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Ritual Na Antropologia

Date post: 20-Jul-2016
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL RAFAEL LEAL MATOS O “RITUAL” NA ANTROPOLOGIA: UM OLHAR A PARTIR DOS TEXTOS DA DISCIPLINA “TEORIA ANTROPOLÓGICA CLÁSSICA” Artigo escrito para obtenção da nota final da disciplina Teoria Antropológica Clássica (PPGAS/UFRN), ministrada pela professora
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

RAFAEL LEAL MATOS

O “RITUAL” NA ANTROPOLOGIA: UM OLHAR A PARTIR DOS TEXTOS

DA DISCIPLINA “TEORIA ANTROPOLÓGICA CLÁSSICA”

Julho de 2014

Natal – RN

Artigo escrito para obtenção da nota final da disciplina Teoria Antropológica Clássica (PPGAS/UFRN), ministrada pela professora Dra. Juliana Melo.

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INTRODUÇÃO

O estudo práticas rituais é um tema recorrente na Antropologia. Desde as

primeiras e clássicas investidas da disciplina eventos ritualizados chamam a atenção de

pesquisadores enquanto um tema importante e revelador de aspectos socioculturais de

sociedades distantes (temporal e espacialmente), como é o caso dos clássicos: O Ramo

de Ouro de James Frazer (1982[1915]), As Formas Elementares da Vida Religiosa de

Émile Durkheim (0000[1912]) e o Ensaio sobre a Dádiva de Marcel Mauss

(1975[1923-24]).

Como este assunto foi constituído enquanto tal? Ou melhor, como é que os ritos

foram sendo estabelecidos enquanto uma questão a ser pensada e observada a ponto de

se tornar parte importante da reflexão teórica e prática da Antropologia? Obviamente,

não pretendo com esse texto dar uma resposta a essas questões de maneira definitiva.

Quero apenas, lançando mão de textos da disciplina “Teoria Antropológica Clássica”,

tentar pensar essas questões e elaborar algumas considerações acerca do estudo de

eventos rituais na Antropologia.

Sendo assim, pretendo assinalar algumas continuidades e descontinuidades dessa

temática no trabalho de certos autores clássicos, sinalizando quais as leituras feitas por

eles em relação à temática em questão. Neste caso, além dos textos citados mais acima,

serão discutidos também os seguintes textos ministrados na disciplina: Análise de uma

Situação Social na Zululândia Moderna de Max Gluckman (2010), Liminaridade e

Communitas de Victor Turner (0000) e O Feiticeiro e sua Magia e a Eficácia Simbólica

de Lévi-Strauss (1975). Além desses, outros textos não usados na disciplina serão

utilizados, devido à importância dos mesmos para a temática em questão, são eles: Os

Ritos de Passagem de Van Gennep (1978), Rituais de Rebelião no Sudeste da África de

Max Gluckman (1974), Mukanda: O Rito de Circuncisão e Dramas, Campos e

Metáforas ambos de Victor Turner, e, por fim, O Dito e o Feito de Mariza Peirano

(2002) – este último usado apenas como chave interpretativa em um determinado

momento, por ser uma leitura contemporânea sobre os clássicos.

A DICOTOMIA MITO VERSUS RITO

Ao tentar traçar as continuidades e descontinuidades do ritual na Antropologia,

fica difícil não obedecer uma certa ordem cronológica. Começo falando dos primórdios

da disciplina, com um importante representante da escola evolucionista: James Frazer.

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No primeiro capítulo do Ramo de Ouro, intitulado O Rei do Bosque, Frazer (1982)

descreve o mito do Rei-Sacerdote que guarda o Bosque de Nemi, santuário da Deusa

Diana. Para conquistar o sacerdócio o candidato deve comprimir uma sequência ritual

que culmina na morte do seu predecessor (que por sua vez já havia matado o guardião

anterior), mas antes disso o pretenso sacerdote deve arrancar o ramo de ouro da árvore

sagrada do bosque de Nemi.

Havia no bosque sagrado uma certa árvore, em torno da qual, a

qualquer hora do dia e provavelmente até tarde da noite, uma

figura sombria podia ser vista rondando de guarda. Levava na mão

uma espada nua e todo o tempo olhava cautelosamente à volta,

como se esperasse ser atacada a qualquer momento por um

inimigo. Era sacerdote e assassino, e o homem a quem espreitava

iria matá-lo, mais cedo ou mais tarde, para ocupar seu lugar como

sacerdote. Era essa a regra do santuário. O candidato ao ofício

sacerdotal só poderia ascender a ele matando o sacerdote e,

concluído o assassinato, ocupava o posto até chegar a sua vez de

ser morto por alguém mais forte ou mais hábil. É verdade que esse

posto, em que ele se instalava tão precariamente, conferia o título

de rei: mas certamente nenhuma cabeça coroada jamais esteve tão

pouco segura sobre os ombros, ou foi visitada por piores sonhos,

do que a sua. Ano após ano, no verão ou no inverno, com bom ou

mau tempo, o rei do bosque tinha de manter sua solitária vigilância

e, toda vez que se arriscava a um cochilo agitado, fazia-o com

perigo de vida. (FRAZER, 1982, p. 22).

Essa prática ritual do mito em questão é analisada por Frazer (1982) e

comparada com outras práticas e mitos de diferentes lugares e épocas, com o intuito de

compreender o espirito humano através do estudo comparativo de práticas mágico-

religiosas. Apesar de ser um autor datado, no sentido de que se considera hoje o

evolucionismo como uma teoria superada, o autor, preocupado com a unidade do

“espírito humano”, ao analisar os aspectos práticos da magia demonstra a importância

do rito e do mito para a compreensão da realidade. O ritual é tomado por este autor

como uma prática repetitiva e expressiva e como um foco para a compreensão do tão

enfatizado “espírito humano”.

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No caso de Durkheim (2003), em As Formas Elementares da Vida Religiosa, os

ritos são abordados de maneira mais aprofundada e detida. Mas apesar de separar

didaticamente as práticas rituais das crenças simbólicas em sua exposição, aquelas são

subordinadas a estas últimas. Ao focar nas práticas rituais de formas religiosas mais

simples, com o argumento de que estas são mais clarividentes por pertencerem e

exprimirem o real e, portanto, serem menos elaboradas do que as crenças ditas

complexas e mais conceituais, o autor classifica os ritos entre “negativos” e “positivos”

na tentativa de dar significado às crenças.

Não tenho a intenção de tentar [...] uma descrição completa do

culto primitivo. Preocupados antes de tudo em atingir o que há de

mais elementar e fundamental na vida religiosa, não buscaremos

reconstruir no detalhe a multiplicidade, não raro confusa, de todos

os gestos rituais. Mas gostaria através da extrema diversidade das

práticas que o primitivo observa na celebração de seu culto, de

classificar as formas mais gerais de seus ritos, de determinar suas

origens e sua significação, a fim de controlar, se possível, precisar

os resultados que nos conduz a análise das crenças (DURKHEIM,

2003, p. 317).

Na citação acima fica clara a intenção classificatória do autor. Além do mais, é

explicito a subordinação do rito aos aspectos simbólicos, às crenças. Assim, tendo como

eixo principal da obra a oposição entre sagrado e profano, Durkheim (2003) enfatiza o

aspecto metodológico dos ritos: eles são vistos como uma forma de acesso às

representações sociais, por serem determinados por estas. Além disso, o aspecto

funcional do rito é constantemente afirmado pelo autor: os ritos são geradores de

coletividade (unidade), os ritos são vistos também como uma ponte que leva ao sagrado,

na medida em que estes separam as coletividades do mundo profano.

Mauss (1974) fala sobre a política de dádivas em várias sociedades (capitalistas

e não capitalistas). Para este autor, os rituais de troca são formas de comunicação e

maneiras de estabelecer alianças entre indivíduos, grupos e sociedades. Ao longo do

texto, Mauss demostra, apoiado em etnografias de outros, como esses rituais estão

impregnados de noções míticas que norteiam as cerimônias de trocas econômicas

em/entre sociedades diversas do globo. Neste sentido, a vida social pode ser entendida

enquanto um constante dar-receber-retribuir, impregnada por representações sociais

míticas, que dão o plano de fundo das ações de troca. Segundo o próprio autor, “as

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diversas atividades econômicas são impregnadas de ritos e mitos e guardam um caráter

cerimonial obrigatório” (MAUSS, 1974, p. 171). É interessante salientar que, apesar de

demostrar várias cerimônias rituais de troca, Marcel Mauss procura estabelecer uma

regra geral da política de dádiva, ou seja, ele não foca no ritual para entender este em si

mesmo, mas como uma maneira de acesso a essa regra geral abstrata da dádiva, uma

universalidade nas trocas sociais.

Fica claro que os três autores discutidos até agora (Frazer, Durkheim e Mauss)

colocaram a dicotomia mito versus rito. É com eles, sobretudo com o segundo e o

terceiro, que essa dicotomia se estabelece na disciplina. De acordo com Peirano (2002)

a separação heurística desses dois domínios (mito e rito) deve-se também a apropriação

histórica que foi dada a esses autores por parte de outros autores das ciências sociais,

principalmente por Lévi-Strauss. Neste sentido, mito e rito passaram a marcar “uma

antinomia inerente à condição humana entre duas sujeições inelutáveis: a do viver e a do

pensar [...]. Os mitos ficaram associados às representações e os ritos, às relações sociais

empíricas (como na proposta de Van Gennep)” (PEIRANO, 2002, p. 21).

Neste sentido, Lévi-Strauss, a partir de sua leitura dos clássico, acentuou a

dicotomia rito versus mito, dando prioridade a este último. No texto O Feiticeiro e sua

Magia este autor apresenta a figura do feiticeiro enquanto um personagem socialmente

construído em que sua performance, a crença do doente e a legitimidade social

depositada no feiticeiro dão o plano de fundo aos ritos e práticas de feitiçaria afirmando

ou não a sua legitimidade. Já no texto A Eficácia Simbólica Lévi-Strauss (1975) fala

sobre rituais de cura a eficácia dos mesmos. Nele o autor descreve certos ritos de cura e

a manipulação simbólica feita pelo xamã nesses rituais. Em ambos os textos nota-se a

importância dos rituais seja na feitiçaria, seja nos processos de cura xamanísticos.

Porém, é importante ressaltar que os ritos são colocados pelo autor como uma repetição

reprodutora da coesão do grupo, em ambos os casos. Sendo assim, apesar da prática

ritual ser colocada por Lévi-Strauss, o foco das suas investigações estava na crença, no

símbolo e no mito. A ação, nos seus textos, é colocada apenas como uma maneira de

acessar o universo simbólico, sendo apenas um reflexo deste. Apensar dos grandes

avanços colocados por Lévi-Strauss fica claro em seus textos que não havia para a

criatividade dos indivíduos e para os processos sociais de mudança. Que vão ser

enfatizados por outros autores, como Van Gennep, por exemplo.

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VAN GENNEP, MAX GLUCKMAN E VICTOR TURNER: A MUDANÇA, O

PROCESSO E A DIMENSÃO POLÍTICA NO RITUAL

Van Gennep (1978) é um autor de grande importância para o desenvolvimento

dos estudos sobre rituais. Isto porque, foi com este autor que o ritual passou a ser

analisado fora do escopo religioso. Além disso, o indivíduo (que não tinha espaço com

os teóricos citados mais acima) e seu lugar na constituição social passou a ser, mesmo

que de maneira incipiente, problematizado. Outro aspecto importante da obra de Van

Gennep é a dimensão temporal, que passa a ser incorporada na análise dos ritos de

passagem – que são, em suma, marcadores temporais produzidos coletivamente, mas

vividos por indivíduos específicos – e que têm como etapas constitutivas os momentos

de “separação”, “margem” e “agregação”. Estas etapas são momentos ritualizados que,

juntos, promovem mudanças na dinâmica social a partir do momento em que deslocam

indivíduos de um espaço social para aloca-los em outro, mudando o status social destes.

Apesar de todas essas descontinuidades com as teorias anteriores Van Gennep,

assim como Durkheim, considera as práticas rituais como socialmente construídas e fora

do escopo fisiológico individual. Assim, a oposição sociedade versus indivíduo ainda é

cultivada por ele, porém, com menos rigidez: há, de maneira tímida, uma abordagem do

lugar do indivíduo na constituição social, na medida em que o autor fala dos ritos de

passagem como marcações temporais, produzidas coletivamente, nas vidas de

indivíduos específicos. Além dessa diferença sutil, mas substancial, outras

especificidades se sobressaem. A principal é o fato de que este autor aborda a temática

ritual como um fenômeno para além das práticas religiosas.

Para Van Gennep (1978) os ritos de passagem são práticas que marcam

mudanças temporais, transições de um estado social para outro. Os ritos são vistos como

uma sequência cerimonial que transformam, que mudam indivíduos de condição. As

três etapas fundamentais destes ritos são: separação, margem e agregação. Porém,

segundo o autor,

estas três categorias secundárias não são igualmente desenvolvidas

em uma mesma população nem em um mesmo conjunto cerimonial

[...] na prática estamos longe de encontrar a equivalência dos três

grupos, quer no que diz respeito à importância deles que no grau de

elaboração que apresentam. (VAN GENNEP, 1978, p. 31).

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Esta citação deixa claro que, apesar da divisão analítica dos ritos de passagem,

estes estão longe de serem universais em seus moldes, pelo contrário, cada qual e um

dado momento ou local possui suas particularidades. O que há de geral é o fato que os

ritos de passagem são maneiras de expressão de diferentes sociedades que marcam

situações especificas ao produzirem momentos de separação, marginalidade e

agregação. O importante aqui é frisar o fato de que estes ritos são vistos de maneira

encadeada (lógica e sequência), dentro de um esquema social maior, que sevem para

marcar tempo e lugar social.

A Dimensão Política no Estudo dos Rituais: Max Gluckman e Victor Turner

Outros autores são de fundamental importância para a temática ritual, como Max

Gluckman e Victor Turnner, dois expoentes de gerações distintas da escola de

Manchester. Com os avanços de Van Gennep (a saber: o ritual estar apenas no âmbito

religioso, a incorporação da ideia de mudança e o lugar do indivíduo nesse processo)

levados a cabo pela escola de Mancherster, pode-se considerar que a principal diferença

(contribuição) entre estes e os autores citados anteriormente é a incorporação da

dimensão política na abordagem de processos rituais, como veremos a seguir.

Em Análise de uma Situação Social na Zululândia Moderna Gluckman (2010)

procurou compreender como se dão as relações sociais entre os europeus colonizadores

e os zulus locais, buscando explicitar os conflitos inerentes a estas relações. É a partir da

compreensão dessa dinâmica o autor caracteriza a organização e a estrutura social da

Zululândia Moderna. Neste sentido, para compreender as relações “zulu-europeias” o

autor se utiliza de uma metodologia até então impar na antropologia: a análise de uma

situação social. Ao invés de tentar compreender a totalidade da cultural nos moldes dos

seus antecessores, Gluckman elege um evento social específico para compreender o

universo em questão e a partir deste falar sobre a economia, o parentesco, a religião a,

política local, etc. O evento escolhido é um ritual de inauguração de uma ponte,

construída e inaugurada a partir da relação de cooperação e conflito entre zulus e

europeus que, segundo o autor, formam uma comunidade única de relações desiguais,

de fusão e divisão. É importante ressaltar que uma situação social envolve uma série de

eventos, segundo o autor, porém o mais emblemático na sua análise é a cerimônia (rito)

de inauguração.

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Como veremos na citação abaixo, a inauguração da ponte obedece a certas

regras sociais, com uma organização baseada nas tradições sociais:

O magistrado planejou a cerimônia, teve o poder para organizá-la

dentro dos limites de certas tradições sociais e pôde fazer

inovações de acordo com as condições locais. Mas, obviamente, a

divisão das pessoas em grupos e muitas das ações não foram

planejadas. A configuração subsidiária e não planejada dos eventos

do dia tomou forma em conformidade com a estrutura da sociedade

zululandesa moderna. Muitos dos incidentes que registrei

ocorreram espontaneamente e ao acaso, como, por exemplo, o

veterinário do governo discutindo com o induna, postado em

guarda junto à ponte, sobre banhos parasiticidas dê gado; ou o

missionário organizando o coral dos hinos. Entretanto estes

incidentes se encaixam facilmente num padrão geral, da mesma

maneira em que situações semelhantes envolvendo indivíduos se

amoldam em cerimônias funerárias ou de casamento.

(GLUCKMAN, 2010, p. 241)

Sobre a separação dos grupos é importante ressaltar que isso não quer dizer que

formam comunidades distintas, já que para Gluckman essa separação é aceita e

demostra uma forma de associação entre os zulus e europeus. Neste sentido, o autor

demostra a partir de um ritual de inauguração de uma ponte como se configura a

estrutura local, suas mudanças eventuais e os processos de associações e conflitos

políticos existentes entre brancos e zulus no processo histórico.

Em Rituais de Rebelião no Sudoeste da África Max Gluckman (1974), é notória

a relação entre este e o texto de Frazer citado no início deste artigo, já que ele é fruto de

uma conferência feita em homenagem a este autor. Além dessa obvia relação, o que fica

mais claro não são as semelhanças, entre ambos, mas sim as diferenças marcadas por

Gluckman ao distinguir seu método do método intelectualista de Frazer e seus

discípulos. Ao invés de procurar comparar costumes diversos de sociedades espalhadas

no tempo e no espaço, o autor pretende falar sobre a lógica interna de certas sociedades

do sudoeste da África a partir da análise de cerimonias consideradas por ele como:

rituais de rebelião.

Para este autor os rituais de rebelião são cerimônias onde as tensões sociais são

controladas e a ordem social é invertida e questionada de maneira ritualizada. Assim, os

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diferentes ritos descritos pelo autor em seu texto tem em comum o fato de que são uma

forma de “protesto institucionalizado exigido pela tradição sagrada, aparentemente

contra a ordem estabelecida, mas que pretende abençoar tal ordem, com o fito condutor

de conseguir prosperidade” (GLUCKMAN, 1974, p. 6).

Ao considerar estes ritos dessa maneira, o autor coloca a esfera política como

um espaço ritualizado, na medida em que nestes ritos de rebelião há uma encenação de

rompimento com a ordem estabelecida, mas de uma maneira ordenada a reforçar a

ordem cotidiana. Os papeis são reforçados nessas encenações, em que a rebelião faz

parte de uma ordem social maior, marcada por papeis e lugares estabelecidos. Portanto,

os rituais analisados por Gluckman (1974) são vistos como mecanismos de manutenção

do status quo.

Victor Turner, influenciado por Van Gennep e Max Gluckman, consegue

amarrar a análise política com uma visão processual de maneira muito refinada. Turner

traz e desenvolver certos aspectos embrionários da obra de Van Gennep (ideia de

processo temporal, o lugar do indivíduo e as questões de mudança de status) e mesclar

com a abordagem política, típica da escola de Manchester.

Em Liminaridade e Communitas, Turner (0000) parte da ideia de Van Gennep

de que os rituais de passagem apresentam três momentos distintos (separação, margem e

agregação), e foca toda a sua análise no segundo momento, chamado por ele de

liminaridade. Toda a simbologia, o significado e as características desse momento são

marcadas pela ambiguidade, onde predomina uma forma de associação anti-estrutural

denominada de communitas. A communitas se caracteriza como um laço social marcado

pela homogeneidade e pela camaradagem, onde a hierarquia social, que predomina na

estrutura social, é criticada. Neste sentido, nos momentos liminares, onde os laços de

communitas prevalecem, há uma inversão de valores que se confronta com o sistema de

posições sociais, inversão esta manifestada em símbolos rituais. Devido a essa inversão

de valores, há o que Turner chama de “poder ritual dos fracos”. Na liminaridade a

autoridade é questionada e os indivíduos das posições sociais mais baixas são elevados,

nos momentos rituais, a cargos de extrema importância, exercendo um papel moral que

questiona as posições sociais estruturais.

Vejamos um texto deste autor onde ele descreve um rito de circuncisão de uma

determinada sociedade que se caracteriza enquanto um momento liminar. Neste texto,

Turner demostra a relação entre estrutura social e anti-estrutura ao revelar a dinâmica de

disputa pelos principais papeis de tal rito. Em Mukanda: O Rito de Circuncisão, o autor

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adentra no universo social dos Ndembu tendo como foco a análise ritual, com ênfase na

dimensão política do rito.

Ao descrever o ritual de circuncisão como estando dentro de uma dinâmica

maior, da estrutura social, mostrando com isso a influência dos autores mais clássicos

colocados no início desse trabalho. Isto porque para Frazer, Mauss e Durkheim as

práticas rituais eram reveladoras de uma dinâmica social maior. Porém, Turner (2005) é

mais profundo nessa sua consideração por analisar os processos rituais em ação,

etnograficamente, levando em conta os processos históricos, as disputas de parentesco e

vizinhança, ou seja, o contexto que serve de plano de fundo ao ritual. Assim, o autor

mostra que os conflitos sociais entre parentes e vizinhos refletem na organização e na

execução ritual. Segundo ele, “os conflitos internos das aldeias faziam com que grupos

e indivíduos dissidentes apoiassem, às vezes aberta, mas em geral clandestinamente, a

facção oposta à de seus líderes” (TURNER, 2005, p. 212).

De acordo com Turner (2005), toda a disputa gira em torno do controle dos

principais papeis do Mukanda, são eles: Circuncidador Sênior, Fundador e Instrutor

Sênior. Isto porque a liderança moral (anti-estrutural) entre os Ndembu está

intimamente associada ao controle desses papeis, que são a expressão máxima do que

Turner chama de “poder ritual dos fracos” no texto anterior. Esta citação sobre

Nyaluhana (um dos personagens principais da trama social) ilustra muito bem isso:

Este Mukanda era uma crise maior em sua longa vida. Se ele

tivesse de aceitar qualquer coisa inferior à liderança deste

Mukanda, ele se transformaria num joão-ninguém, num velho a

caminho da ‘segunda infância e do esquecimento’, como tantos

outros velhos Ndembu que tinham perdido o controle efetivo em

matéria de política e ritual (TURNER, 2005, p. 224).

A oposição a Nyaluhana era o resultado de certas características da

própria vizinhança. Entre elas, notamos as diferenças de tamanho,

origem e interesses, sua segmentação interna, suas interligações

matrimoniais, as distâncias sócioespaciais e outros aspectos de sua

interdependência e mútua dependência (TURNER, 2005, p. 238).

Percebe-se ai a relação intrínseca entre política e ritual nesta sociedade. Um rito

de circuncisão, que à primeira vista é apenas à passagem de um indivíduo para a vida

adulta, apresenta uma forte relação com a vida política loca. Ainda mais, na segunda

citação, fica claro a relação indissociável entre as características da vizinhança e as

Page 11: Ritual Na Antropologia

atitudes políticas de grupos e indivíduos. Porém, essa influência do contexto social se

contradiz ao campo ritual do Mukanda, que contém de certo modo uma dinâmica

própria.

Segundo Turner (2005)

em termos dinâmicos, o campo do Mukanda que estou discutindo

representa a superposição de dois campos, cada um deles voltado

para um conjunto de objetivos diferentes e mesmo contraditórios.

Digo ‘contraditório’ porque as mesmas pessoas eram motivadas

para lutar simultaneamente pelo bem geral da vizinhança e

competir entre si por bens escassos. Se alguém estivesse na posição

de examinar cada exemplar de comportamento público, durante o

período e no local do Mukanda, essa pessoa, sem dúvida,

descobriria que certos conjuntos de ações era guiado pelos valores

e objetivos do Mukanda, outros pelas lutas pessoais e seccionais, e

outro ainda representava uma série de compromissos entre essas

tendências altruístas e egoístas (TURNER, 2005, p.343).

Dessa maneira, para Turner, não há uma relação mecânica entre o ritual e o

contexto social. Há, sim, uma relação conflituosa e contraditória, como é o caso do

Mukanda. Isso porque, para o autor, o ritual e contexto social são dois campos distintos,

movidos por valores por vezes opostos. Neste caso, pode-se dizer que o ritual tenta

instaurar valores anti-estruturais de communitas e se caracterizar enquanto um

momento liminar. Por esse motivo, há um conflito entre a dinâmica ritual e a dinâmica

do contexto social estrutural, onde a hierarquia é fortemente reforçada.

Para finalizar, é importante ressaltar que está não é a única chave interpretativa

de Victor Turner para os rituais. Em outro momento mais contemporâneo este autor faz

sua análise sobre eventos rituais tomando o “drama” como uma metáfora da vida social,

porém fica claro que não há uma descontinuidade entre essa nova forma interpretativa

com a anterior, há sim uma incorporação de novas dimensões. Nesta visão do “drama

social”, Turner (2008) faz um ligação entre ritual e performance, entre antropologia e

teatro. Nessa chave interpretativa os eventos ritualizados são situações performatizadas

em que a anti-estrutura aparece, ou seja, através da performance a estrutura social e os

padrões estabelecidos são questionados. Para análise de eventos rituais como este em

sociedades “tribais” e/ou “agrárias” este autor continua usando o conceito de

“liminaridade”. Já para falar desses momentos em sociedades complexas ele institui o

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conceito de “liminóide”. Para deixar claro, a liminaridade é um evento ritual coletivo

ligado ao processo social total de uma determinada sociedade, neste sentido, ele se

apresenta como uma obrigação para os indivíduos. Já os fenômenos liminóides, embora

tenha um efeito coletivo de massa, é voltado para o lazer individual e vendido para este

como mercadoria, assim, estes momentos rituais se configuram como um momento de

participação opcional voltado para o entretenimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que encarar as diferentes abordagens apresentadas neste artigo como

sendo certas e/ou erradas umas relação às outras, o que vale é pensar nelas como

diferentes contribuições para a reflexão e análise das práticas rituais: como diferentes

olhares que vieram a alargar nossa compreensão dos fenômenos rituais ao incorporar

novas abordagens e variantes ao tema.

Com isso, quero quis demonstrar que o ritual foi abordado e discutido de

diferentes maneiras: como uma prática universal estritamente ligada aos fenômenos

míticos religiosos; como uma repetição produtora da coesão grupal; como uma prática

fora do escopo religioso, dentro da realidade social e política; como uma inversão da

ordem estabelecida e também como tempo reificadora desta; como um lugar de

disputas, inserido em dinâmicas e processos sociais e como práticas performatizadas.

REFERÊNCIAS

FREZER, J. G. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro. Zahar Editores. 1992 (1915).

DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo. Martins

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Page 13: Ritual Na Antropologia

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