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RORTY, Richard. Ensaios Sobre Heidegger e Outros[1]

Date post: 14-Feb-2015
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! I 1 ENSAIOS SOBRE HElD EGGER EOUTROS INSTITUTO PIAGET RICHARD RORTY Titulo original: Essays on Heidegger and Others Philosophical Papier Volume 2 Autor: Richard Rorty Pensamento e Filosofia DireCl;ao de Ant6nio Oliveira Cruz Eugenia Antunes Capa: Dorindo Carvalho Copyright: Cambridge University Press, 1991 Direitos reservados para a lfngua portuguesa: INSTITUTO PIAGET Av. Joao Paulo II, lote 544,2.-1900-726 Lisboa Telef. 83717 25 E-mail: [email protected] Instituto Piaget Montagem, impressao e acabamento: Silvas - Coop, Trab. Graficos, CRL Dep6sito legal n.o 143 429/99 ISBN - 972-771-203-7 Nenhuma parle desta pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo eIeclr6nico, mec.inico ou lotografico, induindo fotoc6pia, xeroc6pia ou sem aulorizac;ao e escrita do editor. 1 AGRADECIMENTOS Filosofia como Ciencia, MetMora e Politica foi uma contribui-,ao para urn simposio realizado na U niversidade de \liena em cele-bra,ao do 50.0 aniversario de Krists der Europilischen Wtssenschaften de Husser!' Foi publicada uma tradu,ao ale rna em Die Krise der Phiinomenologie und die Prag;matik des Wissenschaftsfortschritts, Michael Benedikt e Rudolf Burger, eds. (Viena: Verlag der Osterreichischen Staatsdruckerei, 1986), pp. 138-149. Uma versao revista e aumen-tada do original ingles (a versao aqui reimpressa) surgiu em The Institution of Philosophy, Avner Cohen e Marcello Dascal, eds. (La Salle: Open Court, 1989), pp. 13-33. Heidegger, Contingencia e Pragmatismo e aqui publicado pela primeira vez. Aparecera tambem em Reading Heidegger, Hubert Dreyfus e Harrison Hall, eds. (Oxford: Blackwell, a publi-car). Inclui passagens de Heidegger wider den Pragmatisten, Neue Hefte flir Philosophie 23 (1984), pp. 1-22. A ultima e a versao de uma palestra proferida em Haverford College, e apareceu ape-nas na tradu,ao ale rna. Wittgenstein, Heidegger e a Reifica,ao da Linguagem foi uma contribui,ao num simp6sio que celebrava 0 100.0 aniversario dos nas-cimentos de Heidegger e Wittgenstein, realizado na Universidade ]. W. Goethe, Frankfurt am Main, em Abril de 1989. Nao foi ante-riormente publicado em ingles, mas apareceri tambem em The Cambridge Companion to Heidegger, Charles Guignon, ed. (a publicar). 11 Heidegger, Kundera e Dickens foi apresentado como uma palestra na Sixth East-West Philosophers' Conference, realizada na Universidade do Havai em Agosto de 1989. Aparecera nas aetas dessa conferencia. e por ser uma pales-tra intitulada Agora que desconstruimos a metaffsica, teremos de desconstruir tambem a literatura? proferida durante a Summer School Of Criticism and Theory, realizada na Universidade Northwestern em 1983. Foi publicada uma versao revista em Critical Enquiry II (Setembro de 1984), pp. 1-23. E reimpressa com a permissao da University of Chicago Press. Dois Significados de "Logocentrismo" foi escrito em resposta a Philosophy as Not Just a Kind of Writing, de Christopher Norris, que era em parte a sua res posta a Philosophy as a Kind of Writing (incluido na minha obra Consequences of Pragmatism). 0 ensaio de Norris e a minha resposta foram publi-cados em Redrawing the Lines: Analytic Philosophy, Deconstruction and Literary Theory, Reed Way Dasenbrock, ed. (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989), pp. 204-216. Derrida e urn Fil6sofo Transce!'dental? apareceu no Yttle Journal of Criticism de Abril de 1989. E aqui reimpresso com auto- De Man e a Esquerda Cultural Americana e uma versao revista da ultima das tres Romane!! Lectures proferidas na Universidade da Virginia em Janeiro de 1989. Tomou de empres-timo alguns padgrafos do meu texto Two Cheers for the Cultural Left, South Atlantic Quarterly 89, pp. 227-234, e alguns outros do meu texto Deconstruction, em The Cambridge History of Literary Criticism, vol. 8 (a publicar). Freud e a Reflexao Moral foi proferido em 1984, como parte da Edith Weigert Memorial Leeture no Forum for Psychiatry and the Humanities, em Washington, D. C. Apareceu em Pragmatism's Freud: The Moral Disposition of Phsychoanalysis, Joseph H. Smith e William Kerrigan, eds. (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986), pp. 1-27. Habermas e Lyotard sobre a P6s-modernidade apareceu em Praxis International 4 (Abril 1984), pp. 32-44. E aqui reimpresso com I I Unger, Castoriadis e 0 Romance de urn Futuro National apa-receu na Northwestern University Law Review 82 (Inverno de 1988), pp. 33 5 -3 51. E aqui reimpresso com Identidade Moral e Autonomia Privada: 0 Caso de Foucault foi proferido numa conferencia em memoria de Foucault, organi-zada por Ewald e realizada em Paris em Janeiro de 1988. Apareceu traduzido para frances nas aetas desta copferencia: Michel Foucault Philosophe: Rencontre Internationale (Paris: Editions du Seuil, 1989), pp. 385-394. Uma versao ligeiramente reduzida do original ingles foi publicada com 0 titulo FoucaultiDeweylNietzsche em Raritan 4 (Primavera de 1990), pp. 1-8. aos organizadores das conferencias, institutos e simpo-sios onde estes ensaios foram apresentados e aos editores dos varios jornais e onde os mesmos apareceram. Gostaria tam bern de expressar a minha continuada gratidao it John D. e T. MacArthur. A maioria dos ensaios deste volume e do anterior foram escritos enquanto fui bolseiro dessa 13 l INTRODUC;Ao o PRAGMATISMO E A FILOSOFIA POS-NIETZSCHIANA Este i 0 segundo volume de uma sirie de ensaios escTitos durante os anos 1980. 0 volume I i composto pOT ensaios que discntem temas e fign-ms da filosofia analftica. Ao contrario, a maioT paTte deste volume i sobre Heidegger e Derrida. A parte I i composta por quatro ensaios sobre Heidegger - 0 reS1lltado de uma tentativa infrntifera e abandonada de eserever um livro sobre 0 mesmo. A parte II con tim tres ensaios sobre Derrida, a par com uma dissertafiio que discnte 0 uso que Paul de Man e os seus seguidores fizemm de algumas das ideias de Derrida. A parte III i mais heteroginea. Dos quatro ensaios incluidos nesta parte, 0 primeiro) e tambim 0 mais ambicioso, chama-se Freud e a Ref/exiio Moral". Este ensaio distingue e salienta alguns aspectos da obra de Freud que se coadunam com a imagem de Quine e Davidson do eu como uma teia sem centro de erenfas e desejos - imagem que tambim uti-lizei no capitulo 2 da minha obm Contingency, Irony and Solidarity. Os restantes tres ensaios siio discnssoes de teorias sociais e atitndes politicas de varias figuras contemporlmeas (Habermas, Lyotard, Unger, Castoriadis, Foucault); estes ensaios amplificam as opinioes sociopoliticas apresentadas na parte III do volume I. No segttimento desta introdufiio farei alguns comentarios gemis sobre a "elafiio entre a tradifiio pos-nietzschiana do pensamento franco-germa-nico, discntida nestes ensaios, e a tradifiio pragmatista anti-representacio-nalista no ambito da filosofia analitica discntida no volume I. 15 Heidegger e Derrida sao frequentemente referidos como filOsofos pos-modernos. Utilizei por vezes 0 termo pos-moderno no seu sen-tido mais estrito definido por Lyotard como desconfianra das metanar-rativas. Mas agora preferiria nao 0 ter feito. 0 termo tem sido tao utilizado que causa mais problemas que 0 necessario. Desisti da tenta-tiva de encontrar algo em comum entre os edificios de Michael Graves, os romances de Pynchon e Rushdie, os poemas de Ashberry, as varias formas de musica popular, e as obras de Heidegger e Derrida. Tornei--me mais hesitante em re/arao a tentativas de periodizarao da cultura -descrever cada parte de uma cultura como se de repente virassem numa mesma nova direcrao aproximadamente ao mesmo tempo. As narrativas dramaticas podem bem ser, como MacIntyre sugeriu, essenciais para a escrita da historia intelecwal. Mas parece-me mais seguro e mais pra-tico periodizar e dramatizar cada disciplina ou ginero separadamente, em vez de ten tar ve-Ios como varridos conjuntamente por mudanras importantes. Em particular, parece me/hor pensar em Heidegger e Demda sim-plesmente como fil6sofos pos-nietzschianos - atribuir-Ihes um lugar numa sequencia coloquial que parte de Descartes, passa por Kant e Hegel ate Nietzsche e para Iti dele, em vez de encara-Ios como iniciando ou mani-festando uma ruptura radical. Embora eu admire sem quaisquer reser-vas a originalidade e poder dos dois pensadores, nenhum deles pode evitar ser encaixado em certos contextos pelos seus leitores. 0 mtiximo que uma figura original pode esperar fazer e recontextualizar as suas ou os seus pre-decessores. Ele ou ela nao pode aspirar it realizariio de uma obra que seja incontextualiztivel, tal como um comentador como eu nao pode aspirar a encontrar 0 contexto certo no qual encaixar essas obras. o contexto no qual os melts ensaios colocam a filosofia pos-nietzs-chiana e, como seria de esperar, 0 pragmatismo. Vejo Nietzsche como a figura que mais fez para convencer as intelectuais europeus das doutrinas que eram veiculadas aos americanos por James e Dewey. Muito do que Nietzsche tinha para dizer pode ser encarado como 0 seguimento da sua afirmarao de que "0 conhecimento em si" e um conceito tao impermissi-vel como 0 de "coisa em si"1 e da sua sugestao de que {as categorias da razaoJ nao representam mais do que a conveniencia de uma certa rara e 1 The Will to Pown', trad. Kaufmann (Nova Iorque: Random House, 1967), sec. 608. l especie - so a sua utilidade e a sua "verdade"2. A sua famosa descririio de "Como 0 "Mundo Verdadeiro" se Tornou uma Fdbula em o Crepusculo dos idolos estd, se exceptuarmos 0 sarcasmo ao cristia-nismo, bastante proxima da visao de Dewey do progresso intelectual da Europa. A versao de Nietzsche do pragmatismo tinha, com certeza, pouco a ver com as aspiraroes sociais caracteristicas de James e de Dewey. 0 seu perspectivismo, a sua recusa em considerar a norao de verdade dissociada de interesses e necessidades, fazia parte de uma luta pela peifeirao indivi-dual, pelo que ele considerava como pureza espiritual. Nietzsche detes-tava tanto 0 seu pais como 0 seculo em que vivia, por isso a combinarao emersoniana de autoconfianra e patriotismo que observamos em James e em Dewey e para ele estranha3. Tudo 0 que tomou de Emerson, digamos assim, foi a autoconfianra; nao existe analogia entre os seus trabalhos e 0 sentido americano de Emerson de um novo tipo de liberdade social. Quando Nietzsche leu as polimieas abolicionistas de Emerson, comiderou-as provavelmente como meramente 0 in feliz residuo de Jraqueza crista em alguem que de outro modo seria um homem forte. Apesar desta diferenra, Nietzsche era tao anticartesiano, anti-repre-sentacionalista e anti-essencialista como Dewey. Era tao dedicado a ques-tao "que diferenra fard esta crenra sobre a nossa conduta? como Pierce ou James. Se 0 vosso interesse se prende apenas com a epistemologia ou a filo-sofia da linguagem, por oposiriio a filosofia moral e social, nao fard grande diferenra a vossa conduta posterior ler Nietzsche ou os pragmatistas cldssi-cos. Mais, e tao simples enxertar os ultimos pragmatistas da linguagem - Quine, Putuam, Davidson - em Nietzsche como em Dewey. De facto, quando mudamos do discurso de Dewey sobre a experiencia para 0 discurso 2 Ibid., sec, 515. Existem passagens pragmatistas espalhadas aD longo da obra de Nietzsche, mas a melhar fonte sao as sees, 480-544 de The Will to Power. Num livro a editar sabre a teoria da verdade de Nietzsche, Maudmarie Clark fornece uma hastante convincente e lucida da sua viragem gradual para uma versao mais pura e mais consistente do pragmatismo. 3 Tbe Ame1'ican Evasion of Philosophy: A Genealogy of Pragmatism (Madison: University of Wisconsin Press, 1989) de Cornel West e bastante util para a compreensao da de Emerson com Dewey. 0 que West apelida de 0 projecto de Dewey de uma cultura emersoniana de democracia radical (p. 128) seria ininteligivel para Nietzsche que acreditava que se tencionavamos ser democniticos, para seguir 0 rebanho, entao nao poderfamos ser radicais. de Quine e Davidson sobre frases, torna-se mais simples entender 0 Jamoso comenta,.io de Nietzsche em Verdade e Mentira num Sentido Extra--Moral de que a verdade i um exircito movel de metaforas. Interpreto este comentario ii luz da minha disC1lSsiio do tratamento da metaJora por Davidson na parte II do volume 1. Creio que 0 que ele quer dizer e que as frases siio a tinica coisa que pode ser verdadeira ou Jalsa, que 0 nosso repertorio de frases cresce ii medida que a historia avanfa, e que este crescimento e em grande parte uma questiio de literalizafiio das metaforas de romances. Pensar na verdade desta maneira auxilia-nos a passa. de uma imagem cartesiana-kantiana do progresso intelectual (como uma imagem melhor e a que melhor se encaixa entre a mente e 0 mundo) para uma imagem darwiniana (como uma capacidade progres-siva de molda. as ferramentas necessarias para ajudar as especies a sobre-viver, a multiplicar-se e a transformar-se). Ver Darwin posicionado atris de Nietzsche e Dewey (e assim, de uma so passagem, atras do que no volume I descrevi como 0 fisicalismo niio redutor de Davidson) ajuda-nos a ver a filosofia europeia pos-nietzs-chiana e a filosofia analitica pos-positivista convergi1'em para uma unica explicafiio da interrogafiio pragmatista - grosso modo a explicafiio ofe-recida em Questionamento como Recontextualizafiio no volume 1. Segundo esta, a linguagem e um con junto de ferramentas em vez de um conjunto de representafoes - fen'amentas que, devido ao que Dewey cha-1nO'it 0 continuum meios-Jim, modifham os seus zttilizadores e os resultados da sua milizafiio. Abandonar a nOfiio de representafiio signi-fica livrarmo-nos do enxame de problemas sobre 0 "ealismo e 0 anti-rea-lismo que disC1lti na introdufiio ao volume 1. No entanto, a nOfiio de frases como fenamentas i uma nOfiio que associamos a Wittgenstein em vez de a Heidegger e a Denida. Apesar do pragn,atismo de Ser e Tempo (salientado por Mark Okrent e disC11tido na parte I deste volume), e apesar dos paralelos Derrida-Wittgenstein apresentados por Henry Staten e os paralelos Davidson-Derrida apresen-tados por Samuel Wheeler (disC1ltidos na parte II), Heidegger e Denida partilham uma tendencia para pensar na linguagem como algo mais do que simplesmente um conjunto de ferramentas. 0 Heidegger da ultima Jase persistentemente, e Denida ocasionalmente, tratam a lingnagem com se fosse um quase-agente, uma presenfa taciturna, algo que vigia de perto e esta contra 0 ser humano. As minhas criticas a Heidegger na parte I e a Denida na parte II centram-se na ma incapacidade de ter uma visiio darwinista calma e 18 l naturalista sobre a linguagem. Vejo-os ambos como, ate certo ponto, ainda sob a influencia da distin;ilo diltheyana entre Geist e Natur que critiquei na parte I do volume 1. POI'isso, em Wittgenstein, Heidegger e a Reifica;ilo da Linguagem, critico 0 Heidegger da ,Utima fase por SZIC1lmbir ao impulso de tornar a linguagem uma quase-divindade. Em Derrida e um FilOsofo Transcendental? critico a tentativa de Rodolphe Gasche de apresentar De17'ida como oferecendo condi;oes de possibili-dade para 0 uso da linguagem. Ambos os conj,mtos de criticas silo pro-testos contra 0 facto de se deixal' a Linguagem tornal'-se 0 ,i!timo substituto para Deus ou a Mente - algo misterioso, incapaz de ser descrito nos mesmos termos em que descrevemos mesas, drvores e titomos. a problema de se dar muita importlincia a lingliagem, ao significado, a intencionalidade, ao jogo dos significantes, ou differance i corrermos 0 l'isco de perder as vantagens que ganhdmos pela apropria;ilo de Darwin, Nietzsche e Dewey. Assim que come;amos a reificar a lingliagem, come-ramos aver falhas a ab"irem-se entre os tipos de coisas descritos por Newton e Dm"7lJin e os desezitos por Freud e Den"ida, em vez de vermos convenientes divisoes dentro de uma caixa de ferramentas - divisoes entre grupos de fe1Tamentas linguisticas para vdrias tarefas diferentes. Cmnermnos a ficar fascinados pm- frases como 0 inconsciente esto estT1l-turado como uma lingllagem, porque come;amos a pensar que as lin-guagens devem ter uma est1"1ltura distintiva completamente difel'ente da estrutura do cerebro, dos computadOl'es ou das galdxias (em vez de apenas concord01mos que alguns dos termos que utilizamos para descrever a lin-guagem podem, de facto, descrever p"oveitosamente outras coisas, como por exemplo, 0 inconsciente). Encaramos a in'edutibilidade do intencional - a irredutibilidade de descz'i,oes de atitudes sentenciosas como cren,as e desejos em descz'i,oes do movimento de partiC1llas elementares - como de algum modo mais filosoficamente significantes do que a irredutibilidade de desez"i,oes de casas em descri,oes de madeh'a, ou de Jesez'i,oes de ani-mais em descz'i,oes de cflulas. Tal como argumentei no volume I, um pragmatista tem de insistir que tanto a redescritibilidade como a in'edutibilidade silo fdceis. Nunca i muito dificil redescrever qualquer coisa de que gostamos em termos que silo izndlltiveis para ou indefiniveis em termos de uma descri,iio anterior dessa mesma coisa. Um pragmatista deve tamhem insistir (com Goodman, Nietzsche, Putnam e Heideggel) que 0 modo como uma coisa i em si pro-p"ia nilo existe, sob qualquer descz'i,ilo, para alim de qualquer uso que 0 ser humano Ihe queira dar. A vantagem de insistir nestes pontos i que qualquer dualismo que encontremos, qualquer divisao que encontremos um filOsofo a querer preencher au ligar, pode fazer-se com que pare;a uma sim-ples diferen;a entre dais con juntos de descri;oes do mesmo grupo de coisas. Poder fazer-se de modo a que pare;a nao contrasta neste contexto com a que realmente i. Nao i como se houvesse um procedimento para descobrir se estamos de facto a lidar com dais grupas de coisas 01' com um. A coisa em si, a identidade, depende da descri;ao. Nem i a caso de a lin-guagem real mente ser apenas cadeias de sinais e ruidos que as organis-mas utilizam para conseguirem a que querem. A descri;ao nietzschiana e deweyniana da linguagem i tao-pouco a verdade sabre a linguagem como a descri;ao que Heidegger faz dela como sendo a casa do Ser au a de Derrida como 0 jogo de referencias significantes. Cada uma delas i apenas mais uma verdade Iitil sabre a linguagem - mais uma daquilo a que Wittgenstein apelidou de notas para um objectivo particular. o objectivo particular desempenhado pela lembran;a de que a lingua-gem pode ser descrita em term as darwinian as i ajudar-nos a fugir daquilo a que, na introdu;ao ao volume I, chamei representaciona-lismo e, desse modo, da distin;ao realidade-aparencia. Obviamente con-sidero que as melhores partes de Heidegger e Derrida sao as que nos ajudam a perceber como as coisas sao sob descri;oes niio representacionalis-tas e nao logocentristas - como sao quando come;amos a tamar a relativi-dade da coisalidade it escolha da descri;ao como garantida, e entao come;amos a perguntar como podemos ser uteis em vez de como ser cor-rectos. Considero que as piores partes de Heidegger e de Derrida sao aquelas que sugerem que eles proprios finalmente acertaram sabre a que i a linguagem, que a representaram com precisao, tal como ela i. Foram estas partes que tentaram Paul de Man a dizer coisas como a literatura (. . .) i a unica forma de linguagem que esta livre da faUcia da expressao espontlinea 4 e Jonathan Culler a insistir que uma teoria da linguagem deveria "esponder a questoes sabre a natureza essencial da linguagem5. Foram tambim estas partes que levaram uma gera;ao inteira de teoricos literarios americanos a falar da descoberta do caracter nao referencial 4 Paul de Man, Blindness and Il1sight, 2.a e d i ~ a o (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1983), p. 17. 5 Jc;>nathan Culler, On Deconswllct;on: Theo1,] and C"iticism After St1'uct1lratism (Itaca, N. I.: Cornell University Press, 1982), p. 118. 20 -da linguagem, como se Saussure, Wittgenstein ou Derrida ou alguem tivesse demonstrado que a referencia e a representa,ao eram ilusiies (contrariamente a serem no,oes que, em certos contextos, podiam perfeita-mente ser dispensadas). Se a tratamos simplesmente como uma lembran,a, em vez de como uma metafisica, entao acho que 0 que se segue e uma boa maneira de aproximar a conelusao tiltima tanto da tradi,ao Quine-Putnam--Davidson sobre a filosofia analitica da linguagem como da tradi,ao do pensamento pos-nietzschiano. Considere as frases como cadeias de sinais e ruidos emitidos por organismos, cadeias capazes de formarem pares com as cadeias que nos proprios emitimos (da forma a que chamamos "traduzir>>}. Considere as cren,as, os desejos e as inten,oes - geralmente atitudes sentenciosas - como entidades destinadas a ajudar a p"ediz,,' 0 comp011amento desses organismos. Agora, pense nesses orga-nismos evoluindo gradualmente como resuftado de produzirem cadeias mais compridas e mais complicadas, que Ihes permitem fazer coisas que nao conseguiam fazer com a ajuda de cadeias mais pequenas e menos complicadas. Agora, pense em nos como um exemplo desses organismos aftamente evoluidos, nas nossas melhores esperan,as e medos mais profun-dos como tornados realidade devido, entre outras coisas, ii nossa capaci-dade de produzir as cadeias particulares que emitimos. Depois, pense nas quatro frases que antecedem esta, como outros exemplos dessas mesmas cadeias. Penuftimamente, pense nas cinco frlises que antecedem esta, como um esbo,o para um novo desenho da casa do Ser, um novo lar para nos, pastores do SeT: Por fim, pense nas tiftimas seis frases como ainda um DutrO exemplo do jogo dos significantes, um outro exemplo da maneira como 0 significado e infinitamente afteravel atraves da recontextualiza-,ao dos signos. As ti!timas sete frases sao uma tentativa de deter animais, Dasein e differance numa tinica visao: mostrar como podemos passar da visao de Darwin an'aves da de Heidegger para a de Derrida, sem muito esfor,o. Sao tambim uma tentativa de mostrar que 0 que e importmite em ambas as tradi,oes, a que segue ate Davidson e a que vai ate Derrida, nao e 0 que elas dizem, mas 0 que nao dizem, 0 que evitam e nao 0 que p1"Opoem. Repare que nenhuma delas menciona 0 sujeito pensante nem 0 objecto do conhecimento. Nenhuma fala sobre uma quase-coisa chamada linguagem que fitnciona como intermediario entre 0 sujeito e 0 objecto. Nenhuma permite a ref01mtda,ao de problemas sobre a natureza ou possibilidade de 21 i representnfiio ou intencionnlidnde, Nenlmma tenta reduz;,' a que quer que seja noutra coisa, Nenhuma, em cone/usiio, nos poe nos limites especi-ficas 110S quais a tradifiio reploesentacionalista cartesiana e kantiana nos puseram, E 56 pm'a isso que se,..,)em as duas tradifoes? Senf que todos estes pen-sado,-es eminentes nos estiio simplesmente a mostrar a saida de uma empoeirada, de 1I1na easa do SC1' em minas? Estou jonemente tentado a diz,,': "Com certeza, 0 que mais i que pensavam que iI'iam tirar da jilosojia contemp01'linea? Mas isto pode parecer redutor. Assim seria se eu estivesse a negar que as obms destes pensadores siio indejinidamente 1wontextualiztiveis, e assim podn'iam tomar-se ,iteis numa variedade I'injinita de contextos p,'esentemente imprevistos, Mas niio i redutor dizer: f,' niio subestime os efeitos de esvoarar dentro dessa gal,afa, Niio se subes- I time 0 que nos pode1oia acontece1; no que nos pode1Iamos to'rnar, coma 1 resu!tado de sainnos de Iti. Niio se subestime a utilidade de uma eserita '11tel'a111ente terapeutica, 'l11erarnente desconstrutiva. Ninguim pode estabelem' a priori limites para 0 que a mudanra pode fazel' na opiniiio jilos6jica, tal conlD para 0 que a mudanfa pode fazer na opiniiio cientifica au politica, Pensar que podemos conhecer esses limites i tiio mau como pensar que, agora que jti sabemos que a tradifao ontoteol6gica esgotou as suas possibilidades, devemos apressar-nos a remo-delar wdo, a fazel' wdo de novo, A mudanfa na perspectiva jilos6jica nao i intrinsecamente central nem intrinsecamente marginal - as seus resul-tados sao tiio imprevisiveis como a mudanfa em qualqu,,' outra tirea da cu!tura, Os ensaios neste volume e no ant,,'i01' nao tentam predizer quais seriio os efeitos da adoNao do pragmatismo com1lm a estas duas tradifoes, Os meus e11saios deveriio s,,'lidos como exemplos do que um grupo de jil6-sofos italian os contelnpordneos chamaram pensamento dibil6 - reflexiio jilos6jica que nao tenta faZel' 1I1na cTitiCfl mdical da cu!tura contemporli-nea, nao tenta 'I'eflinda-Ia Ott remotivd-la, mas simplesmente 'I"Cline cha-madas de [ltenfaO e sug,,'e algumas possibilidades interessantes, 6 Veja-se Gianni Vattimo e Pier Aida Ravatti, eds., II Pensiero debote (Milao: Feltrinelli, \983), 22 f ! PARTEUM FILOSOFIA COMO CLENCIA, COMO METAFORA E COMO POLiTICA PARA ALEM DA FlLOSOFIA CIENTiFICA No nosso seculo, tern sido dadas tres respostas it pergunta de como devemos conceber a nossa com a filos6fica ocidentaI, respostas essas que sao acompanhadas por tres concep- do objectivo de filosofar. Sao elas a resposta husser!iana (ou cientffica), a resposta heideggeriana (ou poetica) e a resposta pragmatista (ou polftica). A primeira resposta e a mais con he-cida e era comum a Husser! e aos seus oponentes positivistas. Segundo ela, a filosofia toma como modelo a ciencia e distancia-se relativamente tanto da arte como da polftica. As respostas heideggeriana e pragmatista sao a esta conhecida resposta cientffica. Heidegger desvia-se do cientista para 0 poeta. 0 pensador filos6fico e a unica pessoa que se encon-tra ao mesmo nfvel do poeta. Os progressos dos grandes pensado-res tern tao pouco a ver com a ffsica matematica ou a arte de governar como os progressos dos grandes poetas. Pelo contrario, pragmatistas como Dewey viram-se dos cientistas te6ricos para os engenheiros e os assistentes sociais - as pessoas que tentam fazer com que as pessoas se sin tam mais seguras e confortaveis usando a ciencia e a filosofia para 0 conseguirem. 0 heideggeriano pensa que a filos6fica necessita de ser reapropriada pelo facto de ser vista como uma serie de conquistas poeticas: 0 trabalho de Pensadores, pessoas que nao tern outra escolha a nao ser encon-25 trar palavras para 0 que urn ser ina historia do seu Serl. 0 prag-matista pensa que a tradi,ao necessita de ser utilizada da maneira que utilizamos uma caixa de ferramentas. Algumas dessas ferra-mentas, desses instrumentos conceptuais - incluindo alguns que continuam a gozar de urn prestfgio desmerecido - acabarao por nao ter mais utili dade e podem ser deitados fora. Outros pod em ser renovados. As vezes pod em ter de ser inventadas imediata-mente novas ferramentas. Enquanto que 0 heideggeriano ve a fe de Husser! na possibilidade da filosofia enquanto tare fa, isto e, na possibilidade de urn conhecimento universal2 como urn cientista, matematizando a incompreensao da grandeza da tradi,ao, 0 prag-matista ve-a como uma nostalgia sentimental, uma tentativa de manter vivos antigos lemas e estrategias mesmo depois de ja terem deixado de ter utilidade pratical. H usserl pensava que a sugestao para que desistissemos do ideal de urn conhecimento filosofico universal, a-historico e fundador, sugestao comum ao pragmatismo e a Nietzsche, era a ultima fase de uma desastrosa mudan,a que se instalou na viragem do seculo passado na avalia,ao geral das ciencias.4 Segundo 0 seu ponto de vista, a total visao mundial do homem moderno, durante a segunda metade do seculo XIX, deixou-se determinar pelas ciencias positivas e cegar pela "prosperi dade" que as mesmas produziram e tal facto, por sua vez, produziu urn afastamento indiferente das questoes que sao decisivas para uma genufna humanidade.5 Husser! via 0 racionalismo tradicional e 0 cepticismo empirico como dois lados da mesma moeda objectivista6. Tentou colo car 1 Heidegger, Nietzsche II (pfullingen: Neske, 1962), 37. Traduzido em Heidegger, Nietzsche, vol. IV, trad. F. A. Cappuzi (Nova Iorque: Harper and Row, 1982), 7. 2 Husserl, Tbe O'isis of Em'opeon Sriences and T1'lImcendental Pbenomen%gy, trad. David Carr (Evanston: Northwestern University Press, 1970), 17. 3 0 facto de aqui nao discutir 0 marxismo, e de usa-Io, em vez do pragmatismo americana, para rcpresentar a c o n c e p ~ a o poIftica da actividade filosofantc, deve-se It conviq:ao de que 0 marxismo e uma mistura inconsistente do prag-matismo das Teses sabre Feuerbach com 0 cienticisno comum ao marxismo e ao positivismo. A historia do marxismo de Kolakowski demonstra como cada tentativa de tornar 0 marxism a mais pragmatico e menos cienticista tern sido firmemente reprimida pel as instituir;oes que 0 proprio marxisma criau. 4 Ibid., 5. 5 Ibid., 6. 6 Veja-se ibid., 83, sabre Descartes e Hobbes. 26 r ! ambos dentro do ambito da sua propria fenomenologia transcen-dental. Heidegger concordou com Husser! quanto a relativa importancia da empirista-racionalista e tam bern quanto aos perigos de uma cultura pragmatica. Mas Heidegger conside-rava que 0 pragmatismo e a fenomenologia transcendental eram meramente rna is dois produtos da objectivista. Tentou por tanto 0 repudio pragmatista do espirito como a tentativa de Husser! para 0 recuperar dentro da sua propria da metaffsica ocidental. Concordou com Husser! que urn filosofo autonomo com vontade de se libertar de todos os preconceitos [ ... ] deve ter 0 discernimento de que todas as coisas que toma como garantidas siio preconceitos, que todos os preconceitos sao obscuridades que se desprendem de uma da [ ... ] e que tal e verda-deiro mesmo para a grande tarefa e ideia a que se chama filosofia.7 Mas Heidegger pensava que nem Husser! nem os pragmatistas eram suficientemente radicais nas suas critic as ao auto-entendi-mento dos seus antecessores. Desconfiava da tentativa pragmatista de substituir a ideia platonico-cartesiana do conhecimento univer-sal pelo sonho de Bacon de controlo maximo sobre a natureza. Mas tam bern desconfiava da tentativa de Husser! de ver a techne gali-leana como fundada em algo transcendenta!. Para Heidegger, os projectos de fun dar uma cultura - quer sobre necessidades human as concretas ou sobre a subjectividade transcendental - era simplesmente Dutra expressao dos preconceitos que era necessa-no veneer. Embora a de Heidegger acerca dos perigos do nosso seculo se aproximasse rna is da de Husser!, as suas doutrinas filoso-ficas estavam rna is proximas das de Dewey. Tal como Husser!, Heidegger acreditava que a crise europeia tinha as suas raizes num racionalismo mal conduzido.8 Mas pensava que uma pro-cura de fundamentos era em si propria urn sintoma deste raciona-7 Ibid., 72. 8 Ibid., 290. 27 I.)., lismo mal conduzido. Sein und Zeit est:! repleto de criticas as dou-trinas que Husser! partilhava com Descartes. 0 tratamento que no livro se da ao conhecimento cientifico objectivo como uma forma secundaria, forma derivada do Ser-no-Mundo, derivada do uso de ferramentas, e da mesma ordem do baconianismo de Dewey9. A que Heidegger faz de pseudoproblemas filo-s6ficos atraves do facto de deixar a pratica social ser tomada como elemento primario e inquestionado, em vez de como explanandum, exempli fica 0 que Robert Brandom chamou a supremacia ontol6-gica do sociallO. Outro ponto em que Heidegger e os pragmatistas coincidem e na profunda das metaforas visuais que ligam Husser! a Pia tao e a Descartes. Husser! e Carnap partilham a tradicional plat6nica de ascender a urn ponto de vista a partir do qual se podem ver as entre todas as coisas. Para ambos, 0 objectivo da filosofia e 0 desenvolvimento de urn esquema formal dentro do qual cada area da cultura podia ser colocada. Sao ambos fil6sofos daquilo que Hillary Putnam cha-mou a visao do olho-de-Deus. 0 termo que Heidegger aplicou a tais tentativas de urn entendimento do tipo divino do dominio da possibilidade, essas tentativas de ter urn comparti-mento pronto para cad a ocasiao que possa ocorrer, e 0 matema-tico. Define ta mathemata como esse "sobre" as coisas que ja sabemos de factoI1. A procura do matematico, de urn esquema a-hist6rico formal, era, segundo Heidegger, a escondida 9 Tal como Hubert Dreyfus eJahn Hangeland explicaram, a de Husserl a esta parte de Sein wId Zeit foi a de que a zllhanden era tanto a farinha do moinho fenomenologico como a vorbanden, e especificamente que uma Zeug era alga identica, alga sempre identificavel, e por isso alga que demonstraria uma essencia universal. Veja-se Dreyfus e Raugeland, Husserl and Heidegger: Philosophy's Last Stand em Michael Murray, ed., Heidegger and Modern Philosophy (New Haven: Yale University Press, 1978), 222-238 (especialmente a de urn manuscrito fragmentario de Husserl intitulado das ist gegen Heidegger na p. 233). 10 Robert Brandom, Heidegger's Categories in Being and Time, The Monist, vol. 66 (1983), 389. 11 Heidegger, Wbat is a Thing?, trad. Barton e Deutsch (South Bend: Gateway, 1967),74. 28 i ! l entre a fenomenologia husserliana, 0 positivismo carnapiano e a objectivista. A insistencia de Dewey na da teoria a pr:hica, e a sua de que a tarefa da filosofia e quebrar a crosta da manifestam a mesma no ideal contempla-tivo e nas tentativas de tel' urn lugar preparado a priori para qual-quer coisa que possa acontecer. Mas as de Heidegger e de Dewey sobre a filosofia eram, apesar de tudo, muito diferentes. A que partilhavam no que diz respeito ao fundaciona-lismo e as metaforas visuais tomou form as radicalmente diferentes. Seguidamente, pretendo analisar estas segundo dois t6picos: as suas diferentes maneiras de encarar as entre 0 metaf6rico e 0 literal, e as suas diferentes atitudes no que diz res-peito a enrre a filosofia e a politica. Ao virar-me de Dewey para urn fil6sofo cuja obra me parece ser a melhor actual de uma pragmatista - Donald Davidson - espero ser capaz de rrazer ao de cima a rei evan cia de uma teoria da metafora para a critica do fundacionalismo. Ao centrar-me na que Heidegger fez da filosofia para a poesia, pre tendo a dife- entre 0 que chamei de resposta politica e resposta poe-tica a questao da nossa com a filos6fica. A METAFORA COMO 0 PONTO DE PARTIDA DA LINGUAGEM Permitam-me iniciar 0 t6pico sobre a metafora fazendo uma curta e dogmatica existem tres maneiras de juntar uma nova as nossas anteriores, que assim nos obrigam a tecer de novo 0 tecido das nossas e desejos - a saber, a a inferencia e a metafora. A modifica as nos-sas acrescentando uma nova na rede de ja existentes. Se, pOl' exemplo, eu abrir uma porta e vir urn amigo a fazer alguma coisa chocante, terei de eliminar algumas anteriores acerca dele e repensar as minhas em a esse amigo. A inferencia modifica as nossas ao fazer"nos vel' que as anteriores nos comprometem com uma que nao tinhamos anteriormente - desse modo a decidir se alteramos essas cren,as anteriores au se, peio contrario, explo-ramos as consequencias da nova cren,a. Par exemplo, se eu veri-fico, atraves de urn raciocinio com plica do ao estilo de urn policial, que as minhas acruais cren,as me conduzem 11 conclusao de que 0 meu amigo e urn assassino, terei de reexaminar essas cren. 0 leitor de Ser e Tempo e levado a acreditar que os Gregos gozavam de uma rela- especial com 0 Ser que os modernos perderam, que eles tinham men os problemas em ser ontol6gicos do que nos temos, enquanto que para nos, os modern os, e muito diffcil nao esquecer a entre 0 ontologico e 0 ontico. Ao leitor dos ultimos trabalhos, no entanto, e-Ihe frequentemente dito que Descartes e Nietzsche eram express6es tao adequadas daquilo que era 0 Ser no seu tempo como Parmenides era para aquilo que 0 Ser era no seu tempo. Ista torna diffcil entender qual a vanta gem que os Gregos podiam ter sobre os modern os, ou como Parmenides e Nietzsche poderao ser comparados no que diz respeito a ele-mentaridade das palavras do Sen> com as quais estao associa-dos. Vista que 0 Ser mais nao e do que 0 seu entendimento pelo Dasein, visto que 0 Ser nao e um poder sobre ou contra 0 Dasein, nao Ii claro como poderia haver algo mais autentico ou primor-dial sobre 0 topo das escadas rolantes do que sobre 0 fun do. ,Por isso, nao e claro porque devemos pensar em termos de uma escada rolante em vez de em term os de uma passadeira rolante horizontal. Embora Ser e Tempo se inicie com 0 que parece uma clara dis- entre 0 ontologico e 0 antico, no fim do livro a analitiea do Dasein revelou a historicidade do Dasein. Esta historicidade torna diffcil verificar ate que ponto 0 conhecimento ontologico pode ser mais do que 0 conhecimento de uma especifica historica. Nos ultimos trabalhos, 0 termo ontologia desaparece e e-nos 72 dito que 0 que os gregos fizeram foi inventar uma coisa chamada metaffsica construindo 0 Ser como Aquilo a que Ser e Tempo chamou conhecimento ontologico e fez soar deseja-vel, parece-se agora muito com a confusao entre Ser e seres que os ultimos trabalhos dizem estar no da metaffsica. Algo parece ter mudado, mas, apesar disso, quanto mais rdemos os trabalhos de Heidegger dos an os 192 0 11 luz dos seus ultimos ensaios, mais nos damos conta de que a historia historica que con-tou nos anos 30 ja estava na sua quando escreveu Ser e Tempo. A nossa opiniao sobre 0 que mudou, se alguma coisa mudou, determinara 0 que pensamos da ideia que, por exemplo, logos e mais primordial que Wille zu,' Macht (num qualquer sentido honorffico de primordial). Os proprios comentarios subsquentes de Heidegger sobre Ser e Tempo nao servem de grande ajuda em a questao de se 0 comum vago entendimento do Ser que e suposto ser 0 elemento da analftica do Dasein e em si proprio urn fen6meno historico, em vez de algo a-historico que fornece urn fundo neutro no qual se projectam as entre os Gregos e os modernos. A minha opiniao e que nos anos 1920 Heidegger pensava que era historico e que nos anos 1930 acabou por considera-lo como historicamente situado.24 Se esta opiniao esta correcta, entao 0 Heidegger tardio renuncia 11 demanda do conhecimento ontol6gico a-hist6rico e considera que a reflexao filosofica e historica ate ao fim. Mas se 0 e, entao confrontamos 0 problema da contingencia e do atraso que esbocei anteriormente. Enfrentamos a questao: chegar a urn entendimento daquilo a que Heidegger chama 0 que no sentido rna is completo do Ser agora e25 simplesmente uma questao de recapturar a nossa contingencia historica, de nos ajudar a Yermo-nos a nos pr6prios C0'l1l0 contingentes ao vermo-nos como hist6ricos, au 24 Heidegger negaria isto natural mente. Mas, tal como Okrent (Heidegger's Pmgmntism, p. 223) observa, Heidegger recusou-se teimosamente a admitir que tinha mudado de ideia, cometido erros cruciais nos sellS primeiros traba-Ihos, au que tinha alterado significantemente a terminologia com 0 decorrer do tempo, 25 Letter on Humanism, BW, p. 221. 0 original e tao abseuro como a tradu-t;ao inglesa: was in einem erfiillten Si11ll von Seinjetzt ist (n'1\1, p. 338). 73 e, por exemplo, uma questao de aprender que este e urn tempo particularmente negro e perigoso?26 A questao de base se 0 Heidegger tardio ainda acredita que existe uma disciplina a-historica chamada ontologia conduz-nos rapidamente 11 questao mais importante: se ele tern direito 11 nos-talgia pela qual Derrida e outros 0 tern criticado, e 11 hostilidade que demonstra em ao pragmatismo. Regressando agora a primeira questao, argumentaria que a analitica do Dasein em Se,. e Tempo e interpretada mais benevola e facilmente como uma ana-litica do Dosein ocidental, do que como uma das condi- a-historicas para a ocorrencia da historia27. Hi passagens em Ser e Tempo e especialmente na conferencia mais ou menos con-temporanea Os Problemas Ensicos da Fenomenologia que suportam esta Estas passagens parecem tornar claro que Heidegger investe contra 0 lado historicista do dilema que esbo-cei. Assim, no final de Ser e Tempo cita favoravelmente 0 Conde von Yorck dizendo: Parece-me metodologicamente como urn residuo da metafisica nao historicizar 0 filosofar de cada um.28 Exactamente no final desse livro Heidegger lembra-nos que a analitica do Dasein era meramente preparatoria e que podemos verificar que talvez nao tenha sido 0 melhor caminho29; sugere 26 Devemos ser e1aros relativamente ao facto de que para Heidegger coisas como o perigo de urn holocausto nuclear, a fome devido ao excesso de popula'rao, au coisas semelhantes, nao sao indicadores de que as tempos sao particularmente negros e perigosos. Estes assuntos meramente ancieos nao sao a tipo de coisa que Heidegger tern em mente quando diz que 0 deserto alastra. 27 A ambiduidade entre estas duas alternativas esnl bern expressa numa nota que Heidegger inseriu na margem de BT, p. 28 (SZ, p. 8), Dizendo: Esta activi-dade de de alhar para 0 Ser deriva do entendimento comum do Ser no qual sempre operamos e que no jim p1tence a constitlli[iio essencial do pnJp7'io Dasein [und das am Ende Z1l1' Wesensve1fassung des Daseins selbst gehiirt], comenta in the end [am Ende] com isto e, desde 0 infcio [d.h, von Anfimg an]. au Brama au Nada. Todos nos filosofos temos peio menos urn pouco do padre asceta dentro de nos. Todos nos ansiamos peia essencia e partilha-mos urn gosto pela teoria por a narrativa. Se assim nao fosse, teriamos provavelmente escolhido outra profissao. Por isso, temos de tel' cui dado para nao deixar este gosto seduzir-nos para a que, no que diz respeito a outras cuituras, apenas os nossos pares, aqueies com gostos semelhantes aos nossos, sao fon-tes de fidedignas. Deveriamos permanecer alerta para a possibilidade de a filosofia comparativa nao s6 nao sel' uma estrada magnificente para a mas poder ser mesmo uma de tal E que po de ate ser que estejamos realmente a comparar nada mais que as de urn so tipo de caractel' transcultural a diferentes ambientes. Aqueles que pel'sonificam este tipo de caracter tentam cons tan-temente fazer com que a lingua gem das suas l'espectivas tribos 0 padre asceta considera esta lingua gem viscosa, segundo 0 sentido de Sartre. A sua e ficar acima, ou para tr:lS, ou fora do que pode ser dito na linguagem. 0 seu objective e sempre 0 inefavel. Na medida em que e a usar a lingua-gem, quer uma linguagem que de urn sentido mais puro as pala-vras da tribo ou, ainda melhor, uma linguagem inteiramente separada da actividade da tribo, irrelevante para a mera persegui- do prazer e 0 evitar da dor. Apenas uma tal pessoa pode parti-lhar 0 desprezo de Nietzsche e de Heidegger pelas pessoas a quem Nietzsche chamou os ultimos homens. Apenas ela pode perce-ber 0 objectivo do comentario desdenhoso de Heidegger de que 0 121 grande desastre - 0 alastramento da terra devastada, entendido como 0 esquecimento do Ser - pode facilmente andar de mao dada com urn padrao de vida garantido para todos os hom ens, e com urn estado uniforme de felicidade para todos os homens8. Os padres ascetas nao tern paciencia com as pessoas que pensam que a mera felicidade ou mero decrescimo do sofrimento possam compensar a Seinsvergessenheit, 0 esquecimento do Ser. A minha da no,ao de Nietzsche do padre asceta e deliberadamente pejorativa e sexista. Tenho vindo a esbo,ar 0 retrato de urn obsessivo falod!ntrico, alguem cuja atitude relativa-mente as mulheres se assemelha tipicamente a atitude de Socrates de quando Ihe perguntaram se existiam Formas para 0 cabelo e a lama. Tal pessoa partilha 0 desejo continuamente repe-tido de Nietzsche de limpeza, acima de tudo. Partilha tambem 0 continuamente repetido desejo de simplicidade de Heidegger. E provavel que tenha a mesma atitude em rela,ao ao comercio tanto sexual como economico: considera-o SltjO. Assim, sente-se inclinado tanto a manter as mulheres no seu tradicional lugar subordinado, longe da vista e do pensamento, como a favorecer urn sistema de castas que hierarquiza os guerreiros masculos, que tomam banho frequentemente, acima dos comerciantes malchei-rosos dos bazares. Mas 0 guerreiro esta obviamente hierarquica-mente subordinado ao padre - aquele que toma banho ainda rna is vezes e e ainda mais masculo. 0 padre e mais masculo porque 0 que e importante nao e 0 falo carnal mas 0 falo imaterial - aque!e que penetra atraves do veu das aparencias e contacta com a verda-deira realidade, atinge a luz no fundo do tUne! de uma maneira que? guerreiro nunca conseguid. E facil, com a ajuda de pessoas como Rabelais, Nietzsche, Freud e Derrida, fazer daqueles que perseguem a inefabili-dade, a imaterialidade e a pureza. Mas para Ihes fazer deve-rfamos lembrar-nos que os padres ascetas sao pessoas muito liteis. 8 Veja-se Heidcgger, What is Called Thinking?, p. 30 (Was Heiss! Denken?, p. 11), Hcidegger prossegue dizendo que as palavras de Nietzsche die Wiiste wiichst provem de um domfnio diferente do das da nossa era [ous einem flndereu Ort als die giingigen Bell11eilzmgen u}JJerer Zeit]. Para uma Dutra passa-gem que poe de lado a felicidade como abaixo da considera\ao do Pensador, veja-se a passagem de The Word of Nietzsche discutida acima na pagina 20. 122 Tal como 0 proprio Nietzsche admitiu: Ate ao advento do ideal asceta, 0 homem, 0 animal honum, nao tinha qualquer significado na terra.9 E pouco provavel que tivesse existido muita cultura erudita quer no Ocidente quer no Oriente se em qualquer dos lugares nao houvessem muitos padres ascetas. E que 0 resultado de tentar encontrar uma linguagem diferente da lingua gem da tribo e enriquecer a lingua gem de futuras dessa tribo. Quanto mais padres ascetas uma sociedade for capaz de manter, maior valor excedente estara disponivel para fornecer a estes padres tempo livre para fantasiar, e a linguagem e os projectos dessa socie-dade terao maior probabilidade de ser rna is ricos e diversificados. Os derivados de projectos privados de revelam ter uma enorme utilidade social. Os padres ascetas nao costumam ser uma companhia muito divertida e sao geralmente inliteis se aquilo em que estamos interessados e a felicidade, mas tern sido os veiculos tradicionais da novidade linguistica, 0 meio atraves do qual uma cultura e capaz de ter urn futuro interessantemente diferente do seu passado. Permitiram que as culturas se transformassem, que se libertassem de uma em a urn futuro nunca antes imaginado. o meu objectivo neste ensaio, no entanto, nao e chegar a uma justa e final quer de Heidegger em particular, quer dos padres ascetas em geral. Pelo contra rio, e desenvolver uma opo- entre 0 gosto do padre asceta pela teoria, a simplicidade, a estrutura, a e a essencia e 0 gosto do romancista pel a narrativa, 0 pormenor, a diversidade e 0 acidente. A partir de agora, pregarei urn sermao sobre 0 texto de Kundera, A Arte do Romance: A sabedoria do romance e diferente da sabedoria da filosofia. 0 romance nasce nao do espirito teorico, mas do espirito do humor. Urn dos maiores fracassos da Europa e nunca ter compreendido a mais europeia das artes - 0 romance; nem 0 seu espirito, nem 0 seu grandioso conheci-mento e descobertas, nem a autonomia da sua historia. 9 Genealogy ofMo1"flls III, 28 (tradu


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