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SacerdoteS 15

Date post: 29-Mar-2016
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A mágoa da Guerreira
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Capítulo 15 – A mágoa da Guerreira

— Eu partirei em uma hora – dizia Mifitrin à Manjourus, seu tutor. Ela está de volta aos Domínios do Tempo. Separou-se de Elkens e os outros em Buor com o objetivo de ir até o reino de Emeldis, mas o por-tal para os Domínios do Tempo fica no seu caminho para o reino dos elendurs. Por isso estava de volta a sua casa. O General Manjourus pareceu contrariado, mas não disse nada contra a determinação e a coragem de Mifitrin. Ela estava disposta a partir imediatamente para Emeldis, onde pediria ajuda para a guerra contra Mon. — Eu pedi a Arkas que a leve até o ponto mais próximo de Emeldis – disse Manjourus. – Eu pediria para que ele a acompanhasse até o fim, mas ultimamente os Mensageiros andam muito ocupados. Você será

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deixada além do Território das Feras, mas terá de ir até Emeldis so-zinha. — Não tem problema – Mifitrin estava sentada sobre uma pedra no Pátio da Antúnia, sob a majestosa árvore que era tão importante para o Tempo. Manjourus estava em pé diante dela, mas Mifitrin ficou du-rante toda a conversa sem encará-lo. – Não precisa se preocupar co-migo… — Não temo por você Mifitrin – disse o General do Tempo, quase num desabafo. – Sei que é capaz de lutar e se defender, mas é que… Manjourus perdeu a voz e se calou, pois não sabia como dizer à Mifi-trin o que queria; ela já sabia do que se tratava, então baixou ainda mais a cabeça para evitar que seus olhos por acaso encontrassem os olhos de seu tutor. Não tinha coragem de encará-lo agora, sabendo o rumo que a conversa estava tomando. Manjourus queria falar de um problema que os dois tinham conhecimento, mas que o orgulho de Mi-fitrin a impedia de admiti-lo ou mesmo de ouvi-lo de qualquer outra pessoa. Mas Manjourus era seu tutor e responsável por ela, por isso tinha que dizer o que precisava ser dito, não somente o que ela queria ouvir. — Eu compreendo senhor – disse ela inesperadamente. – Mas não sei o que está acontecendo comigo… estou assim faz alguns dias. — Desde o dia em que a alma de Morton reencarnou, para ser mais exato. Você precisa superar isso, Mifitrin. Você ainda está se sentindo culpada pela morte de Morton e isso não é bom para você. É isso o que está minando e limitando seus poderes. Precisa superar seus sentimen-tos, ou será derrotada por eles. Precisa confiar mais em si mesma. Mifitrin continuava de cabeça baixa, sem coragem nem mesmo para encarar seu tutor. Manjourus estava com pena dela, e ela percebia is-so, e era exatamente isso o que a deixava tão deprimida. Não suporta-

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va a idéia de que os outros sentissem pena dela, mas isso estava acon-tecendo com alguém que era tão próximo; justo ele que a conhecia tão bem e sabia o quão forte podia ser. E o que a deixava se sentindo ain-da pior era saber que Manjourus sentia pena dela exatamente pelo fa-to de conhecê-la tão bem, pois ele tinha razão. Suas palavras eram verdadeiras. Tudo o que Manjourus falava era verdade, pois ela se sentia fraca desde que a alma de Morton reencarnou. Isso despertou nela um sen-timento antigo e reprimido: a culpa. Quando Morton morreu, Mifitrin ficou vários dias sem conseguir executar um simples feitiço, pois esta-va dominada por sentimentos ruins. Com o tempo ela superou isso, mas agora que a alma de Morton havia reencarnado em um novo cor-po, todos esses sentimentos voltaram de uma única vez. Já fazia quinze anos desde que Morton morreu, mas até agora Mifitrin não havia se superado completamente. Desde que partiu dos Domínios do Tempo com Meithel e Elkens para o vilarejo de Rismã, ela soube que a hora de se provar finalmente chegara e sabia também que deveria se preparar para cumprir a promessa que fez a si mesma no dia em que Morton morreu: não permitiria que a morte dele fosse em vão. Mas agora ela estava se correndo por dentro, pois sabia que não conseguiu atingir todo o seu potencial na curta jornada ao lado de Elkens e os outros. — Confie em mim, senhor – ela pediu determinada após algum tempo. Tomou coragem, levantou a cabeça e olhou para seu tutor que ainda estava em pé diante dela. – Eu vou me sair bem. A partir de agora usarei todo o meu potencial para alcançar meus objetivos e não falha-rei perante o grande mau que se aproxima. Manjourus sorriu para ela, um sorriso cheio de significados, inclusive pena.

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— Eu confio em você, Mifitrin – ele disse, tentando esconder sua preocupação com um sorriso forçado. – É você que precisa confiar mais em si mesma. Manjourus se despediu de Mifitrin e deixou o Pátio da Antúnia. A Guerreira do Tempo permaneceu no pátio, meditando sobre muitas coisas. Estava se lembrando de coisas que aconteceram há mais de quinze anos, mais de três ciclos de tempo atrás, quando ainda era uma Aprendiz de Morton. Lembrou-se com saudade do seu rígido treina-mento, mas lembrou-se também do sorriso que Morton lhe dava ao fi-nal de cada dia, quando ela conseguia realizar tudo o que ele pedia. Havia muitas lembranças boas e felizes da época em que era treinada por Morton, mas sempre que pensava em alguma delas, revia a cena de seu antigo tutor atirando-se no precipício. — Mifitrin? – chamou uma voz de repente, e ela se assustou, pois es-tava perdida em pensamentos e esquecera-se completamente de onde estava ou do que tinha de fazer. Ela olhou assustada e viu que era Arkas quem a chamou, o Mensagei-ro do Tempo que também participou da batalha contra os kenrauers quinze anos atrás. — Arkas! – exclamou surpresa, levantando-se para vê-lo melhor. Ar-kas era um dos seus melhores amigos ali dentro. Após a morte de Mor-ton, foi Arkas quem sempre ficou ao seu lado, dando-lhe forças. Os poderes de Mifitrin ficaram bloqueados por tanto tempo após a morte de seu tutor que alguns protetores chegaram a cogitar que ela jamais seria capaz de utilizar magia, que estava bloqueada definitivamente e que deveria entregar seu colar e assumir uma nova vida ao lado dos humanos, longe dos protetores. Mas foi Arkas quem a incentivou e fez com que ela se animasse e conseguisse mostrar aos outros que ainda era capaz de usar magia. No mesmo dia ela correu até o Mestre do

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Tempo Kantus e iniciou seu treinamento com um novo tutor. Sob os cuidados e treinamentos de Kantus, Mifitrin tornou-se uma Sacerdo-tisa do Tempo em poucos anos. Mas ela não demorou a perceber que não tinha vocação para ser uma Sacerdotisa; um Sacerdote deve ter um excelente controle sobre a concentração, coisa que ela jamais con-seguira fazer direito, então resolveu iniciar um novo treinamento. Abandonou Kantus e foi atrás de Manjourus, que iniciou seu treina-mento de Guerreira imediatamente. Por isso hoje ela é uma Guerreira, e não uma Sacerdotisa como Morton pediu que ela fosse no dia em que morreu. — Imagino que Manjourus tenha lhe avisado que preciso da sua aju-da – disse ela sorrindo para o amigo. — Ah, sim! – exclamou o Mensageiro forçando um sorriso. – Man-jourus me pediu para deixá-la o mais perto possível de Emeldis. — Iremos agora? Arkas pareceu ficar constrangido de repente, então olhou para Mifi-trin com o olhar de pena que ela tanto odiava. — Eu a levarei Mifitrin, mas não agora… — Por que não? – ela perguntou, alterando-se completamente. Havia deixado de tratar Arkas como um amigo e olhava com ódio para ele. Não podia aceitar que sentissem pena dela. — Manjourus disse que ainda não te deu autorização para partir – disse Arkas – por isso não posso levá-la até que ele… — NÃO! – ela exclamou ao ser contrariada. – Eu acabei de conver-sar com Manjourus e pensei que ele tivesse concordado em deixar que eu fosse. O que é que ele quer que eu faça? Que fique de braços cruza-dos, como todos estão fazendo, e espere que Mon apareça e assuma o poder sobre toda Gardwen?

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— Isso não é verdade, Mifitrin – o tom de voz de Arkas indicava a ofensa que havia levado da amiga. – Não é assim que as coisas estão acontecendo. Você pode não saber, pois esteve fora ultimamente, mas estamos fazendo alguma coisa contra Mon. Embora não possamos lu-tar abertamente contra ele, estamos fazendo o possível para impedir que Mon vença… — O QUE ARKAS? – Mifitrin perdeu a calma. – O que estão fa-zendo? Não vejo vocês saindo dos Domínios do Tempo para procurar por Mon ou lutar contra seus kenrauers. Vocês apenas estão aqui, es-perando que finalmente possamos lutar contra ele, mas aí já será tar-de. Mon terá domínio sobre tudo lá fora e nós não poderemos fazer nada. Tudo lá fora será destruído, e não haverá mais vida ou amor ou esperança… Vocês não se importam com os que estão lá fora, os fra-cos, acham que apenas os protetores é que são importantes, mas não são Arkas! Nós apenas existimos para que possamos proteger este mundo e todos e tudo o que habita nele. Vocês estão agindo como co-vardes, mesmo depois de tudo o que Morton fez; mesmo depois do sa-crifício dele… Os olhos de Mifitrin estavam contraídos e sua voz falhou de tal for-ma que não conseguiu mais falar. Ela respirava rapidamente e estava com muita raiva. Arkas estava a sua frente, apenas ouvindo ela dizer tudo o que estava entalado na garganta, mas quando a Guerreira fi-nalmente terminou de desabafar, foi a vez dele falar: — Você está errada, Mifitrin. Estamos fazendo muita coisa contra Mon. O Tempo e a Alma finalmente estão trabalhando juntos. Os Mensageiros estão vigiando todos os portais. Os Mestres estão fortifi-cando as forças dos Elementos, os Sábios e o Guardião da Alma estão em conselho para que possam decifrar as escrituras dos pergaminhos ancestrais, pois precisam descobrir qualquer coisa que possa ser usada

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contra Mon. Todos os outros estão de alguma forma ajudando, pro-tegendo seus Domínios contra o grande mal… — PROTEGENDO DO QUÊ? – perguntou a Guerreira mais uma vez gritando, e alguns Aprendizes que estavam meditando no Pátio da Antúnia se assustaram. – Estamos seguros aqui dentro, ninguém poderá entrar. Nós é que precisamos sair e enfrentar os kenrauer que continuam a matar inocentes para se multiplicarem. — Mais uma vez você está enganada, Mifitrin – respondeu Arkas calmamente, aproveitando a brecha que Mifitrin deixara para ele fa-lar. – Segundo as escrituras, não podemos enfrentar os kenrauers ain-da, pois isso é problema dos homens, mas podemos lutar indiretamente contra Mon. Você acha que estamos seguros aqui dentro, mas não es-tamos. Enquanto a Magia permanece isolada de Gardwen, os outros Elementos enfraquecem. Se os Domínios da Magia permanecerem trancados da forma como estão, todos nós seremos destruídos. Os três Elementos sempre agiram juntos, e mesmo quando um Domínio era se-lado porque sua alma-guardiã abandonava o mundo, assim como aconteceu com o Tempo quando Morton morreu, ainda assim os outros Elementos sabiam e sentiam que ele estava ali, pois ele não se isolava por completo. “Desta vez aconteceu diferente com a Magia, pois ela está completa-mente isolada dos outros Elementos, e para o Tempo e a Alma é como se a Magia tivesse morrido. Nenhum dos dois agüentará muito tempo caso ela não volte ao normal. É por isso, Mifitrin, que era tão impor-tante que você fosse até os Domínios da Magia e conseguisse abrir o portal, pois só assim os Elementos serão salvos. Estávamos todos de-pendendo de você, mas você fez o contrário do que prometeu e é por isso que Cronos e os outros estão tão decepcionados com você. Vocês prometeram que iam resolver o problema…”.

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— E VAMOS RESOLVER! – ela completou ao sentir o peso de sua responsabilidade, tentando ao mesmo tempo fazer Arkas parar de falar. Toda a verdade estava a atingindo de maneira dolorosa e ela sentia raiva de tudo. Agora compreendia porque era tão importante abrir os Domínios da Magia. – Vocês estão se esquecendo de Elkens e Meithel e eles continuam seguindo em direção aos Domínios da Ma-gia. Vocês deviam confiar neles, pois Morton confia! Eles estão sendo muito mais corajosos que qualquer um de vocês, pois estão caminhan-do em direção ao desconhecido, sem nem ao menos saber o que se passa lá dentro. Como eu relatei à Cronos e os outros assim que cheguei, acreditamos que os nove Cavaleiros é que sejam os responsáveis por tudo o que está acontecendo dentro dos Domínios da Magia, e se isso for verdade significa que Elkens e Meithel não terão a menor chance de vencer. Mas eles não desistem e seguem corajosamente. Mifitrin terminou de dizer o que queria, então deixou que Arkas re-trucasse, mas ele não fez isso. Ele tentou manter a calma. Mifitrin é que estava fora de si, então cabia a ele manter-se calmo e impedir que coisas ditas sem pensar tivessem conseqüências mais sérias. Ele era amigo de Mifitrin, sempre foi, e a respeitava acima de tudo; nada dis-so iria mudar, pois ele sabia pelo o que ela estava passando e o quanto estava sendo pressionada por si mesma. Era uma situação insuportá-vel de se vivenciar. Ela estava disposta a fazer tanta coisa para aju-dar, mais disposta que qualquer outro, mas não tinha poderes sufici-entes para isso porque ela própria estava se torturando com sentimen-tos que acabavam bloqueando seus poderes. Arkas sabia que ela não gostaria de saber disso, mas estava sentindo pena da Guerreira, da si-tuação em que ela se encontrava. Mas Mifitrin também sentia pena de Arkas. Ela pôs para fora tudo o que estava segurando nos últimos dias, mas aquilo tudo não era para

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ele. Ela sabia o quanto ele era corajoso e determinado; não merecia ouvir as coisas injustas que ela disse para ele. Mifitrin percebeu durante a discussão que não era apenas ela e os ou-tros que estavam fazendo alguma coisa contra Mon; cada protetor es-tava neste momento fazendo o que podia e o que lhe cabia. É claro que não poderiam interferir muito, mas faziam o que lhes era permiti-do. Arkas ficou um longo tempo em silêncio, aguardando que Mifitrin pensasse em tudo o que havia ouvido e falado, até que colocasse suas idéias em ordem. Após constatar que ela havia feito tudo isso, ele disse num tom reconfortante: — É por isso que você não pode partir ainda, Mifitrin. Manjourus acha que você não está preparada emocionalmente, e eu, conhecendo-a como conheço, aconselho que você escute seu tutor. Mifitrin concordou com a cabeça, então Arkas continuou: — Manjourus me pediu que eu a levasse até um lugar. Haverá uma pessoa esperando por você lá, e Manjourus acha que essa pessoa pode ajudá-la. Acompanhe-me, Mifitrin. Ambos saíram do Pátio da Antúnia e Mifitrin acompanhou Arkas em silêncio. O pensamento da Guerreira voltava-se constantemente para Elkens e os outros. Tentava imaginar onde estariam agora e o que es-tariam fazendo. Preocupava-se em especial com Elkens. Conhecia o Sacerdote da Alma há apenas alguns dias, mas já adquirira um grande respeito por ele. Elkens não era forte, ela reconhecia, mas ainda assim ela o escolheria para acompanhá-la numa nova jornada. Era o caráter de Elkens que ela admirava. Uma pessoa honesta e justa, disposta a sacrificar tudo pelo próximo. Elkens era uma pessoa assim, exatamen-te o oposto dela. Ela não procurava ver a bondade de alguém. Se não fosse pelo aviso de Elkens, teria considerado Kanoles um verdadeiro

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inimigo quando se enfrentaram em Rismã, mas Elkens viu a bonda-de em seu coração antes mesmo de conhecê-lo. Algo que ela preza aci-ma de tudo é o caráter de alguém, não sua força ou coragem, e Elkens foi uma das pessoas que chamou sua atenção para este fato. Ela sabe que é a mais forte entre os três que partiram dos Domínios do Tempo, mas reconhece que Elkens talvez fosse o mais importante do grupo. — Chegamos! Mifitrin assustou-se. Estava tão perdida em pensamentos que nem ao menos reparou para onde seus pés a levavam. Estava diante da Flo-resta Eterna.

A Floresta Eterna é repleta de árvores imensas e milenares, cujos troncos só podem ser abraçados por dez homens juntos. As copas das árvores atingiam alturas infinitas. Suas folhas eram pequenas e ver-des, mas quando caiam se tornavam douradas e o chão era coberto por elas, como um imenso tapete. Estas árvores recebem o nome de tuniar, e só crescem ali dentro dos Domínios do Tempo. Em pé, pouco a frente deles e ao lado de uma das árvores gigantes, es-tava alguém vestido completamente com roupas rubras. Era um prote-tor da Alma, uma das pessoas mais sábias e confiáveis na opinião de Mifitrin. — Mestre Nai-Kalimuns? – perguntou a Guerreira intrigada, embora feliz pela surpresa. – O que faz aqui? Antes que Kalimuns pudesse responder, Arkas deu um passo frente e disse: — Eu a trouxe aqui conforme me pediram. Agora, se me der licença, vou me retirar.

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Kalimuns concordou com a cabeça sorrindo, então agradeceu ao Mensageiro. Arkas tocou seu colar e usou o teletransporte, desapare-cendo. — Que bom revê-la, Mifitrin – disse Kalimuns em tom preocupado. Mifitrin forçou um sorriso, então disse: — É bom vê-lo também, Kalimuns, mas o que faz aqui? — Vim a pedido de Manjourus. Ele disse algo que eu também havia percebido: seus poderes estão bloqueados. Você está bloqueando seus poderes! — Não… ‒ exclamou Mifitrin chateada. – Eu já conversei com meu tutor sobre isso e disse que eu iria me recuperar sozinha. Eu disse que voltaria a ser o que era antes e ele disse que confiava em mim… — E confia, Mifitrin – confirmou Kalimuns seriamente. – Mas ele sabe, e você tem que admitir, que está precisando de ajuda. Seus sen-timentos estão bloqueando sua magia e se isso continuar assim, chega-rá o dia em que sua magia será completamente bloqueada e você deixa-rá de ser uma protetora. Irá se tornar uma humana. Uma simples hu-mana. Mifitrin sentiu-se desmoronando por dentro sob o olhar de Kalimuns. Sua expressão séria transformou-se numa expressão de choro, então ela disse com a voz fraca, quase implorando: — Você pode me ajudar, Kalimuns? Kalimuns não pôde deixar de sentir pena da Guerreira. Jamais imagi-nou que a veria numa situação tão deprimente, mas sorriu, pois ela acabara de admitir para si mesma que realmente precisava de ajuda. Kalimuns encarou a Guerreira por algum tempo, que estava prestes a chorar como uma criança que havia feito algo errado e estava com me-do de levar bronca. — Não – respondeu o Mestre simplesmente. – Não posso ajudá-la.

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Tão rápido quanto Mifitrin se desmoronara, ela se endireitou, en-cheu o peito e recolocou a expressão séria no rosto, então disse zanga-da: — Então estou perdendo o meu tempo aqui! Dizendo isso, ela deu às costas para Kalimuns e seguiu para a saída da Floresta Eterna. — Espere, Mifitrin – pediu Kalimuns calmamente, então Mifitrin parou. Percebeu de repente o que havia acabado de fazer. Havia aca-bado de desrespeitar alguém superior e que merecia, acima de tudo, respeito. Não foi isso o que Morton lhe ensinou a fazer, então ela vi-rou-se de volta, de frente para Kalimuns, e seguiu até ele. Ele sorriu e continuou: — Eu a chamei até aqui porque achei que era o local ideal para con-versarmos sem sermos vistos. Há mais alguém aqui nesta floresta que quer vê-la. Kalimuns olhou para o lado e sorriu. Havia mais alguém ali, escondi-do atrás de uma das árvores. Kalimuns recuou um pouco para permitir que Mifitrin pudesse dar alguns passos à frente e ver quem mais esta-va com eles. Era um homem alto, vestido com vestes anis de um prote-tor do Tempo. Os contornos do homem estavam fracos e ele parecia quase transparente, mas Mifitrin não se assustou. — Senhor Morton! – exclamou ela emocionada. Morton estava em pé diante dela, mas Mifitrin sabia que ele não era tão real. Era apenas uma ilusão, um reflexo do que Morton fora, e es-tava sem colar, pois seu colar estava agora com Elkens; mas Morton não precisava mais dele, afinal de contas não estava vivo. — Que bom vê-la, Mifitrin – disse o fantasma de seu falecido tutor, sorrindo.

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Mifitrin não disse nada, pois ficou sem nenhuma reação. Não espe-rava ver Morton ali, nem em nenhum outro lugar. Ao ver seu silêncio, Morton esperou alguns segundos antes de continuar: — Kalimuns me disse que você precisava falar comigo, Mifitrin. Sei de tudo o que aconteceu e está acontecendo com você, por isso vou fa-zer apenas uma pergunta: o que você acha que poderia ter feito para evitar a minha morte? Mifitrin ficou pensativa por um momento, mas logo disse: — Sinceramente eu não sei, senhor. Mas eu sei que deveria haver um modo; o senhor não precisava morrer, eu podia tê-lo ajudado a comba-ter os kenrauers… — Não Mifitrin – disse Morton interrompendo-a. – Ninguém pode-ria ter me ajudado a combater os kenrauers, pois ninguém até o mo-mento pode enfrentá-los. Vou lhe pedir uma coisa, Mifitrin: não fique se sentindo culpada pela minha morte, pois ninguém tem culpa, muito menos você. Se eu morri, foi para garantir algum tempo pra você cres-cer e se preparar para a grande guerra contra Mon. Eu apenas ganhei tempo para você amadurecer para a dura realidade. Eu ganhei tempo para que você se tornasse capaz de enfrentar Mon, e hoje você é ca-paz, Mifitrin. Você se tornou uma pessoa muito forte, uma grande Guerreira, mas se você continuar com esse sentimento de culpa ele irá te corroer por dentro, e você não poderá mais lutar. Vou lhe dizer uma coisa Mifitrin, e espero que com isso você finalmente aceite que não tem culpa alguma pela minha morte: ela estava prevista nos pergami-nhos ancestrais. Mifitrin levou um susto com o que ouviu, pois de repente percebeu que isso realmente era verdade. Ela lembrou-se de um trecho das escrituras que Sáturan citou para eles em Buor, que falava sobre a Guerra Ele-mentar:

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“Sacrifícios nos salvarão por algum tempo,

Mas a ira de Mon não será contida por muitos ciclos”.

Então era mesmo verdade. Morton já estava condenado a morrer mesmo antes de ter nascido. Aquele era o seu destino, e ele teria mor-rido não importasse o que Mifitrin fizesse. Finalmente compreendia que nem ela nem ninguém poderia ter salvo a vida de Morton, pois foi ele mesmo quem aceitou esse destino. — Esse era o meu destino – disse Morton. – Confesso que eu demorei em descobrir isso, e também apenas tive certeza de que a escritura fa-lava de mim no dia em que morri. E no fim era verdade: o meu destino era morrer para garantir sua sobrevivência. Eu morri para lhe dar tempo de se preparar para enfrentar Mon quando finalmente chegar a hora… — Mas não adiantará nada – disse a Guerreira desanimada. – Quando finalmente chegar a hora, Mon terá domínio sobre tudo lá fo-ra, estará tão forte que nós não poderemos enfrentá-lo. Ninguém será capaz de enfrentar a ira de Mon quando ele estiver em pleno poder, pois todos estão esperando de braços cruzados. Precisamos passar a nos importar mais com o que acontece lá fora; precisamos enfrentar Mon diretamente. Se não fizermos isso não haverá mais esperança… — Sua determinação e senso de justiça não a permitem que pense di-ferente, não é? – disse Morton sorrindo carinhosamente. – Mas está errada quando afirma isso. Não pode dizer que não haverá esperança, pois está nas escrituras dos pergaminhos ancestrais que a esperança será essencial para a nossa vitória. E também está muito errada quando diz que todos estão de braços cruzados, pois isso não passa nem perto da verdade. Há muita gente se preparando para enfrentar

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Mon. Olhe isso, Mifitrin – Morton desviou os olhos da Guerreira e colocou a mão esquerda no tronco da grande árvore que estava ao seu lado. – Esta árvore está aqui desde que o Tempo passou a existir, mas olhe bem! Você esteve incontáveis vezes nesta floresta; é capaz de perceber algo de errado aqui? Mifitrin olhou para a árvore e reparou que estava um pouco diferente. Ela se aproximou da árvore, tocou-a com as duas mãos e analisou-a cuidadosamente. Realmente não estava tão bela quanto se lembrava que eram. — Ela está morrendo – Morton informou. – Está morrendo aos pou-cos, junto com o Tempo. Está morrendo como tudo o resto aqui dentro. O Tempo e a Alma estão morrendo, pois a Magia está isolada deles. Se não fosse pelos Mestres os Elementos já teriam morrido, pois eles não resistem muito tempo separados. Os Mestres estão dando suas forças para poderem manter seus Elementos vivos. Ao mesmo tempo também, os Sábios do Tempo e da Alma estão tentando decifrar as escrituras dos pergaminhos, pois precisam descobrir um modo de derrotar Mon. Os Generais dos Elementos estão enfrentando o mal que já está conse-guindo penetrar nos Domínios… Mifitrin não conseguiu compreender do que Morton estava falando, por isso o interrompeu: — Que mal é esse que está conseguindo penetrar nos Domínios? — Veja bem, Mifitrin. Entenda que a dimensão onde os Domínios fi-cam não é a mesma onde está Gardwen. Os Domínios ficam em uma dimensão paralela, onde tudo além é um grande vazio. Os Domínios estão nesse vazio, mas tem ligação com Gardwen através dos portais, mas não tem ligação com o vazio que está a sua volta. Esse vazio é chamado de Exílio, e é para esse lugar que a alma de Mon foi manda-

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da quando ele foi banido. Na verdade ele está muito próximo aos Domínios, mas não consegue entrar aqui por causa das fronteiras. “Mas com o isolamento da Magia, as fronteiras do Tempo e da Alma estão enfraquecendo, e Mon pretende entrar por essas fronteiras para que possa chegar a Gardwen através dos portais. E é a própria mal-dade de Mon que está conseguindo penetrar lentamente enquanto as fronteiras enfraquecem”. Mifitrin ficou em silêncio, tentando compreender tudo o que Morton dizia. Kalimuns também ficava em silêncio, apenas observando a con-versa dos dois. — Todos estão lutando de alguma forma contra Mon, e os que não estão lutando, estão se preparando para uma possível Guerra Elemen-tar. – concluiu Morton. – O que está fazendo é uma atitude muito nobre, e está correta. Por isso peço que a partir de agora não pense mais que morri por sua culpa, pois todos precisamos que você esteja com todos os seus poderes para nos ajudar. E se ainda estiver dispos-ta, sugiro que parta o quanto antes para Emeldis. Os humanos real-mente precisarão da ajuda dos elendurs nesta guerra. Morton deu um último sorriso para a Guerreira, então desapareceu inesperadamente, desmanchando-se em flocos de luz que vagaram pelo ar. Depois desta conversa com seu antigo tutor e amigo, Mifitrin fi-nalmente estava se sentindo melhor. Estava disposta a dar o melhor de si agora. Olhou sorrindo para Kalimuns. Ele apenas retribuiu o sorriso e sussurrou: “Vá”. Mifitrin não chorou. Tampouco se livrou de sua mágoa, mas já era um começo. Entender que não teve culpa na morte de Morton era um grande passo; logo ela passaria do entender para o aceitar, e só então seria capaz de se livrar de sua culpa. Quando isso acontecesse, quando fosse capaz de chorar novamente, a verdadeira Mifitrin floresceria e,

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com ela, todo o poder que está preso dentro dela. Todo o poder que, apesar de ela não saber, Morton sempre soube que ela tinha. Ela deu um passo, e isso já é uma grande conquista…

— Aqui estamos – disse Arkas assim que saíram dos Domínios do Tempo. – Chegará ao mar em pouco tempo se seguir em frente, e além dele está a ilha de Emeldis. — Obrigada – Mifitrin o agradeceu. Eles estavam em um lugar plano, praticamente desprovido de árvores. Havia umas poucas árvores, não muito grandes, mas a maioria era ve-getação rasteira. Grandes pedras estavam por todo o lado, em maior número que as árvores e muitas vezes até maiores que elas. Não havia nenhuma nuvem no céu que diminuísse o calor de Tunmá, que já esta-va insuportável. Mas em compensação, estava ventando muito forte, como era comum no Território das Feras. Mas felizmente Mifitrin não precisava se preocupar com fera alguma, pois aquele portal para-lelo havia sido feito além dos limites do Território das Feras; ali ela estaria segura. O Território das Feras é uma vasta savana que abriga todo o tipo de fera e está entre os onze lugares que nenhum Mensagei-ro ousa ir, assim como Almaren e a Floresta de Pedra. — Queria poder ir com você – disse Arkas à amiga. – Mas eu preciso continuar vigiando os portais. Eles estão ficando cada vez mais fra-cos, e na situação em que estamos é perigoso deixá-los desprotegidos. Mifitrin sorriu. — Não tem problema. A viagem é curta agora que você me trouxe até aqui. O difícil mesmo será convencer o rei de Emeldis de que estão cor-rendo perigo e que devem se juntar aos humanos…

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— Você surpreendeu a todos com o que está fazendo – disse Arkas cheio de orgulho. — Eu estou fazendo o que é certo, Arkas. — Realmente – o Mensageiro do Tempo concordou. – E é por isso que você surpreendeu. Está lutando pelos humanos, os mesmo humanos que um dia nos culparam por tudo o que acontecia de mal em Gar-dwen e nos forçaram a viver em nossos Domínios. — Estou lutando pela paz e pela justiça – disse a Guerreira veemen-te. – Estou lutando pelo o que Morton se sacrificou para conseguir. Estou lutando pelo o que acho que meu antigo tutor também luta-ria… Arkas olhou para Mifitrin cheio de admiração, então disse: — Boa sorte, Mifitrin. Avise-me quando estiver voltando que eu ve-nho imediatamente te buscar. — Obrigada, Arkas – disse ela se despedindo. O Mensageiro deu-lhe um abraço, mas então tocou seu colar e desapa-receu. Havia voltado para os Domínios do Tempo. Mifitrin estava novamente sozinha, mas não se importou. A solidão foi algo com o que teve de se acostumar logo após a morte de Morton. Depois da morte dele ela ficou dias sem ver ninguém, sempre escondi-da onde não podiam encontrá-la. Ainda era uma Aprendiz e não tinha autorização de sair sozinha dos Domínios do Tempo, mas ela fazia is-so mesmo assim. Ficava indo aos lugares em que Morton a levara, lu-gares em que ela recebeu algum tipo de treinamento ou algum conse-lho. Cada lugar lhe trazia lembranças de Morton, e ela costumava fi-car horas nesses lugares, voltando para a casa apenas tarde da noite. Mas esses lugares não faziam bem a ela, muito pelo contrário, apenas enchiam mais ainda seu coração de culpa.

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Mifitrin estava sozinha. Estava na cratera que havia na floresta, do lado de fora dos Domínios do Tempo. Já haviam se passado cin-qüenta e três dias desde a morte de Morton, mas ela se recusava a conversar com alguém. Desde o ocorrido, muitas pessoas procuravam falar com ela, mas isso a irritava e ela tratava a todos com grosseria, deixando-os falando sozinho. Mifitrin não tinha muitos amigos da sua idade dentro dos Domínios do Tempo; na verdade ela reconhecia que não tinha nenhum. Seu treinamento com Morton sempre foi muito rígido e ela mal tinha tempo para fazer amizades. Morton havia erra-do nesse ponto, pois procurou treiná-la o máximo que podia; graças a isso se tornou a melhor Aprendiz do Tempo, mas em troca disso não tinha nenhum amigo. Mas isso não importava agora. Ela estava com raiva de tudo e de todos, por isso preferia ficar sozinha. — Te encontrei – disse alguém, e Mifitrin olhou assustada para trás. Era Arkas, o Mensageiro do Tempo, o mesmo que havia ajudado na batalha contra os kenrauers no Templo das Esferas. – Eu sabia que te encontraria aqui. — O que você quer, Arkas? – perguntou ela com raiva, numa atitude quase infantil. Seus olhos estavam vermelhos, sinal de que ainda con-tinuava chorando. — Já se passaram cinqüenta e três dias, Mifitrin – disse Arkas sen-tando-se ao lado dela na beira da cratera – mas você continua indo aos lugares em que Morton te levava. — Esses lugares me trazem lembranças boas – disse Mifitrin acal-mando-se um pouco, mas evitava olhar para o Mensageiro. — As lembranças de Morton sempre vão estar com você, não importa onde você esteja. Jamais irá esquecê-lo, assim como nenhum de nós. Mas eu sei que você não vem a esses lugares pelas lembranças; você

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vem até aqui para se torturar! Você continua achando que ele mor-reu por sua culpa, mas eu já te disse que isso não é verdade. Mifitrin pegou uma pequena pedra do chão, estudou-a nas mãos por alguns segundos, mas então atirou-a. A pedra rolou pela cratera, até que finalmente chegou ao fundo. Um trovão cortou o silêncio que se seguiu e em poucos segundos come-çou a chover. A chuva veio rápida e forte, mas nenhum dos dois havia dado qualquer sinal de que haviam reparado nisso. A chuva havia trazido uma nova lembrança para ela, uma dolorosa lembrança como todas as outras. Também estava chovendo naquele dia, e foi nessa mesma cratera que Mifitrin aprendeu e aperfeiçoou seu primeiro feiti-ço: conjurar esferas. — Isso está lhe fazendo mal – disse Arkas de repente. – Esse senti-mento que você está alimentando, esse sentimento de culpa que au-menta cada dia mais está acabando com você. Eu já te disse que a morte de Morton não é culpa sua nem de ninguém; você precisa parar de se torturar. Mifitrin não respondeu, apenas observava a chuva caindo e lenta-mente acumulando água no fundo da cratera. O vento estava forte, mas ela não se importava. Gostava do vento, sempre gostou. — Eu vou ficar aqui até você ir embora – disse Arkas decidido. – Não interessa quanto tempo você vai ficar aqui, passando frio e fome, pois eu vou ficar também, passando frio e fome assim como você. Mas quando você resolver voltar comigo para os Domínios do Tempo, va-mos direto falar com Kantus. Mifitrin olhou para Arkas. O Mensageiro sentiu pena dela. Mifitrin tinha quinze anos, mas não passava de uma criança, e mesmo assim foi obrigada a passar por tantas coisas, por tanto sofrimento. Aquilo não era justo. E o que estavam querendo fazer com ela também não

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era justo. Arkas não tinha coragem de lhe contar, mas sabia que pre-cisava fazer isso caso quisesse ajudá-la. Ele passou o braço por seus ombros, então finalmente disse: — Estão dizendo que já te deram muito tempo. Ouvi dizer que logo irão tomar seu colar e entregá-la a uma vida humana, da onde você foi tirada. Mas eu não acho isso justo, por isso estou aqui lhe dizendo is-so, porque eu quero te ajudar. Mas eu não posso fazer nada por você, Mifitrin, é você mesma quem deve tomar uma decisão. E é por isso que eu estou aqui, para pedir que você procure o Mestre Kantus e peça pa-ra que ele a aceite como sua Aprendiz. Foi isso o que Morton lhe pe-diu antes de morrer, não foi? Você mesma me contou que ele pediu pa-ra que você se tornasse uma Sacerdotisa do Tempo, então acho que es-tá na hora de você fazer isso. Eu não vou dizer mais nada, mas vou ficar esperando você tomar uma decisão. Mifitrin tentou sorrir, mas uma lágrima veio primeiro. Uma das últi-mas que derramou. Ela desviou o olhar e voltou a olhar para o fundo da cratera. Arkas tinha razão. Já haviam se passado cinqüenta e três dias! Estava na hora de ela fazer alguma coisa. Ela precisava fazer alguma coisa se quisesse cumprir a promessa que fez a si mesma no dia em que seu tutor morreu. Se quisesse vingar a morte de Morton, esta-va na hora de parar de chorar. Mifitrin corria como o forte vento tão comum no Território das Feras, talvez até mais veloz que ele. Sentia-se incrivelmente leve agora, sen-tia a magia correndo por suas veias. A conversa que teve com Morton realmente foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Um enorme peso foi tirado de suas costas. Sentia-se capaz de qualquer coisa ago-ra. Voltou a ter esperanças, e isso por si só já era uma coisa maravi-lhosa.

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Era praticamente impossível vê-la correndo. Uma nuvem de poeira levantava-se às suas costas. Estava empenhada em chegar a Emeldis o quanto antes. Precisava fazer isso logo para que pudesse ir atrás de Elkens e os outros. Mas antes de se juntar aos seus amigos, tinha uma difícil missão pela frente. E apesar de tudo o que tinha a fazer, todo o sacrifício que seria exigido dela, Mifitrin sorria. Sorria enquanto cor-ria em direção ao mar, e sentia seu coração mais leve. Sorria tolamen-te, sem qualquer motivo, mas ainda assim não conseguia deixar de sor-rir. Sentia-se livre, uma tremenda sensação de liberdade havia tomado seu corpo e isso a deixava ainda mais feliz. Qualquer um que olhasse para Mifitrin agora veria uma incrível mudança. O grande sorriso, que antes era tão raro, agora a deixava ainda mais bonita do que já era. Mas enquanto corria, algo aconteceu. Uma flecha vinda de lugar ne-nhum voou em sua direção; sua forma diferenciada dava a ela muita rotação, o que aumentava sua velocidade e seu poder de penetração. Quando Mifitrin a percebeu já era tarde demais. A flecha transpassou sua cabeça de um lado ao outro, fazendo o sangue jorrar pelo ferimen-to e manchar sua face esquerda. Caiu no chão sem ter tempo de com-preender o que havia acontecido, já morta… Quando a visão terminou, Mifitrin respirou fundo como se tivesse acabado de emergir após um longo mergulho. Parou de correr imedia-tamente e olhou para o lado de onde a flecha viria. Viu a flecha enta-lhada em madeira, tão diferente das que ela própria usava, com sua rotação única, e estendeu a mão, segurando-a entre seus dedos em ple-no ar, enquanto passava centímetros diante dos seus olhos. Mifitrin foi salva graças ao seu sexto sentido: a previsão. Parada, tendo a fle-

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cha em mãos, procurou pelo arqueiro. Reconhecia as habilidades de seu oponente. Apesar da velocidade em que estava, quem quer que fos-se iria atingi-la. Foi um tiro perfeito, estragado apenas pelo seu sexto sentido de protetora do Tempo. Quem seria capaz de atirar em alguém em movimento e acertar sem desperdiçar uma flecha sequer? Era uma pergunta que Mifitrin queria saber a resposta. Com a pressa que esta-va, seria preferível apenas continuar correndo sem se preocupar, mas quem atirou nela era alguém de grande habilidade, alguém que merecia a sua atenção e o seu respeito. Como Guerreira ela compreendia essas coisas de respeito e honra, por isso mesmo continuou procurando pelo arqueiro misterioso. Havia muitas pedras em volta dela, muitos lugares possíveis de onde a flecha poderia ter vindo, mas ela não precisava perder tempo procu-rando. Ainda sorrindo, concentrou-se na flecha que ainda segurava no ar. Logo a seguir soltou-a, e a flecha deslocou-se rapidamente de cos-tas, voltando ao seu lugar de origem. Era uma simples manipulação do Tempo, fazendo com que apenas a flecha regredisse no Tempo, vol-tando para o local de onde foi atirada. Agora que já sabia onde estava seu inimigo, Mifitrin tocou seu colar e congelou o tempo. Correu até a pedra onde o arqueiro estava escondi-do. Tocou seu colar e o tempo voltou a correr normalmente. — Oi – disse ela às costas do arqueiro. O arqueiro assustou-se, possivelmente confuso em ver a Guerreira logo atrás dele, sendo que um segundo atrás encontrava-se a cinqüenta me-tros de onde estava escondido. Ele não era um humano e Mifitrin se surpreendeu. Era mais alto que um humano. Tinha o corpo coberto por uma curta pelagem marrom, e havia uma juba em torno de seu pescoço. Seus braços e pernas eram muito compridos. Este usava uma máscara cobrindo completamente

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seu rosto, mas duas orelhas compridas e pontudas saiam por detrás da máscara e caiam logo abaixo da cintura, semelhante a longas ore-lhas de um coelho. Ele não usava qualquer tipo de vestimenta, a não ser uma proteção no ombro esquerdo, um cinto, botas e uma grande bolsa pendurada no ombro. Ele ainda segurava o arco que utilizou pa-ra o ataque e Mifitrin se surpreendeu ao ver que ele ainda não havia preparado uma segunda flecha no arco, o que significava que ele tinha certeza de acertar o alvo. Assim como Mifitrin constatou assim que o viu, ele não era um humano, era um elendur. Convenientemente um dos habitantes do reino para o qual ela estava indo. Ela não acredita-va em deus mas, se acreditasse, teria tomado isso como uma ajuda di-vina. O elendur se levantou assustado e tentou fugir para longe de Mifi-trin, mas ela surgiu bem a sua frente antes que pudesse dar meia dú-zia de passos. O elendur mudou de direção e correu para o outro lado, mas novamente a Guerreira apareceu logo a sua frente, pouco depois de ele dar algumas longas passadas. — Quem é você? – perguntou ela seriamente, mas de braços cruzados. Sabia que o elendur poderia tentar atacá-la, mas ela perceberia isso antes mesmo que ele próprio. — Haztuiem – disse ele assustado, jogando seu arco e suas flechas no chão e levantando as mãos. – Rabizai unkol u elerai… Mifitrin fez sinal com as duas mãos, pedindo que ele parasse de falar, então balançou a cabeça indicando que não compreendia o que ele di-zia. Aparentemente ele entendeu o que ela queria dizer, pois parou de falar e começou a fazer gestos. Os dois tentaram se comunicar por ges-to por algum tempo, o que pareceu ridículo para Mifitrin. Depois de vários minutos observando os gestos do elendur, ela conseguiu enten-der apenas que ele estava viajando, que não iria atacá-la e talvez al-

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guma coisa como se ele quisesse dançar. No fim das contas ela desis-tiu de tentar apresentar-se através de gestos, pois poderiam ficar o dia todo ali sem grandes resultados. A única coisa que importava era que haviam se entendido sobre o fato de não serem inimigos, ao menos foi isso o que ela interpretou quando o elendur colocou a palma de sua mão na testa dela e a palma da mão dela na máscara dele. Obviamente isso devia ser alguma forma de cumprimento ou algo do tipo. Sem dar atenção à Mifitrin, o elendur lhe deu às costas e começou a mexer em sua grande bolsa. De lá ele tirou um grande pedaço de pano, e utilizou alguns pedaços de pau que encontrou com facilidade para montar uma tenda para ele. Mifitrin questionou o que ele estava fa-zendo, e ele apenas apontou para Tunmá que começava a se pôr. — Ótimo! – exclamou Mifitrin tentando falar com uma voz gentil e forçando um sorriso nada convincente. – Eu aqui com tantas coisas para fazer e estou vendo um elendur montando sua barraca desprezí-vel. O elendur olhou para ela e sorriu com sinceridade, obviamente achan-do que ela estivesse elogiando o seu serviço ou algo do tipo. Logo de-pois juntou algumas pedras no chão e acendeu uma fogueira. Tunmá já havia se posto quando ele terminou de montar o acampamento. Mi-fitrin apenas observava, se perguntando o que ele faria depois. Mas isso ela logo descobriu. O elendur pegou um dos galhos que não havia usado para montar a tenda, pegou sua faca e fez uma lança com o ga-lho. Depois foi até Mifitrin e voltou a fazer gestos. Ele balançava sua lança no ar, aparentemente acertando alguma coisa que não esta-va ali. Depois apontava para a fogueira e por último para sua boca. Logo a seguir voltou a fazer os gestos, novamente balançando sua lança no ar e apontando para o fogo em seguida.

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— Eu já entendi – disse Mifitrin fazendo gestos positivos. Ainda usava uma voz gentil e um sorriso forçado. – Como se eu precisasse de um elendur para preparar o meu jantar. O elendur olhou para ela e sorriu, achando que ela estava elogiando-o mais uma vez. Então logo a seguir desapareceu na escuridão da noite, deixando-a sozinha. Mifitrin sentou-se ao lado da fogueira e começou a pensar. O elendur estava atrasando-a, mas ela precisava dele para entrar em Emeldis. O reino dos elendurs dispunha de uma proteção mágica concedida por antigos protetores. Essa proteção impedia que qualquer um entrasse no reino, a não ser que fosse guiado por um de seus habitantes. Mifi-trin planejava chegar até a ilha e aguardar até que algum elendur aparecesse, mas isso podia levar dias, por isso precisava tanto do elen-dur que neste momento estava caçando. Ela tirou a sorte grande quando o elendur resolveu atingi-la com uma de suas flechas, caso contrário nunca o teria visto. Mas agora que estava com ele, precisava convencê-lo a levá-la até Emeldis, coisa que ela acreditava não ser fá-cil. O elendur ficou mais de uma hora caçando e Mifitrin aproveitou para ficar olhando para as estrelas. Isso era algo que ela gostava de fazer sempre que estava fora dos Domínios, pois lá dentro não havia nada no céu; sequer havia céu. Estava ficando impaciente de tanto esperar. Ela mesma poderia ter ido caçar e voltaria num piscar de olhos, mas na hora resolveu não interromper e permitir que o elendur lhe fizesse uma gentileza. Já estava quase achando que ele havia fugido quando finalmente apareceu. Trazia um coelho morto na mão, um coelho anormalmente grande, daqueles que só eram encontrados no Território das Feras; os predadores grandes dali também precisavam de presas grandes para saciarem sua fome. Mifitrin observou-o limpar a carne e

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prepará-la, até que finalmente espetou-a num pedaço de galho e a colocou para assar sobre a fogueira. — Geralmente eu não como carne – disse ela escondendo sua contra-riedade – mas acho que vou ter de comer para não decepcioná-lo. Pre-ciso conseguir a sua confiança… O elendur respondeu algo em sua língua, mas Mifitrin não fazia nem idéia do que significava. Pelo o que ela entendia da língua dos elen-durs, ele podia estar até mesmo xingando-a e sorrindo falsamente co-mo ela mesma fazia. Mas jamais saberia o que ele lhe falava. Enquanto a carne assava, Mifitrin vigiava a escuridão para se certi-ficar de que não seriam atacados por nenhuma fera que houvesse se afastado um pouco do seu território. Apesar de não ver nada, ainda assim podiam ouvir urros que vinham de longe. O vento finalmente parou, e isso foi algo que Mifitrin agradeceu. Em pouco tempo o coelho estava pronto, e o elendur lhe estendeu um pe-daço. Mifitrin aceitou, forçando um novo sorriso, então começou a comer. A carne estava saborosa; na verdade muito saborosa. Mifitrin jamais comia carne, era um hábito seu, mas aquela estava particularmente deliciosa e comeu com gosto. Os dois comeram por algum tempo, mas não tentaram se comunicar mais. Depois que terminou de comer, Mifi-trin estendeu um cobertor no chão, onde dormiria, então continuou olhando para as estrelas no céu. — São bonitas, não acha? – perguntou ela ao elendur, mas sabia que ele não responderia. Ele disse alguma coisa em sua língua, mas Mifi-trin não tentou compreender o que era. Já não lhe sobrava paciência para tentar se comunicar com ele. – Me sinto bem quando fico olhan-do para as estrelas. Acho que eu costumava fazer isso antes de me tornar uma protetora, não me lembro.

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Diferente dos outros protetores, Mifitrin sempre tentava imaginar como era sua vida antes de se tornar uma protetora. Quando um Ele-mento escolhe alguém como um novo protetor, alguém espera até que essa pessoa saia da infância, que os protetores julgam acontecer aos dez anos de idade, então vai buscá-la. Essa pessoa é tirada de sua fa-mília e levada para os Domínios do seu Elemento, mas quando isso acontece todas as suas lembranças são apagadas para que ela possa se dedicar exclusivamente ao Elemento. Lembranças da vida antiga po-dem atrapalhar no treinamento, por isso todo o protetor é forçado a esquecer de tudo. E Mifitrin não fugia a regra; ela, assim como os ou-tros protetores, foi tirada de sua família quando saiu da infância, es-quecendo-se de sua antiga família. Mas com o tempo a pessoa acaba aceitando isso e jamais volta a pensar em sua antiga vida, o que não acontecia com Mifitrin. — Eu queria poder saber como eles são – ela confessou pela primeira vez em voz alta, unicamente por saber que não seria compreendida – os meus pais. Queria saber de onde eu vim, como era minha vida antes de Morton me buscar, mas não posso fazer isso, não posso sequer pen-sar nisso. Um protetor que mostra desejos por sua vida antiga acaba sendo devolvido a ela, voltando a ser um mero humano. Não é isso o que eu quero… O elendur disse alguma coisa incompreensível, mas Mifitrin nem che-gou a ouvi-lo. — Eu não queria estar aqui – continuou, ainda olhando para as es-trelas. – Tenho alguns amigos que estão indo para outro lugar, numa outra missão muito mais perigosa que esta aqui, mas mesmo assim eu queria estar com eles. Queria estar ao lado de Elkens e dos outros… — E por que não está com eles?

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Mifitrin levantou-se assustada. Em pé, ficou olhando descrente pa-ra o elendur que estava sorrindo. — Por que não vai atrás deles? – voltou a perguntar o elendur. Mifitrin ficou muda. Não sabia se ficava contente ou se explodia de raiva. — Você me entende? O elendur sorriu e concordou com a cabeça. — Não! – exclamou Mifitrin ainda descrente. – Você me entende? — Claro que te entendo. Sou um dos príncipes elendur, tenho que co-nhecer a língua dos humanos. — Então por que não disse antes? – perguntou Mifitrin com raiva. – Por que ficou esse tempo todo fingindo que não me entendia? — Achei que seria divertido – respondeu o elendur rindo. Mifitrin não respondeu. Sentia muita raiva do elendur. Pegou seu co-bertor, dobrou-o e voltou a guardá-lo em sua bolsa. No segundo se-guinte pendurou sua bolsa no ombro e começou a correr. — PARA ONDE VOCÊ VAI? – gritou o elendur ao vê-la correndo para longe. — TENHO MAIS O QUE FAZER – ela respondeu enquanto se afastava velozmente dele. – NÃO TENHO TEMPO PARA PERDER COM UM ELENDUR IDIOTA! Mifitrin teve vontade de bater no elendur, mas se controlou e não o fez. Ao invés disso estava correndo para longe dele, continuando sua jornada que nunca deveria ter interrompido, ainda mais por causa de um estúpido elendur. — VAI PARA EMELDIS, NÃO VAI? – Mifitrin parou de correr ao ouvir isso, mas permaneceu de costas para o elendur, que continuou a falar: - O oceano está logo a nossa frente e sei que não há nada além

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de onde estamos. É por isso que sei que você está indo para o meu reino. Mifitrin não retrucou desta vez. O elendur se vez de bobo o tempo to-do. Com certeza já havia sacado para onde Mifitrin estava indo assim que a viu correndo. — Se realmente pretende entrar em Emeldis, vai precisar de mim. Vo-cê sabe que ninguém pode entrar lá sozinho, não sabe? Mifitrin finalmente olhou para trás, então perguntou: — E por que você me ajudaria? O elendur sorriu. — Porque eu também preciso de você! – Mifitrin olhou confusa para ele, mas o elendur continuou: ‒ Não sei se você ouviu o que eu disse, mas sou um dos príncipes. E você é uma protetora, como eu logo per-cebi. Um bom rei é aquele que tem influência em toda parte, portanto o apoio de uma protetora me tornaria um dos príncipes mais impor-tantes, e talvez o primeiro rei de Emeldis. Eu posso levá-la até o meu reino em troca do seu apoio. O que acha? Mifitrin não respondeu com palavras, apenas soltou sua bolsa no chão. O elendur não esperava uma resposta mais clara da decisão dela de ficar. — Quantos reis o seu reino tem? – perguntou Mifitrin preocupada. — Cinco! – respondeu o elendur com simplicidade. Droga, Mifitrin pensou. Achei que seria difícil convencer um rei, mas cinco será impossível! O elendur se aproximou dela e disse: — A propósito, me chamo Stemon. Onze anos haviam se passado. Mifitrin, agora com vinte e seis anos, estava muito mais madura. Sob os ensinamentos do Mestre Kantus,

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tornou-se uma respeitada Sacerdotisa do Tempo, mas não era a mais habilidosa. Mifitrin tinha um potencial incrível, sendo capaz de supe-rar qualquer Sacerdote do Tempo, mas continuava tendo dificuldades com seu ponto fraco: a concentração. Um Sacerdote é um dos poucos protetores que deve ser capaz de atingir todos os níveis de concentra-ção, mas Mifitrin não conseguia isso. Ela era capaz de atingir o Ken-gan, o Absu-gan e o Roe-gan, mas não estava nem perto de atingir os níveis mais elevados, como o Ginden-gan e o Katsu-gan. Morton sem-pre lhe disse que esse era o seu ponto fraco e que ela devia focar seu treinamento onde era mais fraca, mas isso era impossível. Passou onze anos tentando superar sua fraqueza, mas todo o treinamento parecia inútil. — Já chega por hoje, Mifitrin – disse Kantus. A Sacerdotisa abriu os olhos e levantou-se. Estava no Pátio da Antú-nia, o melhor lugar de todos os Domínios do Tempo para se praticar a concentração. — É impossível – disse ela chateada. – Não passei do Roe-gan. — Paciência, Mifitrin – disse o velho Kantus sorrindo. – Paciência. Não se pressione tanto. Concentração realmente não é algo fácil de se aprender; tudo o que eu podia te ensinar eu já te ensinei, mas agora você precisa ter paciência. O seu corpo precisa de um tempo para pas-sar de uma etapa para a outra, e esse tempo varia de protetor para protetor. Você teve uma incrível evolução desde que passei a treiná-la, apenas precisa ter mais paciência. Mifitrin olhou seriamente para seu tutor, então o questionou: — Acredita que eu possa ir além do que já fui? Realmente acredita que eu possa me tornar uma grande Sacerdotisa? Kantus olhou com carinho para sua pupila.

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— Você já tem cinco pingentes de Sacerdotisa, Mifitrin – respondeu o velho. – E isso em apenas onze anos. Nem preciso te dizer o quanto isso significa, é um progresso e tanto. Você nunca me decepcionou em nenhuma das missões para as quais foi escolhida para cumprir e ja-mais precisou de ajuda. Não vou responder à sua pergunta, Mifitrin, pois você não precisa de resposta. Sabe o que eu penso. — Mas eu preciso me tornar mais forte. Não poderei progredir se não atingir um novo nível de concentração. Jamais terei controle sobre uma força da natureza se eu não for capaz de atingir o Ginden-gan ao menos. Kantus continuava olhando para ela, com seus olhos azuis entrando em contraste com a pela branca como a neve. — Paciência, Mifitrin. É tudo o que eu posso lhe dizer. Kantus lhe deu às costas e seguiu para seus aposentos nas Ruínas Mi-lenares. Mifitrin foi logo atrás dele.

Stemon já estava em pé quando Mifitrin acordou. — Que deus abençoe o dia que acaba de nascer – disse o elendur. Mifitrin não respondeu, nem fez qualquer tipo de comentário. Ainda sentia um pouco de raiva por ter sido feita de boba pelo elendur e só aceitou ficar com ele em troca da sua entrada em Emeldis. Mifitrin arrumou suas coisas e se preparou para partir, mas o elendur não parecia estar com pressa. Voltou a acender a fogueira que havia se apagado durante a noite e parecia estar preparando algo nela. Mifi-trin sentiu o cheiro e se aproximou para ver o que era. — É uma pasta de viagem – disse Stemon. – É só cozinhar com água e está pronto. Como você disse que não costuma comer carne eu resolvi

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preparar outra coisa. Não é tão saboroso quanto um coelho, mas é muito nutritivo e recupera as forças… — Obrigada – agradeceu ela mal-humorada – mas não preciso da sua comida. Posso me virar sozinha. O elendur sorriu. — Mas eu pensei que estivesse com pressa. A pasta está pronta, caso queira comer. O elendur pegou um pouco da pasta de viagem em um pequeno pote de madeira, então começou a comer. Mifitrin recusou por algum tempo, orgulhosa, mas finalmente cedeu. Pegou um segundo pote de madeira que Stemon havia tirado de sua bolsa, então se serviu da pasta. Não era exatamente saborosa, como Stemon lhe advertiu, mas era o suficiente para alimentá-los. Após comerem, desmontaram o acampamento e reiniciaram a jornada. Com suas pernas longas, Stemon andava rápido, o que melhorava o ânimo de Mifitrin. Junto de Elkens e os outros havia se acostumado a andar num ritmo mais lento, por isso ficava tão contente em andar ao lado de Stemon. — Como soube que eu era uma protetora? – perguntou Mifitrin ain-da carrancuda. Stemon levou um tempo para responder: — Como eu não haveria de saber? Não somos tão ignorantes quanto os humanos. Não nos esquecemos dos protetores quando eles deixaram de viver em Gardwen muito tempo atrás. Além do mais, somos eter-namente gratos aos protetores, pois foram vocês quem concederam a proteção mágica de Emeldis. E é só por isso que estou aceitando levá-la para meu reino, pois se não fosse uma protetora não teria essa hon-ra…

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A voz de Stemon foi abafada pelo som de um trovão. O céu, que es-tava nublado desde que acordaram, parecia que finalmente iria desa-bar sobre eles. — Vai chover – informou Stemon prestativo, o que irritou Mifitrin. Como se eu não tivesse percebido. A chuva veio em menos de um minuto, mas Mifitrin não permitiu que parassem de andar. Aos poucos a chuva ia ficando cada vez mais for-te, ao que o elendur insistiu: — Vamos nos abrigar sob alguma pedra – pediu ele parando de an-dar. – Voltamos a andar depois que a chuva acalmar. Mifitrin olhou com raiva para ele e isso bastou para que ele recome-çasse a andar. Queria poder ver a expressão de medo do elendur por baixo da máscara. Achou engraçado o modo como ele mudou de idéia apenas com o seu olhar, mas não moveu seus lábios para sorrir. Era um castigo por tê-la feito de boba. — Não adianta ter pressa – voltou a insistir o elendur. – Está ven-tando muito, e mesmo que cheguemos ao mar, teremos de esperar o vento parar. É perigoso velejar com tanto vento. — Quem disse que eu preciso do seu barco? – perguntou Mifitrin agressivamente, dispensando a ajuda do elendur. A chuva ficava cada vez mais forte, mas não tão forte quanto o ven-to. As gotas da chuva caiam em diagonal e machucavam a pela. Os cabelos de Mifitrin voavam de um lado para o outro enquanto anda-va, e Stemon já havia perdido metade da sua bagagem, tudo levado pelo vento. Mifitrin se divertia cada vez que alguma coisa era levada da sua bolsa e ele ficava com raiva. — Você gosta de humanos, Stemon? – perguntou Mifitrin de repente. O elendur pensou um tempo antes de responder: — Da maioria. São divertidos.

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— Fico contente em ouvir isso – disse Mifitrin com sinceridade. – Na verdade estou indo até o seu reino para tentar convencê-los a se juntarem aos humanos numa guerra. Stemon ficou sério com o que ouviu. Ele ainda não havia feito ne-nhuma pergunta sobre o que Mifitrin pretendia fazer em Emeldis, mas ficou surpreso em descobrir. Mifitrin esperou que ele fizesse mui-tas perguntas, mas não foi isso o que ele disse: — Não fique tão contente. Na verdade os outros não acham que eu seja muito normal. Para ser sincero sou considerado quase um louco em Emeldis. Não quero te desanimar, mas os outros elendurs sentem um ódio mortal pelos humanos. Mifitrin já esperava por isso, então ficou em silêncio. O vento conti-nuava assobiando forte em seus ouvidos, cada vez mais forte. Stemon agora segurava a máscara em seu rosto, pois logo ela seria levada também. — Que deus te ajude na sua missão – disse ele por fim. Mifitrin riu do que ouviu. — Se está tentando me animar, pode esquecer. Deus não pode me ajudar, ainda mais porque ele não existe. — Como pode dizer isso? – perguntou Stemon contrariado. — Não existe nenhum deus – Mifitrin voltou a afirmar. – É ridículo pedir a ajuda de alguém que nem ao menos existe. — Você está enganada! – disse o elendur tão firme quanto ela jamais havia visto. – Deus apenas é a forma como nos referimos a alguém mais forte, que criou tudo e todos. Ou você acredita que tudo foi cria-do pelos Elementos? Inclusive os seus preciosos Elementos da vida fo-ram criados por um deus. — E como é o nome do seu deus? – perguntou Mifitrin debochando dele.

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— Eu não sei o nome, como poderia? Ou você acha que ele fala com a gente? Há alguns humanos que se dizem à serviço de deus, que agem e falam em nome de deus e até mesmo que constroem templos e ima-gens para esse deus, mas tudo não passa de uma grande piada. Deus não fala com ninguém, pois não precisa que ninguém aja por ele. Mas é ele que controla tudo e se você foi ensinada a acreditar que ele não existe, isso só aconteceu por que ele quis assim. Mifitrin calou-se. — Não precisa fazer isso – disse Kantus após Mifitrin esclarecer seus motivos. — É inútil eu continuar aqui perdendo tempo – Mifitrin insistiu. – Fiz o máximo que pude para me tornar uma boa Sacerdotisa, assim como Morton me pediu, mas cheguei ao meu limite. Estou há meses treinando para atingir o Ginden-gan, mas não obtive nenhum progres-so. E é por isso, senhor Kantus, que estou lhe entregando o meu colar. Agradeço por tudo o que me ensinou, por toda paciência que teve e por cada conselho que me deu, mas a partir de agora eu deixo de ser uma Sacerdotisa do Tempo. Kantus pegou o colar de Sacerdotisa de Mifitrin, com os seus cinco pingentes. — Está cometendo um erro – advertiu Kantus. – Você pode achar que não tem vocação para ser uma Sacerdotisa, mas está enganada. Você é a aluna mais promissora que eu já tive; tem um grande poten-cial para se superar e um grande futuro. — Me perdoe, senhor Kantus, mas não posso continuar. Eu irei atrás do General Manjourus e exigirei que ele me torne uma Guerreira… — Mas e quanto ao que Morton lhe pediu? Não quero te pressionar a mudar de opinião, mas devia levar em conta o que Morton pediu antes

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de morrer. Devia reconsiderar tudo o que falei e continuar sendo uma Sacerdotisa. — Novamente peço que me perdoe – disse Mifitrin. – Mas entre o desejo de Morton e a minha promessa, prefiro cumprir a minha pro-messa. Eu preciso cumprir a promessa que fiz à mim mesma onze anos atrás: não permitirei que a morte de Morton seja em vão. E será mais fácil cumprir essa promessa se eu me tornar uma Guerreira. Kantus não estava contente com a decisão, mas assentiu. Abraçou Mifitrin carinhosamente, então disse: — Eu respeito a sua escolha, mas enquanto eu estiver vivo seu colar estará comigo e eu estarei esperando até que você venha reclamá-lo de volta. — Chegamos – disse Stemon. Mifitrin olhou para a frente e viu o mar. Estava muito agitado por conta da tempestade, uma cena que chegava a dar medo. Ondas gigan-tescas se levantavam e chocavam-se furiosamente contra a praia. A um canto estava o pequeno barco de Stemon, com sua vela recolhida. A arte dos elendurs era facilmente reconhecida nos detalhes do barco, em cada figura ou acabamento. E lá, além do mar, estava a ilha de Emeldis. Mifitrin ainda não podia vê-la, mas já sentia que havia completado a primeira parte da sua missão. Agora faltava apenas completar a segunda parte, a que seria mais difícil.

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