+ All Categories
Home > Documents > Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

Date post: 24-Jul-2016
Category:
Upload: revista-subversa
View: 228 times
Download: 4 times
Share this document with a friend
Description:
Vol. 3, n.º 7. Uma Subversa que fala sobre o tempo.
56
Ilustrações SHARISY PEZZI SUBVERSA VOL. 3 | N.º 7 | nov./2015 ISSN 2359-5817 MILTON REZENDE CAROLINE POLICARPO MAURICIO LIMA ERIC COSTA GIULIANA BRUNI FERNANDO RAMOS ABÍLIO PACHECO ALEXANDRA LOPES DA CUNHA ESTEVAN KETZER MARIA JOÃO VAZ
Transcript
Page 1: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

Ilustrações SHARISY PEZZI

SUBVERSA VOL. 3 | N.º 7 | nov./2015 ISSN 2359-5817

MILTON REZENDE

CAROLINE POLICARPO

MAURICIO LIMA

ERIC COSTA

GIULIANA BRUNI

FERNANDO RAMOS

ABÍLIO PACHECO

ALEXANDRA LOPES DA

CUNHA

ESTEVAN KETZER

MARIA JOÃO VAZ

SAMUEL H DIAS

Page 2: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 3 | n.º 07

© originalmente publicado em 01 de novembro de 2015 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

SHARISY PEZZI |[email protected] | SITE

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realida

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

@CANALSUBVERSA

[email protected]

Page 3: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

3

MILTON REZENDE | GOLES DE LEVEZA | 06

CAROLINE POLICARPO |PELO CAMINHO| 08

MAURICIO LIMA | ARANHAS | 13

ERIC COSTA | CHRONOS| 18

GIULIANA BRUNI | VERMELHA DOR |21

FERNANDO RAMOS | KARDEC versus SADE | 31

ABÍLIO PACHECO | MEDITAÇÃO AO TOCANTINS| 34

ALEXANDRA LOPES DA CUNHA| MINERAL | 40

ESTEVAN KETZER | MÍSSIL-FÓSSIL (2): A CONFISSÃO DO

QUE NÃO SABE| 43

MARIA JOÃO VAZ |CATARSE | 51

SUBVERSA VOL. 3 | N. º 7 | NOV/2015 ISSN 2359-5817

Page 4: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

4

“Bem-vindo à nossa câmara cibernética de mil aninhos!”

Estevan Ketzer

A Subversa tem uma relação especial com o tempo. Ela só existe

como resultado de um tempo de maturação e compromisso literário. Só

existe porque acreditamos que a literatura é, em si, um relógio à parte no

mundo, que vai marcando seu ritmo lenta e substancialmente. Ela existe,

também, porque acreditamos que a literatura está nascendo o tempo

todo. No Brasil, em Portugal e onde quer que exista o desejo de produção

e expressão através de uma forma nova.

O penúltimo mês do ano inicia e o Volume 3 ainda anunciará mais

três números até o final de 2015. Iremos até o número 10, firmes e

perseverantes, dedicando um tempo linear e sistemático para desenvolver

os planos de crescimento e expansão da revista. E esse é um tempo

objetivo, cronológico, marcado em números, dividido em semanas, dias,

minutos e fusos. Ainda que com alguns tropeços, eis o tempo da Sub.

Turbulento, mas constante, como nas profundezas mais desconhecidas do

Atlântico.

“Só vai levar alguns milênios, alguns universos”, escreve Caroline

Policarpo, uma das autoras deste número. “Rimos, por fim, ao dizer com

um sorriso tão temporário como nós mesmos que matamos por costume e

tradição”, você lê na crônica de Eric Costa, que já é da casa.

E assim vamos andando, a favor do tempo, preenchendo-o com

páginas, versos e imagens que, hoje, são assinadas pela gaúcha Sharisy

Pezzi, de Caxias do Sul, uma das regiões mais frias do Brasil. As

temperaturas lá, no inverno, se aproximam às do inverno português, que

vem se instalando, aos poucos, no tempo do continente europeu.

Estamos do lado de cá e do lado de lá. Satisfeitas em apresentar

uma revista que desliza sobre o tempo e permanece nele, acreditando na

sua verdade. O maior compromisso que podemos ter com o tempo é

simplesmente não pensar nele.

As editoras.

EDITORIAL

Page 5: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

5

SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014)

Adquira e apoie o crescimento da revista.

Page 6: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

6

MILTON REZENDE | Ervália, MG.

GOLES DE LEVEZA

Page 7: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

7

chás & cicatrizes

aromas em lata com

ferrugem (sachês e receios)

o intervalo do trajeto

entre o chão e o

travesseiro (lapsos e hiatos)

melhor ser um homem

deitado que um andarilho

de joelhos, e bêbado.

MILTON REZENDE possui nove livros publicados e alguns pássaros. |

[email protected]

Page 8: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

8

CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.

A CAMINHO

Page 9: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

9

sim, estarei aí,

vou chegar

estou indo

assim que a tempestade amainar um pouco

quando o incêndio for apagado

quando o tempo acabar, ressurgir, estilhaçar-se

na finitude das pilhas e baterias que movem relógios

e eu finalmente estiver livre

quando o mapa mostrar o caminho certo

e meus pés forem capazes de segui-lo

só vai levar alguns milênios, alguns universos,

eu só preciso atravessar uma ponte

sobre um oceano

num outro planeta

que orbita outro sol

só preciso atravessar a rua

Page 10: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

10

na faixa

cada listra branca bem maior do que pode um passo

só preciso saltar para a próxima listra

e tentar não cair no abismo escuro do entre universos

a distância é de centímetros

segundos

anos-luz e milênios

infinitos

agora somente uma porta

sob a qual vejo abismos

a maçaneta dura, invencível,

muralhas

labirintos

no trajeto até a entrada

no próprio obstáculo que é a chegada

estando aí deixo de estar

a caminho

Page 11: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

11

se acontecer de eu estar aí

se tiver chegado

lembre-me de que esqueci

do resto

de tudo

das chaves

diga que não devo arrombar

nem chamar

mas entrar

simplesmente

no silêncio calmo da certeza

sozinha

segura

sabendo

se eu chegar achando que sei

que o tempo existe e que o mapa está certo

se eu pensar ter encontrado

me lembre

até que eu vá e volte e me perca de novo

Page 12: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

12

para me achar não na ponte, mas no oceano

e no buraco entre as faixas

até ter me tornado também labirinto

e ser capaz de todos os caminhos sem sabê-los

se eu chegar achando que ficar resolve

não me deixe ficar

para que um dia eu fique mesmo, por inteiro,

sem pedaços de mim nos caminhos não percorridos

mas se por acaso eu não voltar:

me desculpe

CAROLINE POLICARPO é autora do livro de poemas Palavras Andarilhas,

publicado em 2015 pela Penalux. Estudante de letras, participou de várias

coletâneas de contos, incluindo Sonhos Lúcidos, Utopia, Ponto Reverso e King

Edgar Hotel. Também tem publicações nas revistas Trasgo e Friday. É fascinada

por astronomia, aspirante a desbravadora de universos (inclusive os inventados) e

escreve por necessidade existencial. | [email protected]

Page 13: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

13

ARANHAS

Page 14: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

14

MAURICIO GOLDANI LIMA | Novo Hamburgo, RS.

Page 15: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

15

Enquanto pegava os itens para o rango da madruga na geladeira,

senti uma cosquinha no pé. Percebi após alguns segundos que uma

pequena aranha o havia percorrido e agora sapateava no tapete. Cocei

o peito de um com a sola do outro, peguei o pote de margarina e tentei

esmagar. Não a vi mais. Presumi que estivesse morta. Coisas que não

vemos estão mortas. Me dei conta que esta não era a primeira vez que

havia visto uma dessas aranhas. Aliás, estava ocorrendo com certa

frequência. Eu sentia coceiras no colchão enquanto dormia, tocando

violão no sofá velho, na cozinha, sentado descalço e comendo. Eu tava

sempre me coçando e com pequenas feridas no corpo. Estava sendo

comido vivo por pequenas aranhas que haviam migrado para a sujeira de

minha casa e agora espreitavam à espera de mais um pedaço meu. Foi

uma epifania.

Ao colocar o pote de margarina e os saquinhos plásticos com frios

na mesa, meu braço tocou uma teia. Ficou enroscada um bom tempo em

mim, confirmando o fato. Lembrei também que quando entrei em casa

havia me enroscado em outra, e atrás da cortina do chuveiro certamente

ainda está lá uma intrusa ignorada, que sempre vem me cumprimentar

quando ligo o chuveiro, saindo daquela crosta indistinguível acumulada

que tinha na borda que tocava o chão. Sentia-se em casa. Era provável

que eu andasse sempre com algum pedaço de teia de aranha grudado

em mim como feridas, mas eu não saberia, não tinha espelho. E estava

sempre desligado. Como será que eu estava? Todas indagações e

realizações diluíram-se na urgente vontade de comer um sandubão

maroto. Voltei ao que havia anteriormente me disposto mentalmente a

realizar.

Pão. Ok. Margarina. Ok. Presunto. Amareladinho, meio melecado,

mas ok. Queijo. Bordas ficando esverdeadas?! Juro que nunca havia visto.

Page 16: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

16

Também, vencido dia 27. Me lembrou aqueles queijos fedorentos

importados. Me senti chique. Por um momento considero experimentar os

fungos exóticos importados de países exteriores e fermentado nas mais

profundas cavernas orientais por anos que estavam ALI!!! DE GRAÇA!!! Só

pra mim. Fino demais. Eu era mais povão no quesito rango. Tirei as bordas.

Queijo. Ok. Orégano por cima. Pra dar aquele toque gourmet...Só faltou

um nome legal: Sandubão Sensação!!! Aliás, Sensational Feelings Sanduba,

pra dar toque americanizado. E vender por 15 conto em food trucks nas

festas vegans. Ah, não!!! Tinha presunto e queijo. Porra! Que merda

comiam os vegans? Festa? Que tipo de vida se comemora se não come

presunto?! Melhor esquecer essa ideia...não ia dar certo mesmo.

Fecho o sanduba. Me acomete um súbito tesão por uma torrada. O

queijo derretido, as bordinhas tostadas do presunto, o pão quente e

torradinho. Coloco na torradeira. Fecho. E, ansioso, começo a andar de

um lado para o outro da casa, mordiscando o corinho dos dedos, já que

as unhas eu havia roído ontem. Gastar com tesourinha era um desperdício

ridículo!! A água tava faltando, e do jeito como abusavam de tesourinhas

elas logo haveriam de acabar também e aí eu estaria do alto do meu

trono com unhas roídas e todos iriam querer meus dentes, mas não! Os

dentes são meeeus! MEUS!! Não, pera, tem algo errado. Ah, sim!!! A

torrada!

Corro ávido para a torradeira. Abro. Lá jaz o pão. Branco.

Imaculado. O queijo estático e frio abraçado no presunto. Olho a tomada.

IDIOTA!!! Tinha esquecido de ligar. Ligo. Penso em preparar um copo de

Nescau com leite, mas a geladeira sempre fazia um barulhão quando

abria, porque uma parte da porta estava levemente quebrada por dentro.

Normalmente isso não fazia a menor diferença, mas quando chegava

aquela época do ano que eu não descongelava a geladeira por uns 6

Page 17: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

17

meses, o gelo e a rachadura na porta se encontravam quando abria. Era

um barulhão que só! Eu precisava descongelar. Mas só fazia isso quando o

gelo impedia o fechamento da porta. Além do mais, eu não tinha tempo

pra isso. Tinha que fazer a torrada. Ah, um Nescau enquanto isso até que

cairia bem. Mas tinha o barulho e era madrugada, eu não queria acordar

os vizinhos. Foda-se.

Pronto! Abro a torradeira. Fumacinhas me convidam para dançar. O

queijo se derrete por mim, o presunto ruborizado me olha de canto, (QUE

PÃOOOOOOO!). Pego a faca na mesa. Peraê! Não me recordo qual faca

suja é a de anteontem e qual é da semana passada. Via das dúvidas,

pego a última limpa na gaveta. Higiene é importante. Retiro o alimento do

altar, bordas de queijo grudam na torradeira. Retiro-as com a faca e me

deleito, é um bacanal. Um pedaço de queijo cai ao lado, em cima do

micro-ondas que ficava em baixo da torradeira e em cima do forno. Era

legal tudo empilhado assim em cima do armarinho, parecia um totem, um

aparelho único, multifuncional e imponente. A verdade é que era muita

mão ficar escolhendo lugar, então joguei tudo ali mesmo. Mas a mística

deixa a história mais bonita. O problema era aquele cantinho ali onde o

queijo tinha caído. Era meio que um cemitério de pedaços queimadinhos

de queijo que caíam ali e eu não me arriscava a comer pela poeira

acumulada que eu não tirava. Aquele pedaço estava condenado. Não

adiantava chorar. A vida ensina valiosas lições. Bola pra frente. É esperar a

borda torrada do próximo sanduba.

Vou para a cama. Enquanto como, uma aranha me pica. Pode ter

sido uma pulga. O Barba era foda, não dava banho nunca nos gatos.

Vivia com a mulher e o filho naquele ferro velho. Sobrevivente de uma

miniatura de um cenário pós-apocalíptico criado por ele mesmo. Um

gênio. Louco. Se bem que entendo. Tentar manter a casa limpa e

Page 18: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

18

organizar a vida ao mesmo tempo pode levar um homem lentamente a

uma loucura irreversível (assim como matar aranhas todos dias, ou ser

comido vivo). É uma batalha que não se pode ganhar. Agulhas no

palheiro, insetos pelas frestas escuras do quarto. Milhares de seres se

alinhavam, quebravam a formação e se espalhavam, espreitando. Milícias

microscópicas e inteligentes. Tão pequenas que nem pareciam batalhas.

Mal apareciam, raramente vistas. Pensava nisso enquanto deitado comia.

O exército silencioso ganhava terreno, pouco a pouco.

Suculento, desabo como migalhas de pão na torradeira do colchão.

Sonhos saem como fumacinha do abraço do sono. Milhares de olhinhos

me fitam no escuro. Sedentos. Feridas me deixam crocante. No ponto.

Patinhas se esfregam como um lamber de beiços enquanto dou a última

mordida. E fecho os olhos mais uma vez. Satisfeito. Pronto.

MAURICIO GOLDANI LIMA não fala em terceira pessoa, pois isso é coisa de louco.

Era um mosquito que escrevia para se livrar do amontoado de papel que possuia,

mas foi comido vivo por aranhas. Isso foi o que restou.

Page 19: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

19

CHRONOS

Page 20: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

20

Eric Costa | Currais Novos, RN.

Quando se procura “tempo” em sites de busca – quase oráculos nos

Page 21: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

21

tempos atuais – mil respostas vêm à tona, com a única característica em

comum de fuga do essencial.

Nuvens, céu aberto (ou seria tempo firme?), Sol, tempestades em

quase perfeita e anárquica simetria como nunca dantes visto. Elementos

aéreos de nosso referencial – já que tudo se faz em torno e depende deles.

Sinal adequado, talvez. Personagens esvoaçantes do real sentido que se

procura ou pelo menos se deveria procurar.

Muitos caminhos convergem ao mesmo lugar ao passo que tantos

outros divergem do essencial e imprescindível: do tempo, em essência e

crua disposição.

Cá estamos. Ora sim. Ora, ao sabor do vento e do imponderável,

não. Há cordas no universo – mas, afinal, o que ele é? – e outras

incomensuráveis variáveis. Cá estamos ao sabor do desconhecido que

julgamos conhecer, explicar e prever. Mera afronta a uma insignificância

que nasce e morre conosco, rapidamente colocando todos no pé de

igualdade em que sempre estivemos, mas da qual nossos bilhões de

neurônios afastaram com maldosa astúcia.

Somos apenas um pouco de energia. Um resto de pó das estrelas,

talvez, e nada além disso, no mesmo estágio do ambiente que nos cerca –

que de tudo vemos muito pouco ou quase nada.

Achamos que medimos o tempo. Sequer medimos nossa própria

temperatura. Como ter certeza da agitação de partículas que nem

vemos, não é mesmo, Heisenberg? Só estimamos.

Estimando, idealizamos a passagem de um tempo cuja ação sequer

carrega um verbo exato. Mas como dizem as páginas do livro na

cabeceira, ele - que teimamos em personificar – não passa pois

simplesmente talvez seja a própria existência universal.

Page 22: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

22

São nossos relógios, teimosos no sonho de medir o desconhecido - que

passam, andam, vêm e vão.

Perante – chronos, divergimos da medida. Apenas convencionamos

e chutamos em busca dele, com a precisão da trajetória de uma bola no

vácuo.

Rimos, por fim, ao dizer com um sorriso tão temporário como nós

mesmos que matamos por costume e tradição.

Solenemente – quiçá sorrateiramente – é ele que nos enterra, porém,

como com sabedoria um atemporal (!!!) de Assis certa vez nos apontou.

Ah, quantas ideias implícitas há, assim, que embarcam a meio

caminho em linhas "inocentes e puras".

ERIC COSTA é acadêmico de Medicina na Universidade Federal do

Maranhão. Vê o escapismo dos seus dias, às vezes solitária, no futebol, na

música, literatura e em sua própria introspecção. |

[email protected]

Page 23: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

23

GIULIANA BRUNI| Bagé, RS.

VERMELHA DOR

Page 24: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

24

O quarto estava iluminado. Era dia. Acho que o Sol mal tinha se

posto e eu não conseguia engolir a saliva, meu corpo tremia frio. No

quarto do segundo andar da casa, com a sacada de frente para a rua, eu

olhava para meu marido. Leal. Leal é moreno, tem olhos pretos, cabelo

com cachos largos. Leal sempre foi uma pessoa boa. Nos conhecemos há

cinco anos no bar da faculdade, começamos a namorar e acabamos nos

casando. Na verdade, apenas moramos juntos no piso superior do

sobrado. Na parte inferior, moram minha mãe e minha tia. Daí quando se

sentem sozinhas, sobem para conversar conosco. Mas, nesse dia, ninguém

poderia entrar naquele quarto.

Vi um rosto esbranquiçado e perplexo olhar para o espelho e fitar

fixamente o chão. Leal, em pé, estava com uma arma na mão. Calibre 38,

preta. No chão, um sujeito grandalhão, careca, vestia uma camisa azul

para dentro de uma calça jeans surrada e um sapato preto de bicos

arredondados. Vi sangue. Vi muito sangue escorrendo da cabeça do

sujeito. Não sei por que eu estava ali, não sei por que Leal fez isso. Quem

era aquele homem? Por que Leal tinha uma arma na mão?

- Meu Deus, olha o que você fez! Você matou um homem! – minha

voz saiu falhada, arranhada.

- A gente precisa esconder esse corpo. Ninguém pode descobrir. –

Leal estava sério, segurando a arma na mão. O olhar estava confuso, ele

tentava pensar rapidamente. -Tranca a porta.- ele sussurrou. Os passos

estavam vindo em direção ao nosso quarto. Era minha mãe, Marina. Ela é

uma mulher bonita, usa cabelos que caem nos ombros, daqueles loiros de

quem não envelhece. Os óculos com aros quadrados e fininhos ficam

apoiados no meio do nariz fino e por trás da lente são revelados olhos

azuis. A mãe é daquelas pessoas teimosas, que gostam tudo do seu jeito.

Page 25: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

25

Ela sempre convence os outros a fazerem o que ela quer. Talvez seja por

isso que eu e o Leal moramos com ela, tamanha foi a insistência para

ficarmos na casa. Ela dizia: “Com uma casa desse tamanho como vamos

morar apenas eu e a Carolina, Alícia?” Ah, esqueci de me apresentar. Me

chamo Alícia, tenho 35 anos e trabalho com vestuário, vendo roupas na

casa das clientes e, vez ou outra, arranjo algum trabalho no comércio em

apenas um turno. Tenho os olhos do meu pai, um castanho cor de mel,

puxadinhos. Mas dizem que todo o restante sou a cópia da minha mãe.

Nariz fininho, pele clara e sorriso largo. Mas não naquele dia. Naquele dia

meu rosto era pálido em frente ao espelho, e minha mente se retorcia em

perguntas sem respostas. Fechei a porta, girei a chave rapidamente e

apertei com muita força a porta de madeira atrás de mim. Olhei para Leal.

Ele largou a arma em cima da cama e, com o dedo indicador, fez sinal de

silêncio, tocando levemente os lábios.

– Filha, vocês estão aí? – a voz da minha mãe era animada. O

silêncio tomou conta do quarto.

– Cheguei agora, estou começando a preparar a janta, se vocês

quiserem descer para me ajudar...

- Pode deixar, dona Marina, daqui a pouco já descemos. – Leal

respondeu, com a voz tranquila. Ouvi os passos dela em direção à escada.

- O que está acontecendo? – sentei na cama, com o rosto tapado

pelas mãos, minha voz saiu ainda mais abafada. De costas para o homem

que estava estirado no chão, vi o sangue escorrer por debaixo da cama.

Leal fez a volta na cama, sentou ao meu lado e, olhando fixamente

a parede branca do quarto, balbuciou alguma coisa que não entendi.

Page 26: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

26

- Fala Leal. Por que você matou esse cara? Quem era ele?

- Alícia, eu... – as palavras iam trancando na garganta de Leal – eu

estava devendo um dinheiro para ele.

- Como assim? Por que você não me pediu? Ainda mais agora que

tenho dois empregos! – um grito fino saiu da minha garganta. As lágrimas

iam escorrendo sem que eu pudesse segurar. Sentindo meu corpo

amolecer, me dobrei sobre as pernas e chorei.

–Você tirou a vida de um homem. – minha voz saía entre soluços.

- Eu estava devendo um dinheiro que não conseguiria pagar. Ele era

agiota e me emprestou cinquenta mil reais, só que os juros começaram a

aumentar muito, eu já estava devendo mais de cem mil. Juntando o meu

emprego e o teu, eu jamais conseguiria pagar! Eu não queria ter feito isso,

mas ele me ameaçou, descobriu onde a gente morava. Ameaçou até

matar toda a família. Ele entrou escondido aqui em casa, vi a faca na

cintura dele e percebi que dessa vez era sério. Era eu ou ele.

-Onde eu estava enquanto isso? – perguntei, assustada.

-Aqui no quarto. A gente estava aqui, deitados na cama,

conversando, lembra?

Girei o pescoço lentamente, fixando o olhar na parede branca. Olhei para

o chão. O sangue continuava escorrendo perto dos meus pés.

-Não lembro. Eu não estava aqui.

-Sim, você estava. – ele insistiu. – Mas foi tudo tão rápido. Ele entrou

sem avisar, você levantou da cama e se encostou na parede, muito

assustada. Ele me ameaçou com a faca. Só que desta vez fui mais rápido,

Page 27: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

27

peguei a arma que estava escondida no guarda-roupa e atirei. Não era

para matar, era só para assustar. Agora não temos o que fazer. Precisamos

esconder o corpo.

-Tem muito sangue nesse quarto. O quarto está todo vermelho. -

ouvia a minha própria voz retumbar entre aquelas paredes, que me

pareciam vermelho gritante. Tudo em mim gritava. Minha garganta estava

seca e eu precisava engolir o choro, o medo e aquela cor vermelha

horrível.

- Calma, não tem. A gente precisa tirar ele daqui. – Leal respondeu,

tentando segurar meus braços, que se agitavam.

Ficou tudo preto. O Leal está no quarto? Onde estou? Cadê o

corpo?

Acordei. Esfreguei os olhos. Estava na parte inferior da casa assistindo

televisão. Vejo meus pés com meias brancas descansando sobre um

banquinho. Olho para o lado e minha mãe está lendo uma revista.

-Oi mãe, aconteceu alguma coisa?

- Não, a gente estava aqui assistindo a novela e você caiu no sono. –

ela foi dizendo lentamente.

-Ah está bem. Cadê o Leal? – meu corpo deu um impulso para

frente. Sentei no sofá, firmando os pés no chão.

- O Leal? Não sei, deve estar trabalhando. – ela respondia

lentamente, sem tirar os olhos da revista.

Page 28: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

28

-Trabalhando? – levantei, afastei a cortina da janela da frente e

avistei a rua, onde os carros passavam depressa. – Hoje é dia de semana?

Que dia é hoje?

- Terça-feira, filha.

- Terça? Eu deveria estar trabalhando. Não avisei o chefe que não

iria trabalhar.

- Calma, já avisei ele. – ela disse, com a voz tranquila, enquanto

continuava segurando a revista, entre as mãos. Puxei a revista das mãos

dela.

- Mãe, por que você não me acordou? Por que não fui trabalhar? –

fui atropelando as palavras, formando frases antes que minha própria

mente conseguisse formular as perguntas.

- É que – ela fez uma pausa, ajeitando os óculos – filha, você não

tem se sentido muito bem. Na última semana você tem dormido quase

todo o dia e acorda gritando, acho que são pesadelos.

- Dormindo bastante? Pesadelos? – levei a mão até a boca, fitei o

teto. Não entendia o que ela estava falando.

- Em cima da geladeira estão teus remédios. São três. Assim que te

sentires mal, e tiveres pensamentos ruins podes tomar. Mas observa a

ordem e os horários, estão todos marcados direitinho.

- Não entendo. Você está supondo que estou ficando louca? Esses

remédios são para loucura? – minha voz oscilava. Meu corpo tremia e eu

estava com raiva da minha mãe.

Page 29: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

29

Subi até meu quarto. Entrei. As paredes continuavam brancas e a

cama, no meio do quarto, imóvel. A grande janela da sacada estava

aberta. Olhei os carros passando. Devia ser três horas da tarde. O Sol

estava alto. Fitei o quarto atentamente. Olhei embaixo da cama. Onde

estava o corpo? Abri o guarda-roupa marrom que se estendia até o teto.

Senti o cheiro de roupas perfumadas, cuidadosamente dobradas. Não

encontrei armas, nem facas.

Deitei. O quarto começou a ficar todo vermelho. O chão e as

paredes estavam vermelhos. Ouvi meus gritos para dentro, mas dessa vez

arranhavam minhas entranhas. Leal chegou e me segurou pelos braços,

me deitou na cama.

-De novo, não, Alícia. Não, já vai passar.- ele gritava. Vi minha mãe

com um copo de água e um comprimido amarelo. Antes que eu pudesse

continuar gritando, engoli o remédio e a água. E tudo ficou escuro.

O despertador tocou. Olhei para o lado.

-Leal, o que está acontecendo? Por que não tenho ido trabalhar? E

aquele remédio que minha mãe me deu ontem? – falei com voz tranquila,

sentindo minha testa enrugar.

- Não tem nada acontecendo, Alícia. – Leal falava com tom de

firmeza.

-Não consigo lembrar de nada nos últimos dias. Não sei o que

aconteceu ontem. Mas fui visitar a Dorinha e o seu Alberto disse que ela

não podia me ver, estava ocupada. Ele me olhou com uma cara estranha.

– enquanto eu falava, percebia as sobrancelhas de Leal se erguendo

lentamente. A testa se enrugava. A boca, entreaberta, ensaiava palavras.

Page 30: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

30

- Não é para você sair de casa. Por que você saiu de casa? – ele me

segurou forte. Depressa me soltei, empurrei os lençóis e levantei da cama.

- Exijo que você me explique o que está acontecendo. – gritei com

ele.

- Não sei do que você está falando. Pelo que sua mãe me disse,

você anda estressada e pediu afastamento do trabalho para se tratar,

apenas isso. – o tom de voz foi baixando. Senti que ele tentava me

acalmar, mas tinha algo estranho acontecendo. – Agora preciso trabalhar.

Deitei na cama enquanto ele vestia as calças e a camisa. Senti

muito sono, fechei os olhos.

Eu estava deitada dentro de um guarda-roupa quando acordei.

Escutei alguns passos e ruídos vindos da sala. Ouvia a voz da minha mãe,

da minha tia e do Leal. Eles falavam afobados, ao mesmo tempo.

- Ela enlouqueceu mesmo, Leal. Não sei o que fazer com ela. – disse

minha mãe.

- Temos que internar ela. E depois chamar a polícia. – minha tia,

Carolina, afirmava com ênfase.

- Mas se ela for presa vai pirar ainda mais. – Leal, em tom sério.

-Já descobrimos que foi ela que matou aquele homem. Por mais que

seja minha filha, precisa pagar por isso. – Minha mãe tinha um tom de voz

frio.

Fiquei tanto tempo em silêncio fitando a prateleira marrom do

guarda-roupa que perdi a noção de tempo. Talvez fosse dia de semana,

talvez fosse feriado, talvez noite ou dia. Saí do roupeiro do quarto da minha

Page 31: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

31

mãe e caminhei até o corredor. Era fim de tarde e a casa começava a

escurecer. Enxerguei muitas gotas de sangue no chão, uma atrás da outra

ao longo de todo o corredor. Corri até o banheiro para buscar um pano e

comecei a esfregar o chão. Eram muitas gotas vermelhas, tinha muito

sangue impregnado naquela casa. Esfreguei incontáveis lajotas brancas.

Quando me levantei e pude esticar o corpo, voltei os olhos para o início do

corredor, e as manchas continuavam vermelhas, muito vermelhas, e fui

esfregando e limpando. Minha tia, Carolina, apareceu.

- O que está fazendo, Alícia? – ela parou com as mãos na cintura.

- Tia, tem manchas de sangue, tem muito sangue nesse chão. Essa

casa está vermelha. – minha voz ia aumentando sem que eu pudesse

controlar.

- Não tem nada aqui, Alícia. - Carolina gritava comigo. E quanto

mais ela gritava, mais eu esfregava o chão. Leal e minha mãe

apareceram querendo saber o que estava acontecendo. Eu chorava e

gritava palavras que nem eu conseguia compreender.

- A casa está vermelha. O chão está sujo de sangue. Aquele homem

morreu.

Leal e minha mãe me fitavam, sérios, sem nenhuma reação. Carolina

parou de gritar. Minha voz ecoava sozinha pelas paredes vermelhas da

casa.

- Alícia, não tem sangue nenhum. Não tem nada vermelho nessa

casa. – Leal estava bravo. E tentava me levantar do chão. – Eles devem

estar chegando.- ele disse, olhando para minha mãe.

Page 32: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

32

- Eles quem? – eu quis saber. Meu olhar corria do Leal para minha

mãe, e dela para minha tia.

A campainha tocou. Minha mãe e o Leal me levantaram do chão.

Larguei o pano. Minhas mãos estavam sujas de sangue. Vermelho, muito

vermelho. Policiais vieram em minha direção. Eu não entendia o que

estava acontecendo. Três homens me seguraram e me algemaram.

Enquanto eles me arrastavam olhei pra trás. Leal, Marina e Carolina não

expressavam absolutamente nenhuma emoção. Apenas quis gritar que

Leal matou um homem, mas minha voz não saía, era um grito abafado pra

dentro. Leal, parado entre minha mãe e minha tia, envolveu-as em um

abraço. Entrei na viatura da polícia e bati tão forte com as mãos contra os

vidros que o sangue vermelho, muito vermelho, escorria quente por entre

meus dedos. Antes que o carro desse partida, avistei os três na sacada da

casa. Eles cantavam e dançavam. Seus corpos se movimentavam de um

lado a outro. De longe pude ler as últimas palavras que viriam deles: “Eu

vou viver dez, eu vou viver cem, eu vou viver mil, eu vou viver sem vocꔹ.

Agora escrevo de um lugar gelado, com tetos altos e janelas

pequenas. Minhas mãos começaram a cicatrizar. E o vermelho continua

aparecendo em todos os lugares. Aquela música toca todos os dias dentro

da minha cabeça. Leal matou um cara. Vejo muito sangue. Vermelho.

1 – Música “Não enche”, de Caetano Veloso.

GIULIANA BRUNI é jornalista, amante da escrita criativa e do jornalismo literário.

Passeia entre a realidade e a ficção. Apaixonada por histórias, já produziu

documentários, poemas e contos. Descobre, diariamente, que o contato direto

com pessoas é que move o universo do imaginário. Autora do blog Meu Mundo e

as Palavras e integrante do projeto Pessoas de Bagé. |

[email protected]

Page 33: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

33

FERNANDO RAMOS | São Paulo, SP.

KARDEC versus SADE

Page 34: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

34

Morte e vida coexistem

tangenciais.

Morte domínio do Nada.

Vida morada do Todo.

Planos que resvalam

quase atritos tântricos.

Se o Universo pode circunavegar

morredouros nascituros implodir

antimatéria jorrar luz ao fundo

do buraco negro também poderá

humano pó estelar emergir alfombras

ressurgir viscoso olvidado e pequeno

da seiva volátil de Eros imantar

infinitas partículas sem massa

até que o peso do vento eleve

cordilheiras e procelas e sinapses

eletrolíticas de bactérias marinhas

per fluam a inteligência dos mares

e os arcabouços da carne bebam

consciência da nave onde o Nada

volve o corpo à finitude big bang

explode gozo uterino do cosmo

Caos de éter fecundo zigoto de

asteroides do limbo onde a fome

dorme carmas morrer sonambular

por vazios corredores do sonho

nascer ejacular sair do coma furar

Page 35: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

35

redoma amniótica do Nada afogar

em oxigênio boro metano

cuspir o sal do oceano interior

saltar da doce letargia fetal à surda

dissonância umbilical à indissociável

estranheza das mãos que levadas a

cobrir tímpanos para calar maquinária

em desmundo ora preferem introjetar

relógio paranoico cardiovascular sou

mesma paúra de Allan Poe retrofuga

abissal de Cousteau tanatofobia clichê

que gritava há trinta e dois mil anos

nas paredes da caverna de Chauvet.

[Até que chegue o último metrô

esporrando luz no hímen da noite]

FERNANDO RAMOS nasceu em São Pauloem 1984. Desde 2000 publica poemas e

contos, tendo textos na Revista Cult, Zunái, Germina Literatura, cadernos culturais

e antologias. Compositor, assina 150 musicas, tendo parcerias com grandes

nomes da MPB. Publicou ensaios no livro Os Filmes Que Sonhamos (Lume) e nos

DVDs da Coleção Sergio Ricardo (Lume Filmes). Escreveu e dirigiu o longa

metragem documental A Praça Pede Passagem sobre a urgência da retomada

dos espaços públicos e o direito à cidade - estreia em festivais nesse ano.

Escreveu 4 roteiros de longas ficcionais a serem dirigidos a partir de 2016.

Publicará pela Editora Patuá seu primeiro romance: Egonia - 9 mm de Prosa. |

[email protected]

Page 36: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

36

ABÍLIO PACHECO | Marabá, PA.

MEDITAÇÃO AO TOCANTINS

Page 37: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

37

debruço-me em sua amurada

alto de álcool, ébrio de versos

memórias das tardes quentes

de olhos arenosos e rubros

garganta seca de gorjeios

caminhada pausada à borda

pendente na ponta dos dedos

a lata de líquido loiro

meu amor não me ensinou

a ser simples como um barquinho

deslizando nas águas dos rios

que bem banham marabá

***

ergo-me cotovelos doridos

olhos secos e rubis de luzes

laranjadas acinzentantes

do ocaso espelhado nas águas

a voz não vale o verso olvido

pouso dedos sob o queixo

no pomo que deglute goles

meu amor quis me fazer crer

na lição leve dos batelões

que cortam a paisagem

Page 38: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

38

de fim de tarde em marabá

***

caminho em molejos gauches

como a vida fosse toda ela

essa paisagem, essa passagem

de vesperal fenecendo e sigo

pausados passos à borda

em clima de huzun, de lennui

curado/ampliado por lábios

beijando a borda gelada

de metal de pouco peso

meu amor não viu em mim

por paralelo a certeza

dos barcos e dos batelões

nessas águas a marulhar

***

baixo a bauxita lixiviada

o braço estende-se penso

a goela regada à cevada

a voz lubrificada e nova

para o verso que não vem

mas fica-me o aroma de malte

Page 39: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

39

e de lúpulo em levedura

canto de ave aninhando

meu amor não me viu símile

de certeza singela e chã

em remos e quilhas seguras

nessas águas tocantinas

***

balanço os braços brandos

o corpo tonto e torto

neste caminhar de olhos,

ouvidos e boca de versos

palavras, sons e pausas

fito o ocaso desrubrando

a tarde deixada às costas

e a lâmina flúvia-chã aplainada

em calmaria de criação

embarcações dispersas e ausentes

viram versos livres, vorazes

e já não há voz a pedir simpleza

se sou todo fogo, água e ar

***

Page 40: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

40

ouço o leito lento liso

ausente de banzos e banzeiros

refletindo pássaros silentes

em pontos e riscos pelo céu

de tetro lusco-fusco difuso

e de meus descompassos

de oblíquos passos líricos

cesuras, acentos e pausas

em leve entorpecimento

ao cais adernos de retorno

ressoam cadências desiguais

motivos ditados aos versos

a emergirem de vãos olvidos

***

esgoto todas as latinhas

de amarga água aloirada

preenchido a ponto de

pouca noção me restar

(feito fiapo de fita fina)

da tarde clara e vaga

e meu brado se faz aroma

de fruta madura vinhada

de doce azedura apurado

Page 41: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

41

o verso abole o simplório,

o singelo agir, o sossego

inaprendido na lâmina dágua

a permanecer agora opaca

***

procuro porto e paragem

um locus de líteros litros

repouso a pernas e braços

costas, mãos e pensamento

de onde veja a noite vindo

desarrelio a olhos irritados

com seu manto estendido

de nítidos, claros lembrares

atracação à borda das águas

lentas ledas leves líricas

…………………….

e sou todo linguagem

ABÍLIO PACHECO é professor universitário de literatura. Autor do romance Em

Despropósito (mixórdia) (Literacidade-2013), do livro de poemas Canto Peregrino

a Jerusalém celeste (Literacidade-2013). Seu primeiro destaque literário foi aos 17

anos, quando obteve o primeiro lugar nacional num concurso organizado pela

Casa do Poeta Brasileiro de Praia Grande-SP. Atualmente cursa o doutorado em

Literatura (THL-UNICAMP/LAI-FU-Berlin/DAAD) e é Assistente Editorial (freelancer). |

[email protected]

Page 42: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

42

ALEXANDRA LOPES DA CUNHA | Porto Alegre, RS.

MINERAL

Page 43: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

43

Talvez, talvez. Nenhuma certeza. Evade-se, invado-o: intrometo-me em sua

vida, imponho minha presença. Encolhe-se, constrangido.

Mas não irritado. Covarde, encolhe-se. Molusco em sua concha. Faz de

conta que me sorri, encabulado. Olha para os lados, receoso que o vejam

ao meu lado, pretexta compromissos. Se pergunto o que tem, responde

que nada, trabalho, o de sempre. Despede-se, apressado. Promete me

procurar. Eu creio.

Covarde, odeio-o. Durante dias e noites, sonâmbula, eu vivo a angústia da

chamada redentora. Como as unhas, as carnes dos dedos. Levo para a

cama as mãos vazias, a cabeça cheia de sonhos. As mãos não sossegam

percorrem-me o corpo, representam outro par que tão bem me conhece.

Ganindo sozinha, finjo que o tenho. Fingida, enceno a pantomima de

prazer compartilhado. Odeio-me, adoro-o. Detesto-o, lamento-me,

gargalho e choro. Saciada, desolada, desfaleço até o começo da manhã

seguinte.

Manhãs, tardes e noites se seguem até que as deixo de contar. Em um dia

comum, de céu lavado, desperto. Lavo o rosto, sigo a rotina, autômata,

quase feliz. Então, ele chama, me quer. Exulto, estúpida. Preparo-me:

perfumes e sedas. Recebo-o, solícita. Adoro-o outra vez. Ama-me talvez?

Talvez, talvez, evade-se uma vez mais. É tarde, me diz, é tarde e se vai,

vestindo à porta casaco e as botas. Desejo que volte, pergunto se sim.

Sorri amarelo, promete ligar.

Um banho, a roupa, um pente, os cabelos. Vestida e limpa, penteada,

correta, a porta fechada, caminho à rua, procuro as calçadas.

Os pés nos sapatos tropeçam sozinhos. Os olhos no chão perscrutam

trapaças. Os passos, cuidados, o medo da queda. Os braços envolvem

meu corpo sozinho.

Page 44: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

44

No meio da quadra, encontro uma pedra. Pequena, esférica, polida do

tempo, dos chutes, das chuvas, de rolar pelo mundo.

Fascina-me. Abaixo-me, tomo-a entre as mãos. Aliso-a, afago-a. Uma

pedra comum que ninguém repara. Tive-lhe pena, ternura: um nada,

sozinha.

Levo-a à boca. Não sabe, insossa. Brinco com ela sobre a língua. Faço

com que bata em meus dentes. Engulo-a por fim.

Sinto seu peso em meu estômago. Eu, menos sozinha.

ALEXANDRA LOPES DA CUNHA, natural de Brasília, escrevo e leciona. Tem dois

livros publicados: Amor e outros desastres e Vermelho-Goiaba, ambos de contos.

Com o último, ganhou o primeiro prêmio na categoria autor-estreante no

concurso IEL 60 anos, patrocinado pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande

do Sul. Recebeu menções honrosas em concursos nacionais e internacionais. Seu

blog, Cinderela Descaída, no qual escreve ensaios e crônicas, já ultrapassou a

marca de duzentos e cinquenta mil acessos. | [email protected]

Page 45: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

45

ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | Porto Alegre, RS.

MÍSSIL-FÓSSIL (2): A CONFISSÃO DO

QUE NÃO SABE

Page 46: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

46

- Entra, pode entrar, entra aí.

Isso foi dito pelo homem com um cãozinho, manso, olhando-o profundamente.

Eram olhos de um azul vivo de quase esquecimento, típico das pessoas daquele

canto do mundo. Ele entra mesmo receoso, depois de observar a fachada de

tijolos vermelhos argilosos do antigo míssil-fóssil. Começa a escutar um canto

gregoriano ao abrir a porta de madeira, entrando em um corredor sem fim, sem

direção, buraco negro dos corpúsculos da Criação. Tão frio e assustador como o

instante em que uma pessoa deixa de respirar. Seus passos levam-no a uma

câmara de onde sai uma luz amarelada das rosáceas e ao fundo ele observa o

famoso quadro de Edvard Munch, expressando aquele famoso grito ininterrupto.

A porta fecha atrás de si, num estrondo. “É, o que vou encontrar aqui dentro?”-

Pensa no cantinho de seu temor curiosíssimo.

- Bem-vindo à nossa câmara cibernética de mil aninhos! – Assim foi recebido com

a simplicidade eufórica de um homem idoso, barbudo, chapéu e paletós negros,

olhando através de seus óculos escuros, estilo John Lennon, e tão eufórico quanto

um adolescente saindo de férias. – Senta aí, muchacho.

Fez o que seu interlocutor indicou, sentando sobre um desconfortável banco de

madeira, já cansado de esperar sua namorada sem dar notícias. Ele sente como

está frio naquele lugar. Contudo, uma espécie de conforto vinha das vinte vozes

do coral, propiciando o descolamento daquela velha lágrima e fazendo seu rosto

entrar em conformidade com sua profunda solidão. Paralisado, ainda sem saber

onde por as mãos, dispensou por um segundo suas incertezas. Nota um monitor

gigantesco ao lado de uma réplica de O Grito, de Edvard Munch. “Droga!”-

Pensa isso quando nota aquele homem alto, sentando ao seu lado esquerdo e

despejando ladainhas.

- Está vendo – aponta para um dígito no enorme monitor –, o euro está valendo $

3,4891... é impraticável viajar assim! Você não se pergunta por que não

arredondam esses 91 para que o feche 3,49? Essa crise econômica se estende

para justamente ficarmos na pátria amada e odiá-la ainda mais, crendo que as

Page 47: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

47

políticas econômicas igualitárias se tornam caudilhismo e descambam em

comunismo latino-americano. Quem não gostaria de por as mãos nos meios de

produção? É claro, porém, como dispensar as análises de Thomas Piketty sobre

como as elites condensam suas fortunas? (repentino alarme de ambulância

inunda o ambiente com luzes vermelhas piscando de modo frenético).

Contudo, nada do que o velho disse o deixara impressionado. Afinal, ele está

esperando por ela, como combinado, dentro do estranho e misterioso míssil-fóssil.

Ele começa a pensar nas proporções daquela tela computadorizada, montada

numa espécie de altar ecumênico com mais de cinquenta metros de altura.

“Como alguém teria feito isso com tanta exatidão há mil anos?” Mas as luzes de

um amarelo queimado gótico, continuavam iluminando o coro em sua liturgia

despretensiosa. A tessitura embalava o grave e o agudo em polifonias modais,

dissonantes e emotivas. Esse mesmo telão começa a passar o vídeo da mulher

que o acompanhava poucos minutos antes. Observava sua namorada: seus

quadris, suas pernas, o olhar vivo de um rosto esbranquiçado o suficiente para

desaparecer nas fotos digitais de péssima qualidade. Esse fato, o lembrou do

quanto o Sol a fazia ficar de mau humor... Mas foi lembrar-se de seu sorriso e de

seu perfume que o motivaram diante da tela: “Sim, é ela!”. De repente as

silhuetas femininas foram transformadas na imagem de uma raposa (o alarme de

ambulância termina).

- Está vendo este animal aí? – disse o homem à esquerda. – Os egípcios eram

zooantropomórficos: um ser humano reencarnava em um animal no futuro.

Adiantaram o espiritismo em quatro mil anos. Fantasmas ambulantes! Não

podemos esquecer que está interdita na Torá qualquer comunicação com o

mundo dos mortos... pena os cristãos terem levado tão ao pé da letra esse

mandamento, teriam queimado menos pessoas durante a Inquisição.

- Eu sinto falta dela – o jovem revela comovido –, pois quando abrimos os olhos

decidimos que queríamos voltar a fechá-los...

Page 48: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

48

- Segure-se aí, muchacho! – Ao dizer isso o banco começa a levantar,

transportando os dois até a abóbada central da nave, a trinta metros do solo. Ali

o caleidoscópio cintilante brilhava intenso. A luz que provinha do vitral era

realmente reconfortante, pois essa dimensão onírica do passado iluminado de

suas memórias revelou sua entrega a uma certa paixonite aguda e isso acontece

com alguns homens diante da fragilidade feminina.

- Olhe agora, daqui já podes ver a dimensão de nossas instalações: temos uma

sala especializada em engenharia genética reencarnacionista; outra em

transcriação de línguas alienígenas; outra para desprogramar o cérebro de

jogadores de vídeo-game compulsivos e fãs do seriado Friends. Estamos nesse

exato momento com nossas pesquisas focadas na descoberta de organismos

vivos que desenvolvam apetite por Urânio enriquecido, uma vez que o mundo

acabou em uma guerra nuclear, há exatos cinco minutos.

- O quê? Mas eu só passei por aquela porta! Como isso aconteceu?

- Não centre os problemas do mundo em você, meu caro. Já ouvi falar na carta

de Albert Pike? A Rússia se aliou ao Estado Islâmico e, como era previsto,

rivalizaram com o bloco econômico da União Europeia e dos Estados Unidos para

impedirem a extinção de Israel. O fato de você chegar é apenas uma mera

coincidência. Leia os jornais!

- E agora? Como vai ser?

- Boa pergunta: um milhão de dólares se você me responder! Se bem que um

milhão de dólares não valem absolutamente mais nada. Sinta-se contente

porque as nossas paredes estão revestidas com chumbo grosso. Só lamento os

Maias terem errado no cálculo do calendário, mas eu diria que dois anos

equivalem a meros segundos diante da história do universo, uma vez que

supervalorizamos a exposição do tempo dentro de nós. Então, bem- vindo à era

pós-apocalíptica! – O homem pega duas taças e o estoura uma champagne. –

Vamos brindar!

Page 49: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

49

- Não viu que eu perdi tudo? Perdi a mulher que eu amava!

- Perdeu? Será que você procurou bem em seu coração? Não se deixou levar por

uma satisfação sexual das mais efêmeras? Não se esqueça: assim como o

capitalismo nos incita a comprar, o sexo e o chocolate também liberam tanta

serotonina quanto o THC da cannabis sativa pode proporcionar...

- Olhe, eu não sou hippie!

- Perdoe meus modos. Eu não equaciono bem o funk carioca com a erudição da

escuta. Deve ser um dos problemas teratogênicos da minha má formação

devida à alta exposição de televisão durante a infância. Mas vencerei os meus

traumas para poder te escutar.

- Espere! Se o mundo acabou e ouvimos canto gregoriano ali embaixo, se

estamos sozinhos e eu terei de encarar essa barra existencial sem ela, fica nítido

que toda a beleza e a poesia que você me propõe perderam o sentido também.

Ela carregava nosso filho na barriga! Essa alegria e expectativa se foram! Não tem

volta e estamos tão alto que eu não pensaria duas vezes em pular daqui e

terminar tudo...

- Tudo o quê? O mundo acabou, meu rapaz.

- Vê como até isso é difícil de entender?

- Dê tempo ao tempo! Olhe, tome essa espumante comigo. Já observou O Grito,

de Munch, com atenção? Reparou que ele tapa os ouvidos para se proteger do

que vem de fora? É como se a boca aberta representasse sua onipotência

narcísica.

- Belo interpretaço.

- Além do mais, enquanto falo, estou dando tempo para que tu elabores esta

fase ruim (segundo a perspectiva dos jogadores de vídeo-game compulsivos).

Nada contra a possibilidade do teu suicídio ter sido efetivado se ao menos tivesse

Page 50: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

50

acontecido há dez minutos. Entretanto, examinando friamente a nossa atual

situação, se você se suicidar eu provavelmente ficarei sozinho aqui com esse

coro, levando-me, impreterivelmente, a me sentir um inválido e ao consequente

fim da humanidade razoavelmente pensante (não estou levando em

consideração o otimismo de que haja outra nave cheia de experts fora do

planeta, mas espero que a verba do Governo Federal para o desenvolvimento

de pesquisa de ponta não tenha chegado com atraso de 515 anos como foi com

a nossa...). Só resta eu te fazer um convite para a inauguração do asteróide B-

612! Sim, aquele do Pequeno Príncipe! Afinal de contas, vamos entender melhor o

que significa “Tu te tornas responsável por aquele que cativas” (sempre me

perguntei se o verbo apprivoiser não possui um sentido negativo, tal como

submeter alguém a uma vontade alheia).

- Pois é, pelo visto não tenho grandes escolhas... – pausa dramática para um gole

amargo de lágrima contida junto à doçura do espumante moscatel.

- Escolhas? Você ainda está preocupado com elas? Olhe, temos a liberdade de

fazer tudo, pensar tudo: não há chefia de mau humor no final do expediente; não

tem políticos hipócritas; nem engarrafamento de duas horas. Não tem sogra!

Sublime! A humanidade começa agora. Olhe, como você acha que sua

namorada reencarnou em uma raposa? Porque estamos repletos de animais

aqui! Isso sem falar no material genético da torcida do Flamengo, da Pâmela

Anderson e do Albert Einstein em nossos laboratórios!

- Pâmela Anderson fez filmes pornôs e Einstein tinha dislexia...

- Nossa humanidade pode lidar com as dificuldades de cada um sem moralismo!

Mais do que gerar gente diferente, vamos cuidar para que ninguém se destrua.

Teremos gente ruim como sempre... Mas tentaremos mais uma vez! Podemos

encontrar nas pessoas os mesmos traços que há poucos minutos estavam

exigindo que a sua decisão fosse o suicídio.

Page 51: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

51

- Olha, ao entrar aqui eu não sabia que ela já tinha ido embora e agora sei que

ela não voltará mais. Como pode um instante trancar todo o resto de decisões

que tornar-se-ão futuro? Como nossas simples questões se resolvem assim? O que

você fala parece ser a garantia do futuro, escrito em uma língua programada e

consolidada em uma realidade de puro empirismo, testada e aprovada pelo

INMETRO. E onde está a capacidade de resolução de problemas fora desse útero

eletrônico? Certamente, você não previu isso na sua bola de cristal: o que não

conseguiremos lidar, o que não temos capacidade para escutar, sejam os

problemas decorrentes das bactérias que assimilam Césio-137, ou canto das

baleias ou os decibéis de uma raposa. E mais, pode haver tudo na sua nave, mas

até agora não sei o seu nome.

- Ah! Estive tão empolgado com todas essas coisas que não tive cabeça para ser

educado, perdão. Eu me chamo Noé.

- Por que não estou surpreso em saber disso? Afinal é um nome, ou melhor, a

forma nominal de um verbo. Esse tipo de pergunta é meio básico, não é mesmo?

Sinto o quanto estão faltando ações em nossa conversa.

- Noé significa Aquele que descansa, em hebraico. Mas me diga quais ações

você quer realmente fazer? – Despertando a curiosidade em seu interlocutor.

- Sim, era de se esperar muito descanso para você e sua ONG pós-apocalíptica.

Mas eu não quero descanso! Quero continuar a me perguntar, quero fazer a

pergunta que o sono embalou até agora, o que enrubescia de pudor o olhar, o

que o medo mantinha trancado e o que meu misterioso desejo fez chegar até os

olhos dela como resultado das minhas sinceras idiossincrasias.

- Acredito que o bom resultado da sua vida poderia ter sido seu filho – O rapaz é

invadido de uma sincera e determinada tristeza, baixa os olhos até o chão,

enquanto os cantores gregorianos mudavam de canção em suas partituras. – Isso

só reforça o quanto você tem amor-próprio, uma qualidade importante para

poder gostar de outra pessoa.

Page 52: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

52

- Mas talvez não seja o suficiente para eu gostar verdadeiramente de mim!

- Se você fosse uma pessoa com o ego grande, inflamaria seus músculos

também, caindo de vez na cultura ostentatória da velha elite brasileira: uísque,

Red Bull e um Camaro amarelo. Depois, usaria alguns esteróides lipossolúveis e

teria litros de pus nos seus bíceps. Lamentável... Mas isso não aconteceria com o

tipo de pessoa que você é, pois pelo jeito você tem cara de quem curte

expressionismo alemão. A humildade costuma despertar a ira dos vaidosos e foi

assim o fim do nosso mundinho. Ah! Isso me lembrou uma coisa! – Não somente o

banco começou a subir mais alto, como toda a estrutura do térreo se deslocou e

foi se acoplando de modo ao altar central da nave mostrar-se como uma torre

de controle, comandada por um joystick de vídeo game nas mãos do homem

barbudo. – Pronto! Podemos partir, muchacho?

- Sabe, não consigo mais fechar os olhos e não vou pedir um Rivotril mesmo

sendo tentador. A vida toda sempre quis ser pintor... Afinal de contas, não tenho

útero e precisarei parir coisas novas, já que estou em dívida com uma digna

atividade sublimatória. Então, vamos lá: alfa, ômega, beta centauros, o asteróide

B-612, mais línguas alienígenas para decifrar e um pouco de tristeza, mas apesar

de tudo isso... você não teria outra garrafa de champagne por aí?

ESTEVAN KETZER é psicólogo clínico. Doutorando em Letras pela PUCRS. Pesquisa a

relação entre poesia, filosofia e psicanálise na obra do poeta Paul Celan. Além

de ensaísta, é poeta.

Page 53: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

53

MARIA JOÃO VAZ | VILA FLOR, Portugal.

CATARSE

Page 54: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

54

Tantas vezes a razão ignorou

o instinto que, em silêncio, floresceu.

Tantas vezes calamos os sentidos

em nome de uma razão que cresceu

e se perdeu!

Quantas vezes fomos felizes

na penumbra do que todas as razões proíbem?

Como sorríamos, sorrimos!

E o que importam as mil e uma razões,

se os sorrisos respondem

e calam

todas as questões?!

MARIA JOÃO VAZ é licenciada, mestre e doutoranda em ciências jurídico-

criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e aluna de

intercâmbio na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Escreve

regularmente no seu blog, “the philosophy of little nothings” e é colunista do blog

luso-brasileiro de literatura, “letras in.verso e re.verso”. Publicou um poema na

Antologia de Poetas Portugueses Contemporâneos da Chiado Editora, “Entre o

sono e o sonho” e ganhou o prémio de poesia Fernanda de Castro, atribuído pela

Confraria luso-brasileira, em Maio deste ano. | [email protected]

Page 55: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

55

PARCEIROS:

Page 56: Revista subversa vol 3 nº7 NOV.2015

56

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]


Recommended