas continuam fortes e agressivos;

3 - Os velhos, que são apenas agressivos.

O pior é que os zumbis velhos fazem tantas vítimas quanto os recém-reanimados, exa-tamente porque são subestimados. O cristão vê aquele corpo decomposto e ressecado, achaque não é tão perigoso e quando vê já foi mordido. Nossa, perdi a conta de quantos idiotasmorreram assim.

Os filmes, seriados de TV, livros e quadrinhos estavam certos, o cérebro é o ponto vitaldos zumbis. Quer matar um zumbi, dê um jeito de destruir seu cérebro, seja com um tiro,esmagamento ou cortando um pedaço fora. Note que apenas separar a cabeça do corpo nãoresolve, ela ficará lá tentando morder algum idiota … e o pior é que consegue. Meu Deus, émuito humilhante morrer mordido por uma cabeça sem corpo … mas quem morre assimmerece! É preciso destruir o cérebro!

Matar não é fácil, seja alguém vivo ou um zumbi. E não refiro ao aspecto moral ouespiritual da coisa, mas prático mesmo. É como atirar. Quem nunca atirou acha que é sóapontar a arma, apertar o gatilho e acertar o alvo … nada mais enganador como descobrirammuitos que sem nunca terem atirado na vida conseguiram uma arma para tentar se defender

CHARLES DIAS

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dos zumbis … não conseguiram. Voltando à matança, a dificuldade está em efetivar o ato, jáque carne e ossos são muito mais resistentes do que imagina quem nunca matou.

Dar fim a um recém morto é bem difícil se você não tiver uma arma de fogo das boas.Esmagar requer força, um objeto bem pesado e algumas pancadas bem violentas. Note queuma pequena fratura, concussão ou traumatismo craniano não será suficiente … imaginepisar numa fruta podre, é isso que é preciso fazer … só que num recém reanimado essa frutaé um côco! O recém-reanimado é o pior tipo, porque em geral antes preciso imobilizar oamaldiçoado, que não cooperará nem pouco, podem acreditar.

Dar fim a um zumbi de meia-idade é um pouco menos difícil, o que nesse caso não ésinônimo de mais fácil, porém mais desagradável. Se esmagar a cabeça de um recém-mortoou animado já é desagradável por conta do sangue, massa cerebral e cheiro de carne crua,fazer isso com um amaldiçoado putrefado é muito, muito pior. Claro que depois de algumtempo se acostuma, mas não deixa de ser algo desagradável. A parte boa é que não é precisoimobilizá-los antes.

Os únicos zumbis fáceis de despachar são os velhos. Não dão muito trabalho, o proces-so é menos sujo e até o cheiro não é tão desagradável.

Voltando ao meu retorno para o interior. No caminho encontrei muita gente desespera-da, corpos de zumbis e suas vítimas, suicidas, e cada vez mais zumbis. Como disse, tive obom senso de pegar o caminho da roça antes que tudo piorasse de verdade. Mesmo assim aviagem que costumava fazer em três horas levou um dia inteiro.

As primeiras semanas de volta para junto da família foram confusas. Alguns não queri-am acreditar que o fim estava próximo, outros acreditavam que o fim já havia começado,alguns tinham sido infectados, outros não, alguns diziam a verdade, outros mentiam.

Também diferente do que deve ter acontecido nos Estados Unidos lá foi como nosfilmes e livros, por aqui o individualismo não ditou as regras desde o primeiro momento eisso me enche de orgulho. Não quero dizer que todos agiram cavalheirescamente, mastambém não agiram como filhos da puta sem alma no geral. Houve e ainda há solidarieda-de e compaixão.

E lá estávamos em vinte e poucas pessoas, parentes e alguns amigos desgarrados, adul-tos e crianças, entocados num sítio, com um bom estoque de comida e esperança de que tudoaquilo acabasse logo. Mas não acabou e os que haviam sido contaminados começaram amorrer. No início houve a resistência para evitar que os mortos voltassem, mas bastou oprimeiro recém-reanimado fazer duas vítimas para que mudassem de ideia. Foram os diasmais dolorosos de minha vida… e prefiro contar sobre eles em outra ocasião, quando tiversuperado a dor. O que importa é que em meados de dezembro o mundo estava mais caóticoque nunca e sobramos apenas eu e outros quatro naquele lugar. Numa noite de bebedeira paraafugentar a dor que a proximidade do Natal tornava ainda mais difícil de lidar, uma briga,disparos de pistola e sobraram apenas eu com um ferimento no superficial, uma tia com doisdedos da mão esquerda arrancados por um tiro e seu namorado agonizante.

A regra geral num apocalipse zumbi é evitar grandes cidades e rodovias movimenta-das, onde a concentração de zumbis é logicamente maior. Esqueça aquela coisa dos filmes deencontrar nesses lugares supermercados e lojas cheios de coisas úteis, pois não encontrará.Tudo já foi saqueado nos primeiros dias. Claro que há muita coisa ainda, mas é preciso

DESEJO A VOCÊS NATAIS MAIS FELIZES

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procurar em meio ao lixo, aos restos de corpos, trabalhoso e perigoso demais para valer apena a não ser para artigos muito específicos e altamente necessários. E descobri isso quaseperdendo a vida quando fui com minha tia à maior cidade da região em busca de socorromédico para ela e o namorado, algo que, no final das contas, poderá me salvar e permitir quevocês venham a existir.

Vocês não imaginam a selva que uma cidade com pouco mais de um milhão de habitan-tes se torna após uma catástrofe. E não pensem que todos fogem, não, muita gente fica por lámesmo, vivendo como dá, aguardando ajuda de algum lugar, que raramente vem. Em algu-mas regiões há certa ordem, em outras não. A morte espreita em cada esquina, em cadasombra. É uma armadilha após outra, todas mortais.

Encontramos um hospital de campanha do exército logo na entrada principal da cidadedepois de transitar por um mar de carros abandonados, barracas de sobreviventes, pilhas decorpos incinerados. O lugar tinha centenas de contaminados, poucos médicos, praticamentenenhum medicamento, soldados nervosos. Um jovem médico com o sobretudo imundo suturouos cotos dos dedos da minha tia o melhor que pode enquanto ela chorava de dor e mordia comforça um pedaço de pano enrolado, mas disse que ela precisaria de uma boa dose de antibió-tico e antinflamatório que ele não tinha para fornecer. Sugeriu que a deixasse ali e tentasseconsegui-lo no hospital geral no centro da cidade que ainda estava funcionando.

Sabe aqueles filmes de terror onde a porta do porão abre sozinha, lá embaixo só escu-ridão gritando “Não venha aqui! Perigo! Fuja!” e o personagem começa a descer a escadaenquanto quem assiste pensa “Mas é um idiota mesmo, merece morrer!”? Então, entrar nacidade para procurar remédio para minha tia e o namorado foi um pouco pior que isso, masera o que sobrara de minha família e tinha de fazê-lo.

Os zumbis são engraçados. Não consigo imaginar como conseguem se mover mesmoapós semanas sem comer nada a não ser nacos da carne de algum idiota que conseguempegar. E como a infestação era recente, a maior parte dos zumbis estava entrando na meiaidade, e se alguns deles já são problema, imaginem milhares. O que me salvou até agora foinunca esquecer três coisas a respeito de seu comportamento instintivo:

1 - Zumbis evitam lugares profusamente iluminados, preferem a penumbra e as sombras;

2 - Zumbis são atraídos principalmente pelo barulho, quanto mais alto mais atraente;

3 - Zumbis tropeçam com muita facilidade.

No acampamento em torno do hospital não foi difícil arranjar uma bicicleta, que meproporcionaria maior agilidade sem o inconveniente do barulho da motocicleta. Como eraquase meio do dia, e me pus a pedalar os doze quilômetros até o hospital depois de convencerminha tia de que ela mais atrapalharia do que ajudaria se viesse junto e de que ela estariasegura ali até que eu voltasse, apesar de não estar nem um pouco convencido.

Foi uma sensação engraçada ver o que sobrara da decoração de Natal do ano anteriornaquela cidade devastada. Parecia que fazia tanto tempo. Em minha cabeça, décadas meseparavam do que havia sido o mundo como o conheci. Nas sombras via os zumbis. Algunspareciam me ver, a maioria me ignorava, enquanto cruzava entre os carros nas largas aveni-das profusamente iluminadas, fazendo tão pouco barulho que não chamava atenção.

Tudo parecia ir bem e eu calculava que naquele ritmo chegaria ao meu destino em umahora. Foi quando testemunhei o que pareceu a maior idiotice que já havia visto em toda

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minha vida. Um barulho alto vindo de um cruzamento que havia deixado para trás haviapoucos minutos me fez parar e olhar para trás no exato momento em que um grande cami-nhão modificado com uma lâmina em forma de V no lugar do para-choque fez a curva jogan-do para os lados os carros que haviam no caminho, vindo direto em minha direção. Com abarulheira ensurdecedora, todos os zumbis a três quarteirões foram atraídos, uma multidãode mortos-vivos em busca de carne fresca.

Eu é que não arriscaria tentar fugir com uma bicicletinha no meio daquele tumultozumbi. Só me restava fazer algo muito arriscado. Subi rapidamente no teto de um ônibus eacenei loucamente para o caminhão, na esperança de que me dessem uma carona, ou estariaperdido. Nunca fui do tipo esportivo, mas me senti um atleta olímpico quando o caminhão seaproximou a toda do ônibus e alguém lá dentro acenou para que saltasse na caçamba. Foi umdos momentos mais hollywoodianos de minha vida.

Na boleia do caminhão havia um grandalhão no volante e uma mulher de meia-idadeindicando o caminho. Na caçamba um casal de adolescentes com cara assustada, armadoscom lanças para derrubar os zumbis que por ventura subissem no caminhão. Logo fiqueisabendo que estavam indo para o mesmo lugar que eu e pelo mesmo propósito, conseguirmedicamentos no hospital geral da cidade.

Confesso que, apesar do transtorno e riscos envolvidos, a solução daqueles estranhosera muito mais rápida que a bicicleta que tinha deixado para trás. Com agilidade o motoristazanzava entre os carros abrindo com facilidade o caminho e não demorou muito para chegar-mos próximos da barricada que fora erguida em torno do hospital geral. Encontramos a bar-reira improvisada — um ônibus com as janelas cobertas por placas de aço — totalmenteaberta. Com agilidade, o homem deu um cavalo de pau com o caminhão e o usou para empur-rar o ônibus-portão de volta ao lugar e conseguir assim alguma segurança contra a hordazumbi que não demoraria a chegar.

Como já disse, o bom do brasileiro é ter um espírito solidário, mesmo num apocalipsezumbi. O casal mais velho vinha de longe em busca de remédios para a comunidade desobreviventes da qual fazia parte. Eles tinham encontrado o casal de adolescentes no cami-nho e os acolheram. Expliquei rapidamente meu drama pessoal e concordamos em juntaresforços para encontrar logo o que precisássemos e sair dali com vida o quanto antes.

Não demoramos para descobrir que aquele lugar tinha sido evacuado fazia alguns dias.Pelo menos tomaram o cuidado de armazenar os mortos em salas bloqueadas com cabos deaço e sinalizadas que não deveriam ser abertas. Segundo o motorista, havia um bom estoquede medicamentos num armário trancado numa sala do terceiro andar, onde ficava a adminis-tração, e também comida em um depósito na garagem. Perguntei como ele sabia disso e elerespondeu que ele os deixara lá.

A mulher e os adolescentes foram atrás da comida, enquanto o motorista e eu saímosem busca dos medicamentos. Aquele havia sido um grande hospital de referência, um prédiomoderno com um grande vão livre central, onde o espelho d’água havia sido transformadoem uma grande pira mortuária. Subimos com cuidado a escada rolante. Como o interiorestava bastante iluminado pela luz natural que entrava pelo vão central, não usamos as lanter-nas para evitar atrair algum zumbi que estivesse solto ali dentro. O silêncio era completo,opressor,e nos deixava em guarda máxima. O homem carregava uma escopeta de cano corta-do e eu, um longo facão afiado. Movíamos naturalmente de forma coordenada.

DESEJO A VOCÊS NATAIS MAIS FELIZES

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No saguão do segundo andar, encontramos os restos do que parecia um acampa-mento. O que chamou nossa atenção foram as marcas de sangue e os restos de comidapelo chão, sinal de que quem estivera ali baixara a guarda e tinha sido surpreendido porzumbis ou vagabundos. Continuamos nosso caminho. O motorista apontou um longocorredor à direita e fez sinal de que devíamos ir para uma sala no fundo. Ele ia à frente eeu atrás, pronto para reagir. Dávamos cada passo com muito cuidado, como se pisásse-mos em ovos. Chegamos à sala sem que nada acontecesse. Era uma sala de escritóriocomum. Sobre a mesa, notebook, papelada, uma arvorezinha de Natal com pequenascaixinhas de presente enfeitadas de lacinhos vermelhos e uma foto que mostrava o moto-rista, a mulher que estava com ele no caminhão e duas crianças sorridentes. O homem selimitou a abrir o armário com uma chave que trazia no bolso e tirar algumas caixas depapelão onde havia remédios de todo tipo. Antes de colocar tudo numa bolsa, separouuma dúzia de caixas e me entregou.

Saímos mais relaxados da sala, até mesmo alegres, e isso quase nos custou a vida.Voltamos pelo mesmo caminho e resolvemos verificar se havia alguma coisa útil noacampamento abandonado. Enquanto revirávamos as coisas, um enorme Papai Noel zumbiseguido de dois ajudantes mortos-vivos vestidos com frangalhos de fantasias verdes deanões surgiram sei lá de onde e avançaram com violência contra nós. Pelo canto do olhovi o putrefato Papai Noel zumbi se jogar contra o motorista e tropeçar. Eles rolaramsobre o parapeito de vidro para mergulhar no vão livre. Com o facão consegui cortar forao tampo da cabeça de um dos malditos zumbis, antes que o segundo se jogasse sobremim com os dentes arreganhados, desesperado pela minha carne. Rolamos pelo chãoenquanto golpeava o desgraçado com o facão sem que isso surtisse efeito algum. Dealgum modo vi uma mesa baixa e dei um jeito de rolar com o fedorento até lá. Numa dasvoltas, arremessei violentamente a cabeça dele contra a quina, e ele estrebuchou comviolência antes de ficar imóvel.

Não me dei ao luxo de recuperar o fôlego. Me levantei e corri em direção à escadarolante, pegando no caminho a escopeta que o motorista tinha deixado cair. Sem mepreocupar com o perigo, saltei sentado sobre o corrimão da escada, escorregando parabaixo enquanto procurava pelo homem. Ele ainda estava vivo, lutando para evitar que oPapai Noel morto-vivo levasse a melhor, mas claramente perdia terreno rapidamente.Haviam caído sobre os corpos incinerados, o que amortecera a queda. Rolei no chão aochegar ao fim da escada, me levantei num pulo e corri em direção aos dois. Dei umaviolenta coronhada na cara putrefata daquele arremedo de Bom Velhinho, fazendo a ca-beça dele girar violentamente para o lado, antes de apontar a arma para seu ouvido eapertar o gatilho, explodindo os miolos em meio à fumaça e ao barulho ensurdecedor.

Encontramos a mulher e os adolescentes assuntados no caminhão. Apesar de estar-mos cobertos de sangue podre, ficaram aliviados por estarmos vivos e não termos sidomordidos. Saímos pelo portão dos fundos em alta velocidade para longe daquele lugarmaldito.

O casal insistiu para que fôssemos com eles para a comunidade de sobreviventes,mas recusamos por conta do namorado da minha tia. Mesmo assim nos deram um mapae alguns mantimentos. Então cada um seguiu seu caminho.

Meu presente este ano foi ter de dar um fim na minha tia e em seu namorado. Elefoi infectado, ela escondeu isso de mim e ele a atacou mortalmente quando reanimou.

CHARLES DIAS

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Acabei com a miséria do coitado, queimei os corpos, juntei tudo o que poderia ser útil,coloquei na moto e agora estou a caminho de uma chance com meus novos amigos.Espero chegar ao lugar indicado no mapa antes do ano-novo.

Para você que está lendo esta carta escrita por seu velho pai, avô, antepassadosobrevivente, meio bêbado sozinho sob a lua cheia e as estrelas nas montanhas de MinasGerais, desejo que tenha natais mais felizes!”

DESEJO A VOCÊS NATAIS MAIS FELIZES

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|Joshua|Falken|

Uma missão rotineira emuma base de mineração

afetada por uma terrívelarma usada numa guerraantiga força uma oficial a

enfrentar algo que aafeta profundamente.

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Os soldados ataram o cinto de segurança no momento em que o helicóptero decoloucom uma sacudida. O bom humor geral do grupo não compensava pelo fato de que sentiamfrio, ainda que imaginário, mesmo vestindo os exoesqueletos de combate. Ouviam o ventouivante, como lamento de lobos, do lado de fora da aeronave. E essa agora, uma missão deultima hora, quase na véspera de Natal!

A major Boyle estava sentada no lugar de costume, ao lado da porta para a cabine decomando. Ouvia as ordens do Conselho da Cidade 7, transmitidas pelo comunicador do ca-pacete do exoesqueleto, com seu silêncio também costumeiro.

— Entendido, senhor. — Ela desligou e chamou com voz rouca. — Atenção, equipe!

Todos se voltaram para ela.

— Recebemos os detalhes da missão de contenção e resgate. — Um mapa foi projetadono visor dos capacetes. — Devemos aterrissar na Estação Mineradora Gamma Norte emcerca de uma hora. Civis no local: cento e cinquenta e sete. Nossa missão é resgatar e prote-ger quaisquer trabalhadores não infectados, imobilizar quem foi infectado e resgatar paratratamento.

— Permissão para pergunta, major. — Um dos soldados levantou a mão.

— Permissão concedida, tenente Lucas.

— Major, qual foi a arma biológica?

A major fez uma pausa e inclinou a cabeça de forma quase imperceptível.

— Vírus Errante.

Só confirmou o que os soldados já esperavam e temiam.

Durante a Hidroguerra Mundial, quinze anos antes, a União Sibério-Chinesa liberaravárias armas biológicas na tentativa de desestabilizar a Comunidade de DesenvolvimentoTerrestre. A pior delas tinha sido uma variação devastadora do vírus da raiva, geneticamentemodificada com genes de meningococos e do vírus do Oeste do Nilo. Oficialmente chamadade Solanumlyssavirus I, impedia a produção dos neurotransmissores responsáveis pelas fun-ções superiores do cérebro, deixando o sistema nervoso apenas com as reações mais básicas.Seus principais sintomas levaram ao seu nome mais famoso: Vírus Errante. Ou seu nomemais infame: Vírus Zumbi.

Mentalmente, vários deles suspiraram. Apesar de todo o trabalho que a humanidadetivera para se recuperar da guerra, volta e meia focos desse vírus surgiam e era preciso conteros infectados e submetê-los a tratamento. Estas missões eram uma triste rotina.

A major continuou a explicação:

— A comunicação com Gamma Norte foi perdida cinco dias atrás, e inicialmente acre-ditava-se que tinha sido por causa de uma tempestade elétrica na região. Porém um sinal deemergência foi emitido há dois dias. Do que foi possível recuperar da mensagem, a descriçãoera bem característica de infecção pelo Vírus Errante, na fase de Caça e Infecção. Devemosassumir que cerca de dez por cento dos infectados se tornaram Caçadores e o resto evoluiupara Errantes.

O silêncio que se seguiu foi pesado.

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Uma hora mais tarde, o helicóptero pousou em frente da gigantesca cúpula de concretoe metal da Estação Gamma Norte. Os soldados desceram e formaram um círculo de proteçãoao redor do veículo.

O silêncio era quebrado apenas pelo vento. A major notou os enfeites natalinos presosao redor do portão de entrada do prédio.

— Oliveira, algum contato com o interior da estação?

— Não, Major. — O soldado operava um pequeno aparelho com antena. — As comu-nicações ainda estão desativadas.

Mais dois helicópteros pousaram ao lado deles.

— Entendo.

Ela observou seus comandados checarem novamente as armas, especialmente a muni-ção capacitora, balas que desferiam uma descarga elétrica incapacitante.

— Major...

Ela se virou para o recém-chegado do outro helicóptero.

— Doutor.

O homem assentiu, seu exoesqueleto branco se destacava na atmosfera sombria.

— Trouxemos a carga de soro antierrante e estamos prontos para aplicar a dose dereforço da vacina.

Foi a vez da Major assentir. Após os preparativos, ela fez um lembrete aos soldados.

— Atenção! Nossa prioridade no momento são as pessoas ainda não infectadas. Deve-mos resgatá-las o mais rapidamente possível e trazê-las para o isolamento com a equipemédica. Mantenham os filtros biológicos de suas armaduras no máximo. Caso encontremErrantes, usem o procedimento padrão. No caso de Caçadores, imobilizem-nos com a muni-ção capacitora e apliquem imediatamente o sedativo. Apliquem o tratamento imediato con-forme for possível. Usem força letal apenas como último recurso!

Todos confirmaram o entendimento.

— Vamos entrar — ordenou.

Eles se separaram em times de quatro. Caminhavam em formação pelos corredoresescuros da Estação Mineradora.

— Ei, Kaiji.

— O que foi, Carlos?

— Você já serviu com a major antes?

— Claro! — O tom dizia claramente: “Você nasceu ontem?”

— Ela sempre restringe o uso de força letal contra infectados? — Carlos era decidida-mente curioso. Kaiji entendeu e ia responder quando ouviu um barulho. Todos ficaram emestado de atenção.

Era um gemido.

JOSHUA FALKEN

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Imediatamente o treinamento tomou conta deles.

O gemido se aproximava. Formas humanas pareciam se destacar na escuridão do túnel.

— Parecem ser cinco. Errantes, não Caçadores — Kaiji determinou. — Michelle, pre-pare a Teia.

— Entendido, tenente.

— Na minha marca! Três... — Os errantes se aproximavam, a pele extremamente clarae os olhos vermelhos no rosto sem expressão se destacavam. — Dois... Um...

Os errantes aceleraram o passo na direção deles, atraídos pelo som.

— Agora!

Usando uma espécie de bazuca, a soldado Michelle disparou uma teia eletrificada so-bre o grupo de Errantes. A força do disparo os derrubou, enquanto a carga elétrica imediata-mente os imobilizava. Os soldados esperaram até que os errantes perdessem os sentidos.Kaiji ativou o rádio.

— Major, responda! Aqui é o time 3.

— Prossiga, time 3.

— Imobilizamos cinco errantes no corredor 5-Norte.

— Entendido, time 3. Apliquem o tranquilizante e continuem a busca.

— Entendido.

Desligando o rádio, Kaiji designou com um gesto o médico do time. Com destreza,o soldado aplicou um forte dose de tranquilizante nas formas caídas. Os Errantes ficari-am desacordados por vinte e quatro horas, e nesse período poderiam ser removidos paratratamento na Cidade 7. Em seguida, aplicou em cada um deles uma dose combinada desoro antierrante e medicamento antiviral, que ajudariam a mantê-los sob controle duran-te o tratamento.

Prosseguiram pelo corredores.

Meia hora mais tarde, a major e seu time percorriam um corredor do outro lado deGamma Norte. Já tinham neutralizado dois grupos de Errantes, mas ela estava preocupadacom o fato de ainda não terem encontrado nenhum Caçador, como seria esperado em razãodo ciclo de evolução do vírus.

Embora pudesse ser transmitido de forma aérea num primeiro momento, o vírus sobre-vivia pouco tempo ao ar livre. O principal mecanismo de transmissão eram as mordidasdadas pelos infectados durante a fase Caçadora do Vírus. Sim, havia a possibilidade de todosos Caçadores terem evoluído para simples Errantes, mas ela duvidava.

— Major, responda! Aqui é o time 8.

— Prossiga, time 8!

— Encontramos pessoal não infectado.

— Informe a posição.

MISSÃO ROTINEIRA

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— Corredor 3-Sul.

— Entendido. Estamos indo para a sua posição. — Com um sinal de cabeça, indicoupara que seu time a acompanhasse. — Fiquem em formação de defesa até chegarmos!

Cinco minutos mais tarde, a equipe estava em frente à porta reforçada de uma salaestanque de contenção de emergência. Pela janela, a major conseguia ver cerca de vintepessoas, com máscaras de oxigênio no rosto.

— Como eles estão, tenente Renne? — perguntou para a líder do time 8, sua segundano comando.

— Estão aqui há cerca de quatro dias. Os suprimentos já estavam no limite.

A major assentiu e ligou o interfone.

— Olá, aqui é a major Elizabeth Boyle, do Grupo de Contenção e Resgate da Cidade 7.Nós os levaremos daqui o mais rapidamente possível.

Enquanto ouvia os gritos de alegria e os agradecimentos dos sobreviventes, perguntou:

— Vanessa, você contatou o helicóptero?

— Sim, major. Eles já estão preparando o setor de isolamento para os não infectados.

— Ótimo. — Ativou o rádio. — Times 2 e 5, venham até o corredor 3-Sul para otransporte de civis! Time 7, traga garrafas de oxigênio para vinte e duas pessoas. — Ela sevoltou para o interfone. — Vocês tem informação de como a infecção começou?

Um homem de meia-idade, que deveria ser um dos líderes do grupo, respondeu:

— Não temos certeza. Tinha havido um desmoronamento em um dos túneis durante anoite faz uns sete dias. Uma boa parte do pessoal do turno da noite que atendeu o acidentepassou mal no dia seguinte, mas o médico disse que era uma intoxicação leve. — A majorpercebeu claramente que o homem revirou os olhos ao se lembrar disso. — Dois dias depois,alguns dos trabalhadores se transformaram nos primeiros Caçadores e começaram este caos!Somente nós conseguimos escapar e nos proteger aqui!

Após a chegada dos times e do material requisitado, os soldados formaram um cordãoao redor dos sobreviventes e começaram a conduzi-los para os helicópteros. Estavam nametade do caminho, quando ouviram um som diferentes dos gemidos dos Errantes. Era umamistura de grunhido e latido.

Caçadores.

Imediatamente os soldados ficaram em posição de ataque. Quase ao mesmo tempo, doisrelâmpagos brancos se lançaram sobre o grupo. Foi a reação rápida e profissional que permitiuque os dois Caçadores fossem atingidos pelas balas capacitoras, seguidas por uma teia elétricade contenção, disparada pela própria major. Foi tão rápido que os civis sequer reagiram.

Os caçadores capturados foram imediatamente sedados com uma dose dupla detranquilizante e imobilizados com algemas nos braços e nas pernas e uma máscara tipofocinheira. Brutal, mas necessário.

O grupo apressou o passo para a saída.

Horas mais tarde, os soldados tinham retornado ao hangar da Cidade 7. Conseguiram

JOSHUA FALKEN

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capturar todos os Errantes e a maioria dos Caçadores, mas tinham sido forçados a neutralizardois deles com força letal.

A Major observava a descontaminação da sua equipe, enquanto supervisionava a trans-ferência dos infectados para o Corpo Médico.

— Então, doutor, quais as chances deles? — perguntou ao responsável.

O médico balançou a cabeça.

— São relativamente boas. Na primeira avaliação, creio que apenas três deles, em está-gio mais avançado, tem probabilidade baixa de continuar como Errantes. O resto provavel-mente se recuperará, embora leve tempo, é claro.

— Entendo — ela murmurou, soltando lentamente o ar, aliviada.

O médico se afastou para ir com os pacientes.

Mais tarde, todos os integrantes do grupo de Contenção e Resgate já tinham ido paracasa, festejar o Natal com a família.

— Tudo bem, major?

Era a tenente Renne.

— Ah... Olá, Vanessa! Sim, estou bem, apenas cansada.

— Alguns de nós vamos fazer uma pequena festa de Natal. Não gostaria de ir?

Houve uma pausa constrangida.

— Sinto muito, mas não posso. Tenho um compromisso a que não posso faltar. Desculpe.

— Entendo. Bom, feliz Natal!

— Feliz Natal para você também.

Depois que todos saíram, a major removeu o capacete e retirou a armadura, rapidamen-te vestindo roupas civis e um longo casaco preto. Saiu da base, tendo o cuidado de passarapenas pelas guaritas automáticas. Ergueu a gola do casaco e colocou boné, óculos escuros emáscara cirúrgica.

Caminhava pelos corredores subterrâneos apinhados da Cidade 7. As decorações natalinasaté que davam um ar festivo ao lugar, mesmo com o frio causado pelo racionamento de energia.

Não deixava de notar que as pessoas a evitavam, mas não se surpreendia. Sabia que odisfarce — não se iludia sobre o que seu modo de vestir realmente era — deixava as pessoasnervosas e também sabia que seu rosto provocava um nervosismo ainda maior. Tomou ometrô para chegar ao seu destino.

A major respirou fundo antes de entrar no hospital. Foi até a mesa da recepção.

— Por favor, vim visitar uma paciente da ala isolada.

A recepcionista assentiu.

— Seu nome?

— Elizabeth Boyle. — Ergueu o bracelete de identidade e o leitor confirmou os dadosdo chip de RFID.

MISSÃO ROTINEIRA

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— Um momento.

Ela percebeu que mesmo com as luzes frias, o interior do prédio era quente.

— Senhorita Boyle.

— Olá, doutor Ribeiro. Como ela está?

— Estável. Gostaria de vê-la?

— Sim.

Caminharam por um corredor até um quarto isolado. No leito, olhando fixamente parao teto, estava a paciente. Era uma mulher com cerca de trinta e cinco anos, cujo o rosto seriabonito se não fossem a palidez e os olhos vermelho-sangue característicos do Vírus Errante.

Quando o médico saiu, ela tirou o boné, os óculos e a máscara, revelando o rosto extre-mamente pálido, os olhos vermelhos com brilho cansado. A semelhança era óbvia. Ela acari-ciou o cabelo da paciente. Sorriu tristemente.

— Olá, maninha... Feliz Natal.

JOSHUA FALKEN

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|Rita|Maria|Felix|

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Um gênio com todos osrecursos à disposição e

uma grande dor no coraçãocoloca em risco toda ahumanidade para trazerde volta a felicidade que

um dia teve.

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

Rita Maria Felix da SilvaRita Maria Felix da SilvaRita Maria Felix da SilvaRita Maria Felix da SilvaRita Maria Felix da Silva, pernambucana, 42 anos, professora (Matemática, Química e Física),

escritora nas horas vagas. Embora ainda sem livros impressos em papel, tem textos espalhados

pela Internet e dois ebooks gratuitos na rede. Obras suas já foram publicadas nas revistas Universe

Pathways (grega, impressa) e Alfa Eridani e Axxón (espanhola e argentina, respectivamente, ambas

virtuais), bem como na brasileira Scarium (impressa).

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Eles estão saindo dos túmulos... Estão vindo... Para pegar você...”

John, em A noite dos mortos-vivos, de George Romero

Carta do Dr. Eliel Bergmann à posteridade:

“Florianópolis, 8 de dezembro de 2013

A quem encontrar esta carta:

É meia-noite e os céus foram tomados por uma tempestade colossal. Dolorosamentecaminho até a janela da mais alta torre de meu castelo sombrio e antigo, as pesadas correntesde meus pecados atadas aos meus tornozelos, e de lá grito, a todos os ventos, a maldição queespalharei sobre o mundo...

Não é bem assim. Estou exagerando, é claro; todavia, a quem quer que esteja lendoisto, peço que me perdoe. Sempre tive uma queda pelo dramático e pelo gótico. Se algumerudito vier invocar o termo clichê, sinceramente não me importo.

Na realidade, não moro num castelo, mas sim numa casa luxuosa no Jardim Atlântico.Não há tempestade no céu (é um dia claro e sem nuvens), não tenho correntes nos pés e nemme preocupo com supostos pecados. Mas a maldição... Isso aí já é outra história.

Contemplo, numa mistura de olhar filosófico e júbilo, esta cidade: é com orgulho queos vejo, os mortos-vivos, ocupando cada espaço da metrópole. Furiosos, selvagens, assassi-nando todos os que encontram pela frente. Depois os cadáveres das vítimas se reanimam eprosseguem na matança. Que adorável vê-los invadir a Ponte Hercílio Luz, enquanto trazemalgum tipo de beleza exótica à paisagem monótona de Florianópolis. Isso é tão glorioso!Minha maior realização. Enche-me os olhos de lágrimas. Assisto a tudo no telão em meusótão. Imagem em HD, captada por satélites em órbita. Sim, custou caro, mas vale a pena.Afinal, ser um dos homens mais ricos do mundo tem suas vantagens.

Então fico lembrando de Elise, o corpo dela no porão, conservado numa câmara denutrientes. Minha pobre Elise. Faço tudo isto por ela.

Hum... Acho que estou indo rápido demais. Melhor voltar um pouco no tempo, sequero que você, seja lá quem for, possa entender.

Meu pai e minha mãe morreram quando eu ainda era bebê. Não, eles não foram mortosnum assalto quando saíamos do cinema, nem em algum desastre de carro ou coisa parecida.Eles se esfaquearam. Sério. Minhas tias me contaram que os dois se amavam muito, maseram doidos e brigavam como feras.

Então minhas tias me criaram. Eram três: Hannah, Marie e Inza. As duas últimas erammuito apegadas e também brigavam muito, algo a ver com inveja mútua ou excessiva co-brança por atenção. Marie e Inza acabaram matando uma à outra, com veneno, pelo que sei.Sim, parece que a loucura gosta de visitar minha família.

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Tia Hannah cuidou de mim até que me tornasse adulto. Ela morreu de aids antes que eucompletasse vinte e um anos. Nunca entendi isso. Pelo que sei, era uma quarentona muitocatólica, que nunca tomara drogas e que não tinha vida sexual, nenhuma mesmo. Ela sempreme pareceu a própria personificação do celibato.

O que me importa é que ela estimulou duas das três vocações que definiriam minhavida. Minha tia me incentivou a estudar e mostrou-me seu amor pelas ciências. É graças a elaque hoje tenho doutorado em três áreas diferentes: biologia, bioquímica e engenharia eletrô-nica. Ganhei um Nobel dessa última.

Porém, se havia uma coisa que tia Hannah amava era... Como explicar...? A morte. Sim,ela adorava ir a funerais e velórios e sempre me levava junto. Cemitérios eram como umparaíso para ela. De qualquer modo, morreu gritando em agonia.

Com ela, também conheci os filmes de zumbis de George Romero. Meu Deus, issorealmente mudou minha vida. Toda aquela mitologia sobre os mortos-vivos... Havia algosagrado naquilo tudo, alguma verdade oculta implorando à nossa alma para ser desvendada.Quantas vezes já assisti a A noite dos mortos-vivos? Nem sei dizer.

Em algum momento, percebi que eu era semelhante à tia Hannah. O que eu realmenteamava eram as coisas mortas. Uma psicóloga uma vez disse que eu sofria de necromania eprecisava ser tratado. Alguém vai dizer que isso é uma contradição, se considerarmos asciências que estudei. Não me incomodo: o mundo é cheio de contradições.

Tornei-me um cientista famoso e, ao contrário de meus pares, fiz fortuna. Por algummotivo, e dizem que herdei isso de minha mãe, tenho facilidade em lidar com dinheiro. Seique o desejo inerente ao capital é se multiplicar, como um vírus, ou talvez um meme deRichard Dawkins, e posso ver, claramente, em minha imaginação os meios para multiplicá-lo. Não, não me julgue. Nem sempre esses meios são os mais corretos e éticos. Mas em quelugar já escrevi ou declarei que me importo com correção ou ética? Aprendi com minha tiaque é melhor ser sincero consigo mesmo, ainda que o mundo o considere cruel, do que serhipócrita.

Então, em algum momento, conheci Elise, a terceira vocação de minha vida, e, assim,o curso que me trouxe à manhã de hoje e ao apocalipse a que condenei o mundo foi traçado.

Eu a encontrei numa festa, num parque de diversões. Um colega me convenceu a ir. Euestava na barraca de tiro ao alvo, quando ela passou, com um grande pedaço de algodão-docena mão. Elise era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Corri atrás dela. Fomos a um motelainda naquela noite.

Ficamos juntos apenas por alguns dias. Transávamos o tempo todo. Eu estava feliz,realmente feliz, como nunca havia me sentido antes. Ela dizia que eu a esgotava, que meucorpo tinha fome de vida e eu estava sugando a dela. Elise era engraçada, fazia-me rir com asmaluquices que dizia. Ela parecia estar definhando, porém, tão envolvidos em toda aquelafelicidade, ignorávamos tudo.

Numa sexta-feira, ela morreu de repente. Os médicos diagnosticaram esgotamento físi-co como eles nunca tinham visto. Chorei até não ter mais lágrimas. Por mais absurdo quepossa parecer, comecei a pensar na brincadeira de Elise sobre eu a estar esgotando, mas,mesmo hoje não consigo aceitar essa culpa. Eu queria Elise de volta.

RITA MARIA FELIX DA SILVA

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Assim, dediquei minha fortuna e meu tempo para o que seria o objetivo maior de minhavida: ressuscitá-la. Eu tinha o dinheiro e todos aqueles filmes de Romero zanzavam porminha cabeça.

Isso foi há dez anos. Desde então, empreguei os melhores e mais caros especialistasque pude encontrar, contudo, eu sempre falhava e ela continuava morta. Há cerca de doisanos, porém, obtive o que se pode chamar de um resultado. Elise movia-se novamente! Sim,mas não estava viva de verdade, era só um cadáver reanimado, furioso e selvagem, tentandomatar todos os que se aproximassem dela, incapaz de falar, sem nenhuma inteligência, umaparódia blasfema da mulher que eu amo.

Em certo momento, horrorizado com aquilo, eu a detive da mesma forma que nosfilmes. Com um tiro na cabeça. A partir de então, estou mais desolado do que se poderiaimaginar.

Continuei investindo, porém, nesse projeto. As simulações em computador, no en-tanto, mostravam que o resultado seria sempre o mesmo: um zumbi selvagem e sem ne-nhuma inteligência.

Talvez eu esteja finalmente enlouquecendo, semelhante a papai e mamãe, tia Marie etia Inza. Decidi que não posso continuar vivendo sem Elise. Decidi que não deve existir ummundo lá fora, se a adorável Elise não puder viver nele, viver da forma que ela sempre foi enão como um monstro de filmes B.

Com isso em mente, adaptei o processo que eu usara nela. Elaborei uma espécie devírus eletrônico, capaz de infectar o cadáver de seres humanos e reanimá-los na forma dezumbis, que não vão tentar devorar seres humanos nem seus cérebros, mas simplesmenteassassiná-los com inexplicável força descomunal. Decidi fazer o teste em Florianopólis mes-mo. O vírus se espalha rápido. Se meus cálculos estiverem corretos, e acredito que estão, terácontaminado o mundo inteiro em algumas semanas; conforme a programação que embuti novírus, quando o último ser humano tiver se tornado um morto-vivo, todos os cadáveres rea-nimados voltarão a ser apenas mortos imóveis. Sim, extinção da espécie humana.

Se você leu até aqui, agradeço. Vou agora descer até o porão, esvaziar a câmara denutrientes e queimar o cadáver de Elise. Depois vou atirar em minha própria cabeça. Afinal,por que continuar se não há nenhum motivo para isso, não é mesmo?

Então, essa é minha história, é uma de zumbis, mas não creio que daria um bom filme;ao menos sei que não seria um a que eu gostaria de assistir.

Quanto a você, seja quem for, posso dar uma sugestão sobre o que fazer enquantoespera meu apocalipse? Que tal assistir a A noite dos mortos vivos? É um ótimo filme, meufavorito (deixo uma cópia em DVD caso aceite minha sugestão), mas tente não lamentarsobre o que acontece a Ben no final. Ora, seja na ficção ou no mundo real, quem disse que avida é justa?”

“Eu sou o que vivo; fui morto, mas eis aqui estou vivo para todo o sempre!E tenho as chaves da morte e do inferno.” (Apocalipse 1,1)

NECROMANIA

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|Leonardo|Carrion|

Em um mundotransformado por umaarma terrível e povoadopor inomináveis, anosapós o fim de uma

guerra inacabada, o Beme o Mal travam uma nova

batalha.

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“Eu vi corpos de tropas mais numerosas, batalhas mais disputadas, mas nuncavi, em nenhuma parte, homens mais valentes, nem cavaleiros mais brilhantes

que os da bela cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras aprendi a desprezaro perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações.

Quantas vezes fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que virealizar por essa viril e destemida gente, que sustentou, por mais de nove anos

contra um poderoso império, a mais encarniçada e gloriosa luta!”

Giuseppe Garibaldi

25 de dezembro de 1856Litoral entre a República Piratini e a República Juliana

— Uns vem pelo norte.

— Outros pelo poente.

— Avançam também pelo sul...

O general farroupilha Bento Manuel colocou ponto final na discussão sobre o horizon-te com um amplo gesto de mão. Sinalizava pela janela do laboratório que mostrava boa partedo vale, quase no topo da montanha. Todos os comandantes entenderam a referência: milha-res de léguas, o país sublevado, incêndios e morte. A guerra trafegava por todos os caminhos,sobre esteiras mecânicas, a galope e em dirigíveis. Tiros, alaridos e fumaceira. Nada de sonoe nada de ceia.

O jovem ordenança barbudo, Athanazio, ajudou o general a retirar o capacete de courocom as enormes lentes binoculares que utilizava para visualizar o movimento das tropas.

Do outro lado da sala o padre Roberto Landell de Moura coçava o queixo áspero dabarba de dias. Pensava em sua ciência de ondas, placas tectônicas, magma, energia raadica,vapor e bronze.

O genial e louco padre-cientista bocejou, tomou um largo gole do chimarrão amargoque tinha em mãos e voltou a atenção novamente à maquinaria, soldando, ligando e esculpin-do formas assustadoras conectadas em tubos que se dirigiam ao centro incandescente damontanha. Ao seu lado o pequeno cubo de uma liga especial de cobre e ouro continha a maispura energia raadica presa em um meio plasmático. Quando estava próximo ao calor domagma contido na montanha, energizava-se e mantinha todas as criaturas controladas.

A reunião do alto comando farroupilha se desfez e Bento Manuel se aproximou damesa onde trabalhava o padre, alisando a bombacha.

— Preciso de mais material — disse Landell, como se falasse para ninguém, sem le-vantar a cabeça do trabalho.

Bento odiava que ele se referisse às crianças sequestradas como “material”. Fechou amão, sentindo as unhas cortarem dolorosamente a palma. A fúria subiu-lhe pelo rosto, masele controlou sua erupção no último segundo. Precisavam desesperadamente de Landell.

— Você sabe que isso é impossível. E já chega! Você teve mais crianças do que disse quenecessitaria. A falação já é grande em toda Piratini. Os inimigos da república usam o boatosobre o sumiço de crianças como propaganda para enfraquecer a fé do povo na causa farroupilha.

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Landell continuava trabalhando sem parecer ter ouvido. Repentinamente agarrou acorrente que usava para pendurar o cubo ao pescoço e entrou na câmara onde as pequenascriaturas vagavam em torno do calor de uma fonte de lava incandescente. Murmurava “mais”de quando em quando. O laboratório tremia quando a montanha sacudia suas entranhas.

O general virou-se para a janela. Mais abaixo, em cavernas, florestas e rios no sopéda montanha, soldados obedeciam à apenas duas ordens: ataque e dispersão, dispersão eataque. Uma tropa que se lançava de improviso, misturando-se ao inimigo. Dois minutosde golpes, circulando sabres, socos e laços. Quedas e baionetaços. Ao final uma descargade artilharia e, sob a nuvem de fumaça e poeira, um punhado de cavaleiros retornava galo-pando sujos animais.

Nem uma vaca, nem uma ovelha por perto. Já não existia espaço para pastagens oucolheitas. Tufos de pólvora negra enxofravam o ar. Areia acelerada pelos canhões iônicosarrancavam pele e carne de ossos de homens vivos. O desamparo enegrecia a alma dos solda-dos, ferozes de solidão e desesperança. Toda a luta, toda a morte e todo o sangue para ganharo tempo necessário ao padre-cientista Roberto Landell de Moura para que concluísse seutrabalho. A república estava cercada.

O alto-comando farroupilha de Bento Manuel, sucessor do falecido Bento Gonçalves,trouxera a totalidade de suas tropas à montanha enevoada para proteção do laboratório. Asfortificações nas fronteiras do país estavam sendo guarnecidas por crianças, doentes e aleija-dos. Não houvera outra escolha. Impossível a defesa em todo o território do país de ataquessimultâneos em três frentes, do Império Brasileiro ao norte, da República Cisplatina ao sul eda República Argentina a oeste.

Pelo mar vieram os dois grandes barcos-vapor encouraçados e os soldados da capital,com todas as máquinas de guerra disponíveis. Os dez dirigíveis, incluindo o gigantescoGaribaldi, capaz de voar tão alto que seus tripulantes precisavam de máscara de oxigênio,que lançava o cuspe amarelo-ácido como uma chuva sobre as tropas inimigas. Trinta milhomens, quarenta canhões sobre esteira, autômatos-lâmina em profusão e dois aceleradoresde areia recém-produzidos pela equipe do padre.

Bento dispôs seus comandados em círculos concêntricos, tendo a montanha como mi-olo. Quem a visse de longe poderia imaginar uma gigantesca árvore de natal, iluminada pelasfogueiras dos acampamentos nas florestas. E no topo, como uma estrela, brilhava o laborató-rio. “Uma árvore da morte”, pensou Bento.

As tropas farroupilhas ocupavam posições altas oferecendo resistência aos inimigos,que por sua vez lutavam entre si de forma igualmente alucinada.

Juan Manuel de Rosas, ditador argentino, chegara do oeste com onze mil soldadoscastelhanos em transportadores de esteira, capazes de sobrepujar qualquer terreno enquantocontassem com lenha para suas enormes caldeiras. Queimara no caminho a cidade deUruguaiana e o povoado de Passo Fundo, despejando água fervente e alcatrão sobre a popu-lação que tentou resistir.

Ao norte, o Império cruzou por Santa Catarina, comandado pelo aterrorizante Duquede Caxias, metade homem metade máquina, com as entranhas à mostra. Estava acompanha-do por cinco mil cavaleiros montados em cavalos de ferro. O exército da República Julianacomandada por Anita Garibaldi em Laguna deixou-lhes livre passagem, fugindo pelo mar epelo ar para juntarem-se aos farroupilhas no pé da montanha.

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E pelo litoral sul o general uruguaio Juan Antonio Lavalleja, ex-aliado da RepúblicaPiratini, fez rumo norte com quase dez mil soldados transportados em barcos-vapor, balões,hovercrafts de areia e carros de esteira.

Bento ouviu alguns comandantes se referirem aos três como “Os três reis magos do mal”.

Por todo o entorno da montanh,a atacantes tentavam avançar e esbarravam nosfarroupilhas e em sua selvagem resistência. Os lanceiros negros, a sanguinária tropa de ex-escravos fugidos da servidão no Brasil, não fazia prisioneiros e costumava procurar nastropas brasileiras os escravagistas que por ventura estivessem na luta. Como não possuíamlenços ou fardamento, sendo a expressão mais selvagem da pobreza, os lanceiros negrosutilizavam o sangue dos inimigos para pintar um arremedo de lenço vermelho farroupilhano pescoço.

A mata, preenchida em todas direções por fortuitos disparos. Tropas fustigavam-semutuamente pelos flancos das colunas dia e noite. Dado o alarme, apagavam-se as fogueirase assim os combatentes passavam as horas insones, acocorados em seus casacos contra o frio,segurando fortemente as armas.

O choro de crianças era ouvido no laboratório e Bento Manuel pensava nos vivos e mortos.

Landell voltara da câmara. Sem esconder mais sua perfídia diante dos comandantes,olhou com desejo para o quarto onde as crianças eram mantidas. Em seguida se aproximouda mesa principal do laboratório e passou o cubo sobre o obsceno boneco que então ganhouvida, arreganhando dentes e aspas metálicas por todo o corpo. Um sinistro calafrio percorreua espinha dorsal do general.

“A guerra dá novos significados à crueldade”, pensou Bento, “e tem sido minha únicae fiel companheira por vinte anos.”

Lá embaixo os mortos ficavam sem enterro, em uma deprimente mistura de cores. Ogeneral fechava os olhos e via os casacos verdes do Império, os azuis dos argentinos, osmarrons dos uruguaios e os lenços vermelhos farroupilhas semeados nos campos. Máquinasde combate destruídas, bronze, cobre, madeira fumegante e engrenagens, mistura de sanguee graxa, vapor e suor. Seriam os presentes ao pé da árvore?

Crianças chorando no reluzente laboratório em bronze, onde Bento tentava manter amoral de seus comandados naquele triste Natal. Gigantescos postes metálicos afixados aquie ali na montanha faziam saltar raios de energia raadica entre céu e a terra. As notícias nãoeram boas-novas.

Os batedores e os informantes eram unânimes: finalmente os inimigos perceberam que,se continuassem brigando pela supremacia contra os demais, além dos farroupilhas, chegari-am à exaustão total sem conseguirem seu intuito. Os três inimigos negociavam um tratado ejuntavam forças para a invasão.

Bento achava que tinha conseguido explicar a situação ao insano padre. De nadaadiantava o homem insistir que não estavam prontos, que não havia sido testado e que oresultado poderia ser desastroso. Teriam que utilizar o boneco, liberar as abomináveis cri-aturas e também a força raadica em subsolo piratini, torcendo para que fossem menosatingidos que os inimigos.

— E que Papai Noel nos perdoe — disse.

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O Velho Bento entrou na roda,tocando seu violãoBalalan ban ban Balalan ban banVem de lá a feiticeirae Velho Bento caiu no chãoBalalan ban ban

Quando ele vem, todo requebradoparece um boneco, desengonçado.

(Canção infantil Piratini, considerada de crianças mal-comportadas)

Fim do verão de 1886, trinta anos depois da guerra que não acabouMesmo local

O carroção despejando vapor sujo sacudia-se em alta velocidade, correndo perigosa-mente pela estrada de chão batido. Dentro dele dois homens de aparência dura tentavam nãoserem jogados para fora do veículo, enquanto lutavam um contra o outro. Uma corda presana carroceria subia e desaparecia na direção das nuvens, arrastando um enorme e muitoestreito dirigível semiderrubado, de onde gritos infantis eram ouvidos.

O cocheiro também lutava, tendo abandonado os arreios que seguiam soltos próximosdo lombo dos animais em disparada. Mas o homem não combatia outro humano, mas simduas criaturas que pareciam saídas dos pesadelos mais terríveis de um agente funerário lou-co, todas ossos, dentes e podridão.

Com o pesado cabo de um mosquetão o cocheiro desferiu um potente golpe quearrancou do pescoço a cabeça do inominável mais próximo, fazendo a criatura cair le-vando mais dois que tentavam galgar o cambão e o coche do carroção. Mesmo assim umdos braços, mais ossos do que carne e tendões, ainda permanecia com a mão fortementeagarrada à bota de couro do homem. A dor era intensa e ele gritava enquanto tentavalivrar-se do insuportável aperto no calcanhar, os dedos ossudos pareciam furar o couro.Não teve tempo para mais nada quando sentiu o incrível fedor da mão que, vinda de suascostas, agarrou sua testa e jogou sua cabeça para trás. Em poucos segundos dentes crava-ram-se em sua garganta e diversos corpos tombaram, embolados junto com o dele, parafora do veículo.

A estrada fez uma curva fechada para a esquerda, na direção contrária à da gigantescamontanha de pico enfumaçado, mas as três parelhas de cavalos que corriam cegamente noentardecer com olhos desorbitados pelo terror sequer pareceram dar-se conta. Com os lom-bos brilhosos cobertos de suor e sangue, saltaram direto sobre a valeta que marcava o final davia e avançaram por uma antiga plantação de girassóis na base da montanha, esmagandoflores e deixando no ar o doce aroma das sementes oleosas. Na estrada, dezenas de abomina-ções jogaram-se sobre o cocheiro que ainda se debatia.

O carroção se distanciou da triste cena, ganhando velocidade ainda maior. Algumascriaturas inomináveis permaneciam agarradas em arreios de couro, no cambão e em crinas,abocanhando e arrancando a dentadas pedaços do torso dos animais.

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As rodas de metal do carroção chocaram-se fortemente contra uma grande pedra nomeio do campo e o veículo foi jogado para o alto. Por um momento, parecia que o carroçãoia voar com o dirigível ou desfazer-se no ar, mas finalmente resolveu acompanhar os cavalosvoltando ao chão com um estrondo. Neste momento o homem com o surrado fardamento dasforças armadas, insígnias de capitão, recebeu uma forte pancada na cabeça e cedeu vantagemao outro, que vestia a batina de um padre católico, e que instantes antes estivera com o canode um azeitado Colt enfiado no meio dos dentes.

O padre demorou apenas alguns segundos para perceber que continuava vivo. Era muitoalto e magro, calvo, olhos tristes e inchados pelo álcool, a barba branca emaranhada e suja sejuntava com os pelos que subiam-lhe pelo pescoço, escapando da gola da batina negra.

Sem pestanejar e aproveitando que os cavalos diminuíam o ritmo pela exaustão ou pelaperda de sangue, abriu a lona que fechava a traseira do carro. Chutou um inimaginável quearrastava-se atrás, preso por unhas e ossos enfiados madeira:

— Vá para o Boneco que te carregue, imundo cadáver! — gritou, vendo o corpo putrefatoperder-se entre os girassóis.

Virando-se para o interior do carro agarrou o soldado desmaiado pelo casaco, jogando-o também para fora. Permaneceu assim alguns momentos, desfrutando do vento em seu rostomachucado, agarrado nos tubos de cobre que saíam da caldeira do carroção com sua misteri-osa maquinaria. Seu descanso durou apenas um par de quilômetros, pois logo se viu sendojogado pelos ares, dando duas cambalhotas completas e caindo sobre um ressecado monte depalha. Mesmo com a dor ainda teve tempo para observar que o carroção se recuperava dobaque e se afastava, deixando para trás o corpo de um dos cavalos que atropelara e duasabominações que continuavam a devorá-lo. O conjunto seguiu com os outros cinco animaisainda correndo em direção ao pico enevoado.

Sentindo todos os ossos do corpo moídos, o religioso levantou-se e tateou a batina atéencontrar a bainha de couro que envolvia seu crucifixo de aço de noventa centímetros, aspernas do Cristo anormalmente afiadas, os pés, uma ponta aguda. Desembainhou-o e cami-nhou em direção às criaturas que atacavam o cavalo caído, para conceder-lhes a unção final.Seguiria o carroção depois.

Mais uma vez Natanael sonhava o mesmo sonho, o repetido, o inolvidável sonho que oacompanhava desde que podia se recordar, desde a tenra infância no orfanato, antes de servendido para o exército farroupilha.

No sonho, ele era apenas um bebê; sua mãe, que nunca conhecera, vestia uma roupa debatalha feminina dos farrapos. Era muito loura, com os cabelos presos por uma tiara comdiamantes, e ela carregava um sabre sujo de sangue e um mosquetão fumegante. Agarrou-oporque Natanael estivera chorando. Sua mãe desaparecia, e ele chorava ainda mais forte.

Logo Natanael era uma criança de três ou cinco anos. Tinha o rosto sujo por fuligem eestava com outras crianças. Uma menina lhe dava a mão. O chão tremeu e os dois caíram.Não sabia se o tremor tinha derrubado a menina ou se era o homem mau, alto e louco, que ajogava para o lado e tentava pegá-lo? Nunca sabia, o sonho não era claro.

Um homem barbudo com o lenço farroupilha no pescoço, rosto negro de sujeira e comas roupas chamuscadas surgia. Havia luta entre o homem de barba e o louco. Natanael chora-

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va, queria sua mãe, queria a menina, queria fugir do louco. O homem de barba o segurava ecorria. Neste ponto o Natanael adulto se debatia deitado, mas no sonho a criança era impo-tente para fazer qualquer coisa.

Natanael podia ver que desciam uma montanha, que jorrava fogo. Homens e mulherescorriam, e coisas assustadoras apareciam e jogavam-se contra as pessoas.

A lembrança da fuga, do fogo e da perda da mãe sempre o acordava. Mas não desta vez,o sono era mais profundo e continuou no sonho.

Viu soldados estrangeiros enquanto o homem o carregava para um bote. Com umamão, o homem atirava e, quando acabou a munição, passou a manejar uma espada, cortando,brandindo e espetando. Chegaram ao bote e Natanael foi colocado no fundo; depois apenas orosto do barbudo que falava algo, o barulho da água, dos remos, mas o estrondo da montanhaera forte demais para que ouvisse...

E então o homem retirou das roupas uma corrente, na qual pendia um pequeno e brilhosocubo dourado e vermelho. Que brilhava intensamente. Intensamente.

“Tudo é frio e gelado. O gume dum punhalNão tem a lividez sinistra da montanhaQuando a noite a inunda dum manto sem igualDe neve branca e fria onde o luar se banha.” Florbela Espanca

Final do verão, 1886, horas depoisMesmo local

A tarde passou, a noite caiu e se adiantou, mas o corpo permaneceu inerte. Já eramais que tempo de começar a transformação, pois à beira da montanha, no coração doterritório amaldiçoado, qualquer corpo se transformava sem precisar sequer ter sido mor-dido por uma criatura como nos demais locais. Ali bastava ter morrido para se tornarmais um da legião dos inimagináveis a vagar pela criação, em busca de saciar a fomesem fim, como acontecera até mesmo aos mortos enterrados nos cemitérios da regiãoquando a praga apareceu.

Apesar disso, o corpo não dava sinal algum de iniciar a caminhada interminável. Se-guia juntando orvalho e de quando em quando tremendo de leve com a brisa noturna.

Criaturas indizíveis caminhavam pelas cercanias tropegamente, desinteressadas, masnão se aproximavam. Pareciam na verdade evitar o homem caído.

Finalmente ele abriu os olhos e gemeu. Mas o gemido foi de dor, diferente do terrívelsom grutal dos não criados por Deus. E o olhar não era fixo e alucinado, mas um olhar dequem se pergunta “onde estou?”. Sentou-se tateando o próprio corpo, como se buscandoferimentos.

Na verdade a mão do homem subiu para o pescoço, para o lenço vermelho, deonde puxou uma corrente de onde pendia um pequeno cubo avermelhado de cobre e

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com arabescos dourados. Sacudiu a cabeça para se livrar do sonho... O que significa-ria? No sonho, pela primeira vez, aparecera o cordão e o amuleto que possuía desdebebê, no orfanato. Só que seu cubo jamais brilhara. Impressão sua ou agora apresenta-va um fraco brilho?

“Maldito padre”, pensou, deixando para lá o sonho e lembrando-se finalmente de quemera e de por que jazia naquele lugar. “Quem pode confiar em religiosos, quando se sabe quenão existem deuses, quando o mundo se enche de abomináveis?”

Levantou-se trabalhosamente, alisando o casaco de lã grossa azul com botões doura-dos fornecido pelas forças armadas. Devolveu a corrente e o cubo para baixo do lenço. Deonde estava, ainda podia ver, na luz fraca do amanhecer, a trilha deixada pelo carroção. Emdireção à estrada viu diversos sacos e objetos esparramados, que tinham caído do veículoem sua louca carreira. Deu as costas para a montanha e seguiu mancando para a estrada,parando em cada objeto em busca de comida, água e armas. Nenhuma criatura viva pareciase fazer presente, exceto por um ou outro pássaro que passava voando muito alto, no limitede sua visão.

As terras ao redor da montanha pertenciam exclusivamente aos indizíveis. O capitãorecolheu o que conseguiu, alguma água, rações e uma barra metálica desprendida docarroção, enrolando tudo em uma lona. Ao longe conseguia distinguir um grupo de árvoresfrutíferas de diversos tipos, plantadas em espaçamento regular. Era evidente que se tratavade um antigo pomar e, geralmente, o pomar é plantado junto a uma casa. Abrigo era apróxima necessidade.

Depois de uma hora e pouco de caminhada avistou o local. A casa era apenas uma ruínasem telhado, mas tinha quatro paredes grossas de pedra e argamassa, com aberturas quepoderiam ser facilmente bloqueadas por galhos e madeira. Não havia sinal de criaturas nolocal, apesar da fogueira acesa dentro da casa.

O capitão aproximou-se sem medo de inomináveis, mas com cuidado e com a barra deferro preparada.

A fogueira acesa era atiçada por um homem gordo, vestido com roupas simples, barbavasta e cabelo no mais impossível desalinho.

O militar abaixou a barra de metal e se aproximou. O homem na fogueira levantouos olhos e alisou a barba com a mão. Jogou o graveto com que atiçava no fogo e maneoua cabeça.

— Sente-se, capitão — disse apontando um espaço limpo que parecia estar ali esperan-do por ele. — Lembra-se de quando nos encontramos pela primeira vez?

O militar sentou-se e deu um largo suspiro. Abriu a lona que carregava e retirou umagarrafa de água, tomando um gole. Olhou para o homem da fogueira e respondeu:

— Sim, você me contou a lenda do... Dele. Foi no dirigível-catamarã, parece quemuitos anos atrás, apesar de terem se passado apenas semanas. E lá também estava opadre. Enfim — disse tomando mais um gole —, parece que tudo nos leva à montanha,não é?

— Não tenho dúvida disso. Afinal, foi lá que nos conhecemos. Talvez seja lá que va-mos morrer.

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O Senhor é meu refúgio e minha espada.Ele me livra da sede dos caçadores,da coisa funesta que não foi enterradae com o sagrado chumbo de suas armas me protege.Não temo mais o terror da besta de fome herege.Caminharei sobre dente e osso, carne e tendão,porém nada me passará, pois encontrei salvação.Eu Te invoquei e Tu me ouviste!Amém.

Início da primavera, alguns meses antesOutro local

Em uma manhã de quinta-feira em que o clima mostrava a sinistra tendência de prolon-gamento do inverno e os ataques das criaturas pareciam finalmente menos frequentes, ocapitão Natanael da Cavalaria da República Piratini resolvera deixar a cidade-murada deMontenegro tomando o dirigível-catamarã Rio Verde.

Era um homem relativamente jovem e bastante forte, acostumado com a vida militar eo trabalho brutal. Era hábil na espada e lutava como um farroupilha, o que significa vencersempre que estiver em grande desvantagem, sem saber como, sem se importar.

Passou vagarosamente pelas portas metálicas da muralha que isolava o porto do restan-te da cidade, no momento em que as duas folhas de negro metal reforçado abriram, soltandovapor e deixando avançar a pequena multidão que se dirigia às aeronaves.

Duas abominações com as cabeças estouradas eram recolhidas pelos guardas que ti-nham feito a varredura do local, utilizando velhos lampiões-globo de energia raadica queemitiam uma luz azulada. Apesar da presença dos guardas, o homem utilizava o equipamentomilitar completo, o grosso casacão de lã azul marinho fechado firmemente nos pulsos, golacom couro negro, lenço vermelho farroupilha e botões dourados, luvas resistentes e suasarmas. Na cabeça levava um chapéu de feltro com um par de óculos de piloto presos à grandeaba redonda, emoldurando uma cabeleira loura e pesada que crescia até a altura do queixo,que como o resto do rosto era recoberto por uma feroz e hirsuta barba avermelhada.

Após ultrapassar os portões esperou que a multidão se dissipasse ao redor, cada qualcorrendo para seus afazeres à pé ou em pequenas motonetas de metal que flutuavam a trêscentímetros do calçamento sobre bolsas de ar, largando descargas raadicas pelo caminho.

Viu o dirigível-catamarã logo à frente e para lá se dirigiu, com a mão próxima ao punhode seu sabre espanhol Ibarzabal, capaz de separar de um só golpe a cabeça do corpo dequalquer inimaginável que cruzasse o caminho. A limpeza da área tinha sido bem-feita e ooficial avançou sem problemas, carregando às costas o antigo mosquete britânico BrownBess com calibre ponto setenta e cinco, ignição de pederneira e em coldres no peito doisrecém-lançados revólveres Colt modelo Paterson, de seis tiros, que utilizavam um novo sis-tema chamado “percussão”.

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A aeronave era do tipo padrão, utilizada no transporte de carga e de passageiros. Doisdirigíveis bem estreitos e com mais de duzentos metros de comprimento, ligados entre si poruma estrutura metálica semirrígida, onde eram construídas as cabines e os espaços paracarga. Sua principal estrutura, o “convés”, era feita de uma liga flexível estendida entredois delgados e compridos dirigíveis, dispostos em paralelo. Os dirigíveis podiam aproxi-mar-se lateralmente e então o convés se dobraria suavemente para baixo facilitando o em-barque e o desembarque, ou podiam ser acelerados individualmente, o que facilitava asmudanças de direção. Era uma aeronave feita para flutuar a poucos metros da água, seguin-do o curso dos rios, e não para voar livremente. O grande diferencial era a confiabilidade ea fantástica capacidade de carga pelo efeito “ar-solo”. Outra vantagem é que, além depoder utilizar-se da grande hélice para empurrar o ar, esta também poderia ser mergulhadano rio fazendo a aeronave ganhar velocidade muito superior.

Um carregador que acompanhava o militar deixou sua bagagem junto ao dirigível,onde um autômato pneumático de modelo antigo trabalhosamente erguia caixotes, maletõese engradados e os colocava sobre os ombros metálicos, soltando faíscas de energia e vaporpelos tubos de cobre enquanto ascendia bufando e apitando pela rampa de carga.

O militar subiu a bordo e parou na saída da rampa de passageiros junto à amurada,observando sua bagagem ser embarcada. A máquina fazia um enorme barulho e, provavel-mente, por isso ele não ouviu os passos de alguém se aproximando. Somente um arrepio oalertou da presença e, virando-se, viu um sorridente homem magro e alto, de barba rente emuito negra, chapéu e uma espalhafatosa roupa de veludo verde e debruada em ouro.

— Lindo dia, não é, oficial? Me chamo Dordolio, nobre da casa Ouro y Coralina, emviagem diplomática desde o Reino de Piulla, antiga ilha da extinta República Juliana —disse o homem, animado.

Natanael fez uma saudação quase imperceptível para o gringo e voltou-se rapidamen-te para o porto, onde o autômato descia a rampa para buscar nova carga. Nenhum farroupilhagostava de ver os gringos ocupantes, muito menos de ouvir falar na “extinta RepúblicaJuliana”. Mas o cúmulo era chegar-se a alguém sem ser anunciado ou fora da vista. Isto eraconsiderado ato extremamente imprudente. Só o fato do militar estar tranquilo quanto àausência de criaturas inomináveis na região tinha evitado que puxasse Ibarzabal de suabainha.

De esguelha, Natanael notou que o estrangeiro continuava no mesmo local sorrindo eacompanhando o trabalho do autômato, sem dar-se conta das grosserias cometidas. Naque-le momento uma caixa pesada demais fez com que o braço inteiro da velha máquina soltassedo ombro e, sem perceber a avaria, ela seguia apitando e tentando levantar o peso, indo evoltando de forma confusa.

— Rá, rá, rá! — riu-se Dordolio, apontando para o autômato. — Que boneco maisidiota e ultrapassado!

Sem pensar Natanael sacou os dois revólveres Colt que levava em coldres junto aopeito e os apontou para o estrangeiro, que recuou assustado com as mãos voltadas para asarmas.

— Desculpe-me, desculpe-me! — gritou, suando frio. — Esqueci-me totalmente dotabu em relação aos bone.... a essa palavra!

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Natanael retirou lentamente o dedo do gatilho e notou que tinha puxado o cão dasarmas por puro reflexo. Abanou a cabeça e afagou o amuleto da sorte que levava por debai-xo do lenço. Já havia recolocado as armas no coldre quando diversos aeronautas aproxima-ram-se correndo.

— O que está acontecendo aqui? — perguntou o proprietário do dirigível para Dordolio.

— Foi inteiramente culpa minha, senhor — asseverou o homem. — Um mal-entendido.Peço desculpas a todos pela minha ignorância de estrangeiro.

Ao olhar inquisitivo do homem, Natanael respondeu meneando afirmativamente a ca-beça. Por sua vez o proprietário deu de ombros e se voltou aos abundantes afazeres depreparação para a decolagem.

A primeira parte da viagem transcorreu tranquilamente, as horas se sucedendo no sua-ve e hipnótico balançar da aeronave enquanto passava por uma bacia de rios e lagos interli-gados chamada simplesmente de “Guaíba”. A região fora um dia habitada por indígenas emesmo depois de seu desaparecimento permaneceu fracamente povoada, até antes da praga.

Em determinados momentos se podia avistar um ou outro dos abomináveis parados àmargem, observando tristemente os vivos que passavam fora de seu alcance. Alguns chega-vam a afundar na água até o peito, antes de estancarem gemendo baixo.

O dirigível fez breves paradas em portos de cidades fortificadas e entrepostos comerci-ais, momento em que autômatos recauchutados subiam e baixavam mercadorias, com a indi-ferença de um ou outro grupo de criaturas que espreitavam os vivos a bordo.

Em uma dessas paradas, um grupo de cavalheiros na popa, juntamente com o proprie-tário e o piloto da aeronave, tratava de dar fim aos amaldiçoados com suas armas, comemo-rando cada acerto com uma salva de vivas e muitos cumprimentos ao atirador bem-sucedido.

O proprietário chamava-se Banegran, um nome bastante curioso com um certo ar depirata. Apesar disto sua atarracada figura e respeitável barriga pouco lembrava o físico deum selvagem aventureiro dos mares, estando muito mais de acordo com a pacata atividadeaérea mercantil.

Com ele revezava-se o mesmo cavalheiro em roupas douradas e verdes, Dordolio, queatirava e se vangloriava. Em paralelo havia um velho grande e gordo, de barba vasta e brancae chapéu esquisito, cujo nome era Athanazio mas que preferia ser chamado de “Traz”. Erauma cabeça mais baixo que Natanael, mas parecia de constituição sólida. Usava roupas rús-ticas, de confecção quase certamente doméstica, bem adequadas à viagem. Comparadas àsroupas de Dordolio o sujeito poderia ser tomado por um mendigo.

Natanael percebeu que, além de Dordolio, Traz também o observava, sinal de que foraassunto entre o grupo.

O capitão notou que o velho somente atirava quando os demais atiradores acertavamum dos infortunados, mas não conseguiam destrui-lo; o infeliz deve ser alvejado em cheio nacabeça. E a sua pontaria parecia prodigiosa. Misericórdia para com os amaldiçoados era umconceito novo, mas que fez Natanael respeitá-lo mais do que pela mira.

— Quer juntar-se a nós para uma cordial disputa, oficial? Melhor ainda se temperadacom uma modesta aposta! — Dordolio convidou com um torto sorriso na cara.

— Prefiro ficar apreciando a técnica dos senhores — respondeu.

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Neste momento, aproximou-se da coberta onde todos se encontravam uma jovem bel-dade ruiva, dirigindo-se ao proprietário da aeronave. Era uma moça de pele muito clara ecabelos lisos e compridos, olhos escuros inquisitivos e delgada de corpo. Parecia estar nacasa dos vinte anos.

— Senhores, apresento-lhe minha filha — disse o homem —, Petúnia.

A moça sorriu e fez uma graciosa mesura, para depois se postar ao lado do pai.Dordolio ficou claramente agitado com a presença da beleza e voltou novamente suaatenção para Natanael.

— Capitão! Nós, e certamente falo pelos demais, gostaríamos de aprender suas técni-cas militares. Se acaso não deseja desfazer-se de algum chumbo nos infelizes, que tal umexercício de esgrima? — E dizendo isso sacou vagarosamente a enfeitada espada que traziaembainhada ao cinturão.

A ruiva suspirou emocionada diante da expectativa de um combate, que quebraria amonotonia da vagarosa viagem e serviria para afastar o pensamento das abominaçõessemipútridas que espreitavam próximo.

A espada de Dordolio era tão incomum quanto o próprio. Sua lâmina era decorada coma figura de um jesus crucificado, e a empunhadura era a trave transversal onde se prendiamos braços do ser mitológico da igreja católica. Era também muito mais comprida do que seriade se esperar, e flexível de forma demasiada. Estas características, no entanto, não traziaminfelicidade ao seu proprietário, que sem esperar a aceitação do desafio já se desfazia docasaco e ensaiava golpes, pinchaços e estocadas no ar pelo convés. Acompanhava o gestualde mãos batendo ruidosamente os pés na madeira, enquanto marcava o ritmo com exclama-ções do tipo “vamos!” e “isso!”.

Natanael observava espantado a performance de Dordolio, e antes que pudesse recusaro absurdo desafio sentiu um toque em seu cotovelo.

— Aceite o desafio. Eu mesmo colocarei mil pilas na sua vitória contra o presunçosoautodenominado nobre — disse-lhe Traz.

Enquanto o capitão ouvia Traz, a jovem não deixava de paparicar Dordolio. Assimincentivado retirou uma bolsa de veludo da cintura e jogou sobre a coberta.

— Ai está, capitão! São cinco mil pilas apostados em primeiro sangue, desarme ouimobilização do oponente. Para ser justo, aviso-lhe que sou mestre em esgrima pela acade-mia de Castellana de Colina — disse.

— Eu mesmo possuo algum treinamento — respondeu Natanael, desembainhando ossetenta e nove centímetros da maravilhosa lâmina de Ibarzabal e apresentando uma saudaçãoritual de esgrima.

Imediatamente, Dordolio fez uma rápida saudação e avançou em seu estilo desengon-çado, dando golpes vigorosos à esquerda e à direita, fazendo gestos teatrais com o outrobraço e soltando animados brados.

Apesar da potência dos golpes, o militar os aparou sem maior dificuldade, recuandoalguns passos e deixando Dordolio propor o jogo. Boa parte do trabalho na aeronave foiparada, e muitos curiosos formavam um vasto círculo ao redor da contenda, incentivando,gritando e aplaudindo.

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— Ah! Agora está ficando encurralado junto à amurada — gritou o gringo para a moça,enquanto aumentava a quantidade de golpes.

Dordolio avançava confiante, ruidoso e animado. Finalmente quando Natanael se en-contrava no final do convés quase de costas para a amurada, Dordolio tentou um rápidofloreio para desarmá-lo. A moça gritou entusiasticamente. No último momento, Natanaelbalançou o corpo para um lado e jogou-se para outro, agilmente escapando de seu ineficazoponente e, de passagem, atingindo-o com a lâmina de Ibarzabal na fivela do cinto de couroroxo que prendia-lhe as calças.

Assim que atingido, Dordolio voltou-se desconcertado. Com as posições dos esgrimis-tas agora invertidas, o desafiante parecia indeciso entre segurar as calças ou a espada, aimagem da descompostura.

— Concedo-lhe armistício, enquanto recoloca as calças, Dordolio. Não seria cortêsque continuássemos o exercício colocando em risco o pudor da senhorita — falou o Capitão,virando Ibarzabal de lado, em sinal de trégua.

O público foi à loucura ao redor. A jovem ria discretamente, mãos à boca, para fúria dooponente que ficou vermelho como um pimentão. Para surpresa de Natanael, o homem recu-perou-se, saudando-o com seu desengonçado sabre.

— Excelente manobra, Capitão. E agradeço-lhe pelo exercício. Creio que faz jusao valor da bolsa de aposta. Retiro-me agora, já que necessitarei de novas vestes parasubstituir estas.

— Muito bem dito, senhor Dordolio! Mostra que é um verdadeiro cavalheiro — come-morou Benagram, que tinha ficado com o encargo de ser guardião das apostas e puxou umasalva de palmas encerrando o assunto e mandando todos de volta ao trabalho.

Ao cair da noite o proprietário convidou todos passageiros da primeira classe parajantar. A grande mesa da sala comum incluía, além dos cavalheiros Traz e Dordolio, quatrofreiras-silenciosas que faziam uma peregrinação qualquer, liberadas do voto para a viagem.O anfitrião revelou-se um excelente contador de causos, distribuindo um ótimo vinho verdede Açores enquanto servia uma colação composta de enguias ao vinagrete, carne de caça fritana gordura de pato e pudim de leite de cabra. Sua esposa era bonita e espirituosa, muitoparecida com a filha. Durante o jantar a bela Petúnia brindava Natanael com intensos olha-res. Dordolio parecia outra pessoa, mostrando-se ensimesmado e distante.

Ao final, foi servido um vinho colheita tardia, doce e licoroso. Todos sentiam-se soltos,resultado evidentemente da bebida alcoólica e da intimidade forçada da aeronave. A moça,como assaz acontece com a juventude, ultrapassara um pouco o limite e se mostrava alegreem demasia. Para surpresa geral, a madre-superiora falou:

— Enquanto estamos aqui em manifestações pouco cristãs de felicidade — disse, olhandoseveramente para a jovem —, há desafortunados que padecem de uma maldição terrível aífora. Se me perdoam, voltaremos aos nossos aposentos.

Enquanto as freiras levantavam-se e partiam, a alegria também ia se esfumaçando damesa pela lembrança das criaturas à espreita. Dordolio subitamente também se levantou esaiu silenciosamente.

A noite seguia perfumada e a aeronave deslizava tranquilamente bem no meio do rio.Natanael encontrara uma cadeira e desfrutava a companhia da linda jovem, cujos doces lábi-

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os ronronavam suave e profundamente a cada beijo, junto da amurada, quando sua atençãofoi atraída por alguém que caminhava ruidosamente na direção do casal. Era Traz.

— Venha, tenho que mostrar-lhe algo urgentemente. Siga-me.

Natanael despediu-se da desencantada moça e relutantemente acompanhou o outrohomem. Traz caminhava sigilosamente, aproximando-se das cabines da popa onde se encon-travam as freiras. O militar seguia-o curioso e, cada vez que tentava questionar o motivo dosegredo, era calado com um gesto de silêncio. Chegaram a uma cabine isolada, construídarusticamente em madeira fora do padrão das demais, como se feita somente para acomodarpara aquela viagem alguém que desejava privacidade.

— Veja, capitão. Olhe pela fresta da janela e diga-me o que vê.

Natanael colocou um dos olhos na fresta e, na luz bruxuleante da cabine, pode veruma dezena de crianças pequenas, entre cinco e dez anos. Meninos e meninas, sentados nochão, em uma espécie de transe. À frente das crianças, as freiras ajoelhadas rezavam coma cabeça voltada para um homem alto em uma batina, um padre, com uma larga barbabranca e olhos cansados. Olhando mais atentamente, quando uma das mulheres se movi-mentou deixando a luz chegar mais longe, Natanael viu mais uma pessoa ajoelhada aos pésdo padre: Dordolio.

Natanael recuou espantado para questionar Traz sobre o significado daquilo tudo, maso homem tinha sumido. O militar voltou a aproximar o olho da fresta. As luzes tinham se idoe não se via ou ouvia nada, exceto a água revolvendo-se no rio lá embaixo, a madeira estalan-do e o som de vento e da hélice. Sequer as demais máquinas a bordo pareciam estar funcio-nando, o que provavelmente era o caso.

Após alguns segundos uma luz focalizada deixou um lado da cabine e projetou umclarão na parede oposta. No caminho do feixe, na penumbra, todos se encontravam sentadosao chão. Um lampião de energia raadica brilhava dentro de uma caixa entre dois grandesrolos. De um rolo saía uma escura fita que passava por trás de uma lente, avançando até osegundo rolo. A luz então projetava na parede o que quer que estivesse na fita. Não apenasNatanael ficou abismado pela aparelhagem tão fantástica, mas também porque neste momen-to a imagem mostrava seu enfrentamento com Dordolio! Podia claramente ver sua figuraesgrimindo o sabre de frente enquanto Dordolio avançava saltitante de costas. O padre e asmulheres discutiam apontando a imagem. Apesar de Natanael não poder escutar o que fala-vam, já que segredavam baixinho, entendia pelos gestos que comentavam sobre sua pessoa.Em determinado momento a imagem foi parada e todos examinaram suas feições, vestes earmas. Era perturbador.

Quando as imagens recomeçaram a avançar o padre soltou um grito, e então novamen-te a luzimagem ráadica (como Natanael passou a chamar mentalmente) foi parada. O clarãomostrava o rosto de Traz. O padre entrou em grande agitação, apontando aqui e acolá.

O militar achou que era o melhor momento para se afastar, sem fazer barulho e maisuma vez recuou de costas. Um barulho às suas costas, um vulto e depois apenas a pancada nalateral da cabeça, a queda para frente e a batida com o rosto no chão.

Teve imediata certeza de que estava no depósito do dirigível-catamarã, já que ao longese via dois autômatos de carga desativados. “Segunda vez em apenas uma viagem que sousurpreendido, devo estar enferrujado”, pensou o capitão quando voltou à si.

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O lugar era desagradável, sujo e escuro, úmido e cheio de ratos. Os grilhões que pren-diam seus punhos à curta corrente passada em torno da enorme argola chumbada em umaviga grossa de madeira também não ajudavam.

O militar sentia a cabeça latejar e o nariz machucado coçar. Tinha sido despojado detudo, exceto das roupas. Tomaram até o seu amuleto da sorte. Ao seu lado Traz gemia,semidesacordado na escuridão, preso com grilhões à mesma argola. Não era possível verclaramente, mas a surra parecia ter sido feia.

A carga estava espalhada por todo o lugar, em grandes prateleiras suspensas instaladasnas paredes laterais da aeronave. Natanael consegui levantar-se parcialmente, esticando aspernas e abaixando o tronco, já que a corrente não deixava que fosse adiante. Era uma posi-ção desconfortável, cruel e que sequer dava chance de forçar com as pernas a argola para verse soltava.

O dirigível com certeza estava estacionado. O único movimento era leve e lateral, comode suaves ondulações no rio, seguramente causadas por rajadas de vento.

— Deixe-me contar a lenda — disse Traz de repente. — Não acredito que você seja umdos supersticiosos que não podem ouvi-la sem considerar ofensa.

Natanael não sabia quanto tempo passara em seus devaneios, nem percebera o homemacordar e se sentar. Enrugou a testa à menção da lenda.

— Não vejo qualquer relevância ou ligação entre a lenda e o que você me mostrou nacabine das freiras — respondeu. — Prefiro que me diga o que está acontecendo aqui. Alémdisso, como qualquer pessoa em Piratini, eu conheço a porcaria da lenda.

— Deixe-me contar a lenda na forma original, como a ouvi há trinta anos, e talvez vejaa relevância e me permita explicar o que está acontecendo, na minha opinião.

“A lenda contava que o velho era, sem dúvida, muito velho. E muito, muito magrotambém. Que parecia quase tão seco e desconjuntado quanto os bonecos de madeira e bronzeque, a cada mês, esculpia, fundia e entregava discretamente atrás de seu chalé para a feiticei-ra do mar de Torres.

“Na madrugada do primeiro dia que se seguia à noite de lua nova, a feia feiticeiradescia furtivamente da alta montanha da neblina que ficava entre a vila e o mar, em umcarroção puxado por doze burrinhos novos. Trazia a raríssima madeira-sábia em blocos desessenta centímetros de altura e levava os bonecos feitos pelo velho com a carga anterior.Também entregava um saco de estopa com conjuntos de roupinhas infantis, vestidinhos,calçolas, meias, bermudinhas, camisetas, sapatinhos e casquetes. Para cada conjunto de rou-pa no saco, o velho deveria construir um boneco, que seria vestido e entregue na próxima luanova, junto com toda a sobra de madeira.

“‘Silêncio e segredo’, sussurrava a feiticeira, ‘segredo e silêncio.’ E tilintavam moedasde ouro que logo trocavam de mãos.

“O velho trabalhava há anos e anos, sempre tentando não pensar na aparência de re-cém-usadas das roupinhas, nas crianças que desapareciam nos povoados próximos e nem nasluzes coloridas que se viam na montanha. Nas noites de céu limpo e de vento favorável, erapossível ouvir a música de órgão, os gritinhos animados e as risadas infantis que iam sumin-do uma a uma, até o amanhecer silencioso como um cemitério.

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“Ao longo dos anos o velho conseguiu burlar a vigilância da feiticeira até juntar sufici-ente madeira-sábia que economizara aqui e ali para fazer um boneco só seu. Vestiu-o comroupas da sua infância, colocando-o no fundo falso do armário do ateliê junto ao seu ouro.‘Minha maior obra, meu sonho terminado’, pensou.

“Naquela noite a feiticeira apareceu, sem que fosse a madrugada da lua nova. Entrou nacasa, empurrou, bateu, gritou, revistou e derrubou canos, fios e equipamentos. O velho aco-corado em um canto, sem questionar, sabia o que ela procurava e sentia-se culpado.

“‘Alma de mentiroso, alma de traidor’, ela disse finalmente, sem preocupar-se em per-guntar onde ele tinha escondido o boneco. Aproximou-se do velho que se encolhia cada vezmais no canto, tremendo.

“A feiticeira abaixou-se, esvoaçando suas vestes negras. Com uma brilhosa luva deescamas metálicas, apanhou um cubo pingente, tocando o velho e puxando-lhe o nariz.

“‘Ser falso, esquivo e inconfiável, receba a chaga da mentira”, disse ela. Enquanto ohomem torcia-se em agonia segurando o rosto e o transformado nariz gigantesco e entumescido,a feiticeira partiu.

“Próximo da meia-noite, uma voz: “‘Papai”, ouviu o velho, ‘não há mais perigo, papai.Ela se foi’.

O homem correu para o depósito secreto. O boneco parecia igual, imóvel penduradoem cordões no gancho do compartimento falso do armário. Foi quando viu os olhos: aquelesolhos de madeira, quase femininos, esculpidos com a firme mão de um experiente artesão.Eram pontos escuros, os pontos mais negros do universo, mas estavam vivos.

“‘Sim, papai, sou eu, seu filho, sua obra’, o boneco falava. ‘Meu filho’, disse ele, ‘meufilho.’ E caiu de joelhos escondendo o pranto com as mãos.

“‘Por que choras, papai?’

“‘Porque eu menti e a feiticeira me puniu com isto!’ Virou o rosto e mostrou a máculaem sua face. ‘Não, papai’, disse o boneco. ‘A feiticeira te puniu me dando uma vida abomi-nável e muito, muito apetite por carne.’

“E então a montanha explodiu, e outras montanhas surgiram por todo o mundo, sufo-cando as nações, levando a maldição a todos os confins e retirando do homem o comando deseu próprio destino.”

“ Se o demônio atentar as almas. Diz-se:‘Arreda, arreda Barrabás.Os campos de Judas faz.O teu dono é Satanás.Essa alma não é suaNem conta com ela farás.Esse corpo é de Deus,O seu caminho está feito.Vai em direção aos céus,deixa-o morrer em paz.’”

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— Essa lenda, meu jovem, é bastante verdadeira — disse Traz ao final da narração.

No escuro os ratos corriam e guinchavam, enquanto os dois homens procuravam amelhor posição para aliviar suas dores.

Natanael não mostrou qualquer interesse em debater o assunto, estava exausto. Já tinhavisto todo tipo de louco neste mundo insano. Gente falando todas as línguas, vindas de na-ções distantes destruídas pelas forças da terra quando derramavam seu sangue incandescentesobre os vivos, buscando refúgio arriscando-se pelos caminhos deixados a própria sorte di-ante dos inimagináveis. “Como manter-se são?”, pensou.

— É claro — continuou o homem — que o formato da história foi enfeitado, distorcidoe simplificado pela tradição popular. Mas no âmago, ela é verdadeira.

— E qual seria o âmago, meu velho? — perguntou o militar. Pensou que talvez fossemelhor conversar para passar o tempo.

Traz ajeitou-se e tomou um pouco de ar. Fungou e apontou o nariz para Natanael, quena escuridão não percebeu.

— Tive oportunidade de assistir quando você quase matou Dordolio.

— Não cheguei nem perto de matá-lo — respondeu o capitão —, apenas cortei-lhe o cinto.

— Me refiro a quando puxou suas armas à menção da palavra “boneco”.

Natanael novamente sentiu aquela palavra travar em sua garganta, mas lembrou-se doocorrido com Dordolio e percebeu o absurdo da situação.

— E? O que tem isso?

— Observei que você, depois do evento, puxou do pescoço uma corrente com umpequeno cubo na ponta. Um cubo de cobre e ouro, que você possui desde bebê.

Natanael sentiu a barba e os pelos da nuca se eriçarem e de um salto tentou se endirei-tar, esquecendo-se de que estava preso. A dor foi terrível.

— Como sabe que o possuo desde bebê? Quem é você afinal? O que quer de mim?

— Eu estava lá quando você recebeu, porque fui eu quem te deu — disse Traz — Foina montanha enevoada, no dia em que o mundo se desfez. Você era quase um bebê e eu osalvei, e o amuleto pertencia ao padre louco. Na lenda, ele virou em parte a feiticeira, emparte o velho.

A noite passara, o dia também. O dirigível seguia parado para surpresa dos dois cati-vos. Ninguém apareceu.

Traz e Natanael passaram todo o tempo em seus próprios pensamentos, pensando nashistórias contadas, mas acima disso, puxando cada qual de seu lado a argola. Era difícil,trabalhoso e exaustivo. As mãos doíam, os pulsos sangravam. Mas a peça de metal já semostrava muito mais solta do que no início.

O capitão pensava sobre o fato dele, Dordolio, o padre e Traz se encontrarem numamesma viagem, no mesmo dirigível, ligados por estes fios de teia de aranha do destino. Não

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tinha dúvida de que o velho soldado, apesar de querer aparentar sinceridade, tinha o hábitode esconder informações. No momento conseguia supor que o padre, depois da tríplice inva-são, foi de alguma forma cooptado pelos castelhanos que fugiram da morte e tomaram aRepública Juliana, fundando Piulla. Isso explicava a ligação entre Dordolio e o padre. Mas oque dizer dele, e que planos tinha Traz? Tratava-se de algo que, de momento, deixaria paramais tarde.

— Quer dizer que você foi soldado durante a tríplice invasão, antes do mundo mudar?— perguntou Natanael.

— Sim, eu era ordenança. Um jovem, como você é agora.

— Por que motivo me salvou, se eu era apenas mais uma criança órfã que seria utiliza-da pelo padre?

— A guerra foi a mais suja que já existiu. Me envergonho das crianças. Achei que,salvando você, eu estaria me redimindo em parte. Tive medo de destruir o amuleto, ou detentar. Poderia, sabe-se lá, destruir o mundo ou um país. Resolvi deixar com você, porque opadre procuraria por mim apenas, não se lembraria da criança.

— Por um momento, teria matado você... se estivesse livre. Eu tenho este sonho... Masdeixe para lá.

Finalmente o som de metal se desprendendo da madeira. Estavam livres, ao menos,livres da viga. Continuavam acorrentados em grilhões, e juntos teriam que carregar a pesa-da argola.

Cautelosamente seguiram até o final do grande depósito e, sem alternativa, arromba-ram a porta. Prepararam-se para uma luta desesperada que não veio. O dirigível continuavasilencioso. Subiram outra escada e finalmente saíram no convés.

— Olhe! Criaturas!

Dois inomináveis, braços estendidos e dentes arreganhados, mancavam em sua dire-ção. Tinham corpos muito pútridos, cobertos por fungos e musgo, como se tivessem jámuita idade.

Os dois homens se olharam e, esticando as correntes com a argola no meio, arremete-ram contra as criaturas. O choque do metal pesado foi demais para os velhos inomináveis,que praticamente se desmancharam no chão.

O capitão tentou correr para longe dos corpos, mas Traz segurou-o, olhando para ascriaturas destruídas.

— Estes são dos meus. Veja os restos dos uniformes. Foram soldados, transformadosna noite em que o mundo parou por terem sido atacados pelas criaturas do padre, trinta anosatrás. Deixe-me prestar-lhes uns segundos de homenagens — pediu o antigo soldado. Depoisde recobrar o domínio sobre as emoções, o homem lembrou que tinha visto ferramentas nasala ao lado do paiol.

Assim que se viram livres dos grilhões, passaram a explorar o dirigível. Primeiramenteperceberam que não se encontrava simplesmente parado, mas sim encostado na margemsobre uma tosca construção de madeira, com as rampas baixadas. Por ali deveriam ter subido

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os abomináveis. A aeronave estava agora com apenas um dirigível, o outro tinha sumido. Opeso do convés era suportado, em parte, pela estrutura de madeira.

Ninguém a bordo. Deveriam estar em algum ponto fora da rota. Não mais no braçonavegável principal, mas sim em algum canal. Outro ponto é que a montanha enevoada,território absolutamente proibido, estava à vista.

Os dois homens seguiram a pé, deixando o dirigível inútil. Encontraram provisõese dois sabres antigos, mas nenhuma arma de fogo. Enquanto caminhavam por terra, umterreno lamacento próximo do canal, encontraram a mulher do dono do barco, ou me-lhor, o que sobrara dela depois de devorada por inomináveis. Na falta de ferramentaspara uma sepultura decente, apenas dedicaram alguns momentos e lamentaram o tristefim da simpática mulher.

Enquanto faziam esta singela homenagem, Natanael sentiu um calafrio na espinha evoltou-se no exato momento em que corriam para ele outras criaturas.

Sem pestanejar sacou o antigo sabre que descobrira no navio e girando-o no ardecepou a criatura em um formidável corte. Enquanto a cabeça voava pelo ar teve tempode reconhecê-la: a encantadora jovem ruiva, filha do proprietário da aeronave. A outracriatura não era outra que o finado Banegran, que avançou para Traz e recebeu igualtratamento.

Natanael viu o corpo da linda Petúnia sem cabeça no chão. Lembrou-se da doçu-ra de seus beijos, do aroma da sua pele, do riso jovem e sofreu com o pesar pelasaspirações que imaginou que ela possuía. Sentiu uma onda de ódio como jamais antesna vida. O padre, se era verdade a história contada por Traz, era responsável pelamorte de Petúnia e pela tragédia que se abatera sobre todo o mundo. Ele iria pagar.Mesmo se já estivesse transformado, Natanael prometeu que encontraria uma forma deaumentar-lhe a desgraça.

— Vamos sair daqui antes que toda a tripulação apareça — disse Traz — se bem quenão me importaria de cortar a cabeça de freiras e padres...

O sol seguia alto quando atingiram terreno seco, um pampa com uma cheirosarelva nativa. Ao longe podiam notar pequenos sinais antigos de civilização. Um terrenocom árvores idênticas plantadas regularmente, uma clareira, o leito de uma velha estradaem ruínas. Seguiram pelo campo, tomando cuidado para não se colocarem próximos dospequenos grupos de inomináveis que avistavam. Sem saberem o porquê, seguiam emdireção à montanha.

Uma noite, depois de dias de caminhada, Traz desapareceu. Natanael acordou e o ho-mem tinha ido, levando consigo apenas os próprios objetos pessoais. Três dias depois, omilitar encontrou o padre.

Havia fumaça no horizonte e automaticamente Natanael foi na direção da fonte. Avis-tou um enorme carroção com uma chaminé fumegante e, ao que parecia, corpos. Preso poruma corda ao carroção o enorme dirigível desaparecido, flutuando agora com um cesto amar-rado em sua parte inferior, contendo as crianças que choravam e se debatiam.

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O padre jazia desacordado. Ao seu lado o corpo de duas freiras transformadas em abo-minações, sem as respectivas cabeças. O corpo de Dordolio alguns metros mais longe, atro-pelado e pisoteado pelos cavalos que puxavam o grande carroção. O veículo possuía umaestranha maquinaria de bronze e cobertura de lona.

O capitão aproximou-se do padre. Estava vivo e, em seu pescoço, levava o amuleto deNatanael. Brilhava perceptivelmente. O homem tossiu e o militar avançou sobre ele.

Natanael arrancou-lhe a corrente do pescoço com raiva. O religioso gemeu e se contor-ceu no chão, como se lhe tivessem apertado o coração com a mão nua. Enquanto Natanaelrecolocava a corrente com o amuleto de volta ao redor do pescoço, o homem no chão abriu osolhos desorbitados e saltou como uma mola sobre ele.

Natanael acertou com gosto um forte chute no padre e imaginou que o velho não maislevantaria. Para sua surpresa o homem apenas bateu de costas no carroção, assustando oscavalos. Urrou e subiu pela parte traseira do veículo. Estava claro para Natanael que estavaprocurando alguma arma de fogo.

Um tiro vindo de trás. O militar voltou-se e viu outro homem correndo, um desconhe-cido perseguido por diversos inomináveis. Vinha em direção à boleia do carroção, parandode vez em quando para atirar nas criaturas com uma antiga arma.

Enquanto o desconhecido conseguia subir no coche perseguido de perto pelos indizí-veis, o capitão se aproximou da parte traseira do carroção a tempo de ver o padre levantarum de seus Colts, que estivera provavelmente escondido em alguma caixa no interior doveículo. Em um só movimento se jogou para dentro da caçamba e com as mãos tentouagarrar a arma. Outro tiro. O relincho dos cavalos. O carroção disparou levando todos,vivos e mortos.

“Entre nós reviva Atenaspara assombro dos tiranosSejamos gregos na glóriae na virtude, romanos”Trecho do hino piratini

A fogueira crepitava fracamente quando Natanael terminou de contar o restante de suajornada e o encontro com o padre para Traz.

— Esse padre — disse Traz — é o mal. Ele é responsável pela mudança do mundo,juntamente com Bento Manuel e todos os outros líderes que queriam o poder supremo pro-metido pelo louco. E você foi a única criança salva, as demais foram sacrificadas por Landellpara criar o boneco e suas criaturas, para ganhar a guerra... E ele despertou o fogo do centroda terra, destruindo mais cidades e matando mais gente em todo o mundo do que ninguém.Você certamente se beneficiou em algum momento do tratamento a que foi submetido quan-do era pequeno, como preparação para o uso pelo Padre. Você é único.

— Como assim? — perguntou o militar

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— Nunca percebeu que os inomináveis não te atacavam como aos demais? Que a suapresença os confundia? — perguntou Traz. — Provavelmente não. Não tinha motivo paraacreditar em algo assim, mas obviamente isso te ajudou na carreira militar. Ainda mais como amuleto. A estranha ciência do padre Landell não apenas criou o exército de inomináveis,mas em certo aspecto também os controla. Não tanto como ele acreditava que poderia con-trolar, e isso foi a desgraça que você conhece.

Natanael girou o amuleto estranho nas mãos. Nunca antes tinha olhado para o objetocomo agora, e sentia-se ligado a toda essa história como se sua vida culminasse neste ponto,atingisse o ápice no desenrolar dos fatos das últimas semanas.

— Você acredita que ele está voltando para a montanha para terminar o que co-meçou?

— Sim — respondeu o velho soldado. — E aquele carroção, pelo que suspeito, éa tentativa dele de reproduzir o efeito do seu amuleto. Este amuleto que você tem emmãos demorou muitos anos e custou a fortuna da República para ser feito. Ele nãoconseguiria criar outro com o mundo do jeito que está, as nações mal e mal se susten-tando diante do sangue da terra e da praga de indizíveis. Mas sem algo como o amuletoo padre não poderia despertar o boneco, muito menos controlá-lo e às criaturas. Agoraele sabe que você possui o amuleto original e que você irá atrás dele, a atração éirresistível.

— Por que você sumiu? — perguntou o militar mudando de assunto, já que não queriarevelar ao outro a sua desconfiança sobre o que ele contava. — O que há neste lugar? —falou gesticulando para a casa semiderrubada.

— Eu tinha que vir até aqui. Esta era a minha casa, minha família estava aqui na épocada tríplice invasão. Depois que vi aquele soldado original que destruímos, trinta anos depoisdo evento, fiquei imaginando se os meus ainda vagavam por aqui. Tinha que vir e dar-lhesrepouso. Felizmente encontrei apenas covas e lápides, parece que morreram antes do final domundo, na guerra.

— A montanha realmente parece falar comigo através deste amuleto — constatouNatanael. — Sinto o poder dele fluir para meu corpo, para minhas veias.

— Veja, encontrei seu sabre... — Traz mostrou a linda arma, puxando-a de seus alforjes.

— Ibarzabal! Tê-la novamente me faz completo.

— O padre nos espera no alto. O boneco nos espera — disse Traz. — Devemos seguire encerrar este capítulo no mundo. Nosso caminho é por esta estrada que serpenteia ao redorda montanha e, se o mundo de amanhã tiver amaldiçoados comandados por um louco e umboneco demoníaco capaz de destroçar exércitos, é porque falhamos.

— E as crianças. Eu fui uma delas. Mais do que pelas pessoas deste mundo louco, dareiminha vida para salvá-las, e mesmo minha morte. Aqui, neste dia, nesta manjedoura, prome-to servir a esta tarefa.

Ao raiar daquele dia com uma mão sobre o estranho amuleto e a outra no poderososabre Ibarzabal, na companhia de um velho soldado sobre o qual tinha dúvidas, Natanaelrumou para a estrada no sopé da montanha.

LEONARDO CARRION

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À medida que avançavam pelos campos e florestas, centenas de inomináveis origi-nais, talvez milhares, deixavam buracos de onde não saiam há anos ou décadas. Surgiamarrastando-se por detrás de árvores, deixando pelo caminho restos de antigos uniformesdescoloridos, como se todos agora pertencessem ao mesmo exército. Levantavam-se cam-baleando, sorrisos arreganhados, mãos em garras, para se perfilarem atrás dos dois homenscomo se ainda fossem soldados formando tropa, como se a batalha de trinta anos antesestivesse para terminar. Natanael deu o primeiro passo em uma estrada que não era usadahavia trinta anos, e este primeiro passo, o primeiro cascalho esmagado nesta caminhada,foi o início de uma nova lenda. E o fim de um capítulo para o mundo.

FIM (por enquanto)

A GUERRA DOS INOMINÁVEIS

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|Ubiratan|Peleteiro|

Em meio a um mundoarrasado pelo apocalipsezumbi, um novo ser surgeem um abrigo decadente,

e um velho médico éobrigado a tomar uma

difícil decisão.

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O Doutor passava perto da muralha, quando lá de cima alguém o chamou:

— Doutor, dá uma subidinha aqui!

Era Rafael, um dos guardas do Abrigo 47. Quase um garoto, devia ter uns dezesseisanos. O Doutor o conhecia desde o primeiro suspiro. Fizera o parto dele, assim como o detodos que tinham nascido no Abrigo.

— Estou com fome, Rafael. Vou almoçar.

— Rapidinho, doutor. É uma coisa legal que descobri. Vem cá.

Passara a manhã toda no hospital, tratando dos vários pacientes. Os refugiados cha-mavam o hospital de “barracão”. Mas era um barracão mesmo. Um hospital de campanhaimprovisado. O Doutor trabalhava mais como curandeiro do que médico, tal era a escassezde recursos, incluindo medicamentos. Teve que redescobrir a fitoterapia para prosseguirno ofício.

Começou a subir as escadas, os ossos velhos doíam nas juntas. Quanto tempo mais atéque ele trocasse de lugar, deixando de ser médico para virar um paciente acamado? Naquelestempos, viver até os sessenta e nove anos já era bem mais que o esperado. E pensar quequando terminou a residência médica e a especialização, aos vinte e seis, a expectativa devida dos brasileiros era de setenta e seis anos.

— O que foi, Rafael? — perguntou, já em cima da muralha, bufando pelo esforçoda subida.

— Dá uma olhadinha no que eu descobri.

Rafael segurava uma ferradura enferrujada. Lá em baixo, alguns zumbis arranhavam opé da muralha, enquanto outros perambulavam mais à frente.

— Fica olhando aquela monstrenga loira ali — disse Rafael.

A zumbi devia ter sido uma jovem esguia. O maxilar estava quebrado e pendurado, sópossuía metade do braço esquerdo. Rafael fez mira e jogou longe a ferradura, que atravessouo ar e bateu no ombro da criatura.

— Merda! — exclamou o garoto.

— OK. Já entendi. Você quer me mostrar sua boa mira. Parabéns. Agora já vou indoque tenho mais o que fazer.

— Espera. Vou tentar de novo.

Rafael tirou mais uma ferradura de um saco aos seus pés. Preparou outro arremesso elançou. Dessa vez, a ferradura acertou no topo da cabeça da zumbi, quicando. Ela tremeufeito gelatina e desabou no chão, sentada. Depois ficou olhando de um lado para o outro. Sóentão o Doutor percebeu que havia mais alguns zumbis em volta, na mesma situação.

— Viu? — perguntou Rafael. — Eles ficam paralisados se a gente acerta eles no coco.

— Tudo bem, Rafael, mas e daí? O que você quer com isso?

— Ora, pra sua pesquisa. Não é um dado importante? Não pode ajudar em alguma coisa?

Eram tempos difíceis. Não havia como instruir aqueles garotos. Os voluntários da es-cola se esforçavam, mas era insuficiente. Havia pouco tempo, o Doutor dera uma palestrapara os jovens, falando sobre ciência, sobre as pesquisas que ele fazia ali. Lembrou com

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tristeza do mestrado que teria iniciado, logo após a residência, mas tudo acabara com a pragazumbi; só restara caos. Esbravejou com o garoto.

— E o que isso tem a ver? Você não entendeu nada? O que eu faço aqui é só coletardados e amostras e enviar relatórios pro Abrigo Central! De que serve essa sua maravilhosadescoberta? — desdenhou.

O sorriso no rosto do rapaz se desfez, enquanto ele baixava os olhos. O Doutor arrepen-deu-se de ter sido tão duro. Afinal, a esperança para um novo mundo estava ali, diante dele.Jovens como aquele seriam responsáveis pela fundação de uma nova sociedade.

— Não fique triste, Rafael. Sua descoberta foi interessante. É que estou meio estressado.

— Eu sei. Todos nós estamos. Pra você, que conheceu o mundo antigo, deve ser pior.Eu já nasci nesta desgraça! — E atirou mais uma ferradura, que ia atingir uma criatura quese aproximava. Mas surpreendentemente ela se desviou com uma agilidade incomum paraum zumbi.

— Ei, camarada! — gritou a criatura. — Assim você vai me machucar. Venho em paz.

O Doutor e Rafael ficaram estupefatos. Zumbis não falam. O máximo que fazem égrunhir. E aquele seguia com passo firme em direção à muralha. Quando se aproximou obastante, notaram que ele não possuía nenhuma podridão à mostra. Parecia humano. Pálido,abatido, subnutrido, mas humano.

Os dois se entreolharam. Não sabiam o que fazer, nem o que dizer. Aquela pessoaolhava para cima com olhar consciente, até um pouco cínico; incrivelmente, os zumbis pas-savam por ali como se ele não existisse.

— Olha, será que vocês podem me ajudar? — perguntou. — Tenho fome e sede. Fazdias que só como raízes, e elas me doem o estômago.

Não responderam. Rafael foi até o sino de alarme e o fez badalar com toda a força.

— O que acha, Doutor? — perguntou o capitão.

Era um homem alto, magro e ossudo. Tinha um nariz aquilino entre olhos fundos.Estava há quinze minutos fazendo perguntas ao desconhecido, ainda ao pé da muralha. Ocapitão, seus dois tenentes e o sargento Zenon, o soldado mais antigo, estavam no topo damuralha com o Doutor, estudando a situação. Também havia uma meia dúzia de guardasarmados com balestras.

O interrogatório do desconhecido se mostrara infrutífero. Não obtiveram nenhumainformação significativa. Ele parecia confuso, parava de falar no meio das explicações,como se estivesse tentando lembrar algo. Agora estava sentado, de pernas cruzadas, olhan-do pra cima.

— Devemos trazê-lo para dentro — respondeu o Doutor. — Tenho que examiná-lo.

— E se ele trouxer a praga para dentro do Abrigo? — retrucou o capitão.

— Ele parece humano.

— Mas também não diz coisa com coisa. E se for um tipo novo? Ninguém sabe nadadessa merda de doença, nem você e nem os fodões do Abrigo Central.

UBIRATAN PELETEIRO

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O capitão era um homem de ação. Sua revolta era a revolta de qualquer um que tenhasido reduzido à miséria e a quase selvageria. Mostrava certa animosidade com relação aoDoutor. Talvez o equiparasse aos cientistas do conselho no Abrigo Central, que nunca podi-am ajudar, nunca podiam enviar suprimentos nem equipamentos. Nem mesmo remédios paraas crianças, das quais morriam cinco em cada sete.

— Se quiser, pode perguntar à central — disse Doutor. — Mas tenho certeza de queeles vão querer esses dados.

O capitão torceu o nariz. Ele também sabia disso. E sabia respeitar a hierarquia. Se ahierarquia fosse quebrada, o que mais sobraria?

— Deem-lhe a máscara! — ordenou o capitão.

O sargento Zenon jogou a máscara ao lado do desconhecido. Os zumbis em volta vira-ram de um lado para o outro, procurando algo. Não motivados pelo barulho, mas pelo odorhumano que a máscara exalava. Já se sabia que eles eram totalmente surdos e cegos e seguiavam pelo cheiro dos seres humanos.

— Pegue a máscara, filho! — gritou o capitão. — Coloque-a no rosto.

Era uma máscara grossa, de madeira e tiras de couro, feita para impedir que quem autilizasse pudesse morder. Era usada na captura de zumbis.

O desconhecido vestiu a máscara. Atiraram-lhe uma camisa de força, que ele tambémvestiu. Em seguida, um dos soldados o laçou e todos começaram a puxá-lo para cima. Quan-do ele chegou nas ameias, os soldados o agarraram rapidamente e o imobilizaram no chãocom violência.

— Cuidado! — disse o Doutor. — Não o machuquem.

— Porra nenhuma, Doutor! — disse um dos soldados. — Eu é que não vou me arriscar.

Ataram a camisa de força e o ergueram.

— Levem-no para a minha sala — ordenou o capitão. Virou-se para o Doutor. — Antesde qualquer exame, vamos interrogá-lo melhor. Depois ligamos para a Central. Podem fazera limpeza de hoje, homens.

Os guardas que ficaram na muralha acionaram uma máquina rústica. A bola de chum-bo na ponta de uma corrente girou, esmagando os zumbis no pé da muralha. Ao terminar ociclo, os guardas alvejaram com dardos os zumbis restantes, até que não pudessem mais semovimentar. Por fim, desceram, vestindo armaduras e empunhando marretas, e esmaga-ram o crânio deles. Juntaram todos numa fogueira que queimaria até de manhã, quando sósobraria cinzas.

— Vamos começar de novo — disse o capitão. — Qual é seu nome?

O desconhecido esta amarrada a uma cadeira, no meio da sala. Haviam tirado a másca-ra, mas a camisa de força ainda o mantinha preso.

— Não sei — respondeu.

— Você esqueceu?

— Acho que sim.

O NÚMERO UM

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— Como assim, “acha”? Você obviamente tem um nome. Se não sabe é porque esqueceu.

— Você deve ter razão, devo ter esquecido. Mas é como se eu nunca tivesse tido umnome. Quando a gente esquece alguma coisa, sabe que esqueceu, porque tentamos lembrar.Eu não sinto que deveria lembrar meu nome.

— De onde você veio?

— De um lugar parecido com este.

— De um Abrigo?

— Se este lugar é um abrigo, então sim. Eu vim de um abrigo, ou pelo menos de umlugar que parece um abrigo.

— E por que você saiu desse abrigo?

— Não tinha nada lá para mim. Pelo menos, não tinha nada mais. Enquanto haviacomida, eu comi, mas aí a comida estragou, e eu fui procurar mais comida.

— E as outras pessoas?

— Que outras pessoas?

— Os outros habitantes do abrigo.

— Só havia zumbis. Mas eles foram todos embora, logo depois que eu acordei.

— Acordou?

— Sim. Abri os olhos, vi o céu. Estava deitado, ou caído, no chão. Levantei e vi ummontão de zumbis. Mas esses sangravam sangue vermelho, e não negro, como eu vi depois.Bem depois. Depois que eu saí do lugar parecido com este, que vocês chamam de abrigo.

O sargento Zenon se aproximou e explicou:

— Se o sangue deles ainda era vermelho, quer dizer que tinham acabado de se transfor-mar. Deviam ser os outros habitantes. Talvez seja o antigo Abrigo 49. Foi destruído há doisanos. — Virou-se para o desconhecido e perguntou: — Por que eles não te atacaram?

O desconhecido ficou calado por um momento e depois respondeu:

— Eles atacaram. Mas não os de sangue vermelho. Os que devem ter vindo antes.Antes de eu acordar. No tempo que para mim é como se não tivesse existido.

— Se você não lembra nada — inquiriu o capitão —, como sabe que te atacaram?

— Por causa das marcas. Das cicatrizes.

— Que cicatrizes?

— Essas aqui na minha barriga e no peito.

O capitão se aproximou e ordenou:

— Amarrem os braços dele. Vou abrir essa camisa.

Dois guardas obedeceram. O capitão sacou a faca, cortou a camisa de força do desco-nhecido de cima em baixo. Depois deu dois passos para trás, assustado.

— Doutor, olha isso!

O Doutor se aproximou. Havia pelo menos dez mordidas na barriga e no peito dodesconhecido, todas cicatrizadas.

UBIRATAN PELETEIRO

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— Não é possível — disse o Doutor. — Não tem como ele ter sobrevivido. Ainda queele seja imune à praga, essas feridas teriam infeccionado. Teria sido impossível sobreviversem antibiótico. Você tomou algum remédio?

— Não, nunca tomei. Não sei o que é antibiótico, mas sei o que é remédio. Nuncaprecisei disso. Estas feridas estavam abertas, logo que eu acordei, e doíam. Mas com o tempoelas fecharam e não doem mais.

O Doutor olhou para o capitão, enquanto tirava uma seringa do bolso.

— Isso não vai levar a nada — constatou. — Vou tirar logo uma amostra e adiantar meurelatório. O melhor a fazer é entrar logo em contato com a central.

— Concordo — assentiu o capitão.

— Segurem o braço dele.

O Doutor inseriu a agulha e encheu a seringa. O sangue parecia normal, vermelho bemforte. O único fato estranho ocorreu quando ele retirou a seringa: nenhuma gota de sanguesaiu da pequena ferida, o sangue estancou imediatamente.

— Vá fazer seu serviço, Doutor — disse o capitão. — Vou ligar para Central.

Ao sair do quartel, o Doutor ouviu o barulho das bicicletas adaptadas para acionarum dínamo que alimentava o antigo rádio que o capitão usava para se comunicar com oAbrigo Central.

— É impressionante! — exclamou o Doutor. — Impressionante.

Olhando pelo microscópio, o Doutor examinava o sangue do desconhecido. Ashemácias se misturavam às necromácias, entretanto as necromácias não as atacavam.Esse é o mecanismo da praga. Não descobriram como ela começou, não havia vetoridentificado, nem o caso inicial. As necromácias são semelhantes às hemácias humanas,mas organismos autônomos, vivos, que formam colônias. Quando uma necromácia entrana corrente sanguínea, contamina as hemácias como um vírus, injetando seu DNA. Masem vez de a célula ser destruída, criando outros vírus, ela se transforma numa novanecromácia. Quando todo o sangue é tomado, o ser humano se transforma completamen-te num zumbi.

Mas isso não acontecia no sangue do desconhecido. As hemácias e as necromáciasconviviam. E mais: de alguma forma as necromácias agiam como anticorpos. O Doutor adi-cionou algumas bactérias ao sangue e elas foram destruídas imediatamente. As hemácias,porém, eram mantidas vivas, o sangue não coagulava.

— Meu Deus, ele deve ser quase imortal! Se identificarmos o que causa essa condição,será a cura da praga!

O Doutor pensou como aquilo era novo, inesperado. Seria possível reproduzir aquilo?Talvez o desconhecido fosse um mutante, ou quem sabe até uma nova espécie. O que seria deum mundo habitado por superseres? Conhecera o velho mundo, sabia bem o que o ser huma-no era capaz de fazer com o poder e pelo poder.

A porta se abriu, bateu forte na parede. Era o truculento capitão, que disse:

— Pode parar com o trabalho, Doutor. Eles não querem nenhum relatório.

O NÚMERO UM

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— O quê?

— Eles estão vindo para cá. Você acredita nisso? Há décadas mendigamos recursos eeles nunca mandaram. Agora estão vindo por causa daquele garoto. Vão levá-lo. Eles che-gam amanhã.

— Disseram por quê?

— Não. Apenas que o mantivéssemos preso, vivo e bem seguro. Disseram também quenão precisam de nenhum relatório seu. Eles vão fazer a pesquisa no Abrigo Central. Vocêdeve destruir a amostra. É essa aí?

O Doutor assentiu. O capitão vestiu luvas, pegou todos os tubos e ensaio e até a lâminano microscópio e meteu tudo num saco plástico.

— Vou levar isso para incinerar.

Saía do laboratório, quando se virou para Doutor e disse.

— Você acredita que agora aqueles putos vão trazer suprimentos? Medicamentos, se-mentes, armas, ferramentas, equipamentos. Até um rádio novo e um gerador movido a ener-gia solar! Foi uma sorte aquele garoto aparecer aqui, e não no Abrigo 48.

O capitão foi embora, e Doutor continuou sentado na banqueta, pensativo.

— Olá, Rafael — cumprimentou o Doutor, ao encontrar o jovem guarda no corredordas celas, sentado a uma mesa. Era o carcereiro naquela noite.

— O que faz aqui, Doutor?

— Vim dar uma olhada no forasteiro.

— Nada de exames ou coleta de amostras.

— Eu sei. O capitão já me disse. Vim conversar com ele por mera curiosidade científi-ca. Não farei nenhum relatório.

Rafael baixou os olhos e deu um gole numa caneca de cerveja. Disse:

— Pois isso me parece um exame, ou coisa parecida. Não vai dar não, Doutor. A não serque o capitão autorize.

O Doutor sentou-se devagar no banco à frente da mesa, a dor nas costas dando sinais.

— Tudo bem. Achei mesmo que não ia dar, mas não custava tentar. Como ele está?

— Dormindo.

— Ele deve te comido muito, né? Parecia faminto

— Não demos comida a ele.

— Por quê?!

— O capitão mandou não alimentá-lo.

— Não? Ora, ele estava quase em estado de inanição! Por que o capitão não queralimentá-lo? Foi ordem da Central?

— Não sei. Não me meto nessas coisas.

UBIRATAN PELETEIRO

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— É muito arriscado. Já pensou se ele morre aqui com a gente? O pessoal da Centralvai ficar uma fera.

Rafael fez uma expressão assustada. Esticou o pescoço para olhar o fim do corredor. Odesconhecido devia estar na última cela. Rafael levantou-se e foi até lá. O Doutor aproveitoupara tirar uma ampola do bolso e derramar o conteúdo na caneca. Rafael parou na frente daúltima cela. Ficou olhando um pouco, depois retornou e disse:

— Ele me parece bem. Está respirando. Será que devo chamar o capitão? Ele vai ficarputo se eu acordar ele à toa tão tarde.

— Não se preocupe — disse o Doutor. — Eu falo com ele. É melhor eu passar esseaperto no seu lugar. Quem sabe ele não resolve respeitar um idoso, afinal.

Saiu dali, mas em vez de ir procurar o capitão, sentou-se na sala de entrada do quartel.Dois guardas já estavam desmaiados no chão. Tantos anos de experiência o tornaram ummestre na fitoterapia. Inventara um método de produzir um extrato superconcentrado desedativo de erva valeriana. Compartilhara sua descoberta com os outros abrigos, até a centralse interessou. Nunca imaginara um dia utilizar sua fórmula desse jeito.

Ouviu um baque vindo da carceragem. Rafael desmaiara. Tomou-lhe as chaves e se-guiu pelo corredor. Só havia mais um preso, um conhecido arruaceiro, que dormia como umapedra. Rafael se aproximou das grades da cela do forasteiro e chamou baixinho:

— Ei! Acorde. Acorde.

O forasteiro tinha sono leve. Levantou-se e levou algum tempo para reconhecê-lo.

— Ah, é o senhor, Doutor. Vão me levar agora?

— Sim, está na hora. Você está com fome?

— Estou! Com muita!

O Doutor tirou um embrulho do bolso e lhe entregou. Continha um pedaço de pão. Foidevorado em segundos.

— Não vá engasgar — recomendou o Doutor, entregando-lhe um pequeno cantil.

— Obrigado.

O forasteiro bebeu todo o conteúdo. Restou uma expressão bastante aliviada.

— Venha comigo — chamou o Doutor, abrindo a cela. — Não faça barulho.

Ao chegar ao fim do corredor, o forasteiro viu Rafael desmaiado e perguntou:

— O que houve com ele?

— Está só dormindo. Não se preocupe. Confie em mim, vamos.

Saíram do quartel e se esgueiraram entre as vielas até chegar a uma das torres da mura-lha. Entraram e subiram um lance de escada. Havia alguns caixotes empilhados na paredeexterna. O Doutor pediu ajuda para retirá-los dali. Por trás, havia uma janela cerrada por umaplaca de ferro. De outro caixote, o Doutor retirou uma mochila, um grande cantil e um pé decabra. Tentou forçar a placa de ferro, mas não tinha força suficiente, as juntas dos seus dedosdoeram muito. Pediu ao forasteiro:

—Será que você consegue arrancar esta placa?

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O rapaz hesitou. Depois pegou o pé de cabra e conseguiu arrancar a placa, com extremafacilidade para alguém tão debilitado. Por trás, a janela estava fechada com tijolos. O Doutorenvolveu o pé de cabra com um pedaço de couro e pediu ao forasteiro para quebrar a parede.O reboco era fraco e a parede desmoronou facilmente, deixando a janela livre.

O Doutor lançou a mochila e o cantil pela janela e disse ao forasteiro:

— Você tem que partir. Pule.

— Partir? Mas disseram que eu seria levado para um lugar especial. Um lugar bom.

— É mentira. Você tem que fugir. Eles vão fazer mal a você.

— Mais mal do que já tenho passado? Duvido. Não te pedi nada. Por que não mequer aqui?

O Doutor percebeu que o rapaz não seria facilmente convencido. Suspirou e perguntou:

— Você acredita em Deus?

— Não sei o que é isso.

— Mas você sabe o que significa a palavra “natureza”?

— Sei. É tudo que há. Os seres vivos e os mortos. A água, as pedras, o céu e o ar. Tudoisso é natureza. Só não sei se os zumbis são natureza.

— São. Ninguém é mais natureza do que eles. A natureza é viva, e a vida da natureza éDeus. Mas nós, humanos, nos revoltamos contra a natureza, nos revoltamos contra seus de-sígnios. Ao longo das eras, a natureza se modificou, modificando assim tudo que dela fazparte. Nesse processo, seres surgem e desaparecem para sempre. Mas os seres humanos nãoaceitaram passar sua vez.

— Não entendo.

— A natureza sempre expõe as criaturas a dificuldades. Assim, as mais fracas morreme as mais fortes sobrevivem, até que um ser perfeito surja. O ser humano foi um importantepasso para a perfeição, a inteligência. Mas a partir daí, todas as tentativas da natureza demelhorar a espécie foram vencidas. Toda sorte de doenças foi curada. Toda fome foi vencida,toda catástrofe foi ultrapassada, até que a Terra ficou repleta de seres humanos. E entãosurgiu essa praga. E a praga não podia ser vencida. Mas você a venceu.

— Eu?

— Você não é mais humano, é outro ser. A praga está no seu sangue, mas ela não tedestruiu, ela te tornou algo diferente, mais forte. Por isso os zumbis não te atacam. O objetivoda praga era te encontrar. Se os humanos do Abrigo Central puserem as mãos em você, vãofazer todo tipo de experimento para tentar obter a cura. Mas não há cura. Não vão aceitarisso. Vão te matar. Por isso você tem que fugir.

— Mas para onde eu vou?

— Para qualquer lugar, mas sempre se esconda dos humanos. Procure outros comovocê. Se não existirem ainda, se você for o primeiro, vão surgir outros. A natureza não erra.Quando erra, conserta o erro. Como está fazendo agora conosco. Agora parta!

O desconhecido sem nome obedeceu. Pulou a janela e caiu no chão como um felino.Quatro metros para ele foi como saltar um degrau. O Doutor o observou desaparecer na

UBIRATAN PELETEIRO

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escuridão. Respirou fundo e saiu dali caminhando tranquilamente. Já não se preocupavaem se esgueirar. Não se preocupava com o que fariam com ele pela manhã, quando osenviados do Abrigo Central chegassem. Sentia paz, senta que já tinha feito tudo o quedevia ter feito na vida.

Então ouviu um grunhido. Virou-se e viu um braço putrefato saindo de uma grade nochão. Outros braços surgiram. Era uma grande entrada de esgoto. De alguma forma aqueleszumbis irracionais encontraram o caminho. “Que oportuno”, pensou o Doutor.

Percebeu que estava com o pé de cabra na mão. Aproximou-se e encaixou a ponta nagrade. Hesitou, pensando nas crianças. Ficou bastante tempo ali, olhando os zumbis, olhandopara a ponta do pé de cabra, olhando o Abrigo 47. Então forçou a grade. Faltou força.

— Nem que minhas juntas estourem!

Colocou todo o peso na ferrameenta. A grade cedeu. Ele caiu no chão pelo esforço. Oszumbis saíram.

Doutor fechou os olhos e cobriu o rosto com as mãos.

O NÚMERO UM

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|Douglas|Eralldo|

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Em um mundo ondetodos estavam

conectados por meio deuma sociedade virtualcomo nunca existira nahistória da humanidade,

um homem luta contra otempo por sua salvação.

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

PASSAGEIROESPECIALMENTE

CONVIDADO

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William sabia que estava correndo contra o tempo. Poderia ser desconectado a qual-quer momento, e então seria tarde demais. Não havia vida entre os Desconectados, apenasuma vaga lembrança de existência, e ele bem sabia o que lhe esperava em caso de insucesso.Por isso, mesmo com as pernas pesadas além do normal e a respiração ofegante como a deum cão sarnento, ele não se permitia desistir.

Cruzara por meia cidade. Em cada esquina a morte apresentava-se na forma deDesconectados moribundos e famintos. Ninguém conseguia explicar ao certo, mas desdeque o vírus se espalhara entre usuários do Google e do Yahoo, os Desconectados perderamsuas condições de sociabilidade e passaram também a ter uma estranha predileção porcarne humana. Desde então, havia muito mais esperança em se defrontar com um lobofaminto no meio de alguma rara floresta do que ficar frente a frente com algumDesconectado.

Eram como almas sem regras. O corpo, apenas um invólucro sem consciência alguma.Depois que os vírus os desconectavam da rede, não havia nada mais a ser feito, os olhosvazavam em seu globo ocular um líquido amarelo e fosco, e qualquer resquício de humanida-de partia no mesmo instante. Aos Desconectados, nada mais restara do que andar, comer,andar e comer um pouco mais. Apenas cerca de três a dez por cento de usuários da rede aindaestavam seguros. Para eles, só restava fugir e torcer, mas torcer muito, para que o vírus não seinstalasse em sua mente.

William tinha dezessete anos quando o anúncio foi feito. Parecia tudo muito utópico eao mesmo tempo impressionante. O silício seria praticamente esquecido. Sem computado-res, tablets ou smartphones. Salvariam o planeta, diziam as empresas transformando cada serhumano, cada cérebro em seu próprio e exclusivo computador pessoal.

Dobrando uma esquina e atirando na cabeça de um Desconectado que achavaWilliam um excelente almoço, o fugitivo recordou de como era praticamente o únicocético em sua turma da faculdade a não ver com bons olhos a iniciativa. Conectar-se àinternet diretamente por meio de um chip-modem instalado no cérebro não parecia aWilliam algo muito inteligente.

Ainda assim, Google e Yahoo atingiram em uma semana o impressionante número deum bilhão de Conectados. A capacidade do cérebro foi ampliada no mínimo uma ou duasvezes. Dos olhos, o mais revolucionário sistema Android podia projetar imagens da mentecomo se fosse um gigantesco HD. Tudo organizado em pastas. Simples, prático e a um piscarde pensamento.

Era possível logar em sua conta, ter acesso a e-mails e redes sociais e comprar com doisou três pensamentos tudo o que quisesse.

O mundo realmente mudara de forma drástica.

Mas era justamente essa mudança que punha William a correr por mais de dez quartei-rões. São Paulo tinha se tornado uma grande concentração de Desconectados. Quase todomundo na cidade estava logado no Google, Yahoo e Facebook, até mesmo os que preferiamlogar no truncado Windows 11. No centro financeiro do Brasil, quem ainda não fora conta-

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minado e desconectado pelo vírus, havia sido devorado pelos Desconectados, ou com muitasorte, ainda lutava pela sobrevivência.

Não se pode dizer que William não tenha resistido. Era um jovem difícil de dobrar e,até seu notebook estragar e não haver mais no mercado para repor, ele evitou utilizar anova tecnologia. Até o último ano da migração era tido como anomalia por seus colegasacadêmicos.

E ainda assim, quando finalmente cedeu, William optou por logar-se pelo sistema naci-onal Expresso, que, até certo ponto, era razoavelmente seguro. Desde a liberação para uso detodos os cidadãos brasileiros, o sistema continha uma boa base de usuários. Esperava aomenos que, ao utilizar a tecnologia brasileira, países estranhos não tivessem acessos aos seuspensamentos, no fundo um dos principais temores de William.

Sua aposta de certa maneira deu certo, já que apenas um terço dos usuários do Expressotinham sido contaminados.

Outros dois tiros e William derrubou três Desconectados de uma vez só. A estaaltura, ele já estava pulando por sobre carros abandonados na Avenida Paulista. Aindatomada por corpos, alguns Desconectados ainda de pé. William estava a uns setecentosmetros do prédio federal onde ele sabia que os servidores do Expresso para região sudes-te estavam.

William acompanhara as primeiras informações sobre o problema pela própria web emídia impressa. Embora de desconhecida origem, o vírus de nome“Troia_Death_Zombie_00x20” agia sempre da mesma forma. Invadia a rede e quem estives-se logados – e que se diga, desde que o próprio cérebro se transformara em computadorpessoal, dificilmente os usuários tinham o hábito de sair do sistema. Os usuários não conse-guiam mais se desconectar, e então num período de doze horas paulatinamente todos osarquivos eram deletados, até que...

... já não era mais possível fazer logoff...

... não se podia tirar o computador da tomada...

... não mais se podia reinicializar o sistema.

Nenhum engenheiro calculara o quanto o vírus poderia arruinar um ser humanotransmutado em seu próprio computador.

Os primeiros Desconectados sequer tiveram tempo de compreender o que acontecia. Ovírus agia com sutileza, sem alardes. Longe do radar de firewalls e antivírus, como um mercadorda morte, o aplicativo maligno corrompia discretamente os “computadores” em todo o mundo.

Então, numa gélida tarde de inverno ao sul do equador e de um tórrido verão ao nortedele, o Google desconectou milhões de usuários ao sair do ar por míseros trinta segundos.Homens e mulheres que conversavam mentalmente pelo Facebook tombaram em segun-dos. Quando seus corpos se reergueram não eram mais homens ou mulheres. EramDesconectados.

E mesmo que a informação tenha circulado com extrema velocidade, o pânico abateu omundo. Logados não conseguiam sair de suas contas. Depois da terceira ação do vírus, mui-

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tos homens, ainda vivos, atiraram na própria cabeça. Antes a morte certa do que a duvidosa eexecrável existência como um Desconectado.

Fazia exatamente nove horas que William não conseguira fazer o logoff do Expres-so. E ele sabia o que isso significava. Pastas remotas de sua infância, o aroma de almíscardo perfume do pai e o hálito de menta da mãe. Nada disso mais existia em seu cérebro.Sua primeira noite de sexo, o dia em que vira a noiva pela primeira vez. Nada. Ele estavasendo apagado.

Sua única salvação, se é que era possível, estava em derrubar os servidores do Expres-so. De suas doze horas de vida disponíveis, passou ao menos três pesquisando coordenadas eindicações para só então se jogar na rua em busca de salvação. Ele precisava fazer isso porele. E pelo filho recém-nascido que o aguardava no sul.

Trezentos metros. E suas últimas balas foram disparadas. As unhas grandes de umDesconectado rasgou suas calças, deixando três valetas sangrentas nas pernas.

Cem metros. Um pé de cabra jogado no chão salvou-lhe a vida quando uma Desconectadasaltou de sobre uma SUV. O choque do ferro contra o crânio fez um som abafado, mas oimpacto foi suficiente para afundar a cabeça da mulher e jogá-la contra um poste.

William entrou no prédio com o pé de cabra em punho, depois de estilhaçar o vidrocom uma pedra. Não era provável que houvesse Desconectados no interior do edifício. Masele nunca tinha sido muito bom com probabilidades.

Cerca de uma dúzia de Desconectados o fez perder tempo entre corredores boloren-tos com péssimo cheiro. Uma verdadeira carnificina acontecera lá dentro. Pelos restos decorpos em putrefação, William imaginou que os Desconectados tiveram muitos dias dealimentação farta.

Desceu por um conjunto de escadas escuras, dos quais só podia saber graças aos seustalentos com programação e um ou outro ativismo hacker.

Exausto, escorou-se na parede quando as escadas enfim fizeram-lhe sorrir o subsolo.Ouviu o som de computadores trabalhando, viu uma infinidade de leds vibrando em diversascores, verde, laranja, azul, vermelho.

A vã esperança de William era desconectar os servidores da energia, que estranhamentedesde o primeiro dia de evento não caíram. No entanto, depois de dar uma ou duas voltas pelasala, William não encontrou o cabeamento que mantinha os servidores ligados.

Em desespero atirou o pé-de-cabra no meio dos servidores tentando provocar um cur-to-circuito. Nada, além de um faiscar e zunidos. Apenas o local do choque pareceu afetado,mas o restante dos servidores ainda estava em funcionamento.

William sentou-se no chão e, segurando os próprios joelhos, começou a chorar. Choroupor alguns minutos até mais uma vez decidir não se dobrar para a morte iminente.

Levantou-se e foi na direção onde caíra o pé de cabra. Com ele, arrancaria cada pedaçodo piso. Os cabos só podiam ser subterrâneos. Então, a não menos que quatro passos daferramenta, tudo escureceu. Seu corpo sem peso caiu sobre o piso frio.

DESCONECTADOS

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Quando finalmente reergueu-se, William tinha os olhos amarelos e opacos. Infelizmen-te ele calculara erroneamente sua estimativa de vida.

Antes de tudo escurecer, William teve um único vislumbre de pensamento. Um esgarde consciência que o levou para o pátio da faculdade. Entre os amigos. Alguns anos antes, nodia em que vaticinara seu futuro e o dos homens. Depois de uma hora de intenso debate suaspalavras se tornaram proféticas.

— Anotem o que estou dizendo. Isto tudo vai dar merda.

SOBRE OS ZUMBIS E EUSOBRE OS ZUMBIS E EUSOBRE OS ZUMBIS E EUSOBRE OS ZUMBIS E EUSOBRE OS ZUMBIS E EUÉ interessante como a vida nos leva por determinados caminhos, por exemplo,minha relação com zumbis na literatura. Ao contrário do que possa parecer, minhaspoucas reminiscências são alguns filmes de horror vistos na juventude, dosquais nem mesmo consigo recordar o nome. Mesmo assim, vim a escrever, parao bem e para o mal, um romance de suspense e horror com zumbis, mas sempraticamente nada de referências do gênero. É bem possível que isso faça partedas virtudes e dos defeitos de Morgan: o único, meu primeiro livro, publicadoem maio de 2011 pela Editora Literata. Na época, a presença dos zumbis seintensificava, especialmente na televisão a cabo e na internet, numa infinidade deposts que geralmente falavam sobre como matar zumbis ou como sobreviver aum apocalipse desse gênero. Foi por causa desse tipo de informação que deestalo surgiram a vontade e a necessidade de escrever algo sob o ponto de vistado próprio morto-vivo. E assim nasceu Morgan, um zumbi que, a meu ver, falamuito mais sobre questões humanas que propriamente dos mortos.

Depois do livro, passei a pesquisar mais sobre o tema e descobri que, sem quererou inconscientemente, sei lá, acabei indo na direção contrária dos zumbis modernos,frutos da ficção científica, dando aos meus um pouco mais do universo sobrenatural,colocando-os num campo etéreo em que a fronteira entre a imaginação e a realidadeé sempre muito tênue. Desde então, sempre que tenho oportunidade, falo sobre oszumbis e a nossa literatura brasileira. Consegui encontrar outro foco de abordagemno meu segundo livro, O titereiro dos mortos, publicado neste ano, que trata dopoder imposto por alguém capaz de controlar os mortos.

Mais do que por puro modismo, os zumbis cativaram minha escrita peladiversidade de temas que permitem abordar, especialmente a forma de lidar econtrolar nossos medos. Quanto a este conto, é bem provável que algumatecnologia já caminhe nessa direção, e mais do que querer prever algo, minhaintenção é a de justamente fazer um alerta: estamos nos tornando cada vez maisdependentes da rede. Um dia, isso tudo vai dar merda!

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Estou longe de ser uma especialista em ficção científica, uma professora de escrita criativa ou uma críticaliterária, mas sou uma ávida leitora e presto especial atenção à escolha do escritor quanto às palavras, princi-palmente em literatura nacional.

Dominar a língua portuguesa é essencial para o bom escritor. Já falei sobre isso na última coluna, mas nuncaé demais repetir. Para criar diálogos verossímeis, construir belas imagens e enredar o leitor da primeira à últimapágina só é possível quando as palavras certas são combinadas da melhor forma possível. O português é riquíssimoe nos oferece inúmeras possibilidades semânticas.

Tomemos como exemplo a seguinte frase: “João entrou no quarto do hotel e colocou a mala em cima dacama. Foi ao banheiro, lavou o rosto e as mãos. Colocou o casaco e saiu de novo.” O verbo “colocar”, emboratenha sido usado de forma correta, é bastante genérico e empobrece o texto; não traz uma carga de significadoscomo as opções que a língua oferece. Dizer que “João pousou / atirou / jogou / depositou a mala em cima dacama” ou “João vestiu o / se embrulhou no / passou a mão no / apanhou o casaco” atribui uma força aos atosdo personagem que faz com que a percepção do leitor mude completamente.

Outro exemplo, desta vez em um diálogo: “— Não acredito que você tenha feito uma coisa dessas — disseJosé.” Ou: “— Eu sempre quis uma bicicleta de presente de Natal — disse Maria.” Nos dois casos, o verbo“dizer” tem a função de arrematar o diálogo; é o que se chama se verbo declarativo ou verbo dicendi. Nojornalismo, há regras rígidas quanto a que verbos podem assumir essa função, mas acho que a literaturapermite um pouco mais de liberdade. Assim, percebam como o diálogo muda se escrevemos “— Não acreditoque você tenha feito uma coisa dessas — acusou / afirmou / declarou / observou José.” Ou: “— Eu semprequis uma bicicleta de presente de Natal — lamentou-se / choramingou / insinuou / divagou Maria.”

Por fim, um último exemplo retirado da literatura brasileira. Uma das características mais marcantes deO cortiço é a zoomorfização, ou seja, o comportamento humano mostrado como algo animal, selvagem.Para marcar essa crítica, Aluísio de Azevedo foi bastante criterioso na escolha das palavras, usando paradescrever as ações dos personagens palavras a princípio reservada para descrever animais, como as desta-cadas no trecho a seguir:

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A palavra certa para cada situação

Fechou-se um entra-e-sai de maribondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corri-

am de cá para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e

colchões espocados. Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas

arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saiam clamores apopléticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que

se espolinhava com um ataque. [...]A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível;

nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenha-

da, escorrida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno.

São apenas exemplos rápidos de como a linguagem pode ser trabalhada, palavra a palavra, para melhorara qualidade do texto, para passar mais emoção ao leitor. O bom escritor pensa (reflete / rumina) sobre cadapalavra que coloca (deposita / grava) no papel. Bom trabalho!

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Fiquem de olhos abertos e ouvidos atentos...

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