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Revista GEMInIS | ano 5 | n. 1 | v. 1 • jan./jun. 2014

Date post: 06-Apr-2016
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A equipe editorial da Revista GEMInIS tem a satisfação de apresentar a comunidade acadêmica e ao público em geral a sua oitava edição, especialmente composta por dois volumes com pesquisas voltadas aos estudos da televisão. O volume I, elaborado em parceria com a Revista Lumina (Facom-UFJF) 1 – editada por Grabiela Borges, e o seminário temático Televisão: Formas Audiovisuais de Ficção e Documentário – coordenado por Renato Luiz Pucci Jr., Miriam de Souza Rossini e Gilberto Alexandre Sobrinho, traz a primeira parte de uma série com a publicação dos trabalhos apresentados e debatidos nas sessões do seminário durante o XVII Encontro Internacional da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), realizado na Universidade do Sul de Santa Catarina, em outubro de 2013.
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ExpEdiEntE

Revista GEMInIS | ano 5 | n. 1 | v. 1 • jan./jun. 2014Universidade Federal de São Carlos

ISSN: 2179-1465www.revistageminis.ufscar.br

[email protected]

Poítica Editorial

Editor ResponsávelJoão Carlos Massarolo

Universidade Federal de São Carlos - UFSCarCo-editora Temática

Gabriela BorgesUniversidade Federal de Juiz de Fora - UFJF

Editor ExecutivoDario Mesquita

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

Conselho Editorial (Copo de Pareceristas):André Lemos

Universidade Federal da Bahia – UFBAAntônio Carlos Amâncio

Universidade Federal Fluminense – UFFArthur Autran

Universidade Federal de São Carlos - UFSCarCarlos A. Scolari

Universitat Pompeu Fabra – EspanhaBruno Campanella

Universidade Federal Fluminense – UFFDerek Johnson

University of North Texas – Estados UnidosErick Felinto

Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJFrancisco Belda

Universidade Estadual Paulista - UNESPGilberto Alexandre Sobrinho

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMPHéctor Navarro Güere

Universidade de Vic – EspanhaHermes Renato Hildebrand

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMPJoão de Lima Gomes

Universidade Federal da Paraíba - UFPBMarcos “Tuca” Américo

Universidade Estadual Paulista - UNESPMaria Immacolata Vassalo Lopes

Universidade de São Paulo - USPMaria Dora Mourão

Universidade de São Paulo - USPPedro Nunes Filhos

Universidade Federal da Paraíba - UFPBPedro Varoni de Carvalho

Laboratório de Estudos do Discurso (Labor) - UFSCarRuth S. Contreras Espinosa

Universidade de Vic – EspanhaSheron Neves

Escola Superior de Publicidade e Marketing - ESPM

Capa OriginalGi Milanetto

DiagramaçãoRenan Alcantara

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Su m á rio

Apresentação.................................................................................................................................................. 4

doSSiê ESpEcial - tElEviSão: FormaS audioviSuaiS dE Ficção E documEntário

A lógica da composição estilística de Avenida BrasilRenato Pucci ................................................................................................................................. 5

As marcas televisivas na atual produção cinematográfica brasileiraMiriam de Souza Rossini ....................................................................................................... 19

Inovações estéticas na TV: a travessia sertão-Ilhéus de GabrielaSimone Maria Rocha ................................................................................................................ 34

Opções de dramaturgia e encenação no programa infantil Teatro Rá Tim Bum!Gabriela Borges ......................................................................................................................... 56

Tufão e a literatura. Parte da trama ou estratégia para a construção da personagem?

Maria Ignês Carlos Magno ................................................................................................... 71

EL 23 F: Análise de uma minissérieFlavio Pereira ............................................................................................................................... 86

Neotevê: Marcas da Metalinguagem no BrasilCarla Simone Doyle Torres .................................................................................................... 96

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ap rESE nta çã o

A equipe editorial da Revista GEMInIS tem a satisfação de apresentar a comu-

nidade acadêmica e ao público em geral a sua oitava edição, especialmente

composta por dois volumes com pesquisas voltadas aos estudos da televi-

são. O volume I, elaborado em parceria com a Revista Lumina (Facom-UFJF)1 – editada

por Grabiela Borges, e o seminário temático Televisão: Formas Audiovisuais de Ficção e Do-

cumentário – coordenado por Renato Luiz Pucci Jr., Miriam de Souza Rossini e Gilberto

Alexandre Sobrinho, traz a primeira parte de uma série com a publicação dos trabalhos

apresentados e debatidos nas sessões do seminário durante o XVII Encontro Internacio-

nal da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual), realizado

na Universidade do Sul de Santa Catarina, em outubro de 2013.Os artigos reunidos neste dossiê abordam por diferentes perspectivas a pro-

dução audiovisual para a televisão: o pesquisador Renato Pucci (UAM) analisa, a partir de um referencial teórico cognitivista, como a telenovela Avenida Brasil (Rede Globo, 2012) combina diferentes elementos estilísticos na composição de cenas de conflito dra-mático; Miriam de Souza Rossini (UFRGS) discute as marcas televisivas na atual pro-dução cinematográfica brasileira, a partir da série Se eu fosse você 1 (2006) e 2 (2008) de Daniel Filho ; Simone Maria Rocha (UFMG) discute a composição visual e as inovações estilísticas presentes na telenovela Gabriela (Rede Globo, 2012), a fim de evidenciar seus aspectos históricos, culturais, tecnológicos e estéticos; Gabriela Borges (UFJF) aborda a questão da qualidade dos programas infantis a partir da análise do episódio João e Maria do programa Teatro Rá Tim Bum! (TV Rá-Tim-Bum, 2005-2006); Maria Ignês Carlos Magno propõe um estudo do personagem Tufão, da telenovela Avenida Brasil (Rede Glo-bo, 2012), e sua relação com literatura introduzida na trama, buscando compreender se a inserção da literatura é apenas parte da trama ou uma estratégia para a construção da personagem; Flavio Pereira (Unioeste) analisa a minissérie 23-F: El Día Más Difícil del Rey (RTVE, 2009), que aborda a tentativa de golpe militar que marcou o fim da transição do franquismo para a democracia na Espanha em 23 de fevereiro de 1981; e Carla Simone Doyle Torres (UFRGS) apresenta um mapeamento sobre programas de diferentes emis-

1 Disponível em: http://www.ufjf.br/facom/multimidia/lumina/

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soras da televisão brasileira, a fim de investigar as transformações das características relacionadas à metalinguagem ao longo deste período, partindo do conceito de Neote-vê, proposto nos anos 80 por Eco (1986) e Casetti e Odin (2012).

Já o volume II desta edição, traz o dossiê Televisão e Convergências, que compre-ende reflexões a respeito da produção televisiva e sua relação com o ambiente contem-porâneo de convergência das mídias: Carlos Eduardo Marquioni (UTP), aborda a Segunda Tela como um novo modo de ver TV, e apresenta o ambiente de software utilizado durante 2013 pelo Jornal da Cultura como uma alternativa das emissoras para controlar essa nova experiência televisual; Brenda Parmeggiani (UnB) analisa os fãs e as estraté-gias de participação do público através das redes sociais utilizadas pelos produtores do programa The Voice; Issaf Karhawi (USP) investiga o uso de blogs de personagens na construção de narrativas televisivas transmídia, tomando como foco de estudo o blog de André Newmann, personagem principal da minissérie Afinal o que querem as mu-lheres (GLOBO, 2010); Paula Cecília de Miranda (UNESP) e Ana Silvia Lopes Davi Médola (UNESP) abordam a possibilidade de participação do receptor na produção do conte-údo televisivo intermediada por redes sociais online, demonstrando como a televisão pode aproveitar as particularidades da interação entre as mídias sociais e a televisão podem promover a criação de conteúdo colaborativo; João Baptista Winck Filho (UNESP) e Leire Mara Bevilaqua (UNESP) discutem as principais características da televisão digi-tal e como elas desencadeiam novas demandas na produção de conteúdo para múltiplas plataformas digitais, a fim de estimular a participação do telespectador.

Além dos temas centrais que fazem parte dos dois volumes deste número, gos-taríamos de destacar os artigos que foram reunidos especialmente para o segundo vo-lume, nas seções da revista: “Abordagens Multiplataformas” e “Espaço Convergente”.

Esta edição está nas nuvens graças ao trabalho generoso e árduo realizado pela Equipe de Editores e pelos parceiros da Revista Lumina (Facom-UFJF) e do seminário temático Televisão: Formas Audiovisuais de Ficção e Documentário. O agradecimento é ex-tensivo a todos os autores que participaram deste número e também aos pareceristas e colaboradores pela leitura atenta e minuciosa, ajudando-nos na seleção dos artigos a serem publicados.

A equipe editorial deseja a todos uma boa leitura!

João Massarolo – Editor Responsável

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Revista GeMinis ano 5 - n. 1 - v. 1 | p. 05-18

a lóGica da coMposição estilística de avenida BRasil

Renato luiz pucci JR.Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2003), autor dos livros Cinema Brasileiro Pós-moderno: o Neon-realismo (Sulina, 2008) e O Equilíbrio das Estrelas: Filosofia e Imagem no Cinema de Walter Hugo Khouri (Annablume, 2001). É docente do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, na cidade de São Paulo. Pertence à linha de pesquisa Análises de Produtos Audiovisuais. Líder do grupo de pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira. Desde 2010, é coordenador do seminário temático Televisão: Formas Audiovisuais de Ficção e Documentário, na Socine - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual.E-mail: [email protected]

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ResuMo

A telenovela Avenida Brasil (Rede Globo, 2012) combina os mais tradicionais elementos melodramáticos com uma sofisticada composição estilística em cenas de conflito dramático. O referencial teórico cog-nitivista orienta a análise audiovisual com o objetivo de apontar a lógica que possibilita a realização de um produto de longa duração com uma profusão de cenas consideradas inviáveis no meio televisivo até poucos anos atrás.

Palavras-chave: Televisão brasileira; telenovela; estilo; cognitivismo.

aBstRact

The telenovela Avenida Brasil (Globo Network, 2012) combines the most traditional melodramatic ele-ments and a sophisticated stylistic composition in scenes of dramatic conflits. The cognitive theoretical framework guides the audiovisuel analysis with the objetive of identifying the logic that allows the realization of a long-lasting product with a profusion of scenes considered unviable in the television medium until a few years ago.

Keywords: Brazilian television; telenovela; style; cognitivism.

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Introdução

A telenovela Avenida Brasil (Globo, 2012) possui elementos que remontam a épocas passadas. Basta esboçar uma sinopse para que se ressaltem traços melodramáticos cuja origem está no teatro francês das primeiras décadas do

século XIX, tal como descrito por Peter Brooks: 1. Violação e espoliação do espaço da inocência: a menina Rita jogada no lixão por Carminha (BROOKS, 1976, p. 30);2. A vilã a enganar aqueles que, como a mãe de Tufão, por pertencer à geração mais velha, deveriam ser os protetores da virtude (BROOKS, 1976, p. 33);3. A vilã tem acólitos: Max, o principal deles (BROOKS, 1976, p. 33);4. Perto do desfecho, acontecem o reconhecimento da virtude da heroína e o reconhecimento do Mal (BROOKS, 1976, p. 31);5. No penúltimo ato, a ação violenta, cujo resultado é o Mal ser expelido do universo: o sequestro de Tufão no shopping e derrota da gangue de Santiago, prisão de Carminha e, por consequência, a vitória do Bem (BROOKS, 1976, p. 32);6. Tudo isso com liberdade de representação das emoções, com nada subentendido, tudo superexposto, seguindo-se o princípio do “dizer tudo” (BROOKS, 1976, p. 04)Pode-se também mencionar um clichê do gênero: a troca de identidade, de Rita

para Nina, nome com o qual ela retorna para a sua vingança. Há também detalhes menos estruturais, com a mesma origem:

1. Quando sozinha, Carminha expõe seu verdadeiro caráter. Ela declara, “direta e explicitamente, seus julgamento morais sobre o mundo”, por exemplo, ao cobrir o próprio marido de insultos (BROOKS, 1976, p. 36); e2. A imagem fixa ao final dos capítulos, com um personagem em momento dramático, naquilo que Brooks chamou, referindo-se aos quadros fixos a que tendiam os melodramas, de “quadro mudo de gestos congelados” (BROOKS,

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1976, p. 61). O telespectador tinha a oportunidade de apreciar emoções e estados morais transformados em signos visíveis (BROOKS, 1976, p. 62).É claro que, assim como os melodramas de meados do século XIX, portanto

contemporâneos ao romantismo, e o cinema hollywoodiano do século XX e do atual, Avenida Brasil está na categoria do “melodrama contaminado” (BROOKS, 1976, p. 87).1 Há uma jovem heroína, mas dificilmente ela poderia ser considerada a representação perfeita da virtude devido à sua obsessão pela vingança, inclusive porque historica-mente ter a vingança como objetivo era apanágio do vilão (BROOKS, 1976, p. 37). Por outro lado, Carminha é tão má para o mundo quanto amorosa em relação ao próprio filho. Esses traços concedem nuances ao que era uma das características centrais do melodrama originário: o irredutível maniqueísmo (BROOKS, 1976, p. 36).

Entretanto, há em Avenida Brasil aspectos estilísticos de procedência diversa e que talvez se relacionem com o sucesso de público e crítica.2 Considerando-se o estilo um uso sistemático e significativo de técnicas televisivas, numa transposição da conceituação de David Bordwell (2013, p. 17) para os estudos de televisão, o objetivo deste artigo é identificar esse outro lado da telenovela em questão, buscando entender como ele se combinou com o que até aqui foi exposto: o conteúdo melodramáti-co, arcaico, sobre-utilizado, inclusive dentro da história da telenovela brasileira e de programas de formato semelhante, daqui ou de outros países. Trata-se, portanto, de mostrar a discrepância entre esquemas melodramáticos, que poderiam ter transmitido uma sensação predominante de déjà vu, e traços estilísticos de origem heterogênea, con-cretizados no processo narrativo.

Por consequência, será efetivada a análise de um trecho crucial da telenovela, que de certo modo exemplifica o que acontece em parte de sua trama. Espera-se chegar ao mapeamento estratégico de Avenida Brasil, isto é, à descrição do processo combinatório que permitiu a concretização de uma quantidade elevada de trechos de composição sofisticada, rompendo-se o estigma que ainda paira sobre o gênero: o de ser constituído por produtos marcados pela baixa qualidade de realização. Se todas as telenovelas fosse mera reciclagem de fórmulas melodramáticas, materializadas segundo o padrão resultante do ritmo alucinante de produção de um capítulo por dia, nada poder-se-ia destacar no caso em foco. No entanto, Avenida Brasil vai muito além das tacanhas fronteiras identificadas pela crítica e pelos intelectuais que mais ou menos conheciam a produção televisiva brasileira (ou dela nada conheciam). Mais do que isso, aqui será defendida a hipótese de que Avenida Brasil constitui apenas um exemplo, pro-

1 Sobre as particularidades do melodrama de Hollywood, v. XAVIER, 2003, p. 85-125.2 Entre outros exemplos de críticas respeitosas para com o seu objeto, podem-se mencionar ANGELO (2012) e FISHER; NASCIMENTO (2013). Trata-se, respectivamente, de crítica de blog e de resultado de pesquisa.

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vavelmente dos mais ousados, de mudanças que têm acontecido na ficção televisiva brasileira dos últimos anos.

Jean-Pierre Esquenazi enfatizou o quanto a serialidade televisiva é rigorosa em suas fórmulas, por exemplo: cenários repetidos e idêntica cadência narrativa em cada episódio (ESQUENAZI, 2011, p. 27-28). Essas constantes parecem levar séries e seriados eternamente àquilo que um dia Omar Calabrese chamou de “estética da repetição” (CALABRESE, 1988, p. 41-42). Mas Esquenazi escreveu também, no mesmo livro, que o rigor de relojoeiro que opera com a repetição é também a fonte da criatividade dos produtos serializados.

Essa apreciação de Esquenazi é associável a telenovelas, inclusive porque elas, em geral, apresentam, de capítulo para capítulo, alto grau de repetição de seus elementos constitutivos: diálogos, cenários, composição dos planos etc. Esse talvez seja apenas o caso de parte de Avenida Brasil, em que, apesar de óbvias diferenças entre elas e as séries de outros países, apresentou também essa combinação do repetitivo, do trivial, com o elaborado e o inovador.

Para chegar a resultados palpáveis na investigação, alguns princípios da teoria cognitivista orientarão as análises e as inferências delas feitas. Espera-se esclarecer, com a devida fundamentação, o processo de realização e o de assimilação do produto.

O enterro de Nina

Para ilustrar essa disparidade, tomo uma cena que é provavelmente das mais lembradas até hoje: a de Nina enterrada viva por Carminha, exibida em 21 de julho de 2012, a pouco mais de quatro meses do início da trama.

Em primeiro lugar, o contexto. Pouco antes, Carminha conseguiu fazer Nina explodir de raiva contra ela e confessar que é Rita, a que fora espoliada anos antes, filha de Genésio, que indiretamente Carminha levou à morte. O confronto em foco possui também ingredientes do melodrama, em especial o de que nele tudo deve ser dito (XAVIER, 2003, p. 96): ambas jogam na cara da outra o ódio recíproco. O que se vê é uma imagem de alto contraste com o fundo negro, o cabelo loiro e iluminado de Carminha, às vezes com sombras no rosto, enquanto a face de Nina é bem iluminada, até para evidenciar a mudança de atitude, da passividade do papel de vítima de uma suposta confusão de identidade, para a fúria indignada da vingadora. Na trilha sonora, a música dramática dos momentos intensos de Avenida Brasil. Com um toque teatral, Carminha revela que o suco que a outra acabara de beber tinha um poderoso sonífero. Nina desmaia. Tudo até aqui segue esquemas seculares do melodrama.

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Carminha chama Lúcio, seu mais jovem comparsa, põem-na no porta-malas do automóvel e a levam embora. Lucinda, a mãe das crianças do Lixão, vê impotente o carro se afastar e se bate contra as grades da mansão, desconfiada de que algo de ruim aconteceu a Nina.

A cena posterior, que realmente interessa, inicia com tela negra e o ruído de pá. Segue-se uma imagem enigmática, a seguir compreendida como o ponto de vista de Nina ao acordar e ver a borda da cova em que fora atirada. Nina surge de perfil, em pri-meiríssimo plano, deitada, com terra no rosto, que lhe cai do alto. O próximo plano traz o rosto dela, visto de frente, como a flutuar na escuridão (Fig. 01). Há um movimento de grua para o alto, que revela as paredes de terra à volta de Nina e, em instantes, a borda da cova, com uma sinistra luz vermelha, de tonalidade demoníaca e fonte in-determinada. Enquanto se move, a câmera gira em torno de si mesma, a vertigem a acentuar o efeito visual de horror (Fig. 02). A seguir, de novo do ponto de vista de Nina, enquadra-se Carminha, coberta pela luz vermelha, à borda da cova.

Fig. 01 – Avenida Brasil

Fig. 02 – Avenida Brasil

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Carminha espezinha sua inimiga, até ordenar ao comparsa que acabe com ela. Lúcio tira o revólver, aponta-o para Nina e engatilha, num plano em que há o jogo de foco entre a arma e a vítima ao fundo. À ordem de “atira!” e do grito de Nina, há o corte, produzindo-se um legítimo gancho em pleno clímax, típico de folhetins de todos os tipos e mídias, aqui levando à vinheta de abertura da telenovela.

A análise a seguir será breve porque os elementos essenciais da exposição já estão quase todos no que foi analisado.

É claro que o tiro não acontece, do contrário a trama se encerraria ali. Trata-se de um susto, com Carminha convicta de que a outra nunca mais se colocaria em seu caminho. Um plano aberto revela que estão no cemitério de uma igreja isolada. Carminha exige um pedido de perdão, que, sem alternativa (agora se vê que está com as mãos amarradas), Nina lhe concede, assim como a promessa de que desaparecerá da família de Tufão. Nina é ainda humilhada com a cusparada de Carminha sobre seu rosto, retribuição de um gesto igual desta para Carminha, quando a outra era ainda uma menina. Carminha vai embora, com um travelling lateral a acompanhá-la até o carro, agora a mostrar longínquas luzes da cidade ao fundo, a grade do cemitério, enfim um ambiente sinistro, parcamente iluminado (Fig. 03). Um plano geral exibe a frente iluminada da igreja e o carro a ir embora na escuridão.

Fig. 03 – Avenida Brasil

Obviamente, esse trecho também possui elementos melodramáticos. Mais es-pecificamente, ele é a recriação de uma cena típica de peças anteriores a 1830: a heroína enterrada viva (BROOKS, 1976, p. 33). Mas também possui uma composição extraordi-nária. Sem pretender que se trate de uma composição absolutamente original na história televisão, no mínimo a realização é incomum em termos do padrão estabelecido para telenovelas. Alguns de seus elementos revelam fontes heterogêneas:

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1. A iluminação é calcada em cenas de horror que pululam no cinema e, de alguns anos para cá, em seriados televisivos, caso de American Horror Story (2011- ) 2. O movimento de câmera para o alto, a mostrar Nina no fundo da cova, pode ser associado a um trecho do filme Dublê de Corpo, de Brian de Palma (1984), no qual o protagonista, que sofre de claustrofobia, é jogado num buraco e quase enterrado vivo pelo criminoso. Há, inclusive, o mesmo efeito produzido pela lente grande angular, que distorce o espaço e faz com que a cova pareça ter cinco metros de profundidade, a fim de ressaltar a situação do personagem que, indefeso, está ali (Fig. 04).3. A fotografia do segmento em que o rosto de Nina parece flutuar na escuridão tem como antepassado um notável trecho do filme Diário de um Pároco de Aldeia, de Robert Bresson (1951), em que o rosto da mocinha surge no escuro como se estivesse desprovido de corpo (Fig. 05).3

Fig. 04 Dublê de Corpo (Brian de Palma, 1984)

3 O filme é Journal d’un curé de campagne, também chamado no Brasil de Diário de um Padre. A cena foi analisada com brilhantismo num ensaio de Frédéric Subouraud (2010, p. 72-75).

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Fig. 05 Diário de um Pároco de Aldeia (Robert Bresson, 1951)

Trata-se de três esquemas, no sentido que dá ao conceito a teoria cognitivista: “estrutura cognitiva abstrata que fornece condições para o conhecimento” (HOGAN, s/d: loc. 1092-1093).4 Esquemas se materializam em técnicas e em procedimentos seguidos pelos criadores de objetos artísticos ou midiáticos; do lado do espectador, os esquemas atuam no sentido de permitir a intelecção dos mesmos produtos. Assim, pode-se dizer que os esquemas estilísticos apontados estão muito distantes do universo melodramáti-co da televisão brasileira, com antecedentes mais claros em thrillers hollywoodianos, no cinema de arte europeu e na ficção televisiva mais recente. Ainda que, originalmente, os melodramas se tenham marcado por grandes efeitos visuais efetivados no palco, como inundação, naufrágio de navios de grandes proporções, fogo provocado por relâmpago, erupção vulcânica etc. (BROOKS, 1976, p. 46-47), na cena em foco ocorre outro tipo de realização, menos estrondosa ou espalhafatosa, muito mais sofisticada. Destina-se menos a impactar os sentidos da audiência do que produzir imagens expressivas.

Observe-se que a cena do enterro de Nina acontece no capítulo 102 de um total de 179, portanto fora do duplo conjunto sugerido pela metodologia de análise televisiva, que aponta os vinte primeiros e os vinte últimos capítulos de cada telenovela como aqueles em que se deve deter o analista, na suposição de que são neles que escritor e diretor têm maior domínio sobre a feitura da obra (JACOB, 2004, p. 42). A justificati-va para essa prescrição, útil por décadas nos estudos de televisão (e ainda hoje para uma parcela das telenovelas), se fundamentava nas restrições devidas ao alucinante

4 No Kindle, não há paginação, pois o texto é dividido em locations. Assim, cinco ou oito locations sucessivos equivalem ao texto de uma página impressa.

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ritmo de realização de um capítulo por dia.5 Essa condição sujeita todas as telenovelas após as primeiras semanas de exibição e, supostamente, impediria qualquer empenho estilístico no miolo da telenovela, condenando-a aos banais campos e contracampos, câmera quase sempre imóvel, luz clara e difusa em quaisquer circunstâncias e outros recursos já utilizados à exaustão. No entanto, como se viu na análise, cenas que rompem drasticamente com essas constrições puderam ser assistidas em Avenida Brasil.

O enterro de Nina tampouco é uma cena única dentro dessa telenovela, como foi a cena da bala perdida, de Mulheres Apaixonadas (2003, escrita por Manoel Carlos), ou seja, não é segmento de destaque numa telenovela caracterizada pela platitude audiovisual. Acontece que, ao longo dos capítulos centrais de Avenida Brasil (ou seja, cerca de 150 capítulos), há uma profusão de trechos de realização bem empenhada, por exemplo:

1. O embate de Nina e Carminha na mansão vazia (capítulos de 23 e 24/07/2012);2. Rita tranca Max na lancha e salta ao mar (03/08/2012);3. Jorginho, filho de Carminha e Tufão, propõe autossequestro ao bandido que ajudou a forjar o sequestro de Carminha (24/08/2012);4. O segundo casamento de Nina e Jorginho no lixão, quando o malfeitor Nilo (27/08/2012) e Carminha (30/08/2012) invadem a festa para agredir os noivos;5. Max não consegue que Nina faça sexo com ele na lancha e a segue até o apartamento de Jorginho, onde consegue entrar e ouvir a conversa do casal; ao sair do local, abalado, quase um veículo o atropela (28 e 29/08/2012);6. Nina e amigos fazem uma festa na casa de Mãe Lucinda, quando Max invade local agressivamente, leva Nina para fora e depois a convence a sair de carro com ele (08/09/2012);7. Em continuidade com a cena acima indicada, Max leva Nina para a lancha, simula cenas sensuais (que Nina refuga discretamente a fim de que Max não descubra sua aversão por ele) para que um comparsa tire fotos comprometedo-ras dos dois com objetivo de chantageá-la (08 e 10/09/2012);8. O assalto dos dois motoqueiros a Nina e Begônia, quando elas saem do banco com o dinheiro da herança que a primeira recebeu de seus pais adotivos (11/09/2012).Nos confrontos de Nina ou Jorginho contra Carminha, de Max ou Nilo contra

Lucinda, entre outros trechos do tipo, a elaboração narrativa e estilística supera de longe o trivial estabelecido por décadas de realização de telenovelas.

5 Restrições que se estendem a quaisquer produtos televisivos com um idêntico ritmo de produção, como é o caso da soap opera americana, cujas limitações estilísticas foram estudadas por Jeremy Butler (2010, loc. 954-1176).

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Modulação

Uma pergunta se pode fazer a esta altura: como foi possível, em Avenida Brasil, realizar tantas cenas sofisticadas ao ritmo de produção de um capítulo por dia? Para respondê-la, é preciso notar que cenas dessa qualidade estilística aconteciam apenas quando havia um confronto direto dentro do núcleo dramático. Em outras palavras, ainda que esses conflitos tenham sido frequentes, ocorrendo em quase todos os capítulos, Avenida Brasil está longe de se preencher inteiramente com cenas desse tipo. Cada situação de conflito e, portanto, com cenas fora de padrão, era cercada por trechos às vezes com os mesmos personagens em situações sem confronto dramático direto ou por cenas com personagens dos núcleos cômicos. Em ambos os casos, seguiam o prescrito em manuais de realização televisiva:

1. a interminável trama com Cadinho e suas três esposas;2. os conflitos amorosos e familiares de Monalisa, a ex-noiva de Tufão, quase sempre tratados pelo viés humorístico;3. o triângulo amoroso entre Leleco, Tessália e Darkson;4. as frustrações amorosas de Olenka e o surgimento do interesse dela por Darkson;5. as desavenças entre as empregadas da mansão;6. o triângulo entre a maria-chuteira Suelen e os futebolistas Leandro e Roni; etc.Havia, portanto, um processo de modulação a alternar entre trechos extraordi-

nários em termos estilísticos, sempre em conflitos dramáticos, e trechos de composição estilística que excluía um repertório de esquemas estilísticos elaborados. Mal surgia o humor, por mais sérios que fossem os problemas apresentados, e seguiam-se planos e contraplanos, iluminação difusa, câmera fixa ou móvel apenas para seguir personagens, ângulos normais de câmera (isto é, à altura dos olhos), profusão de primeiros planos e tudo o mais que constitui a banalidade funcional do padrão televisivo.

Com isso, tornava-se possível em cada capítulo introduzir cenas, por vezes de longa duração, em que enquadramentos, iluminação, ângulos e movimentos de câmera, edição e outros elementos audiovisuais davam um aspecto diferenciado ao que poderia ser banal.6

Evidentemente houve outros fatores em jogo, como o aperfeiçoamento tecnológico (que resultou em câmeras mais leves) e o know-how das equipes da Globo em relação ao padrão estilístico. Além disso, pode-se admitir a necessidade do que Edgar Morin ainda chamava de “cultura de massa” (hoje mais comumente denominada

6 Para uma análise específica dos recursos estilísticos mais relevantes de Avenida Brasil, v. PUCCI JR. et al. 2013, p. 108-119.

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“cultura midiática”) no sentido de que ela periodicamente introduz novidades em seus produtos a fim de evitar que o consumidor se aborreça (MORIN, 1997, p. 24-29). De qualquer forma, seja qual forem as explicações para os procedimentos adotados, cabe aqui apenas ressaltar essa construção em relevo, que, ao que tudo indica, não foi rejeitada pelo público.

Comentários finais

É possível que, no Brasil, o fator mais significativo para recente processo de transformações da telenovela seja a intensificação das trocas entre cinema e televisão. É notório que nos Estados Unidos essas trocas já eram intensas desde cedo. Entre tantos exemplos, basta lembrar o de Alfred Hitchcock, que em 1948 fez Festim Diabólico (Rope), com elementos estruturais da TV ao vivo, e que, a partir de 1955, produziu o seriado Alfred Hitchcock Presents, que, se não era cinema na televisão (certamente não era), ao menos pôde levar ao meio televisivo o conhecimento que Hitchcock possuía da narração audiovisual (PAZ, 1999). Pesquisas recentes têm mostrado que no Brasil essas trocas entre cinema e TV começaram há décadas, por exemplo, com o Globo Shell e o Globo Repórter, no início dos anos setenta. Desenvolveu-se, porém, um histórico de desconfiança e aversão mútuas, entre o pessoal que trabalhava nos respectivos meios, assim como da crítica, tanto da imprensa quanto na academia. Entretanto, esse bloqueio foi minado, ao longo dos anos, por nomes como Guel Arraes, Jorge Furtado e Luiz Fernando Carvalho, todos adeptos do pós-modernismo, que pressupõe a impureza entre as artes e mídias.

Em Avenida Brasil, produto narrativo clássico por excelência, experimentaram-se esquemas estilísticos que, se não provieram diretamente do cinema, ao menos tinham nele a sua fonte remota. A grande vantagem desse tipo de apropriação é a de que não é preciso inventar o que já existia em outra mídia: basta experimentar. Além disso, o trabalho imagético (para não falar do ousadia no campo sonoro, por exemplo com vozes simultâneas à mesa da família de Tufão, constatação que levaria a outra análise) deixou cada vez mais para trás um antigo diagnóstico formulado de inúmeras formas, entre as quais a de Pierre Sorlin: a televisão, por se “dirigir a audiências gigantescas que não possuem nem referências culturais, nem modo de expressão comuns, deve produzir significações mínimas, muito simples, no limite universais, que lhe parece interditar a exploração de vias novas ou de trabalhar a matéria antes dos sentidos” (SORLIN, 2005, p. 153).

O presente artigo não se refere a inovações que tenham alcançado toda a programação televisiva. Por outro lado, deve-se considerar que Avenida Brasil não é um

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caso único, afinal não se pode esquecer de A Favorita (Rede Globo, 2008-2009), além de outros casos menos proeminentes, mas talvez seja o mais visível, por um lado, devido à extensão numérica de cenas fora de padrão e, por outro, da repercussão que teve de público e crítica. Ambos responderam positivamente às inovações, superando-se respectivamente o risco de uma rejeição por ultrapassagem da capacidade do grande público de processar a narrativa (HOGAN, s/d, loc. 124-132) e, inversamente, o de a crítica julgar que se tratava apenas de mais um produto idêntico a todos os anteriores, sujeitando-a ao tédio e à ira, nessa ordem (HOGAN, s/d, loc. 133-140).

Em conjunção com um processo narrativo que não se marcou pelo esquematismo melodramático, a composição estilística de Avenida Brasil suscita a ideia de que talvez novos produtos no mesmo formato precisem também combinar o familiar e o não familiar. Do contrário, o público poderá se dirigir para onde encontrará essa combinação.

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as MaRcas televisivas na atual pRodução cineMatoGRáfica bRasileiRa

MiRiaM de souza Rossini

Doutora em História (UFRGS) e Mestre em Cinema (USP). Graduada em Jornalismo (PUCRS) e em História (UFRGS). Professora Adjunta do Departamento de Comunicação da UFRGS. Coordenadora do PPG em Comunicação e Informação da UFRGS. Bolsista de Produtividade do CNPq.E-mail: [email protected]

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ResuMo

A proposta deste artigo é discutir as marcas televisivas na atual produção cinematográfica brasileira, a partir da série Se eu fosse você 1 (2006) e 2 (2008) de Daniel Filho, que compõem o corpus da pesquisa “Cinema Popular Contemporâneo: modelos estéticos e narrativos do cinema brasileiro”. Essas novas comédias resultam de uma combinação entre uma tradição cinematográfica que é recuperada e um padrão estético-narrativo decorrente dos avanços tecnológicos e produtivos da televisão.

Palavras-chave: Cinema brasileiro; Televisão; Modelos estéticos.

abstRact

The purpose of this paper is to discuss the current Brazilian television brands in film production, from the series If I were you 1 (2006) and 2 (2008) directed by Daniel Filho, comprising the corpus of resear-ch “Contemporary Popular Cinema: aesthetic models and narrative of Brazilian cinema “. These new comedies result of a combination of a cinematic tradition that is recovered and an aesthetic-narrative pattern resulting from technological advances and production of television.

Keywords: Brazilian cinema; Television; Aesthetic models.

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Introdução1

A proposta deste artigo é discutir o impacto da aproximação entre o modelo de produção televisivo e o modelo de produção cinematográfico no Brasil, tendo como eixo de contato entre os dois meios a atuação do produtor e diretor Daniel Filho. Para exemplificar a discussão, utilizaremos a série Se eu fosse você (2006) e Se eu fosse você 2 (2009), realizada por ele e que juntas somam quase dez milhões de espectadores. Os dois filmes, ao atualizarem a comédia romântica no cinema brasileiro, dialogam também com a narrativa de gênero, comum na produção televisiva. A discussão faz parte da pesquisa “Cinema Popular Contemporâneo: modelos estéticos e narrativos do cinema brasileiro”, desenvolvida junto ao PPGCOM/UFRGS, e com financiamento do CNPq.2

Após duas pesquisas analisando os compartilhamentos de produção entre cinema e televisão, observou-se que há laços mais intrincados que não visam apenas à grade televisiva e nem aos projetos em comum entre os meios (filmes que são transformados em minisséries). Produções cinematográficas mais recentes mostram como realizadores do meio televisivo e do cinematográfico têm se aproximado para produzir para o cinema, usando uma linguagem estética e narrativa que muitas vezes é identificada, pelo público e pela crítica, como televisiva.

Dentro da dimensão mercadológica pós-retomada, verifica-se que especial-mente o gênero da comédia vale-se de modelos estéticos e narrativos que dialogam com as tradições populares do cinema brasileiro, ao mesmo tempo em que se beneficiam da atualização de um gênero bem-sucedido feito pela televisão, desde o seu início. Um dos períodos de maior sucesso de público do cinema nacional corresponde ao auge das comédias populares, produzidas entre os anos 40 e 50. Com o surgimento da televisão e a decadência daquele modelo produtivo cinematográfico, houve uma migração signi-

1 Texto parte da apresentação feita no Seminário Temático Televisão: formas audiovisuais de ficção e documentário, integrante do XVII Encontro SOCINE , 2013, em parceria com a Dra. Fatimarlei Lunardelli.2 Fazem parte do grupo de pesquisa os alunos do PPGCOM/UFRGS: as doutorandas Ana Maria Acker, Carla Doyle Torres, Patrícia Iuva, o mestrando Juliano Rodrigues, e os bolsistas de Iniciação Científica do Curso de Comunicação da FABICO/UFRGS: Lucas Vieira (PIBIC/UFRGS) e Jéssica Nakamura (BIC/Capes).

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ficativa de profissionais do meio cinematográfico para o televisivo. Um desses profissionais, que começou sua carreira nos anos 50, atuando em

comédias, é Daniel Filho. Ele retorna ao mercado de cinema no final dos anos 1990 para dirigir, produzir e atuar, trazendo uma experiência técnico-estética e narrativa consolidada na televisão, o que resulta em filmes que são sucesso de bilheteria. Trabalhamos com a premissa de que essas novas comédias combinam uma tradição ci-nematográfica, que é recuperada, e um padrão técnico-estético e narrativo decorrentes dos avanços tecnológicos e dos modelos produtivos da televisão. Avaliar a carreira de Daniel Filho, e sua atual incursão no meio cinematográfico, nos permitirá entender as a dinâmica desse diálogo entre os meios e as características que preponderam em seus dois grandes sucessos fílmicos.

O lapidador da ficção televisiva brasileira

Daniel Filho é ator, diretor, produtor de cinema e de televisão. Com mais de cinquenta anos de experiência nos dois meios audiovisuais, registrou sua trajetória profissional e sua forma de trabalho no livro autobiográfico O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil (2003).3 O livro, ao mesmo tempo em que apresenta o processo produtivo da televisão, segue os passos da sua carreira e do modelo de produtor que ele se tornou no Brasil. Algo que se destaca é o fato de que sua experiência profissional sempre esteve vinculada à busca de aproximação com o público.

Nasceu no Rio de Janeiro em 1937, no meio artístico. A família era proprietária de uma casa de espetáculos, onde ele iniciou no teatro de revistas. Em 1957, começou como ator na TV Rio e em 1959 foi contratado como assistente de direção, na TV Tupi, e desde então atuou em quase todas as emissoras, fazendo de tudo: produção, direção, criação, interpretação, dublagem e outras funções em programas humorísticos, minisséries, seriados, telenovelas. Segundo ele, durante a fase do ao vivo, “a tevê era um espetáculo diário, que durava de 14 a 15 horas ininterruptas. Trabalhávamos sete dias por semana. Havia muita improvisação e pouca responsabilidade; a gente resolvia os problemas inventando” (2003, p. 19).

Ao mesmo tempo, seja em frente das câmeras ou atrás delas, ele exercitava uma variedade de gêneros narrativos: “não havia como trabalhar na televisão sem fazer todos os gêneros e funções. Eu não fui exceção. Logicamente, não na duração daquele contrato, e sim nos 41 anos seguintes” (2003, p. 20).

Embora quisesse fazer cinema no início da carreira, ficou na televisão por causa

3 A primeira edição é de 2001.

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do emprego fixo e da possibilidade de trabalhar com regularidade. Em 1964, transferiu--se para a TV Excelsior, onde estreou como diretor de um programa de prêmios, a convite de Geraldo Casé. Como o programa ficou pouco tempo no ar, foi convidado por Carlos Manga a dirigir uma série cômica, 002 contra o crime. Na Excelsior, trabalhou com vários humoristas, como Castrinho e Chico Anysio. Foi, inclusive, o primeiro diretor do humorístico Chico Anysio Show, ainda naquela emissora. Também podemos frisar seu reencontro com Carlos Manga, o grande diretor de algumas das melhores comédias brasileiras na década de 50 – como Nem Sansão, Nem Dalila (1954) e o Homem do Sputnik (1959). Daniel Filho atuou no filme Colégio de Brotos (1956), dirigido por Manga, e os dois continuariam sendo colegas na Rede Globo.

Nesta fase inicial da TV brasileira, ainda marcada pelo ao vivo, observa-se que ao lado de programas de teleteatro, que eram prestigiadas ao apresentar a encenação de peças clássicas, os humorísticos eram o outro braço da programação que demandava investimento, pois atraía público. A telenovela, nessa fase, ainda não conseguia se desenvolver em termos de linguagem audiovisual pela própria dificuldade em pensar por planos, por montagens e tudo o mais que implica a estética audiovisual.

O videoteipe, introduzido pela TV Rio em 1959, melhorou consideravelmen-te esses problemas, mas ainda era preciso achar uma forma de criar a linguagem audiovisual e narrativa própria para o novo meio. Os produtos ficcionais seriados foram os que mais receberam atenção, pela sua facilidade em fidelizar o público. E os anos 60 e 70 foram importantes em apropriações, que vieram do cinema hegemônico, mas também do experimental e da videoarte (FECHINE, 2007).

É nesse período de ebulição que Daniel Filho transfere-se para a Rede Globo, em 1966. Na nova emissora, ele participa da transformação da linguagem audiovisual televisiva e da gestação da maior empresa audiovisual do País. Por sugestão de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, sua função inicial foi melhorar a linguagem da telenovela, usando um pouco da estética cinematográfica com a qual era familiari-zado, já que, paralelamente, vinha trabalhando em cinema desde os anos 50. Segundo Daniel Filho, ele foi trabalhar com telenovela por não gostar delas: “as histórias tinham pouca consistência, os diálogos eram absurdos, nada me convencia. Achei, então, que tinha de encontrar um caminho, e, para encontrá-lo, segui a sugestão do Boni: fazer um cineminha” (2003, p. 25).

Inspirou-se em cenas de filmes, (marcações de atores, músicas, movimentos de câmeras e montagens), e adaptou gêneros consagrados para a realidade brasileira. Ao dirigir as tramas assinadas por Janet Clair, conseguiu transformar aquele que antes era o patinho feio da programação na grande paixão brasileira. O primeiro grande sucesso

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da dupla, em rede nacional, foi Irmãos Coragem (1970-1971),4 que era um western em pleno centro-oeste brasileiro.

Ribeiro e Sacramento (2010, p. 125), ao falarem sobre a renovação estética da televisão brasileira entre os anos 1970 e 1974, reforçam a importância da Rede Globo e de suas telenovelas. A partir do que os autores chamam de “estratégia modernizante”, a emissora buscou-se valer do realismo a fim de propor uma “maior identificação entre o que era consumido pelo telespectador e o que era vivido, sabido e visto na realidade”. Outra estratégia utilizada foi a produção de novelas em diferentes regiões brasileiras. Embora 60% das telenovelas se passassem no Rio de Janeiro, houve a busca por novos cenários, o que “não só demonstra o empenho da emissora em buscar inovações para seus produtos, mas também, num contexto de consolidação de sua rede nacional, a promoção de identificação com os brasileiros de diferentes estados”. Como, segundo os autores, 80% das tramas eram originais, essa aproximação com o público tornou-se mais forte.

Embora os autores em nenhum momento citem o nome de Daniel Filho ao falar desse projeto de renovação estética das telenovelas (apenas os roteiristas são citados), ao olharmos as fichas técnicas dos grandes sucessos daquela época podemos perceber a sua forte atuação como supervisor da produção dramatúrgica, e também como diretor e produtor. Supervisionou, produziu e dirigiu cenas de novelas tão diferentes como O Cafona (1971), Bandeira 2 (1971-72), Uma rosa com amor (1972-73), Selva de Pedra (1972-73), Carinhoso (1973), O bem-amado (1973-74), O rebu (1974-75), entre vários outros sucessos.

Segundo Daniel Filho, a telenovela tornou-se sua paixão, pois passaram a lhe dar uma

“visão de transformação, de uma alquimia artística, de uma experiência que eu jamais poderia fazer no cinema, nem no brasileiro nem em nenhum outro. Não me deixariam. Em que filme eu poderia fazer as experiências de O rebu?, O casarão ou Espelho mágico – novelas que desafiavam as normas da narrativa?” (2003, p. 25).

Ao mesmo tempo em que afirma que não poderia fazer essas experiências narrativas no cinema, ele continuava a se inspirar nos longas-metragens que vira (e até nos que não vira, como afirma!) na hora de compor seu material imagético.

A importância de Daniel Filho neste grande feito garantiu a ele a participação no time que criou o Padrão Globo de Qualidade, em 1972, embora seu nome também não costume ser lembrado. Ao lado de Walter Clark e de Boni, estabeleceram-se as bases técnico-artísticas que deveriam seguir todas as produções da Rede Globo, incluindo

4 A novela foi codirigida por Milton Gonçalves e Reynaldo Boury.

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aquelas produzidas por suas afiliadas, bem como o público para quem se produzia: a chamada classe C, ou seja, a nova classe média brasileira. E é para este público que Daniel Filho foca grande parte da produção ficcional da emissora. Um exemplo é a série A grande família (1973-1975), criada pelo dramaturgo Oduvaldo Viana Filho e supervisio-nada por Daniel Filho.

Seu talento como supervisor é igual ao seu talento como diretor, e por isso, em meados dos anos 70, foi escalado para dirigir as novelas do horário nobre, sendo responsável por sucessos como Pecado Capital (1975), O casarão (1976), O Astro (1977/1978), Dancing Days (1978/1979), e Brilhante (1981-82), entre outras da época. É interessante observar que, seja na função de supervisor ou na de direto e produtor, ele consegue fazer com que o núcleo de ficção da Rede Globo encontre o sucesso garantido. Em uma entrevista para a jornalista Ana Paula Sousa, da revista Carta Capital (2006, Edição 456), ele dá o seguinte depoimento sobre essa fase:

“Teve um momento, no final dos anos 70, que eu me senti meio Mefistófeles. Eu era responsável pelas novelas e tinha que fazer boas novelas. Aí existia aquela ideia de que a novela tinha a função de deixar o povo tranquilo. Me perguntei sobre o que eu fazia. Mas passou logo”.

No final da década, porém, começou a querer mudar de rumos e abandonar a direção das telenovelas, e o horário das 20h. Inquieto, passou a delinear a produção de séries e minisséries da emissora, que pudessem ser transmitidas em horários mais tardios. Isso também permitia que temas polêmicos e atuais fossem tratados pela televisão. Exemplos são dois trabalhos que ele produziu e codirigiu: Ciranda, cirandinha (1978), que abordava a vida de quatro jovens que dividiam um apartamento e os novos problemas da vida adulta, e Malu Mulher (1979), série que marcou época ao falar das mudanças do papel feminino na sociedade brasileira, e que foi exibida em vários países.

Nos anos 80, foi responsável pelo desenvolvimento e pela consolidação de mais um formato televisivo: as minisséries históricas. Ao longo da década, supervisio-nou sucessos como O Tempo e o Vento (1985), Anos Dourados (1986), além de outros que produziu e codirigiu como Quem ama não mata (1982) e O primo Basílio (1988).

Após quase trinta anos na Rede Globo, afasta-se em 1991, a fim de desenvolver outros projetos, retornando em 1995 para dirigir a Central Globo de Produção (Projac). Dessa nova fase, supervisiona mais alguns sucessos como O Auto da Compadecida (1999) e A Muralha (2000).

Apesar de sua forte atuação na lapidação e consolidação do gênero ficcional na emissora, sua importância não faz parte do imaginário do público televisivo (e talvez nem do acadêmico). É mais lembrado como ator de algumas de suas produções, algo

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que nunca deixou de fazer, e pelas muitas brigas que fomentou ao longo dos anos.5 Ao mapear sua atuação atrás das câmeras, no entanto, é inegável que ele imprimiu – muitas vezes à força, como se percebe nos depoimentos de muitos de seus colegas, e também dele próprio - sua visão de um projeto audiovisual televisivo, que estivesse de acordo tanto com os preceitos do Padrão Globo de Qualidade quanto com seu entendimento do que seria um bom audiovisual, capaz de empolgar o público. Este projeto, porém, só se torna claro e visível quando se observa sua reinserção no campo cinematográfico e a forma como passou a modificá-lo a partir dos anos 2000.

O gênio do sistema?6

Em primeiro lugar, é preciso frisar que Daniel Filho sempre trabalhou, conjun-tamente, com cinema e televisão. Como dissemos, inicialmente, a TV proporcionava-lhe o trabalho fixo e, portanto, o salário garantido no final do mês, mas depois tornou-se sua grande vocação. O cinema, entretanto, era um sonho que ele almejava e que buscou meios de também consolidar, num período posterior ao seu sucesso na televisão e ao desenvolvimento de um modelo de trabalho que se mostrou eficiente.

Sua vinculação com o cinema, como já dissemos, começou em 1955, como ator em comédias na fase da chanchada. Contracenou com astros populares como Oscarito, Zé Trindade e Mazzaropi. Versátil, não se limitou a esse gênero de cinema e na década de 1960 participou do Cinema Novo. Atuou nos clássicos Os Cafajestes (1961), de Ruy Guerra, e em Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos, entre outros.

Depois de participar de diversos filmes, estreou como diretor em uma comédia musical (Pobre Príncipe Encantando, 1969) em que explorou a popularidade do cantor da Jovem Guarda Wanderley Cardoso. Experimentou o drama com o filme O casal (1975), baseado em peça de Oduvaldo Viana Filho, que na mesma época estava com ele na Rede Globo, realizando a primeira versão de A grande família. Também dirigiu um dos melhores filmes do quarteto de comediantes Os Trapalhões, O Cangaceiro Trapalhão (1983) (LUNARDELLI, 1996).

Na década de 1990, enquanto ficou fora da Rede Globo (entre 1991 e 1995), criou, com o roteirista Euclydes Marinho, seu parceiro na televisão, a Dezenove Produções, e produziu, em coprodução com uma emissora francesa, o seriado Confissões de

5 Na internet, vários sites reproduzem matérias sobre seus desentendimentos com atores e demais colegas de trabalho. Uma das mais famosas brigas é com o ator Mário Gomes, que teve um caso com a ex-esposa de Daniel Filho, Betty Farias. No site da Globo, também está disponível uma entrevista dele em que pede desculpas há uma atriz por uma grosseria feita durante a gravação de uma telenovela. http://globotv.globo.com/rede-globo/fantastico/v/daniel-filho-pede-desculpas-a-uma-atriz-em-depoimento-emocionante/1664716/ Acesso em 30 de junho de 2014.6 Referência ao livro de Thomas Schatz, O gênio do sistema – a era dos estúdios em Hollywood (São Paulo: Cia das Letras, 1991), que analisa a importância dos produtores naquela fase de ouro do cinema estadunidense.

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Adolescente. Para Daniel Filho, após tantos anos trabalhando para uma emissora que possuía uma excelente infraestrutura, trabalhar “por conta”, significava ser seu próprio patrão e financiador. Por isso, explica ele, precisava de algo novo, que não estivesse no ar, mas que também fosse “barato” (2003, p. 96). Foi durante a reunião com Euclydes Marinho e Domingos de Oliveira, que este sugeriu a Daniel ir ver a peça que estava dirigindo, escrita a partir do diário de sua filha adolescente, Maria Mariana. Ao ver a peça, imediatamente ele definiu que aquele seria o tema do projeto independente que estava procurando. As duas temporadas (1993-1994) foram filmadas em 16mm, e exibidas primeiro pela TV Cultura, e depois pela Bandeirantes e pelo Multishow.7

O diretor explica que

“Confissões quase não foi ao ar, e eu teria perdido muito dinheiro se não tivesse conseguido a coprodução da França. Até hoje não fiz as contas e não sei se cheguei a ganhar dinheiro com esse programa. Para filmá-lo em película, investi bastante. Mas foi esse diferencial que me permitiu a coprodução com a TF1 Francesa, pois eles não aceitam programas em taipe por considerá-los de segunda categoria” (2003, 85).

Em 1995, após retornar para a Globo, usa o 35mm nas adaptações de Nelson Rodrigues para A vida como ela é (1996), assim como no seriado Mulher (1998). Ambos, ao mesmo tempo em que renovam a qualidade estética dos produtos televisivos, reaproximam o diretor da estética cinematográfica. Essa intenção é mais clara com O auto da compadecida (1999), também feito em 35mm, transformado em um longa-me-tragem que é lançado no ano seguinte, alcançando grande sucesso de público na fase chamada de Retomada do Cinema Brasileiro.

Foi novamente num final de década que Daniel Filho mudou o rumo de suas atividades. Em 1998, sem se afastar da direção do PROJAC, encabeça a criação da Globo Filmes, e funda sua nova produtora, a Lereby. Em 2001, numa entrevista para a Revista de Cinema, ele explicava que seu interesse era fazer um filme brasileiro por ano a custos mais baixos, usando tecnologia digital, e, ao mesmo tempo, participar da produção de outros filmes brasileiros. Ou seja, ele buscava implantar no cinema o sistema de produção televisivo, fortemente centralizado na figura do produtor, e dinâmico o suficiente para realizar um produto em menor tempo e com custos mais baixos.

Daniel Filho afirmava ainda que pretendia dotar o cinema brasileiro de uma linguagem mais pop em oposição ao que ele chamava de uma linguagem mais cult. Tal intenção explicitava a necessidade de buscar outras estratégias comunicativas e estéticas

7 Em 2014, uma versão cinematográfica da série, com o mesmo título, chegou às telas, resgatando as atrizes originais que participaram do projeto em teatro e em televisão.

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para os filmes nacionais, a fim de que eles fossem melhores aceitos por um público já acostumado à linguagem televisiva. Também deixava aberta a porta para o diálogo com o cinema de gênero, como ele já vinha fazendo na televisão.

Assim, ao mesmo tempo em que define o modelo de trabalho e de projeto da Globo Filmes, passa a atuar como um dos principais produtores associados dessa nova empresa através da Lereby, e também associar-se às demais produtoras independen-tes que estão no mercado. Desse modo, continuou fazendo no cinema o que vinha há várias décadas fazendo na televisão: supervisionando a produção de filmes brasileiros.

Do mesmo modo como se observa o nome de Daniel Filho na ficha técnica das grandes novelas, minisséries e séries da Rede Globo dos anos 70 até os anos 2000, o mesmo se observa na maioria das grandes bilheterias do cinema brasileiro na última década e meia. Eles possuem o nome de Daniel Filho entre os produtores ou coprodutores, seja a partir da Globo Filmes ou da Lereby. Além disso, muitos dos novos diretores, roteiristas, além dos atores, já trabalharam com ele na televisão. Estabelecia--se, assim, não apenas o seu retorno para o cinema, como a definição de uma nova identidade para o filme nacional, conforme afirmado em 2001 por ele mesmo.

O “domador de público”, como o intitulou a Carta Capital (2006), soube capitanear para o cinema a vocação que já trazia da televisão: produtos que ratificam o Padrão Globo de Qualidade, em termos técnico-estéticos, e que são voltados para um amplo público de classe média, que não vinha sendo atendida pelo Cinema Brasileiro “tradicional”. Com isso ajudou a atualizar a própria noção de popular, o que já vinha sendo observado no cinema brasileiro da última década (ROSSINI, 2008).

Assim como na televisão, porém, não se restringiu a supervisionar projetos alheios, criando novas formas de negócio no campo do audiovisual. Como diretor artístico da Globo Filmes, participou da produção de O auto da compadecida (2000) e de Caramuru – a invenção do Brasil (2001), ambos de Guel Arraes, com quem já fizera o seriado Armação Ilimitada nos anos 80. Os dois filmes são os primeiros projetos a buscar um modelo de produção compartilhada entre a televisão e o cinema, estratégia que se define anos mais tarde e do qual o drama Chico Xavier, dirigido em 2010 pelo próprio Daniel Filho, torna-se o novo expoente desse formato de trabalho.

Invertendo a lógica inicial, passa-se a realizar filmes que são lançados no cinema e que depois, aproveitando a publicidade e o prestígio adquiridos naquela janela maior de exibição, retornam para a televisão em formato de série. Desse modo, obtêm-se o máximo de aproveitamento de um mesmo investimento em produção. A refilmagem de o Tempo e o Vento, por Jayme Monjardim, lançada em 2013 no cinema e na televisão, é um dos últimos exemplos desse compartilhamento entre os meios.

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O interesse de Daniel Filho, porém, não se restringia à grade televisiva. Após tantos anos produzindo e dirigindo para a televisão, ele retorna à direção de cinema com projetos variados, mas os que mais fazem sucesso são aqueles que resgatam sua vinculação com a comédia. O primeiro sucesso de público é A Partilha (2001), comédia dramática que traz Glória Pires como uma das quatro irmãs da trama. Em A Dona da História (2004), com Marieta Severo, aprofunda sua relação com o universo feminino, tantas vezes trabalhado na televisão. Segundo ele, este é seu público alvo e é para elas que seus filmes falam, preferencialmente.

É para esse público que as duas comédias Se eu Fosse Você (2006) e Se eu fosse você 2 (2008), são criadas. Juntas levaram dez milhões de espectadores para as salas de cinema, que acompanharam as peripécias do casal, interpretado por Tony Ramos e Glória Pires, que troca de sexo em meio a uma crise conjugal. O sucesso dessa fórmula, tantas vezes reencenada no cinema americano, deu a Se Eu Fosse Você 2, a segunda maior bilheteria do cinema brasileiro contemporâneo, atrás, apenas, de Tropa de Elite 2 (2010), de José Padilha.

É a consagração do modelo de produção técnico-estético proposto por Daniel Filho durante a criação da Globo Filmes, e também a reafirmação do gênero que mais atrai os espectadores das diferentes telas.

Da televisão para o cinema

Em seu livro, o Circo Eletrônico (ano), Daniel Filho expõe sua forma de trabalhar. Após anos atuando em uma grande emissora e mais alguns exercendo sua profissão de forma independente, ele observou a importância de um planejamento bem feito, que leve em conta os custos da produção, o tempo da realização, a planificação das cenas a serem feitas. E, obviamente, uma história que possua pontos de identificação com o público.

Como supervisor de tantas produções ficcionais da Rede Globo, ele sabe que ao se propor um programa é preciso calcular quanto ele custará e quanto dará de retorno. A única exceção, aponta o diretor, são as minisséries, que vão ao ar num horário tardio, dificultando a inserção de merchandising e de outras publicidades, mas que dão prestígio para a emissora e para o grupo que a realiza. Portanto, o retorno pode ser financeiro ou simbólico, mas para investir no segundo é preciso ter uma ‘folga monetária’: “Portanto, emissoras que dependem de dinheiro que entra no dia-a-dia não podem bancar produtos como esses” (DANIEL FILHO, 2003, p. 85).

Como produtor, quer que o plano de filmagem seja cumprido. Para isso,

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é preciso ter uma equipe técnica e artística bem afinada, o que o leva a trabalhar com os mesmos profissionais em várias situações. Porém, quando tem pressa, no caso das minisséries, prefere contratar uma equipe de freelances, “pois todos estão preocupados em terminar as filmagens dentro do prazo”. Como diretor, analisa o roteiro, decupa a cena e prepara-se para rodá-la com o mínimo de repetições possíveis. Ele explica que gosta do Take 1, onde há mais naturalidade. Ao mesmo tempo, há aí um fator psicológico: “toda a equipe está muito mais atenta por saber que se trata de um diretor que gosta que saia de primeira” (2003, p. 191). Obviamente que o Take 1 também significa menos custos.

A agilidade que ele desenvolveu em seus 50 anos de televisão, seja na época do ao vivo, seja na dos grandes estúdios, acabou impregnando seu modo de pensar a produção cinematográfica. No Brasil, é difícil de se obter os valores dos custos de produção de um filme, mas se pode saber quanto conseguiram através de leis de incentivo. Assim, conforme o site da Ancine, Se eu fosse você captou R$ 4.298.172,32. Já a sequência Se eu fosse você 2 captou R$ 5.425.000,00. Os principais investimentos vieram do Art. 3º. da Lei do Audiovisual. Não é um valor alto para a realização de um filme, que envolve uma equipe grande por um período razoável de tempo, por isso há a necessidade de se planejar bem a produção.

Um modo de minimizar os contratempos é trabalhando em estúdio e finalizando as cenas na pós-produção. Os dois filmes fizeram uso de ambas as estratégias. Utilizaram muitas cenas em estúdios, com cenários pré-fabricados, que facilitavam a movimentação das câmeras. O making of permite ver o constante uso do Chroma key. Como há muita cena interna, essas técnicas são mais facilmente adaptadas. A casa do casal, em especial, é o lugar que mais se repete nos dois filmes, algo que é comum em telenovelas. Alguns personagens secundários também permanecem, como a empregada (interpretada por Maria Gladys), o padre (interpretado por Ary Fontoura) e a filha Bia (interpretada por Lara Rodrigues na Parte 1, e por Isabelle Drumond na Parte 2).

Daniel Filho é explícito sobre como se procede na criação de uma série: “Um seriado deve ter um elenco fixo, com pelo menos 40% da história passada ali. E personagens fixos para que o público os identifique como identificam os personagens de novela. Determinados padrões têm que ser respeitados” (2003, p. 58). Formando os filmes uma sequência (Parte 1 e 2), a repetição faz parte da estética da seriação.

Omar Calabrese (1987), ao falar da repetição, explica que há três noções de repetições que não podem ser confundidas: 1) repetitividade como produção de uma série a partir de uma matriz única; 2) repetitividade como mecanismo estrutural de generalizações de textos; 3) repetitividade enquanto condição de consumo por parte do

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público. Interessam-nos as duas primeiras noções, que nos permitem compreender a obra audiovisual.

A primeira noção refere-se à estandartização do produto, que pode ser tanto do produto material quanto do intelectual. O filme pensado como uma história básica que se repete (a troca de corpos), neste caso aponta para a estandartização do produto intelectual. O cinema americano já fez inúmeros filmes usando este mesmo plot (foram trocas de pais e filhos, mães e filhas, vizinhos e vizinhas, etc.). Como base da motivação para a troca de corpo está a incompreensão do ponto de vista do outro, e a necessidade de buscar o melhor entendimento entre as pessoas. Se eu fosse você, parte 1 e 2, ao mesmo tempo em que encontra uma lacuna nessa troca de corpos – que é a de casais há muito tempo convivendo juntos e já não mais percebendo o outro cônjuge –, adéqua-se ao modelo de estandartização ao buscar apoio num plot que vem sendo repetido no cinema há pelo menos três décadas.

A segunda noção refere-se à estrutura do produto. Explica Calabrese (1987, p. 44): “Chamam-se repetições, de facto, não só as continuações das aventuras de uma personagem, mas também os recursos semelhantes da história, como os temas ou os cenários-tipo”. Nesse caso observa-se, aqui, os tipos de repetição a que se referia Daniel Filhos: os personagens recorrentes, os lugares por onde eles mais transitam, que é a casa. Sendo uma história familiar, a casa é o palco principal dessa ação. Os dois filmes, aliás, apresentam idênticas cenas de despertar, de mirar-se no espelho, de cafés da manhã. São encenações que fortalecem a assimilação entre as duas histórias, e reforçam para o público a familiaridade em relação àquela família.

Outro aspecto que se repete são os nomes já conhecidos do diretor nas duas equipes, desde os atores que já trabalharam com ele em diversos programas televisivos, até membros da equipe técnica, como a figurinista Marília Carneiro que o acompanha desde a Rede Globo. Essa escolha igualmente reforça a ideia de uma grande família atuando junta para a realização dos dois filmes, com identidades visuais e narrativas semelhantes. Ao mesmo tempo, o sentido de equipe torna-se mais forte. Nos making of dos dois filmes, inclusive, chama atenção as várias imagens de confraternização da equipe pelo trabalho bem realizado, o reforço das relações pessoais, a rememoração dos trabalhos anteriores feitos em conjunto.

Quanto à repetição do tema da história, naquilo que são os personagens-tipos e a antecipação de seus destinos, percebemos o pouco que eles podem se desenvolver psicologicamente na trama, já que estão amarrados a destinos pré-definidos pelo tipo de plot, e também pelo gênero narrativo. Sendo uma comédia romântica, esse destino é ainda mais enfatizado. Por isso temos, na Parte 2, novos casais sendo formados na cena final do casamento de Bia (Isabelle Drumond e Olavinho (Bernardo Mendes). A lógica

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do gênero, nesse caso, prevalece como mais um elemento a reforçar a repetitividade da estrutura do produto. Por outro lado, nos lembra o final feliz das novelas, onde todo mundo se casa ou acaba encontrando um par.

Considerações finais

Pensar o cinema brasileiro a partir dessa nova lógica é um desafio que muitas vezes é minimizado. Embora seja comum ouvir da crítica e do público o fato de que muitos dos sucessos atuais se parecem com novelas, a explicação para esse fato quase sempre ficava por conta de apontar a Globo Filmes como a principal responsável desse achatamento estético-narrativo observável em muitos filmes atuais, ou a grande importância que se passou a dar para o desempenho de mercado de um filme, o que é mais amplo do que apenas olhar os rendimentos e o público obtido nas salas de cinema.

No entanto, ao invés de reafirmar o que é visualmente observável, procurei tentar entender uma das possíveis origens das escolhas técnico-estéticas e narrativas que vêm sendo feitas. Foi nessa busca por elementos que se repetem nos filmes com mais de um milhão de espectadores, que o nome de Daniel Filho surgiu em várias das fichas técnicas, seja direta ou indiretamente. Em nenhum dos projetos anteriores que analisaram os compartilhamentos entre cinema e televisão, o nome dele surgiu entre os atores do campo audiovisual.

No entanto, ao analisar os filmes que são sucessos nas salas de cinema, sua figura destacou-se, interligando vários desses atuais “blockbusters” brasileiros. Captá-lo, no entanto, não é tão simples, pois não há muitos materiais disponíveis sobre ele. Seu livro, que foi fartamente usado neste artigo, serviu como uma porta de entrada para suas histórias pessoais e para seu modo de pensar e agir.

Comparar os processos de produção televisiva, que ele descreve em sua biografia, com os de cinema, que precisaram ser inferidos a partir dos próprios filmes e dos making of que acompanham os DVDs, foi a estratégia encontrada para uma primeira aproximação com o material. Com certeza, esse tópico precisa de mais pesquisa e de aprofundamento, em especial na figura desse diretor que, antes de tudo, vem se trans-formando no grande produtor/supervisor do cinema brasileiro, cargo que exerceu na televisão por mais de trinta anos. Entendê-lo é entender os rumos de sua influência nessa fase do cinema nacional contemporâneo, algo a que ele declaradamente se propôs fazer e fez. Tornou o cinema pop, e mais próximo do público que estava acostumado com televisão.

Afinal, se fazer um cineminha foi a forma de melhorar a qualidade estética

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da TV brasileira e garantir de vez o público para os produtos audiovisuais ficcionais televisivos, nos anos 70, talvez inverter a moeda seja a forma atual de revisar a linguagem do cinema nacional e, assim, reaproximá-lo daquele público que o Padrão Globo de Qualidade pedia: a classe média brasileira, sempre conservadora em sua moral e gosto estético.

Referências

CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1987.

DANIEL FILHO. O circo eletrônico. Fazendo TV no Brasil. 2ed. Revista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

DANIEL FILHO. Se eu fosse você. DVD, 2006.

DANIEL FILHO. Se eu fosse você 2. DVD, 2009.

FECHINE, Yvana. O vídeo como projeto utópico da televisão. In: MACHADO, Arlindo (org.). Made in Brasil. Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras : Itaú Cultural, 2007.

LUNARDELLI, Fatimarlei. O Psit! O cinema popular dos Trapalhões. Porto Alegre: Artes & Ofício, 1996.

SOUSA, Ana Paula. O domador de público. Carta Capital, Edição 456, 2006.

REVISTA DE CINEMA, Edição 13. São Paulo, maio de 2001.

RIBEIRO, Ana Paula Goulart Ribeiro; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco. História da televisão no Brasil. Do início aos dias de hoje. São Paulo; Contexto, 2010.

ROSSINI, Miriam de Souza. Diferentes concepções de popular no cinema brasileiro.

In:AMANCIO, Tunico; HAMBURGER; Esther; MENDONÇA, Leandro; SOUZA,

Gustavo. Estudos de Cinema Socine, Ano IX. Annablume: São Paulo, 2008, p. 359-366.

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inovações estéticas na tv: a tRavessia seRtão-ilhéus de GabRiela

siMone MaRia Rocha

Doutora em Comunicação e cultura pela UFRJ com pós-doutorado em Comunicação pela UFMG. Professora do PPGCOM/UFMG e líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Mídia e Cultura (COMCULT). E-mail: [email protected]

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ResuMo

Discutiremos as inovações estilísticas presentes nas sequências que retrataram o drama da travessia do sertão até Ilhéus da personagem-título da telenovela Gabriela (Rede Globo, 2012) com o objetivo de evi-denciar um trabalho elaborado de composição visual em detrimento do diálogo. Evidenciaremos que tanto aspectos históricos, culturais, tecnológicos, bem como estéticos desempenharam papel na cons-trução estilística do evento da travessia. Concluiremos que nesse processo de produção dois aspectos chamam nossa atenção: a inserção dos diálogos, feita de modo pouco usual em narrativas deste gênero televisivo, e a presença de certo imaginário compartilhado do sertão.

Palavras-chave: Estilo televisivo; Gabriela; Telenovela.

abstRact

In the telenovela Gabriela (Rede Globo, 2012), we will discuss the stylistics innovations that are presents in the sequences portraying the title character’s drama of crossing from backlands to Ilhéus, aiming to evince an elaborated work of visual composition over dialogue. We will evince that different aspects, such as the historical, cultural, technological and the aesthetic ones, play a role in the stylistic construc-tion of the crossing event. We will conclude that in this production process two aspects call our atten-tion: the inserting of dialogues, made in an unusual way for narratives of this television genre, and the presence of a certain shared imaginary of the backlands.

Keywords: Television style; Gabriela; Telenovela.

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Introdução1

A negligência com que sempre foram tratados os aspectos estilísticos dos programas de televisão tem sido cada vez mais notada e repensada por diversos pesquisadores (Butler, 2009; 2010; Machado e Vélez, 2007; Mittell, 2010;

Pucci Jr, 2012, 2013). Obviamente que sempre existiram experimentações e inovações no texto televisivo (Aires, 2013). É possível remontar tais novidades em vários exemplos de décadas de produção. Talvez o que tenha mudado seja o olhar para o próprio medium, pois a TV se ofereceu a um novo olhar. Aspectos como maior acesso aos produtos, aparelhos de reprodução, gravação e armazenamento de programas, inovações, dentre outras, tem modificado dispositivo, produto e produção. Neste artigo pretendemos contribuir com essas reflexões evidenciando uma análise dos elementos estilísticos de algumas sequências do primeiro capítulo da telenovela Gabriela, exibida pela Rede Globo em 2012, a fim de responder à seguinte questão: em que medida a inserção de um conjunto de cenas capaz de sustentar o drama da travessia da personagem-título do sertão até a cidade de Ilhéus se baseou num trabalho elaborado de composição visual em detrimento do diálogo?

Características do dispositivo

A televisão, assim como os demais meios de comunicação, singulariza-se a partir de suas especificidades estéticas e dos seus modos de produzir. De acordo com John Ellis (1992), a TV é uma mídia em que se observa de forma proeminente o quanto essas características se adaptam às circunstâncias em que ela é utilizada. Por ocupar prioritariamente o espaço doméstico, a televisão estabelece uma relação direta

1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada na Sessão Temática – Televisão: formas audiovisuais de ficção e documentário do XVII Encontro Anual da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual SOCINE, de 08 a 11 de outubro em Florianópolis. Agradecemos ao CNPq o auxílio concedido, à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) pela bolsa do Programa Pesquisador Mineiro e a Matheus Luiz Couto Alves, bolsista de iniciação científica, pela parceria neste artigo.

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com nosso cotidiano e com nosso lar, pois sua produção constantemente dialoga com essa experiência. Assistimos a TV de forma bem mais descompromissada, em meio a outros fatos e acontecimentos que permeiam o dia a dia doméstico. Sendo assim, muitas vezes, a televisão não é o centro das atenções. Isso implica em algumas características fundamentais na construção de seu estilo.

Muitos autores já apontaram para essa notável relação entre som e imagem na televisão (Ellis, 1992; Butler, 2009), explicando o porque de na televisão o papel do som ser, às vezes, mais importante. Por sua maior capacidade de expansão (pode-se ouvir a TV mesmo não estando no mesmo local que ela), o som é o que desperta atenção e traz de volta o olhar do espectador que pode estar distraído em outras atividades. Para Ellis, os sons também ancoram significados, pois as imagens não apresentam muitos detalhes e se fixam por pouco tempo na tela, seja pelos movimentos em cena, seja pela edição dos cortes, ou seja, ainda, pelo hábito de zapear. As telenovelas, por constituição do gênero, por características do dispositivo, por condições de recepção, e por uma alegada ausência de qualidade estética2 dentre outros, tradicionalmente se caracterizam pela redundância de som-imagem, pela presença predominante do diálogo em detrimento de composições visuais mais elaboradas.

Contudo, e esse é o argumento que pretendemos desenvolver neste texto, inovações no fazer televisivo têm sido mais evidentes. O evento da travessia do sertão até Ilhéus em Gabriela deu a ver uma diferente configuração na relação som-imagem através de um trabalho mais elaborado na composição dos elementos visuais das sequências selecionadas. A figura 1 serve de exemplo. A luz é trabalhada de maneira a contrastar os elementos encenados. Este tipo de iluminação não corresponde ao padrão transparente, comum em telenovelas. Não há diálogo nessa cena. Quanto ao plano, a visão é de conjunto e, por isso, os detalhes ficam secundarizados. Há um animal morto no primeiro plano. Um pouco a frente dele está um homem que toma para si a carga que o animal levava. À frente deste homem, há uma mulher, Gabriela. Ambos estão de costas para câmera. Portanto, não é possível ver as faces sofridas pelas dificuldades enfrentadas na travessia do sertão. O sol, enquadrado à esquerda do plano mostra-se imponente, estourado. Podemos considerá-lo um personagem que castiga os demais com a sua presença constante.

2 Sobre essa discussão a acerca dos motivos que explicariam uma suposta falta de qualidade estética da telenovela cf. Pucc Jr, 2013.

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Figura 1: Cena da travessia do Sertão

Não queremos dizer com isso que não tenha havido diálogo nas sequências em questão, mas, sim, que ele foi inserido de modo pouco usual neste tipo de narrativa. Os estudos voltados para o estilo televisivo tem apresentado interessantes alternativas de abordagem da televisão tendo em vista mudanças cada vez mais significativas na composição audiovisual de seus produtos, imagens mais apuradas e com mais qualidade técnica que contribuem na produção de sentido pretendido pela narrativa. Jeremy Butler (2010) desenvolve seus estudos sobre estilo a partir de duas premissas: o estilo televisivo existe; o estilo televisivo é importante.

O conceito de estilo e sua pertinência para a análise

Jeremy Butler desde o final dos anos 1970 vem se dedicando ao exame das formas estético-expressivas da TV. Em Televison: Critical Methods and Applications (2009) sua discussão sobre os tipos de iluminação típicos da televisão representa avanços concretos em nossa compreensão das diferenças e sobreposições na produção em vídeo e em película. Em 2010 ele lançou Televison Style e prosseguiu fortalecendo o argumento segundo o qual podemos compreender melhor o funcionamento deste medium se estudarmos em detalhe as opções criativas abertas aos artistas em momentos históricos específicos.

De acordo com Butler entendemos estilo como qualquer padrão de técnica de imagem e de som que sirva a uma função dentro do texto televisivo. Estilo é a sua

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textura, sua superfície, a rede que une os seus significantes e através da qual os seus significados são comunicados. Sendo assim, todos os textos televisivos contêm estilo. O estudo do estilo interessa porque aquilo que é apresentado como conteúdo só nos afeta pelo modo como as técnicas são usadas. Sem interpretação, enquadramento, iluminação, cenário, edição, trilha sonora, não teríamos condições de apreender o mundo da história contada. Segundo Bordwell (2008, p.58)

O estilo é a textura tangível do filme, a superfície perceptual com a qual nos deparamos ao escutar e olhar: é a porta de entrada para penetrarmos e nos movermos na trama, no tema, no sentimento – e tudo mais que é importante para nós.

Os estudos sobre estilo televisivo chamam nossa atenção para o fato de que a percepção das características dos programas e das condições de sua criação ajuda-nos a avançar na compreensão de como eles funcionam.

A iluminação de uma cena orienta nossa compreensão dos valores morais que um personagem carrega. Através desta e de uma miríade de outras técnicas, a televisão apoia-se no estilo – cenário, iluminação, videografia, edição e assim por diante – para definir o tom/atmosfera, para atrair os telespectadores, para construir significados e narrativas, para vender produtos e dar forma às informações. Examinar este processo significa compreender como o estilo significa e qual é o seu significado em contextos televisivos específicos.

Análises recentes acerca desse tema vêm sendo realizadas (Borges, Pucci Jr., Seligman, 2011; Mittell, 2010; Butler, 2006, 2010; Machado, 2000) e enfraquecem argumentos segundo os quais programas televisivos, como as novelas, carecem de estilo. Estudá-lo é, também, estar atento aos impactos que elementos estilísticos de outros meios, como o cinema, exercem sobre a televisão; é analisar como as formas fazem uso de convenções estilísticas determinadas e socialmente compartilhadas.

Metodologia de análise estilística

Nesse texto daremos dois dos quatro passos da análise de estilo como proposta por Butler: a descrição e a função/análise do estilo. Deixamos de fora a análise histórica em virtude da impossibilidade de um recuo nos programas do gênero a fim de identificar padrões. Também não nos voltamos para a análise avaliativa, pois mesmo Butler entende-a como problemática pela falta de parâmetros mais específicos para se julgar a estética televisiva.

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A descrição seria o que o autor chama de passo básico. Para discutir estilo, deve-se primeiro ser capaz de descrevê-lo. A semiótica oferece o conjunto mais abrangente de ferramentas para se realizar uma descrição detalhada do estilo televisivo. Todos os estudos de mídia que se dedicam ao estilo devem desenvolver um método de descrição, nos termos de Bordwell, da “superfície de percepção” de um programa de televisão ou de um filme. É preciso uma “engenharia invertida” dos textos da mídia, para que possamos compreender plenamente o seu estilo. Assim a mesma atenção ao detalhe que roteiristas, diretores, editores, e demais profissionais dedicam à construção de um texto televisivo deve ser empregada na desconstrução deste texto. Uma descrição de um programa não deve replicá-lo. Ela deve servir apenas para promover a análise.

O segundo passo, baseado nos estudos da “teoria funcional do estilo” no cinema de Naol Carrol, visa detectar os propósitos do estilo e suas funções no texto. O trabalho do estudioso do estilo, assim, constitui-se na desconstrução de como o estilo cumpre uma função. Ao fazê-lo, o analista examina o funcionamento do estilo dentro do sistema textual – buscando padrões de elementos estilísticos e, em um nível mais elevado, as relações entre os próprios padrões. Usando estilo e forma de maneira inter-cambiável, Carrol afirma,

De acordo com a abordagem funcional da forma fílmica, a forma [ou estilo] de um filme individual é a reunião das escolhas cuja intenção é concretizar o propósito do filme. Esta abordagem da forma fílmica é diferente da abordagem descritiva. A descritiva diz que a forma fílmica é o montante total de todas as relações entre os elementos do filme. A funcional diz que a forma fílmica inclui apenas os elementos e relações intencionados para servir como o meio para o propósito do filme (Carrol apud Butler, 2010, p. 11).

Butler aponta várias funções do estilo televisivo. Algumas ele herdou dos estudos de cinema e outras ele desenvolveu para a TV de modo específico. São elas: denotar, expressar, simbolizar, decorar, persuadir, chamar ou interpelar, diferenciar e significar “ao vivo”. O estilo televisivo pode cumprir várias dessas funções ao mesmo tempo. Contudo, Butler sustenta que a função do chamamento, a pretensão de despertar e manter a atenção do telespectador é primordial em qualquer situação.

Gabriela do sertão para Ilheús: o objeto em cena

Nossa proposta visa analisar trechos do primeiro capítulo de Gabriela, novela das onze, exibida na TV Globo de junho a outubro de 2012. A narrativa conta a história de Gabriela, uma moça pobre que vive no sertão do Juazeiro com o tio idoso que não

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vê alternativa a não ser a de abandonar sua terra em busca de uma vida melhor em outro lugar. O tio então decide partir para Ilhéus, cidade conhecida como “terra do ouro verde”, o cacau. O tio falece no meio da travessia e Gabriela segue com mais dois retirantes. A chegada em Ilhéus é marcada por seu primeiro encontro com Nacib, por quem se apaixonará e com quem viverá um romance pouco convencional para os padrões do início do século XX e que renderá muitas tramas no folhetim.

Nosso corpus compreende as quatro sequências do primeiro capítulo nas quais a protagonista completa a travessia do sertão do Juazeiro até a cidade de Ilhéus. Conquanto faremos uma descrição de todas elas, não temos a pretensão de cobri-las em sua completude durante a análise3.

Inovações à vista

Autores que se dedicam a compreender o gênero telenovela citam a predomi-nância do diálogo como uma de suas características narrativas principais (Balogh, 2002; Martín-Barbero, 2001). As razões para tal são várias e não seria possível neste texto problematizá-las. O ponto que queremos enfatizar para o argumento da análise que se segue é que, ainda que na maior parte do texto Gabriela todas as convenções do gênero tenham sido observadas, chamou-nos atenção as opções escolhidas pelos realizadores para retratar a travessia entre sertão e Ilhéus. Será possível perceber uma predominân-cia da dimensão visual em detrimento do diálogo, referências a obras cinematográficas conhecidas por tematizarem essa questão (como Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, Morte e Vida Severin), registros artísticos como os de Candido Portinari, além de um conjunto de outras referências que habitam o imaginário social acerca do sertão.

Pretendemos argumentar que as inovações estilísticas tais como as que encontramos no corpus aqui analisado permite-nos avaliar o quanto a dimensão visual tem se prestado aos processos de produção de sentido, bem como a expressão da própria narrativa na mídia televisiva. Seja pelas mudanças tecnológicas que possibilitam mudanças no estilo; seja por uma nova geração de realizadores; seja por uma nova proposta de interação com a audiência. Assim, a atividade de interpreta-ção da imagem parece-nos pertinente a esses casos inovadores apresentados pela TV.

3Renato Pucci Jr. esclarece que “não é necessário analisar a obra inteira – diz um princípio da metodologia analítica aplicável em relação ao cinema e, por excelentes razões, aos estudos de televisão. Mesmo que a análise completa fosse possível no caso de um único filme (o que não é, além de que seria um trabalho estafante e inútil), em relação à telenovela o empreendimento seria absurdo devido às gigantescas dimensões do objeto Para uma análise proveitosa deve bastar a análise de pontos nodais, aqueles que podem conter os elementos necessários para que se atinja o objetivo da investigação” cf. Pucci Jr., 2013. Além disso, importante ressaltar que, essa composição visual mais elaborada corresponde apenas às quarto sequências da travessia exibidas no primeiro capítulo.

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Ademais, “o trabalho de interpretação da imagem, como na interpretação do verbal, vai pressupor também a relação com a cultura, o social, o histórico, com a formação social dos sujeitos” (Souza, 1998, p.4).

Vislumbramos uma análise que demonstre que a peregrinação de Gabriela adotou um tipo de composição visual que capta o telespectador para dentro da imagem, enfatizando a tridimensionalidade e explorando a profundidade do plano; ao mesmo tempo em que sustenta a narrativa da travessia dos personagens-retirantes demonstrando suas dificuldades, seus obstáculos e seu sofrimento.

Primeira sequência: as razões para partir

A primeira sequência começa com o tio idoso de Gabriela enquadrado em primeiro plano explicando a outro morador do sertão o motivo de sua partida, acon-selhando-o a partir também pois ali só a morte esperava por eles. A narrativa é bem pausada e, embora nesse primeiro trecho a presença do diálogo seja constante e ressalte a dimensão visual, a forma como ele foi introduzido diverge dos modos mais comuns pelos quais o diálogo conduz uma narrativa de telenovela. Tal trecho é representado através de planos fixos de imagens emblemáticas da seca no sertão: sol dilacerante, árvores secas e mortas, ossadas, semi-árido do solo (Figuras 2, 3 e 4). A conversa final entre esses personagens é vista sob o ponto do vista do espectador, pois ambos caminham de costas para a câmera num plano sequencia de 12 segundos.

Figura 2: Sol dilacerante. Figura 3: Árvore seca e morta.

Figura 4: Ossadas de boi. Figura 5: Tio de Gabriela conversando com o outro morador do sertão.

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Quando Souza fala sobre o trabalho de interpretação e suas relações com o entorno cultural, a dimensão social e histórica, além da própria formação social dos sujeitos muitos aspectos podem ser mencionados a esse respeito. O imaginário social acerca do sertão nordestino, suas dificuldades e desafios, é rico e popularmente conhecido. Em que pese o debate em torno da construção da identidade do nordeste místico e de suas mais variadas representações interessa-nos ressaltar aquelas que dão conta do sertão como o lugar de privação e provação, da seca e da luta constante pela sobrevivência.

A miséria do sertão foi escrita como denúncia social pela literatura de 1930, e depois encenada como problema político pelo cinema dos anos de 1960. Para Glauber Rocha, a sociedade brasileira tinha vergonha de sua fome, e preferia ver nas telas do cinema imagens exuberantes e imponentes, mesmo que isso não fosse possível de ser visto na realidade sensível. Segundo o diretor, o Cinema Novo teve a coragem de abordar essa temática abertamente. Para além das características discursivas do Cinema Novo voltadas à realidade brasileira houve a adoção de aspectos técnicos e visuais que contribuíram no compartilhamento da ambiência encenada do sertão. Segundo Xavier (2003, p.8) o Movimento foi contituído por

Um cinema cujo ideário envolvia articulação de demandas hoje bem conhecidas: um estilo moderno de cinema de autor, a câmera na mão, o despojamento, a luz ‘brasileira’ sem maquiagem no confronto com o real, o baixo orçamento compatível com os recursos e o compromisso de transformação social.

Em Gabriela o Cinema Novo serviu como inspiração ao construir essa ideia de sertão da qual a novela pareceu partir. Não queremos com isso afirmar que houve uma transposição estilística pura e simples de todos os aspectos deste Movimento como o gesto da câmera na mão. Houve, sim, uma inspiração da ideia socialmente comparti-lhada acerca do sertão e, conquanto a TV tenha feito escolhas próprias e dialogado com referências variadas, uma movimentação de câmera menos intensa, cenários humildes e rudes estabeleceram marcas visuais do lugar. Nas sequências analisadas, a câmera acompanha os personagens e quase sempre enquadra as ambientações em planos abertos e gerais.

Por isso é possível encontrar claras inspirações neste Cinema, como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, em que o sol (Figura 6) toma a cena e é enquadrado de forma a se impor sobre o sertão, configurando o seu caráter de dominador e opressor, sendo o responsável pela seca daquele espaço devastado no qual restos mortais de animais (Figuras 7 e 8) compõem esse universo. Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber

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Rocha, além dessas representações do sertão, há também uma composição na direção dos personagens (Figura 9) que nos lembra a cena que dá início a travessia (Figura 5). As escolhas feitas por Mauro Mendonça Filho ao trabalhar com um diálogo em um plano único nos lembra a forma como Glauber Rocha posicionava os personagens. A in-terpretação dessas imagens pode ser preenchida por essas referências que são estéticas, mas também culturais, sociais e históricas.

Uma vez mais o aspecto que queremos enfatizar não é o de que a televisão vive a explorar o estilo do cinema sem oferecer nada em troca, ponto comum em várias críticas, mas sim, o quanto os realizadores de Gabriela puderam lançar mão de uma composição visual mais trabalhada em detrimento do diálogo e compartilhar de referências acerca desta ambiência que o cinema ajudou a construir4.

Em seguida Gabriela é apresentada ao telespectador (figura 10), pegando água num poço praticamente seco e juntando seus poucos pertences a mando do tio para iniciarem a travessia. Na sequência os dois estão a andar pelo sertão seco, empoeirado,

4 Em entrevista ao portal da TV Globo, o diretor geral, Mauro Mendonça Filho, fala sobre o imaginário do sertão construído pelo cinema e pela literatura que lhe serviram como referências para a composição de Gabriela: “o sertão, pra mim, traz lembranças como o cinema de Glauber Rocha, o próprio (Walter) Avancini, 'Morte e Vida Severina' (de João Cabral de Melo Neto), a própria Gabriela, o sertão de Guimarães (Rosa), de Graciliano Ramos e por aí vai... Para a minha geração, o sertão tem uma força imagética muito grande. Fomos muito felizes, encantados com o resultado e com essa natureza que é impressionante" Disponível em: http://tvg.globo.com/novelas/gabriela/Bastidores/noticia/2012/05/foi-uma-escolha-certeira-diz-mauro-mendonca-filho-sobre-juliana-paes.html Acesso em: 26/09/2013.

Figura 6: Sol no filme Vidas Secas. Figura 7: Ossadas de animais.

Figura 8: Ossadas de animais. Figura 9: Cena do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol.

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sob um forte sol. O tio vai na frente e Gabriela segue atrás puxando um jumento. Até esse momento quase nada é dito. Ficamos apenas a sucessão de imagens em cores fortes, em tons amarelados simbolizando os fortes raios do sol. Detalhes do solo quebradiço, das árvores finas, dos gravetos secos, do sol no rosto, dos corpos enterrados e simbolizados por cruzes fincadas no chão.

Aqui é possível mencionar a pintura Os retirantes de Cândido Portinari (figura 12) como possível referência para o que se expressa nesse momento. Tais referências colaboraram na construção e no compartilhamento desse ambiente e talvez isso tenha contribuído para escolhas estilísticas feitas nas sequências que trouxemos para esta análise. Na figura 11, num contra-plongée uma cruz é trazida para o primeiro plano e os personagens atuantes no quadro estão completamente desfocados. Mas isso não impede que possamos compreender o sentido pretendido por essa cena: atravessar o sertão é correr risco de vida, é vencer um desafio que nem todos conseguem cumprir. Diante dos sustos e de certo receio de Gabriela o tio pronuncia: “vamos continuar”.

A noite cai, Gabriela e o tio (que está bastante fragilizado e com tosse forte) param para comer e descansar. Eles preparam um assado improvisando o espeto com gravetos das árvores secas do sertão. De repente ouvem um barulho vindo de um dos lados complemente escuro. De lá surgem dois homens famintos. Quando um dos homens reclama a fome, o tio responde ríspido: “aqui só tem pra nossa viagem”. Nesse momento uma tensão se estabelece e é expressada pelo olhar desconfiado de Gabriela e

Figura 10: Gabriela é apresentada.

Figura 11: Cena que referência a obra de Portinari. Figura 12: Os retirantes, Candido Portinari - 1944

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reforçado pela trilha sonora. O outro homem, chamado Clemente, acalma os ânimos e ambos se sentam afastados de Gabriela e do tio. Uma trilha sonora baseada em cordas de violão, e que parece tematizar a dura condição da vida no sertão, serve de tema para as trocas de olhares numa sequência entremeada de close-ups entre os personagens, prin-cipalmente dos homens famintos (figuras 13, 14, 15, 16) a salivar pelo assado (figura 17) que está sendo preparado diante deles. Chamam a atenção esse uso de planos detalhes nos olhares tensos dos personagens em cena e a luz baixa que ajudam a expressar a tensão de um momento no qual um conflito está prestes a acontecer. Não há diálogo. Apenas as trocas de olhares e os planos detalhes do assado e das armas expressam o sentido que a narrativa pretende construir. O que há de novo é que não há redução da imagem a um dado complementar, a uma condição acessória, destituída de seu caráter de narrativa, de linguagem. Nestas sequências, as dimensões do diálogo e da imagem não se equivalem. A segunda não se vê traduzida através da sua verbalização, nem se apaga como elemento que pode se tornar visível por sua própria força.

Figura 13: Close-up Clemente. Figura 14: Close-up Gabriela.

Figura 15: Close-up Fagundes. Figura 16: Close-up Tio.

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Retomando as funções do estilo apresentadas por Butler, é possível convocar a segunda delas, qual seja, a de qualidade expressiva, que se refere às emoções que um estilo revela e àquelas que ele provoca no espectador. No caso das primeiras, o estilo apresenta qualidades repletas de sentimento (a sequencia/o plano transmite tristeza) que “podem ser transmitidos pela iluminação, pela cor, pela interpretação, pela trilha musical e por certos movimentos de câmera” (Butler, 2010, p. 12). Ou seja, tais escolhas pretendiam sustentar alta expressividade através da composição visual.

Segunda sequência: os desafios da travessia

Quando a segunda sequência começa já é dia no sertão. Um plano aberto nos mostra uma paisagem árida, coberta por pedras, em cuja imagem predominam tons terrosos que simbolizam a secura do lugar (figura 18). Os personagens estão ao fundo da cena, quase invisíveis ao olhar do telespectador. A câmara vai se aproximando lentamente. A trilha é como a de um clamor. Os personagens param por um instante observando em volta. O tio de Gabriela cospe sangue e nesse momento ela se aproxima dele e diz: “levante meu tio, tenha força. Levante!”. O tio alega que não aguenta mais, que sua hora chegou e ordena que a sobrinha siga viagem com os dois homens. Pausa para vinheta de abertura e o ato seguinte retoma a sequência anterior quando Gabriela se nega a seguir sem o tio dizendo que não iria deixá-lo para os ururbus. As imagens redundam as falas pois mostram urubus sobrevoando o local como se estivessem

Figura 17: Plano detalhe da carne.

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“sentindo o cheiro de defunto”. Gabriela e um dos homens, Clemente, colocam seu tio sob o jumento e seguem em frente. Um plano plongée (figura 19) detalha o chão quebradiço de tão seco e Gabriela puxando o jumento que arreia levando o tio ao chão. O homem coloca o tio de Gabriela sob os ombros e a travessia é retomada. O enquadra-mento e o uso de planos abertos nessas cenas realçam um dos elementos mais marcantes da ambiência do sertão, o sol escaldante, com predominância de tons avermelhados e amarelados. As personagens no quadro, Gabriela, os dois homens e o tio nos ombros de um deles, ora são mostradas apenas através de suas silhuetas, ora num plongée no qual se transformam num dos elementos que compõem o cenário. Nessas cenas também chamam nossa atenção a secura do lugar, realçada pela iluminação e os tons bruno--amarelados, e planos do sol que novamente compõe a cena (figura 20). Esses elementos visuais mais elaborados podem ser identificados na quase totalidade das sequências que escolhemos para esta análise.

Figura 18: Plano geral do sertão. Figura 19: Plongée dos personagens.

Figura 20: Personagens em contra luz no pôr do sol.

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Podemos recorrer à terceira função estipulada por Bordwell e adotada por Butler, a de simbolizar, cuja habilidade consiste em “produzir significados mais conceituais e abstratos”, através das opções pelas quais se controem o cenário e se montam as cenas: elas nos conduzem a temas específicos associados a esta “encenação do sertão”: pobreza, aridez, fome, escassez, miséria.

Terceira sequência: a noite “americana” do sertão

A terceira sequência começa com noite já escura. A imagem recebe um filtro totalmente azulado e num travelling lateral a câmera nos mostra o sertão à noite. A adoção da técnica conhecida como noite americana5 é evidente. Os personagens quase não se falam. Apenas Gabriela agradece um dos homens pela ajuda recebida para si e para seu tio. Numa transição da realidade para o sonho, Clemente embarca em seu desejo por Gabriela e imagina a moça se embrenhando pelas árvores finas e secas sorrindo e sendo seguida por ele. A imagem é muito escurecida e a trilha vai se acelerando aos poucos como que acompanhando o ritmo crescente dos passos de Gabriela. Quando ele a alcança os dois se jogam ao chão e ali começam uma relação sexual.

Figura 21: Cena em que a técnica da Noite americana é utilizada.

5 Em entrevista, o diretor de fotografia Adriano Goldman traça algumas características do que seria a técnica da noite americana “Não sei exatamente porque chama noite americana, talvez isso seja coisa ligada aos filmes de cowboys, western, quando eles usavam esse recurso de filmar de dia e depois corrigir a cor, e a luminosidade, o contraste e tudo para parecer que era uma noite de lua cheia.” “Se criava um pouco essa noite mágica, que eu acho que o publico aceita de maneira geral como sendo narrativamente uma noite.” Disponível em: <https://vimeo.com/15060508> Acesso em: 27/09/2013.

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Corte seco e Clemente acorda de repente quando já é dia. Esta cena foi composta não em função da verosimilhança, mas sim, do significado, - pois além de um visual es-teticamente elaborado, ela chama atenção para o sol novamente como um personagem do cenário – uma vez que sua posição e intensidade indicam proximidade com o meio do dia e não com as primeiras horas da manhã quando supostamente os retirantes estariam acordando (Figura 22).

Figura 22: Composição da morte do Tio de Gabriela.

Clemente observa em volta e adiante avista Gabriela abaixada próxima ao seu tio sendo observada pelo segundo homem. A moça apenas diz “Meu tio, Clemente”, ao que ele reponde “morreu dormindo. Já tá inté isfriano. Vai ter que seguir sem ele Gabriela”. Em seguida ela afirma: “não vou deixá meu tio pros urubu”. A cena seguinte mostra os dois homens finalizando o enterro do tio de Gabriela que apenas diz “fique com Deus meu tio”. A parte final começa com um plano de cima de um sertão empoeirado a câmera se abaixa lentamente. Corte e a sequência apresenta um plano conjunto de Gabriela e os dois homens seguindo viagem. A câmera é fixa e os personagens é que dela se aproximam. Embora os contornos de Gabriela, Clemente, e o outro homem estejam bem definidos, em alguns momentos a cena é totalmente tomada pela luz do sol e, como que um obstáculo a ser transposto, os personagens rompem a luz para continuar seu percurso. A câmera permanece fixa e esta terceira sequência finaliza com um primeiro plano do rosto sofrido e cansado de Gabriela e esta represen-tação do sertão nos remete aos aspectos apontados na sequência anterior.

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Quarta sequência: a chegada em Ilhéus

A última sequência tem início no Mercado de Retirantes de Ilhéus mostrado através de planos gerais e de planos conjuntos, mas também de planos incomuns para este tipo de narrativa. Um contra-plongée mostra artistas de rua cantando e dançando (figura 23). Um primeiríssimo plano mostra um vendedor de peixe a clamar por fregueses (Figura 24). Assim como esses, outros planos pouco convencionais foram escolhidos para esta sequência da chegada dos retirantes ao Mercado.

Quando Gabriela chega muitos rostos são enquadrados sem que nada seja dito. Uma sequência de closes-ups (figura 25 e 26) como se fossem retratos de personagens irrelevantes, entremeados aos das personagens do folhetim, conferem à filmagem dos perfis um tratamento de paisagem. São instantes fotográficos de pessoas sofridas, famintas, assim como Gabriela e os dois homens. A tristeza e o sofrimento parecem ter sido intensificados por esses enquadramentos. Personagens cabisbaixas, olhares tristes, perdidos, oprimidos, desesperançosos expressam dor, cansaço, desalento. Nenhum diálogo até o momento. A trilha sonora diegética traz um repentista cantando as agruras daquela gente.

Aqui também vemos referências ao filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha (Figuras 27, 28, 29 e 30) em que personagens nos são apresentados apesar

Figura 23: Artistas de Rua. Figura 24: Vendedor de Peixe.

Figura 25: Close-up de um figurante. Figura 26: Close-up de um figurante.

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de não possuírem um peso narrativo forte. Seus momentos de sofrimento são indivi-dualizados, ao mesmo tempo que sua situação é coletivizada. Todos estão ali passando pela mesma situação, assim como nos foi possível ver em Gabriela.

Embora o uso de primeiro plano seja comum em narrativas de telenovelas, a edição, a forma como eles foram apresentados é que nos chamam a atenção para o sentido que pode ser extraído do folhetim. Essa sequência contada num ritmo mais lento diverge das críticas feitas à dimensão visual desses produtos. Vários segundos são gastos apenas pelos primeiros planos de Gabriela e Nacib a se entreolharem pela primeira vez. Ele está a procura de uma cozinheira para seu bar e quando se afasta ela continua a observá-lo. Corte para um coronel que deseja contratar trabalhadores para sua fazenda. Ele estranha a presença na Nacib no local que continua sua procura sondando algumas mulheres quando Gabriela começa a cantar uma canção que chama a atenção do turco. Ela canta o que veio fazer ali: buscar um pouso novo para levar sua vida. Ele se aproxima e pergunta o que ela sabe fazer. Ela responde: “de tudo um pouco seu moço”. Ele faz mais algumas perguntas mas não se mostra muito animado a contratá-la e se afasta mais uma vez. Com ele já de costas, Gabriela pronuncia “moço bonito”. A trilha aumenta, ele se volta para olhá-la e ela corresponde ao seu olhar. O clima de romance que se instaura entre eles perdurará por toda a novela. Fim da

Figura 27: Close-up dos personagens de Rocha.

Figura 28: Close-up dos personagens de Rocha.

Figura 29: Close-up dos personagens de Rocha.

Figura 30: Close-up dos personagens de Rocha.

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sequência e do primeiro capítulo.

Considerações finais

O investimento feito na dramatização da travessia do sertão leva-nos a crer que para apreciar a imagem é preciso ‘se ater’ um pouco a ela. Nessa composição, os planos mais abertos, as sequências mais longas e a movimentação de câmera menos intensa foram os elementos que jogaram papel importante na produção de sentido pretendida pela narrativa.

Nesse processo de produção dois aspectos chamaram nossa atenção: a inserção e a intensidade dos diálogos e a presença de certo imaginário compartilhado do sertão. Em verdade, a análise que empreendemos indica que eles estão relacionados. Se por um lado, é notável que o diálogo não teve a mesma força como de costume em narrativas de telenovelas, dando lugar à construção de uma composição visual mais trabalhada, por outro, essa elaboração contou com referências de certo modo consolidadas acerca do sertão, das dificuldades e desafios que ele apresenta para aqueles que ali vivem, o que dispensou um diálogo muito detalhado nesse sentido.

Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito às possibilidades tecnológicas alcançadas pela produção televisiva. Obviamente, como fizemos notar, a discussão envolve mais do que aspectos tecnológicos. Contudo, ser recurperarmos o que nos indica Butler, para quem o estilo existe na interseção de padrões econômicos, tecnológicos e códigos semióticos/estéticos, é preciso considerar o fato de que o aumento no tamanho das telas e a qualidade da produção e exibição em HD contribuíram para esse incremento da imagem e da composição diferenciada do audiovisual na produção para este medium.

De todo modo, não verificamos tais inovações em todos os textos televisivos, nem mesmo nesta telenovela inteira. Tal observação nos conduz a um último questiona-mento: Diante do fato de não ser possível sustentar uma composição visual elaborada do princípio ao fim, tendo em vista o acelerado ritmo de produção de uma telenovela, vale a pena investir em ousadas composições visuais e ter prejuízo do diálogo contrariando expectativas do gênero?

A resposta a essa questão merece uma reflexão mais aprofundada. Contudo, alguns encaminhamentos podem ser avistados. Nos objetos aos quais temos submetido nossa investigação – a telenovela das onze – é possível apontar esse trabalho mais minucioso sobretudo nos primeiros capítulos quando pretensamente se quer atrair o telespectador e aderi-lo à trama. Um outro encaminhamento para essa questão nos é dado por Pucci Jr (2013) quando de sua análise estilística da novela Avenida Brasil.

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Para este autor as cenas com um trabalho audiovisual diferenciado são aquelas que se referem a momentos de tensão ou de conflito em potencial. No restante, nada de novo, mas, sim as tradicionais regras do gênero já há muito estabelecidas e compartilhadas.

Referências Bibliográficas

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opções de dRaMatuRGia e encenação no pRoGRaMa infantil teatRo Rá tiM BuM!

GaBRiela BoRGes

Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP com Pós-Doutorado na Universidade do Algarve, Portugal. Atualmente é professora permanente do PPGCOM-FACOM/UFJF.E-mail: [email protected]

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ResuMo

Este artigo aborda a questão da qualidade dos programas infantis no cenário audiovisual brasileiro a partir da análise do episódio João e Maria do programa Teatro Rá Tim Bum! atualmente em exibição na TV Rá Tim Bum!. Em primeiro lugar, empreendemos uma discussão sobre a definição de parâmetros de qualidade, na sua relação com a literacia midiática, para a análise da produção de programas infantis. Em segundo lugar, analisamos as opções de dramaturgia e encenação da transcriação de João e Maria pela Cia. Le Plat du Jour para a televisão.

Palavras-chave: Qualidade; Televisão; TV Rá Tim Bum!; João e Maria.

aBstRact

This paper addresses the issue of the quality of children’s programs in the Brazilian audiovisual scene from the analysis of the Hansel and Gretel episode of the Teatro Ra Tim Bum! programme currently showing on TV Ra Tim Bum!. Firstly, we discuss the definition of quality parameters, and their rela-tionship with media literacy, to analyze the production of children’s programmes. Secondly, we analyze dramaturgy and misé-en-scene of Hansel and Gretel TV trans-creation by Cia Le Plat du Jour.

Keywords: Quality; Television; TV Rá Tim Bum!; Hansel and Gretel.

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Qualidade na Televisão

A qualidade da programação e dos programas infantis tem sido bastante discutida nos últimos anos, com os estudos desenvolvidos por Nikken (1999), Pereira (2007), Carenzio (2008), Tur Viñes (2008), Vitorino (2012), Carmona

(2013), Borges (no prelo), entre outros, que procuram definir critérios para se analisar a produção de conteúdos dirigida a este público.

Nikken (1999) procurou construir critérios a partir das opiniões das crianças, mães, profissionais e críticos sobre a qualidade de um programa de televisão, tendo chegado aos seguintes critérios que são comuns a todos estes públicos: o programa deve ser inofensivo, não assustar as crianças, não provocar tristeza nem conter violência ou linguagem obscena; ser compreensível; ter qualidade estética; ser envolvente e captar a atenção das crianças; entreter; ter credibilidade e ter a presença de modelos de conduta.

A partir do estudo de vários autores, Pereira (2007, p. 119) sistematiza a qualidade de uma programação a partir dos seguintes critérios: oferecer uma diversidade de gêneros de programas; uma diversidade estilística (diversas origens e estilos); programas que sirvam às necessidades essenciais de informação, entretenimento e lazer do público; estimular positivamente a imaginação das crianças; promover o interesse por outras atividades educativas, culturais e esportivas; fomentar o conhecimento e o intercâmbio entre culturas; ser diversificada em relação ao público e à complexidade das realidades sociais em que as crianças vivem e oferecer uma programação regular e estável, distribuída por várias faixas da grade de programação.

Carenzio (2008, p. 339) propõe os seguintes critérios para a definição de um programa de qualidade: envolver as crianças na mensagem; falar de modo claro e direto; utilizar níveis linguísticos diferentes para desenvolver o patrimônio expressivo e encontrar os estilos cognitivos dos destinatários; adaptar-se aos ritmos do público; falar sobre a realidade, apresentando argumentos interessantes e modelos positivos que respeitam o sujeito; falar com as crianças, deixando o espaço que merecem para narrar o seu próprio mundo; utilizar a curiosidade das crianças como estímulo para aprender

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e não como instrumento de manipulação e promover a autonomia crítica como antídoto à acomodação.

Tur Viñes e Diaz (2008, p. 297-8) definem o conceito de qualidade de um programa de televisão a partir das dimensões audiovisuais, da mensagem, legislativa e entretenimento. Apontando as seguintes características:

• Audiovisuais: utilização dos recursos técnicos para produzir conteúdos de boa qualidade em termos de imagem, som e edição final; o roteiro deve estar adaptado à capacidade compreensiva do público-alvo, tanto na sua complexidade argumentativa como no tratamento dos seus conteúdos. • Mensagem: apresentação de uma moral da história que seja útil para a vida da criança; convite à interatividade; não conter violência; conter condutas pró-sociais; utilização de um nível médio/alto ou alto de linguagem (construções gramaticais corretas e vocabulário amplo), evitar a repetição de adendas e o uso de expressões ofensivas ou insultos; conter gírias específicas da infância e não conter conteúdos sexuais inapropriados para a infância. • Legislativas: não pode incluir cenas ou mensagens que possam prejudicar o desenvolvimento físico, moral ou mental da criança ou fomentar o ódio, desprezo ou discriminação. • Entretenimento: deve ser considerado divertido pelo público infantil, já que assistir televisão faz parte do tempo dedicado ao lazer. Carmona (2013) define os objetivos de uma produção de conteúdos de qualidade

a partir dos seguintes indicadores: inspirar a criação de repertório estético e cultural das crianças; contribuir para desenvolvimento cognitivo dos pequenos; contribuir para a sua autonomia; potencializar a sua criatividade e a imaginação naturais; procurar entender e falar a linguagem e o idioma infantis e apoiar a construção infantil de significados.

Vitorino (2012, p. 123) realiza um estudo sobre a programação da TV Brasil que entende a qualidade a partir de dois eixos temáticos: um eixo relacionado às questões cognitivas (desenvolvimento da linguagem e pensamento, bem como o simbólico na criança), e outro que se refere ao desenvolvimento de modelos de conduta construtivos (sociabilidade, juízo moral diante dos conflitos e regras sociais).

Dentre os vários critérios discutidos, destacamos a diversidade (opiniões, sujeitos representados, temas, geográfica, formatos e registros); as propostas estéticas (originalidade e experimentalismo da linguagem); o fomento da imaginação; o desen-volvimento de valores cívicos e da consciência crítica e a promoção dos valores éticos. Nos programas de ficção destacamos ainda a importância da veiculação da informação

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agregada ao entretenimento, no sentido de veicular narrativas que promovem o desen-volvimento de modelos de conduta construtivos.

Sendo assim, argumentamos que os valores qualitativos que estão agregados a um produto cultural o diferenciam dos demais e promovem a melhoria não apenas da oferta de conteúdos de um modo geral, mas também da própria literacia midiática, que está intrinsecamente ligada à produção e ao consumo destes conteúdos.

Literacia midiática

A literacia midiática tem sido definida por autores como Livingstone (2004) como “a capacidade de acessar, analisar, avaliar e criar mensagens através de uma variedade de contextos diferentes”. Portanto, a inter-relação entre a qualidade e a literacia midiática torna-se ainda mais pertinente num cenário de convergência de mídias, porque não nos referimos apenas ao consumo, mas também à capacidade crítica de acessar e de criar conteúdos, o que vem se tornando cada dia mais freqüente nos meios digitais.

A produção de conteúdos de qualidade, conforme discutido anteriormente, pode promover a formação do repertório estético e cultural das crianças que estará, consequentemente, contribuindo para o desenvolvimento cognitivo, estimulando a imaginação e a formação de um olhar crítico e autônomo. Neste sentido, é muito importante que as crianças tenham acesso a programas de qualidade para que desenvolvam suas competências e habilidades de leitura das imagens e dos discursos televisivos e possam criar conteúdos criativos e inteligentes.

Neste sentido, a televisão pode contribuir na educação para as mídias, porque, ao ter acesso aos programas de qualidade, as crianças terão um conhecimento de mundo a partir das perspectivas abordadas nestes programas. Perez Tornero (1997, p. 25) afirma que a educação para a televisão deve promover o uso criativo e livre do meio, no sentido das crianças e adolescentes conhecerem e saberem utilizar as possibi-lidades expressivas da tecnologia televisiva. O desenvolvimento da tecnologia digital vem permitir uma forma de comunicação entre o público e a produção televisiva sem precedentes. Buckingham (2005, p. 280) salienta que, no contexto da educação para as mídias, é importante que se promova o desenvolvimento das habilidades técnicas, mas também é necessário estimular uma compreensão mais sistemática sobre a forma como a mídia opera e, consequentemente, promover formas mais reflexivas de utilizá-la.

Fontcuberta (2008, p. 190) defende a dimensão pedagógica dos meios de comunicação,

uma vez que estes incorporam um tipo de saber que os transforma em agentes educativos,

ao lado da escola e da família. Na sociedade contemporânea, as mídias adquiriram um papel

fundamental enquanto espaços de acesso ao conhecimento. Elas transmitem tanto informação

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quanto saberes, muitas vezes criando uma compreensão própria do mundo. Neste sentido, é

imperativo que as crianças e os jovens adquiram competências audiovisuais para que possam

não só conhecer, mas também entender e analisar as linguagens e códigos dos discursos das

mídias. Para isso, é necessário que conheçam o processo de produção de conteúdos, tenham

capacidade para analisá-los desde uma perspectiva crítica, saibam interagir de forma reflexiva

assim como produzir mensagens midiáticas com um mínimo de qualidade.

O estudo Public service media in the information society (Nielsen, 2006), destaca

um novo conceito que é inserido no conhecido trinômio do serivço público - informar,

educar e entreter – e que se adequa ao novo cenário cultural, político e social do século XXI,

nomeadamente o conceito de habilitar (to empower) ou fornecer elementos para que os teles-

pectadores possam agir como verdadeiros cidadãos. A mídia deve assim contribuir tanto para

a formação cívica quanto para a promoção dos direitos humanos fundamentais. Neste sentido,

o desenvolvimento de competências audiovisuais e midiáticas pode contribuir para que as

crianças e os jovens tenham uma maior conscientização do importante papel desempenhado

pela televisão na sociedade atual.

O canal TV Rá Tim Bum!

A oferta da programação infantil no cenário audiovisual brasileiro configura-se do seguinte modo, encontramos poucos programas nos canais comerciais de sinal aberto, sendo que a TV Brasil, conforme aponta Vitorino (2013), e a TV Cultura apresentam uma oferta variada e de qualidade. Por outro lado, a televisão por assinatura tem uma ampla oferta de programação infantil, sendo que os canais são, na sua maioria, estrangeiros com dublagem em português, mas encontramos ainda alguns essencial-mente brasileiros, como o Gloob e a TV Rá Tim Bum!, que nos interessa analisar neste estudo.

Em 2004, a Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura e das Rádios Cultura AM e FM, criou um canal infantil brasileiro de TV por assinatura: a TV Rá Tim Bum!. O canal se posiciona como produtor de conteúdos infantis e serve como uma plataforma de lançamento de novos produtos, “estimulando a produção nacional, formatando parcerias com criadores e produtores independentes e trazendo para a criança brasileira uma programação com a sua linguagem”1.

O canal é destinado às crianças de 2 aos 10 anos, com a programação sendo dividida nas seguintes faixas: de 0 a 3 anos, de 4 a 6 e maiores de 7 anos de idade. A programação é produzida sob a supervisão de profissionais ligados à educação

1 Disponível em < http://tvratimbum.cmais.com.br/conheca-a-tv-ra-tim-bum>. Acesso em: 12 mai. 2014.

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infantil, pedagogos e psicólogos, abordando temas relevantes para o desenvolvimen-to da criança, tais como relacionamento social, alfabetização, saúde, higiene, artes e diversidade cultural.

Os objetivos detalhados no site2 do canal são os seguintes:

• Defesa do entretenimento saudável e enriquecedor, que demonstre respeito à inteligência e à sensibilidade das crianças;• Defesa dos direitos humanos e da informação como instrumento de cidadania;• Valorização dos programas como complemento à ação educadora da escola e formadora da família;• Valorização da análise e do espírito crítico e questionador como forma de estimular a busca de conhecimento e informação;• A defesa da pluralidade, da diversidade e direitos das minorias, valorizan-do-se as culturas regionais e a identidade nacional. • Valorização da criatividade e inovação na produção de programas educativos e culturais.Em 2012 a imagem do canal foi reestruturada e o slogan proposto foi: “A TV que

cresce com você!”, que quer celebrar a criança que existe em cada um de nós. Em termos de imagem, foi escolhida a bolha de sabão, que faz parte do imaginário de qualquer criança e onde se encontra o espectro de todas as cores. Assim, o canal pretende se comunicar com o telespectador apresentando programas variados que promovem a diversão e a informação. Segundo a comunicação do site, os conceitos que norteiam o trabalho são “imaginação, criatividade, risadas, brincadeiras, aprendizado, curiosidade, raciocínio e experimentação”.

O conceito de programação define o canal TV Rá Tim Bum! como “a voz e a imagem da criança brasileira”. Apresenta temas pertinentes ao universo infantil sob a perspectiva da cultura brasileira e explora os personagens, os momentos históricos, as lendas, os mitos, o folclore e as canções que traduzem a diversidade e a riqueza da nossa cultura. O canal prima pela produção infantil nacional de desenhos, teatro, musicais e programas especiais, discutindo temas que geram reflexão e descobertas, tais como educação, higiene, saúde, consumo consciente, igualdade de sexo e preconceito, mas sempre sob o ponto de vista das crianças. Além disso, o canal produz programas de qualidade por meio de ações de parcerias entre a Fundação Padre Anchieta, outras TVs Educativas do Brasil e produtores independentes.

Com uma oferta diversificada dividida em faixas de programação, tais como

2 Disponível em < http://tvratimbum.cmais.com.br/conheca-a-tv-ra-tim-bum>. Acesso em: 12 mai. 2014.

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Hora de história, Quintal da cultura, Aventuras em série, Hora animada, É hora, é hora, é hora de rá tim bum!, Quintal da cultura especial, Mistureba, Laboratório Rá tim bum!, Cine Rá Tim Bum!, Teatro Rá Tim bum! e a exibição de outros clássicos da televisão pública brasileira como TV Cocoricó e Vila Sésamo, a produção do canal está sustentada no trinômio do serviço público - entreter, informar e educar. Os clássicos da TV Cultura são exibidos em horários especiais e em faixas da programação voltadas para pais e filhos, pois assim o canal pretende envolver a família através da memória audiovisual.

Os programas são elaborados para serem distribuídos em diversas plataformas, desdobrando-se em narrativas transmídias para “jogos, aplicativos para web e móbile; pílulas (ou programetes) a serviço de outras gamas temáticas (personagens consagrados falando sobre meio ambiente, história, saúde...); portal web com interatividade através de fotologs, redes sociais, murais de recado; apresentações ao vivo (teatro, esquetes e eventos especiais); livros; DVDS; entre outros”3.

O Programa Teatro Rá Tim Bum!

Desde Rá Tim Bum, o primeiro programa exibido em 1990, passando por Castelo Rá Tim Bum, Ilha Rá Tim Bum e mais recentemente Teatro Rá Tim Bum!, a franquia televisiva tem levado às telas entretenimento de qualidade para o público infantil. Como ressalta Machado (2000), o conceito de qualidade, apesar de ser controverso e encontrar alguns detratores no mundo acadêmico, vem sendo discutido no que diz respeito à programação infantil desde os anos 1980, ganhando especial relevância no contexto de convergência das mídias em que vivemos atualmente.

O programa Teatro Rá Tim Bum! leva para a tela da televisão a adaptação de textos clássicos da literatura infantil, tendo transcriado Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, João e o Pé de Feijão, entre outras histórias. Neste trabalho pretendemos discutir as particularidades da transcriação literatura, teatro e audiovisual na criação de um produto intermídia e a importância da promoção da literacia midiática, na sua relação com a qualidade dos conteúdos e no desenvolvimento de uma linguagem apropriada ao público infantil.

O episódio João e Maria, produzido pela companhia de teatro Cia. Le Plat du Jour, tem direção de Alexandra Golik e Carla Candiotto e conta com Luna Martinelli e Bebel Ribeiro no elenco4. O programa é dirigido a crianças maiores de 3 anos. Recebeu o Prêmio Femsa de Teatro 2007 na categoria Melhor Cenografia (Le Plat du Jour e Nani

3 Disponível em < http://tvratimbum.cmais.com.br/conheca-a-tv-ra-tim-bum>. Acesso em: 12 mai. 2014.4 A trilha sonora é de Pepe Cisneros e Bruno Cardoso, o desenho de luz é de Miló Martins, o cenário de Le Plat du Jour e Nani Brisque e os adereços de cenário e figurino de Nani Brisque.

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Brisque), tendo sido indicado para este Prêmio em várias categorias5.A Cia. Le Plat du Jour pesquisa a linguagem teatral relacionada ao universo da

criança. Ao trabalhar com o conto de fadas, procura contar a história na íntegra, porém de uma maneira irreverente e criativa. Os recursos usados pelo grupo são: teatro físico, mímica, canto, manipulação de objetos, non-sense, dança, imagens lúdicas, instrumentos musicais, improviso, e a linguagem do palhaço como o fio condutor6.

De acordo com o release disponível no site do grupo7, a escolha da história de João e Maria para ser recriada deveu-se à sua riqueza simbólica e às suas possibili-dades cênicas. É uma história que aguça a inteligência e a criatividade e que permite trabalhar vários temas, tais como a relação com os pais, o sentimento de abandono, a sobrevivência na floresta, a casa da bruxa, a fome, a convivência com o perigo de morte, a superação do medo, a volta ao lar, a transformação das crianças, e também a questão da ecologia, que foi aproveitada pelo grupo a partir dos elementos da história.

A história de João e Maria passa por dois níveis de transcriação ou tradução intersemiótica: do texto original dos Irmãos Grimm para o teatro e do teatro para o audiovisual no programa Teatro Rá Tim Bum!. E o que encontramos como produto final é uma obra intermidiática, que se encontra nas fronteiras entre o teatro e o audiovisual, uma proposta esteticamente original e que força os limites entre estas duas formas de expressão.

A transcriação mantém o cerne da obra, nas palavras de Campos (apud Plaza: 1987, p. 28), conserva o signo na sua materialidade, no que se refere à amizade entre os irmãos, a sequência de eventos na floresta, os índices que deixam marcada a presença das crianças, como as pedras (pegajosas), as migalhas, a casa de chocolate, a bruxa e a madrasta. A proposta da Cia. Le Plat du Jour conta a história com uma pegada ecológica, pois esta é encenada numa floresta que está em vias de ser extinta pelo desmatamento e pelas queimadas. Em função disso, são inseridos duas aves narradoras, que contam a história de um modo bastante irreverente e apelativo ao público infantil.

A história tem cinco personagens (João Maria, Maria João, as duas aves Bicudinha e Bicudona e a bruxa Meméia), que são representados por duas atrizes (Luna Martinelli e Bebel Ribeiro) e por duas marionetes esculpidas em madeira (pai e madrasta). Os dois irmãos, J.M (João Maria) e M.J. (Maria João), contracenam com as aves, que querem mudar do ramo do “avoar para o ramo do cantar”. Como a floresta

5 Melhor Espetáculo Infantil, Melhor Cenografia (Le Plat du Jour e Nani Brisque), Melhor Direção (Alexandra Golik e Carla Candiotto), Melhor Texto Adaptado (Alexandra Golik, Carla Candiotto, Bebel Ribeiro e Luna Martinelli), Melhor Iluminação (Miló Martins), Melhor Atriz (Bebel Ribeiro), Melhor Produção (Le Plat du Jour) e Melhor Música Composta (Pepe Cisneros e Bruno Cardozo).6 Disponível em < http://leplatdujour.com.br/joaoemaria.htm>. Acesso em: 14 mai. 2014.7 Disponível em <http://leplatdujour.com.br/joaoemaria.htm>. Acesso em: 14 mai. 2014.

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está toda desmatada e todos os animais foram embora, Bicudinha e Bicudona querem ganhar um concurso internacional de dança dos pássaros sem floresta para poderem ir embora também.

Se consideramos a transcriação do texto a partir da sua origem no conto dos irmãos Grimm, percebemos que na peça da Cia. Le Plat du Jour, as aves foram criadas para serem as narradoras e além disso adicionam novos elementos narrativos ao texto original, tais como o concurso internacional de dança, no qual representam a dança brasileira, e o próprio debate sobre o desastre ecológico, tornando-se centrais no desenrolar da trama.

As aves narradoras atuam de forma bastante teatralizada, com expressões co-reografadas e o trabalho de corpo do chamado teatro físico. Segundo Desmond Jones, o teatro físico é a mímica contemporânea, que recebeu esta denominação para se diferenciar do gênero silencioso da pantomima de Marceau e “explora a arte da mímica como um ato total, que une o corpo, a voz e a criação na figura do ator”8.

A diferença substancial que encontraremos na transcriação audiovisual está relacionada com a encenação. No teatro, temos o uso de um palco redondo giratório com duas partes, isto é, enquanto a história se passa na parte da frente, a próxima ação é preparada na parte de trás do palco, que logo gira e apresenta a ação seguinte. O cenário é construído com retalhos de tecidos, as casas de J.M e M.J. e da bruxa Meméia são estilizadas, mostrando apenas a parede da frente, e a ação se passa num espaço cênico mínimo que concentra, nas personagens, toda a força dramatúrgica. A atuação do pai lenhador e da madrasta é feita dentro de uma janela no clássico estilo do teatro de marionetes.

No meio audiovisual, o cenário é mais amplo, tendo a floresta com suas árvores queimadas como cenário e um fundo alaranjado para representar as queimadas, e outro roxo-azulado quando é noite. As casas foram totalmente construídas dentro da floresta. A casa de J.M e M.J. é de palha, com uma janela a partir de onde vemos o pai e com os sofás cobertos também de palha na pequena varanda da frente, onde as duas crianças passam a noite a dormir um sono coreografado. Os doces e biscoitos da casa da bruxa Meméia aparecem como que por um passe de mágica, pois as crianças adormecem na floresta diante da casa e, ao acordarem, todos os doces surgem na parede da casa por meio de desenhos gráficos. Nesta transcriação as marionetes ganham certa mobilidade, em que o pai aparece atrás de uma janela, mas em plano médio e a madrasta aparece do lado de fora da casa.

Em termos dramatúrgicos, a transcriação audiovisual mantém o conflito da

8 Mímica e Teatro Físico. A origem do termo teatro físico. Disponível em <http://www.cialuislouis.com.br/tf-origem.htm#pe17> Acesso em: 15 mai. 2014.

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história, isto é, as ações referentes às crianças que estão perdidas na floresta porque as migalhas de pão que deixam pelo caminho são comidas pelas aves. Porém, as aves ganham uma dimensão diferenciada ao se tornarem as narradoras e também ajudarem J.M e M.J. a acharem o caminho de volta para casa. A causalidade desta narrativa é construída de forma bastante articulada, as crianças se perdem na floresta porque a madrasta mandou o marido deixá-las lá, uma vez que o suprimento de comida estava acabando. Como o pai não sabia plantar, mas somente cortar árvores, tinha desmatado a floresta e por isso não havia mais comida. Ou seja, a pobreza das crianças é associada, em termos narrativos clássicos, ao desmatamento provocado pelo pai, que não sabia plantar. Apenas retirava alimentos da floresta, o que foi gerando a escassez e, conse-quentemente, a fome das crianças.

Além disso, encontramos recorrências nas coreografias das crianças e nas danças das aves que reforçam os conflitos narrativos e a resolução dos problemas. Podemos citar exemplos como a canção que J.M e M.J. cantam quando estão em apuros, que evidencia que são irmãos e que são “um sucesso”, ou as idéias que têm para sair dos apuros. Além das coreografias apresentadas pelas aves, que têm empenho, talento e técnica e que por isso vão vencer o concurso.

Dois eixos narrativos são construídos, o primeiro constituído pela atuação das aves, que nos contam o que ocorreu na floresta; comem as migalhas deixadas pelas crianças, uma vez que também estavam morrendo de fome; ensaiam a dança brasileira para o concurso internacional e, no final da trama, sentem-se culpadas pelo fato das crianças estarem perdidas, ajudando-as a encontrar o caminho de volta para casa e ainda ganham o concurso, mas não deixam a floresta.

Este eixo é intercalado por meio de fade ins e outs com um segundo eixo, que conta a epopéia vivida pelas crianças na tentativa de voltar para casa, em que temos os dois encontros com as aves (quando descobrem que elas comeram as migalhas e quando ajudam os irmãos que estavam em apuros no rio Pano9 e decidem ajudá-los a voltar para casa no final da trama); a descoberta da casa de biscoito e chocolate e o encontro com a bruxa malvada Meméia, que quer comer J.M. e escraviza M.J..

No desfecho, quando as crianças chegam novamente em casa, a madrasta foi embora, o pai aprendeu a plantar e, portanto, não haverá mais pobreza, além de ter ocorrido um fato curioso: o pai tinha mudado seu nome de Durr para Ahrr. As aves ganharam o concurso, mas não vão abandonar a floresta, conforme explicam por meio da seguinte estrofe de Gonçalves Dias: “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá e as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. As referências intertextuais são

9 Nome dado ao rio que as crianças têm que atravessar para chegar em casa e que é, literalmente, construído com pano azul e cenograficamente produz o efeito das águas correntes de um rio.

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exploradas em dois momentos: na relação com a poesia, conforme mencionado acima, e também com a música brasileira, pois as aves dançam e cantam canções ao som de ritmos brasileiros, como o xote, o baião e o frevo. Ao inserir estas referências culturais na produção, podemos ressaltar a valorização da cultura nacional, que é papel do serviço público de televisão.

Na relação que se estabelece entre o teatro e o meio audiovisual ressaltamos a criação de um texto intermídia, que interrelaciona os dois sistemas de signos de tal forma que os “aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam inseparáveis e indissociáveis” (Cluver, 2006, p. 20).

Ao trazer para o audiovisual as técnicas do teatro de forma exagerada, temos como resultado um produto híbrido, que se situa no limiar, numa zona intermediá-ria, entre teatro e audiovisual. Isto pode ser notado na atuação dos personagens que, além de agirem de modo teatralizado, também incorporam elementos da representação teatral ao meio audiovisual. Os personagens atuam olhando diretamente para a câmera, o que provoca uma ruptura com o naturalismo, gênero por excelência da televisão. No drama televisivo, baseado nos diálogos, os personagens não olham para a câmera para manter a veracidade da narrativa, que não tem como pressuposto a interação com a platéia. Em João e Maria temos cenas que subvertem esta regra, tais como a entrada da bruxa Meméia, que se apresenta cantando e, ao terminar, pede palmas à platéia, que lhe aplaude, juntamente com a própria Maria. Todas as canções cantadas pelas aves também são encenadas de frente para a câmera, como se atua no palco, isto é, de frente para a platéia.

Por outro lado, este é um produto audiovisual, que usa as técnicas de enqua-dramento, movimentação de câmera e edição para contar uma história. Porém, subverte as regras do drama televisivo, propondo uma experimentação com a linguagem audiovisual e tornando-a, deste modo, intermidiática, porque não é teatro filmado, mas também não é apenas televisão, uma vez que incorpora os elementos estéticos da encenação teatral.

Notas finais

A TV Rá Tim Bum! tem investido na produção de programas infantis que oferecem uma diferença e, além de agregar valor à vida crianças, promovem o desen-volvimento da literacia midiática. A análise do episódio João e Maria do programa Teatro Rá Tim Bum! teve o intuito de discutir as características intermidiáticas que relacionam duas formas de expressão, teatro e audiovisual a fim de refletir sobre as possibilidades estéticas de experimentação na televisão.

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Ao trazer para a telinha um conto infantil que mescla as linguagens literária, teatral e audiovisual de forma criativa e original, o episódio contribui para a formação do repertório cultural e artístico das crianças. Utiliza elementos da poesia e da música brasileira como referência da história, promovendo o conhecimento da cultura nacional.

Cumpre com as obrigações do serviço público de televisão ao abordar o problema do desmatamento das florestas e a conseqüente morte dos bichos e dos homens de modo articulado na narrativa, isto é, gera a reflexão sem ser panfletário. Além de explicitar modelos de conduta que levam às graves conseqüências, por meio da personagem do pai das crianças.

Sendo assim, podemos afirmar que, além da experimentação da linguagem audiovisual, a TV Rá Tim Bum! dissemina uma cultura da qualidade na televisão.

Por fim, é necessário ressaltar que este trabalho é parte integrante do projeto Observatório da Qualidade no Audiovisual, que está sendo desenvolvido na Universidade Federal de Juiz de Fora com financiamento da Fapemig e tem como objetivo principal coletar, analisar e divulgar conteúdos audiovisuais diferenciados e de qualidade.

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tufão e a liteRatuRa. paRte da tRaMa ou estRatéGia paRa a constRução da peRsonaGeM?

MaRia iGnês caRlos MaGno

Professora titular do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.E-mail: [email protected]

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ResuMo

O texto propõe um estudo da personagem Tufão na telenovela Avenida Brasil (2012). Interessa acompa-nhar como essa personagem foi construída na trama de um roteiro que parte de uma estrutura clássica e vai deslocando, invertendo e subvertendo a estrutura original. O recorte do estudo para esse texto é o da personagem e a literatura introduzida na trama. O foco de reflexão é o de tentar entender se a inser-ção da literatura é apenas parte da trama ou uma estratégia para a construção da personagem.

Palavras-chave: Telenovela; Literatura; Personagem.

abstRact

The paper proposes a study of the character Tufão in Avenida Brasil (2012). Interests follow how this character was built on the plot of a schedule using a classical structure and will shifting, inverting and subverting the original structure. The outline of this text is to study the character of literature and in-troduced in the plot. The focus of reflection is to try to understand whether the inclusion of literature is only part of the plot or a strategy to build the character.

Keywords: Telenovela; Literature; Character.

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Introdução

Esse texto é um desdobramento dos estudos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa: Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira. O projeto propôs um estudo da telenovela Avenida Brasil, escrita por João Emanuel Carneiro (2012.

Rede Globo de Televisão). Uma das questões que norteou a pesquisa foi a verificação de como ocorre a combinação entre a situação convencional e as variações narrativas de Avenida Brasil e se essa articulação confronta-se ou não com a estrutura narrativa televisiva clássica. Dos enfoques da pesquisa: narração, estilo audiovisual, transmi-diação, um quarto é dedicado ao estudo da caracterização da personagem na ficção em geral, em especial na ficção televisiva, e mais particularmente ainda na telenovela Avenida Brasil.

Partindo dos estudos de Antonio Cândido (1985. p:34/35) sobre a Personagem de Ficção e entendendo que se o “enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo [...], e se no meio deles, avulta a personagem, que representa a possi-bilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção e transferência [...], interessou investigar como isso ocorre com a personagem da telenovela, produto não estudado na referida obra. Nessa perspectiva se deu a escolha da personagem Tufão interpretado por Murilo Benício. Especificamente, interessou acompanhar como essa personagem foi construída na trama de um roteiro que partiu de uma estrutura clássica e foi deslocando, invertendo e subvertendo a estrutura original. E uma primeira pergunta pode ser colocada: por que Tufão? Porque Tufão era uma personagem que embora representasse a possibilidade de adesão afetiva do telespectador se tornou uma incógnita desorientando a todos frente a uma personagem que aparentemente se mantinha inalterada durante a trama. Nessa linha de reflexão, a personagem se tornou um enigma para mim.

No entanto, Tufão mudou com a chegada de Nina em sua casa. Mudou seus hábitos, seu modo de vestir, passou a investir em cultura e começou a ler livros. Como um de nossos propósitos é o de estudar as inovações e as rupturas, entendendo que

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nem sempre a inovação traz a ruptura, o recorte do estudo para esse texto é o da personagem e a literatura introduzida na trama. E o foco da reflexão passou a ser o de tentar entender se a inserção da literatura era apenas parte da trama ou uma estratégia para a construção da personagem e uma possível chave para entender o enigma e a trajetória dessa personagem.

A Telenovela, Tufão e o Movimento da Pesquisa.

Avenida Brasil tem como foco central a história da menina Rita (interpretada por Mel

Maia) que vive com o pai, Genésio (Tony Ramos), e com a madrasta Carmen Lúcia, mais

conhecida por Carminha (Adriana Esteves). Com a morte de Genésio, atropelado em plena

Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, por Jorge Tufão (Murilo Benício), famoso jogador de futebol,

Carminha se apropria do dinheiro obtido por Genésio ao vender a própria casa. Ela manda o

amante, Max (Marcello Novaes), abandonar Rita em um lixão. Nesse lixão, vivem também

Batata (Bernardo Simões), que se transformará no par romântico de Rita (eles chegam a “casar”

quando crianças), Lucinda (Vera Holtz) e Nilo (José de Abreu), além de outros personagens

secundários. Tufão rompe com a noiva Monalisa (Heloísa Périssé) e se casa com Carminha,

obviamente sentindo-se na obrigação de cuidar da viúva, sem saber quem ela é de fato e o que

ela fez. Rita é adotada por uma família argentina, e Batata (que mais tarde descobrirá ser filho

de Carminha e Max) é adotado por Carminha e Tufão, recebendo o nome de Jorginho (Cauã

Reymond). Rita cresce e assume outro nome, Nina (Débora Falabella), tendo um objetivo na

vida: a vingança contra Carminha. Estava montada a base dramática da trama. Nessa trama,

chamou minha atenção a personagem Jorge Tufão ex-craque do Divino Futebol Club.

Questões Iniciais.

Desde que a personagem entrou em cena e passou a fazer parte da trama criada por João Emanuel se tornou uma incógnita. Quanto mais se envolvia com Carminha mais se perdia ou se afastava da figura do herói no sentido tradicional da literatura, do cinema e mesmo da telenovela. Nenhuma intervenção na ação, nenhum salto, nenhuma ou quase nenhuma reação diante das situações criadas pelo autor. Nenhuma mudança significativa, sua presença em cena mais parecia com uma ausência, imperceptível, figurativa. Quando parecia que ia reagir, pensava, contemporizava e continuava como havia começado: um homem sem ação.

As personagens femininas ganhavam força, afinal o embate era entre Nina e Carminha, protagonistas do drama. As demais personagens masculinas e femininas

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tinham suas características e personalidades, fossem as chamados “personagens de costumes”, “[...] que tem ainda sua eficácia máxima, na caracterização de personagens cômicos, pitorescos, invariavelmente sentimentais ou acentuadamente trágicos. [...] dominados com exclusividade por uma característica invariável e desde logo revelada”, fossem os “personagens de natureza”, “[...] apresentadas, além dos traços superficiais, pelo seu modo íntimo de ser, e isto impede que tenham a regularidade dos outros. Não são imediatamente identificáveis, e o autor precisa, a cada mudança do seu modo de ser, lançar mão de uma característica diferente, geralmente analítica, não pitoresca” (CANDIDO, 1968, p: 62) tipo em que se encaixava Tufão. Mesmo com a entrada de Nina, a cozinheira vingadora, quando os embates entre Carminha e Nina se tornavam cada vez mais violentos e ambíguos, esperava-se uma reação de Tufão. Nada. Nada acontecia a não ser aquela eterna tentativa de compreender a todos. E muitas foram as perguntas: Por que Tufão era daquele jeito? Por que foi construído daquela maneira? Por que aquele tipo de personagem uma vez que tudo ou grande parte da trama acontecia em sua casa e ao seu redor? Era um centro descentrado. Figura em torno do qual o enredo se desenvolvia. Personagem central que se comportava como secundária. E outras questões surgiram: se Tufão era uma personagem que representava a possibili-dade de adesão afetiva do telespectador, por que não seguia o modelo do herói ao qual o público está acostumado, aquele que ao longo da narrativa se revela como o herói da trama? E outra pergunta: Qual drama? Que herói? E Tufão se tornou uma personagem a ser estudada cuidadosamente.

A partir dessas primeiras observações e perguntas, passei a acompanhar a trajetória da personagem na trama. Sua relação com Carminha era um misto de amor, compaixão, obrigação, e principalmente, culpa uma vez que fora o responsável pela morte de Genésio, marido de Carminha. Nina era diferente de Carminha, aos olhos de Tufão era culta no sentido tradicional do conceito. Nina despertou a atenção de Tufão. E novamente a personagem se enredava numa direção complicada pelo fato de Nina e seu filho Jorginho estarem enamorados (aliás, sempre foram enamorados desde a infância no lixão). Partes de uma trama que prendia o espectador e promovia debates e sentimentos ambíguos entre os fãs e seguidores assíduos de telenovela.

Acompanhando o enredo e as estratégias do autor para conduzir a trama e as personagens que efetivamente dão vida à história, o público foi surpreendido com a cena levada ao ar em 16/04/2012. Nesse capítulo Jorginho teve uma crise de sonambulismo, sai de seu quarto andando em direção à rua. Nina que se encontrava no jardim da casa, percebe a situação e corre atrás de Jorginho impedindo que fosse atropelado. A casa entra em parafuso, agregados e empregados ficam em pânicos. A câmera sobe

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até o quarto de Tufão e Carminha. Os dois estão deitados. Carminha dorme. Tufão lê. O livro apoiado sobre suas pernas era: A Metamorfose, de Franz Kafka. Tufão, sem saber o que acontecia com Jorginho, chama a atenção de Carminha para a personagem do livro que se transforma em barata. Esse foi o primeiro livro introduzido na trama. Depois de A Metamorfose vieram: O Idiota, de Dostoivéski; O Primo Basílio, de Eça de Queiroz; Madame Bovary, de Gustave Flaubert; A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud; Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis; Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Estava formada a Biblioteca de Tufão, como passou a ser conhecida e comentada na mídia e nos estudos acadêmicos. A grande maioria dos livros foi apresentada por Nina e estava de alguma maneira relacionados a trama. Mas será que essas obras eram apenas parte da trama? Sim, se considerarmos que boa parte delas trata de adultério, traição, paixão, ciúmes, ambição, vingança, e tinham a figura feminina como desencadeadora de conflitos. E era fato também o movimento de Nina para alertar Tufão sobre Carminha, portanto, os livros eram parte da estratégia para construir o enredo. Afinal o que Nina queria era a vingança.

E aqui entra o segundo ponto do meu interesse pela personagem Tufão. Só que agora o foco recaia sobre o autor da novela e os livros trazidos para a trama. Por que esses autores e livros? Questões que enveredaram minhas reflexões para além das obras citadas, elas recaíam agora sobre as obras e as personagens de ficção, e mais propriamente sobre a construção da personagem na telenovela, em especial Tufão de João Emanuel Carneiro.

Um primeiro mapeamento das obras chamou a atenção para o fato de que todos os romances ou livros citados ou sugeridos datam do final do século XIX e início do século XX. Madame Bovary é de 1857; O Idiota foi escrito entre 1868/69; Primo Basílio é de 1878; Memórias Póstumas de Brás Cubas é de 1892 e Dom Casmurro de 1899. Em Busca do Tempo Perdido, de 1909; A Metamorfose é de 1914/1915. A Interpretação dos Sonhos, de 1899/1900 única obra não literária e não apresentada por Nina. Memórias do Subsolo de Dostoiévski, de 1864 e Diário de Anotações de Kafka, escritos entre 1910 e 1924, não foram literalmente citados e nem apareceram materialmente na tela, mas estavam presentes na novela.

Após o mapeamento inicial dos livros, o segundo movimento foi o de reler as obras e pesquisar para tentar entender o porquê dessas obras e não outras, e também para entender essa personagem. E outros aspectos foram observados: todos ou quase todos os autores trazidos para a novela, ou rompem, ou superam, ou ainda inauguram movimentos literários e revolucionam estruturas internas do romance, da novela e das personagens. Cabe destacar que Madame Bovary, como romance realista ocupa não

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só uma posição central no gênero, mas é a partir dele que as personagens femininas não mais serão apenas figuras românticas, frágeis e obedientes. Emma é uma jovem camponesa, educada em convento, romântica e sonhadora, porém, disposta a fazer o que fosse necessário para sair da situação em que vivia na casa dos pais. Casa-se com o médico Charles Bovary. Em pouco tempo, Emma se cansa de Charles e da vida que levava. O tédio leva Emma ao adultério consciente. O Primo Basílio, obra fundamental do realismo naturalista português tem como pano de fundo o adultério. Descreve a história de Jorge, um engenheiro de minas que Luisa conhece após o rompimento do noivado com Basílio, seu primo. Jorge viaja a trabalho e a esposa Luisa descobre que o primo e ex-noivo encontra-se na cidade. Luisa e Basílio voltam a viver uma relação amorosa, porém, clandestina. E Dom Casmurro, uma das mais importantes e discutida obra da literatura brasileira. Narrado na primeira pessoa, Bento Santiago escreve a história de sua vida. Tendo o ciúme como temática, provoca, na verdade, aprofundada polêmica em torno do adultério ou não de Capitu. Embora o adultério não fosse tema novo no romance burguês do século XIX, a forma como Gustave Flaubert, Eça de Queiros e Machado de Assis, trouxe esse tema para o romance os diferencia dos demais: Eça traz o erotismo da personagem; Flaubert rompe com a figura ingênua da mulher e Machado constrói a mais esférica e enigmática personagem feminina da literatura brasileira, além de trazer a dúvida do adultério.

Todos os romancistas têm como um dos focos de seus textos aspectos sociais e políticos da época em que seus autores viveram, e nos mostram como esses aspectos de alguma maneira aparecem ou interferem direta ou indiretamente na construção da obra. É preciso esclarecer que é impossível nesse texto fazer um estudo aprofundado das épocas e dos aspectos sociais e políticos em cada um dos autores, e nem é a proposta dessa investigação tratar de todos os aspectos e épocas em cada um dos autores, nem discutir questões teóricas sobre obras/autor/sociedade, mas é importante trazê-los mesmo que em linhas gerais para compor o estudo dessas obras no interior da telenovela. Seguindo a cronologia dos autores e obras vale salientar que Flaubert na figura de Emma ironiza a sociedade francesa do final do século ao mesmo tempo em que realiza violenta crítica à estupidez humana. Eça de Queiroz é um crítico demolidor dos costumes da pequena burguesia lisboeta, disseca as deformações da sociedade lusitana, seu atraso econômico e o apego às tradições e glórias passadas; Marcel Proust critica e satiriza a sociedade da chamada Bèlle Époque, época das profundas mudanças da Terceira República francesa na virada do século XIX para o XX, época que termina com a Primeira Guerra; Dostoiévski pertencia a uma “subclasse que recentemente surgira na Russia, a intelligentsia, os filhos instruídos da fidalguia, fascinados pelas ideias românticas e revolucionárias que

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conquistavam a Europa, em franco processo de modernização” (BRADBURY,1989.p:40), jovens que escreviam romances para exprimir suas ideias e sonhavam transformar o país autocrático e feudal, de grandes proprietários de terras e servos brutalmente explorados em uma nação moderna. Perseguidos, reprimidos e tornados impotentes ao serem presos, fuzilados ou enviados para trabalhos forçados na Sibéria. Dostoiévski ficou por quatro anos preso. Depois da prisão na Sibéria muda física e intelectualmen-te, fisicamente começou a sofrer de “ataques de epilepsia e passou a adotar uma visão de mundo mais complexa e mais amarga, que o afastou do liberalismo da juventude” (BRADBURY. 1989, p:46) ; a obra de Machado inicialmente romântica se modifica em Memórias Póstumas de Brás Cuba, a partir dela ocorre uma grande mudança tanto temática como estilística. O que predominará a partir dessa obra será a ironia, o pessimismo, o espírito crítico e olhar atento ao cotidiano social e político do Segundo Império. Melhor do que tentar resumir é dar a palavra a Alfredo BOSI:

Machado do Assis, nascido e criado no meio das assimetrias sociais brasileiras, tão agudas e persistentes, e olhando por dentro as perversões que as secundavam, aprofundou antes o veio negativo, cético e crítico, da Ilustração e da análise moral clássica do que o veio confiante do in-dividualismo burguês, que teria no spencerismo do último quarto do século a sua expressão desenvolta entre nós como boa parte da cultura liberal do Ocidente. (BOSI, 2007, p: 51)

Kafka escreveu no período que ficou conhecido historicamente como a era da angústia,

os anos que preparam a Primeira Guerra quando a “a era de ouro da cultura alemã e o velho

mundo austro-húngaro no qual fora criado começavam a dissolver-se lentamente ao seu redor”

(BRADBURY. 1989, p:215). Nascido em Praga, judeu de língua alemã morreu em 1924 quando

as ascensões dos regimes totalitários se espalharam pela Europa até a Segunda Guerra. Kafka

foi considerado por muitos críticos, em especial George Steiner, um profeta no sentido literal

da palavra. Possuído “por uma terrível premonição, que ele enxergou de modo detalhado e

preciso o horror por vir. O processo apresenta o modelo clássico do Estado terrorista. Ele antevê

aquele sadismo furtivo, aquela histeria que o totalitarismo insinua na vida privada e sexual, o

tédio impessoal dos assassinos”, citado por Malcolm BRADBURY (1989, p:219). Mais do que

qualquer escritor moderno escreve num autoexílio.

A sátira é outro elemento de ligação entre os textos e escritores. Sátira do que estava

em decadência ou não cabia mais no mundo moderno. Mas é exatamente esse mundo moderno

que representa, nas obras desses autores, um problema a ser questionado e que gera outros tipos

de personagens. A Época ou a Era como diziam era também de angústia e de fragilidade desse

homem novo homem moderno diante do poder e da ansiedade que caracterizava o espírito da

época.

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Os livros e a telenovela Avenida Brasil.

Retomando as questões iniciais de tentar entender a construção da personagem Tufão e a relação dessa personagem com a literatura que João Emanuel Carneiro introduziu na trama da novela, e retomando também os estudos das referidas obras no contexto literário e social da época em que as elas foram produzidos, uma primeira observação pode ser feita no que se refere aos romances: todos pertencem ao momento em que o movimento romântico é questionado pelo realismo. Gustave Flaubert, Eça de Queiroz, Machado de Assis respectivamente em seus países inauguram ou são representantes fundamentais desse movimento em suas diferentes vertentes. Outra observação foi a de que

É a partir do Realismo e do Naturalismo que a figura do herói aparece despojada das marcas de excepcionalidade que no Romantismo conhecera; as personagens em que se centra o processo crítico de uma sociedade em crise, a irônica reconstituição de percursos épicos desvirtuados por um cotidiano dissolvente [...], o protagonista que reage num registro de estranheza e desprendimento [...] todos se afirmam pela negativa, mais do que pela positiva. E deste modo invertido re-interpretam a condição de centralidade que o herói conhecera. (REIS, Carlos. LOPES, Ana Cristina M. p:35)

A novela de João Emanuel não é uma adaptação de nenhum dos livros trazidos para o interior do enredo, no entanto, é possível perceber como o autor se apropria desses livros para criar tanto a trama como para caracterizar suas personagens. O Primo Basílio tem o adultério como pano de fundo e sabemos disso logo no primeiro capítulo quando Eça lança as sementes do conflito para no segundo capítulo nos apresentar as demais personagens ou as figuras secundárias. O romance narra a história da relação amorosa e clandestina entre Luisa e Basílio que é seu primo e ex-noivo. A relação clandestina dos dois é descoberta pela criada Juliana que, de posse de uma carta dos amantes, chantageia a patroa. No romance Luisa é abandonada por Basílio que foge para Paris e ela não suportando toda tensão, morre. Uma das características do Realismo Naturalista como sabemos é a de reservar toda a intensidade para a trama. As personagens são modeladas de fora para dentro, a partir de circunstâncias e valores sociais que determinam suas reações e comportamentos. Luisa é descrita como uma burguesinha da baixa Lisboa, uma senhora mal-educada, sem valores espirituais ou senso de justiça. É esposa de Jorge, um engenheiro de minas. Juliana, a criada que fez desmoronar o mundo de Luisa é descrita como uma personagem que possui alguma intensidade interior. Conduzida pela revolta, pelo ódio e pelo rancor contra a patroa

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e por todos que a humilharam durante 20 anos, quer a desforra. Como Basílio, tira proveito da patroa, mas não é o dinheiro que lhe importa e sim juntar provas contra Luisa e se vingar. Essa não é exatamente a história de Avenida Brasil, mas não dá para negar a proximidade entre Luisa e Juliana de Carminha e Nina. Outra característica comum aos romances naturalistas é a de comparar humanos com animais dominados por seus instintos. No romance é Juliana quem se parece com uma loba, na novela é Carminha quem rosna. Além de Jorge, o marido quase sempre ausente devido sua profissão, existe também uma cozinheira que enfrenta Juliana e defende sua patroa. Eram constantes as discussões entre Zezé a cozinheira defensora de Carminha e Nina. Madame Bovary também pode ser entendida além da temática do adultério se consideramos o fato de a personagem central ser uma mulher que rompe com a figura ingênua e romântica, transforma-se ao longo da narrativa e obriga a sociedade a olhar essa personagem como centro dos conflitos, e principalmente, como centro da trama. Na novela de João Emanuel encontramos características de Emma tanto em Carminha como em Nina. As duas são as protagonistas principais, não são mais heroínas românticas e nem são figuras maniqueístas, ao contrário, são anti-heroínas, são ambíguas e colocam o telespectador no centro dessa ambiguidade. Ora o espectador se vê frente às razões de Carminha, ora frente às razões de Nina. Nina quer a vingança a qualquer preço e Carminha quer subir na vida custe o que custar. As duas são determinadas e não medem as consequências para conseguir seus objetivos, têm interesses e desejos. Nessa linha de reflexão podemos entender as declarações do autor sobre as suas personagens serem sempre literárias (CARNEIRO, 2012, p: 20); sua preferência pelas personagens femininas, e encontrar a influência de Machado de Assis na composição de Carminha e Nina. Mais claramente no Machado de Iaiá Garcia e A mão e a luva.

Da moça perspicaz e determinada, que busca firmemente a realização do seu projeto matrimonial e, por tabela, patrimonial [...] e a jovem que soube no momento azado ocultar os seus planos é como se alçada e promovida a um grau mais alto na escala das personagens e não se confunde com os figurantes do primeiro degrau, pois, tratando de Guiomar ou Iaiá, o narrador fará penetrar na câmara escura do sujeito a consciência da necessidade onde brilha o raio da autodeterminação. (BOSI, Alfredo. 2007, p:19)

Como o foco nesse estudo não são as personagens femininas, voltemos aos livros e a personagem Tufão. Se observarmos cuidadosamente, todos os livros se relacionam com Tufão. No entanto, os livros: A Metamorfose, O Idiota e Em busca do tempo perdido podem ser pensados como os que mais diretamente se relacionam com a construção da personagem Tufão, pelas suas características e pela situação na trama

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da novela. Ao aprofundarmos a leitura e o olhar para essa personagem aparentemente sem ação, sem atitude, uma figura masculina totalmente desfigurada como herói ou protagonista, e lermos atentamente os textos citados nosso foco se amplia e podemos esboçar alguns pontos interessantes: Tufão, ex-craque do Divino Sport Club era um gênio do futebol e rico morador do bairro do Divino. Sua mansão acolhia não apenas sua mulher Carminha e filhos como toda a família e mais os agregados. Numa primeira leitura até podemos pensar que fosse uma saída estrutural da produção ou reprodução de tantos outros enredos de novelas em que o centro da trama é a casa dos protagonis-tas, pois em torno deles gravitavam os acontecimentos, as ações, o enredo propriamente dito. Mas ao assistirmos a cena em que Tufão lê A Metamorfose na cama, lembramos que nos romances de Kafka a cama não era apenas o lugar do repouso. Na cama a personagem JK “sem que tivesse feito nada de errado, ele foi detido numa bela manhã” frase inicial de O processo. No quarto numa bela manhã a personagem percebe que o mundo já não era o mesmo. As anotações no Diário também nos dão indicações quase diretas com a cena em que Tufão lê A Metamorfose. Gregor Samsa escreve: “Domingo, 19 de junho, acordei, dormi, acordei, dormi, acordei, vida terrível”, acordar na própria cama tornava-se algo terrível, perigoso e grave. Naquela manhã Jorge Tufão é tomado pela estranheza de ler sobre uma personagem que acorda e se vê transformado em uma enorme barata. Estranhamento e tomada de consciência de que tudo se “torna irreal, desligado de si próprio, subitamente estranho. O espaço doméstico protegido transfor-ma-se num “covil nú”, (BRADBURY, p: 226), escreve Kafka em seu Diário. Estranheza, angústia e exílio interior. Nos Diários, Kafka também revela ser leitor de Dostoiévski ao expor em suas anotações o quanto algumas passagens escritas pelo escritor russo lembravam “tanto o meu estar infeliz”. Tudo em A Metamorfose é estranhamento, mas também processo de autoconsciência, um encontro da personagem com ela mesma. Kafka se referia às Memórias do Subsolo, mas o livro de Dostoiévski que João Emanuel colocou nas mãos de Tufão foi O Idiota.

Dostoiévski, considerado o criador do movimento existencialista iniciou o romance em 1867 em Genebra, na Suíça e concluiu em Florença em 1868. Publicado em 1869, O Idiota narra a história do príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin que após alguns anos em um sanatório na Suíça para tratar de sua enfermidade, a epilepsia, retorna para recuperar seu trono. Envolve-se com a família do General Iepántchkin , primeiro contato da relação que se estreita em todo o romance. Apesar de seu parentesco com a mulher do General, é um desconhecido para a família. Desde sua chegada a São Petersburgo envolve-se também com Nastássia Filíppovna e Aglaia Iepántchkin. Aqui mais do que a história das relações amorosas de Míchkin com as duas mulheres, in-

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teressa-nos a trama cujo tema central recai sobre a personagem em si. Míchkin é um humanista, um ingênuo, puro e por isso considerado por muitos um idiota. Ao mesmo tempo em que era querido e bem tratado por todos que o cercavam, era considerado um coitado e sua bondade era vista como fraqueza. Se entendermos que um idiota é na realidade um inadaptado, podemos compreender um dos porquês desse livro na composição da personagem Tufão. Tufão como Míchkin são inadaptados ao meio em que vivem, seja na classe alta ou na média. Mas, ao contrário do que todos pensam não são patetas nem idiotas, na verdade conheciam todos os que circulavam ao seu redor. A bondade e a sinceridade muitas vezes confundidas com patetice e estupidez é parte de uma percepção diferente da vida e das pessoas. E parte da composição de um tipo de personagem que obedece a certa concepção de homem, um tipo de homem que

[...] embora munido da experiência de vida e da observação, é mais interior do que exterior. Seria o caso das personagens de Machado – em geral homens feridos pela realidade e encarando-a com desencanto. É o caso de certas personagens de Dostoiévski, encarnando um ideal de homem puro, refratário ao mal, [...]. (CANDIDO, p:73)

Nesse grupo de personagens literárias, segundo Antonio Candido, encontra-se o Príncipe Míchkin. Tufão não era epilético como Míchkin, mas possui muitas ca-racterísticas da personagem como, por exemplo, a melancolia, baixo autoestima, a culpa. Dostoiévski era epilético e nesse romance, de acordo com estudos de SOUZA &MENDES (2004) “transmitiu através de seus textos o universo do epilético e a maneira como esse é percebido pela sociedade”. Melancolia e tristeza que pudemos notar em muitas sequências em que Tufão conversa com Nina. Apenas para exemplificar, um desses momentos ocorre no capítulo levado ao ar no dia 03/09/2012, quando Tufão leva Nina para jantar. Seu desejo inicial era declarar sua paixão por ela. Durante o jantar Nina conta para Tufão que vai se casar com o namorado. Tufão atordoado com a notícia, emocionado e triste com a revelação, chora discretamente sem que ela perceba sua tristeza. Nessa mesma cena Tufão dá a Nina uma caixinha de música do século XIX e Nina se emociona. Sem revelar o amor que sente, a sensação de perda é dupla: a da amada e a da vida mesma. E Proust não entrou na história e na biblioteca de Tufão apenas porque aprendeu com Nina a fazer o famoso Madeleine, em cena que foi ao ar em 24/08/2012. Numa de suas aparições silenciosas, Tufão vai até a cozinha para ver Nina e saber o que ela está preparando. Conversa e conta a ela que aprendeu a fazer o “tal bolinho” de Proust. Tufão pergunta o nome do bolinho e Nina lhe responde que o nome é Madeleine. Os dois riem e de alguma forma mesmo que por poucos minutos conseguimos ver que Tufão está feliz ao lado de Nina. Walter BENJAMIN (1985, p: 38),

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lembra que ao contrário da grande maioria dos leitores e críticos de Proust, o poeta Jean Cocteau “percebeu aquilo que deveria preocupar, em altíssimo grau, todo leitor de Proust: ele viu o desejo de felicidade – cego, insensato e frenético – que habitavam esse homem. Esse desejo brilhava em seus olhos. Não eram olhos felizes. Mas a felicidade estava presente neles, no sentido em que a palavra tem no jogo ou no amor”. Tufão brinca sobre a história de Proust e o bolinho, quase uma referência de João Emanuel aos comentários de Max Unold quando esse diz: “Imagine só, caro leitor, ontem eu mergulhei um bolinho no chá e me lembrei que tinha morado no campo quando criança”. E que para dizer isso, “ele levou 80 páginas, e a coisa é tão fascinante que a gente fica achando que não é mais o ouvinte e sim o próprio sonhador”. (BENJAMIN, p: 39). É claro que a história do bolinho é famosa menos pelo número de páginas que Proust levou para descrever a cena e a sensação que sentiu do que pelo seu significado na ordem de seus estudos sobre a memória involuntária, “que evoca uma boa parte do mundo do tempo perdido” (BRADBURY, p: 125), e que torna o mundo estranho, transforma o quarto cotidiano em algo desconhecido, quebra nossa consciência do hábito e do que tradi-cionalmente denominamos realidade, completa Bradbury (p: 125). Em busca do tempo perdido foi a obra de toda a vida do autor e a história do tempo perdido nos dois sentidos da palavra: o do tempo que passou e o tempo que foi desperdiçado, como a vida da personagem Tufão desde que se casa com Carminha para reparar uma culpa.

A ideia não é buscar todas as relações entre os livros e a personagem Tufão, mas tentar entender as relações entre essa literatura trazida para a trama e a construção da personagem. Embora o foco seja a personagem Tufão é pertinente salientar que podemos relacionar todos os livros com a trama em geral e com a personagem em questão. Na construção da trama, basta recuperarmos Eça de Queiroz e a ironia fina com que caracteriza suas personagens despidas de pudores, de virtudes e as situações dramáticas que são geradas a partir de sentimentos fúteis e mesquinhos. Além do humor e da caricatura na composição das personagens. Machado de Assis tanto o de Memórias Póstumas de Brás Cubas como o de Dom Casmurro traz o humor amargo e áspero. Observador atento de classes e comportamentos sociais, esses romances mostram os tipos humanos e as verdades acerca da família, do dinheiro, da família, das relações pessoais, entre tantas outras possibilidades de leitura. E essencialmente “A originali-dade de ver por dentro o que o naturalismo veria de fora”. Recorrendo uma vez mais a Alfredo BOSI (p: 18) sobre os tipos machadianos:

Os seus tipos são e não são parecidos com os seus contemporâneos Eça de Queiroz e Aluízio Azevedo, brilhantes traçadores de caricaturas [...]. O cínico, o hipócrita, figuras recorrentes nas estruturas assimétricas, acabam merecendo, quando avaliadas por dentro, ao menos a complacência de um olhar ambivalente.

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Se recuperarmos as personagens da novela, podemos identificar os traços acima citados, bem como a ambivalência que as caracterizam. Se as influências de Memórias Póstumas de Brás Cubas a ironia e o sarcasmo podem se relacionar com a trama da novela, em Dom Casmurro é a melancolia que compõe a pessoa de Tufão. Juntamente com Machado, Dostoiévski é a grande influência no autor da novela e na construção de suas personagens. Se O Idiota foi o livro lido por Tufão, Memórias do Subsolo é o livro que permeia a construção de muitas das personagens do drama montado por João Emanuel. A novela de Dostoiévski mostra a duplicidade existente no comportamento humano. Nem totalmente bom, nem totalmente mau. Um ser dividido, composto de virtudes e vícios. O homem em sua total fragilidade. “Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por que não consegui tornar-me sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-me um inseto” (DOSTOIÉVSKI, p: 18). Kafka realizou a Metamorfose que o narrador de Memórias do Subsolo diz não ter conseguido. Se quisermos aproximar esse narrador sem nome da personagem Tufão, é importante lembrar que a personagem da novela de Dostoiévski é também um ser da introspecção, do sofrimento e da angústia. Uma personagem que se recusa a ter um nome e a ser herói. E se “a compreensão dostoievskiana da natureza humana é uma ilustração perfeita de nossas noções modernas do ser humano [...[ e lemos Dostoiévski para entender os protagonistas, não a vida em si” (PAMUK, 2011, p:49), podemos voltar ao princípio da discussão sobre a criação da personagem Tufão e a literatura no processo da criação da telenovela Avenida Brasil.

Que toda personagem é um ser fictício não precisamos nem lembrar, embora saibamos que é fundamental pensar a complexidade que é o processo de criação desses seres fictícios que tanto nos encantam. Seguindo Antonio CANDIDO (p: 70) “podemos admitir que esta oscila entre dois polos ideais: ou é transposição fiel de modelos, ou é invenção totalmente imaginária”, o que percebemos na construção de Tufão é que o autor João Emanuel optou por um modelo de “personagem cuja origem pode ser traçada mais ou menos na realidade, mas cujas raízes desaparecem de tal modo na personagem resultante, que, ou não tem qualquer modelo consciente, ou os elementos eventualmente tomados à realidade não podem ser traçados pelo próprio autor” (idem, p: 73). São as personagens que obedecem a uma certa concepção de homem, como já foi dito anteriormente, aqueles de natureza mais interior do que exterior, e nesse sentido é que podemos entender a trajetória de Tufão na estrutura da novela, bem como a sua coerência interna.

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Referências

BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

BOSI, Alfredo. Machado de Assis. O enigma do olhar. São Paulo: VMF Martins Fontes, 2007.

______. Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013.

BRADBURY, Malcolm. O Mundo Moderno. Dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

CARNEIRO, João Emanuel. O país dos ricos de alma pobre. Entrevistador: Marcelo Marthe. Revista Veja. Ed. 2276, ano 45, n.27, 4 jul. 2012, p.17-21. Entrevista.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Editora 34, 2009.

QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio. São Paulo: O Estado de São Paulo, Klick Editora, 1997.

PAMUHK, Orhan. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. Coimbra, Portugal: Livraria Almedina, 2000.

SOUZA, Leonardo Cruz de. & MENDES, Mirian Fabíola Stuart Gurgel. Príncipe

Liev Nikoláievitch Míckin e a síndrome de personalidade interictal na epilepsia

do lobo temporal. Arquivo Neuro-Psiquiátrico. V.62. São Paulo, june 2004.

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el 23-F: análise de uMa MinisséRie

Flavio peReiRa

Mestre em Letras pela UNESP/Assis. Doutorando em Literatura Espanhola pela FFLCH/USP. Professor de Cultura e Literaturas Hispânicas na Licenciatura em Letras da Unioeste, campus de Foz do Iguaçu.E-mail: [email protected]

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ResuMo

Em 23 de fevereiro de 1981 ocorreu a tentativa de golpe militar que marcou o fim da transição do fran-quismo para a democracia na Espanha. 30 anos depois, o evento e seus antecedentes são recriados em narrativas literárias e audiovisuais. Este trabalho propõe a análise de “23-F: El Día Más Difícil del Rey”, exibido em dois capítulos pela RTVE em 2009. Para isso, coteja-o com outras produções contemporâneas para verificar como respondem ao desejo de memória da sociedade espanhola contemporânea.

Palavras-chave: El 23-F: El Día Más Difícil del Rey; memória coletiva; franquismo; transição.

abstRact

On February 23, 1981 the attempted military coup that marked the end of the transition from Francoism to democracy in Spain occurred. 30 years later, the event and its history are recreated in literary and audiovisual narratives. This paper proposes the analysis of “23-F: El Día Más Difícil del Rey”, aired in two chapters by RTVE in 2009. For this, collates it with other contemporary productions to verify how they respond to the desire of memory in contemporary Spanish society.

Keywords: El 23-F: El Día Más Difícil del Rey; collective memory; francoism; transition.

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Estamos próximos da comemoração dos 80 anos do início da guerra civil da Espanha e não param de chegar ao público obras de variados tipos que, de alguma forma, abordam o passado recente do país. Neste contexto, observa-se

uma contradição na dinâmica da memória coletiva do passado recente da Espanha na sociedade espanhola contemporânea. Por um lado, historiadores de prestígio pela seriedade de seu trabalho, a exemplo de Santos Juliá, aduzem que não houve nem há o chamado “pacto de esquecimento” sobre os crimes perpetrados durante a guerra civil pelos dois bandos e pelo próprio regime autoritário, visto que desde o início da transição os historiadores vêm escrevendo esta parte sangrenta da história recente. Por outro lado, há historiadores e sociólogos também respeitados, a exemplo de Paloma Aguilar Fernández, que insistem que houve um tácito silenciamento, durante a transição, frente a esses crimes por um medo, refletido institucionalmente, de que a sociedade espanhola não pudesse realizar uma transição pacífica rumo à redemocratização. Reconhece-se o trabalho dos historiadores, mas pondera-se que o grande público leigo, por uma série de razões, não teve acesso a este conhecimento e, portanto, ainda impera uma ignorância coletiva preocupante sobre estes temas.

Com a morte de Francisco Franco em 1975, inicia-se uma nova fase na história recente da Espanha, a chamada “Transição”, marcada pela euforia coletiva provocada pela percepção de que se podia respirar novos ares de liberdade, sobretudo cultural e ideológica, no país ibérico. Como afirma Marco (1995: 111), tornou-se lugar comum o binômio explosão e maturidade para avaliar a sociedade espanhola nos anos posteriores à morte do autocrata. Garantem-se as condições políticas que viabilizaram o crescimento econômico e a ampliação do exercício da cidadania para uma crescente maioria de espanhóis, ao mesmo tempo em que se favorece uma explosão cultural perceptível, por exemplo, na movida madrileña de início dos anos 80. No entanto, tal efervescência foi acompanhada de um pacto de silêncio sobre os episódios trágicos e ominosos da Guerra Civil e do franquismo, sejam eles de responsabilidade do regime ou da oposição. Desde então, a palavra “consenso” tornou-se um imperativo: todos unidos em torno ao Rei Juan Carlos e ao parlamento, em nome de uma nova Espanha, pujante e cada vez mais

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moderna. A sujeira foi empurrada pra baixo do tapete, a memória histórica do passado recente foi reprimida. Ainda assim, como destaca ainda Marco (1995: 116), o romance histórico e o romance de memórias vieram a perturbar este estado de coisas, nos cinco anos seguintes à morte de Franco. Já passada uma década e superado qualquer afã de regressão à ordem política anterior, com o fracasso da tentativa de golpe de estado de 23 de fevereiro de 1981, a Espanha entra eufórica na Comunidade Européia. Consolida-se a democracia, mas o preço pago pela transição é talvez muito alto: a falta de memória e o clima persistente de crise da memória coletiva ou amnésia, como argumenta Colmeiro (2005: 13), ao mostrar como o tema tem insistemente retornado às colunas do jornal El País na passagem ao terceiro milênio. Colmeiro (2005: 18) afirma que o caminho percorrido pela memória coletiva desde o pós-guerra civil até o desencanto do final do século XX pode ser esquematizado em três tempos:

1. O tempo de silêncio e esquecimento imposto pelo franquismo, a longa noite de memória reprimida da oposição antifranquista censurada e a substituição da memória histórica por uma nostalgia de uma ordem legendária primigênia, que se traduz numa épica imperial delirante (perceptível por exemplo em Raza, o filme cujo roteiro é de autoria de Franco e que foi produzido com fins propa-gandísticos de direita);2. O tempo da transição do franquismo à democracia, entre a memória de testemunho residual e a amnésia. O pacto de esquecimento dos fantasmas da guerra civil e do legado franquista, convertido em novo tabu, por sua própria condição fantasmagórica se nega a desaparecer. Há uma tentativa de recuperação da memória histórica e uma sensação de desencanto provocada pelas limitações do processo político e a nostalgia de um futuro utópico defini-tivamente postergado;3. O tempo da inflação quantitativa e o decréscimo qualitativo da memória. O espaço vazio deixado pelo desencanto da transição e seu tabu acaba sendo preenchido por diferentes formas memoriais que desbordam e debilitam, ao mesmo tempo, as tradicionais margens da memória: a fragmentação e a descen-tralização da memória devido ao ímpeto de memórias nacionais particulares frente a uma diluída memória unitária nacional, como reação ao absolutismo franquista, que reprimiu as diferenças regionais; um novo memorialismo ins-titucional de prestígio e de caráter epidérmico; e finalmente a substituição da memória histórica pela nostalgia da nostalgia, que preenche, ao mesmo tempo, o espaço deixado pelo tabu. É o tempo da crise da memória contemporâneo.

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A minissérie em dois capítulos 23-F: El día más difícil del Rey foi uma coprodução de Televisión Española e Televisió de Catalunya, emitida em 2009 no canal público nacional de TV da Espanha e lançada em DVD no mesmo ano. Focaliza o dia 23 de fevereiro de 1981, construindo um relato sustentado pelo suspense provocado pelo rumo incerto dos acontecimientos que se desenrolaram a partir da tentativa de golpe militar liderada pelo tenente-coronel Antonio Tejero. Juntamente com outros elementos da Guarda Civil, irromperam com armas em punho no Congresso dos Deputados e interromperam a sessão que decidiria quem seria o novo primero ministro em substituíção a Adolfo Suárez, primeiro governante civil de âmbito nacional a ocupar o poder de forma consensual, após a morte do general Franco que precipitou o fim do regime autoritário. Ironicamente, mas também de forma sintomática, Tejero formava parte da Guarda Civil, que atua como corpo de segurança do Estado. A mais recente Constituição da Espanha, de 1978, no artigo 104, fixa-lhe a missão primordial de proteger o livre exercício dos direitos e liberdades e garantir a segurança dos cidadãos espanhóis, estando sob dependência do governo do estado espanhol, que tem a prerrogativa de nomear o seu diretor. Desde a sua criação até a nomeação em 1986 do primeiro civil, Luis Roldán, todos os diretores da Guarda Civil eram generais do exército. Trata-se de uma sintomática ironia sua atuação destacada no contexto deste evento histórico porque desde o século XIX os militares vêm intervindo na esfera política pública espanhola por meio de “pronunciamientos” e intervenções de força, sendo a mais decisiva e violenta delas a rebelião contra o governo da II República de 1931 que redundou numa sangrenta guerra civil vencida pelos revoltosos ditos “nacionais”. Desta forma, a morte de Franco, em novembro de 1975, foi o evento catalisador da decomposição do regime de exceção implantado em 1939 e que não tinha mais condições de perdurar com o desapareci-mento do caudilho. O assassinato do almirante Carrero Blanco num atentado do grupo terrorista ETA dois anos antes já demostrava a impossibilidade de continuidade do franquismo, visto que Carrero Blanco havia sido apontado pelo propio Franco como seu provável sucessor.

A tentativa de golpe doravante conhecida como “el 23-F” ou “El Tejerazo” foi uma aguda manifestação do descontentamento dos militares em geral com relação aos rumos da democracia espanhola, sobretudo com dois eventos históricos do período: a legalização do Partido Comunista e a série de atentados perpetrados pela ETA, que chegou a levar a cabo um atentado a cada três dias. Os militares revoltosos viram então no golpe militar uma solução de compromisso desesperada para dar um “golpe de timão” e reorientar o país rumo à ordem autoritária nostalgicamente perdida. É interessante observar que a minissérie foi produzida e exibida num momento em que

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o movimento republicano na Espanha ganha maior visibilidade e a família real passa a ser objeto de maiores e mais constantes ataques. Assim, tendemos a imaginar que a exibição por parte do maior canal de televisão público da Espanha desta minissérie, além de contribuir para preencher um vazio de memória relacionado ao passado mais recente, funciona como um discurso legitimador da monarquia num momento de crise. Como coloca a informação disponível na caixa dos DVDs,

O dia 23 de fevereiro de 1981 se apresentava como mais um dia para o rei Juan Carlos I, mas ia colocá-lo frente a frente com o que sem dúvida foi o momento mais difícil do seu recente reinado. Às 18:23 o tenente coronel Tejero irrompe no Congresso e sequestra os deputados e o Governo em plena sessão. No Palácio, como no resto da Espanha, os primeiros momentos são de confusão. Logo se torna evidente que se trata de um golpe de estado e os golpistas dizem atuar em nome do Rei.Durante as horas seguintes o Rei deve demonstrar toda a sua habilidade para mostrar aos militares indecisos que ele não respalda o golpe. Don Juan Carlos, junto ao secretário da Casa Real Sabino Fernández Campo, enfrenta um complô e a dor de ser traído por Alfonso Armada, seu grande amigo dos últimos 25 anos e verdadeiro cérebro por trás do golpe.

Percebe-se então claramente a filiação histórica desta narrativa que, embora seja explicitamente baseada em eventos verídicos e em depoimentos dos participantes e testemunhas oculares dos acontecimentos, têm um caráter ficcional claro baseado numa recriação verossímil, mas desapegada, do compromisso com a fidelidade factual dos diálogos mantidos pelos principais participantes e suas atuações no contexto daquelas vinte e quatro horas decisivas para os rumos da Espanha. A minissérie se vale de uma poética clara de suspense para conduzir os espectadores no trânsito dos acontecimentos recriados e desta forma imprime-lhe um sentido teleológico que não faz parte do aluvião de eventos que compõem a história factual. Trata-se de que nós, habitantes do presente, possamos voltar ao passado, reviver esta trama e atribuir sentidos e lógicas àqueles eventos e tirar deles conclusões e ensinamentos. Nota-se a mão dos diversos narradores, seja a da roteirista Helena Medina, em primeiro lugar, até a da diretora Silvia Quer, a da montadora Elena Ruiz e a música de Alberto García Demestres numa orquestração perfeitamente tramada para, junto com a muito eficiente atuação dos atores, construir um relato perfeitamente amarrado e transparente em sua mise-en-scène, em que cada elemento da narrativa funciona adequadamente para não perturbar a apropriação por parte do espectador. Não há vazios a ser preenchidos nem questionamentos são fomentados. Para tanto, os dois episódios que compõem a narrativa se concentram em determinados espaços, representantes dos diversos focos

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de atuação: o Palácio de La Zarzuela, sede da monarquia, de onde o rei age para conter a intentona golpista; o Congresso dos Deputados, ocupado pelos golpistas que mantêm ali detidos os 350 congressistas, o Primeiro Ministro Adolfo Suárez e o vice-presiden-te, general Manuel Gutiérrez Mellado; a sede de Radiotelevisión Española, de onde se acompanhava a gravação da sessão do congresso que seria transmitida pela TV e que foi também ocupada pelos golpistas, que cortaram a transmissão informativa; a sede da Divisão Encouraçada Brunete, próxima à capital Madri, que continha o maior contingente e o maior poder bélico da Península Ibérica, também foco de revoltosos e por fim, a sede da III Capitania Militar, em Valencia, de onde o Tenente General Jaime Milans del Bosch comanda outra frente golpista, dirige contingentes que dominam a capital valenciana, instituindo um estado de sítio e atuando como um êmulo do general Mola, ironicamente o planificador do golpe militar frustrado que se desdobrou na guerra civil de 1936.

Como complementar a esta teatralização dos eventos históricos daquelas vinte e quatro horas, o pack da minissérie traz um segundo disco intitulado “23-F: Recorrido Histórico”, que traz material audiovisual produzido pela própria Televisión Española, de caráter jornalístico, a respeito da tentativa de golpe. São quatro programas de duração variada, datados de 1986, 1996, 2001 e 2006 e que apresentam recriações e análises dos fatos. Conferem, assim, lastro documental à minissérie.

Seja como for, é interessante observar como o roteiro da minissérie é efi-cientemente caracterizado como um produto televisivo, que pode agradar a todos os públicos. Há uma variedade de pontos de vista que, se por um lado é coerente com a própria organização dos eventos recriados, que envolvem personagens cujas atuações colidem e conduzem o relato adiante, por outro há uma preocupação em inserir a trama excepcional dos eventos do 23-F no contexto mais amplo da rotina do monarca. Por isso, a minissérie se inicia com imagens do pessoal encarregado de preparar as refeições reais, na cozinha do palácio. É manhã, a família real toma café e tudo parece transcorrer como em qualquer família, exceção feita às particularidades tocantes à rotina de uma família real: a rainha Sofia está tendo dificuldades em lidar com a entrada na adolescência de uma das filhas e a dificuldade reside justamente na condição monárquica da jovem, que não pode se portar como qualquer jovem de sua idade. O príncipe Felipe está incumbido de fazer uma redação escolar cujo tema é o que deseja ser quando crescer. Obviamente, a proposta fica deslocada no contexto de uma família real, já que ele está destinado a ocupar o trono no lugar do pai. Felipe lamenta a falta de liberdade e o pai tenta convencê-lo a observar a rotina do rei para escrever sobre as ocupações do monarca. Desta forma, o enquadramento da narrativa da excepcionalida-

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de em tensão com a rotina e as expectativas de uma criança permite que a minissérie seja também acompanhada pelo público infantil. O fato de que a minissérie se inicie por meio da encenação de uma cena tipicamente familiar, como pode ser tomar um café da manhã, permite a que o público assuma naturalmente este enquadramento da história como algo que se insere no cotidiano e não necessariamente como uma trama que, ainda que importante por seu significado para os rumos do país poderia soar como algo distante e frio, semelhante a como é narrada em livros de história. O enfoque ficcional impresso à trama que tem fundo histórico se vale de determinados recursos narrativos, a exemplo do suspense, a tensão e o posterior relaxamento corres-pondentes que também atuam como ganchos para prender a atenção do espectador, aproximando assim a história do público ao mesmo tempo em que se vale de proce-dimentos das ficções de massa. Seja como for, não se deve interpretar negativamente esta configuração narrativa, visto que parece bastante apropriada para os fins a que se destina. Trata-se de uma forma muito didática de popularizar a história. Contudo, para que assim seja é necessário que a narrativa se restrinja ao intervalo temporal que a minissérie abarca e não se espraie nos antecedentes do golpe nem nos desdobramentos posteriores, relacionados à sanção dos participantes e o destino final de cada um deles, para evitar polêmicas “desnecessárias“. Para tanto, os interessados têm os documentá-rios jornalísticos “23-F: Radiografía del golpe” e “23-F: Regreso a los cuarteles”, extras que trazem maiores informações sobre o que se passou com os protagonistas do golpe após o 23-F, inclusive entrevistas com alguns deles. De qualquer forma, a minissérie conclui com o discurso televisionado do rei Juan Carlos dirigido a todos os espanhóis no qual ele os tranquiliza sobre a manutenção da ordem tanto por parte da família real (os golpistas falsamente difundiram que o rei os apoiava) como por parte do Estado maior do exército. Na última imagem se vê o rei guardando numa gaveta o texto do discurso, ao mesmo tempo em que fuma um cigarro.

Este leitmotiv do cigarro é um elemento interessante a observar, já que atravessa algumas sequências e pode-se perceber nele um índice metonímico da evolução e do papel de alguns dos personagens. Exemplo disso é o próprio rei. Quando começa a minissérie, ele se reúne com o Secretário Geral Sabino Fernández Campo no início do dia para tratar da agenda e pega um cigarro, mas acaba deixando-o de lado. Com o desenrolar do golpe, o rei fumará não apenas um cigarro ao longo daquele dia. Ao mesmo tempo, alguns militares também aparecem cultivando o tabaquismo, a exemplo do golpista e amigo pessoal do rei general Alfonso Armada. No en tanto, há uma sequência na qual este personagem é obrigado a permanecer ao lado de outro militar, atendendo a uma ordem do rei. Tenta acender um cigarro, mas o isqueiro não funciona.

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Outro militar tem sucesso neste ato. Assim, tendemos a interpretar o gesto falido como um signo metonímico da frustração vivida pelo general Armada, pois ele ambicionava tornar-se presidente com o sucesso do golpe, mas teve sua atuação bloqueada pelo rei Juan Carlos, que aparece pela última vez na minissérie justamente fumando tranquila-mente um cigarro e guardando a cigarreira de prata que a rainha Sofia lhe dera naquele mesmo dia, herdada do pai que recentemente falecera.

Podemos comparar a minissérie 23-F: el día más difícil del rey com outros relatos que também se ocupam dos fatos que caracterizaram aquele momento histórico, a exemplo do ensaio Anatomía de un instante (2009), de Javier Cercas. Cercas tornara-se internacionalmente célebre por causa do romance Soldados de Salamina (2001), escrito também vinculado à história recente na Espanha, neste caso um obscuro episódio de fuzilamento frustrado de um escritor falangista. No livro mais recente, Cercas parte de uma imagem para mergulhar naquele mesmo instante, mas faz um movimento rumo aos seus antecedentes para interpretar os gestos excepcionais de alguns dos personagens que aparecem na imagem congelada. Neste sentido, cabe explicar que as sessões do Congresso dos Deputados da Espanha são gravadas pela Televisión Española e transmitidas ao vivo, da mesma forma que a Radio Nacional de España também as transmite. Assim, conservam-se trinta minutos de gravação audiovisual da invasão do congresso por parte dos golpistas. Cercas indaga sobre o fato de que tanto Adolfo Suárez como o vice-presidente Gutiérrez Mellado e Santiago Carrillo, presidente do re-cém-legalizado Partido Comunista não tenham se escondido atrás de seus respectivos assentos, recusando-se a seguir o exemplo dos demais deputados e funcionários do congresso. Cercas então elabora uma verdadeira arqueologia do golpe no primeiro capítulo intitulado “La placenta del golpe”, para dar conta de como algumas figuras, a exemplo de Adolfo Suárez, com sua atuação colaboraram para que o golpe viesse a ocorrer ou, pelo contrário, prevendo-o, agiram para tentar em vão contê-lo. Desta forma, este livro único em seu gênero funciona como um complemento à minissérie, pois valendo-se de uma poética análoga, a de partir de elementos textuais prévios, propõe-se a explicar aquele momento histórico. Cercas, no entanto, avança porque assimila-o ao processo histórico em andamento desde os estertores do franquismo e propõe uma visão ao mesmo tempo mais profunda e mais panorâmica das motivações que, no choque das ambições individuais e coletivas que movem a história, conduziram ao 23-F. A minissérie, ao mesmo tempo em que é competente no que se propõe, esgota-se em sua própria contenção. Seja como for, ela se aparenta com o livro de Cercas porque também ressalta o papel da imagem como signo sobre o qual podemos indagar e (re)descobrir a história. Neste caso, temos um dos focos de atuação tanto de golpistas como

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de uma possível reação ao golpe que é a sede de Radiotelevisión Española. Preocupado com a preservação do documento histórico que contém os trinta minutos gravados da invasão ao congresso, o diretor da emissora decide esconder a fita no estofado de sua cadeira. Mais tarde, desloca um equipamento móvel ao Palácio de La Zarzuela para que o rei possa gravar seu discurso. O espectador percebe então o papel preponderante dos meios de comunicação de massa que pode superar o entretenimento e a espetaculari-dade que comumente o caracterizam e rebaixam.

Referências

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CERCAS, J. Anatomía de un instante. Barcelona: Mondadori, 2009.

COLMEIRO, José F. Memoria histórica e identidad cultural: de la postguerra a la postmodernidad. Barcelona: Anthropos, 2005.

MARCO, V. MARCO, V. “Um pacto de silêncio: a transição espanhola.” In: COGGIOLA, O. (Org.). Espanha e Portugal: o fim das ditaduras. São Paulo: Xamã, 1995, p. 111-119.

JULIÁ, S. et al. La España del siglo XX. Ed. Actualizada. Madrid: Marcial Pons, 2007.

JULIÁ, S. (org.). Memoria de la guerra y del franquismo. Madrid: Taurus, 2006.

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neotevê: MaRcas da MetalinGuaGeM no BRasil

caRla siMone doyle toRRes

Jornalista e mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria.E-mail: [email protected]

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ResuMo

Entre as décadas de 1980 e 2000, notam-se importantes mudanças em relação às características estéticas e narrativas da TV no Brasil, em especial no modo como ela fala de si mesma. Este artigo apresenta um mapeamento de programas de diferentes emissoras ao longo desses 30 anos, objetivando observar a transformação das características relacionadas à metalinguagem ao longo deste período, na televisão brasileira. Parte-se do conceito de Neotevê, proposto nos anos 80 por Eco (1986) e Casetti e Odin (2012), a fim de também atualizá-lo neste novo cenário.

Palavras-chave: Televisão Brasileira; Neotevê; Metalinguagem; Estética.

aBstRact

Between the decades of 1980 and 2000, important changes related to the esthetic and narrative charac-teristics of television in Brazil were noticed, specially in the way it speaks of itself. This article shows a mapping of different broadcasters TV programs over 30 years, aiming to observe the metalenguage characteristics transformations over time in Brazilian television. Starting from the concept of NeoTV, proposed by Eco (1986) and Casetti & Odin (2012), in order to also actualize it in this new scenario.

Keywords: Brazilian Television; NeoTV; Metalanguage; Aesthetics.

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Introdução

Nos últimos 30 anos, a televisão brasileira tem manifestado várias marcas de um tipo de composição textual que se volta ao código ou à figura da instância produtora. Esse esforço de desnudamento ganha lugar a partir das

mudanças das condições políticas e tecnológicas, e num momento em que traços me-talinguísticos passam a ter destaque como parte do objeto veiculado, aproveitando um tipo de material que antes era considerado falha ou “sobra” a ser cortada na edição final.

Os anos 1980 marcam o início das parcerias entre emissoras de TV e produtoras independentes no Brasil, a exemplo de TVDO e Olhar Eletrônico (FECHINE, 2007). Posteriormente, entraram em atividade redutos de criação como o Núcleo Guel Arraes, sediado pela Rede Globo de Televisão desde 1991. Vinculados a ele e produzindo em parceria para a grade televisiva, estão produtoras de audiovisual como O2 Filmes, Casa de Cinema de Porto Alegre e Videofilmes. Muitas dessas produções compõem o corpus de análise apresentado neste artigo.

O mapeamento parte de um conjunto de programas apresentado por Yvana Fechine (2007), ao analisar a tensa e prolífera relação entre a TV e o vídeo no Brasil desde a década de 1980. Este levantamento é completado com a pesquisa feita por mim, na consideração de traços metalinguísticos de produções que se estabeleceram ao longo de toda a primeira década dos anos 2000. Esse conjunto de programas é classificado em tabelas que dispõem as categorias e os gêneros/subgêneros, além de traços estéticos e narrativos predominantes. Essa sistematização colabora para diferentes perspectivas sobre as produções, tornando possíveis combinações de características dentro do grande grupo metalinguístico de que fazem parte.

Para proceder a este mapeamento, consideraram-se inicialmente os programas Crig-Rá (1984), produção da Olhar eletrônico com a Abril Vídeo; Armação Ilimitada (1985-88), criação de Kadu Moliterno e André De Biase, com direção de Guel Arraes; TV Pirata (1989-90), criação de Guel Arraes e Cláudio Paiva; Doris Para Maiores (1991), criação de Guel Arraes, Cláudio Paiva, Alexandre Machado e Grupo Casseta & Planeta; Casseta

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& Planeta – Urgente! (1992-2010), criação do Grupo Casseta & Planeta; Cena Aberta (2003), criação de Guel Arraes, Jorge Furtado e Regina Casé; e Profissão Repórter (desde 2006), criação de Caco Barcelos. Todos até aqui com veiculação pela Rede Globo de Televisão. Custe o Que Custar-CQC (desde 2008), criação de Diego Guebel e Mario Pergolini, é da Rede Bandeirante (Band); e No Estranho Planeta dos Seres Audiovisuais (inédito em 2009), criação de Cao Hamburger, veiculado pelo Canal Futura.

Grig-Rá precisou ser excluído do corpus, pois embora seja um marco, um dos primeiros trabalhos realizados dentro do universo de pesquisa proposto, não foram encontradas edições do Programa. No entanto, os dados encontrados e disponíveis dão mostras da proporção histórica do traço metalinguístico em meio à produção televisiva no contexto em que ele foi lançado.

Da estética televisiva

A televisão é um dos meios menos considerados em sua dimensão estética (FAHLE, 2009). E ainda que TV e cinema mobilizem os mesmos grupos de códigos (JOST, 2007), este já tem uma trajetória muito mais evoluída nesse sentido1. Metz (1971), já considerava o audiovisual como um grande conjunto de linguagens vizinhas, que inclui manifestações de áudio – como música e ruídos – e de imagens visuais, a exemplo do vídeo e da fotografia.

No entanto, ainda que partilhe os mesmos grupos de códigos com outros meios, um dos entraves ao aprofundamento da discussão estética da televisão é justamente a dificuldade de evidenciar esta sua dimensão, “concebendo-a no âmbito de uma evolução do visual e circunscrevendo esta evolução através de uma teoria da imagem [o que é uma grande incoerência se considerarmos que o meio televisivo é] um dos lugares pri-vilegiados na evolução da imagem” (FAHLE, 2009, p. 190-191).

Acerca disso, Fahle (2009) aponta a necessidade de separar os conceitos de “imagem” e “visível”. Essa separação teria sido tematizada e recuperada na TV dos anos 1980, embora ainda não tenha sido concretizada no contexto da teoria dos meios.

Conforme Fahle (2009, p. 197),

a imagem é uma formação visual emoldurada e composta; ela tem um lugar histórico e medial determinável; é um documento e uma repre-sentação; pode ser determinada por conceitos de espaço e tempo; é uma condensação do visível; emerge a uma correlação estreita com o dizível. O visível, ao contrário, é múltiplo e variável; é um campo do possível e do simultâneo; é o campo do qual se originam as imagens e para o qual, talvez, voltarão. É o exterior da imagem moderna.

1 Ver Metz (2010, 1971), Aumont e Marie (2004), Stam (2003), Aumont (1995, 1993), Eisenstein (1990).

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A partir dessas definições, é possível fazer uma analogia com os conceitos de campo e fora de campo (AUMONT, 1993). A noção imagem – formação visual emoldurada em Fahle (2009) – parece-se muito com a noção de campo em Aumont (1993, p. 224) – “fragmento de espaço recortado por um olhar e organizado em função de um ponto de vista”. O visível, por sua vez – campo do possível em que se originam as imagens em Fahle (2009) – é o fora-de-campo em Aumont (1993, p.226-227), ou seja, “partes não vistas do espaço diegético [...] suscetível de ser desvelado, seja por um enquadramento móvel (um ‘reenquadramento’), seja pelo encadeamento com outra imagem”.

O conjunto de programas analisado neste artigo representa essa tensão imagem/visível e campo/fora-de-campo. Por mais que ainda se esteja caminhando rumo a uma sistematização das características estéticas televisivas, é possível constatar mudanças nesse sentido desde fins da década de 1970, pela observação de fatores como enquadra-mentos, movimentos de câmera, modos de edição de imagem e som e uso de formatos. Assim, após a tematização midiática dessa tensão especialmente a partir dos anos 1980, este artigo procura colaborar para a concretização do olhar específico sobre ela no contexto da teoria dos meios.

E ao falar mudança de padrões estéticos televisivos, é necessário recuperar os estudos de Eco (1986), assim como os de Casetti e Odin (2012), com suas discussões sobre a Paleo e a Neotevê. Inclusive, Casetti e Odin não aludem à pesquisa de Eco, mas há um ponto em comum entre os resultados de ambos os estudos: a decisiva ruptura estética na TV nos anos 1980.

Em Eco (1986, p. 182), a tônica da então emergente Neotevê é o falar “sempre menos do mundo exterior. Ela fala de si mesma e do contato que estabelece com o próprio público”. O próprio ato de olhar “para a telecâmara estaria sublinhando o fato de que a tevê existe e que seu discurso ‘acontece’ justamente porque a televisão existe” (ECO, 1986, p. 186). A transparência televisiva perdida de que fala o autor tem a ver com uma então nova postura, em que “não está mais em questão a verdade do enunciado, isto é, a aderência entre o enunciado e o fato, mas a verdade da enunciação que diz respeito à cota de realidade daquilo que aconteceu no vídeo (e não daquilo que foi dito através do vídeo)” (ECO, 1986, p. 188, grifos do autor). Ele aponta como um resumo dessa nova realidade o fato de que

estamos agora diante de programas em que informação e ficção se trançam de modo indissolúvel e não é relevante quanto o público possa distinguir entre notícias ‘verdadeiras’ e invenções fictícias [...] tais programas encenam o próprio ato da enunciação, através de simulacros da enunciação, como quando se mostram as telecâmaras que captam aquilo que acontece. Uma complexa estratégia de ficções põe-se a serviço de um efeito de verdade (ECO, 1986, p. 191, grifos do autor).

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Eco ainda inclui como exemplos dessa nova dinâmica da mostração da estrutura para a legitimação do meio os casos da telecâmara e da “girafa”2. Na Neotevê, “a televisão não dissimula mais o artifício, pelo contrário, a presença da girafa garante (mesmo quando não é verdade) que está se transmitindo ao vivo, portanto é a presença da girafa que serve agora para disfarçar o artifício” (ECO, 1986, p. 192). Posturas como essas é o que vemos até hoje como recurso de naturalização de espaços como bastidores e afins, antes inadmissíveis em campo.

Também ao teorizarem sobre a Paleo e a Neotevê, Casetti e Odin (2012) estabelecem características que formam um quadro de antagonismos. Segundo os autores, na Paleotevê havia uma relação hierárquica entre produtores e usuários, um espaço de formação, uma temporalidade própria e um programa estruturado. Além disso, ela dirigia-se ao coletivo e era regida por um contrato entre a instância emissora e a receptora. Na Neotevê temos, respectivamente: uma relação de proximidade e intercâmbio desierarquizado, um espaço de evento, um tempo de programação estendido para as 24 horas do dia, além de programas sem forma vetorizada, que justamente buscam diversas maneiras de interação. Por fim, para estes autores, a Neotevê dirige-se a grupos e prioriza o contato, em vez do contrato. Essa perspectiva vai de encontro às considerações de Jost (2007), para quem o contrato permanece fundamental na comunicação, e em cujas teorizações sobre gênero o contrato aparece como lastro.

Neste artigo, no entanto, ambas as perspectivas – de Jost (2007) e de Casetti e Odin (2012) – são consideradas compatíveis, pois aqui o contato é visto como a nova forma de contrato entre as instâncias emissora e receptora. Entende-se que somente um espaço de informalidade como o de um processo então denominado Neotevê favoreceria o afrouxamento de fronteiras e a fluidez entre imagem/visível, campo/fora-de-campo. Esse contexto, tomado aqui como suscitador de produtos metalinguíticos, colaborou para o estabelecimento de estética e estilística peculiares à televisão nos últimos anos, que se procura compreender.

Metalinguagem e autorreflexividade

A origem do conceito de metaliguagem é literária. Ele foi lançado por lógicos da Escola de Viena e da Escola polonesa, na necessidade de diferenciar a língua falada da língua de que se fala (GREIMAS e COURTÉS, 2008). Por analogia, no entanto, segundo os próprios autores, é possível transpor essa sistemática de compreensão para outras bases de leitura, como o tipo de texto que aqui interessa – o de linguagem audiovisual.

Ao recuperar a passagem da Paleo à Neotevê, a partir de Umberto Eco, Márcio Serelle (2009, p. 168) defende que “a televisão sempre reconheceu sua mediação mais

2 Tipo de suporte para microfone utilizado nas produções televisivas.

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explicitamente que outras mídias”, o que parece ter colaborado para que sua linguagem não seja “apenas fenômeno mediador, mas experiência autêntica a ser vivenciada e desejada” (SERELLE, 2009, p. 170). Aponta que a TV, “na última década [...] como ocorreu com as mídias de um modo geral, passou gradualmente a constituir uma segunda natureza, cuja tecnologia não precisa mais ser disfarçada, posto que suas formas de mediação já estão integradas à cotidianidade”. Mais adiante, o autor define que

o princípio da metatevê, como o das linguagens reflexivas e opacas de modo geral, é a orientação para o código, direcionamento este que deve ser compreendido em espectro amplo, que abrange desde o foco nos processos produtivos operações de ordem técnica, rotinas profissionais, lógicas de transmissão etc.) ao desnudamento de modos e estratégias do narrar televisivo, sem que essa consciência da enunciação desconsidere os enunciados propagados naquele ambiente (SERELLE, 2009, p. 171).

Mais adiante, o autor aponta o media criticism como uma manifestação da dimensão metatelevisiva, e como exemplo disso o programa Observatório da Imprensa. Serelle relaciona aos estudos metatelevisivos a pesquisa de Arlindo Machado sobre media arts, que se apropriam, “no interior da cultura midiática, dos códigos dos aparatos para explicitar as formas simbólicas ali incutidas [para] propor, em virada irônica, a crítica ao funcionamento desses modelos mundialmente homogêneos” (SERELLE, 2009, p. 171). Nesse sentido, ao recuperar estudos de Hjelmslév, Elizabeth Duarte (2004, p. 90), considera o metadiscurso um processo de referenciação baseado na recursividade, ou seja, “relações intertextuais baseadas na precedência”.

A propósito, como a virada sobre si só é possível no momento em que a televisão reconhece a própria existência como base da mediação e a problematiza, seria difícil que o tipo de postura tomada a partir dos anos 1980 pudesse ter se estabelecido antes. Isso tanto pela dificuldade do contexto político, quanto pela própria necessidade do meio de acumular certo volume de experiências e produtos sobre os quais pudesse se voltar. E ao voltar-se sobre si, o produto audiovisual televisivo empreende uma postura também praticada pelo cinema e já teorizada em torno daquele meio – a autorreflexivi-dade, aqui considerada uma manifestação específica da metalinguagem.

Conforme Duarte (2004, p. 91), a autorreflexividade configura-se como um “procedimento de autorreferenciação da ordem da incidência. Implica a presença de um sujeito que faça de si próprio objeto do discurso por ele mesmo produzido”. E como exemplo de produto televisivo em que é clara a presença da autorreflexividade, a autora cita um dos programas aqui estudados, Cena Aberta. Nessa produção “não há distinção entre o que acontece por trás e frente às câmeras, entre dramaturgia e documentário” (DUARTE, 2004, p. 91).

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Aliás, a propósito do documentário, ele é rico manifestações consideradas au-torreflexivas. E como a TV, afinal, herda determinadas influências estéticas do cinema, é interessante entender como a questão reflexiva vem se manifestando desde esse meio. De acordo com Nichols (2005, p. 166), o documentário reflexivo pode ser considerado como o “mais consciente de si mesmo e aquele que mais se questiona”. O mais importante é que isto deve ficar muito claro a quem assiste à obra.

No modo reflexivo, são os processos de negociação entre cineasta e espectador que se tornam o foco de atenção [...] Em lugar de ver o mundo por intermédio dos documentários, os documentários reflexivos pedem-nos para ver o documentário pelo que ele é: um constructo ou representação (NICHOLS, 2005, p. 162-163, grifos do autor).

Produtos que “pedem” para ser vistos como “constructo ou representação”.

Essa é a tônica de alguns dos programas aqui selecionados, a exemplo de Cena Aberta, Profissão Repórter e No Estranho Planeta dos Seres Audiovisuais. Enquadrada como um braço da metalinguagem, a autorreflexividade leva ao extremo a condição metatele-visiva, promovendo um jogo de espelhamentos que possibilita uma rica manifestação dos traços metalinguísticos visados. A propósito do documentário, ele aparece alocado como subgênero (DUARTE, 2004) no tópico a seguir e trabalha no sentido de uma melhor compreensão acerca do corpus delimitado.

Categoria e gênero

A televisão ainda está em meio a um processo conturbado de estabelecimen-to do conceito de gênero. E por mais que pesquisas como a de Rick Altman (2000) demonstrem que o cinema também passa por uma construção contínua e difícil de parâmetros que possam constituir um quadro conceitual relativamente estável para os gêneros e suas manifestações, a televisão ainda parece estar mais longe de encontrar consenso entre seus teóricos nesse sentido.

Com uma narrativa que tende a uma progressiva hiper-fragmentação (CASETTI & ODIN, 2012), a TV é historicamente mais sujeita às demandas dos interesses comerciais das empresas envolvidas. Nela, os fatores contextuais que ligam as esferas da produção e da recepção variam mais marcada e intensamente em pouco tempo e parecem estabelecer um quadro genérico mais confuso do que o atual nível de sistema-tização alcançado pelos teóricos da sétima arte. Para dar uma ideia de o quanto a esfera de recepção condiciona de modos diferentes o movimento e estabelecimento do quadro

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genérico em um e outro meio, é possível fazer uma comparação cinema/TV. Um filme pode ser sucesso de público, mas ele logicamente será um filme completo e acabado de acordo com todo um conjunto de características pensadas pela esfera da produção, sem que tenha sido necessariamente sujeito a pesquisas e aprovação do público. No entanto, se uma novela ou uma série não fazem sucesso, terão rumos alterados ou mesmo poderão ser encerradas antes do previsto.

Ao apontar o fato de que a Indústria usa os gêneros para produzir programas que definem identidades, gostos, faixas de público, organizações e planos de investimen-tos de empresas, Jason Mittell (2004) entra em consenso com os autores da área, como François Jost e Elizabeth Bastos Duarte. Sua contribuição mais forte para a teorização de gêneros para o meio televisivo está em reforçar a importância do contexto e das relações socioculturais nele estabelecidas. Para o autor, os gêneros são chaves pelas quais nossas experiências de mídia têm se classificado e se organizado em categorias ligadas a conceitos particulares como valor cultural, audiência assumida e função social e ainda destaca que a mistura de gêneros é mais pronunciado hoje do que em épocas anteriores.

De fato, independente de um possível consenso entre autores sobre os conceitos de categoria, gênero e formato, essa mistura também existe na TV brasileira. Como exemplos de gêneros elencados por Mittell (2004), temos notícias, esporte, publicidade e propaganda, dramas médicos, TV educativa e ficção científica. Aliás, poucas dessas nomenclaturas encontram correspondência nas lembradas por Jost (2007, p. 61). Ao apontar etiquetas tomadas como gêneros, a exemplo de documentário, reality show, te-lerrealidade, drama, soap opera, docudrama e docuficção, Jost fala da dificuldade de classificação de coisas que não estão no mesmo nível, já que algumas “tomam como traço pertinente a forma da emissão [...] outros, enfim, fazem referência a conjuntos muito mais vastos (realidade, ficção)”, que o autor chama de “mundos”. Por sua vez, os mundos fundamentam uma classificação de gêneros mais racional, formando os “arquigêneros”: os mundos real, fictivo e lúdico.

Sobre o mundo real, Jost esclarece “que o primeiro reflexo do telespecta-dor é determinar se as imagens falam do mundo ou não, qualquer que seja a ideia que se faça de desse mundo” (JOST, 2007, p. 62). Eis aqui também as diferenças culturais e contextuais de que fala Mittell. Sobre o mundo fictivo, Jost afirma que ao aceitar um relato que venha com essa característica “está-se pronto a aceitar acontecimentos nos quais não se acreditariam ser atribuídos ao mundo real” (JOST, 2007, p. 63), o que não abole a necessidade de uma coerência interna de tal narrativa, a exemplo das histórias de super-heróis. Por fim, o mundo lúdico, situado entre o mundo real e o da ficção, é

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bem representado pela condição do jogo: jogadores são personagens do mundo real, mas desempenham papéis segundo regras.

De modo geral, todas as possíveis classificações de gênero partem desses conceitos englobantes, dos quais derivam linhas de ação e produção de significados. Um exemplo dessas linhas é o que Jost considera como promessas dos gêneros. Elas atualizam a noção de contrato de leitura, concebendo o gênero como “interface entre produtores, difusores e telespectadores via mediadores” (JOST, 2007, p. 69-70). Nesse ponto, Jost dialoga com Casetti e Odin (2012) a propósito da transição da Paleo à Neotevê. Não há tom pedagógico; há uma sugestão, uma promessa, um devir que vai se tornando próprio de cada núcleo genérico e a partir do qual o público passa a encontrar motivos para se fidelizar (ou não). Entre os tipos de promessa de que fala Jost, está a ontológica, ou seja, a que fica clara já no nome do gênero, a exemplo da comédia – promessa de riso. O outro tipo é a pragmática: sabemos, por exemplo, a diferença entre “ao vivo” e ficção, mas podemos não saber se determinada programação é ou não ao vivo. De fato, são frequentes as estratégias para que o efeito de certo conteúdo veiculado seja de “ao vivo”.

No que se refere à mistura de mundos, gêneros e consequente mistura de tons das emissões (JOST, 2007; DUARTE, 2004), chama a atenção o modo como ela é forte nos programas que fazem parte do presente estudo, a exemplo da docuficção e do infotainment3 (JOST, 2007). Por exemplo, se um tema de interesse jornalístico (mundo real) é narrado com atributos ficcionais, certamente vai acontecer uma mistura de tons, de modos de apresentação. Julgar as prevalências e “desconstruir a promessa” (JOST, 2007, p. 73) de maneira a saber alocar os produtos independente da marca genérica a eles atribuída pelas emissoras de TV é um desafio que a pesquisa nesse campo tem encontrado até hoje.

Acerca desse esforço de classificação de gêneros, a pesquisa de Duarte procura aprofundar as teorizações de Jost, adaptando seus pilares às considerações sobre a programação no Brasil. Observa-se um diálogo com Mittell (2004), quando a autora considera a necessidade de relacionar o contexto social e as condições de evolução técnica às práticas de produção e recepção dos produtos televisivos.

Também, como se constata nos exemplos a seguir, Duarte observa a prática de incorporar à grade regular de programação somente produtos que tenham sido testados por um certo tempo e com determinada intensidade. É o caso dos programas Profissão Repórter e Casseta & Planeta – Urgente!. Uma característica marcante na pesquisa de Duarte (2004) é que a autora parte da ideia de que gêneros (virtualidades) representam

3 Conceito mais profundamente desenvolvido até agora no Brasil por Gomes (2008) e Dejavite (2006), como veremos a seguir.

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a promessa, e considera que esta se manifesta nos subgêneros (atualizações) e se realiza nos formatos. Assim, enquanto a meta-realidade, num regime de crença de veridicção e verossimilhança, tem o subgênero telejornal como uma de suas atualizações, Jornal da Globo ou Jornal da Band são considerados como formatos (ordem da realização).

Para Aronchi de Souza (2004), categoria e gênero têm definições imbricadas, mesmo que num nível de problematização menor.

categoria abrange vários gêneros e é capaz de classificar um número bastante diversificado de elementos que se constituem [...] no elo que une o espaço da produção, os anseios dos produtores culturais e os desejos do público [...] A divisão dos programas em categorias inicia o processo de identificação do produto, seguindo o conceito industrial assumido pelo mercado de produção (ARONCHI DE SOUZA, 2004, p. 37, grifo do autor).

O que diferencia a pesquisa de Aronchi de Souza das de Mittell, Jost e Duarte é o fato de que ele lança uma classificação mais delimitada para os gêneros, o que – por um lado – parece precipitado frente à mais larga e problematizante discussão feita em âmbito mundial atualmente, mas também – por outro – é uma clivagem que parece incorporar indiretamente a divisão em mundos e ainda propõe uma taxonomia precisa para as mais diversas expressões de forma e conteúdo que a TV brasileira vem manifestando.

Para embasar a discussão, o autor cita dados lançados por José Marques de Melo, que afirma que “a televisão brasileira é quase exclusivamente um veículo de en-tretenimento. Para cada 10 horas de programas exibidos, 8 se classificam nessa categoria. Complementarmente, ela dedica 1 hora a programas informativos (jornalísticos) e 1 hora a programas educativos ou especiais” (MELO apud ARONCHI DE SOUZA, 2004, p. 39, grifos do autor). A categoria que dá o lastro para a produção de conteúdos no meio televisivo, portanto, é o Entretenimento, seguido da Informação e dos Educativos/Instrutivos.

Em suas pesquisas sobre telejornalismo, Gomes (2008) alude ao convívio da categoria da Informação com a do Entretenimento, o que gera a categoria híbrida do INFOtenimento. Para ela, como exemplos frequentes da tendência à naturalização do híbrido INFOtenimento na TV estão

programas que dramatizam a vida cotidiana [...] conjugam debate de assuntos da atualidade com recursos do entretenimento [...além de...] programas jornalísticos populares [...e...] programas que têm como conteúdo as várias formas de entretenimento [...como...] jornalismo esportivo, jornalismo cultural, colunismo social (GOMES, 2008, p. 105-106).

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Para Aronchi de Souza (2004), na Categoria Informação, os gêneros mapeados são debate, documentário, entrevista e telejornal. Já em relação ao entretenimento – categoria que concentra 80% da programação brasileira – temos listados os gêneros auditório, Colunismo Social, Culinário, Desenho, Docudrama, Esportivo, Filme, Game Show (Competição), Humorístico, Infantil, Interativo, Musical, Novela, Quiz Show (perguntas e respostas), Reality Show, Revista, Série, Série Brasileira (minisséries), Sitcom, Talk Show, Teledramaturgia, Variedades e Western (Faroeste).

Assim, a partir de um cruzamento conceitual entre os autores, observa-se – por exemplo – que alguns gêneros do Entretenimento definidos por Aronchi de Souza repetem-se na conceituação da categoria híbrida do INFOtenimento definida por Gomes. Mas, de fato, apesar da tentativa de embasamento e das convergências com teorizações de outros autores, essa clivagem parece um tanto precipitada. Frente ao momento por que passa tal discussão conceitual, o mais seguro é optar pelo lastro cultural proporcionado pelos estudos de Jason Mittell (2004), pela ambientação de François Jost (2007), que prepara os encaminhamentos de gênero a partir da divisão em mundos (real, fictivo e lúdico) e pela leitura e detalhamento de Elizabeth Bastos Duarte, desde suas considerações sobre o que considera como arquigêneros em Jost (os referidos mundos), passando pelas considerações sobre gêneros (âmbito da promessa/ordem da virtualidade), subgêneros (âmbito da apresentação / ordem da atualização) e formatos (âmbito da realização).

Assim, dentro do que Duarte considera como subgêneros, teremos algumas coincidências com o que Aronchi de Souza e outros autores consideram como gêneros. Metodologicamente, valoriza-se aqui a linha de pensamento da autora, pois entende-se a generificação como processo e consideram-se as reflexões de Jost e de Mittell. Em sua classificação em subgêneros, temos como exemplos de representantes: telejornal, documentário, reportagem, entrevista, talk show, debate, plantão de notícias, telenovela, minissérie, seriado e reality show. Para a comrpeensão de como se pode denominar outros exemplos, segue-se primeiramente a base de mundos de Jost, comunicando com a divisão em subgêneros de Duarte, sempre que possível.

Detalhamentos do corpus

Para o trabalho sobre os tópicos desta seção, os programas Armação Ilimitada, TV Pirata, Doris Para Maiores, Casseta & Planeta – Urgente!, Cena Aberta, Profissão Repórter, Custe o Que Custar (CQC) e No Estranho Planeta dos Seres Audiovisuais foram observados em função de contexto histórico, cronologia, horário de exibição, categorias, gêneros,

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subgêneros, traços estéticos e narrativos e das basilares estratégias metalinguísticas.Numa linha cronológica, primeiramente temos Armação Ilimitada (Rede Globo,

1985-1988). Exibido em horário nobre, às sextas-feiras, às 21h20, em seu primeiro ano os capítulos do programa eram mensais; a partir do segundo ano de exibição, passaram a ser quinzenais. A intensa experimentação de linguagens desafia a linearidade de muitas produções contemporâneas, o que mantém a originalidade da produção, mesmo após 25 anos desde seu término.

Após, a Rede Globo lançou programas que investiram na crítica às esferas socioeconômica e política brasileiras, a exemplo da ascensão e queda do presidente Fernando Collor de Mello. Por ordem cronológica, temos TV Pirata (1989-1990, com retorno durante 1992), Doris Para Maiores (1991) e Casseta & Planeta - Urgente! (1992-2010). Em Doris, o formato era telejornalístico. O fim dessa produção encerrou também o período mais fértil do encontro das categorias Informação e Entretenimento na TV brasileira. Já Casseta e Planeta teve o traço informativo enfraquecido em relação ao seu antecessor. Com 18 anos de veiculação, é o mais longo em meio ao corpus e um dos mais longos programas humorísticos em TV do país. Essas três produções foram alocadas em horário nobre, às terças-feiras, depois da última novela do dia. Entre as estratégias metalinguísticas, destaca-se a reflexividade, pois são frequentes as alusões ao trabalho da própria equipe frente às mais diversas situações. Além disso, a metalinguagem se dá também quando há piadas de duplo sentido, em que não é a linguagem audiovisual que está propriamente em discussão, mas outro sistema ou código, a exemplo da língua portuguesa.

Cena Aberta (2003) e Profissão Repórter (desde 2006) são os programas do corpus que representam uma nova fase em meio às produções de caráter metalinguístico veiculadas pela Rede Globo. A minissérie Cena Aberta, produção da Casa de Cinema de Porto Alegre, teve adaptações de textos de Clarice Lispector, Simões Lopes Neto, Leon Tolstoi e Marcos Rey. Os quatro episódios foram exibidos entre novembro e dezembro de 2003. Profissão Repórter começou em 2006, como um “piloto” em meio ao dominical Fantástico, e se tornou fixo na grade da programação da Rede Globo de Televisão em 2008. Na equipe liderada por Caco Barcellos, os jovens têm a missão de mostrar “diferentes ângulos da mesma notícia”4. A veiculação é na tradicional grade das terças-feiras, à noite, com reprise aos sábados e domingos pelo canal fechado Globo News.

Entre os programas do corpus, Cena Aberta é das produções que mais exploram a metalinguagem. Há constantes as menções às técnicas e às estruturas, num tom quase didático. Em Profissão Repórter, o início da produção concentra os exemplos mais

4 Disponível em: www.twitter.com/profereporter . Acesso em: ago.2012.

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pronunciados da metalinguagem e de seu traço reflexivo – especialmente entre 2006 e 2008, quando ainda caracterizava-se como um programa piloto. Em 2008, a produção ainda manifestava diversas estratégias metalinguísticas do período de testes, no entanto, rapidamente foi assumindo traços de produção profissional. Os ares de vanguarda deram espaço para lógicas de produção conhecidas das grandes redes de TV.

Um dos últimos programas do corpus é Custe o Que Custar – CQC (Rede Bandeirantes, desde 2008), cujo formato foi lançado pela Eyeworks-Quatro Cabezas. Numa abordagem irreverente das notícias semanais de campos como política, economia, cultura e variedades, o programa conduzido por Marcelo Tas é veiculado no horário nobre das segundas-feiras.

No Estranho Planeta dos Seres Audiovisuais (TV Futura, 2009) encerra a seleção de programas deste corpus. O programa ainda integra a grade de programação da Futura em horários alternativos. Assim como em Cena Aberta, o perfil do programa é essen-cialmente metalinguístico, explorando os mais diversos meios que se fazem a partir da linguagem audiovisual.

O detalhamento desse conjunto de produções inicia pelas tabelas 1, 2 e 3, com uma visualização das categorias e gêneros (Aronchi de Souza, 2004)/subgêneros (Duarte, 2004) manifestos em cada década:

Tabela 1: Categorias e gêneros/subgêneros entre as produções ao longo da década de 1980

Tabela 2: Categorias e subgêneros entre as produções ao longo da década de 1990

Produção / Emissora / Ano Categoria Gênero/SubgêneroArmação Ilimitada (Rede Globo, (1985-88) Entretenimento Subgênero Seriado

TV Pirata (Rede Globo: 1989-90) Entretenimento Gênero Humorístico

Produção / Emissora / Ano Categoria Gênero/Subgênero

Doris para Maiores (Rede Globo: 1991)

Informação / Entretenimento (INFOtenimento)

Gênero Humorístico

Casseta & Planeta: Urgente! (Rede Globo: 1992)

Entretenimento_eventualmente Informativo (INFOtenimento)

Gênero Humorístico

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Tabela 3: Categorias e subgêneros entre as produções ao longo da década de 2000

A partir das tabelas 1, 2 e 3, observa-se uma transição clara entre a predo-minância do entretenimento ao longo dos anos 1980 e a crescente participação da categoria informativa ao longo dos anos 1990 e 2000. É interessante nesse ponto, quando visualizamos a mistura de categorias (INFOtenimento) justamente ao longo dos anos 1990, quando a cronologia do conjunto pesquisado estava na metade do seu decurso. Em paralelo, em termos de gênero e subgênero, observa-se a transição entre a predo-minância do gênero humorístico nos anos 1980 e 1990 e o destaque à manifestação do subgênero documental nos anos 2000.

Frente a esse primeiro cruzamento de dados, é possível inferir que o salto inicial da produção metalinguística nacional veio carregado de uma característica que parece comum aos movimentos vanguardistas em todas as épocas: independente de agradar ou não, ela capta e retém a atenção por meio do seu potencial de entretenimen-to. Ao longo de certo tempo, na escalada das décadas de 1990 e 2000, há um aumento da aposta na categoria informativa. Ao mesmo tempo, cresce a aposta na mescla dos gêneros humorístico e documental, o que poderia ser inusitado ou considerado arriscado demais nos anos 1980. O acerto nas medidas dessa mistura parece mesmo possível somente devido ao decurso de algumas décadas de experiências entre vários produtos já lançados e testados nas grades de programação.

A seguir, observo o conjunto de programas sob outra perspectiva. As tabelas 4, 5 e 6 agora destacam os traços estéticos e narrativos predominantes em cada década:

Produção / Emissora / Ano Categoria Gênero/Subgênero

Cena Aberta (Rede Globo: 2002) EntretenimentoSubgênero Seriado com

estilo documental

Profissão Repórter (Rede Globo: a partir de 2008)

Informativo Subgênero Documental

Custe o que Custar – CQC (Bandeirantes: a partir de 2008)

Entretenimento / Eventualmente informativo

Gênero Humorístico / Variedades

No Estranho Planeta dos Seres Audiovisuais (TV Futura: 2009)

Entretenimento Subgênero Documental

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Tabela 4: Traços estéticos e narrativos entre as produções ao longo da década de 1980

Produção / Emissora / Ano Estética Narrativa

Armação Ilimitada (Rede Globo, (1985-88)

Enquadramentos e movimentos de câmera variados; iluminação cheia de contrastes. Uso de diferentes recursos de edição de imagem e som. Efeitos especiais; estética vídeo-clipe em muitas oportunidades; locações diversificadas.

As peripécias de uma dupla que forma um triângulo amoroso com a jornalista Zelda. Narrativa entrecortada, considerada de difícil entendimento pelas gerações mais jovens. Montagem que recorre a clichês dos quadrinhos, do cinema e da TV de um modo provocativo e inventivo.

TV Pirata (Rede Globo: 1989-90)

Enquadramentos e movimentos de câmera variados; iluminação cheia de contrastes. Uso de diferentes recursos de edição de imagem e som. Efeitos especiais; estética vídeo-clipe em muitas oportunidades; locações internas predominantes.

A paródia a outros gêneros e alusão a temáticas então correntes na mídia são uma constante. Ênfase ao grotesco (Sodré) em certos quadros e situações. Existe o que se pode chamar de autorreferência a partir do ponto de vista do arquilocutor (a emissora) em relação à grade de programação.

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Produção / Emissora / Ano Estética Narrativa

Doris para Maiores (Rede Globo: 1991)

Câmera parada e na mão; panorâmicas de todo tipo; enquadramentos variados (geral, médio, fechado, close, plongée e contre-plongée). Edição que utiliza efeitos visuais com frequência. Intenso uso de imagens de arquivo, além de produção de cenas com estética fílmica antiga. Locações internas e externas em equilíbrio. Constante similaridade com a estética típica dos formatos do gênero telejornalísico, com ancoragem/chamadas em estúdio e microfone direcional quando nas externas.

Narrativa entrecortada (muitos inserts em meio às performances, o que atribui um ritmo peculiar a elas). Quadros curtos. A alusão a temáticas então correntes na mídia são uma constante, faz parte do traço informativo que convive com o humor do programa. Esse programa em especial legou muitas características aos subsequentes do mesmo gênero, especialmente Casseta & Planeta Urgente. Sátira política destacada.

Casseta & Planeta: Urgente!

(Rede Globo: 1992)

Câmera parada e na mão; panorâmicas de todo tipo; enquadramentos variados (geral, médio, fechado, close, detalhe, plongée e contre-plongée). Edição que utiliza efeitos visuais com frequência. Eventual uso de imagens de arquivo, além de produção de cenas com estética fílmica antiga. Locações internas e externas. Eventual similaridade com a estética típica dos formatos do gênero telejornalísico, com ancoragem/chamadas em estúdio e microfone direcional quando nas externas.

Narrativa em quadros curtos, com situações hipotéticas e sátira política em destaque. Ênfase ao grotesco (Sodré), mas de maneira mais branda que em Doris para Maiores e TV Pirata. São frequentes os inserts de imagens e efeitos de edição de som em meio às performances. Paródia e ironia constantes.

Tabela 5: Traços estéticos e narrativos entre as produções ao longo da década de 1990

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Tabela 6: Traços estéticos e narrativos entre as produções ao longo da década de 2000

Produção / Emissora / Ano Estética Narrativa

Cena Aberta (Rede Globo: 2002)

Câmera parada e na mão; enquadramentos variados (geral, médio, fechado, close, plongée e contre-plongée). Locações internas e externas. Som direto privilegiado. Intenso trabalho de edição de imagem e som. Valorização de trilha e efeitos sonoros.

Adaptação do livro A hora da Estrela, de Clarice Lispector. Nessa montagem, trechos de entrevistas são entremeados com encenações inspiradas no original.

Profissão Repórter (Rede Globo: a partir de 2008)

Câmera parada e destaque para a câmera na mão; panorâmicas de todo tipo; enquadramentos variados (geral, médio, fechado, close, detalhe, plongée e contre-plongée). Edição que utiliza efeitos visuais com frequência e há valorização da trilha sonora.

Narrativa que privilegia – em termos de forma e conteúdo – os traços da grande reportagem jornalística. Com uma história eventualmente entrecortada pelo ritmo e efeitos de edição, a produção parece fazer fronteira com os traços de uma estrutura mais clássica do documentário.

Custe o que Custar – CQC (Bandeirantes: a partir de

2008)

Similaridade com a estética tradicional dos formatos do gênero telejornalísico, com apresentadores vestidos formalmente, com ancoragem/chamadas em estúdio e microfone direcional quando nas externas. Câmera parada e na mão; enquadramentos médio e fechado predominantes. Locações internas e externas. Intenso trabalho de edição de imagem e som.Valorização de efeitos sonoros.

Formada por quadros fixos entremeados com ancoragem e momentos de “espontaneidade” da equipe que apresenta o programa a partir de uma grande bancada. As temáticas são frequentemente políticas, com fundo irônico.

No Estranho Planeta dos Seres Audiovisuais (TV Futura: 2009)

O programa é como um manual de enquadramentos e movimentos de câmera, métodos de edição de áudio e vídeo. A estética é muito semelhante à do vídeo-clip.

Narrativa entrecortada por diversos recursos e efeitos de edição em áudio e vídeo. Televisão e outras formas de produção em áudio e vídeo formaram o tema central.

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A partir da distribuição do conteúdo nas tabelas, é possível visualizar um panorama de características claras a cada década. Na década de 1980, em termos estéticos, temos a exploração dos extremos, seja em termos de luz, som, enquadramen-tos/movimentos de câmera ou edição com efeitos. As locações internas e a edição em estilo videoclipe predominam. Já em relação à narrativa, destaque para a descontinui-dade de histórias entrecortadas, com grande exploração de elipses, além de inspiração na trama de clichês dos quadrinhos, cinema e TV. Além disso, há constantes paródias autorreferentes à grande de programação. Também é interessante observar o modo como temáticas-tabu para muitos, a exemplo da poligamia, são tratadas com extrema naturalidade; como exemplo disso, temos o triângulo amoroso formado por Zelda, Juba e Lula em Armação Ilimitada.

Já na década de 1990, em termos estéticos, mantêm-se recursos como os efeitos de edição. Acrescentam-se características como a câmera na mão, o uso de imagens de arquivo e as similaridades com formatos do gênero telejornalístico. Em relação à estética, a década de 1990 mantém a narrativa entrecortada, abrindo espaço para os programas com quadros curtos, em que o humor enfatiza a sátira política, a paródia e a ironia, além de apelar para o grotesco.

Ao longo dos anos 2000, em termos estéticos, podemos ver a consagração da câmera na mão, dos efeitos de edição, bem como da exploração dos enquadramentos e dos movimentos de câmera variados. Também nesse contexto, passa a haver amplo uso dos formatos do gênero telejornalístico, além de um destaque à trilha e efeitos de som. Os programas, em muitos momentos destacam o que se pode considerar como um manual audiovisual de como fazer produtos audiovisuais. Em termos de narrativa, consagração aos traços da grande reportagem, que parece fazer uma ponte entre os gêneros telejornalístico e documental. Entre as temáticas, maior espaço para os dramas e trajetórias pessoais, numa ênfase à humanização dos relatos.

Assim como em meio ao panorama de categorias e gêneros traçado a partir das tabelas 1, 2 e 3, nessa disposição de traços estéticos e narrativos que temos com as tabelas 4, 5 e 6, observamos um movimento que parece ser cíclico e já típico em diversos meios, especialmente em termos de movimentos artísticos. O vanguardismo vai sendo, aos poucos, aparado em suas arestas, assimilado e abrandado em seu traço desbravador e crítico.

Frente ao conjunto de características até aqui traçado, é possível chegar a algumas conclusões sobre o movimento do conjunto de estratégias metalinguísticas, dispostas na tabela 7, a seguir.

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Tabela 7: Movimento das estratégias metalinguísticas observadas nas produções ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000

Em cerca de 30 anos, observa-se uma grande variação de estratégias. Esse panorama em que os produtos mudam, mas no qual alguns fatores se repetem pode favorecer a observação dos traços metalinguísticos que possivelmente cristalizam-se como pilares de uma estética e uma estilística peculiares à televisão brasileira.

Características

1980

As produções encontram um terreno fértil até então. É possível ir aos extremos, utilizando com exagero elementos plásticos e morfológicos, além de características estéticas e narrativas clássicas. Ao voltarem-se sobre si mesmos, esses recursos são utilizados num deslocamento de suas linhas costumazes de ação; explorados de um modo alternativo, que coloca em evidência e em xeque essa própria tradição estabelecida. Entretenimento, humor e contrastes são o mote. Há momentos de teatralização excessiva em face dos limites da linguagem televisiva. A estrutura da linguagem audiovisual como um todo é exposta e questionada muitas vezes explicitamente. Época de vanguardismo e de testar fórmulas.

1990

Apesar de o humor escrachado ter sobrevivido ao longo de década em diversos momentos, as produções começam a entrar em uma fase de estabilização das fórmulas lançadas e testadas nos anos 1980. Os modelos começam a ser legitimados e a perder seu caráter questionador e desafiador. É tempo de acomodações e início de uma padronização de estratégias; começo de formação de novos cânones audiovisuais televisivos no Brasil. Coincide com o lançamento de núcleos estáveis para diálogos entre as estéticas do vídeo e do cinema dentro da TV, a exemplo do Núcleo Guel Arraes na Rede Globo de Televisão e do Núcleo de Especiais da RBS TV.

2000

Há uma tendência à domesticação das estratégias, em que o vanguardismo parece ser rapidamente absorvido por uma estrutura estabelecida. A trama de categorias e gêneros, de recursos estéticos e narrativos cresceu em progressão geométrica, mas é sustentada por um esquema de funcionamento testado e seguro. Programas escancaradamente didáticos sobre as rotinas produtivas televisivas, a exemplo de Profissão Repórter e No Estranho Planeta dos Seres Audiovisuais, parecem ser a legitimação de uma estrutura que foi tornada possível justamente devido à já então longa trajetória de tentativas e resultados legitimados como erros ou acertos em termos de uma estética televisual.

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Conclusões

Pesquisar televisão no Brasil, na necessidade específica de ter acesso a arquivos, é um desafio grande e o presente estudo tem encontrado obstáculos de ordem prática. O acesso à totalidade dos programas mais antigos tem sido dificultoso, especialmente em relação aos veiculados entre os anos 1980 e 1990. Os bancos de dados sobre a memória da televisão brasileira são comumente organizados pelas próprias emissoras, além do trabalho de colecionadores e pesquisadores, enquanto o ideal seria uma preocupação de ordem governamental, que viabilizasse o acesso público à totalidade desse tipo de material.

Essas questões de ordem prática dificultam e restringem o acesso a essas produções, o que condiciona o corpus da futura tese a um afunilamento mais pronunciado do que o projeto havia proposto inicialmente. Atualmente, entre as referências nesse movimento de preservação da memória encontram-se o Pró-TV (Associação dos Pioneiros, Profissionais e Incentivadores da Televisão Brasileira), fundado em 1995; o Acervo da TV Brasil e das TV’s culturais de modo geral, e o Memória Globo.

Inclusive, Jost (2010) tem conclusões que dialogam muito com nossa realidade de pesquisa no país. Para o autor, em termos estruturais, a efemeridade dos produtos te-levisionados constitui-se como obstáculo ao aprofundamento dos respectivos estudos. De fato, quem passa a dedicar-se ao estudo das emissões televisivas, rapidamente depara-se com a dificuldade de acesso aos produtos, especialmente se comparada com a facilidade de recuperação da memória cinematográfica. A televisão – meio que tanto participa da construção da memória da cultura midiática no mundo – ainda não tem completos e/ou acessíveis bancos de dados para pesquisa. Muitas vezes, acessam-se arquivos esparsos, disponibilizados em sites de compartilhamento, já que a política das emissoras, quando há arquivo das produções desejadas, pode não facilitar o acesso a esse material.

Apesar disso, ainda é viável a execução de pesquisas como esta, que anda na esteira do possível, na espera de poder ser aprofundada em médio ou mesmo em longo prazo, de acordo com o movimento já iniciado em torno do resgate dessa memória. De modo geral, chama atenção o modo como as produções ao longo do tempo caem em uma esteira que as tabula e coaduna com certos cânones. Mas a observação do movimento das estratégias estéticas e narrativas entre as décadas de produções permite afirmar que essa fixação de cânones não é um movimento estabelecido por intervenções verticalizadas. O todo vai sofrendo influências horizontais, constituídas por várias camadas, várias linhas de ação que lentamente se sobrepõem e estabelecem

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o que podemos visualizar como padrões televisivos de canonização das estratégias. Isso parece ocorrer devido à mescla de características que a estética televisiva reúne, sejam vindas do cinema, do rádio, dos quadrinhos e da própria TV, em uma época aludida como Paleotevê pelos mesmos teóricos da Neotevê. O estatuto de linguagem audiovisual televisiva tem, portanto, ao mesmo tempo, características de todos esses outros meios e manifestações e uma série de características próprias, novas, que foram sendo aprofundadas ao longo das últimas décadas.

A propósito das características do conjunto pesquisado, até aqui, ao traçar um paralelo entre os horizontes de categorias/gêneros e de traços estéticos/narrativos, é possível observar que, na medida em que houve um aprofundamento da relação humor/documental, especialmente entre as décadas de 1990 e 2000, aprofundou-se também a naturalização do uso de efeitos de edição em imagem e som, no uso de uma âncora que parece poderosa para que as produções angariem credibilidade: o efeito de realidade atribuído pelo recurso frequente ao gênero jornalístico em meio às produções.

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