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Revista-Prelúdios-Completa (a)

Date post: 08-Oct-2015
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Revista-Prelúdios-Completa (a)
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  • PRELDIOSRevista do Programa de Ps-Graduao

    em Cincias Sociais da UFBA

    Preldios Salvador v. 2 n. 2 p. 1-147 jan./jun. 2014

  • Universidade Federal da BahiaReitor: Prof Dora Leal Rosa

    Vice-reitor: Prof. Lus Rogrio Bastos Leal

    Faculdade de Filosofia e Cincias HumanasDiretor: Prof Maria Hilda Baqueiro Paraso

    Vice-diretor: Prof. Iole Valim

    Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais Coordenador: Prof. Clvis Roberto Zimmermann

    Vice-coodernador: Prof Lidia Cardel

    FFCH-UFBA Estrada de So Lzaro, 197

    Federao - Salvador, BA - Brasil CEP: 40.210-730

    A Revista Preldios uma publicao cientfica eletrnica semestral. Lanada em 2013, tem como objetivo divulgar artigos, ensaios e resenhas de pesquisadores da rea de Cincias Sociais vinculados a instituies nacionais e internacionais. Podero ser submetidos para publicao textos originais ainda no publicados em outra revista cientfica nacional ou estrangeira ou em coletneas ou publicados em anais de eventos cientficos.

    Comisso Editorial ResponsvelAlan Rangel Barbosa, Dhanyane Castro, Elisngela dos Santos, Gabriela Messias, Israel Rocha, Rafael Arantes, Rodrigo Lessa e Thase S Santos

    FinanciamentoPPGCS (UFBA)

    Preparao de textosEquipe da EDUFBA

    Preldios - www.revistapreludios.com.brRevista do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia e

    Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia. v. 2, n. 2, jan./jun. [email protected]

    Conselho Consultivo(O Conselho Consultivo desta edio ser divulgado juntamente com o que ir compor a 3 edio, a ser publi-cada em setembro de 2014.)

    Em sua integralidade, o contedo dos textos publicados de exclusiva responsabilidade dos autores, no im-plicando necessariamente na concordncia da Comisso Editorial, do Conselho Consultivo ou de qualquer profissional envolvido com a publicao deste peridico.

  • PRELDIOSRevista do Programa de Ps-Graduao

    em Cincias Sociais da UFBA

  • Preldios : revista do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da UFBA /Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. - Ano 1,n. 1 (2013)- . - Salvador, BA : UFBA, FFCH, Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, 2013.v.

    Semestral.Descrio baseada em: Ano 1, n. 1, jul./dez. 2013.

    ISSN 2318-7808

    1. Cincias sociais - Peridicos. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade deFilosofia e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais.

    CDD - 300.5

    Projeto e capaRodrigo Oyarzabal Schlabitz

    EditoraoIgor Fonsca de Arajo Almeida

    RevisoSusane Barros

    Larissa Nakamura

    NormalizaoAdriana Caxiado

    Sistema de Bibliotecas da UFBA

  • SUMRIO

    EDITORIAL

    ARTIGOS

    O CAMPESINATO NA FORMAO DA SOCIEDADE CAPITALISTA MODERNA / 13

    Srgio Elsio Peixoto

    GRAMSCI E O SENTIDO DA POLTICA: MATERIALISMO HISTRICO, RECUSA DOS DOGMAS ECONOMICISTAS E DAS ILUSES IDEOLOGISTAS / 45

    Rafael de Aguiar Arantes e Carla Galvo Pereira

    CULTURA E IDEOLOGIA: RELEITURAS A PARTIR DA TEORIA SOCIAL CLSSICA / 73

    Sara Crtes

    A PIXAO DOS JOVENS NO CONJUNTO TAQUARIL / 97

    Flvia Cristina Soares

    MULHERES POLICIAIS: CONSIDERAES SOBRE O TRABALHO POLICIAL FEMI-NINO / 111

    Francisco Malta de Oliveira e Maria da Luz Alves Ferreira

    ORAMENTO PARTICIPATIVO: LIMITES, RISCOS E POTENCIALIDADES / 127

    Cristiano das Neves Bodart

  • Preldios, Salvador, v. 2, n. 2, p. 7-9, jan./jun. 2014 / 7

    EDITORIAL

    A construo da cincia se d, entre outros motivos, atravs do estabele-cimento de debates, sejam eles oriundos de natureza emprica ou terica. A re-vista Preldios visa promover um dilogo necessrio para construo da cincia no mbito acadmico, na medida em que auxilia o Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal da Bahia (PPGCS/UFBA) na divul-gao de textos de seus integrantes. Mas no apenas isso, ela abre espao para que outros (sejam estudantes ou profissionais de outras instituies) ajudem e contribuam nesse debate travado no campo das Cincias Sociais.

    Os textos selecionados para publicao nesta edio tm sua devida contribuio neste objetivo. Tais trabalhos podem ser usados na tentativa de construo de anlises comparativas de uma mesma temtica, com diferentes autores, ou para perceber a possibilidade de abertura para o estabelecimento de novos dilogos, apesar de estarem ancorados em temticas j tratadas por autores clssicos, por exemplo. So textos que dizem respeito s indagaes e interlocues estabelecidas no mundo contemporneo, temas que so desenvol-vidos atravs de trabalho de campo e/ou revises bibliogrficas.

    Autor convidado desta edio, o Prof. Srgio Elsio Peixoto procura dis-cutir a complexidade da noo de campesinato diante da diversidade que este grupo social assume em sua trajetria histrica, conforme as mudanas que ocorrem nas formaes sociais capitalistas em que se encontra inserido. Em se-guida, Rafael de Aguiar Arantes e Carla Galvo Pereira resgatam em sua discus-so terica a noo gramsciana de hegemonia, no intuito de pontuar como este conceito est singularmente enraizado no materialismo histrico, elaborado por Marx e Engels e renovado por Lnin. Apesar da introduo de novos elemen-tos a esse campo de pensamento, a fundamentao terico-metodolgica de Gramsci permaneceu materialista, sinalizam Rafael de Aguiar Arantes e Carla Galvo Pereira. Este artigo pretende ainda focar nos aspectos metodolgicos da operacionalizao emprica dos conceitos de hegemonia e contra-hegemonia, discutindo-se as dimenses e indicadores necessrios para a constatao dos fenmenos da hegemonia e contra-hegemonia na realidade social. Os autores destacam a importncia da crtica de Gramsci ao marxismo, considerando-o mecanicista e buscando aprofundar dialeticamente as relaes entre a infraes-

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    trutura econmica e a superestrutura, a economia, a sociedade civil e a socieda-de poltica, permitindo-se renovar a teoria poltica marxista.

    Outro exemplo de revisitao e operacionalizao de um texto clssico pode ser observado na proposta de Sara Corts. A autora busca debater noes como cultura e ideologia, atravs de um esforo em criar uma espcie de sntese comparativa, tendo como base o que foi tratado por Marx, Weber e Durkheim em seus respectivos trabalhos. Neste artigo, parte-se do pressuposto de que para serem definidas essas noes, preciso delimitar os sujeitos dos processos ideolgicos ou culturais, identificados por cada autor e quais os principais an-tagonismos. Destaca-se tambm a recuperao de conceitos-chave que ajudam a pr os clssicos em dilogo, apresentando a importncia e atualidade dos clssicos nas Cincias Sociais.

    Dados de um trabalho emprico so relatados por Flvia Cristina Soares, ao investigar o fenmeno da pichao e a relao deste com a juventude de uma rea perifrica de Belo Horizonte. No Conjunto Taquaril A e B, onde havia um contraste na quantidade de pichaes, no estilo da letra e apropriao do espao publico no intuito de obter fama e reconhecimento social a autora percebeu relaes estabelecidas entre estes jovens bem como a maneira de construo de suas identidades, a demarcao territorial e transgresso da lei atravs de relatos dos moradores da comunidade, jovens ou no. Nas entrevistas, a autora identificou a minimizao dos efeitos da pichao na juventude em sua relao direta com programas sociais, ou seja, com a oferta de oportunidades aos jo-vens, haveria maiores condies sociais e econmicas.

    Francisco Malta de Oliveira e Maria da Luz Alves Ferreira abordam ques-tes relacionadas ao trabalho policial feminino, relacionando o trabalho e sua relevncia social bem como conceituando gnero e trabalho feminino, tendo como ponto de partida as transformaes do mundo do trabalho e na cultura organizacional no ambiente policial-militar. Neste trabalho, faz-se uma reviso bibliogrfica, destacando-se a desvantagem no ambiente organizacional, na medida em que se estabelece uma distino entre trabalho masculino e femi-nino.

    Por fim, destacamos tambm o texto de Cristiano das Neves Bodart, que discute algumas das potencialidades de prticas do Oramento Participati-vo (doravante OP), analisando os riscos existentes quando posto em prtica de forma mal sucedida. Atravs de uma reviso da literatura, ele ressalta que seus possveis benefcios no se restringem apenas sociedade civil, mas tambm ao poder pblico, estando as suas limitaes diretamente relacionadas s questes polticas e tcnicas que envolvem a efetivao de sua prtica.

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    A revista Preldios convida voc, leitor, a desfrutar destes trabalhos que so apresentados acima de forma sucinta, convocando todos os que elaboram trabalhos que visam construir ou (re)construir a cincia no seu sentido mais atual, mais renovado, a fazerem parte de uma de suas edies, contribuindo para o crescimento e fortalecimento das Cincias Sociais.

  • ARTIGOS

  • Preldios, Salvador, v. 2, n. 2, p. 13-43, jan./jun. 2014 / 13

    Srgio Elsio Peixoto1

    O CAMPESINATO NA FORMAO DA SOCIEDADE CAPITALISTA MODERNA

    RESUMO

    No presente artigo pretende-se, inicialmente, discutir a complexidade do conceito de campesinato, diante da diversidade que este grupo social assume em sua trajetria his-trica, conforme as mudanas que ocorrem nas formaes sociais capitalistas em que se encontra inserido. Para tanto, parte-se de uma apresentao e discusso do conceito, tomando-se por base algumas proposies de pensadores clssicos. Em seguida, anali-sam-se os principais aspectos que caracterizam o campesinato nas sociedades agrrias, bem como as transformaes que afetam o seu modo de vida quando de sua transio para a sociedade capitalista, enfatizando-se sua incorporao s estruturas produtivas regidas por processos de acumulao de capital, a partir dos pases onde a Revoluo Industrial originou-se. O artigo faz parte de um estudo mais amplo, onde se procura discutir o envolvimento do campesinato brasileiro no processo de reforma agrria.

    Palavras-chave: Campesinato. Capitalismo. Sociologia rural.

    1 O CAMPESINATO COMO UMA CATEGORIA SOCIAL

    Uma discusso sobre o campesinato e suas reivindicaes de reforma agrria na sociedade brasileira contempornea carece, inicialmente, da neces-sidade de situ-lo como um grupo social integrante das sociedades pr-indus-triais que antecedem o modo de produo capitalista. Isto decerto contribuir para uma melhor compreenso da diversidade conceitual que caracteriza os estudos sobre sua organizao social, alm da natureza de sua participao em movimentos que resultaram em expressivas transformaes sociais e marca-ram a formao das sociedades capitalistas modernas.

    De modo geral, a insero social do campesinato est associada s con-dies histricas que deram origem s sociedades em que se encontra presen-

    1 Possui graduao em Cincias Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1971) e mestrado em Sociologia pela Universidade de Braslia (1977). Atualmente professor adjunto da Universidade Federal da Bahia, com trabalho de ensino e pesquisa nas seguintes reas: globalizao; reforma agrria; agricultura familiar; sociologia rural; sociologia do conhecimento; modernidade e ps-modernidade. E-mail: .

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    te, o que implica na constituio das formas diferenciadas de organizao de suas atividades produtivas, da natureza dos seus costumes, tradies culturais e dos meios atravs dos quais se estrutura sua participao poltica. Isto cons-titui uma fonte de diferenciao desses cenrios histricos, alm de se refletir na diversidade de prticas sociais, polticas e produtivas que lhes so atribudas. Contudo, apesar desta diversidade, tambm se observa a existncia de alguns elementos constantes na existncia social do campesinato, a exemplo das mo-dalidades de posse e de uso da terra, da utilizao da fora de trabalho familiar nas atividades produtivas, dos laos de dependncia com outros grupos sociais e de atitudes conservadoras em relao mudana. Tais fatores possibilitam que se perceba uma unidade na construo de uma concepo do campesinato enquanto um objeto de estudo, capaz de ser objetivamente investigado em rela-o a uma realidade histrica determinada.

    Estas consideraes, por sua vez, projetam outras questes, tambm complexas de um ponto de vista terico, tais como a qualificao do campesi-nato como uma classe social ou como um modo de produo subsidirio, como um grupo social homogneo ou internamente estratificado, ou ainda, como um grupo social caracterizado pela persistente reproduo social em diferentes re-alidades histricas ou destinado extino.

    Nota-se, portanto, que um estudo sobre o campesinato qualquer que seja a dimenso que se pretenda analisar em profundidade, no pode prescindir de uma viso articulada dos principais aspectos que configuram sua constitui-o como um grupo social distinto, em seu desenvolvimento histrico. Da a necessidade do delineamento dos elementos estruturais de sua formao para a apreenso da complexidade de que se reveste para a elaborao de uma abor-dagem sociolgica.

    Assim, as circunstncias que envolveram a presena dos camponeses tanto nas sociedades pr-industriais quanto nas sociedades industriais foram cruciais para a determinao de sua condio histrica atual. Conforme Sha-nin (1996), os camponeses compem um grupo social que sempre se encontra presente em uma sociedade maior. Por conseguinte, no existe uma socieda-de camponesa propriamente dita. Porm, isto no os caracteriza apenas como um grupo envolvido com outros grupos ou formas de organizao social, mas, tambm, como reagem a elas. O aprofundamento mais rpido desses laos nas sociedades contemporneas converteu-se em uma questo central para sua compreenso.

    Atualmente, os camponeses continuam a participar de movimentos so-ciais e polticos, o que leva a crer que continuaro a desempenhar um papel im-

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    portante nas mudanas sociais na contemporaneidade. Contudo, a importncia do espao que ocupam nas sociedades atuais depende, evidentemente, do nvel de desenvolvimento das foras produtivas nelas alcanados, bem como da com-plexidade crescente das relaes sociais e polticas existentes.

    Com efeito, o campesinato definido de forma variada, o que reflete as realidades sociais e culturais em que se encontra inserido. Dentre os critrios comumente encontrados nessas definies sobressaem os de sua cultura e mo-dos de vida; os de sua ocupao econmica, geralmente ligada explorao da terra; os de suas relaes com outros grupos sociais; de sua diferenciao em subgrupos, evidenciando formas internas de desigualdade; da posse e uso da terra; e da utilizao de tcnicas de produo. As definies assim elaboradas ora combinam estes critrios, ora enfatizam um deles, geralmente buscando dar conta das realidades sociais diversas e complexas em que o campesinato se faz presente.

    Mintz (1973), por exemplo, lamenta esta falta de consenso, bem como da ausncia de tipologias capazes de detectar o campesinato em toda sua com-plexidade. Neste sentido, prope-se a discutir os aspectos de maior relevncia para a construo dessas definies, salientando, dentre outros, a importncia da discusso sobre sua composio interna, o seu relacionamento com outros setores rurais no camponeses e o uso dos conceitos de cultura tradicional e de pequena comunidade.

    Por outro lado, Wolf (1970) assinala, inicialmente, que o mundo cam-pons dotado de uma organizao social varivel, em conformidade com os pases em que as populaes camponesas encontram-se localizadas. Dentre as suas principais caractersticas esto a sua constante reproduo social, em que pese as reiteradas previses de sua extino, sua situao de dependncia dos grupos detentores do poder e a orientao de suas atividades econmicas para o sustento da famlia. Segundo Wolf (1970), eles produzem visando assegurar um nmero mnimo de bens necessrios sua subsistncia. Contudo, seu envolvi-mento com grupos externos obriga-os a produzir excedentes acima do mnimo necessrio ao consumo e renovao dos equipamentos utilizados no processo produtivo, de modo a responder a uma srie de comprometimentos gerados pe-las relaes de poder assimtricas mantidas com esses grupos.

    Wolf (1970) ressalta que, alm de produzirem os mnimos calricos necessrios sua subsistncia, os camponeses constituem fundos de manu-teno, definidos como gastos necessrios renovao dos equipamentos uti-lizados tanto para a produo quanto para o consumo. Porm, a formao dos fundos de manuteno no requer, propriamente, a produo de excedentes.

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    Estes so necessrios em funo de outros objetivos, como os de estabelecimen-to de relaes sociais e da observncia de normas e valores que regulamentam sua vigncia. Tais relaes, no entanto, no so apenas instrumentais. Implicam em um conjunto de construes simblicas, que as produzem e justificam, e assumem um aspecto cerimonial traduzido na realizao de festas, casamentos, etc., que requerem despesas para sua realizao. Tais despesas so providas por uma parte dos excedentes produzidos, constituindo-se no fundo cerimonial.

    Quando se encontram inseridos em sociedades mais complexas, os cam-poneses desenvolvem [...] nveis assimtricos de troca, determinados por con-dies externas (WOLF, 1970, p. 23), o que conduz apropriao dos excedentes por outros agentes econmicos, atravs de redes de troca. Se estas redes forem li-mitadas s condies locais, as trocas podem ser referidas capacidade aquisitiva dos agentes nelas envolvidos. Se so mais abrangentes, podem desenvolver-se de forma desfavorvel aos camponeses, dado o carter assimtrico de suas relaes com os grupos externos. Desse modo, para atender a essas e a outras exigncias de fora, como os pagamentos pelo uso da terra ou de instrumentos necessrios ao seu cultivo, resultante de um domnio sobre ela, os camponeses constituem um fundo de aluguel:

    Essa produo de um fundo de aluguel o que distingue, criticamente, o campo-ns do cultivador primitivo. Essa produo, por outro lado impulsionada pela existncia de uma ordem social que possibilita a formao de um grupo de homens que, atravs do poder, exigem pagamentos de outros, resultando na transferncia da riqueza de uma parcela da populao para outra. O que perda para o campons ganho para os detentores do po-der, pois o fundo de aluguel levantado pelo campons parte do fundo de poder atravs do qual os dominadores se alimentam. (WOLF, 1970, p. 24, grifo do autor)

    Wolf (1970) assinala ainda, que o surgimento do campesinato e das re-laes de poder que mantm com outros grupos tem como marco decisivo o aparecimento do Estado. A existncia das cidades tem um papel importante na medida em que o poder dos governantes localize-se nelas, anteriormente, o que nem sempre acontecia. Da a relevncia de sua existncia ter sido um fator re-lativo, at que os ncleos do poder fossem definitivamente transferidos para os centros urbanos, o que reflete um nvel de desenvolvimento mais elevado das foras produtivas.

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    No a cidade, mas o Estado que constitui o critrio decisivo para o re-conhecimento da civilizao, sendo o aparecimento do Estado o limiar da transio entre cultivadores de alimentos em geral e camponeses. Por-tanto, somente quando um cultivador est integrado em uma sociedade com um Estado isto , somente quando o cultivador passa a estar sujeito a exigncias e sanes de detentores do poder, exteriores a seu estrato social que podemos falar apropriadamente de um campesinato. (WOLF, 1970, p. 26)

    Contudo, mesmo nesses contextos, os camponeses deparam-se com a necessidade de compatibilizar a satisfao das necessidades de suas famlias com as exigncias impostas pelos grupos dominantes dessas sociedades. Isto lhes impe uma busca constante de um equilbrio entre essas situaes confli-tantes. Para o alcance desse equilbrio, os camponeses recorrem a duas estra-tgias, quais sejam a do incremento da produo e a da reduo do consumo. Ambas convergem para a finalidade de preservao de sua autonomia, o que decorre, em grande parte, de sua capacidade de controle e cultivo da terra. Estas estratgias no se excluem. Os camponeses podem utiliz-las em perodos dife-rentes, conforme as determinaes do contexto em que se localizam. Para man-ter o equilbrio indispensvel sua sobrevivncia, vm-se obrigados a procurar uma adaptao constante s mudanas nas relaes sociais que configuram as sociedades em que vivem.

    Por sua vez, Shanin (1996, p. 54) prope que uma definio mais abran-gente do campesinato deveria conter quatro dimenses bem articuladas entre si. Neste caso, em primeiro lugar aparece a roa da famlia camponesa como a unidade multidimensional bsica da organizao social, que constitui o meio atravs do qual o campons e sua famlia obtm os recursos mais importantes para a subsistncia, bem como de sociabilidade e identidade. Em segundo, est o trato da terra como principal meio de vida, o que significa que, via de regra, o campons apresenta um baixo nvel de especializao em suas tarefas, mas combina atividades diferentes, cujos resultados so importantes para a defini-o de sua posio social. Seguem-se os os padres culturais especficos ligados ao modo de vida de uma pequena comunidade/vizinhana rural, que indica que a cultura camponesa formada no mbito da comunidade ou da aldeia, de forma interativa direta, influenciando suas relaes com os de fora. Por fim, assinala a posio de subalterno o domnio do campesinato por elementos de fora. Ou seja, a contnua subjugao dos camponeses os fazem reagir mediante o uso das armas dos fracos (sabotagem econmica, absentesmo, boicote) ou atravs de revoltas, que os fizeram uma das foras revolucionrias mais impor-

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    tantes do sculo XX. Shanin ainda ressalta que o campesinato, a exemplo de toda entidade social, deve ser compreendido de forma processual, atentando-se para os aspectos histricos e ecolgicos que geram sua diversidade, evitando-se, dessa maneira, analisar seu desenvolvimento por uma via nica.

    Chayanov (1981) parte da ideia de que a teoria econmica sobre o capi-talismo baseia-se em conceitos como os de preo, capital, salrio, juro e renda, inadequados explicao da realidade produtiva do campesinato. Assim, tal te-oria no capaz de compreender a existncia e o funcionamento de unidades produtivas que se baseiam na utilizao da mo de obra familiar e tm como principal objetivo satisfazer as suas necessidades de consumo. Segundo Chaya-nov (1981, p. 137):

    Aqui s se pode calcular (medir) a quantidade considerando-se a extenso de cada necessidade nica: suficiente, insuficiente, falta tal ou qual quantidade; este o clculo que se faz aqui. Devido flexibilidade das pr-prias necessidades, este clculo no necessita ser muito exato. Portanto no se coloca a questo da lucratividade comparada dos diversos dispn-dios: por exemplo, se ser mais lucrativo ou vantajoso cultivar cnhamo ou pastagem. Pois estes produtos vegetais no so permutveis e no po-dem substituir um ao outro; no se pode aplicar uma norma comum a eles.

    Chayanov (apud WOLF, 1970) ressalta que o campesinato desenvolve suas atividades sociais e produtivas de um modo inteiramente distinto daquele existente na produo capitalista, orientando-se por uma lgica estritamente vinculada s suas condies de existncia. Assim, a explorao da terra onde trabalha no se encontra sujeita a um clculo da lucratividade, mas sim a de uma estratgia que assegure a reproduo social do grupo familiar. isto que faz com que o esforo dispendido em suas atividades no seja medido pelo valor individual da jornada de trabalho, mas pelo retorno que possa proporcionar ao grupo familiar, durante o ano, em termos de sua subsistncia.

    Aps fornecer as primeiras evidncias que demonstram as diferenas de uma economia camponesa de uma economia capitalista, Chayanov (1981) sa-lienta que o desempenho das unidades econmicas familiares varia conforme os recursos disponveis para a organizao de suas atividades, a saber a quan-tidade de terra, sua qualidade, a distncia dos mercados e o tamanho do grupo familiar. Em seguida, introduz o conceito de autoexplorao, relativo ao uso da fora de trabalho familiar na unidade produtiva, considerando que, apesar de penosas, as atividades produtivas no so remuneradas. Neste sentido, o que

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    regula efetivamente o dispndio do trabalho a satisfao das necessidades de consumo do grupo familiar.

    Assim, a lgica da organizao camponesa reside na tentativa de obter o equilbrio entre os esforos para produzir e as necessidades de reproduo do grupo familiar. Uma vez obtida a quantidade dos bens necessrios subsis-tncia do grupo, no mais existe a premncia do uso do trabalho em condies muito desgastantes. Em uma situao em que se constate uma insuficincia de terra, mesmo tendo alcanado um nvel elevado de rendimento por unidade de trabalho, o campons v-se obrigado a intensificar a utilizao deste recurso, por mais penosas que sejam as condies existentes, a fim de obter o necess-rio para sua subsistncia. Porm, pode ocorrer, ainda, outra situao em que o nmero de membros da famlia aptos para as atividades agrcolas seja menor do que o necessrio explorao da terra disponvel, o que obriga o campons a agir de forma idntica. Nota-se, portanto, que os elementos mais importantes para a explorao das unidades produtivas camponesas so os recursos naturais disponveis, sua localizao em relao aos mercados, o tamanho do grupo fa-miliar e a capacidade de trabalho dos seus membros. Conforme Chayanov (1981, p. 141):

    Uma anlise mais profunda indica o seguinte: o produto do trabalho indi-visvel de uma famlia, e por conseguinte a prosperidade da economia fa-miliar, no aumentam de maneira to marcante quanto o rendimento de uma unidade econmica capitalista influenciada pelos mesmos fatores, porque o campons trabalhador, ao perceber o aumento da produtividade do trabalho, inevitavelmente equilibrar os fatores econmicos internos de sua granja, ou seja com menor auto explorao de sua capacidade de trabalho. Ele satisfaz melhor as necessidades de sua famlia, com menor dispndio de trabalho, e reduz assim a intensidade tcnica do conjunto de sua explorao econmica.

    De acordo com as condies existentes para o cultivo da terra, a realiza-o de suas atividades podem implicar, portanto, na reduo do consumo ou na intensificao do trabalho dos membros do grupo. Desse modo, quando a terra for abundante, os resultados dos esforos produtivos tendero a ser satisfat-rios. Contudo, quando sua disponibilidade for limitada, o trabalho ser intensi-ficado, de modo a permitir a utilizao do excedente da fora de trabalho. A ter-ra alugada ou adquirida por preos acima do que seria considerado lucrativo em uma atividade tpica de uma economia capitalista, segue igualmente a mesma lgica, qual seja a de evitar a impossibilidade do uso do excedente de trabalho.

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    Observa-se, pois, que alm de enfatizar os aspectos internos da estrutu-ra de produo das unidades familiares camponesas, Chayanov chamou aten-o para o modo como elas se reproduziam socialmente, a partir de uma lgica diferente da economia capitalista. Diante das peculiaridades da economia fa-miliar e de sua coexistncia com outros sistemas, ele entendia ser muito difcil a elaborao de uma teoria econmica universal. Assim, propunha a construo de uma teoria econmica especfica para cada tipo de organizao produtiva existente.

    Em face das diferentes realidades vivenciadas pelos camponeses ao lon-go da histria, surgem, portanto, variadas maneiras de explicar sua constituio social e participao nos processos de mudana social. Tais concepes abran-gem desde as conceituaes pejorativas at aquelas que os consideram como um grupo social de grande importncia para o desenvolvimento das formaes sociais em que se encontram presentes. Shanin (1996) lembra que no mundo pr-industrial a atitude predominante em relao aos camponeses era a de hos-tilidade e silncio. Em diversos idiomas europeus, a palavra campons inclua significados depreciativos, como os de rstico, ladro, bandido e saqueador.

    No sculo XIX, Marx comparou o campesinato a um saco de batatas, ao referir-se aos problemas decorrentes de sua organizao social que dificulta-vam a formao de uma conscincia poltica que pudesse mobiliz-los contra a explorao a qual eram submetidos. O campesinato era visto por ele como uma classe tendente a desaparecer, reacionria e voltada para as tradies, embora, em alguns momentos fosse portadora de aes revolucionrias. (MARX, 1968)

    Marx nunca analisa continuamente o papel do campesinato. Sua aten-o est voltada para o estudo do desenvolvimento do modo de produo ca-pitalista e, neste contexto, para a formao do operariado como classe social. Este se constitua no ator privilegiado das mudanas histricas esperadas, na medida em se constitua a classe social com maior visibilidade poltica sobre a necessidade de transformao da sociedade burguesa. No entanto, o campe-sinato jamais aparece ocasionalmente em suas anlises, mas somente quando suas aes ou aquelas que lhes so dirigidas assumem uma importncia decisi-va para o desenvolvimento da sociedade capitalista. Assim, ao analisar o papel do campesinato, Marx est sempre lidando com realidades histricas especfi-cas, a exemplo do que o faz no O 18 Brumrio de Lus Bonaparte, quando analisa sua participao nas lutas polticas na Frana, ou no O capital, quando se refere ao processo de expropriao de suas terras na Inglaterra, durante a Revoluo Industrial, e analisa as determinaes da renda fundiria.

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    Em O 18 Brumrio de Lus Bonaparte, Marx define as principais caracters-ticas do campesinato francs, destacando os seguintes aspectos:

    Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condies semelhantes mas sem estabelecerem relaes mul-tiformes entre si. Seu modo de produo os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercmbio mtuo. Esse isolamento agravado pelo mau sistema de comunicaes existente na Frana e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produo, a pequena propriedade, no permite qualquer diviso do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicao de mtodos cientficos e. portanto, nenhuma diversidade de desenvolvi-mento, nenhuma variedade de talento, nenhuma riqueza de relaes so-ciais. Cada famlia camponesa quase autossuficiente; ela prpria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistncia mais atravs de trocas com a natureza do que do inter-cmbio com a sociedade. Uma pequena propriedade, um campons e sua famlia; ao lado deles outra pequena propriedade, outro campons e outra famlia. Algumas dezenas delas constituem uma aldeia e algumas deze-nas de aldeias um departamento. A grande massa da nao francesa , assim, formada pela simples adio de grandezas homologas, da mesma maneira por que batatas em um saco constituem um saco de batatas. Na medida em que milhes de famlias camponesas vivem em condies eco-nmicas que as separam umas das outras e opem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhes constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligao local e em que a similitude de seus interesses no cria entre eles comunidade alguma, ligao nacional alguma, nem organizao poltica, nessa medida no constituem uma classe. So, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu prprio nome, quer atravs de um Parlamento quer atravs de uma conveno. No podem representar-se, tm de ser representados. Seu representante tem, ao mesmo tempo de aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva. A influncia poltica dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expresso final no fato de que o poder o poder executivo submete ao seu domnio a sociedade. (MARX, 1968, p.132-133)

    De modo geral, o campesinato considerado um empecilho ao desenvol-vimento do modo de produo capitalista, um obstculo ao progresso, um res-qucio do passado, uma classe destinada a desaparecer em razo do desenvolvi-mento do capitalismo. No entanto, Marx tambm considera a possibilidade do

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    campesinato constituir-se em uma fora revolucionria capaz de ser mobilizada em momentos de crise. Isto, alis, foi o que ocorreu na Rssia, em 1917, quando os bolcheviques tomaram o poder apoiados pelos camponeses.

    Os estudos sobre os camponeses que se seguem aos trabalhos de Marx iro se somar a uma ampla gama de investigaes constituda por diversas abor-dagens, orientadas por interesses polticos e ideolgicos. Dentre os pensadores que do continuidade ao seu pensamento, os estudos sobre o campesinato tm sua elaborao condicionada tanto por realidades sociais especficas, quanto pelos objetivos atribudos a sua transformao.

    Kautsky (1972), baseado nas transformaes em desenvolvimento na agricultura alem no final do sculo XIX, prev a extino do campesinato, as-sociando-a a sua incapacidade de concorrer com a grande propriedade. Assinala que os camponeses regulam sua prpria reproduo biolgica e social de acordo com as condies que afetam suas atividades produtivas. Quando dispem de melhores condies para a explorao de suas terras, geram um maior nmero de filhos. Quando se encontram privados de tais condies, regulam sua pro-criao.

    Contudo, se existe uma oferta de oportunidades de trabalho fora das unidades agrcolas, esta situao muda radicalmente. A populao cresce ra-pidamente, pois, a oportunidade de trabalho aparece como uma possibilidade de independncia para o campons que, de modo idntico ao de um trabalha-dor assalariado, emerge como o detentor de sua prpria fora de trabalho. Em consequncia, o rpido crescimento da populao ir, por sua vez, requerer um aumento do nmero das exploraes. A fragmentao das propriedades assim resultante pode atingir as grandes exploraes. De acordo com Kautsky (1972, p. 10, v. 2):

    O elevado preo do solo das pequenas propriedades , naturalmente, um poderoso motivo de fragmentao das grandes, onde quer que a situao seja favorvel ao crescimento da populao e explorao das pequenas indstrias acessrias para alm da prpria explorao da terra. A subdi-viso das propriedades e a fragmentao das terras podem tomar ento propores considerveis.

    Para o campons que faz uso da terra como um meio de sua reproduo social, o que mais interessa se o preo obtido pela venda de seu produto paga o seu trabalho. Operando enquanto um produtor simples de mercadorias, ele [...] pode renunciar ao lucro e renda fundiria. (KAUTSKY, 1972, p. 8) No entanto, ao pagar um preo excessivo pela terra, seus encargos se elevam enormemente,

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    o que significa a intensificao do processo de explorao ao qual est indireta-mente submetido. A lgica que orienta este comportamento no , portanto, a da ampliao dos recursos investidos, mas a de obteno de sua reproduo so-cial atravs do que auferido com o trabalho despendido na unidade familiar. O custo da pretendida autonomia passa a ser muito alto. Assim, as consequncias que acarretam para os camponeses contribuem para acelerar o seu processo de proletarizao:

    Quanto mais pequenas so as propriedades, maior o desejo de um tra-balho acessrio; quanto mais este trabalho passa para um primeiro plano, mais as propriedades podem diminuir e menos so ela capazes de fazer face s necessidades da famlia. Tanto mais que, nessas propriedades mi-nsculas a explorao cada vez menos racional. A insuficincia de ani-mais de tiro e de instrumentos no permite uma cultura racional, sobre-tudo uma lavra profunda. A escolha das plantas a cultivar determinada pelas necessidades do lar e no pela preocupao de conservar a fertilida-de do solo. A falta de gado e de dinheiro tem como consequncia a falta de estrume e de adubo artificial. A tudo isto junta-se ainda a falta de braos; quanto mais o trabalho pago passa para primeiro plano e o trabalho do-mstico se torna acessrio, mais esse trabalho pago absorve o tempo da famlia e, por vezes, precisamente nos momentos em que seria necessrio entregar-se inteiramente explorao da propriedade (por exemplo, na altura da ceifa). Cada vez mais se deixa esta funo para a mulher, para as crianas e, s vezes, mesmo para os avs invlidos. preciso que o pai e os filhos j crescidos ganhem. A cultura dessas exploraes minsculas que no so mais que acessrios da casa assemelha-se ao lar do pro-letrio, onde os resultados mais miserveis so obtidos custa do maior desperdcio do trabalho e do mais completo esgotamento da mulher. (KAUTSKY, 1972, p. 10-11, v. 2)

    Desse modo, os camponeses passam a depender de forma crescente dos rendimentos do trabalho acessrio para o pagamento de impostos, o consumo de bens industrializados e at mesmo para a aquisio de produtos alimentares anteriormente obtidos em suas exploraes. Em sua maioria, evidenciam que transitaram da condio de vendedores de alimentos para a de vendedores de fora de trabalho e compradores dos alimentos de que necessitavam. Em ou-tras palavras, as pequenas propriedades tornam-se fornecedoras de trabalho assalariado s grandes exploraes, das quais comeam tambm a comprar ali-mentos. Apesar da relao que mantm com a propriedade, os pequenos cam-poneses encontram-se em condies semelhantes s dos operrios industriais, constituindo-se alvo da explorao dos empresrios capitalistas.

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    Lnin (1982), com base em observaes relacionadas com as mudanas na sociedade russa a partir da segunda metade do sculo XIX, tambm postula a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo no campo conduzir ao desa-parecimento do campesinato, mediante um processo de diferenciao social em seu interior que resultar em sua proletarizao.

    Com efeito, uma anlise sistemtica da economia e da organizao so-cial do campesinato tornava-se de extrema importncia para o pensamento marxista, no final do sculo XIX, em face das transformaes provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo na Europa. No entanto, esta tarefa mostrava-se necessariamente diferenciada conforme a realidade de cada pas. Na Alemanha, Kautsky (1972) procurava demonstrar que a expanso do capitalismo nas reas rurais levaria ao fim do campesinato, devido sua incapacidade de competir com as grandes exploraes agrcolas. Na Rssia, contudo, o que Lnin (1982) colo-cava em questo era como a transformao do campesinato poderia acelerar ou retardar o prprio desenvolvimento do capitalismo. Enquanto na Alemanha as relaes de produo capitalistas disseminavam-se no campo, na Rssia ainda persistiam as relaes servis, abolidas oficialmente em 1861. (PAULO NETTO, 1982) Entretanto, em ambos os pases evidenciava-se uma questo em comum, qual seja a de como o conhecimento das condies sociais de existncia dos cam-poneses poderia contribuir para promover alianas polticas consistentes entre este grupo e o proletariado urbano. neste contexto que iro tomar corpo duas vertentes do pensamento social russo, tendo de um lado os populistas e do outro, os marxistas.

    Os populistas entendiam que sendo a Rssia um pas predominantemen-te agrrio, existia a possibilidade de sua transio para o socialismo sem passar necessariamente pelo capitalismo. Desde que a principal forma de organizao social era a comunidade camponesa, tornava-se necessria sua emancipao das relaes servis para que esta transio ocorresse. Para tanto, fazia-se necessrio promover a conscientizao dos camponeses e mobiliz-los para combater a au-tocracia e os latifundirios, cujas terras deveriam ser tomadas e redistribudas. As instituies sociais baseadas na comunidade careciam de ser preservadas. O capitalismo que deveria ser evitado. Os camponeses tambm eram considera-dos como um grupo social homogneo e o principal sujeito do processo revolu-cionrio.

    De acordo com os populistas, o desenvolvimento do capitalismo na Rs-sia seria extremamente difcil, em razo da falta de um mercado interno. O fato de o processo produtivo apoiar-se, em grande parte, em atividades agrcolas realizadas por camponeses e de estarem voltadas praticamente para sua sub-

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    sistncia, limitaria intensamente a aquisio de produtos industrializados. Por outro lado, a alternativa de produzir e de exportar estes produtos tambm esta-ria comprometida em face do domnio dos mercados mais importantes por par-te dos pases mais industrializados. Desse modo, a implantao do capitalismo industrial na Rssia dependeria do deslocamento de uma grande quantidade de recursos gerados por uma economia de base agrcola, o que prejudicaria os camponeses, mesmo que sem nenhuma possibilidade de acesso aos mercados externos.

    em resposta a estas premissas do pensamento populista que Lnin ir elaborar a sua teoria sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rssia e do en-volvimento do campesinato neste processo. Lnin caracterizava o pensamento populista como uma construo terica reacionria, na medida em que consi-derava o capitalismo na Rssia como uma regresso, capaz de destruir os pi-lares da comunidade alde. Por outro lado, os populistas compreendiam estas comunidades como o aspecto mais importante da economia russa, ignorando o desenvolvimento da produo capitalista, das diferenas entre as classes e os conflitos inerentes a tal situao. Por fim, no se davam conta das determina-es sociais que influenciavam seu prprio pensamento (Paulo Netto, 1982).

    Assim, de acordo com a necessidade de compreender a formao do ca-pitalismo na Rssia e, com base nessa compreenso, orientar a organizao e as alianas dos camponeses com o proletariado, o que passava pela crtica do pen-samento populista, Lnin elaborou um dos estudos mais importantes e contro-versos do marxismo, no qual trata da questo do campesinato. Neste trabalho, intitulado O desenvolvimento do capitalismo na Rssia: o processo de formao do mer-cado interno para a grande indstria, a anlise efetuada por Lnin sobre o campe-sinato est diretamente relacionada com o estudo da formao do capitalismo russo. Assim, procura dar conta das contradies que se estabelecem entre as necessidades de acumulao de capital no conjunto da sociedade e a persistn-cia das relaes de produo servis na agricultura, bem como das consequn-cias desse processo para a reordenao do sistema de classes. Lnin considera que a possvel extino do campesinato depender da necessidade do capital de transform-lo em fora de trabalho livre, indispensvel gerao de mais-valia. Desse modo, a massa camponesa proletarizada, longe de constituir uma ame-aa formao de um mercado de consumo interno de bens industrializados, representaria uma das condies essenciais para sua realizao.

    Tomando por base as mudanas no campesinato russo no final do sculo XIX, Lnin entendia que ocorreria uma tendncia a uma diferenciao interna em sua composio, que resultaria na formao de uma classe minoritria de-

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    tentora dos meios de produo, e de outra constituda por um grande nmero de produtores destitudos desses meios, cuja nica opo seria a venda de sua fora de trabalho para assegurar sua sobrevivncia. Com base nessas observa-es, Lnin delineou duas vias para o desenvolvimento do capitalismo a serem seguidas pelo campesinato: a prussiana e a democrtica. Na via prussiana, o processo de desenvolvimento seria conduzido pelos grandes proprietrios, que transformariam suas exploraes em empresas capitalistas, mantendo os meios de controle da fora de trabalho preexistentes, o que implicaria em uma passa-gem mais lenta para o capitalismo. Por outro lado, a via democrtica decorre-ria de um processo revolucionrio liderado pelos camponeses, que destruiria as antigas relaes de servido, o que promoveria a acelerao do processo de di-ferenciao interna do campesinato, tendo em vista o rpido desenvolvimento das foras produtivas na direo do capitalismo.

    A contribuio de Lnin de grande importncia, na medida em que as-sinala a relevncia da luta de classes na transformao dos modos de produo pr-capitalistas. No entanto, o modelo por ele elaborado de generalizao limi-tada, desde quando os casos da Inglaterra e da Frana so bem diferenciados do que foi previsto em sua concepo. (DORE, 1988)

    Por sua vez, a contribuio de MAO-TS-TUNG para a discusso sobre o campesinato no pode ser dissociada da realidade chinesa na primeira meta-de do sculo XX. No incio deste sculo, a China encontrava-se em um estado de desagregao poltica muito acentuado. Era governada por um imprio em decadncia e tinha partes do seu territrio ocupadas por vrios pases imperia-listas, que extraiam recursos naturais valiosos e controlavam amplas parcelas do seu comrcio com exterior. A maioria de sua populao estava localizada nas reas rurais, vivendo em condies de pobreza muito grande, fruto da explora-o a que era submetida pelos proprietrios de terra e por caudilhos militares.

    As insatisfaes decorrentes dessa situao resultaram na derrubada do Imprio e na instalao de um regime republicano, em 1912, empenhado na realizao de uma revoluo democrtico-burguesa, tendo como principais ob-jetivos a recuperao econmica do pas, a expulso dos pases imperialistas e a formao de um sistema poltico democrtico. O Partido Comunista Chins - PCC participava da coalizao de foras que apoiavam este regime, buscando ampliar os espaos polticos para a luta dos operrios industriais, a quem se cre-ditava o papel de liderana revolucionria na construo do socialismo. Desse modo, integrava-se ao Kuomintang, partido de sustentao do novo regime, que reunia interesses bastante heterogneos, o que dificultava uma aliana mais du-radoura entre as foras polticas que o compunham.

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    Com efeito, as tenses que abrigavam tal projeto eram de tal monta que os comunistas, aps serem quase que totalmente massacrados pelas faces do-minantes e reacionrias do Kuomintang, em 1927, o abandonaram e assumiram uma conduo prpria do processo de transformao revolucionria da China. MAO-TS-TUNG tornou-se uma figura central nessas divergncias, em virtude da concepo que tinha do campesinato e do seu potencial revolucionrio. No entanto, isto somente se concretizou aps um perodo de luta interna muito intensa dentro do PCC, tendo em vista a viso fortemente arraigada de suas principais lideranas polticas sobre o papel de vanguarda do proletariado na consecuo do movimento revolucionrio rumo ao socialismo.

    MAO-TS-TUNG defendia que os camponeses eram os principais alia-dos dos operrios, e que as aes revolucionrias deveriam se concentrar nas reas rurais. Esta posio, apesar de contrariar concepes clssicas do mar-xismo sobre o campesinato, com o tempo mostrou-se inteiramente correta, o que lhe acarretou prestgio e poder dentro do PCC e, mais tarde, uma liderana quase que absoluta. De fato, tal posio era coerente com a realidade chinesa, na qual o operariado representava uma parcela bem diminuta da populao de trabalhadores e se concentrava em poucas cidades. Segundo suas prprias pa-lavras:

    O proletariado industrial moderno compreende aproximadamente dois milhes de pessoas. O atraso econmico da China explica a razo de essa cifra ser assim to reduzida. Estes dois milhes de operrios industriais esto empregados principalmente em cinco setores: estradas de ferro, mi-nas, transporte martimo, indstria txtil e estaleiros. Grande parte deles acha-se sob o jugo do capital estrangeiro. Apesar de numericamente fra-co, o proletariado representa as novas foras produtivas da China; a clas-se mais progressista da China moderna e se converteu na fora dirigente do movimento revolucionrio. (MAO-TS-TUNG, 1926, p.131)

    O campesinato, por sua vez, representava a maioria da populao chine-sa e vivia sob um sistema de explorao e de opresso exercido pelos propriet-rios de terra e grupos militares. De acordo com Hobsbawm (1995, p. 449):

    O explosivo social que alimentou a revoluo comunista foi a extraordi-nria pobreza e opresso do povo chins, inicialmente das massas traba-lhadoras nas grandes cidades costeiras do centro e do sul da China, que formavam enclaves sob controle imperialista estrangeiro e, s vezes, da prpria indstria moderna Xangai, Canto e Hong Kong , e, depois, do campesinato, que formava 90% da vasta populao do pas. Sua con-

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    dio era muito pior at mesmo que a da populao urbana chinesa, cujo consumo, per capita, era qualquer coisa tipo duas vezes maior. A simples pobreza da China j difcil de imaginar para leitores ocidentais. Assim, na poca da tomada comunista (dados de 1952), o chins mdio vivia es-sencialmente com meio quilo de arroz ou gros por dia, e consumia pouco menos de 0,08 quilo da ch por ano. Adquiria um novo par de calados a cada cinco anos, mais ou menos (China Statistics, 1989, tabelas 3.1, 15.2, e 15.5).

    A transformao da sociedade chinesa, portanto, dificilmente se concre-tizaria diante desse perfil da distribuio espacial e de classes de sua populao, bem como das condies sociais a que a maioria era submetida, se o lcus da revo-luo no fosse transferido para as reas rurais. Por outro lado, MAO-TS-TUNG operou uma adaptao do marxismo s condies da realidade chinesa, atribuin-do um papel central ao campesinato e, sobretudo, acreditando firmemente em seu potencial revolucionrio. Neste sentido, conferia grande importncia sua organizao e mobilizao, bem como sua educao poltica. O campesinato era visto como uma classe social que comportava uma variada estratificao interna, que expressava, de modo geral, o vnculo dos membros de cada estrato com os meios de produo e o seu nvel de conscincia poltica.

    Desse modo, MAO-TS-TUNG (1926), afirmava que as classes sociais existentes na sociedade chinesa eram a classe latifundiria e a burguesia com-pradora, a burguesia mdia, a pequena burguesia, o semiproletariado e o prole-tariado. Assinalava, ainda, a existncia de um numeroso lumpemproletariado. De acordo com esta classificao, os camponeses proprietrios ou camponeses mdios estavam localizados na pequena burguesia ao lado dos artesos proprie-trios de oficinas, camadas inferiores da intelectualidade e pequenos comer-ciantes. Juntamente com os artesos, proprietrios dedicavam-se produo em pequena escala. Por sua vez, os camponeses semiproprietrios e os campo-neses pobres estavam includos no semiproletariado, ao lado dos pequenos ar-tesos, empregados assalariados do comrcio e os vendedores ambulantes. Por suas condies econmicas, os camponeses semiproprietrios e os camponeses pobres eram, ainda, divididos em estratos superiores, mdios e inferiores.

    Essa tipologia elaborada por Mao, apesar de considerada simplista, afas-tava-se de um esquema bipolar das classes, prevalecente no marxismo, refletin-do a pluralidade de agrupamentos e de camadas sociais existentes na sociedade chinesa, permitindo considerar com maior flexibilidade poltica a composio das foras sociais revolucionrias e contrarrevolucionrias, contribuindo para a fundamentao das estratgias e tticas a serem utilizadas no processo de luta contra o feudalismo e o imperialismo. (SADER, 1982) Embora postulando con-

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    ceitos e elaborando anlises que estavam distantes das formulaes clssicas do marxismo, foi com base nestas construes tericas que MAO-TS-TUNG liderou uma das mais amplas transformaes sociais do sculo XX.

    Por fim, vale salientar que baseado nas determinaes sociais decorren-tes da estrutura de classes tal como ele as pensava, Mao elaborou uma classifi-cao das formas de dominao social existentes e de suas implicaes para o desenvolvimento da conscincia revolucionria na China. Assim, afirmava que:

    Na China, os homens vivem, em geral, submetidos a trs sistemas de autoridade: 1) o sistema estatal (a autoridade poltica), estruturado em rgos de poder a nvel nacional, provincial, distrital e de xiang [unida-de administrativa bsica, situada abaixo do distrito]; o sistema de cl (a autoridade de cl], que compreende desde os templos ancestrais do cl e da linhagem at os chefes de famlia; 3) o sistema sobrenatural (a autori-dade religiosa), constituda em seu conjunto pelas foras subterrneas (o rei dos infernos, o deus protetor da cidade e as divindades locais) e pelas foras celestiais (deuses e divindades, desde o Imperador dos Cus at os mais diversos espritos). As mulheres, alm de estarem submetidas a es-tes trs sistemas de autoridade, esto ainda dominadas pelos homens (a autoridade dos maridos). Estas quatro formas de autoridade poltica, de cl, religiosa e marital encarnam a ideologia e o sistema patriarcal--feudal e representam quatro fortes cordas que mantm amarrado o povo chins, especialmente o campesinato. (MAO-TS-TUNG, 1927, p. 54)

    Tais afirmaes evidenciam que as principais formas de dominao social tambm refletiam a ampla diversidade de situaes existentes na China pr-revolucionria, que determinavam as fortes contradies presentes nesta fase do seu desenvolvimento histrico. Dentre elas, destacavam-se as interven-es imperialistas, o controle institucional exercido pelos proprietrios rurais e grupos armados remanescentes do Imprio, manifestado em todos os nveis da sociedade chinesa, alm das estruturas de dominao tradicional existente ao nvel dos cls e da religio, que perpetuavam hbitos e atitudes de submisso milenares. Por outro lado, nota-se que a China passava por um processo de tran-sio interna em que se entrecruzavam o declnio do modo de produo feudal e a ascenso do modo de produo capitalista, no qual se observava o surgimen-to de uma burguesia nacional que despontava como uma classe potencialmen-te habilitada para conduzir a liquidao das estruturas feudais e a formao de um Estado democrtico. Por fim, pode-se assinalar, ainda a percepo de MAO-TS-TUNG da dimenso de explorao e dominao de gnero, quando ressalta a necessidade das mulheres de lutar contra a forte tradio de domina-o patriarcal na sociedade chinesa.

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    Como pode ser observado, as formulaes de pensadores clssicos mar-xistas que analisaram a existncia do campesinato esto associadas a processos de transformao sociais, como os que antecedem a constituio da sociedade capitalista, os que se desenvolvem a partir de sua consolidao e os que marcam sua transio para o socialismo. De acordo com Abramovay, (1992, p. 48-49):

    No s na obra terica de Marx no possvel encontrar um conceito de campons, como categoria social do capitalismo, mas tambm ser v e provavelmente desembocar numa atitude pouco frtil para o conheci-mento a tentativa de buscar esse aparato conceitual na obra dos gran-des clssicos marxistas que trataram do tema. Qualquer tentativa de ab-solutizar as formas como Lnin, Kautsky ou Engels trataram a questo camponesa, isto , de imprimir a seus resultados o estatuto de categorias objetivas da realidade social, no leva em conta que, no marxismo, dada a funo que a questo da produo familiar preenche nas lutas polticas de cada poca, o campons no pode ser seno uma categoria socialmente construda. Essa observao no se aplica a todas as categorias do pensamento mar-xista: legtima sob o ngulo da lgica dO Capital, a atribuio classe operria, classe capitalista e classe dos proprietrios fundirios o esta-tuto de categorias objetivas da vida social. Neste sentido, que no pos-svel encontrar um conceito de campons no pensamento marxista, embo-ra o campesinato esteja presente e seja permanentemente elaborado na prtica poltica de partidos de orientao marxista. Isto significa que as indicaes tericas dos clssicos marxistas voltados questo camponesa sero tanto mais bem entendidas quanto mais situadas nos contextos his-tricos e intelectuais dos quais derivam e que lhes do significado.

    De modo geral, observa-se que, embora as diferentes conceituaes apresentadas salientem aspectos distintos de sua organizao social, o campe-sinato constitui um grupo social localizado na base das sociedades das quais faz parte, exercendo funes essenciais para a reproduo social dessas sociedades, quais sejam as de produo de alimentos e as de pagamento em trabalho de obrigaes que lhe so atribudas, sendo fortemente explorado, de diversas ma-neiras, pelos grupos dominantes. Nos momentos em que a explorao a que so submetidos se acirram, os camponeses tornam-se protagonistas ou participan-tes de rebelies e revolues decisivas para a ocorrncia de mudanas nas socie-dades agrrias e em sua transio para as sociedades capitalistas, isoladamente ou em aliana com outros grupos.

    Desse modo, as anlises sobre o campesinato ressaltam, a partir de perspectivas acadmicas e polticas distintas, aspectos bsicos sobre sua orga-

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    nizao social, tais como sua posio no processo produtivo, suas estratgias de reproduo social, o carter de suas relaes com outros grupos e os padres socioculturais comunitrios que definem um modo de vida diferente, baseado na tradio. Certamente, sua extensa trajetria ao longo de diferentes modos de produo e de formaes sociais na histria, associada extrema diversidade que tal condio acarreta, impe dificuldades para uma definio unitria do campesinato.

    Com efeito, nota-se que no interior do pensamento marxista como fora dele, os estudos sobre o campesinato esto relacionados ao papel potencialmen-te conservador ou revolucionrio que ele tem desempenhado, s condies em que se processa sua integrao nas sociedades capitalistas e sua participao na construo do socialismo. Tais estudos tambm se situam em relao a um propsito de conhecimento da realidade agrria ou de intervenes nela reali-zadas com o objetivo de transform-las. Neste caso, a preocupao prevalecente a de compreender de que maneira os camponeses permanecem na sociedade capitalista, como estruturam suas atividades produtivas de modo a atender as demandas que lhes so impostas, como funcionam aspectos de sua cultura, qual a natureza poltica de suas reivindicaes mais importantes, sua participao em movimentos sociais, etc. De modo geral, so estudos tcnicos e de cunho acadmico que ora apresentam uma perspectiva favorvel aos interesses dos camponeses, ora defendem e definem meios de proporcionar o seu ajustamento aos interesses dominantes, sobretudo aqueles representados por intervenes realizadas pelo Estado. Do conjunto desses trabalhos que emergem os estudos clssicos que do suporte s reflexes atuais sobre o campesinato.

    Por sua vez, uma viso contempornea do campesinato exige, ainda, a requalificao dessas temticas a partir das mudanas geradas pela mundiali-zao do capital, podendo-se identificar situaes que aceleram os processos de expropriao e violncia que conduzam sua extino, ou que favoream sua reproduo social. Dois requisitos apresentam-se para a realizao dessa tare-fa: primeiro, o de abandonar-se o enquadramento dos principais aspectos da questo agrria a partir da anlise da realidade nos limites do Estado nacional, em face das determinaes postas pela mundializao do capital; segundo, o de reconhecer-se a intensa interpenetrao dos espaos rurais e urbanos como lcus de sociabilidade, de realizao do processo produtivo e das relaes entre as classes sociais.

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    2 DESENVOLVIMENTO HISTRICO DO CAMPESINATO

    Assim, para melhor compreender-se as atuais reivindicaes de reali-zao de mudanas nas estruturas de posse e uso da terra, torna-se necessrio efetuar algumas consideraes sobre a emergncia de realidades histricas que esto relacionadas com o aparecimento do campesinato enquanto um grupo so-cial especfico, localizado em um meio social distinto, no qual desenvolve suas atividades sociais e produtivas, no mbito de sociedades que apresentam n-veis de desenvolvimento histrico diferenciados. Isto contribuir, ainda, para a compreenso de outros aspectos relevantes do seu modo de vida, bem como das condies sociais e polticas em que ocorre o seu desenvolvimento histrico.

    Neste sentido, seguindo-se a tipologia de sociedades proposta por Queiroz (1969), verifica-se que as sociedades humanas percorrem, de modo ge-ral, uma linha evolutiva que passa pelas sociedades tribais, evoluem para as so-ciedades agrrias e se transformam, posteriormente, em sociedades urbanas. Segundo esta autora, as sociedades tribais se distinguiriam por serem pouco desenvolvidas socialmente e se concentrarem na produo de alimentos, con-figurando, por conseguinte, uma organizao social em que o atendimento das necessidades de sobrevivncia se colocava em primeiro plano.

    Justamente quando a gerao de novos conhecimentos e tcnicas de explorao dos recursos naturais permite que se produza uma quantidade de alimentos acima das estritas necessidades de reproduo dos grupos sociais existentes que se inicia o processo de diferenciao e transformao das socie-dades tribais em sociedades agrrias. De fato, a produo de excedentes que possibilita a formao de pequenos ncleos populacionais formados por pessoas que no vivem mais do trabalho da terra. A apropriao dos excedentes produzi-dos permitem-lhes desenvolver atividades comerciais, funes administrativas e religiosas que lhes conferem uma aparente superioridade sobre os grupos que se dedicam s atividades agrcolas. Os pequenos ncleos formados por pessoas que se diferenciam dos grupos ocupados com a explorao da terra constituem o que se passar a denominar de agrupamentos urbanos. Os que permanecem trabalhando na terra, por sua vez, sero identificados como grupos rurais.

    importante assinalar que, de modo geral, os grupos urbanos guarda-vam relativa dependncia dos habitantes do campo, na medida em que as pos-sibilidades do seu crescimento encontravam-se determinadas pela disponibili-dade de excedentes agrcolas, principalmente de alimentos, que viabilizassem o aumento de sua populao. Em que pese desenvolverem atividades sociais e produtivas em nveis de conhecimento mais avanados e especializados do que

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    aqueles existentes no campo, a exemplo do artesanato e do comrcio, ou mes-mo das funes administrativas e religiosas, os ncleos urbanos encontravam na reduzida produo de alimentos e de matrias-primas os limites para o seu desenvolvimento, o que se devia, por sua vez, s tecnologias rudimentares utili-zadas na explorao das atividades agrcolas.

    Com efeito, quando se considera a forma como a agricultura se encon-trava organizada no modo de produo feudal na Europa, observa-se que a terra era dividida em trs folhas (faixas), visando a permitir uma explorao alterna-da e rotativa dos cultivos considerados necessrios. Em cada uma dessas folhas, as famlias camponesas dispunham de uma quantidade igual de terra para o seu cultivo individual. Os camponeses plantavam as mesmas lavouras, em determi-nados perodos do ano. O calendrio agrcola baseava-se nas possibilidades e limitaes inerentes s estaes do ano. Estas eram as terras compartilhadas. Fora delas, existiam as que eram utilizadas em comum, que compreendiam as pastagens, as florestas e as terras em pousio, destinadas, respectivamente, ali-mentao dos animais, caa e extrao de lenha e recuperao dos solos. Deve-se mencionar, ainda, a existncia de uma atividade manufatureira doms-tica, atravs da qual os camponeses produziam as roupas, mveis e utenslios que necessitavam. Este sistema distinguia-se por sua autossuficincia, produ-zindo todos os bens necessrios organizao social camponesa. Devido a sua prpria estrutura, resultava em um arranjo do processo produtivo fortemente conservador, legitimado por uma diviso rgida das terras disponveis para a agricultura, o que impossibilitava a realizao de experimentaes agrcolas e impedia a introduo de inovaes tecnolgicas. O desenvolvimento da inds-tria e do comrcio promoveria, gradativamente, a sua destruio.

    Adotando uma linha de argumentao semelhante, Bernstein (2011) as-sinala que as sociedades de subsistncia so aquelas que se reproduzem man-tendo um nvel constante de consumo, o que no significa a existncia de ca-rncias acentuadas. Eram formadas por grupos de caadores e coletores ou por grupos que praticavam uma agricultura itinerante e um pastoreio nmade. As sociedades agrrias de classes surgem com a descoberta da agricultura seden-tria e da domesticao dos animais, o que permite a produo de bens que ex-cedem as necessidades dos grupos. A expanso das foras produtivas possibilita o aumento da populao e de sua densidade, bem como do aparecimento das cidades e a constituio das primeiras formas de Estado. Baseando-se em Wolf (1970), Bernstein (2011) menciona que a reproduo dessas sociedades passa a depender, portanto, da preservao de uma parte do excedente gerado para a formao dos fundos de consumo, de substituio e cerimonial, necessrios

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    constituio e renovao de suas atividades sociais e produtivas. A apropriao das terras, por sua vez, ir determinar o aparecimento de classes que passam a cobrar pelo seu uso atravs da cobrana de impostos, gneros e trabalho gra-tuito, o que se transforma em um mecanismo de transferncia do excedente gerado. Isto se d sob a forma de um fundo de arrendamento, que obriga os camponeses a produzir um excedente superior quele necessrio aos fundos de consumo, de substituio e cerimonial, sob pena de passar por privaes jun-tamente com o seu grupo familiar. O esforo produtivo despendido pelos pro-dutores diretos, quer sejam escravos, camponeses ou artesos, convergem para a sustentao dos grupos dominantes, formados por nobres, religiosos e mili-tares, que se convertem em um grupo de no produtores dentro da sociedade. (BERNSTEIN, 2011, p. 26-27)

    Por conseguinte, observa-se que as sociedade agrrias, quer estejam or-ganizadas sob a forma de escravido ou de estamentos, consolidam as bases de um processo social de explorao que ir desenvolver-se de forma mais comple-ta e dinmica na sociedade capitalista. Nas sociedades agrrias, a explorao do trabalho no se encontra vinculada a um processo de poupana de uma parte do excedente extrado dos produtores diretos, que, posteriormente, pudesse vir a ser reinvestido no processo produtivo. Pelo contrrio, o excedente obtido, alm da sustentao de um modo de vida faustoso dos grupos dominantes, era utilizado para a construo de grandes monumentos, de catedrais e para o fi-nanciamento de atividades artsticas que, dentre outras funes, constituam representaes ideolgicas do seu poder poltico. A propriedade da terra e os mecanismos de extrao dos excedentes nela produzidos mediante processos de controle do trabalho eram, portanto, os fundamentos mais importantes de sua dominao poltica. (BERNSTEIN, 2011, p. 28)

    Com efeito, a sociedade capitalista a primeira em que a explorao do trabalho est relacionada com as necessidades de expanso da produo em grande escala com a finalidade de lucro. A forma clssica de apropria-o do excedente de trabalho nas sociedades capitalistas a da extrao da mais-valia. Neste caso, a apropriao dos excedentes gerados nas atividades produtivas destina-se, originalmente, a um processo de poupana com o obje-tivo de reinvesti-los na produo. Esta utilizao do excedente implica na ne-cessidade da reproduo ampliada do capital no mbito do processo produtivo. Por conseguinte, a sociedade capitalista extrapola o ciclo de produo, consumo e reproduo ao incluir a acumulao de capital como um dos aspectos mais importantes do seu desenvolvimento. Desse modo, a acumulao e a explorao do trabalho tornam-se os seus principais fundamentos. No que tange aos cam-poneses, de acordo com Bernstein (2011, p. 9):

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    Com o desenvolvimento do capitalismo, muda o carter da agricultura em pequena escala. Primeiro os camponeses se tornam pequenos produto-res de mercadorias que tm de gerar a subsistncia com a integrao s divises sociais mais amplas do trabalho e do mercado. Essa mercantili-zao da subsistncia uma dinmica central do desenvolvimento do ca-pitalismo. [...] Em segundo lugar, os pequenos produtores de mercadorias esto sujeitos diferenciao de classe. [...] Afirmo que, em consequncia da formao de classes, no h uma classe de camponeses nem lavra-dores familiares, mas sim classes diferenciadas de lavradores capitalistas em pequena escala, pequenos produtores com sucesso relativo e mo de obra assalariada.

    Ao abordar a maneira como essas transformaes marcaram a passa-gem das sociedades feudais europeias para o capitalismo e como elas afetaram o campesinato, Kautsky (1972) assinala que o crescimento das cidades e das inds-trias nelas existentes gerou a necessidade de uma maior circulao de dinheiro, tanto para o consumo de bens industrializados, quanto para o atendimento das demandas por alimentos e matrias-primas. Por sua vez, a comercializao des-ses produtos passou a realizar-se no mbito do mercado, sendo mediada pelo uso do dinheiro. Isto atingiu duplamente os camponeses. De um lado, aumen-tava a sua explorao pelos nobres que tambm precisavam de mais dinheiro para manter o seu modo de vida. De outro, eram obrigados ao pagamento de impostos ao Estado absolutista que comeava a se fortalecer. Assim, a autos-suficincia das aldeias foi afetada, pois a converso dos produtos agrcolas em mercadorias que deveriam ser comercializadas no mercado criava a exigncia de sua livre circulao, o que se chocava com as proibies de trocas fora dos limites da aldeia, estabelecidas pelo direito consuetudinrio. (KAUTSKY, 1972, v. 1) A crescente diversificao dos produtos demandados tambm ia de encon-tro ao sistema da cultura de trs rotaes, atravs do qual obrigava-se o cultivo dos mesmos produtos, na mesma poca, alm de impedir o uso de inovaes que possivelmente contribuiriam para a elevao da produtividade. A lgica da produo camponesa, voltada para a autossuficincia, chocava-se com a lgica da reproduo do capital, evidenciada nos mecanismos de funcionamento do mercado que passavam a predominar.

    Ao lado dessas transformaes de ordem estrutural, os camponeses eram proibidos de caar, extrair lenha, estabelecer roas nas florestas e at mes-mo de matar os animais que destruam suas plantaes. Os campos que cons-tituam propriedade comum foram apropriados pelos nobres e as terras dos camponeses tambm se tornaram alvos de expropriao. O limite de expulso dos camponeses nas grandes propriedades rurais inglesas que comeavam a

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    explorar suas atividades em bases comerciais foi estabelecido pela necessidade de manter a utilizao do trabalho ainda regulado em bases feudais, sobretudo pela utilizao da corveia. Tais limitaes afetavam as condies de existncia do campesinato bem antes do aumento de populao, o que iria requerer o in-cremento da produo agrcola para o seu abastecimento. (KAUTSKY, 1972, v. 1)

    A sequncia de mudanas decorrentes do desenvolvimento do modo de produo capitalista acarretava crescentes tenses entre os camponeses e os proprietrios de terra que modernizavam a explorao dos seus domnios. Cabe mencionar, como exemplo, os conflitos relativos s sobras de pastagens. Estas eram de grande importncia para os camponeses para a obteno de estrume. A diviso dos campos comuns limitava sua produo de estrume, pois os obri-gavam a reduzir o nmero de animais que podiam possuir. Os camponeses que dispunham de melhores condies contestavam a disponibilidade das terras em comum para esta finalidade, arguindo a lucratividade do seu uso alternativo. Eles j haviam se separado das comunidades territoriais, adaptando o seu modo de produzir s necessidades do mercado. O que estava por trs desses conflitos era a superao do sistema da cultura de trs rotaes, em face dos avanos do modo de produo de mercadorias e da formao de uma agricultura moder-na. Este processo tinha como requisito central a dissoluo das formas de pro-priedade tradicionais e constituio da propriedade privada em sua plenitude. (KAUTSKY, 1972, v. 1)

    Assim que, por um longo perodo da histria da humanidade, a maior parte dos contingentes populacionais encontrava-se concentrada no campo, vivendo em condies precrias. Alm dos fatores mencionados, a grande vul-nerabilidade fome, ocasionada por calamidades naturais, e a rpida expanso de doenas e pestes, devida inexistncia de condies adequadas de sanea-mento e de hbitos de higiene saudveis, provocavam elevadas taxas de morta-lidade que se mantinham prximas s de natalidade, gerando, dessa maneira, ndices bastante reduzidos de crescimento populacional. (SAWYER, 1980) Por outro lado, o desenvolvimento limitado dos meios de transportes tambm se constitua em um obstculo de grande importncia para o desenvolvimento das sociedades agrrias.

    Vale salientar que no momento histrico em que os espaos sociais se di-ferenciam em urbano e rural, este identificado como o ambiente da produo de bens diretamente extrados da natureza, mediante a explorao da terra e da criao de animais, bem como da extrao de recursos naturais, o que constitui a principal base material de sustentao dos grupos sociais existentes. nas so-ciedades agrrias e nos espaos rurais que os camponeses aparecem enquanto

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    grupos sociais diretamente ocupados com a produo agrcola, na maioria das vezes subordinados a outros grupos. Segundo Shanin (1996), em uma primeira aproximao os camponeses podem ser definidos como:

    [...] pequenos produtores agrcolas que, com a ajuda de equipamentos simples e o trabalho de suas famlias, produzem na maior parte para o seu prprio consumo, direto ou indireto, e para o cumprimento de obrigaes com os detentores do poder pblico. (SHANIN, 1996, p. 54)

    Assim, nas sociedades pr-industriais do Ocidente, os camponeses en-contravam-se vinculados terra por um sistema de obrigaes e de lealdades. Para o seu uso, estavam sujeitos ao pagamento de tributos, realizao de traba-lhos gratuitos nas terras dos senhores feudais e participao em seus exrcitos, o que caracterizava sua condio de servo, objeto de intensa explorao e coer-o social.

    Apesar das grandes limitaes enfrentadas pelas sociedades agrrias para o seu desenvolvimento, a aglomerao de pessoas em ncleos urbanos, as-sociada aos avanos da diviso social do trabalho, gerava novas necessidades. Por sua vez, as possibilidades de atendimento dessas necessidades estavam re-lacionadas com a realizao de investimentos orientados para a produo de conhecimentos que favorecessem e viabilizassem os interesses dos grupos so-ciais que ocupavam as posies dominantes nesses ncleos. A disponibilidade de novos conhecimentos, originados no contexto do desenvolvimento cientfico e tecnolgico, favoreceria, posteriormente, os grupos que comandavam o de-senvolvimento das foras produtivas, a partir de uma perspectiva da reprodu-o ampliada do capital.

    Ao abordar estas transformaes, Kautsky (1972) salientou o aparecimen-to de um conjunto de inovaes que foram fundamentais para o desenvolvimen-to do capitalismo agrrio na Europa e nos Estados Unidos. Ao faz-lo, articula tais inovaes com os interesses de classe envolvidos, com as exigncias decor-rentes da urbanizao e com os avanos do conhecimento cientfico, o que con-fere o real significado da profundidade dessas mudanas para a reconfigurao do campesinato na sociedade capitalista moderna. A transio da produo cam-ponesa para a agricultura capitalista moderna ocorre sob os influxos do modo de produo de mercadorias, que desencadeia uma srie de mudanas necessrias sua constituio. A crescente dominncia do capital sobre os demais modos de produo que o precede implica na tendncia a subordinar todos os ramos da produo sua lgica reprodutiva. Neste sentido, o autor acentua, seguida-

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    mente, a superioridade que essas tecnologias conferem ao processo produtivo realizado nas grandes propriedades, devido diviso do trabalho e explorao racional da agricultura que elas possibilitavam. Ao analisar as condies sociais e tecnolgicas que formaram a base da agricultura moderna, tambm mostrou as diferenas entre a Inglaterra, a Frana e a Alemanha, enfatizando a grande superioridade tecnolgica da primeira sobre as demais. Ressaltou o papel de-sempenhado pelos avanos do conhecimento cientfico no desenvolvimento da agricultura, principalmente em relao aos resultados obtidos na mecnica, na biologia, na qumica e na tica. Em relao a esta ltima cincia, destacou o uso do microscpio para o estudo do solo. (KAUTSKY, 1972, v. 1) Tambm demons-trou como a aplicao dos resultados da cincia contribuiu para a diviso do tra-balho, o surgimento do assalariamento e a formao de um excedente de fora de trabalho no campo.

    Dentre as inovaes mencionadas, destacou o aparecimento de novas mquinas, tais como o arado movido a vapor, a debulhadora e a ceifadeira. No que tange s melhorias das plantas, ressaltou as novas espcies de forrageiras, que produziam mais em uma rea menor, o que permitia a liberao da terra no utilizada para a explorao de outros cultivos. Quanto aos rebanhos, ob-servou que a melhoria gentica das raas existentes proporcionou o aumento do nmero dos animais e a especializao das criaes para fins especficos, como a fora de trao, o transporte, a produo de carne, de leite e de l. Como resultado dos estudos sobre o solo, descobriu-se que a produo de fertilizan-tes qumicos poderia impedir o seu esgotamento, facultando, assim, o cultivo contnuo de diferentes espcies vegetais, mesmo com o plantio de produtos exigentes em nutrientes. O uso do microscpio tambm possibilitou o conheci-mento da composio dos diferentes tipos de solo, bem como da maneira de uti-liz-los racionalmente sem exauri-los. Tais descobertas provocaram inmeras consequncias em relao agricultura, promovendo a elevao da produtivi-dade dos cultivos, a produo em larga escala, a reduo da fora de trabalho ocupada nas tarefas agrcolas e uma crescente dependncia da agricultura do mercado. Enquanto a cultura das trs rotaes estava organizada visando ao atendimento das necessidades dos camponeses e dos senhores feudais, a agri-cultura moderna procurava dar conta das demandas do mercado, passando as-sim, a depender cada vez mais de sua dinmica. (KAUTSKY, 1972, v. 1)

    O capital penetrava crescentemente na estrutura produtiva do campo, subordinando-a e moldando-a de acordo com os seus interesses. As relaes de produo preexistentes tornavam-se incompatveis com o desenvolvimen-to capitalista do campo e eram, gradativamente, eliminadas. Expropriados de suas terras e apartados de seus instrumentos de trabalho, os camponeses no

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    encontravam nenhuma ocupao e eram obrigados a migrar para as cidades. Convertiam-se, neste caso, em uma fora de trabalho livre cuja nica opo era a de oferec-la em troca de um salrio que possibilitasse sua reproduo social, embora na Inglaterra, mesmo nas grandes propriedades capitalistas, existissem situaes em que a fora de trabalho que permanecia no campo era explorada conforme as relaes de trabalho feudais de modo a aumentar ainda mais os rendimentos obtidos com sua vinculao s atividades agrcolas.

    Assim, um dos efeitos mais importantes das transformaes das condi-es tecnolgicas para a organizao das atividades produtivas foi a gerao de uma grande quantidade de trabalhadores excedentes nas atividades agrcolas, desde que o uso das inovaes cientficas implicou em uma considervel eleva-o da produo e da produtividade das tarefas desenvolvidas no campo. O que antes muitos homens faziam para manter poucas pessoas nas cidades, agora era possvel de ser realizado por um contingente bem menor de trabalhadores, cuja produtividade permitia o abastecimento de um nmero bem maior de pes-soas em reas urbanas.

    Desse modo, na Inglaterra, grande parte dos camponeses que perma-neceram no campo transformava-se gradativamente em agricultores, caracte-rizando-se como agentes econmicos especializados em determinados produ-tos que utilizavam os recursos obtidos com a sua venda para adquirir os bens necessrios sua subsistncia. Isto porque ao orientar com maior intensidade suas atividades produtivas para o mercado, deixavam de produzir os bens ne-cessrios a sua prpria subsistncia (mveis, roupas, bebidas, etc.), passando a adquiri-los sob a forma de produtos industrializados.

    Ao analisar o processo de proletarizao dos camponeses em pases eu-ropeus, notadamente na Alemanha e na Blgica, Kautsky (1972) lembra que a runa das indstrias domsticas no campo gerava um tempo livre que podia ser transformado na venda de sua fora de trabalho em outras atividades. Esta in-dstria produzia para as necessidades dos pequenos camponeses. Na falta dela era preciso suprir estas necessidades de outra maneira. Por outro lado, a prpria natureza do trabalho agrcola nas unidades familiares implicava na exigncia de uma maior intensidade de uso de mo de obra apenas em determinadas eta-pas do ciclo vegetativo das culturas e dos cuidados com as criaes. No entan-to, ao ocupar-se de um trabalho acessrio, o campons tendia a dedicar menos ateno a sua unidade e limitar-se a obter o indispensvel sua subsistncia com a sua explorao. Desde que tais unidades no produziam para o merca-do, a diminuio de sua importncia para a explorao dos cultivos e criaes conduziam-nos a vender as parcelas de terra no utilizadas. Isto iria provocar,

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    de modo geral, a tendncia a um processo de fragmentao das propriedades, ao contrrio do que acontecia com as grandes exploraes onde o dinamismo das atividades produtivas concorria para sua concentrao.

    Por outro lado, a grande massa de camponeses expulsos das terras em que trabalhavam e sem outras possibilidades de encontrar outro trabalho no campo, no dispunha de alternativa, seno a de migrar para as cidades, onde o desenvolvimento das atividades industriais poderia lhes proporcionar uma ocupao produtiva. No por outra razo que, pela primeira vez na histria da humanidade, presenciou-se uma monumental transferncia de pessoas do campo para as cidades, que a esta altura j tinham assegurado as condies de abastecimento de alimentos e matrias-primas, em face das transformaes que ocorreram na estrutura produtiva das reas rurais.

    De fato, os grandes contingentes populacionais que se deslocaram do campo para as cidades encontraram nas manufaturas e nas fbricas as opor-tunidades de trabalho esperadas, custa de um padro brutal de explorao de sua fora de trabalho, conduzida mediante a implantao de relaes de assa-lariamento. A terra que at esse perodo era considerada a base das instituies sociais, transformou-se em uma mercadoria passvel de processos impessoais de compra e de venda que no mais inspiravam os valores de honra e de leal-dade, to caros aos grupos dominantes nas sociedades agrrias. Por sua vez, a tecnologia e o sistema fabril converteram-se em vetores de profundas transfor-maes da ordem social, revolucionando as relaes do homem com a natureza e proporcionando possibilidades de expanso, at ento impensveis, das ati-vidades produtivas. Referindo-se a essas mudanas, Hobsbawm (1977) afirma que:

    A grande camada de gelo dos sistemas agrrios tradicionais e das relaes sociais do campo em todo o mundo cobria o solo do crescimento econ-mico. Ela tinha que ser derretida a qualquer custo, de maneira que o solo pudesse ser arado pelas foras da empresa privada em busca de lucro. Isto implicava trs tipos de mudanas. Em primeiro lugar, a terra tinha que ser transformada em uma mercadoria, possuda por proprietrios privados e livremente negocivel por eles. Em segundo lugar, ela tinha que passar a ser propriedade de uma classe de homens desejosos de desenvolver seus recursos produtivos para o mercado e estimulados pela razo, i. e., pelos seus prprios interesses e pelo lucro, estes dois objetivos esclarecidos. Em terceiro lugar, a grande massa da populao rural tinha de ser transfor-mada de alguma forma, pelos menos em parte, em trabalhadores assala-riados, com liberdade de movimento, para o crescente setor no agrcola da economia. (HOBSBAWM, 1977, p. 167-168)

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    Com efeito, este o momento em que se configuram os elementos es-senciais da transio das sociedades agrrias para as sociedades urbanas. Os antigos e pequenos ncleos que constituram seu embrio fortaleceram-se e im-puseram sua hegemonia sobre o campo, sobretudo a partir de uma base produ-tiva prpria, a indstria. O pano de fundo dessa nova fase do desenvolvimento histrico , portanto, o da formao do capitalismo industrial, que iria deter-minar os aspectos bsicos do desenvolvimento das reas rurais e das atividades que nela se desenvolveriam, moldando a natureza das relaes sociais de pro-duo. A consolidao da sociedade urbana e industrial, originada no modo de produo capitalista, traz consigo, portanto, novas significaes para as reas rurais e para o campesinato, dentre elas a de um setor da sociedade subordina-do e dependente da dinmica das cidades, tendo como funes mais importan-tes a produo de alimentos e de matrias-primas para a indstria.

    Contudo, necessrio salientar que esse processo no seguiu um pa-dro homogneo para todos os pases e regies, embora tenha como trao fun-damental uma intensa diferenciao entre o campo e a cidade. Dentre os pases da Europa Ocidental impulsionados pela Revoluo Industrial, observa-se situ-aes variadas, desde a predominncia da grande propriedade na Inglaterra at o fortalecimento dos pequenos estabelecimentos agrcolas na Frana. Isto levou Kautsky (1972) a considerar que o fato das pequenas exploraes agrcolas no desaparecerem rapidamente com o desenvolvimento capitalista, constitua-se no cerne da questo agrria, ou seja, implicava na discusso sobre o que fazer, em termos polticos, diante da constatao de que as grandes exploraes eco-nmicas no se expandiam nem proletarizavam de forma acelerada os trabalha-dores rurais. A sobrevivncia do campesinato na sociedade capitalista moderna e a possibilidade de sua aliana poltica com o operariado urbano eram, portan-to, a principal colocao que se impunha ao movimento revolucionrio alemo e, por extenso, ao europeu, no final do sculo XIX.

    Alm disso, evidenciava-se que o desenvolvimento da indstria e a mo-dernizao da agricultura nos pases capitalistas europeus e nos Estados Unidos lhes proporcionaram uma supremacia considervel sobre outros pases e regies do resto do mundo, criando uma nova configurao internacional de poder, que implicava no fortalecimento e ampliao de desigualdades sociais preexistentes muito acentuadas. Nesse contexto, tal diferena de poder condicionou trajet-rias de desenvolvimento desiguais, extremamente desfavorveis aos pases loca-lizados na periferia desses centros de poder, cujas populaes eram em grande parte formadas por camponeses e concentradas em reas rurais.

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    Esta situao repercutiria intensamente no decorrer do sculo XX, quando movimentos sociais e revolues que mais uma vez modificariam o quadro de poder existente, contariam com uma intensa participao do campe-sinato. Conforme assinalado por Shanin (1996), a partir de 1950, a emergncia dos processos de descolonizao de pases situados na periferia das socieda-des capitalistas mais avanadas colocava as populaes camponesas no centro de preocupaes com questes relacionadas com a fome e o desenvolvimento econmico. Isto ir estimular a realizao de estudos que focalizaro diversas temticas sobre sua condio social, a exemplo de sua cultura, atividades pro-dutivas, relao com o meio ambiente, lutas polticas e articulao com outros grupos sociais.

    Desse modo, a variedade de situaes presentes no desenvolvimento histrico do campesinato, bem como das diversas abordagens utilizadas para reconstru-las, ressaltam a importncia de se considerar as diferentes formas de sua participao nas trajetrias de formao das sociedades modernas, de suas principais reivindicaes e lutas polticas no decorrer desses processos.

    THE PEASANTRY IN THE FORMATION OF MODERN CAPITALIST SOCIETY

    AbstractIn this article we intend to initially discuss the comple


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