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SEPARAÇÃO DOS PODERES: UMA READAPTAÇÃO … 1...teoria da separação de poderes, cujo objetivo...

Date post: 07-Jul-2020
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35 Dorabel Santiago dos Santos Freire* SEPARAÇÃO DOS PODERES: UMA READAPTAÇÃO DA TEORIA NO ÂMBITO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO SEPARATION OF POWERS: A REHABILITATION THEORY IN RIGHT OF DEMOCRATIC STATE UNDER SEPARACIÓN DE PODERES: UNA TEORÍA REHABILITACIÓN EN DERECHO DE DEMOCRÁTICA DEL ESTADO BAJO Resumo: O presente artigo tem como propósito o estudo do princípio da sepa- ração dos poderes no contexto da estrutura do Estado moderno, mais especificamente no contexto do Estado Democrático de Direito. Par- tindo do estudo documental e bibliográfico, pretende revisar o tradi- cional conceito e aplicabilidade do princípio da separação dos poderes, bem como verificar os efeitos da mitigação de tal princípio no âmbito do Estado Democrático de Direito. O desafio à execução do presente trabalho é apresentar de forma mais detalhada o estudo do princípio democrático da separação dos poderes, a discussão acerca da sua readaptação/relativização diante dos novos deveres assumidos pelo Estado, bem como as consequências geradas pela redefinição desse princípio. Abstract: This article aims to study the principle of separation of powers in the context of the structure of the modern state, specifically in the context of the democratic rule of law. Based on the documentary and biblio- graphical study, aims to revise the traditional concept and applicability of the principle of separation of powers, and to verify the effects of mi- tigation of this principle under the democratic rule of law. The challenge to the implementation of this work is to present in more detail the study of the democratic principle of separation of powers, the discussion * Pós-graduanda em Direito Constitucional e Direito Processual Constitucional pela Universidade Estadual do Ceará. Advogada.
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Page 1: SEPARAÇÃO DOS PODERES: UMA READAPTAÇÃO … 1...teoria da separação de poderes, cujo objetivo principal era o de desenvolver uma solução legítima contra o absolutismo do rei

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Dorabel Santiago dos Santos Freire*

SEPARAÇÃO DOS PODERES: UMA READAPTAÇÃO DA TEORIA NO ÂMBITO DO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO

SEPARATION OF POWERS: A REHABILITATION THEORY IN RIGHT OF DEMOCRATIC STATE UNDER

SEPARACIÓN DE PODERES: UNA TEORÍA REHABILITACIÓN EN DERECHO DE DEMOCRÁTICA DEL ESTADO BAJO

Resumo:

O presente artigo tem como propósito o estudo do princípio da sepa-

ração dos poderes no contexto da estrutura do Estado moderno, mais

especificamente no contexto do Estado Democrático de Direito. Par-

tindo do estudo documental e bibliográfico, pretende revisar o tradi-

cional conceito e aplicabilidade do princípio da separação dos

poderes, bem como verificar os efeitos da mitigação de tal princípio

no âmbito do Estado Democrático de Direito. O desafio à execução

do presente trabalho é apresentar de forma mais detalhada o estudo

do princípio democrático da separação dos poderes, a discussão

acerca da sua readaptação/relativização diante dos novos deveres

assumidos pelo Estado, bem como as consequências geradas pela

redefinição desse princípio.

Abstract:

This article aims to study the principle of separation of powers in the

context of the structure of the modern state, specifically in the context

of the democratic rule of law. Based on the documentary and biblio-

graphical study, aims to revise the traditional concept and applicability

of the principle of separation of powers, and to verify the effects of mi-

tigation of this principle under the democratic rule of law. The challenge

to the implementation of this work is to present in more detail the study

of the democratic principle of separation of powers, the discussion

* Pós-graduanda em Direito Constitucional e Direito Processual Constitucional pelaUniversidade Estadual do Ceará. Advogada.

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about their rehabilitation / relativity before the new duties assumed by

the State as well as the consequences generated by the redefinition

of that principle.

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo estudiar el principio de separación

de poderes en el contexto de la estructura del Estado moderno, es-

pecíficamente en el contexto del Estado democrático de derecho. Ba-

sado en el documental y el estudio bibliográfico, tiene como objetivo

revisar el concepto tradicional y aplicabilidad del principio de separa-

ción de poderes, y para verificar los efectos de la reducción de este

principio en el marco del Estado democrático de derecho. El desafío

a la aplicación de este trabajo es presentar con más detalle el estudio

del principio democrático de separación de poderes, la discusión

sobre su rehabilitación / relatividad ante las nuevas obligaciones asu-

midas por el Estado, así como las consecuencias generadas por la

redefinición de ese principio.

Palavras-chave:

Separação dos Poderes; Estado Democrático de Direito; Neocons-

titucionalismo; Judicialização da Política; Poder Judiciário.

Keywords:

Separation of Powers; democratic state; Neoconstitutionalism;

Judicialization of Politics; Judiciary.

Palabras clave:

Separación de Poderes; Estado democrático; Neoconstitucionalismo;

Política de judicialización; Poder Judicial.

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INTRODUÇÃO

Indiscutivelmente, sabe-se que o Poder Constituinte Origi-nário é uno e indivisível. Todavia, para que o Estado possa bem de-sempenhar sua finalidade de garantir “a prosperidade pública ou ocomplexo das condições requeridas para que, na medida do possí-vel, todos os membros possam atingir a felicidade”1, bem como as-segurar os direitos e liberdades do cidadão, é necessário que essasoberania se manifeste por funções diversas. É o que propõe a dou-trina da separação dos poderes. A teoria da separação dos poderes remonta aos tempos deAristóteles. Já naquela época, a noção de divisão e estruturação dostrês poderes essenciais (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário)era condição indispensável para o bom governo. Contudo, é no sé-culo XVIII, através de Montesquieu, que essa teoria ganha realcecom objetivo de defender os indivíduos das arbitrariedades do Es-tado absolutista. Montesquieu entendia que, quando na mesma pes-soa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo estáreunido ao poder executivo, não há liberdade, pois que se pode es-perar que esse monarca ou esse senado façam leis tirânicas paraexecutá-las tiranicamente2. Com o intento de frear o poder do Estado sobre os seus in-divíduos, esse princípio/teoria da separação dos poderes passou aconstar expressamente em diversos ordenamentos jurídicos e emalgumas declarações de direitos humanos, a exemplo da Declaraçãode Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 16 de junho de 1776, e daDeclaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que es-tabelecia no seu artigo 16 que “qualquer sociedade em que não es-teja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida aseparação dos poderes não tem Constituição”3.

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1 MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 713.2 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de la Brède et de. O Espírito dasLeis. 2. ed. Trad.: Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 167-168.3 USP - Universidade de São Paulo . Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. De-claração de direitos do homem e do cidadão - 1789. Disponível em:<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html>.Acesso em: 12 jan. 2015.

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Há que considerar que o momento histórico que ensejou o flo-rescimento da teoria da separação dos poderes e a sua aplicação deforma mais rígida é diverso do momento atual. O papel do Estadodiante da sociedade é diverso, os deveres do Estado diante da socie-dade são diversos. Assim, partindo-se da definição do Estado brasileirocomo um Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), cuja funçãoprecípua é a realização da justiça social, do desenvolvimento nacio-nal e a promoção do bem de todos, não seria correto interpretar esseprincípio como outrora e de modo tão rigoroso, que só se justificariadiante do contexto do século XVIII. Nesse sentido, para que o Estado Democrático de Direitopossa desempenhar de forma eficiente os seus deveres, dentre osquais se destaca a realização da justiça social e a promoção do bemcomum, faz-se necessária uma releitura desse princípio/teoria obje-tivando sua readaptação aos atuais contornos do Estado. Diante de tudo o que até aqui já foi exposto, indaga-se:tendo como fundamento a realização do bem comum, da justiça so-cial e a atuação eficiente do Estado, é possível uma mitigação oureadaptação do princípio da separação dos poderes a ponto de umdos poderes fazer as vezes de outro poder? A atual organização doEstado ainda justifica a separação rígida dos poderes? Há situaçõesem que o princípio da separação dos poderes deve ser relativizado?

CONSTRUÇÃO TEÓRICA DA SEPARAÇÃO DE PODERES E OSISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS: ORIGEM E EVOLUÇÃO

A teoria da separação dos poderes, dogma do constitu-cionalismo moderno, consiste em distribuir organicamente as fun-ções do Estado (legislar, administrar e julgar) entre os diferentespoderes, atribuindo a cada um deles uma função precípua e or-ganizando-os de tal forma que promova a atuação harmônica eequilibrada dos poderes.

Esse princípio/teoria despontou como doutrina durantea passagem do Estado absolutista para o Estado liberal com oobjetivo de conter o poder arbitrário do rei e legitimar os interes-ses da classe em ascensão, tendo desempenhado papel funda-mental na defesa das liberdades individuais e no

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desenvolvimento do Estado e do constitucionalismo moderno.Contudo, a separação dos poderes começou a ser desenhadaem tempos mais remotos.

A teoria da separação de poderes encontra sua raiz remotana antiguidade greco-romana. Ela começou a ser pensada aindana Antiguidade grega por Aristóteles quando, ao tratar do tema, dis-tinguia a assembleia-geral (responsável pela função deliberativa),o corpo de magistrados (responsável pela função administrativa) eo corpo judiciário (responsável pela função de jugar)4.

Em sua obra “A Política”, Aristóteles5 já defendia a neces-sidade da distinção das funções, conforme aduz:

Todas as formas de constituição apresentam três partes em referên-cia às quais o bom legislador deve examinar o que é convenientepara cada constituição; se estas partes forem bem ordenadas a cons-tituição será necessariamente bem ordenada, e na medida em queelas diferem uma das outras as constituições também diferem entresi. Destas três partes uma trata da deliberação sobre assuntos públi-cos; a segunda trata das funções públicas, ou seja: quais são as quedevem ser instituídas, qual deve ser sua autoridade específica, ecomo devem ser escolhidos os funcionários; a terceira trata de comodeve ser o poder judiciário.

De acordo com Barros6, a idealização dessa teoria desdea antiguidade já tinha como objetivo principal a limitação do poderpolítico, abrangendo os seguintes axiomas: a) o poder políticodeveria emanar de uma estrutura institucional objetiva; b) essaestrutura institucional deveria ser diferenciada, tanto organica-mente como funcional; c) essa estrutura deveria atuar conformea lei; e, por fim, d) deveria ser estável, sendo ponto de conver-gência de várias classes sociais.

Durante a Idade Média, o poder fragmentou-se entre di-versos feudos. Nesse período, a pluralidade de ordenamentos ede poderes impossibilitou a existência de um critério único de ava-liação jurídica. Quanto aos limites do poder, ele estava incluído

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4 CARVALHO, Kildare Gonçalves de. Direito Constitucional. 14. ed. Belo Horizonte:Del Rey, 2008. p. 166. 5 ARISTÓTELES. Política. 3. ed. Trad.: Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1997. p. 151.6 BARROS, Carlos Roberto Galvão. Eficácia dos Direitos Sociais e a nova Herme-nêutica Constitucional. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2010. p. 151.

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na própria estrutura feudal, “segundo um equilíbrio recíproco que os váriospoderes produzem com a sua concordia discors e discordia concors”7.

Após a superação desse período de fragmentação dopoder político, começa a despontar a consciência para a buscada unidade e afirmação de um poder soberano reconhecido den-tro e fora de um território. Nesse contexto, a doutrina da sobera-nia chega como solução política para a justificação da unidadedo poder e para a justificação da existência do Estado moderno.O século XVII foi fundamental para a propagação e consolidaçãoda doutrina da soberania8. A unificação do poder, característicada passagem do Estado medieval para o Estado moderno, acar-retou a hipertrofia do poder do Monarca. O Rei, como legítimapersonificação do Estado, concentrava todos os poderes emsuas mãos. O poder era absoluto, ilimitado e pessoal.

Durante esse período de fortalecimento do poder do Mo-narca, a ordem econômica da burguesia implantou-se no Oci-dente e recebeu os mais variados tipos de proteção e incentivopor parte dos reis. Esse foi o primeiro intervencionismo estataldos tempos modernos. Contudo, a partir do século XVIII, a dou-trina da soberania passa a perder a sua legitimidade. A burgue-sia, agora já consolidada e próspera, via no intervencionismo doEstado um óbice à sua expansão. Para esse desejo de expansãoe liberdade da burguesia, fez-se necessária a idealização de umadoutrina que pudesse impor limites ao poder absoluto do rei. Énesse contexto e tendo como finalidade precípua a minimizaçãodo poder estatal, que nasce de forma sistematizada a doutrinada separação de poderes.

É dessa reação contra o Estado absoluto que nasce oEstado moderno, liberal e democrático. Esse nascimento foiacompanhado por teorias políticas, dentre as quais desponta ateoria da separação de poderes, cujo objetivo principal era o dedesenvolver uma solução legítima contra o absolutismo do rei 9.

Conforme Hamon, Troper e Burdeau10, os autores do século

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7 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 2. ed.Trad.: Alfredo Fait. São Paulo: Mandarim, 2000. p. 18.8 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 171.9 BOBBIO, 2000, p. 24.10 HAMON, Francis; TROPER, Michel; BURDEAU, Georges. Direito Constitucional.27. ed. Trad.: Carlos Souza. Barueri: Manole, 2005. p. 91.

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XVIII recomendam a separação dos poderes, contudo não indicamde que maneira as funções devem ser divididas, mas somente deque forma elas não devem ser. Assim, o intuito original do princípioé evitar o acúmulo dos poderes nas mãos dos déspotas, sem, con-tudo, determinar a forma de como essa divisão deve se dar.

Antes de Montesquieu difundir de maneira sistematizada ateoria da separação de poderes, outros pensadores chegaram pró-ximos da teorização final dessa doutrina. Bodin, Swift e Bolingbroke,por exemplo, já concebiam a ideia de poderes que se contraba-lanceavam no interior do ordenamento estatal11. Inclusive Rous-seau, apesar de ser considerado adversário de Montesquieu e daseparação dos poderes, já ensaiava uma fórmula semelhante àideia de Montesquieu, ao sugerir não ser de bom grado que aqueleencarregado de fazer as leis também as executasse12.

Contudo, a construção desse postulado do Estado Libe-ral deve-se principalmente às doutrinas de Locke e Montesquieu.A atribuição da autoria desse princípio ainda é bastante contro-versa. Alguns doutrinadores entendem ser Locke o autor da teo-ria enquanto outros atribuem a Montesquieu a autoria dadoutrina, considerando Locke apenas o seu precursor. Existemainda os doutrinadores que não reconhecem nenhuma doutrinada separação dos poderes na obra de Locke, mas apenas umadistinção das funções estatais13.

Divergências à parte, apesar da teoria da separação dospoderes ter sido mais bem desenvolvida e sistematizada porMontesquieu, é inquestionável a relevância do pensamento polí-tico de Locke para o desenvolvimento da teoria.

Locke propõe uma separação entre os poderes Execu-tivo, Legislativo e Federativo. Para Locke, o Poder Executivocompreenderia a execução das leis naturais da sociedade; oPoder Federativo compreenderia “o poder de guerra e paz, defirmar ligas e promover alianças e todas as transações com todasas pessoas e todas as sociedades políticas externas”14; e, ao

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11 BONAVIDES, 2000, p. 173.12 HAMON; TROPER; BURDEAU, 2005, p. 92.13 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo:Saraiva, 2013. p. 907.14 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Trad.: Júlio Fischer. São Paulo:Martins Fontes, 1998. p. 516.

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Poder Legislativo, caberia “fixar as diretrizes de como a força dasociedade política será empregada para preservá-la e a seusmembros”15.

Conquanto Locke defenda a separação dos poderes, asua doutrina aponta que os poderes Executivo e Federativo, ape-sar de distintos, quase sempre apresentam uma atuação con-junta. Nesse sentido, Locke16 expõe o seguinte:

Embora, como já se disse, os poderes executivo e federativo de todasociedade política sejam realmente distintos entre si, dificilmente podemser separados e depositados, ao mesmo tempo, nas mãos de pessoasdiferentes. Como o exercício de ambos requer a força da sociedade, équase impraticável depositar a força do corpo político em mãos diferen-tes e não subordinadas, ou que os poderes executivo e federativo sejamdepositados em pessoas que podem agir separadamente, com o que aforça do público estaria sob comandos diferentes, o que poderia causar,num momento ou outro, desordem e ruína17.

Como se constata, no pensamento de Locke estão pre-sentes os traços do princípio da separação dos poderes. No en-tanto, a separação pensada por ele não é tríplice, mas sim umaseparação dual. Embora seu pensamento visualize a existênciade três poderes distintos, Locke aponta como conveniente a se-paração do Poder Legislativo de um lado e os poderes Executivoe Federativo de outro.

É no pensamento de Montesquieu que a teoria da sepa-ração dos poderes alcança sua versão completa e se difundepela Europa. Em sua reconhecida obra “O Espírito das Leis”, cujacitação é imperativa, Montesquieu18 defende o seguinte:

Existem em cada Estado três tipos de poderes: o poder legislativo, opoder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e opoder executivo daquelas que dependem do direto civil. [....]. Quando,na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder le-gislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; por-que se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie

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15 LOCKE, 1998, p. 514. 16 LOCKE, 1998, p. 517.17 LOCKE, 1998, p. 516.18 MONTESQUIEU, 1996, p. 167-168.

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leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liber-dade se o poder de julgar não for separado do legislativo e do exe-cutivo. Se estiver unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e aliberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Seestivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de umopressor. Tudo estaria perdido se este mesmo homem, ou mesmocorpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os trêspoderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e ode julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.

Essa divisão dos poderes sistematizada por Montes-quieu teve grande repercussão na política e exerceu forte influên-cia sobre as Constituições escritas que se promulgaram nos finsdo século XVIII. Em decorrência da sua ampla difusão, o pensa-mento original de Montesquieu sofreu modificações nas diversaslegislações e doutrinas. Azambuja19 menciona que nem sempreessas modificações foram para melhor, a exemplo dos revolucio-nários franceses de 1789 que a desvirtuaram proclamando a se-paração absoluta das funções do Estado de tal forma que os trêspoderes não se limitavam reciprocamente, mas provocavam ver-dadeiros conflitos entre si.

Com efeito, a ideia original da teoria de Montesquieu nãotinha como propósito patrocinar uma separação absoluta entreos poderes do Estado. Considerando a própria Constituição in-glesa, que serviu de base à elaboração desse axioma político,no que diz respeito à organização dos poderes, estes não seacham nela inteiramente distintos e separados20.

Hamilton, Madison e Jay21 imprimem a seguinte interpre-tação ao pensamento de Montesquieu:

[....] quando ele estabeleceu ‘que não há liberdade todas as vezesque a mesma pessoa ou a mesma corporação legisla e executa aomesmo tempo, ou por outras palavras, quando o poder de julgar nãoestá bem distinto e separado do Legislativo e Executivo’, não quisproscrever toda a ação parcial, ou toda a influência dos diferentespoderes uns sobre os outros; o que quis dizer, segundo se colige dassuas expressões, e ainda melhor dos exemplos que lhe serviram de

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19 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008. p. 179.20 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Trad.: HiltomarMartins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 299.21 HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 299-300.

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regra, foi que, quando dois poderes, em toda a sua plenitude, seacham concentrados numa só mão, todos os princípios de um go-verno livre ficam subvertidos.

Ao analisarem o princípio da separação dos poderes,Hamon, Troper e Burdeau22 entendem que ele é composto porduas regras distintas, a regra da especialização e a regra da in-dependência. Conforme a regra da especialização, o Estado deveexercer três atividades: fazer a lei, executá-la e resolver os litígios.Para cada uma dessas atividades deverá haver uma autoridadeou órgão, dotado de poder específico, para o exercício especiali-zado de uma dessas funções. Assim, cada autoridade exerceráespecífica e inteiramente uma função sem interferir nas demais.

Quanto à regra da independência, esta desempenha fun-ção garantidora da regra da especialização e da própria separa-ção dos poderes. Essa regra preconiza que os órgãos sejammutuamente independentes a fim de evitar a pressão de um podersobre o outro23.

A separação dos poderes deve ser entendida como umatécnica de especialização de funções e de cooperação entre osórgãos para o alcance do verdadeiro propósito de Montesquieu:o próprio poder limitar o poder24 para assegurar a liberdade indi-vidual e fragilizar o poder do Estado ante as necessidades da so-ciedade daquela época.

Essa preocupação em garantir a separação dos poderese principalmente defendê-los das usurpações recíprocas ensejoua criação de uma teoria complementar à separação de poderes:o sistema de freios e contrapesos.

O sistema de freios e contrapesos na experiência norte-americana divide os atos praticados pelo Estado em duas espé-cies: atos gerais e atos especiais. Ao Poder Legislativo, e somentea ele, caberia a prática dos atos gerais, consistentes na emissãode regras gerais e abstratas. Uma vez emitida a norma geral aatuação do Poder Executivo far-se-ia possível através dos atosespeciais. Destaca-se que o exercício dos atos especiais deveria

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22 HAMON; TROPER; BURDEAU, 2005, p. 88. 23 HAMON; TROPER; BURDEAU, 2005, p. 89.24 AZAMBUJA, 2008, p. 179.

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obedecer aos limites previstos nos atos gerais editados peloPoder Legislativo. Quanto ao Poder Judiciário, este exerceriaação fiscalizadora. Havendo exorbitância de qualquer dos pode-res, caberia ao Poder Judiciário obrigar cada um deles a perma-necer nos limites de suas respectivas competências25.

Percebe-se, portanto, que o sistema de freios e contrape-sos consiste em técnica de controle recíproco entre os três pode-res. Esse sistema tem como propósito evitar que um dos poderesusurpe a esfera de competência dos demais e consequentementeponha em questão o dogma da separação dos poderes.

Nessa perspectiva, Hamilton, Madison e Jay26 propõem:

Mas o verdadeiro meio de embaraçar que os diferentes poderes nãose vão sucessivamente acumulando nas mesmas mãos, consiste emdar àqueles que os exercitam meios suficientes e interesse pessoalpara resistir às usurpações. Nesse caso, como em todos os outros, osmeios de defesa devem ser proporcionados aos perigos do ataque; épreciso opor ambição à ambição e travar de tal modo o interesse doshomens, com as obrigações que lhes impõem os direitos constitucio-nais dos seus cargos, que não possam ser ofendidas as últimas semque o primeiro padeça. É desgraça inerente à natureza humana a ne-cessidade de tais meios; mas, já a necessidade dos governos é em simesma uma desgraça. [....]. Esse sistema, que consiste em fazer usoda oposição e da rivalidade dos interesses, na falta de motivos melho-res, é o segredo de todos os negócios humanos, quer sejam particula-res, quer públicos. E o que se está vendo todos os dias na distribuiçãodos poderes inferiores, onde o que em todo o caso se procura é com-binar de tal modo os diferentes empregos, que uns sirvam aos outrosde corretivo e que os direitos públicos tenham por sentinela os interes-ses populares. Essa invenção da prudência não pode ser menos ne-cessária na distribuição dos supremos poderes do Estado27.

Para Bonavides28, o sistema de freios e contrapesos foia primeira correção essencial que se fez ao princípio constitucio-nal da separação de poderes. De fato, não é suficiente que aConstituição apenas distribua o poder entre pessoas diferentes

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25 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo:Saraiva, 1998. p. 170-171. 26 HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 317.27 HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 318.28 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros,2007. p. 74.

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e defina sua esfera de atuação, como pretende a doutrina tradi-cional de Montesquieu, dado que isso não garante a proteção deum poder contra as lesões cometidas pelos demais.

Ao se considerar que o detentor do poder tende deleabusar, faz-se necessário que a Constituição estabeleça instru-mentos para que os próprios poderes controlem-se reciproca-mente com o propósito de que nenhum deles burle a atuaçãodos demais e, consequentemente, alcancem o equilíbrio.

O sistema de freios e contrapesos pode ser percebidono direito brasileiro em diversos dispositivos da Constituição de1988, mas nenhum é tão explícito quanto o artigo 2° quando dis-põe que: “são Poderes da União, independentes e harmônicosentre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Em exame ao dispositivo acima transcrito, Bulos29 argu-menta que a independência consiste em investidura e permanên-cia das pessoas num dos órgãos do governo. Essas pessoas aoexercerem as atribuições que lhes foram conferidas devem atuarsem a interferência de outros órgãos, com total liberdade, sem in-terferência alheia, mas permitindo a colaboração quando neces-sária. Para Bulos30, “em última análise, a independência dasfunções do poder político, uno e indivisível, exterioriza-se pelo im-pedimento de uma função se sobrepor à outra, admitidas as ex-ceções participantes dos mecanismos de freios e contrapesos”.

Já no que diz respeito à harmonia, esta deve ser exterio-rizada através da cortesia e do respeito entre os órgãos do poder.Ressalta-se que a organização harmônica dos poderes não im-pede a interferência de um órgão no outro, a fim de assegurar ocontrole recíproco estabelecido pelo sistema de freios e contra-pesos, evitando-se, assim, o arbítrio31.

29 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva,2014. p. 517. 30 BULOS, 2014, p. 517.31 BULOS, 2014, p. 516.

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DA CRISE DO ESTADO LIBERAL À CONSTRUÇÃO DO ES-TADO CONSTITUCIONAL

O advento do Estado Liberal rompeu com a antiga estruturado Absolutismo e representou a realização plena do conceito de hu-manismo e igualitarismo político que dominou ao século XVIII32. Eletraduziu os ideais das revoluções daquela época: soberania nacio-nal, regime constitucional, limitação do poder e supremacia da lei,tripartição do poder com limitações recíprocas garantidoras das li-berdades públicas, separação do Estado e Igreja, igualdade jurídica,não intervenção do poder público na economia particular33.

Streck e Morais34 explicam que o liberalismo se apresentoucomo uma “teoria antiestado”. Nessa concepção de Estado, a ati-vidade estatal recobre-se de um aspecto mínimo, reduzido e pre-viamente reconhecido. Ao Estado competia apenas a manutençãoda ordem e da segurança e a proteção das liberdades civil, pessoale econômica35.

Apesar de todo o arcabouço teórico, o Estado Liberal nãoguardava a relação necessária com a realidade. A sua construçãoe desenvolvimento desconheceu as iminentes mudanças sociaisque eram trazidas pela Revolução Industrial que se iniciara naInglaterra em 177036. É então a partir de meados do século XIXque se começa a perceber uma mudança nos rumos da organi-zação do Estado.

Na segunda metade do século XIX, a Revolução Industrialevidencia na sociedade um novo tipo de homem: o operário.Ocorre que nesse período de crescimento industrial o apareci-mento das máquinas começou a gerar um desemprego em massa.O trabalho humano desvaloriza-se passando a ser negociadocomo mercadoria, sujeito à lei da oferta e da procura. Mulheres ecrianças também passam a procurar trabalho nas fábricas com oobjetivo de reforçar a renda familiar37.

47

32 MALUF, 2013, p. 311.33 MALUF, 2013, p. 311-312.34 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luís Bolzan de. Ciência Política e teoriageral do estado. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003. p. 56.35 STRECK; MORAIS, 2003, p. 56.36 MALUF, 2013, p. 312.37 MALUF, 2013, p. 314.

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No lado da classe patronal grandes fortunas se acumu-lavam nas mãos de poucos dirigentes do poder econômico.Diante desse quadro, enquanto o desequilíbrio econômico e so-cial tornava-se cada vez mais evidente, o Estado Liberal sacrali-zando o mercado, com sua mão invisível, limitava-se a manteras liberdades e a ordem pública38.

A abstenção estatal possibilitou que a sociedade e a eco-nomia se desenvolvessem pelas próprias forças, contudo, essedesenvolvimento trouxe uma grande crise de desigualdade so-cial. Nesse contexto, já não era mais o suficiente a proclamaçãoda liberdade frente ao Estado e aos demais indivíduos. Agora, oEstado deveria prover os meios necessários para garantir efeti-vamente o exercício de uma liberdade real. Por essa razão, emreação às injustiças sociais, o proletariado, munido das ideias dosocialismo materialista, insurge-se contra o Estado Liberal.

Assim, a manifestação histórica do Estado Social podeser explicada pela necessidade de superar a contradição básica- capital versus trabalho - do modo de produção capitalista39.Nessa circunstância é que se dá a passagem do Estado Liberalpara o Estado Social. A mudança da concepção liberal para aconcepção social de Estado é marcada pela luta dos movimentosoperários para a conquista de direitos, tais como: previdência eassistência social, transporte, moradia, etc. Toda essa movimenta-ção provocou uma mudança de paradigma na atuação do Estado.O Estado, outrora apenas garantidor do livre desenvolvimento,agora era chamado a intervir nas relações sociais e assumir tarefasque até então eram próprias da iniciativa privada. É justamenteesse intervencionismo estatal que caracteriza o Estado Social ouEstado do Bem-Estar Social40.

O Estado, forçado a assumir um papel ativo, torna-se Es-tado Social para garantir o desenvolvimento e a realização da jus-tiça social. Ademais, com o objetivo de favorecer o desenvolvimentoeconômico, especialmente nos países subdesenvolvidos, o Estadofoi chamado a atuar como agente econômico substituindo a

48

38 MALUF, 2013, p. 315.39 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo:Malheiros, 1995. p. 130.40 STRECK; MORAIS, 2003, p. 141.

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iniciativa privada em atividades reputadas importantes. Então, sur-gem assim os chamados direitos sociais e junto com eles, o direitode exigir certas prestações positivas do Estado41.

Contudo, deve-se atentar para o fato de que o EstadoSocial ou o Estado de Bem-Estar Social não representa um pro-duto da ruptura do Estado Liberal. Na realidade, ele representauma medida corretiva dos efeitos negativos gerados pelo sistemade autorregulador do mercado, uma adaptação do modelo liberalàs necessidades sociais42.

Essa mudança de perfil do Estado, que deixa de ser ab-senteísta para assumir uma postura ativa no sentido da realiza-ção da justiça social, altera também a forma de relação entre ospoderes do Estado, apontando a predominância para do PoderExecutivo, como comenta Rocha43:

O caráter intervencionista e ativo do Estado social, exigindo a realizaçãoprática das políticas econômicas e sociais, enseja um maior protago-nismo e uma maior concentração de recursos materiais e humanos noPoder Executivo, por ser o mais adequado ao desempenho dos objeti-vos de mudança da realidade a que se propõe o Estado social. Outrofator a concorrer para a predominância do Executivo sobre o Legislativofoi a extensão do poder de voto a camadas cada vez mais amplas dapopulação. Este fenômeno, aumentando a presença de representantesdas forças populares nos Legislativos, induz as elites econômicas a con-centrar as decisões sobre a economia na área de competência do Exe-cutivo, retirando-as, assim, do Legislativo que, dada sua estrutura maisdemocrática e, por isso mesmo, mais sensível às reivindicações dopovo, significaria uma ameaça ao sistema, o que não acontece com oExecutivo onde as decisões são tomadas por tecnocratas de ideologiaconservadora, inacessíveis às pressões populares.

Destaca-se, assim, que a formação do Estado Social secaracteriza pela hipertrofia do Poder Executivo, uma vez que éatravés dele que se torna possível a realização das políticas eco-nômicas e sociais necessárias à realização da justiça social.

49

41 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4. ed. São Paulo: Malheiros,2009. p. 55.42 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como princípio: os limites da juris-dição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 12-13.43 ROCHA, 1995, p. 130.

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A partir da década de 1960, o Estado Social ou de Bem-Estar Social evidenciou uma crise de caixa, quando os primeirossinais de não correspondência entre as receitas e despesas forampercebidos. Contudo, é na década seguinte que a crise se apro-funda. O aumento da atividade estatal e a crise econômica mun-dial implicaram o crescimento do déficit público44. Além da crisede caixa, caracterizada pela escassez de recursos para a manu-tenção do Estado Social, Streck45 aponta a crise de legitimaçãoque atingiu o Estado Social nos anos de 1980. Essa crise de le-gitimação pode ser entendida em dois aspectos: crise ideológica- caracterizada pelo confronto entre a democratização do acessoe a burocratização do serviço -, e crise filosófica do Estado Social- caraterizada pela afronta ao princípio base do Estado Social: asolidariedade. É então, diante dessas crises e da possível inefi-ciência econômica desse modelo de Estado, que as ideias neoli-berais encontram força.

Todas essas crises pelas quais passou o Estado acaba-ram por refletir seus efeitos no Direito, gerando aí também umacrise. Essa crise ocorre devido a uma distorção da dogmática ju-rídica, que insiste em manter - inclusive nos dias atuais, aindaque de forma mais velada que outrora -, a solução dos conflitosadstrita a uma esfera de direitos interindividuais, enquanto a so-ciedade moderna transborda de conflitos transindividuais46.

A consequência de tudo isso é a transformação gradualdo velho Estado Legalista em Estado de Direito Constitucional.Apesar de o constitucionalismo, como movimento jurídico, políticoe cultural, começar a adquirir consistência a partir do final do sé-culo XVIII, é após a Segunda Guerra Mundial, com o movimentopós-positivista, que o Estado Constitucional conhece o seu ápicecom o que ficou conhecido de constitucionalismo principialista.Em outras palavras, significa dizer que, a partir desse período, osprincípios constantes da Constituição, sejam eles expressos ouimplícitos, passaram a ser considerados normas constitucionais47.

50

44 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova críticado Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 65.45 STRECK, 2002, p. 65.46 STRECK, 2002, p. 83.47 BULOS, 2014, p. 73.

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Nesse contexto, vencendo as questões liberais e sociais,dentro do Estado Constitucional, surge o Estado Democrático deDireito com o objetivo de promover a igualdade, a justiça sociale a transformação da sociedade. Nesse sentido Streck48 aponta:

O Estado Democrático de Direito, ao lado do núcleo liberal agregadoà questão social, tem como questão fundamental a incorporação efe-tiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser bus-cado garantir através do asseguramento mínimo de condiçõesmínimas de vida ao cidadão e à comunidade. Ou seja, no Estado De-mocrático de Direito a lei passa a ser, privilegiadamente, um instru-mento de ação concreta do Estado, tendo como métodoassecuratório de sua efetividade a promoção de determinadas açõespretendidas pela ordem jurídica. O Estado Democrático de Direito re-presenta, assim, a vontade constitucional de realização do estado So-cial. É um plus normativo em relação ao direito promovedor-intervencionista próprio do Estado Social de Direito. [....]. Dessemodo, se na Constituição se coloca o modo, é dizer, os instrumentospara buscar/resgatar os direitos de segunda e terceira gerações, viainstitutos como substituição processual, ação civil pública, mandadode segurança coletivo, mandado de injunção (individual e coletivo) etantas outras formas, é porque no contrato social - do qual a Consti-tuição é a explicitação – há uma confissão de que as promessas darealização da função social do Estado não foram (ainda) cumpridas.

A passagem do Estado Liberal até o alcance do EstadoConstitucional de Direito acarretou uma mudança de paradigmano direito e na sociedade. Dentre as principais pode ser citadaa passagem da visão legalista, caracterizada pelo culto exage-rado às leis, para a cultura do principialismo, onde a justiça é fun-dada nos princípios e valores constitucionais49.

A despeito da importância de todas essas transforma-ções, maior destaque deve ser dado àquela que, sem dúvida,mais caracterizou a quebra do paradigma do Estado Liberal ex-tremamente legalista e efetivamente promoveu - e ainda promove- uma necessidade de revisão e readaptação na organização dospoderes do Estado: a mudança na atuação do juiz, bem como a

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48 STRECK, 2002, p. 85.49 GOMES, Luis Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Supraconstitucional: do absolutismo ao estado constitucional e humanista de direito. São Paulo: Revistados Tribunais, 2010. p. 48.

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transformação da atuação do Poder Judiciário, que passa a as-sumir responsabilidades sociais.

Ao comparar a sociedade do século XVIII, momento emque a Teoria da separação dos poderes despontou, à sociedadecontemporânea, observam-se duas situações opostas. No primeirocaso, a sociedade marcada pelo repúdio ao regime monárquico-absolutista, pela ascensão da burguesia, pelo impulso da atividadelegislativa e pelos ideais liberais e individualistas reclamava umaabstenção do poder absoluto e arbitrário do Estado. Nessa oca-sião, a Teoria da separação dos poderes, que foi difundida naforma de uma separação estanque dos poderes, representou uminstrumento eficaz de proteção dos direitos e liberdades indivi-duais em face dos arbítrios e intervenções do Estado.

Contudo, no sentido contrário daquela sociedade se po-siciona a sociedade contemporânea. Não é mais suficiente ape-nas a proteção aos direitos e liberdades individuais. Agora sedeseja uma postura ativa do Estado, no sentido de promover eassegurar os direitos e interesses sociais e coletivos, a realizaçãodo bem comum e da justiça social. Diante dessas necessidades,diante dos novos papéis assumidos pelo Estado, bem comodiante da complexidade de conflitos apresentada pela sociedadeatual indaga-se se ainda é cabível a aplicação da Teoria da se-paração dos poderes nos mesmos moldes de outrora.

Sobre essa questão Bonavides50 opina no seguinte sentido:

Esse princípio - que na origem de sua formulação foi, talvez, o maissedutor, magnetizando os construtores da liberdade contemporâneae servindo de inspiração e paradigma a todos os textos de Lei Fun-damental, como garantia suprema contra as invasões dos arbítriosnas esferas da liberdade política - já não oferece, em nossos dias, ofascínio das primeiras idades do constitucionalismo ocidental. [....].Quando cuidamos dever abandoná-lo no museu da Teoria do Estadoqueremos, com isso, evitar apenas que seja ele, em nossos dias, acontradição dos direitos sociais, a cuja concretização se opõe, decerto modo, como técnica dificultosa e obstrucionista, autêntico tro-peço, de que inteligentemente se poderiam socorrer os conservado-res mais perspicazes e renitentes da burguesia, aqueles que aindasupõem possível tolher e retardar o progresso das instituições norumo da social-democracia.

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50 BONAVIDES, 2007, p. 64.

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De fato, diante da complexidade das relações e dos con-flitos da sociedade contemporânea, não há mais espaço parauma separação rígida e absoluta dos poderes. Nesse contexto,o foco se volta para o Poder Judiciário. Para a solução dessesconflitos, a sociedade clamava por um Judiciário mais ativo, sur-gindo assim, a necessidade de rever a sua atuação. É então coma transição para o regime democrático em 1985, no Brasil, que oJudiciário passa a decidir de modo cada vez mais contundente,obrigando o Executivo a assumir funções inéditas e até mesmo,por vezes, incompatíveis com a estrutura jurídico-política do Es-tado Liberal51. A partir desse momento é que o Poder Judiciáriocomeça a assumir uma postura mais ativa e política para garantire assegurar a efetivação dos direitos, que apesar de previsãoconstitucional, eram negligenciados pelo poder público.

Diante dessas mudanças, quando se fala hoje em sepa-ração de poderes, deve-se considerar o presente processo deinterpenetração de funções. Sobre essa nova ótica da separaçãode poderes propõem Streck e Morais52:

Todavia, este mecanismo não é imune a críticas, dentre as quais asmais repetidas apontam para que a teoria separatista não tem o con-dão de assegurar uma estruturação democrática do poder estatal eque a mesma demonstra uma profunda ineficiência frente às exigên-cias técnicas do Estado Contemporâneo. Para amenizar estes pro-blemas, alguns mecanismos são utilizados, tais como a delegaçãode atribuições ou a redistribuição constitucional de competências. Asfunções tradicionalmente foram apresentadas como sendo a legisla-tiva que se manifesta através da edição de normas gerais e obriga-tórias para todos, a executiva que atua através da implementação desoluções concretas, sendo a função como responsabilidade de go-verno, como atribuições políticas, co-legislativa e de decisão, alémda administração pública em geral e a jurisdicional cujo campo é oda solução em específico dos conflitos surgidos e regulados pelas re-gras gerais, interpretando e aplicando a lei. Atualmente, seria prefe-rível falar em colaboração de poderes, particularmente no âmbito doparlamentarismo e de independência orgânica e harmonia dos pode-res, quando do presidencialismo, embora mesmo isso sofra os influxos

53

51 FARIA, José Eduardo. As transformações do Judiciário em face de suas respon-sabilidades sociais. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, DireitosSociais e Justiça. São Paulo:Malheiros, 2010. p. 54-55.52 STRECK; MORAIS, 2003, p. 164-165.

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da organização sociopolítico-econômica atual, podendo-se melhorfalar em exercício preponderante de certas atribuições por determi-nados órgãos do poder público estatal ou, como é o caso das funçõesexecutiva e jurisdicional no campo da aplicação do direito ao casoconcreto, onde o que diferencia é a maior ou menor eficácia conclu-siva do ato praticado ou da decisão.

A despeito de o princípio da separação dos poderes aindarepresentar um “dogma, aliado à idéia de democracia, daí decor-rendo o temor de afrontá-la expressamente”53, o Estado Demo-crático de Direito exige uma readaptação desse princípio. Comopôde ser analisado no fragmento acima, essa readaptação pendemuito mais para o lado da colaboração de poderes, sobretudo,entre os poderes executivo e judiciário.

Esse debate acerca da colaboração de poderes, princi-palmente diante das situações de inércia do Poder Público naconcretização de políticas públicas e na efetivação dos direitosfundamentais será objeto de estudo da próxima seção.

JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A DISTINÇÃO DE FUNÇÕESNO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O nascimento do Estado Constitucional de Direito, cujacaracterística mais marcante é a força normativa da Constituição,fez despontar a jurisdição constitucional e a supremacia do PoderJudiciário. Contudo, a grande visibilidade alcançada pelo Judi-ciário é um fato ocorrido nos últimos tempos, em razão de suasdecisões recentes e recorrentes que exigem do Executivo o res-peito estrito à ordem constitucional54.

Ao se observar o papel da magistratura ante as transfor-mações sociais e das estruturas normativas, Campilongo55 defendeque a magistratura ocupa atualmente uma posição singular dentroda “nova engenharia institucional”, passando o juiz a integrar o “cir-cuito de negociações políticas” e desempenhar “função ativa no

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53 DALLARI, 1998, p. 171.54 FARIA, 2010, p. 52.55 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: um Enquadra-mento Teórico. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociaise Justiça. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 49.

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processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva”. Essa transformação na estrutura das funções do Poder

Judiciário se deve principalmente a dois fenômenos, a judiciali-zação da política e o ativismo judicial, que apesar de seremmeios de exercício da responsabilidade social do Poder Judiciá-rio, não se confundem.

Diferenciando esses dois fenômenos da esfera de atuaçãodo Poder Judiciário, Barroso56 explica que a judicialização “sig-nifica que questões relevantes do ponto de vista político, socialou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Ju-diciário”. Portanto, a judicialização da política ocorre quando háa transferência de poder do Poder Público (Executivo e Legisla-tivo) para o Poder Judiciário. No que diz respeito ao ativismo ju-dicial, este consiste na participação mais ampla e enfática doPoder Judiciário na concretização dos valores e fins constitucio-nais. Trata-se, pois, de uma postura assumida pela magistraturade procurar extrair o máximo das potencialidades da Constitui-ção, principalmente a partir dos seus enunciados vagos57.

Ainda que a interferência do Poder Judiciário na revisãodas atividades desenvolvidas pelos Poderes Executivo e Legis-lativo não seja novidade (freios e contrapesos), a sua atuação nocontrole das políticas públicas o é. Os efeitos sociais da adoçãode um modelo econômico neoliberal, que transformaram os juí-zes em parcela importante do Estado brasileiro na realização dajustiça social, e o crescimento do Ministério Público após a Cons-tituição de 1988 foram fatores relevantes para a judicialização demuitas questões políticas58.

A redefinição dos papeis do Estado, bem como o cresci-mento das demandas sociais concretas, têm ampliado a esferade atuação destinada ao Poder Judiciário. Efetivamente, o Judi-ciário pode figurar como um forte instrumento formador de políti-cas públicas, além de ser palco do avanço da democracia aopermitir a discussão de temas relevantes para a sociedade.

55

56 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro:exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. SãoPaulo: Saraiva, 2012. p. 382.57 BARROSO, 2012, p. 386.58 APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. Curitiba:Juruá, 2007. p. 17.

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Sem dúvida, a existência de um Poder Judiciário forte eresponsável socialmente é fundamental para o Estado Democrá-tico de Direito. Contudo, essa supervalorização da atuação doJudiciário deve ser comedida, como alerta Appio59:

A frustração coletiva decorrente de um Brasil contemporâneo, que vêcada uma das promessas sociais ser substituída por mais uma re-forma da Constituição e pelo aumento do contingente policial, nãopode legitimar uma atuação judicial arbitrária. Teorias da ruptura sejustificam, unicamente, em sistemas em que a Constituição não pos-sui qualquer normatividade. Conflitos familiares mal resolvidos facil-mente se transformam em laboriosas teorias jurídicas de ruptura como sistema vigente, através de uma revolução do Poder Judiciário. Aprofessora Ingeborg Maus alerta para um processo de ‘divinização’dos juízes, no que pode ser considerada uma nova teocracia consti-tucional: o Judiciário exerceria a função de superego da sociedade,através de um processo de infantilização dos cidadãos.

Nesse contexto, para que a judicialização da política sedesenvolva de forma legítima e não venha a configurar ofensaao principio democrático, nem à supremacia da Constituição,devem ser observadas algumas precondições. Primeiramente, éforçoso lembrar que a principal característica do Poder Judiciárioé a inércia, ou seja, qualquer manifestação sua só pode se darmediante provocação. Diferentemente do Executivo e do Legis-lativo, que podem dar início espontaneamente a reformas, o Ju-diciário somente poderá manifestar-se após prévia provocaçãodos interessados através dos meios processuais adequados. Porisso, antes de qualquer coisa, destaque-se que a intervenção ju-dicial para efetivação de direitos através da implementação depolíticas públicas pelos demais poderes só ocorre mediante pro-vocação de interessados através do meio processual adequadoe respeitado o devido processo legal.

Superada a questão da inércia do Judiciário, Tate e Vallin-der60 apontam algumas precondições que facilitam a judicializaçãoda política. São elas: a prevalência de regimes democráticos, a se-paração constitucional dos poderes, a positivação constitucional

56

59 APPIO, 2007, p. 20.60 Apud LOPES JÚNIOR, Eduardo Monteiro. A Judicialização da Política no Brasile o TCU. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 38.

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de direitos e garantias individuais, a utilização das vias judiciaispor grupos de interesse e de oposição política, a ineficácia dasinstituições majoritárias e das políticas públicas e a delegação decompetência às instâncias judiciais pelas instituições majoritárias.

A afirmação dos direitos fundamentais como epicentrodo ordenamento jurídico, principal caraterística do movimentoconstitucionalista, gerou uma necessidade de revisão da Teoriada separação dos poderes. Tendo em vista que não apenas osdireitos de primeira dimensão – aqueles referentes aos direitose liberdades individuais -, devem ser protegidos pela separaçãodos poderes, mas todas as dimensões dos direitos fundamentais,este mesmo princípio não pode configurar um entrave à efetiva-ção dos direitos fundamentais. Nesse sentido, uma releitura oureadaptação da separação dos poderes, que tem como objetivoredimensionar a função judicial na materialização da Constitui-ção, é indispensável para a efetivação da Constituição no EstadoDemocrático de Direito61. Assim, pode-se afirmar que o fenômenoda judicialização da política tem o objetivo de favorecer a cola-boração do Poder Judiciário em relação aos demais poderes paraa efetivação dos direitos fundamentais previstos na ordem cons-titucional, e não de transformá-lo em poder supremo.

É fato que o Estado Democrático de Direito criou umanecessidade de valorização do papel do Poder Judiciário. Diantedos novos tipos de conflitos - negligência dos direitos sociais, de-mandas de interesses coletivos, ofensa a direitos fundamentais,ofensa a direitos humanos -, o magistrado foi chamado a assumiruma postura ativa e socialmente responsável pelos anseios dacoletividade. Essa postura foi gradativamente realizando umamudança no perfil do Poder Judiciário.

Essa mudança de perfil consequentemente promoveu al-gumas mudanças no Estado brasileiro, na forma de produção dodireito, na elaboração das políticas públicas, dentre outras. Primei-ramente, o novo papel do Judiciário permite, através de seus de-bates judiciais, o avanço da democracia ao ensejar as discussõesde temas relevantes. Independente da opinião a respeito dos maisdiversos temas - censura, aborto, direito das minorias etc. -, sua

57

61 LOPES JÚNIOR, Eduardo Monteiro. A Judicialização da Política no Brasil e oTCU. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 38-39.

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“submissão a uma discussão judicial amplia o espaço de demo-cracia, porque exige, com mais ou menos sucesso, a racionalidadedas propostas divergentes”62.

Além disso, outra virtude da transformação do perfil doPoder Judiciário é que ele se transformou em um poderoso ins-trumento de controle de políticas públicas. Exemplificando, Lopes63

aponta o caso da previdência social brasileira. Resumidamente,o caso é o seguinte: em 1991, vários casos de reajustes de pen-sões e aposentadorias foram levados ao Judiciário. As ações eas decisões começaram a surgir de forma fragmentária. Contudo,as decisões judiciais não tinham o poder de fazer-se substituirao orçamento da previdência social. Considerando que o empe-nho das verbas é feito de forma legal, um representante do INSSchamado a responder judicialmente era impossibilitado de solu-cionar o caso. Nessa situação, o número extraordinário de de-mandas judiciais foi fundamental para impulsionar areorganização das contas da previdência.

No mais, a mudança de perfil do Judiciário fortalece aimagem da Constituição como norma suprema do Estado brasi-leiro, favorece a máxima efetividade das regras e dos princípiosconstitucionais, quer sejam eles expressos ou implícitos; bemcomo assegura que o mínimo existencial dos direitos sociais sejaoferecido e garantido pelo Poder Público.

Diante de tudo analisado até aqui, de fato o Poder Judi-ciário sofreu uma grande mudança na sua estrutura funcional,mudança esta que reclama uma readaptação/revisão do princípioda separação dos poderes. É inquestionável a importância dessamudança para o Estado Democrático de Direito, contudo, há quese destacar que essa nova postura do Judiciário deve ser pau-tada por alguns limites para que não se retorne aos tempos doAbsolutismo, com a única diferença de que nesse caso o governotirânico seria exercido pelos juízes.

A existência de uma justiça constitucional e de um PoderJudiciário forte e ativo tornaram-se requisitos de legitimação e

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62 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito Subjetivo e Direitos Sociais: o Dilemado Judiciário no Estado Social de Direito. In: FARIA, José Eduardo (org.). DireitosHumanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo:Malheiros, 2010. p. 136-137.63 LOPES, 2010, p. 135-136.

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credibilidade política dos regimes constitucionais democráticos, tendoem vista que “a justiça constitucional deve ser considerada comouma condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito”64.

Nos dias que correm, o sistema representativo passa poruma grande crise, que se caracteriza pela falta de correspondênciaentre a vontade popular e a atuação parlamentar como efetivo ins-trumento de realização de representação. Diante desse panorama,Cunha Júnior65 explica que a ideia de soberania do Poder Legisla-tivo e da separação de poderes, com a submissão do Poder Judi-ciário à lei, deu lugar a um novo paradigma: do EstadoDemocrático de Direito. Esse novo paradigma se baseia no regimedemocrático, na garantia dos direitos fundamentais e na atuaçãoda justiça constitucional. Nesse contexto, a soberania do Legisla-tivo foi substituída pela soberania e supremacia da Constituição eo dogma da separação dos poderes foi superado pela prevalênciados direitos fundamentais em face do Estado.

Ao se considerar que o regime democrático, bem comoa necessidade de promoção dos direitos fundamentais, tem exi-gido do Poder Judiciário uma postura mais ativa na efetivaçãodas normas constitucionais, percebe-se que a atuação da juris-dição constitucional, através do controle da constitucionalidadedos atos e omissões do Poder Público, se constitui como umanecessidade para um reequilíbrio do sistema de freios e contra-pesos, como assinala Cunha Júnior66:

O regime democrático e a necessidade de defesa e realização dosdireitos fundamentais - premissas básicas do Estado Democrático deDireito - tem exigido dos órgãos da justiça constitucional uma atuaçãomais ativa na efetivação e no desenvolvimento das normas constitu-cionais, máxime em face de omissões estatais lesivas a direitos fun-damentais. Aqui reside, sem dúvida, a melhor das justificativas dalegitimidade da justiça constitucional e do controle judicial de consti-tucionalidade, como instrumento de efetivo controle das ações e omis-sões do poder público, cumprindo lembrar que o que caracteriza ademocracia não é, propriamente, a intervenção do povo na feitura dasleis - hoje mera ficção- mas, sim, o respeito aos direitos fundamentaisda pessoa humana, cuja guarda e defesa incumbe ao Poder Judiciário.

59

64 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de Constitucionalidade: teoria e prática. 4.ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 44-45.65 CUNHA JÚNIOR, 2010, p. 45.66 CUNHA JÚNIOR, 2010, p. 46.

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Por tudo isso, percebe-se que essa nova postura doPoder Judiciário configura uma técnica de rebalanceamento docontrole recíproco dos poderes exigida pelo Estado Democráticode Direito e essencial à efetivação e promoção dos direitos fun-damentais e à garantia da supremacia da Constituição. Dessaforma, a separação dos poderes deve ser entendida atualmentecomo uma técnica de colaboração e ajuda mútua entre os pode-res visando à atuação eficiente do Estado na promoção das po-líticas necessárias para o bem-estar da coletividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da história da humanidade, o Estado vem pas-sando por um considerável processo de mudança na sua estru-tura e na sua concepção. Todas essas mudanças acarretaramuma transformação na atuação do Estado frente às necessidadesda sociedade de cada época. Com o intento de conter o poderdo Estado, bem como, de maneira secundária, organizar a formacomo deveria ser desempenhada a sua atuação é que se desen-volve o princípio da separação de poderes.

O presente artigo se propôs a apresentar e discutir oprincípio da separação de poderes no contexto do Estado Demo-crático de Direito, partindo-se do pressuposto de que, para queo Estado Democrático de Direito possa desempenhar de formaeficiente os seus deveres, dentre os quais se destacam a reali-zação da justiça social e a promoção do bem comum, faz-se ne-cessária uma releitura desse princípio/teoria objetivando suareadaptação aos atuais contornos do Estado.

Para atingir o objetivo proposto, foram percorridas trêsetapas: (a) investigação, por meio da doutrina, do processo deevolução da teoria da separação dos poderes e do sistema defreios e contrapesos; (b) análise da evolução do Estado, da suaconcepção liberal à constitucional, e a sua relação com a evolu-ção do dogma da separação dos poderes; (c) apresentação ediscussão da nova versão de separação de poderes, partindo-seda premissa da necessidade de adequar o princípio constitucio-nal estudado às exigências do Estado Democrático de Direito.

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A primeira etapa desse trabalho cuidou de estudar aconstrução teórica, origem e evolução, da teoria da separaçãode poderes e do sistema de freios e contrapesos. Observa-seque esse dogma desempenhou papel fundamental na construçãodo constitucionalismo, à medida que limitou o poder arbitrário doEstado e assegurou as liberdades individuais.

No que diz respeito à segunda etapa desse estudo, par-tindo-se da análise da evolução do Estado, desde a sua forma Li-beral até a constitucional, constatou-se que a teoria da separaçãodos poderes passou por alguns ajustes para que fosse possíveldirecionar a atuação do Estado à satisfação das necessidades dasociedade de cada concepção de Estado, como, por exemplo,pode-se citar a hipertrofia do Poder Executivo no Estado Social.

Na terceira etapa, considerando a força normativa daConstituição e o despontar de uma jurisdição constitucional aptaa defender a Constituição diante da inércia do Poder Público naconcretização de políticas públicas e na efetivação de direitosfundamentais, chegou-se ao entendimento de que o dogma daseparação dos poderes não pode ser concebido de maneira de-turpada como separação absoluta entre os poderes. A ssepara-ção dos poderes deve, pois, ser entendida como uma técnica decolaboração entre os diversos poderes para que o Estado possaalcançar com eficiência os fins que pretende.

Nesse sentido, a judicialização da política figura comoum fenômeno necessário à garantia do equilíbrio da atuação dosdemais poderes, na medida em que assegura a manutenção dasupremacia e da força normativa.

Com base no exposto e como reflexão final do presenteartigo, compreende-se que a nova postura do Poder Judiciárioconfigura uma técnica de rebalanceamento do controle recíprocodos poderes exigida pelo Estado Democrático de Direito e es-sencial à efetivação e promoção dos direitos fundamentais e àgarantia da supremacia da Constituição. Dessa forma, a separa-ção dos poderes deve ser entendida atualmente como uma téc-nica de colaboração e ajuda mútua entre os poderes visando àatuação eficiente do Estado na promoção das políticas necessá-rias para o bem-estar da coletividade.

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