Date post: | 24-Jul-2016 |
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Ilustrações SHARISY PEZZI
SUBVERSA VOL. 3 | N.º 7 | nov./2015 ISSN 2359-5817
MILTON REZENDE
CAROLINE POLICARPO
MAURICIO LIMA
ERIC COSTA
GIULIANA BRUNI
FERNANDO RAMOS
ABÍLIO PACHECO
ALEXANDRA LOPES DA
CUNHA
ESTEVAN KETZER
MARIA JOÃO VAZ
SAMUEL H DIAS
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 3 | n.º 07
© originalmente publicado em 01 de novembro de 2015 sob o título de
Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações
SHARISY PEZZI |[email protected] | SITE
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados
como autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos
textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem
com a realida
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
3
MILTON REZENDE | GOLES DE LEVEZA | 06
CAROLINE POLICARPO |PELO CAMINHO| 08
MAURICIO LIMA | ARANHAS | 13
ERIC COSTA | CHRONOS| 18
GIULIANA BRUNI | VERMELHA DOR |21
FERNANDO RAMOS | KARDEC versus SADE | 31
ABÍLIO PACHECO | MEDITAÇÃO AO TOCANTINS| 34
ALEXANDRA LOPES DA CUNHA| MINERAL | 40
ESTEVAN KETZER | MÍSSIL-FÓSSIL (2): A CONFISSÃO DO
QUE NÃO SABE| 43
MARIA JOÃO VAZ |CATARSE | 51
SUBVERSA VOL. 3 | N. º 7 | NOV/2015 ISSN 2359-5817
4
“Bem-vindo à nossa câmara cibernética de mil aninhos!”
Estevan Ketzer
A Subversa tem uma relação especial com o tempo. Ela só existe
como resultado de um tempo de maturação e compromisso literário. Só
existe porque acreditamos que a literatura é, em si, um relógio à parte no
mundo, que vai marcando seu ritmo lenta e substancialmente. Ela existe,
também, porque acreditamos que a literatura está nascendo o tempo
todo. No Brasil, em Portugal e onde quer que exista o desejo de produção
e expressão através de uma forma nova.
O penúltimo mês do ano inicia e o Volume 3 ainda anunciará mais
três números até o final de 2015. Iremos até o número 10, firmes e
perseverantes, dedicando um tempo linear e sistemático para desenvolver
os planos de crescimento e expansão da revista. E esse é um tempo
objetivo, cronológico, marcado em números, dividido em semanas, dias,
minutos e fusos. Ainda que com alguns tropeços, eis o tempo da Sub.
Turbulento, mas constante, como nas profundezas mais desconhecidas do
Atlântico.
“Só vai levar alguns milênios, alguns universos”, escreve Caroline
Policarpo, uma das autoras deste número. “Rimos, por fim, ao dizer com
um sorriso tão temporário como nós mesmos que matamos por costume e
tradição”, você lê na crônica de Eric Costa, que já é da casa.
E assim vamos andando, a favor do tempo, preenchendo-o com
páginas, versos e imagens que, hoje, são assinadas pela gaúcha Sharisy
Pezzi, de Caxias do Sul, uma das regiões mais frias do Brasil. As
temperaturas lá, no inverno, se aproximam às do inverno português, que
vem se instalando, aos poucos, no tempo do continente europeu.
Estamos do lado de cá e do lado de lá. Satisfeitas em apresentar
uma revista que desliza sobre o tempo e permanece nele, acreditando na
sua verdade. O maior compromisso que podemos ter com o tempo é
simplesmente não pensar nele.
As editoras.
EDITORIAL
5
SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014)
Adquira e apoie o crescimento da revista.
6
MILTON REZENDE | Ervália, MG.
GOLES DE LEVEZA
7
chás & cicatrizes
aromas em lata com
ferrugem (sachês e receios)
o intervalo do trajeto
entre o chão e o
travesseiro (lapsos e hiatos)
melhor ser um homem
deitado que um andarilho
de joelhos, e bêbado.
MILTON REZENDE possui nove livros publicados e alguns pássaros. |
8
CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.
A CAMINHO
9
sim, estarei aí,
vou chegar
estou indo
assim que a tempestade amainar um pouco
quando o incêndio for apagado
quando o tempo acabar, ressurgir, estilhaçar-se
na finitude das pilhas e baterias que movem relógios
e eu finalmente estiver livre
quando o mapa mostrar o caminho certo
e meus pés forem capazes de segui-lo
só vai levar alguns milênios, alguns universos,
eu só preciso atravessar uma ponte
sobre um oceano
num outro planeta
que orbita outro sol
só preciso atravessar a rua
10
na faixa
cada listra branca bem maior do que pode um passo
só preciso saltar para a próxima listra
e tentar não cair no abismo escuro do entre universos
a distância é de centímetros
segundos
anos-luz e milênios
infinitos
agora somente uma porta
sob a qual vejo abismos
a maçaneta dura, invencível,
muralhas
labirintos
no trajeto até a entrada
no próprio obstáculo que é a chegada
estando aí deixo de estar
a caminho
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se acontecer de eu estar aí
se tiver chegado
lembre-me de que esqueci
do resto
de tudo
das chaves
diga que não devo arrombar
nem chamar
mas entrar
simplesmente
no silêncio calmo da certeza
sozinha
segura
sabendo
se eu chegar achando que sei
que o tempo existe e que o mapa está certo
se eu pensar ter encontrado
me lembre
até que eu vá e volte e me perca de novo
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para me achar não na ponte, mas no oceano
e no buraco entre as faixas
até ter me tornado também labirinto
e ser capaz de todos os caminhos sem sabê-los
se eu chegar achando que ficar resolve
não me deixe ficar
para que um dia eu fique mesmo, por inteiro,
sem pedaços de mim nos caminhos não percorridos
mas se por acaso eu não voltar:
me desculpe
CAROLINE POLICARPO é autora do livro de poemas Palavras Andarilhas,
publicado em 2015 pela Penalux. Estudante de letras, participou de várias
coletâneas de contos, incluindo Sonhos Lúcidos, Utopia, Ponto Reverso e King
Edgar Hotel. Também tem publicações nas revistas Trasgo e Friday. É fascinada
por astronomia, aspirante a desbravadora de universos (inclusive os inventados) e
escreve por necessidade existencial. | [email protected]
13
ARANHAS
14
MAURICIO GOLDANI LIMA | Novo Hamburgo, RS.
15
Enquanto pegava os itens para o rango da madruga na geladeira,
senti uma cosquinha no pé. Percebi após alguns segundos que uma
pequena aranha o havia percorrido e agora sapateava no tapete. Cocei
o peito de um com a sola do outro, peguei o pote de margarina e tentei
esmagar. Não a vi mais. Presumi que estivesse morta. Coisas que não
vemos estão mortas. Me dei conta que esta não era a primeira vez que
havia visto uma dessas aranhas. Aliás, estava ocorrendo com certa
frequência. Eu sentia coceiras no colchão enquanto dormia, tocando
violão no sofá velho, na cozinha, sentado descalço e comendo. Eu tava
sempre me coçando e com pequenas feridas no corpo. Estava sendo
comido vivo por pequenas aranhas que haviam migrado para a sujeira de
minha casa e agora espreitavam à espera de mais um pedaço meu. Foi
uma epifania.
Ao colocar o pote de margarina e os saquinhos plásticos com frios
na mesa, meu braço tocou uma teia. Ficou enroscada um bom tempo em
mim, confirmando o fato. Lembrei também que quando entrei em casa
havia me enroscado em outra, e atrás da cortina do chuveiro certamente
ainda está lá uma intrusa ignorada, que sempre vem me cumprimentar
quando ligo o chuveiro, saindo daquela crosta indistinguível acumulada
que tinha na borda que tocava o chão. Sentia-se em casa. Era provável
que eu andasse sempre com algum pedaço de teia de aranha grudado
em mim como feridas, mas eu não saberia, não tinha espelho. E estava
sempre desligado. Como será que eu estava? Todas indagações e
realizações diluíram-se na urgente vontade de comer um sandubão
maroto. Voltei ao que havia anteriormente me disposto mentalmente a
realizar.
Pão. Ok. Margarina. Ok. Presunto. Amareladinho, meio melecado,
mas ok. Queijo. Bordas ficando esverdeadas?! Juro que nunca havia visto.
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Também, vencido dia 27. Me lembrou aqueles queijos fedorentos
importados. Me senti chique. Por um momento considero experimentar os
fungos exóticos importados de países exteriores e fermentado nas mais
profundas cavernas orientais por anos que estavam ALI!!! DE GRAÇA!!! Só
pra mim. Fino demais. Eu era mais povão no quesito rango. Tirei as bordas.
Queijo. Ok. Orégano por cima. Pra dar aquele toque gourmet...Só faltou
um nome legal: Sandubão Sensação!!! Aliás, Sensational Feelings Sanduba,
pra dar toque americanizado. E vender por 15 conto em food trucks nas
festas vegans. Ah, não!!! Tinha presunto e queijo. Porra! Que merda
comiam os vegans? Festa? Que tipo de vida se comemora se não come
presunto?! Melhor esquecer essa ideia...não ia dar certo mesmo.
Fecho o sanduba. Me acomete um súbito tesão por uma torrada. O
queijo derretido, as bordinhas tostadas do presunto, o pão quente e
torradinho. Coloco na torradeira. Fecho. E, ansioso, começo a andar de
um lado para o outro da casa, mordiscando o corinho dos dedos, já que
as unhas eu havia roído ontem. Gastar com tesourinha era um desperdício
ridículo!! A água tava faltando, e do jeito como abusavam de tesourinhas
elas logo haveriam de acabar também e aí eu estaria do alto do meu
trono com unhas roídas e todos iriam querer meus dentes, mas não! Os
dentes são meeeus! MEUS!! Não, pera, tem algo errado. Ah, sim!!! A
torrada!
Corro ávido para a torradeira. Abro. Lá jaz o pão. Branco.
Imaculado. O queijo estático e frio abraçado no presunto. Olho a tomada.
IDIOTA!!! Tinha esquecido de ligar. Ligo. Penso em preparar um copo de
Nescau com leite, mas a geladeira sempre fazia um barulhão quando
abria, porque uma parte da porta estava levemente quebrada por dentro.
Normalmente isso não fazia a menor diferença, mas quando chegava
aquela época do ano que eu não descongelava a geladeira por uns 6
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meses, o gelo e a rachadura na porta se encontravam quando abria. Era
um barulhão que só! Eu precisava descongelar. Mas só fazia isso quando o
gelo impedia o fechamento da porta. Além do mais, eu não tinha tempo
pra isso. Tinha que fazer a torrada. Ah, um Nescau enquanto isso até que
cairia bem. Mas tinha o barulho e era madrugada, eu não queria acordar
os vizinhos. Foda-se.
Pronto! Abro a torradeira. Fumacinhas me convidam para dançar. O
queijo se derrete por mim, o presunto ruborizado me olha de canto, (QUE
PÃOOOOOOO!). Pego a faca na mesa. Peraê! Não me recordo qual faca
suja é a de anteontem e qual é da semana passada. Via das dúvidas,
pego a última limpa na gaveta. Higiene é importante. Retiro o alimento do
altar, bordas de queijo grudam na torradeira. Retiro-as com a faca e me
deleito, é um bacanal. Um pedaço de queijo cai ao lado, em cima do
micro-ondas que ficava em baixo da torradeira e em cima do forno. Era
legal tudo empilhado assim em cima do armarinho, parecia um totem, um
aparelho único, multifuncional e imponente. A verdade é que era muita
mão ficar escolhendo lugar, então joguei tudo ali mesmo. Mas a mística
deixa a história mais bonita. O problema era aquele cantinho ali onde o
queijo tinha caído. Era meio que um cemitério de pedaços queimadinhos
de queijo que caíam ali e eu não me arriscava a comer pela poeira
acumulada que eu não tirava. Aquele pedaço estava condenado. Não
adiantava chorar. A vida ensina valiosas lições. Bola pra frente. É esperar a
borda torrada do próximo sanduba.
Vou para a cama. Enquanto como, uma aranha me pica. Pode ter
sido uma pulga. O Barba era foda, não dava banho nunca nos gatos.
Vivia com a mulher e o filho naquele ferro velho. Sobrevivente de uma
miniatura de um cenário pós-apocalíptico criado por ele mesmo. Um
gênio. Louco. Se bem que entendo. Tentar manter a casa limpa e
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organizar a vida ao mesmo tempo pode levar um homem lentamente a
uma loucura irreversível (assim como matar aranhas todos dias, ou ser
comido vivo). É uma batalha que não se pode ganhar. Agulhas no
palheiro, insetos pelas frestas escuras do quarto. Milhares de seres se
alinhavam, quebravam a formação e se espalhavam, espreitando. Milícias
microscópicas e inteligentes. Tão pequenas que nem pareciam batalhas.
Mal apareciam, raramente vistas. Pensava nisso enquanto deitado comia.
O exército silencioso ganhava terreno, pouco a pouco.
Suculento, desabo como migalhas de pão na torradeira do colchão.
Sonhos saem como fumacinha do abraço do sono. Milhares de olhinhos
me fitam no escuro. Sedentos. Feridas me deixam crocante. No ponto.
Patinhas se esfregam como um lamber de beiços enquanto dou a última
mordida. E fecho os olhos mais uma vez. Satisfeito. Pronto.
MAURICIO GOLDANI LIMA não fala em terceira pessoa, pois isso é coisa de louco.
Era um mosquito que escrevia para se livrar do amontoado de papel que possuia,
mas foi comido vivo por aranhas. Isso foi o que restou.
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CHRONOS
20
Eric Costa | Currais Novos, RN.
Quando se procura “tempo” em sites de busca – quase oráculos nos
21
tempos atuais – mil respostas vêm à tona, com a única característica em
comum de fuga do essencial.
Nuvens, céu aberto (ou seria tempo firme?), Sol, tempestades em
quase perfeita e anárquica simetria como nunca dantes visto. Elementos
aéreos de nosso referencial – já que tudo se faz em torno e depende deles.
Sinal adequado, talvez. Personagens esvoaçantes do real sentido que se
procura ou pelo menos se deveria procurar.
Muitos caminhos convergem ao mesmo lugar ao passo que tantos
outros divergem do essencial e imprescindível: do tempo, em essência e
crua disposição.
Cá estamos. Ora sim. Ora, ao sabor do vento e do imponderável,
não. Há cordas no universo – mas, afinal, o que ele é? – e outras
incomensuráveis variáveis. Cá estamos ao sabor do desconhecido que
julgamos conhecer, explicar e prever. Mera afronta a uma insignificância
que nasce e morre conosco, rapidamente colocando todos no pé de
igualdade em que sempre estivemos, mas da qual nossos bilhões de
neurônios afastaram com maldosa astúcia.
Somos apenas um pouco de energia. Um resto de pó das estrelas,
talvez, e nada além disso, no mesmo estágio do ambiente que nos cerca –
que de tudo vemos muito pouco ou quase nada.
Achamos que medimos o tempo. Sequer medimos nossa própria
temperatura. Como ter certeza da agitação de partículas que nem
vemos, não é mesmo, Heisenberg? Só estimamos.
Estimando, idealizamos a passagem de um tempo cuja ação sequer
carrega um verbo exato. Mas como dizem as páginas do livro na
cabeceira, ele - que teimamos em personificar – não passa pois
simplesmente talvez seja a própria existência universal.
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São nossos relógios, teimosos no sonho de medir o desconhecido - que
passam, andam, vêm e vão.
Perante – chronos, divergimos da medida. Apenas convencionamos
e chutamos em busca dele, com a precisão da trajetória de uma bola no
vácuo.
Rimos, por fim, ao dizer com um sorriso tão temporário como nós
mesmos que matamos por costume e tradição.
Solenemente – quiçá sorrateiramente – é ele que nos enterra, porém,
como com sabedoria um atemporal (!!!) de Assis certa vez nos apontou.
Ah, quantas ideias implícitas há, assim, que embarcam a meio
caminho em linhas "inocentes e puras".
ERIC COSTA é acadêmico de Medicina na Universidade Federal do
Maranhão. Vê o escapismo dos seus dias, às vezes solitária, no futebol, na
música, literatura e em sua própria introspecção. |
23
GIULIANA BRUNI| Bagé, RS.
VERMELHA DOR
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O quarto estava iluminado. Era dia. Acho que o Sol mal tinha se
posto e eu não conseguia engolir a saliva, meu corpo tremia frio. No
quarto do segundo andar da casa, com a sacada de frente para a rua, eu
olhava para meu marido. Leal. Leal é moreno, tem olhos pretos, cabelo
com cachos largos. Leal sempre foi uma pessoa boa. Nos conhecemos há
cinco anos no bar da faculdade, começamos a namorar e acabamos nos
casando. Na verdade, apenas moramos juntos no piso superior do
sobrado. Na parte inferior, moram minha mãe e minha tia. Daí quando se
sentem sozinhas, sobem para conversar conosco. Mas, nesse dia, ninguém
poderia entrar naquele quarto.
Vi um rosto esbranquiçado e perplexo olhar para o espelho e fitar
fixamente o chão. Leal, em pé, estava com uma arma na mão. Calibre 38,
preta. No chão, um sujeito grandalhão, careca, vestia uma camisa azul
para dentro de uma calça jeans surrada e um sapato preto de bicos
arredondados. Vi sangue. Vi muito sangue escorrendo da cabeça do
sujeito. Não sei por que eu estava ali, não sei por que Leal fez isso. Quem
era aquele homem? Por que Leal tinha uma arma na mão?
- Meu Deus, olha o que você fez! Você matou um homem! – minha
voz saiu falhada, arranhada.
- A gente precisa esconder esse corpo. Ninguém pode descobrir. –
Leal estava sério, segurando a arma na mão. O olhar estava confuso, ele
tentava pensar rapidamente. -Tranca a porta.- ele sussurrou. Os passos
estavam vindo em direção ao nosso quarto. Era minha mãe, Marina. Ela é
uma mulher bonita, usa cabelos que caem nos ombros, daqueles loiros de
quem não envelhece. Os óculos com aros quadrados e fininhos ficam
apoiados no meio do nariz fino e por trás da lente são revelados olhos
azuis. A mãe é daquelas pessoas teimosas, que gostam tudo do seu jeito.
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Ela sempre convence os outros a fazerem o que ela quer. Talvez seja por
isso que eu e o Leal moramos com ela, tamanha foi a insistência para
ficarmos na casa. Ela dizia: “Com uma casa desse tamanho como vamos
morar apenas eu e a Carolina, Alícia?” Ah, esqueci de me apresentar. Me
chamo Alícia, tenho 35 anos e trabalho com vestuário, vendo roupas na
casa das clientes e, vez ou outra, arranjo algum trabalho no comércio em
apenas um turno. Tenho os olhos do meu pai, um castanho cor de mel,
puxadinhos. Mas dizem que todo o restante sou a cópia da minha mãe.
Nariz fininho, pele clara e sorriso largo. Mas não naquele dia. Naquele dia
meu rosto era pálido em frente ao espelho, e minha mente se retorcia em
perguntas sem respostas. Fechei a porta, girei a chave rapidamente e
apertei com muita força a porta de madeira atrás de mim. Olhei para Leal.
Ele largou a arma em cima da cama e, com o dedo indicador, fez sinal de
silêncio, tocando levemente os lábios.
– Filha, vocês estão aí? – a voz da minha mãe era animada. O
silêncio tomou conta do quarto.
– Cheguei agora, estou começando a preparar a janta, se vocês
quiserem descer para me ajudar...
- Pode deixar, dona Marina, daqui a pouco já descemos. – Leal
respondeu, com a voz tranquila. Ouvi os passos dela em direção à escada.
- O que está acontecendo? – sentei na cama, com o rosto tapado
pelas mãos, minha voz saiu ainda mais abafada. De costas para o homem
que estava estirado no chão, vi o sangue escorrer por debaixo da cama.
Leal fez a volta na cama, sentou ao meu lado e, olhando fixamente
a parede branca do quarto, balbuciou alguma coisa que não entendi.
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- Fala Leal. Por que você matou esse cara? Quem era ele?
- Alícia, eu... – as palavras iam trancando na garganta de Leal – eu
estava devendo um dinheiro para ele.
- Como assim? Por que você não me pediu? Ainda mais agora que
tenho dois empregos! – um grito fino saiu da minha garganta. As lágrimas
iam escorrendo sem que eu pudesse segurar. Sentindo meu corpo
amolecer, me dobrei sobre as pernas e chorei.
–Você tirou a vida de um homem. – minha voz saía entre soluços.
- Eu estava devendo um dinheiro que não conseguiria pagar. Ele era
agiota e me emprestou cinquenta mil reais, só que os juros começaram a
aumentar muito, eu já estava devendo mais de cem mil. Juntando o meu
emprego e o teu, eu jamais conseguiria pagar! Eu não queria ter feito isso,
mas ele me ameaçou, descobriu onde a gente morava. Ameaçou até
matar toda a família. Ele entrou escondido aqui em casa, vi a faca na
cintura dele e percebi que dessa vez era sério. Era eu ou ele.
-Onde eu estava enquanto isso? – perguntei, assustada.
-Aqui no quarto. A gente estava aqui, deitados na cama,
conversando, lembra?
Girei o pescoço lentamente, fixando o olhar na parede branca. Olhei para
o chão. O sangue continuava escorrendo perto dos meus pés.
-Não lembro. Eu não estava aqui.
-Sim, você estava. – ele insistiu. – Mas foi tudo tão rápido. Ele entrou
sem avisar, você levantou da cama e se encostou na parede, muito
assustada. Ele me ameaçou com a faca. Só que desta vez fui mais rápido,
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peguei a arma que estava escondida no guarda-roupa e atirei. Não era
para matar, era só para assustar. Agora não temos o que fazer. Precisamos
esconder o corpo.
-Tem muito sangue nesse quarto. O quarto está todo vermelho. -
ouvia a minha própria voz retumbar entre aquelas paredes, que me
pareciam vermelho gritante. Tudo em mim gritava. Minha garganta estava
seca e eu precisava engolir o choro, o medo e aquela cor vermelha
horrível.
- Calma, não tem. A gente precisa tirar ele daqui. – Leal respondeu,
tentando segurar meus braços, que se agitavam.
Ficou tudo preto. O Leal está no quarto? Onde estou? Cadê o
corpo?
Acordei. Esfreguei os olhos. Estava na parte inferior da casa assistindo
televisão. Vejo meus pés com meias brancas descansando sobre um
banquinho. Olho para o lado e minha mãe está lendo uma revista.
-Oi mãe, aconteceu alguma coisa?
- Não, a gente estava aqui assistindo a novela e você caiu no sono. –
ela foi dizendo lentamente.
-Ah está bem. Cadê o Leal? – meu corpo deu um impulso para
frente. Sentei no sofá, firmando os pés no chão.
- O Leal? Não sei, deve estar trabalhando. – ela respondia
lentamente, sem tirar os olhos da revista.
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-Trabalhando? – levantei, afastei a cortina da janela da frente e
avistei a rua, onde os carros passavam depressa. – Hoje é dia de semana?
Que dia é hoje?
- Terça-feira, filha.
- Terça? Eu deveria estar trabalhando. Não avisei o chefe que não
iria trabalhar.
- Calma, já avisei ele. – ela disse, com a voz tranquila, enquanto
continuava segurando a revista, entre as mãos. Puxei a revista das mãos
dela.
- Mãe, por que você não me acordou? Por que não fui trabalhar? –
fui atropelando as palavras, formando frases antes que minha própria
mente conseguisse formular as perguntas.
- É que – ela fez uma pausa, ajeitando os óculos – filha, você não
tem se sentido muito bem. Na última semana você tem dormido quase
todo o dia e acorda gritando, acho que são pesadelos.
- Dormindo bastante? Pesadelos? – levei a mão até a boca, fitei o
teto. Não entendia o que ela estava falando.
- Em cima da geladeira estão teus remédios. São três. Assim que te
sentires mal, e tiveres pensamentos ruins podes tomar. Mas observa a
ordem e os horários, estão todos marcados direitinho.
- Não entendo. Você está supondo que estou ficando louca? Esses
remédios são para loucura? – minha voz oscilava. Meu corpo tremia e eu
estava com raiva da minha mãe.
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Subi até meu quarto. Entrei. As paredes continuavam brancas e a
cama, no meio do quarto, imóvel. A grande janela da sacada estava
aberta. Olhei os carros passando. Devia ser três horas da tarde. O Sol
estava alto. Fitei o quarto atentamente. Olhei embaixo da cama. Onde
estava o corpo? Abri o guarda-roupa marrom que se estendia até o teto.
Senti o cheiro de roupas perfumadas, cuidadosamente dobradas. Não
encontrei armas, nem facas.
Deitei. O quarto começou a ficar todo vermelho. O chão e as
paredes estavam vermelhos. Ouvi meus gritos para dentro, mas dessa vez
arranhavam minhas entranhas. Leal chegou e me segurou pelos braços,
me deitou na cama.
-De novo, não, Alícia. Não, já vai passar.- ele gritava. Vi minha mãe
com um copo de água e um comprimido amarelo. Antes que eu pudesse
continuar gritando, engoli o remédio e a água. E tudo ficou escuro.
O despertador tocou. Olhei para o lado.
-Leal, o que está acontecendo? Por que não tenho ido trabalhar? E
aquele remédio que minha mãe me deu ontem? – falei com voz tranquila,
sentindo minha testa enrugar.
- Não tem nada acontecendo, Alícia. – Leal falava com tom de
firmeza.
-Não consigo lembrar de nada nos últimos dias. Não sei o que
aconteceu ontem. Mas fui visitar a Dorinha e o seu Alberto disse que ela
não podia me ver, estava ocupada. Ele me olhou com uma cara estranha.
– enquanto eu falava, percebia as sobrancelhas de Leal se erguendo
lentamente. A testa se enrugava. A boca, entreaberta, ensaiava palavras.
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- Não é para você sair de casa. Por que você saiu de casa? – ele me
segurou forte. Depressa me soltei, empurrei os lençóis e levantei da cama.
- Exijo que você me explique o que está acontecendo. – gritei com
ele.
- Não sei do que você está falando. Pelo que sua mãe me disse,
você anda estressada e pediu afastamento do trabalho para se tratar,
apenas isso. – o tom de voz foi baixando. Senti que ele tentava me
acalmar, mas tinha algo estranho acontecendo. – Agora preciso trabalhar.
Deitei na cama enquanto ele vestia as calças e a camisa. Senti
muito sono, fechei os olhos.
Eu estava deitada dentro de um guarda-roupa quando acordei.
Escutei alguns passos e ruídos vindos da sala. Ouvia a voz da minha mãe,
da minha tia e do Leal. Eles falavam afobados, ao mesmo tempo.
- Ela enlouqueceu mesmo, Leal. Não sei o que fazer com ela. – disse
minha mãe.
- Temos que internar ela. E depois chamar a polícia. – minha tia,
Carolina, afirmava com ênfase.
- Mas se ela for presa vai pirar ainda mais. – Leal, em tom sério.
-Já descobrimos que foi ela que matou aquele homem. Por mais que
seja minha filha, precisa pagar por isso. – Minha mãe tinha um tom de voz
frio.
Fiquei tanto tempo em silêncio fitando a prateleira marrom do
guarda-roupa que perdi a noção de tempo. Talvez fosse dia de semana,
talvez fosse feriado, talvez noite ou dia. Saí do roupeiro do quarto da minha
31
mãe e caminhei até o corredor. Era fim de tarde e a casa começava a
escurecer. Enxerguei muitas gotas de sangue no chão, uma atrás da outra
ao longo de todo o corredor. Corri até o banheiro para buscar um pano e
comecei a esfregar o chão. Eram muitas gotas vermelhas, tinha muito
sangue impregnado naquela casa. Esfreguei incontáveis lajotas brancas.
Quando me levantei e pude esticar o corpo, voltei os olhos para o início do
corredor, e as manchas continuavam vermelhas, muito vermelhas, e fui
esfregando e limpando. Minha tia, Carolina, apareceu.
- O que está fazendo, Alícia? – ela parou com as mãos na cintura.
- Tia, tem manchas de sangue, tem muito sangue nesse chão. Essa
casa está vermelha. – minha voz ia aumentando sem que eu pudesse
controlar.
- Não tem nada aqui, Alícia. - Carolina gritava comigo. E quanto
mais ela gritava, mais eu esfregava o chão. Leal e minha mãe
apareceram querendo saber o que estava acontecendo. Eu chorava e
gritava palavras que nem eu conseguia compreender.
- A casa está vermelha. O chão está sujo de sangue. Aquele homem
morreu.
Leal e minha mãe me fitavam, sérios, sem nenhuma reação. Carolina
parou de gritar. Minha voz ecoava sozinha pelas paredes vermelhas da
casa.
- Alícia, não tem sangue nenhum. Não tem nada vermelho nessa
casa. – Leal estava bravo. E tentava me levantar do chão. – Eles devem
estar chegando.- ele disse, olhando para minha mãe.
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- Eles quem? – eu quis saber. Meu olhar corria do Leal para minha
mãe, e dela para minha tia.
A campainha tocou. Minha mãe e o Leal me levantaram do chão.
Larguei o pano. Minhas mãos estavam sujas de sangue. Vermelho, muito
vermelho. Policiais vieram em minha direção. Eu não entendia o que
estava acontecendo. Três homens me seguraram e me algemaram.
Enquanto eles me arrastavam olhei pra trás. Leal, Marina e Carolina não
expressavam absolutamente nenhuma emoção. Apenas quis gritar que
Leal matou um homem, mas minha voz não saía, era um grito abafado pra
dentro. Leal, parado entre minha mãe e minha tia, envolveu-as em um
abraço. Entrei na viatura da polícia e bati tão forte com as mãos contra os
vidros que o sangue vermelho, muito vermelho, escorria quente por entre
meus dedos. Antes que o carro desse partida, avistei os três na sacada da
casa. Eles cantavam e dançavam. Seus corpos se movimentavam de um
lado a outro. De longe pude ler as últimas palavras que viriam deles: “Eu
vou viver dez, eu vou viver cem, eu vou viver mil, eu vou viver sem vocꔹ.
Agora escrevo de um lugar gelado, com tetos altos e janelas
pequenas. Minhas mãos começaram a cicatrizar. E o vermelho continua
aparecendo em todos os lugares. Aquela música toca todos os dias dentro
da minha cabeça. Leal matou um cara. Vejo muito sangue. Vermelho.
1 – Música “Não enche”, de Caetano Veloso.
GIULIANA BRUNI é jornalista, amante da escrita criativa e do jornalismo literário.
Passeia entre a realidade e a ficção. Apaixonada por histórias, já produziu
documentários, poemas e contos. Descobre, diariamente, que o contato direto
com pessoas é que move o universo do imaginário. Autora do blog Meu Mundo e
as Palavras e integrante do projeto Pessoas de Bagé. |
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FERNANDO RAMOS | São Paulo, SP.
KARDEC versus SADE
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Morte e vida coexistem
tangenciais.
Morte domínio do Nada.
Vida morada do Todo.
Planos que resvalam
quase atritos tântricos.
Se o Universo pode circunavegar
morredouros nascituros implodir
antimatéria jorrar luz ao fundo
do buraco negro também poderá
humano pó estelar emergir alfombras
ressurgir viscoso olvidado e pequeno
da seiva volátil de Eros imantar
infinitas partículas sem massa
até que o peso do vento eleve
cordilheiras e procelas e sinapses
eletrolíticas de bactérias marinhas
per fluam a inteligência dos mares
e os arcabouços da carne bebam
consciência da nave onde o Nada
volve o corpo à finitude big bang
explode gozo uterino do cosmo
Caos de éter fecundo zigoto de
asteroides do limbo onde a fome
dorme carmas morrer sonambular
por vazios corredores do sonho
nascer ejacular sair do coma furar
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redoma amniótica do Nada afogar
em oxigênio boro metano
cuspir o sal do oceano interior
saltar da doce letargia fetal à surda
dissonância umbilical à indissociável
estranheza das mãos que levadas a
cobrir tímpanos para calar maquinária
em desmundo ora preferem introjetar
relógio paranoico cardiovascular sou
mesma paúra de Allan Poe retrofuga
abissal de Cousteau tanatofobia clichê
que gritava há trinta e dois mil anos
nas paredes da caverna de Chauvet.
[Até que chegue o último metrô
esporrando luz no hímen da noite]
FERNANDO RAMOS nasceu em São Pauloem 1984. Desde 2000 publica poemas e
contos, tendo textos na Revista Cult, Zunái, Germina Literatura, cadernos culturais
e antologias. Compositor, assina 150 musicas, tendo parcerias com grandes
nomes da MPB. Publicou ensaios no livro Os Filmes Que Sonhamos (Lume) e nos
DVDs da Coleção Sergio Ricardo (Lume Filmes). Escreveu e dirigiu o longa
metragem documental A Praça Pede Passagem sobre a urgência da retomada
dos espaços públicos e o direito à cidade - estreia em festivais nesse ano.
Escreveu 4 roteiros de longas ficcionais a serem dirigidos a partir de 2016.
Publicará pela Editora Patuá seu primeiro romance: Egonia - 9 mm de Prosa. |
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ABÍLIO PACHECO | Marabá, PA.
MEDITAÇÃO AO TOCANTINS
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debruço-me em sua amurada
alto de álcool, ébrio de versos
memórias das tardes quentes
de olhos arenosos e rubros
garganta seca de gorjeios
caminhada pausada à borda
pendente na ponta dos dedos
a lata de líquido loiro
meu amor não me ensinou
a ser simples como um barquinho
deslizando nas águas dos rios
que bem banham marabá
***
ergo-me cotovelos doridos
olhos secos e rubis de luzes
laranjadas acinzentantes
do ocaso espelhado nas águas
a voz não vale o verso olvido
pouso dedos sob o queixo
no pomo que deglute goles
meu amor quis me fazer crer
na lição leve dos batelões
que cortam a paisagem
38
de fim de tarde em marabá
***
caminho em molejos gauches
como a vida fosse toda ela
essa paisagem, essa passagem
de vesperal fenecendo e sigo
pausados passos à borda
em clima de huzun, de lennui
curado/ampliado por lábios
beijando a borda gelada
de metal de pouco peso
meu amor não viu em mim
por paralelo a certeza
dos barcos e dos batelões
nessas águas a marulhar
***
baixo a bauxita lixiviada
o braço estende-se penso
a goela regada à cevada
a voz lubrificada e nova
para o verso que não vem
mas fica-me o aroma de malte
39
e de lúpulo em levedura
canto de ave aninhando
meu amor não me viu símile
de certeza singela e chã
em remos e quilhas seguras
nessas águas tocantinas
***
balanço os braços brandos
o corpo tonto e torto
neste caminhar de olhos,
ouvidos e boca de versos
palavras, sons e pausas
fito o ocaso desrubrando
a tarde deixada às costas
e a lâmina flúvia-chã aplainada
em calmaria de criação
embarcações dispersas e ausentes
viram versos livres, vorazes
e já não há voz a pedir simpleza
se sou todo fogo, água e ar
***
40
ouço o leito lento liso
ausente de banzos e banzeiros
refletindo pássaros silentes
em pontos e riscos pelo céu
de tetro lusco-fusco difuso
e de meus descompassos
de oblíquos passos líricos
cesuras, acentos e pausas
em leve entorpecimento
ao cais adernos de retorno
ressoam cadências desiguais
motivos ditados aos versos
a emergirem de vãos olvidos
***
esgoto todas as latinhas
de amarga água aloirada
preenchido a ponto de
pouca noção me restar
(feito fiapo de fita fina)
da tarde clara e vaga
e meu brado se faz aroma
de fruta madura vinhada
de doce azedura apurado
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o verso abole o simplório,
o singelo agir, o sossego
inaprendido na lâmina dágua
a permanecer agora opaca
***
procuro porto e paragem
um locus de líteros litros
repouso a pernas e braços
costas, mãos e pensamento
de onde veja a noite vindo
desarrelio a olhos irritados
com seu manto estendido
de nítidos, claros lembrares
atracação à borda das águas
lentas ledas leves líricas
…………………….
e sou todo linguagem
ABÍLIO PACHECO é professor universitário de literatura. Autor do romance Em
Despropósito (mixórdia) (Literacidade-2013), do livro de poemas Canto Peregrino
a Jerusalém celeste (Literacidade-2013). Seu primeiro destaque literário foi aos 17
anos, quando obteve o primeiro lugar nacional num concurso organizado pela
Casa do Poeta Brasileiro de Praia Grande-SP. Atualmente cursa o doutorado em
Literatura (THL-UNICAMP/LAI-FU-Berlin/DAAD) e é Assistente Editorial (freelancer). |
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ALEXANDRA LOPES DA CUNHA | Porto Alegre, RS.
MINERAL
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Talvez, talvez. Nenhuma certeza. Evade-se, invado-o: intrometo-me em sua
vida, imponho minha presença. Encolhe-se, constrangido.
Mas não irritado. Covarde, encolhe-se. Molusco em sua concha. Faz de
conta que me sorri, encabulado. Olha para os lados, receoso que o vejam
ao meu lado, pretexta compromissos. Se pergunto o que tem, responde
que nada, trabalho, o de sempre. Despede-se, apressado. Promete me
procurar. Eu creio.
Covarde, odeio-o. Durante dias e noites, sonâmbula, eu vivo a angústia da
chamada redentora. Como as unhas, as carnes dos dedos. Levo para a
cama as mãos vazias, a cabeça cheia de sonhos. As mãos não sossegam
percorrem-me o corpo, representam outro par que tão bem me conhece.
Ganindo sozinha, finjo que o tenho. Fingida, enceno a pantomima de
prazer compartilhado. Odeio-me, adoro-o. Detesto-o, lamento-me,
gargalho e choro. Saciada, desolada, desfaleço até o começo da manhã
seguinte.
Manhãs, tardes e noites se seguem até que as deixo de contar. Em um dia
comum, de céu lavado, desperto. Lavo o rosto, sigo a rotina, autômata,
quase feliz. Então, ele chama, me quer. Exulto, estúpida. Preparo-me:
perfumes e sedas. Recebo-o, solícita. Adoro-o outra vez. Ama-me talvez?
Talvez, talvez, evade-se uma vez mais. É tarde, me diz, é tarde e se vai,
vestindo à porta casaco e as botas. Desejo que volte, pergunto se sim.
Sorri amarelo, promete ligar.
Um banho, a roupa, um pente, os cabelos. Vestida e limpa, penteada,
correta, a porta fechada, caminho à rua, procuro as calçadas.
Os pés nos sapatos tropeçam sozinhos. Os olhos no chão perscrutam
trapaças. Os passos, cuidados, o medo da queda. Os braços envolvem
meu corpo sozinho.
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No meio da quadra, encontro uma pedra. Pequena, esférica, polida do
tempo, dos chutes, das chuvas, de rolar pelo mundo.
Fascina-me. Abaixo-me, tomo-a entre as mãos. Aliso-a, afago-a. Uma
pedra comum que ninguém repara. Tive-lhe pena, ternura: um nada,
sozinha.
Levo-a à boca. Não sabe, insossa. Brinco com ela sobre a língua. Faço
com que bata em meus dentes. Engulo-a por fim.
Sinto seu peso em meu estômago. Eu, menos sozinha.
ALEXANDRA LOPES DA CUNHA, natural de Brasília, escrevo e leciona. Tem dois
livros publicados: Amor e outros desastres e Vermelho-Goiaba, ambos de contos.
Com o último, ganhou o primeiro prêmio na categoria autor-estreante no
concurso IEL 60 anos, patrocinado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande
do Sul. Recebeu menções honrosas em concursos nacionais e internacionais. Seu
blog, Cinderela Descaída, no qual escreve ensaios e crônicas, já ultrapassou a
marca de duzentos e cinquenta mil acessos. | [email protected]
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ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | Porto Alegre, RS.
MÍSSIL-FÓSSIL (2): A CONFISSÃO DO
QUE NÃO SABE
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- Entra, pode entrar, entra aí.
Isso foi dito pelo homem com um cãozinho, manso, olhando-o profundamente.
Eram olhos de um azul vivo de quase esquecimento, típico das pessoas daquele
canto do mundo. Ele entra mesmo receoso, depois de observar a fachada de
tijolos vermelhos argilosos do antigo míssil-fóssil. Começa a escutar um canto
gregoriano ao abrir a porta de madeira, entrando em um corredor sem fim, sem
direção, buraco negro dos corpúsculos da Criação. Tão frio e assustador como o
instante em que uma pessoa deixa de respirar. Seus passos levam-no a uma
câmara de onde sai uma luz amarelada das rosáceas e ao fundo ele observa o
famoso quadro de Edvard Munch, expressando aquele famoso grito ininterrupto.
A porta fecha atrás de si, num estrondo. “É, o que vou encontrar aqui dentro?”-
Pensa no cantinho de seu temor curiosíssimo.
- Bem-vindo à nossa câmara cibernética de mil aninhos! – Assim foi recebido com
a simplicidade eufórica de um homem idoso, barbudo, chapéu e paletós negros,
olhando através de seus óculos escuros, estilo John Lennon, e tão eufórico quanto
um adolescente saindo de férias. – Senta aí, muchacho.
Fez o que seu interlocutor indicou, sentando sobre um desconfortável banco de
madeira, já cansado de esperar sua namorada sem dar notícias. Ele sente como
está frio naquele lugar. Contudo, uma espécie de conforto vinha das vinte vozes
do coral, propiciando o descolamento daquela velha lágrima e fazendo seu rosto
entrar em conformidade com sua profunda solidão. Paralisado, ainda sem saber
onde por as mãos, dispensou por um segundo suas incertezas. Nota um monitor
gigantesco ao lado de uma réplica de O Grito, de Edvard Munch. “Droga!”-
Pensa isso quando nota aquele homem alto, sentando ao seu lado esquerdo e
despejando ladainhas.
- Está vendo – aponta para um dígito no enorme monitor –, o euro está valendo $
3,4891... é impraticável viajar assim! Você não se pergunta por que não
arredondam esses 91 para que o feche 3,49? Essa crise econômica se estende
para justamente ficarmos na pátria amada e odiá-la ainda mais, crendo que as
47
políticas econômicas igualitárias se tornam caudilhismo e descambam em
comunismo latino-americano. Quem não gostaria de por as mãos nos meios de
produção? É claro, porém, como dispensar as análises de Thomas Piketty sobre
como as elites condensam suas fortunas? (repentino alarme de ambulância
inunda o ambiente com luzes vermelhas piscando de modo frenético).
Contudo, nada do que o velho disse o deixara impressionado. Afinal, ele está
esperando por ela, como combinado, dentro do estranho e misterioso míssil-fóssil.
Ele começa a pensar nas proporções daquela tela computadorizada, montada
numa espécie de altar ecumênico com mais de cinquenta metros de altura.
“Como alguém teria feito isso com tanta exatidão há mil anos?” Mas as luzes de
um amarelo queimado gótico, continuavam iluminando o coro em sua liturgia
despretensiosa. A tessitura embalava o grave e o agudo em polifonias modais,
dissonantes e emotivas. Esse mesmo telão começa a passar o vídeo da mulher
que o acompanhava poucos minutos antes. Observava sua namorada: seus
quadris, suas pernas, o olhar vivo de um rosto esbranquiçado o suficiente para
desaparecer nas fotos digitais de péssima qualidade. Esse fato, o lembrou do
quanto o Sol a fazia ficar de mau humor... Mas foi lembrar-se de seu sorriso e de
seu perfume que o motivaram diante da tela: “Sim, é ela!”. De repente as
silhuetas femininas foram transformadas na imagem de uma raposa (o alarme de
ambulância termina).
- Está vendo este animal aí? – disse o homem à esquerda. – Os egípcios eram
zooantropomórficos: um ser humano reencarnava em um animal no futuro.
Adiantaram o espiritismo em quatro mil anos. Fantasmas ambulantes! Não
podemos esquecer que está interdita na Torá qualquer comunicação com o
mundo dos mortos... pena os cristãos terem levado tão ao pé da letra esse
mandamento, teriam queimado menos pessoas durante a Inquisição.
- Eu sinto falta dela – o jovem revela comovido –, pois quando abrimos os olhos
decidimos que queríamos voltar a fechá-los...
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- Segure-se aí, muchacho! – Ao dizer isso o banco começa a levantar,
transportando os dois até a abóbada central da nave, a trinta metros do solo. Ali
o caleidoscópio cintilante brilhava intenso. A luz que provinha do vitral era
realmente reconfortante, pois essa dimensão onírica do passado iluminado de
suas memórias revelou sua entrega a uma certa paixonite aguda e isso acontece
com alguns homens diante da fragilidade feminina.
- Olhe agora, daqui já podes ver a dimensão de nossas instalações: temos uma
sala especializada em engenharia genética reencarnacionista; outra em
transcriação de línguas alienígenas; outra para desprogramar o cérebro de
jogadores de vídeo-game compulsivos e fãs do seriado Friends. Estamos nesse
exato momento com nossas pesquisas focadas na descoberta de organismos
vivos que desenvolvam apetite por Urânio enriquecido, uma vez que o mundo
acabou em uma guerra nuclear, há exatos cinco minutos.
- O quê? Mas eu só passei por aquela porta! Como isso aconteceu?
- Não centre os problemas do mundo em você, meu caro. Já ouvi falar na carta
de Albert Pike? A Rússia se aliou ao Estado Islâmico e, como era previsto,
rivalizaram com o bloco econômico da União Europeia e dos Estados Unidos para
impedirem a extinção de Israel. O fato de você chegar é apenas uma mera
coincidência. Leia os jornais!
- E agora? Como vai ser?
- Boa pergunta: um milhão de dólares se você me responder! Se bem que um
milhão de dólares não valem absolutamente mais nada. Sinta-se contente
porque as nossas paredes estão revestidas com chumbo grosso. Só lamento os
Maias terem errado no cálculo do calendário, mas eu diria que dois anos
equivalem a meros segundos diante da história do universo, uma vez que
supervalorizamos a exposição do tempo dentro de nós. Então, bem- vindo à era
pós-apocalíptica! – O homem pega duas taças e o estoura uma champagne. –
Vamos brindar!
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- Não viu que eu perdi tudo? Perdi a mulher que eu amava!
- Perdeu? Será que você procurou bem em seu coração? Não se deixou levar por
uma satisfação sexual das mais efêmeras? Não se esqueça: assim como o
capitalismo nos incita a comprar, o sexo e o chocolate também liberam tanta
serotonina quanto o THC da cannabis sativa pode proporcionar...
- Olhe, eu não sou hippie!
- Perdoe meus modos. Eu não equaciono bem o funk carioca com a erudição da
escuta. Deve ser um dos problemas teratogênicos da minha má formação
devida à alta exposição de televisão durante a infância. Mas vencerei os meus
traumas para poder te escutar.
- Espere! Se o mundo acabou e ouvimos canto gregoriano ali embaixo, se
estamos sozinhos e eu terei de encarar essa barra existencial sem ela, fica nítido
que toda a beleza e a poesia que você me propõe perderam o sentido também.
Ela carregava nosso filho na barriga! Essa alegria e expectativa se foram! Não tem
volta e estamos tão alto que eu não pensaria duas vezes em pular daqui e
terminar tudo...
- Tudo o quê? O mundo acabou, meu rapaz.
- Vê como até isso é difícil de entender?
- Dê tempo ao tempo! Olhe, tome essa espumante comigo. Já observou O Grito,
de Munch, com atenção? Reparou que ele tapa os ouvidos para se proteger do
que vem de fora? É como se a boca aberta representasse sua onipotência
narcísica.
- Belo interpretaço.
- Além do mais, enquanto falo, estou dando tempo para que tu elabores esta
fase ruim (segundo a perspectiva dos jogadores de vídeo-game compulsivos).
Nada contra a possibilidade do teu suicídio ter sido efetivado se ao menos tivesse
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acontecido há dez minutos. Entretanto, examinando friamente a nossa atual
situação, se você se suicidar eu provavelmente ficarei sozinho aqui com esse
coro, levando-me, impreterivelmente, a me sentir um inválido e ao consequente
fim da humanidade razoavelmente pensante (não estou levando em
consideração o otimismo de que haja outra nave cheia de experts fora do
planeta, mas espero que a verba do Governo Federal para o desenvolvimento
de pesquisa de ponta não tenha chegado com atraso de 515 anos como foi com
a nossa...). Só resta eu te fazer um convite para a inauguração do asteróide B-
612! Sim, aquele do Pequeno Príncipe! Afinal de contas, vamos entender melhor o
que significa “Tu te tornas responsável por aquele que cativas” (sempre me
perguntei se o verbo apprivoiser não possui um sentido negativo, tal como
submeter alguém a uma vontade alheia).
- Pois é, pelo visto não tenho grandes escolhas... – pausa dramática para um gole
amargo de lágrima contida junto à doçura do espumante moscatel.
- Escolhas? Você ainda está preocupado com elas? Olhe, temos a liberdade de
fazer tudo, pensar tudo: não há chefia de mau humor no final do expediente; não
tem políticos hipócritas; nem engarrafamento de duas horas. Não tem sogra!
Sublime! A humanidade começa agora. Olhe, como você acha que sua
namorada reencarnou em uma raposa? Porque estamos repletos de animais
aqui! Isso sem falar no material genético da torcida do Flamengo, da Pâmela
Anderson e do Albert Einstein em nossos laboratórios!
- Pâmela Anderson fez filmes pornôs e Einstein tinha dislexia...
- Nossa humanidade pode lidar com as dificuldades de cada um sem moralismo!
Mais do que gerar gente diferente, vamos cuidar para que ninguém se destrua.
Teremos gente ruim como sempre... Mas tentaremos mais uma vez! Podemos
encontrar nas pessoas os mesmos traços que há poucos minutos estavam
exigindo que a sua decisão fosse o suicídio.
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- Olha, ao entrar aqui eu não sabia que ela já tinha ido embora e agora sei que
ela não voltará mais. Como pode um instante trancar todo o resto de decisões
que tornar-se-ão futuro? Como nossas simples questões se resolvem assim? O que
você fala parece ser a garantia do futuro, escrito em uma língua programada e
consolidada em uma realidade de puro empirismo, testada e aprovada pelo
INMETRO. E onde está a capacidade de resolução de problemas fora desse útero
eletrônico? Certamente, você não previu isso na sua bola de cristal: o que não
conseguiremos lidar, o que não temos capacidade para escutar, sejam os
problemas decorrentes das bactérias que assimilam Césio-137, ou canto das
baleias ou os decibéis de uma raposa. E mais, pode haver tudo na sua nave, mas
até agora não sei o seu nome.
- Ah! Estive tão empolgado com todas essas coisas que não tive cabeça para ser
educado, perdão. Eu me chamo Noé.
- Por que não estou surpreso em saber disso? Afinal é um nome, ou melhor, a
forma nominal de um verbo. Esse tipo de pergunta é meio básico, não é mesmo?
Sinto o quanto estão faltando ações em nossa conversa.
- Noé significa Aquele que descansa, em hebraico. Mas me diga quais ações
você quer realmente fazer? – Despertando a curiosidade em seu interlocutor.
- Sim, era de se esperar muito descanso para você e sua ONG pós-apocalíptica.
Mas eu não quero descanso! Quero continuar a me perguntar, quero fazer a
pergunta que o sono embalou até agora, o que enrubescia de pudor o olhar, o
que o medo mantinha trancado e o que meu misterioso desejo fez chegar até os
olhos dela como resultado das minhas sinceras idiossincrasias.
- Acredito que o bom resultado da sua vida poderia ter sido seu filho – O rapaz é
invadido de uma sincera e determinada tristeza, baixa os olhos até o chão,
enquanto os cantores gregorianos mudavam de canção em suas partituras. – Isso
só reforça o quanto você tem amor-próprio, uma qualidade importante para
poder gostar de outra pessoa.
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- Mas talvez não seja o suficiente para eu gostar verdadeiramente de mim!
- Se você fosse uma pessoa com o ego grande, inflamaria seus músculos
também, caindo de vez na cultura ostentatória da velha elite brasileira: uísque,
Red Bull e um Camaro amarelo. Depois, usaria alguns esteróides lipossolúveis e
teria litros de pus nos seus bíceps. Lamentável... Mas isso não aconteceria com o
tipo de pessoa que você é, pois pelo jeito você tem cara de quem curte
expressionismo alemão. A humildade costuma despertar a ira dos vaidosos e foi
assim o fim do nosso mundinho. Ah! Isso me lembrou uma coisa! – Não somente o
banco começou a subir mais alto, como toda a estrutura do térreo se deslocou e
foi se acoplando de modo ao altar central da nave mostrar-se como uma torre
de controle, comandada por um joystick de vídeo game nas mãos do homem
barbudo. – Pronto! Podemos partir, muchacho?
- Sabe, não consigo mais fechar os olhos e não vou pedir um Rivotril mesmo
sendo tentador. A vida toda sempre quis ser pintor... Afinal de contas, não tenho
útero e precisarei parir coisas novas, já que estou em dívida com uma digna
atividade sublimatória. Então, vamos lá: alfa, ômega, beta centauros, o asteróide
B-612, mais línguas alienígenas para decifrar e um pouco de tristeza, mas apesar
de tudo isso... você não teria outra garrafa de champagne por aí?
ESTEVAN KETZER é psicólogo clínico. Doutorando em Letras pela PUCRS. Pesquisa a
relação entre poesia, filosofia e psicanálise na obra do poeta Paul Celan. Além
de ensaísta, é poeta.
53
MARIA JOÃO VAZ | VILA FLOR, Portugal.
CATARSE
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Tantas vezes a razão ignorou
o instinto que, em silêncio, floresceu.
Tantas vezes calamos os sentidos
em nome de uma razão que cresceu
e se perdeu!
Quantas vezes fomos felizes
na penumbra do que todas as razões proíbem?
Como sorríamos, sorrimos!
E o que importam as mil e uma razões,
se os sorrisos respondem
e calam
todas as questões?!
MARIA JOÃO VAZ é licenciada, mestre e doutoranda em ciências jurídico-
criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e aluna de
intercâmbio na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Escreve
regularmente no seu blog, “the philosophy of little nothings” e é colunista do blog
luso-brasileiro de literatura, “letras in.verso e re.verso”. Publicou um poema na
Antologia de Poetas Portugueses Contemporâneos da Chiado Editora, “Entre o
sono e o sonho” e ganhou o prémio de poesia Fernanda de Castro, atribuído pela
Confraria luso-brasileira, em Maio deste ano. | [email protected]
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PARCEIROS:
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Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais: