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Sistemas agroflorestais como estratégia de desenvolvimento rural em diferentes biomas brasileiros* Agroforestry systems as rural development strategy in different Brazilian biomes PALUDO, Rafael¹; COSTABEBER, José Antônio² 1 Assessor Técnico Social e Ambiental na Cooperativa de Prestação de Serviços Técnicos da Reforma Agrária do Espírito Santo - COOPTRAES, São Mateus/ES, Brasil, [email protected]; 2 Docente na Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Santa Maria/RS, Brasil, [email protected]. RESUMO: Este trabalho resgata o significado do termo desenvolvimento sustentável e salienta as diferentes ideologias implícitas em duas correntes de pensamento, a ecotecnocrática ea ecossocial.A partir da análise destes enfoques de desenvolvimento, observa-se a insustentabilidade da agricultura convencional e destacam-se os princípios da Agroecologia no processo de construção de estilos de agricultura sustentável. Nessa perspectiva, aborda-se a utilização de sistemas agroflorestais como estratégia para a promoção do desenvolvimento rural sustentável. Com base na revisão bibliográfica são analisados três projetos de sistemas agroflorestais na agricultura familiar em distintos biomas brasileiros. Conclui-se que estes projetos possuem características que podem ser potencializadas enquanto alternativas de desenvolvimento, apresentando resultados positivos não apenas em relação a proteção ambiental, mas também no que diz respeito a ganhos econômico e melhorias sociais da população envolvida. PALAVRAS-CHAVE: Agricultura familiar; Agroecologia; Desenvolvimento rural. ABSTRACT: This work rescues the signification of the term sustainable development and highlights the different implicit ideologies in two streams of thought: the ecotechnocratic and the ecosocial one. From the analysis of these focus of development, it can be noticed the unsustainability of the conventional agriculture, and, however, it is outstanding the principles of the Agroecology in the construction process of the style of sustainable agriculture. This perspective approaches the agroforestry systems utilization as a strategy to the promotion of the sustainable rural development. Based on bibliographic revision, three projects about agroforestry in the family farming are analyzed, in distinct Brazilian biomes. Nevertheless, it can be concluded these projects have characteristics that may be potentiated as development alternatives showing positive results not only to environmental protection, but also concerning economic earnings and social improvements of the envolved population. KEY WORDS: Family farming; Agroecology; Rural development. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 7(2): 63-76 (2012) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 22/06/2012
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Page 1: Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de ... agroflorestais.pdfagroflorestais em distintos biomas brasileiros. Os projetos são estimulados e localizados, respectivamente,

Sistemas agroflorestais como estratégia de desenvolvimento rural em diferentesbiomas brasileiros*

Agroforestry systems as rural development strategy in different Brazilian biomes

PALUDO, Rafael¹; COSTABEBER, José Antônio²

1 Assessor Técnico Social e Ambiental na Cooperativa de Prestação de Serviços Técnicos da Reforma Agrária doEspírito Santo - COOPTRAES, São Mateus/ES, Brasil, [email protected]; 2 Docente na Universidade Federalde Santa Maria - UFSM, Santa Maria/RS, Brasil, [email protected].

RESUMO: Este trabalho resgata o significado do termo desenvolvimento sustentável e salienta asdiferentes ideologias implícitas em duas correntes de pensamento, a ecotecnocrática e a ecossocial. Apartir da análise destes enfoques de desenvolvimento, observa-se a insustentabilidade da agriculturaconvencional e destacam-se os princípios da Agroecologia no processo de construção de estilos deagricultura sustentável. Nessa perspectiva, aborda-se a utilização de sistemas agroflorestais comoestratégia para a promoção do desenvolvimento rural sustentável. Com base na revisão bibliográfica sãoanalisados três projetos de sistemas agroflorestais na agricultura familiar em distintos biomas brasileiros.Conclui-se que estes projetos possuem características que podem ser potencializadas enquantoalternativas de desenvolvimento, apresentando resultados positivos não apenas em relação a proteçãoambiental, mas também no que diz respeito a ganhos econômico e melhorias sociais da populaçãoenvolvida.

PALAVRAS-CHAVE: Agricultura familiar; Agroecologia; Desenvolvimento rural.

ABSTRACT: This work rescues the signification of the term sustainable development and highlights thedifferent implicit ideologies in two streams of thought: the ecotechnocratic and the ecosocial one. From theanalysis of these focus of development, it can be noticed the unsustainability of the conventionalagriculture, and, however, it is outstanding the principles of the Agroecology in the construction process ofthe style of sustainable agriculture. This perspective approaches the agroforestry systems utilization as astrategy to the promotion of the sustainable rural development. Based on bibliographic revision, threeprojects about agroforestry in the family farming are analyzed, in distinct Brazilian biomes. Nevertheless, itcan be concluded these projects have characteristics that may be potentiated as development alternativesshowing positive results not only to environmental protection, but also concerning economic earnings andsocial improvements of the envolved population.

KEY WORDS: Family farming; Agroecology; Rural development.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 7(2): 63-76 (2012)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 22/06/2012

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IntroduçãoA preocupação com as questões ambientais

aumentou, principalmente a partir de meados doséculo XX, pelas conseqüências sociais eambientais da industrialização e do modelo deprodução predatório dos recursos naturais, ondedesenvolvimento caracterizava-se como progressoa qualquer custo. Na década de 1970, pelapreocupação com a finitude dos recursos naturais,surge o termo desenvolvimento sustentável a partirde diversas teorias, suscitando o debate a cercada relação entre crescimento econômico epreservação ambiental. Atualmente este termo émuito utilizado por diversos setores, gerando váriasinterpretações para o conjunto de idéias ao qual serefere. Assim, observam-se duas correntesprincipais de pensamento em relação aodesenvolvimento, a corrente ecotecnocrática e acorrente ecossocial, que possuem enfoquesdiferentes sobre a sustentabilidade. Por isso, naprimeira parte deste texto abordam-se os princípiosdo conceito de desenvolvimento preconizados poressas correntes em relação à agriculturasustentável.

Na perspectiva do Desenvolvimento RuralSustentável, analisam-se ainda os caminhos dasustentabilidade a partir dos enfoques principais esuas relações com o atual modelo de produçãoagropecuária ou agricultura convencional. Nessesentido, verifica-se a necessidade de umaagricultura efetivamente sustentável, que atenda oimperativo socioambiental a partir da incorporaçãodos princípios da Agroecologia, esta entendidacomo enfoque científico orientado a promoção deagroecossistemas sustentáveis. Sabe-se ainda quealguns sistemas agroflorestais - SAFs estão seapresentando como a manifestação concreta deestilos de agricultura com maior nível desustentabilidade quando comparados com omodelo de agricultura convencional. Estessistemas constituem uma importante ferramenta nocombate à pobreza rural, segurança alimentar econservação dos recursos naturais e estão cada

vez mais presentes nos programas locais dedesenvolvimento promovidos por diferentesentidades.

Nesse contexto, o presente estudo teve porobjetivo geral abordar a utilização de sistemasagroflorestais, baseados em princípiosagroecológicos, como estratégia para a promoçãodo desenvolvimento rural sustentável naagricultura familiar. Especificamente o estudo tevecomo objetivos: a) Caracterizar o significado dotermo desenvolvimento sustentável e os principaisenfoques da sustentabilidade; b) Analisar ascondições de sustentabilidade do modelo agrícolaconvencional e a necessidade da promoção deuma agricultura sustentável; c) Caracterizar ossistemas agroflorestais e a sua relação com osprincípios da Agroecologia; e d) Analisar aspotencialidades dos sistemas agroflorestais nodesenho de agroecossistemas sustentáveis e napromoção do desenvolvimento rural.

Foram avaliadas as potencialidades dos SAFsna configuração de uma agricultura sustentável,através de revisão da literatura, de relatos e deexperiências em andamento destes sistemas deprodução na agricultura familiar. São tomadoscomo focos de estudos três projetos de sistemasagroflorestais em distintos biomas brasileiros. Osprojetos são estimulados e localizados,respectivamente, pela Associação dos PequenosAgrossilvicultores do Projeto RECA, na Amazônia,pelo Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica– CAV, no Cerrado, e pelo Centro Ecológico – CE(Litoral Norte), na Mata Atlântica.

Agricultura e desenvolvimento sustentávelO termo desenvolvimento sustentável foi

utilizado oficialmente pela primeira vez em 1979,na Assembléia Geral das Nações Unidas, sendomais tarde definido no relatório Brundtland, em1987, publicado com o nome "Our CommonFuture" (Nosso Futuro Comum). Este relatório

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apresenta o acúmulo de diversos debates entreespecialistas convocados pela ONU e nele constao conceito mais conhecido de desenvolvimentosustentável: "sustentável é o desenvolvimento quesatisfaz as necessidades presentes, semcomprometer a capacidade das gerações futurasde suprir suas próprias necessidades".

O debate sobre desenvolvimento intensificou-seno período pós-guerra, onde se afirmou ahegemonia de dois modelos “antagônicos” dedesenvolvimento que passaram a servir dereferência para diversas nações. O modelocomunista prometendo um “futuro radioso” e oindustrial capitalista prometendo um “futuroapaziguado e próspero” (ROTTA e REIS, 2007).Das controvérsias teóricas na definição eorientação para um desenvolvimento sustentável,observam-se duas correntes de pensamentodiferentes, denominadas, conforme Caporal eCostabeber (2007), de corrente ecossocial ecorrente ecotecnocrática, que possuem enfoquesdistintos sobre sustentabilidade.

A corrente ecotecnocrática segue o ideal dedesenvolvimento sustentável numa ideologialiberal onde se defende a idéia de crescimento (daprodução e do consumo) continuado. Essaproposta de crescimento para todos se tornapolêmica, pois o planeta não tem como suportaruma economia maior (com os padrões deconsumo dos países considerados desenvolvidos)em todas as nações. Nessa corrente predomina ootimismo tecnológico relacionado às capacidadesde se realizar um processo de substituição dosrecursos naturais não renováveis, evitando-se,assim, as possibilidades de colapso da natureza,sendo esta considerada como um subsistema daeconomia (COSTABEBER e CAPORAL, 2003).

A corrente ecossocial segue o ideal dedesenvolvimento sustentável através da noção deecodesenvolvimento surgido na década de 1970.Conforme Costabeber e Caporal (2003), elaassume a cautela e recomenda a prudênciatecnológica, considerando que os recursos

naturais são limitados e finitos. Mesmo com novastecnologias, a substituição dos recursos nuncapoderá ser absoluta e, ao contrário daecotecnocrática, considera a economia umsubsistema da natureza. No que diz respeito àagricultura, essa corrente se apóia naAgroecologia como ciência que apresentaprincípios, conceitos e metodologias para construiruma agricultura sustentável.

A agricultura convencionalA agricultura denominada convencional tem

suas origens nas revoluções agrícolascontemporâneas. A primeira, ocorrida entre osséculos XVIII e XIX, na Europa, e a segunda,ocorrida em meados do século XX. Estasrevoluções impuseram um novo modelo dedesenvolvimento para a agricultura (KAMIYAMA,2009). Esse modelo de modernização daagricultura mundial, baseado no princípio daintensificação através da especialização e deutilização de insumos industriais, passou a serhegemônico a partir da chamada RevoluçãoVerde, sendo atualmente referenciado comomodelo de agricultura convencional. No Brasil,esse modelo acelerou a exploração dos recursosnaturais através da difusão de um conjunto detecnologias genéricas. A adoção dos pacotestecnológicos ocorreu de forma heterogênea, sendoque as políticas públicas da época se tornaramfontes de novas desigualdades e privilégios, emtrês níveis distintos: entre regiões do país, entreatividades agropecuárias e entre produtores rurais(BALSAN, 2006).

Pode-se observar em diversos estudos (IYAMA,2005; BALSAN, 2006; CAPORAL eCOSTABEBER, 2007) que esse modelo elevouem boa medida a produção e a produtividadeagropecuária nacional, mas com graves sacrifíciossocioambientais. Mais recentemente, Caporal(2009) salienta que em 2008 o Brasil assumiu oprimeiro lugar nos gastos mundiais comagrotóxicos, alcançando o recorde de US$ 7,125

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no uso de 733,9 mil toneladas de agrotóxicos, ouseja, o país consumiu 3,9 litros de agrotóxicos porhabitante. Isso representa um grave potencial decontaminação ambiental e de danos à saúde.

Com relação aos ecossistemas naturais, cabesalientar que o modelo de monocultivos tem sidoresponsável pela perda drástica de biodiversidadeem todos os biomas, o que tem resultado na perdade espécies nativas e no risco de extinção demuitas plantas e de animais silvestres. Asimplificação também resulta num crescentedesequilíbrio ecológico, no rompimento de cadeiastróficas e na artificialização extrema das áreas deprodução (CAPORAL, 2009). Além disso, essemodelo agrícola também não contribui para asegurança alimentar, pois o objetivo principal daprodução é financeiro e está atrelado ao mercado.Dados da FAO (2009) mostram que atualmente há1.020 milhões de pessoas subnutridas no mundo,número mais elevado desde 1970, primeiro anoque se tem dados disponíveis. Claramente a fomeaumentou por causa dos altos preços, onde muitaspessoas pobres simplesmente não têm condiçõesde produzir e nem podem pagar pelos alimentosque necessitam. Tudo isso seria fruto da baixarenda e do desemprego crescente, resultado dacrise econômica global do modelo dedesenvolvimento vigente.

A perspectiva agroecológica dedesenvolvimento

Na perspectiva do Desenvolvimento RuralSustentável verifica-se a necessidade de umaagricultura que atenda as necessidadessocioeconômicas e ambientais a partir daincorporação dos princípios da Agroecologia. Estaé considerada um enfoque científico destinado aapoiar a transição dos atuais modelos dedesenvolvimento rural e de agriculturaconvencionais para estilos mais sustentáveis apartir de diversas disciplinas científicas, analisandoa atividade agrária sob uma perspectiva ecológica

(CAPORAL e COSTABEBER, 2007).Sob o enfoque agroecológico, Caporal e

Costabeber (2007) ressaltam que asustentabilidade deve ser estudada e propostacomo sendo uma busca permanente de novospontos de equilíbrio entre diferentes dimensõesque podem ser conflitivas entre si, em realidadesconcretas. Defendem que a construção dodesenvolvimento rural deve assentar-se na buscade contextos de maior sustentabilidade,observando-se que a sustentabilidade emagroecossistemas é relativa e que só poderá sercomprovada no futuro, essa busca deve seralicerçada em seis dimensões básicas inter-relacionadas, com diferentes níveis deimportância: ecológica, econômica e social (emprimeiro nível), cultural e política (em segundonível) e ética (em terceiro nível).

A Agroecologia adota o agroecossistema comounidade de análise através de uma compreensãoholística e, de maneira geral, considera umaagricultura sustentável aquela capaz de integrar osseguintes aspectos: a) baixa dependência deinsumos comerciais; b) uso de recursos renováveislocais; c) utilização dos impactos benéficos oubenignos do meio ambiente local; d) aceitaçãoe/ou tolerância das condições ambientais locais; e)manutenção da capacidade produtiva a longoprazo; f) preservação da diversidade cultural ebiológica; g) utilização e valorização doetnoconhecimento; e h) produção de mercadoriaspara o consumo interno e para a exportaçãoGliessman (2000, apud CAPORAL eCOSTABEBER, 2007).

Portanto, o processo de transiçãoagroecológica é muito complexo, tantotecnologicamente quanto metodológico eorganizacional, e depende dos objetivos e dasmetas estabelecidas, dado que a sustentabilidadeé um conceito relativo ao que não é sustentável.Neste sentido Gliessman (2000, apud CAPORAL eCOSTABEBER, 2007) distingue três níveis no

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processo de transição para agroecossistemas maissustentáveis. O primeiro nível diz respeito aoincremento da eficiência das práticasconvencionais e na redução de insumos externos,escassos e daninhos ao meio ambiente. Osegundo nível da transição se refere à substituiçãode insumos e práticas convencionais por práticasalternativas. Procura-se a substituição de insumose práticas intensivas em capital, contaminantes edegradadoras do meio ambiente por outrasbenignas sob o ponto de vista ecológico. O terceironível da transição refere-se à fase de redesenhodos agroecossistemas, para que estes funcionemcom base em um novo conjunto de processosecológicos. É mais complexo e considera-seindispensável para se alcançar a sustentabilidade.

Assim, observa-se que é fundamental que abusca da sustentabilidade seja estabelecidamediante estratégias de transição agroecológica, eesta não se resume simplesmente em realizar asubstituição de insumos ou a diminuição do uso deagrotóxicos. Nesse contexto, sabe-se que algunssistemas agroflorestais, prática bastante antiga e jáutilizada pelos indígenas, estão se apresentandocomo a manifestação concreta de estilos deagricultura com maior nível de sustentabilidadequando comparados com o modelo de agriculturaconvencional. Por isso, podem contribuir noprocesso de transição agroecológica e noredesenho de agroecossistemas.

Os sistemas agroflorestaisOs sistemas agroflorestais - SAFs são sistemas

de produção agrícola que consorciam espéciesflorestais (frutíferas e/ou madeireiras) com cultivosagrícolas e em alguns casos também animais, namesma área e numa sequência temporal. O CentroMundial Agroflorestal (The World AgroforestryCentre –http://www.worldagroforestry.org/af/index.php)possui uma definição simples e abrangente,

definindo SAFs como a integração de árvores empaisagens rurais produtivas, salientando aimportância das árvores, tanto nos sistemas deprodução como nas paisagens.

Sua principal caracterização é realizadaconforme os aspectos funcionais e estruturais,sendo diferenciadas três categorias básicas: ossistemas silviagrícolas (combinação de uma oumais espécies florestais com culturas agrícolasanuais ou perenes); os sistemas silvipastoris(combinação de pastagens e animais com uma oumais espécies arbóreas); e os sistemasagrossilvipastoris (associação de animais,geralmente de pequeno porte, com cultivosagrícolas e árvores ou arbustos em uma mesmaárea).

Através dos SAFs criam-se diferentes estratosou andares vegetais, procurando imitar umafloresta natural, onde as árvores e/ou arbustos,pela influência que exercem no processo deciclagem de nutrientes e no aproveitamento daenergia solar são considerados os elementosestruturais básicos e principais para a estabilidadedo sistema. Os SAFs, observando-se os princípiosagroecológicos, têm por objetivo harmonizar osagroecossistemas com os processos dinâmicosdos ecossistemas naturais, buscando-se assim, ooposto da agricultura moderna, na qual o homemtenta adaptar plantas e ecossistemas àsnecessidades da tecnologia. Conforme Noronha(2008) e May e Trovatto (2008) estes sistemas têmdemonstrado enorme potencial para produzirsustentavelmente grande diversidade vegetal e atéanimal. Assim, através dos SAFs obtém-se umaimportante ferramenta para a agricultura familiarno combate à pobreza rural, na garantia dasegurança alimentar e na conservação dosrecursos naturais.

Caracterização de três experiências comsistemas agroflorestais na agricultura familiar

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Na agricultura familiar observa-se umacrescente demanda por alternativas compatíveiscom a diversidade dos ecossistemas locais e comos sistemas culturais que levem em conta asdimensões econômica, ambiental e socioculturalda sustentabilidade. Os sistemas agroflorestais,adotados por agricultores familiares brasileiros eassistidos por organizações de assistência técnicarural, são geralmente implantados buscando-se ainteração com os princípios da Agroecologia,potencializando a transição de modelos simplespara propostas complexas através de estratégiasparticipativas, conforme a situação local. Dentreessas experiências, muitas refletem uma tendênciaà transição agroecológica, desde a diminuição esubstituição de insumos ao redesenho de suaspropriedades através dos SAFs, respeitando ascondições do ecossistema (MAY e TROVATTO,2008).

Para se verificar as potencialidades dos SAFsna configuração de agroecossistemas sustentáveise na promoção do desenvolvimento rural, sãoanalisadas através de revisão da literatura, trêsexperiências em diferentes regiões brasileiras, comvistas a se observar as potencialidades dos SAFsnesses ecossistemas. Essas experiências iniciaramcom a atuação de entidades civis organizadas como objetivo comum de buscar uma agricultura maissustentável e de base ecológica, em alternativaaos impactos negativos da agriculturaconvencional. Os projetos selecionados para oestudo são experiências que se destacam em seusbiomas, estimulados por entidades promotoras dodesenvolvimento sustentável, como a Associaçãodos Pequenos Agrossilvicultores do Projeto RECA,na Amazônia, o Centro de Agricultura AlternativaVicente Nica – CAV, no Cerrado, e o CentroEcológico - CE (Litoral Norte), na Mata Atlântica.

Associação dos Pequenos Agrossilvicultores doProjeto RECA

A Associação dos Pequenos Agrossilvicultoresdo Projeto Reflorestamento EconômicoConsorciado Adensado - RECA(http://www.clab.it/gc/reca) surgiu em 1987, criadapor famílias remanescentes de um assentamentode reforma agrária realizado pelo INCRA, em1984, na cidade de Nova Califórnia, situada nadivisa dos Estados do Acre e de Rondônia. Noassentamento haviam inicialmente 700 famíliasoriundas de diversas regiões do país, ondedecidiram cultivar arroz, feijão, milho, café e outrasculturas, baseados na agricultura tradicional e nospacotes da revolução verde (REBRAF, 2005a).

Devido às dificuldades e limitações, tais comovários surtos de malária, falta de assistênciatécnica, inexistência de linhas de créditocompatíveis com a sua realidade e dificuldade deacesso ao mercado, passaram a migrar. Osagricultores que resistiram às dificuldades,aproximadamente 80 famílias, resolveramorganizar uma associação para facilitar a busca derecursos para melhorar a produção e viabilizar oescoamento dos produtos. Diante da degradaçãocausada pelo modelo agrícola utilizado,verificaram a necessidade de trabalhar complantas da região e de preservar a floresta (SÁ etal., 1998; REBRAF, 2005a). Mediante a troca deexperiências com os seringueiros e populaçõestradicionais, resolveram implantar SAFsempiricamente, de forma consorciada pararecuperar as capoeiras, evitar as queimadas ebuscar a integração com o ambiente da FlorestaAmazônica para uma produção mais sustentável.Em 1989, com o apoio de uma agênciafinanciadora da Holanda, a Cebemo, que seinteressou em apoiar o projeto, passou a serdenominado de Reflorestamento EconômicoConsorciado e Adensado – RECA.

Através da iniciativa do projeto foramimplantadas centenas de hectares de SAFs entreos anos de 1988 e 1994, constituídos basicamente

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pela associação de quatro espécies perenes:pupunheira (Bactris gasipaes), cupuaçuzeiro(Theobroma grandiflorum), castanha-do-brasil(Bertholletia excelsa) e café (Coffea canephora).Entre os anos de 1996 e 2002, implantaramtambém SAFs constituídos pela associação decafé, espécies florestais e pupunha para produçãode palmito, em vários espaçamento e arranjos.

No início do projeto, a associação só possuíauma balança, uma seladora, um freezer e duastesouras para despolpar as frutas. Em virtude doaumento da produção com os SAFs, em 1993,implantaram uma fábrica de processamento decupuaçu para beneficiar a polpa e também asemente, extrair o óleo e fazer chocolate(REBRAF, 2005a). Em 1995 começaram acomercializar a semente de pupunha, por ser maissimples de beneficiar e mais rentável. A partir de1999, passaram a vender sementes certificadas,fiscalizadas com acompanhamento técnico e comcertificado de garantia. Iniciaram também aprodução artesanal do palmito de pupunha epassaram a exportar palmito para a França, emparceria com a Associação dos ProdutoresAlternativos (APA Ouro Preto d’oeste/RO).

Os sistemas agroflorestais apresentaram algunsproblemas após sete anos de implantação. Osagricultores constataram uma queda daprodutividade e um aumento da ocorrência depragas e doenças, sendo a broca-do-fruto docupuaçu a principal, encontrando-se bastantedisseminada. Esses problemas foram consideradosrelacionados ao mau manejo do cupuaçu, a baixafertilidade natural dos solos, principalmente nosteores de potássio e pela pupunheira causarefeitos negativos na produção e desenvolvimentodo cupuaçuzeiro (LUNZ e MELO, 1998).

Sá et al. (2008), analisando a rentabilidadefinanceira de um modelo de SAF do projeto RECA,considerando um período de 18 anos e com taxade juros de 6% ao ano, demonstraram haverviabilidade econômica, obtendo um valor presente

líquido de R$ 12.714,05, uma relação benefíciocusto de 1,27 e remuneração da mão-de-obrafamiliar diária de R$ 43,00 (a oportunidade daregião era de R$ 23,00 ao dia). Isso demonstra aviabilidade econômica dos SAFs praticados,contribuindo assim para a capitalização dasfamílias e para melhorar a infraestrutura daassociação. Através de recursos geridos peloprojeto, a associação adquiriu um terreno narodovia BR-364 para instalação de uma indústriade beneficiamento dos produtos, a sede daassociação e um centro de difusão de tecnologias.

Uma importante estratégia do projeto RECA é adiversificação da produção, possibilitada pelosSAFs, evitando assim uma crise produtiva ou demercado. Lunz (2007), avaliando os SAFs doRECA, verificou que, das espécies identificadas,52% têm algum uso medicinal. O grande potencialdas frutíferas na melhoria da alimentação e notratamento de muitas doenças é de sumaimportância para comunidade, devido à baixaassistência médica na região e aos altos preçosdos medicamentos industrializados. Além doconsumo e de uma pequena exportação, a maiorparte dos produtos é vendida para distribuidorasnacionais, sobretudo para o nordeste e centro-oeste do país, sendo o restante direcionado aomercado local. Todos os produtos têm registrojunto ao MAPA, ao IBAMA e a ANVISA - AgênciaNacional de Vigilância Sanitária (REBRAF,2005b).

São os próprios agrossilvicultores osadministradores do projeto RECA, buscandotambém promover a expansão da experiência dosSAFs para outros agricultores. Os sócios do RECAvendem seus produtos a um preço previamentefixado em Assembléia e a associação processa ecomercializa os produtos finais. Uma vez ao ano aAssembléia é informada sobre o resultadofinanceiro e o lucro é distribuídoproporcionalmente à quantidade vendida e ossócios que trabalham no processamento são

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remunerados.Segundo Carvalho et al (2008), as áreas com

SAFs do projeto RECA passaram a serdenominadas pelos produtores como "Florestas deAlimentos", pois possibilitam renda e alimentaçãodiversificada a sua comunidade, valorizando apropriedade e evitando a degradação ambiental.Também os agricultores passaram a seautodenominar agrossilvicultores, incorporandonovos valores, mudando sua postura ao falar, agire trabalhar, respeitando a floresta Amazônica.

Pelas atividades desenvolvidas no sentido deproduzir respeitando a natureza, o projeto RECA,em 2007, recebeu o 12º Prêmio Ford deConservação Ambiental, na categoria “Negóciosde Conservação”, com premiação de R$ 23 mil àcomunidade. Outro prêmio, de US$ 10 mil, foiconferido pela Organização das Nações Unidas(ONU/Cepal) e W.K. Kellogg Foundation, relativoao 4º Lugar dentre mais de duas mil experiênciasda América Latina. O RECA também recebeu osegundo lugar no Prêmio Chico Mendes deConservação Ambiental (XANGAI, 2007).

Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica –CAV

O Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica– CAV (http://cavjequi.org/index.php) é umaorganização não governamental, com sede emTurmalina – MG, na região do alto vale doJequitinhonha. Foi fundado em 1994, tendo comoorigem o Sindicato de Trabalhadores Rurais deTurmalina.

Conforme Pereira et al. (2007), a partir de 1970o Estado passou a fornecer grandes incentivos àsempresas eucaliptocultoras para promover odesenvolvimento na região do vale Jequitinhonha.Foram grandes investimentos para o monocultivode eucalipto nas áreas de chapada, restringindo ouso tradicional para a criação de gado. Pelascondições de acesso a terra e às técnicas de uso,as comunidades entraram em conflito com esta

nova proposta de desenvolvimento. Depois de trêsdécadas da eucaliptocultura nas áreas dechapada, os agricultores ficaram limitados àsáreas dos vales, aumentando a pressão sobreessas terras.

A concentração de terra passou a serfundamento da dominação e da exploração,provocando, além de sérios impactos sociaisnegativos, processos de desagregação ecológica.Com isso, as comunidades de agricultoresfamiliares tiveram que restringir suas áreas de usoprodutivo, forçando um aumento constante naexploração dos recursos naturais (NORONHA,2008). Estes fatores, somados à técnica tradicionalde cultivo da região na época, caracterizada pelaqueima de restos culturais e excessivas capinasdo solo por cultivo, às característicaspedogenéticas e ao relevo extremamentedeclivoso levaram a um intenso desgaste do solo,tornando-o, em muitos casos, inviável ao cultivotradicional.

Os grandes projetos desenvolvimentistas naregião do vale do Jequitinhonha criaram umcenário de exclusão, sejam eles de ordemambiental, social, cultural e econômica(NORONHA, 2008). Assim, conforme o Centro deAgricultura Alternativa Vicente Nica, sua criaçãofundamenta-se na busca, junto aos produtoresfamiliares da região, de uma proposta deagricultura que garanta a sobrevivência, respeiteos costumes locais e o meio ambiente. Esta buscado construir junto baseia-se no método propostopor Paulo Freire: ver, julgar e agir. Ou seja,analisar com a comunidade, a partir da visão queas próprias pessoas têm do mundo e de seuespaço, para perceber seus compromissos, suasresponsabilidades e seus direitos.

As áreas experimentais de SAFs sãoimplantadas nas unidades de produção deagricultores conhecidos como monitores, sendoestes pesquisadores e multiplicadores dosbenefícios dos SAFs, e responsáveis pelo trabalho

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de educação ambiental nas comunidades rurais.Os SAFs propostos priorizam a produção dealimentos e produtos agroflorestais, procurandoimitar ao máximo a natureza combinando diversostipos de plantas num consórcio diversificado eadensado, sem uso de produtos químicos eprotegendo a terra com a produção de adubosnaturais e cobertura a partir das próprias plantascultivadas neste consórcio. Os sistemas nãopossuem um modelo específico, os agricultorespela observação e experimentação, aplicam osprincípios agroecológicos da técnica e assim a vãomodelando conforme as condições ambientais e asnecessidades de suas famílias (NORONHA, 2008).

Através do CAV, observa-se que a maioria dasfamílias adota os SAFs e práticas ecológicas emseus agroecossistemas. Teodoro e Ribeiro (2007),entrevistando os agricultores da região, evidenciamos resultados do trabalho dos monitores comomultiplicadores de práticas sustentáveis de uso daterra. Das famílias entrevistadas, 20% nãoadotaram nenhuma prática, 22,5% adotaram umtipo de prática, 52,5% adotaram mais de um tipo e5% não responderam. Os resultados confirmam adisseminação de algumas práticas agroflorestais,assim como uma adaptação dessas práticas porparte dos agricultores conforme a sua relaçãohistórica com a terra e o conhecimento tradicionaladquirido ao longo dos anos de observação. Assise Ribeiro (2007) afirmam que os agricultoresengajados na proposta foram se capacitandocoletivamente e se responsabilizando em montar,na própria comunidade, áreas dedicadas àexperimentação, aperfeiçoamento e demonstraçãoda eficácia dos SAFs. Também observam que asdesvantagens dos SAFs na demora de produção ea baixa produtividade específica em relação aocultivo intensivo são obstáculos para a suaaceitação em larga escala na região.

Os SAFs são manejados com finsdiversificados, onde os principais usos daprodução são: alimentação humana e de outros

animais, cobertura do solo, adubo, lenha, madeira(para construção ou ferramentas), medicinal,amarrio, indicadoras de qualidade do solo,corantes, artesanato e outras substâncias usadaspara limpar a garapa (NORONHA, 2008). Issodemonstra o conhecimento dos agricultores sobreo manejo dos agroecossistemas para a satisfaçãode suas necessidades de forma sustentável.Conforme Pereira et al. (2007), a implantação desistemas agroflorestais se mostrou viável para arecuperação e o cultivo das áreas dos vales queanteriormente estavam degradados, poispromoveram, além do aumento do teor de matériaorgânica do solo, a reestruturação e recuperaçãodos solos degradados, possibilitando o retorno douso de terras antes inviáveis para o cultivo. Outroaspecto importante é que os agricultores, ao fugirda proposta de agricultura industrial modernizadae se identificar com a agricultura local através dasiniciativas de difusão dos SAFs pelo CAV,passaram a refletir sobre novos temas,principalmente sobre organização social, meioambiente e uso coletivo das chapadas. Ou seja,esse processo permitiu que a reflexão fosse alémdo aspecto exclusivamente agrícola paraidentificar outros fatores que influenciam nasmudanças produtivas, ambientais e sociaisobservadas na região (ASSIS e RIBEIRO, 2007).

Os resultados com os SAFs na regiãopermitiram ao CAV desenvolver outras ações,como projetos de conservação da água e dasnascentes, melhoria dos produtos locais ecomercialização coletiva, estimulando osmercados locais. Esses trabalhos abriram caminhopara a participação das famílias em programaspúblicos como os Territórios, do Ministério doDesenvolvimento Agrário (MDA), o Programa UmMilhão de Cisternas Rurais (P1MC), os Consórciosde Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local(CONSADS), programas de educação rural. Aessas atividades se juntam reflexões sobre o papelda mulher na agricultura, o modelo de extensão

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rural que os agricultores desejam e a busca dealternativas técnicas e políticas para o semi-árido(ASSIS e RIBEIRO, 2007).

Centro Ecológico (Litoral Norte)Na década de 1980, diante dos impactos

socioambientais negativos da Revolução Verde e aretomada das lutas sociais no campo, criou-se noRio Grande do Sul um cenário para o surgimentode organizações que buscavam uma nova formade desenvolvimento no meio rural. Neste contexto,em 1985, surge o Projeto Vacaria em umapropriedade rural de 70 hectares no município deVacaria/RS, para demonstrar a viabilidade técnicae econômica da Agricultura Ecológica. Já no finaldos anos oitenta e início dos noventa, com o apoioda Comissão Pastoral da Terra, o projeto começoua trabalhar com agricultores familiares da Regiãode Torres, passando assim a atuar em duasregiões distintas do Estado, a Serra e o LitoralNorte (GONÇALVES, 2002). Em 1991, o projetoVacaria passou a se denominar Centro deAgricultura Ecológica Ipê (CAE - Ipê), mudando ofoco de atuação da unidade de produção daentidade para o acompanhamento às Associaçõesde Agricultores Ecologistas.

Em 1997, o CAE - Ipê passa a atuar além daprodução, buscando a ecologização dapropriedade como um todo, desde as pessoasenvolvidas à suas relações sociais. Nesse período,o CAE - Ipê passa a denominar-se CentroEcológico – CE(http://www.centroecologico.org.br/index.php) eenvolve-se também na formação de Cooperativasde Consumidores de Produtos Ecológicos, naSerra e no Litoral Norte do Rio Grande do Sul,considerando que uma participação ativa dosconsumidores é imprescindível para odesenvolvimento da Agricultura Ecológica.

Conforme Gonçalves (2002), na região doLitoral Norte do RS, bananais eram implantados e

manejados através do sistema de roça e queimamantendo o solo permanentemente limpo com ouso de herbicidas e realizando-se a aplicação defungicidas no controle de doenças. Estas práticastrouxeram várias conseqüências negativas, comoerosão e perda da fertilidade dos solos, aumentode pragas e doenças e diminuição dabiodiversidade. Além dos problemas causadospelo sistema de produção, os agricultores aindaenfrentavam problemas na comercialização e noescoamento da produção, o que gerava umprocesso de descapitalização das propriedades edegradação dos recursos naturais, contribuindopara o êxodo rural.

Como a maioria dos produtores da região tem abanana como seu cultivo principal, o CE resolveupromover uma ecologização progressiva destesbananais. No sentido de permitir a recuperação dacapacidade produtiva e dos elementos dapaisagem nativa, são propostos SAFs dinâmicos,procurando imitar o ecossistema local promovendoa regeneração natural das espécies da MataAtlântica. O manejo dos bananais baseia-se naobservação do ecossistema natural para planejar aintervenção, que deve ser a mínima possível erespeitar a arquitetura vegetal original, procurando,mesmo com a utilização de espécies exóticas,desempenhar funções semelhantes às espéciesnativas (MEIRELLES, 2003). Gonçalves (2009)afirma que alguns SAFs chegam a ter mais de 30espécies nativas típicas, sendo algumasameaçadas de extinção, como a canela-sassafrás(Ocotea odorifera) e o palmiteiro (Euterpe edulis).

Esta grande variedade de espécies no sistemao torna mais equilibrado e mais resistente aoataque de doenças e as intempéries. Comoexemplo, em 2004, a região foi afetada por umciclone extratropical com ventos de até 180 km/h,causando grandes estragos na produtividadeagrícola da região. Já os bananais dos agricultoresque manejam SAFs, quase não sofreram com os

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fortes ventos, não afetando os bananais dessasfamílias (GONÇALVES, 2009). O mesmo autorainda destaca que os SAFs fixam 50 toneladas decarbono por hectare a mais do que os bananaisem monocultura. Portanto, os SAFs desempenhamum importante papel no seqüestro de carbonoatmosférico, contribuindo para a diminuição dascausas do aquecimento global.

Os SAFs, pelo consórcio com outras espécies esombreamento gerado, apresentam altaresistência à infestação de doenças como asigatoka, doença que causa sérios problemas nabananicultura e foi a solução para as infestaçõesna região (BERTAZZO, 2007). Além da sanidade ede produzir com menor impacto ambiental, osSAFs também estão se mostrando viáveiseconomicamente. Wives (2008), analisando ossistemas de produção da região, observou queestes sistemas apresentam uma eficiência técnicae produtiva específica menor que os sistemasconvencionais, mas uma maior produtividademédia por área cultivada, além de melhorar arelação entre os recursos financeiros, os fatores deprodução e a articulação com os canais decomercialização. O estudo ainda demonstra queos sistemas convencionais apresentam uma taxamédia de lucro de 21,6% ao ano, enquanto osSAFs de base ecológica geraram uma taxa delucro de 44,6% ao ano.

Através das ações do Centro Ecológico,criaram-se várias associações de agricultores paraviabilizar a proposta da agricultura ecológica ecriar mercado para os produtos orgânicos.Conforme Bertazzo (2007), existem váriasassociações na região com experiências nossistemas agroflorestais, envolvendo mais de 52famílias. Observa-se, então, que os sistemasagroflorestais de base ecológica da região doLitoral Norte do RS também estão ligados àspráticas locais, à cultura e à paisagem doecossistema natural.

Considerações finaisA noção inicial de desenvolvimento, que

conotava a idéia de progresso, entrou em crisepelas conseqüências sociais e ambientais daindustrialização e dos processos exploratórios dosrecursos naturais gerados pelo modelo. Existem,atualmente, conceitos ambíguos dedesenvolvimento sustentável, formulados pordiferentes correntes de pensamento. Aecotecnocrática, voltada para o otimismotecnológico e econômico, segue o ideal deprogresso e lógica liberal que vem acentuando acrise socioeconômica e ecológica da agricultura.Já a ecossocial busca mudanças estruturais dasociedade e a incorporação da noção desolidariedade entre as presentes gerações edestas com as futuras.

A agricultura convencional mostra-seclaramente insustentável e os modelos dedesenvolvimento que seguem a mesma lógica nãosão sustentáveis. Assim, percebe-se que odesenvolvimento rural deve ser orientado nabusca de pontos de equilíbrio entre as diferentesdimensões (social, econômica, ecológica, cultural,política e ética), na transição para agriculturasmais sustentáveis a partir dos princípios daAgroecologia. Os sistemas agroflorestaisapresentam grande potencial para atender a essesrequisitos quando incorporam os princípiosagroecológicos, conforme observado nos projetosem andamento com os agricultores familiares.

Como se pode observar a partir das fontesbibliográficas consultadas em relação aos trêsprojetos de implantação de sistemasagroflorestais, a transição do modelo de produçãoconvencional para um mais ecológico e a buscade um redesenho de agroecossistema através dosSAFs vêm contribuindo para a fixação dosagricultores no campo nas diferentes regiões,resgatando a auto-estima das famílias e

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incentivando o espírito associativo entre osagricultores locais. Também, estão se mostrandoviáveis econômica, ecológica e socialmente namaioria dos sistemas adotados nos projetos,trazendo renda para as famílias, recuperando acapacidade produtiva dos agroecossistemas edespertando uma maior conscientização entre osagricultores na sua relação com a natureza e asociedade como um todo.

Problemas de sanidade e de produtividade,observados em SAFs do projeto RECA,evidenciam as dificuldades de manejo quando osagricultores não conhecem a dinâmica e oconsórcio das espécies locais e priorizam ascomerciais, diminuindo a biodiversidade dosistema. Por isso, os SAFs devem ser implantadose manejados conforme o conhecimento dosagricultores e preferencialmente com espécieslocalmente disponíveis. Observa-se que os SAFsecológicos analisados, além de causar menosimpactos e não poluir o ambiente, compõemagroecossistemas mais estáveis e suportammelhor as intempéries quando comparados comestilos de produção que seguem o modeloagrícola convencional. Portanto, tem o potencial decontribuir na diminuição das alterações climáticasque estão ocorrendo no planeta, e também desuportá-las, mantendo sua capacidade produtiva.

Os projetos com sistemas agroflorestais nostrês biomas, de maneira geral, demonstraramcaracterísticas que podem ser potencializadasenquanto alternativas de desenvolvimento local eapresentam resultados que tendem a um padrãode desenvolvimento sustentável, não apenas emrelação ao meio ambiente, mas também sob ospontos de vista econômico e social. Por fim,salienta-se que a ação extensionista das entidadesfoi fundamental para as mudanças nos sistemasprodutivos e nos resultados alcançados, o que nosremete à importância e necessidade de maispesquisas em SAFs pelas universidades

(principalmente na área das Ciências Agrárias) ede uma maior promoção desses sistemas pelasmesmas.

De todos os modos, considerando que essetrabalho de pesquisa se limitou a abordar asexperiências em curso a partir da revisão daliteratura disponível, sugere-se que estudosfuturos possam fazer observações da realidadeconcreta vivida pelas famílias de agricultores,comunidades rurais e agentes dedesenvolvimento, com vistas a investigar commaior profundidade os avanços e limites dossistemas agroflorestais na melhoria da qualidadede vida e na promoção do desenvolvimento ruralcom maior sustentabilidade.

Notas* Artigo elaborado com base no Trabalho de

Conclusão de Curso de Engenharia Florestal doprimeiro autor na Universidade Federal de SantaMaria/RS.

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