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[Serge Latouche] Pequeno Tratado Do Decrescimento

Date post: 06-Jul-2018
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    PEQUENO TRATADO

    DO DECRESCIMENTO SERENO

    Serge Latouclhe

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    Serge Latouche 

    PEQUENO TRATADO DO DECRESCIM ENTO SERENO

    Tradução 

    Claudia IKt Jiiioi'

    I BS

    w m f  m a r t in s f o n t e sSÃO PAULO 2009

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    Ebltt ohi v foi imN ii thhi or i^ it nihn ail v eiu f ranee* m u   Utufo  PL TI T r t i A H t D l . I A D l k' l H HSSÀN í  T . Ü l A i U N E   

    por U bruir ir A r lhhn e fai/ anf, Pari*  

    Cvi>tfri$hl (ò M iU e t‘i un e mota, tiéparíentcM ti e la hbr air i r A i l i ih u e I at/t mi 2007 .

    Coptfri^itl  (

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    Preâmbulo ............................................................... VIIIntrodução .............................................................. XI

    I . O território do decrescimento................... 1

    Um ovni 110 m icrocosmo p olitiqueiro ............1O que e o decrescim ento?.........................   4A batalha das palavras c das ideias ...........   7As duas fontes do decrescimento .............   12A adição ao crescimento ............................   16

    A alga verde e o ca racol.............................   23Uma pegada ecológica insustentável....... 27Urna falsa solução: reduzir a popu lação.. 30A corrupção política do crescim ento....... 30

    I I . O decrescimento: uma utopia concreta ... 39

    A revolução do decrescim ento .................   39

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    O círculo virtuoso do decrescimentosereno.......................................................... ...42

    O decrescim ento como projeto lo cal..........

    58Reduzir significa regred ir? ......................... ...71O desafio do decrescimento para o S u l... 78O decrescimento é reformista ou

    revolucionário?......................................... ...91

    I I I . O decrescimento: uin programa político.... 95

    Um program a eleitora l................................ 96Trabalho para todos numa sociedade de

    decrescimento...........................................   108Sair da sociedade trabalhista pelo

    decrescimento ...........................................   115O decrescimento é assimilável no

    capitalismo?................................................ 126O decrescimento e de direita ou de

    esquerda? ................................................... 132Precisamos de um partido do

    decrescim ento?......................................... 135

    Conclusão

    O decrescim ento é um humanismo?........ 139

    Bibliografia.   153

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    “Se o in tegr i smo do c resc imento n n i ;a u  1

    Numa simpática resenha no M onde diplomatique,  meu opúsculo anterior, Survivre au déoehppe-  ment. De la décolonisation de l ’imaginaire économique à  

    la construction d ’une société alternative1 [Sobreviverao desenvolvimento. Da descolonização do imaginário econômico à construção de uma sociedadealternativa], foi qualificado de “breviário do decrescimento”3. É um juízo um tanto abusivo pordois motivos: por um lado, porque no livro o pro

     jeto de uma sociedade de decrescim ento estavaapenas esboçado a título de conclusão da obra e,também, porque ainda não tinha sido produzida aanálise detalhada de que aquele projeto seria o

    1. Une seconde natuw,  1’au, 1981, p. 108.

    2. Paris, Mille et un e nuits, 2004.3. l’o r Nicolas Truong,  I* Monde diplomatique, jan eiro de 2005.

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    compêndio. Em Simiivre au développement, o decres

    cimento era um a das duas vias propostas, sendo aoutra o “localismo”. Por outro lado, o círculo virtuoso do decrescimento convivial compreendia apenas seis “erres” contra os oito de hoje'1. O localismo,precisamente, foi introduzido e integrado nessecírculo na forma da ^localização, e a reconceitua-ção foi acrescentada. Além disso, aquele primeiroesboço não pro pun ha nen hum a reflexão sobre atransição política possível para realizar a utopiado decrescim ento no Norte ao mesmo tempo queo Sul era m antido à parte. Um projeto mais elabo

    rado de sociedade alternativa já existe com Le Pari  de la décroissance r’ TA aposta 110  descrescimentoj,{jne a revista L ’Ecologiste   também qualificou do “bíblia” do decrescimento8...

    Contudo, a ideia de produzir um texto curto,que fosse um compêndio do corp us  das análises jádisponíveis sobre o decrescimento, con tinuou p revalecendo. Apesar de retom ar de maneira sintéticaas principais conclusões do Pari de la dénvissance, que o leitor desejoso de saber mais está convidado aconsul lar, este opúsculo tem sua originalidade pró

    pria. Ele integra os novos desenvolvimentos da reflexão sobre o tema, em particular aqueles produ-

    •1. Recordemos esses oi 10 objetivos in terdepen de ntes capazes

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    zidos nos debates realizados pela revista Entropia7. 

    Nele, a preocupação com as aplicações concretasem diferentes níveis é claramente levada inaisadiante. Portanto, não é tanto “Tudo o que vocêqueria saber sobre o tema e nunca teve coragemde perguntar”, mas uma ferramenta de trabalhoútil para todo participante de movimentos sociais

    ou político engajado, em particular no plano localou regional.

    7. “Décroissance d politique", novem bro d e 200(>; “Travail eldécroissance**, abril de 2007, Lyon, Parangon.

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    “Se a t e r r a t i ve r de pe rde r a ma io r pa r t e dc sua

    b e le z a p elo s d a n o s p r o v o c a d o s p o r u m c r es c im e n

    to i l imitado da r iqueza c da população [ . . . ] , então,

    p e lo b e m d a p o s t e r id a d e , d e s e jo s in c e r a m e n t e q u e

    n o s c o n t e n t e m o s e m f i c a r o n d e e s t a m o s n a s

    condições a tua is , antes que se jamos obr igados a

    fazê-lo p o r nece ssidade ."

    J o h n S tu a r t M i i .i .1

    Há perguntas demais neste m undo aqui de baixo, nos diz Woody Allen: de onde viemos? paraonde vamos? e o que vamos comer hoje à noite? Se,para dois terços da humanidade, a terceira questão é a mais importante, para nós, do Norte, osempanzinados do hiperconsumo, ela não é umapreocupação. Consumimos carne demais, gordurademais, açúcar demais, sal demais. O que nos assombra é antes o sobrepeso. Corremos o risco de

    sofrer de diabetes, cirrose do fígado, colesterol eobesidade2. Estaríamos melhor se fizéssemos dieta.Esquecemos as duas outras perguntas que, menos

    1. Principi di economia política, Turim, Utet, 1979, pp. 748-51.2. Sessenta po r cento da população dos Estados Unidos, 30%

    da Europa e 20% cias crianças na Fi ança (fonte: Dominique Bel-pomine,  Avant qu'il ne soit tmp tard,  Paris, Fayard, 2007, p. 138).

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    urgentes, são contudo mais importantes. Lembre

    mos que os objetivos que a “comunidade” internacional propôs na aurora tio terceiro milênio para2015 visam a saúde para todos e a erradicação da pobreza, e isso bem anles da luta contra as poluições.

    Para on de vamos? De cara contra o muro. Esta

    mos a bordo de um bólido sem piloto, sem marcha a ré e sem freio, que vai se arrebentar contraos limites do planeta.

    Na verdade, estamos totalm ente a par da situação. Desde Sil /ml Spring  [primavera silenciosa), deRachel Carson (1962), um número suficiente de

    vozes autorizadas se fizeram ouvir para que nãopossamos alegar que não sabíamos. O famoso relatório do Clube de Roma, “Os limites do crescimento” (1972), nos preveniu que a busca indefinida do crescimento era incompatível com os “fundam en tos” do planeta1. Todos os dias ou quasetodos os dias, novos relatórios aterradores, provenientes dos mais diversos horizontes, confirmamesse diagnóstico de bom senso. Assim, depois dadeclaração de Wingspread (1991) ‘, do Chamadode Paris de (2003)r>, do M illennium Assessment

    3. C) C’.luhe de Rom a produziu em seguida, tendo sem pre Den-nis Meadows

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    Report", foram redigidos os do Grupo Intergover

    n m e n ta l de Especialistas sobre a Evolução do ('lima (GIEC*), os das ONG especializadas (WWF,Greenpeace, Friends of the Earth [Amigos da Terra], Worldwatch Institute etc.), mas também osrelatórios, semissecretos, do  Pentágo no, outros,

    mais confidenciais, da Fundação Bilderberg, o relatório de Nicolas Stern para o governo britânicoetc., sem falar dos chamados lançados pelo presidente Chirac cm Johanesburgo ou por Nicolas IIu-lot na campanha presidencial de 2007, passandopelo ex-vice-prcsidente am ericano Al Gore...

    Mas, com a nossa refeição desta noite garantida, não queremos escutar nada. Ocultamos, em]»articular, a questão de saber de onde viemos: deuma sociedade de crescimento - on seja, de umasociedade fagocitada por um a econom ia cuja úni

    ca finalidade é o crescimento pelo crescimento. Esignificativa a ausência de uma verdadeira críticada sociedade de crescimento na maioria dos discursos ambientalistas, que só fazem enrolar nas suascolocações sinuosas sobre o desenvolvimento sus

    6. Millennium Assessment Repo rt, "Living Beyond Our Means:  Natural Assets and Human Well-Being   (http://www. millenniumas-sessnienl.org). Trata-se do um relatório das Nações Unidas baseado no s trabalhos de 1300 especialistas de 95 países, publicado emTóquio em 30 de março de 2005, que demonstra que a atividadehum an a abusa das capacidades de regeneração dos ecossistemas aponto de comprometer os objetivos econômicos, sociais e sanitá

    rios fixados pela com unidade in ternacional pa ra 2015.*  Inlergmiemvumtal Panel on Climate ('.hange ( IPCC)  (N. da T.).

    http://www/http://www/

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    tentável7. Denunciar o “frenesi das atividades huma

    nas” ou o desgoverno do motor do progresso nãosupre a ausência de análise da megamáquina tec-noeconômica capitalista e mercantil, da qual talvez sejamos de fato as engrenagens cúmplices,mas com certeza não as molas propulsoras. Essesistema baseado na desmedida nos conduz ao impasse. E urna esquizofrenia que coloca o teóricodiante de um a situação paradoxal: ele tem simultaneamente a impressão de chover no molhado e asensação de pregar no deserto. Dizer que um crescimento infinito é incompatível com um mundo

    finito e que tanto nossas produções como nossosconsumos não podem ultrapassar as capacidadesde regeneração da biosfera são evidências facilmente compartilháveis. Em com p en sação, são muito menos bem-aceitas as conseqüências incontestáveis de que essas mesmas produções e esses mes

    mos consumos devem ser reduzidos (em cerca dedois terços no caso da França), e que a lógica docrescimento sistemático e irrestrito (cujo núcleo éa compulsão e a adição ao crescimento do capitalfinanceiro) deve portanto ser questionada, bem

    como nosso modo de vida. Quanto à designaçãodos principais responsáveis, ela parece francamente blasfematória.

    Embora a torrente esteja saindo de seu leito eameaçando devastar tudo, a necessidade de uma

    7. Ver Nicolas IluloL, Pour un pacle écologjujue,  Paris, Calmann-I.évy, 2000.

    xrv

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    decrescença, ou seja, a própria icleia de decresci

    mento, pega mal. Contudo, sua aceitação c indispensável se quisermos sair do torpor que nos impede de agir. Convém, portanto, avaliar seu alcance (I), propor uma alternativa para o delírio dasociedade de crescimento, a utopia concreta dodecrescim ento (II), e, por fim, especificar os meios

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    “Eutão, uma imensa dúvida começa a ato rm en tar osespíritos. A ideia fie que se deva superproduzir paraque se supereompre, ou .soja, a ideia que domina avida econômica de todo o país, será ela correta?Q uando o m ercado está saturado e a produção continua, o que acontecerá? Fizeram uma campanha

    publicitária para que cada família compre dois carros: uni só não basta. Será que a convencerão acom prar três? Compram-sc a prazo o carro, a casa, ageladeira, o sobretudo, os sapatos. Uma hora, contudo, será preciso pagai- a conta.”

    Paul I Iazakii, Le M ahme amérirain' 

    Um ovni no microcosmo politiqueiro

    Em poucos meses, o lema do decrescimento con

    quistou 1.1111 espaço político e midiático notável.Por muito tempo tabu, transformou-se em objetode debate, claro que entre os Verdes2, no seio daConfederação Camponesa3 (o que não surpreende m uito), ou do cham ado movimento antigloba-

    1.  Paul Ilazard, em 1*  MaUii.se amérirain  (1931), citado porJean-Pierrc Icrnais, !ht tléveloppemenl à la dérroissancr. üe la nécrs- sité de .sortir de Innpasse xukidmtr dit capitalüme,  Paris, Lditions duM onde l ibertaire, 2001 (nora edição 2006, p. 66), p. 20.

    2. Ver “La décroissance pourquoi?”, Vert conlaci, n'.’ 709, abrilde 2004.

    3. “Objectil décroissance: la croissance en question”, Campag- 

    nes solidam.*,  jornal mensal cia Confederação camponesa, n'.' 182.fevereiro dc 2004.

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    lização1, e até en tre uni público betn mais amplo.

    O decrescimento se fez presente na campanha eleitoral nacional italiana nas eleições de 20063 e depois no debate político francês11em 2007.

    Kle também está no centro das contestações,cada vez mais vivas regional e localmente, dos“grandes projetos”. Na Itália, multiplicam-se as resistências: 110 vale de Susa, contra o TGV Lyon-Tu-rim e seu túnel m onstruoso, contra a m egapontesobre o estreito de Messina, contra o MOSE nalagoa de Veneza, contra os incineradores (emTrento e alhures), contra a central elétrica a car

    vão de Civitavecchia etc. Na França, a resistênciaaos “grand es” pro jetos - cen trais térmicas a carvão, projeto Iter (International thermonuclearexpe rim en tal reac lor), grandes infraesti aturasde transportes - tem mais dificuldade de se

    co o rden ar e se desenvolver devido à centraliza

    4. Ver 1‘nlitis  tio 11 de dezembro de 2003, dossiê sobre o decrescimento.

    fi. Assumido pelos “Verdi", motivo de atritos e ntre Rifondazio-ne e os ou tros partidos da coalizão anli-Berlusconi. Paolo Gaccia-ri foi eleito deputado de Veneza na lista de Rifonclazione, depois

    da publicação de um documento ein defesa do decrescimento,l ’emare Ia drcrescita. Sostenibililà ed equilà,   Oantieri Carla/edizioniIntni M oenia, 2006. Maui izio Pallante, au to r do m anifesto l.a I>e- trrsnía Jvlke. La Quanlilà delia Vila non dipende dal IVL   (Roma, Edi-loii Riuuiti, 2005), é conselheiro do novo m inistro verde do MeioAmbiente.

    (i. Trazido mais explicitamente por Yvcs Cochet dos Verdes e

    um pouco m enos p or José Bovc. Mas todos os candidatos à presidência foram interpelados sobre a questão.

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    ção e ao poder administrativo, mas está come

    çando7.Aqui e acolá, na França e na Ilália, e faz pou

    co tempo na Bélgica e na Espanha, grupos pró-decrescimento vêm se constituindo espontaneamente, organizando marchas e criando redes. Apostura “decrescente” inspira, por outro lado,comportamentos individuais e coletivos. Citemoso movimento Cambiaresti, que pretende promover um “orçamento justo” [“Bilanci di giustizia”],isto é, uma pegada ecológica equitativa (1.300 famílias apenas em Vêneto), as ecovilas, as AMAP

    (Associações para a manutenção de uma agricultura camponesa) na França, os GAS (Grupo decompradores solidários) na Itália, os adeptos dasimplicidade voluntária8 etc. O su rgim ento desses movimentos, “ovnis” 110  microcosmo politiqueiro, pôs os meios de comunicação em ebuli

    ção. Jornais, rádios e até televisões trataram doassunto. Se alguns deles fizeram um sério esforçode informação9, muitos se colocaram a favor oucontra sem q ueb rar m uito a cabeça e geralmente

    7. Ver Simon C hatbonn eau,  Résister à la croissance des grandes 

    infrasbruclvres de Iransport   (no prelo) c Jea n Monestier (liitlmpia, 11? 2) c “La Grande Illusion des aéroports regionaux”,  I'il du Con- 

     flenl,  n” 14, Prades, Atclier da Chouette, abril-maio ile 2007.8. Hervé-René Mailin, liloge de la simplkité vohmtaire,  Paris,

    Flammarion, 2007. Ver também Serge Lntouche,  Le Pari de la dé- cmu.vince, op. cit., pp. 101-11.

    9. Citemos Politis, Carta,  Le Monde diplomatique,  assim como o

     jo rn a l  La Décrmssatue,  seu homólogo italiano,  Decresáta e a revista Eníropia yÁ mencionada.

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    deformando as raras análises disponíveis. O que

    há por trás desse “novo conceito” de decrescimento? Ele é assimilável ao desenvolvimento sustentável? De onde ele provém? Por que ele serianecessário? São essas as indagações que aparecemcom mais frequência.

    O que é o decrescimento?

    O decrescimento é um slogan  político com implicações teóricas, um a "palavra-obus” com o diz PaulAriès, que visa acabar com o jarg ão politicamenteco rreto dos drogados do produtivismo10. Ao contrário de uma icleia perversa que não produz necessariamente uma ideia virtuosa, não se trata depreconizar o decrescim ento pelo decrescimento,o que seria absurdo; considerando bem, contu

    do, não o seria nem mais nem menos do que pregar o crescimento pelo crescimento... A palavrade ordem “decrescimento” tem como principalmela enfatizar fortemente o abandono do objetivo do crescimento ilimitado, objetivo cujo molor

    não é ou tro senão a busca do lucro p or [»arte dosdetentores do capital, com conseqüências desastrosas para o m eio am biente e portanto para a humanidade. Não só a sociedade fica condenada anão ser mais que o instrum ento ou o meio da m ecânica produtiva, mas o próprio homem tende a

    10. Paul Aviès, Oécroistance ou bmbarie,  I.yon, (iolias, 2005.

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    sc transformar no refugo de um sistema que visa

    a torná-lo inútil c a prescindir dele".Para nós, o decrescimento não é o crescimento

    negativo, oxirnoro absurdo que traduz bem a dominação do imaginário do cresc im ento12. Sabe-seque a mera diminuição da velocidade de cresci

    mento mergulha nossas sociedades na incerteza,au m en ta as taxas de desem prego e acelera o abandono dos programas sociais, sanitários, educativos,culturais e ambientais que garantem o mínimo indispensável de qualidade de vida. Pode-se imaginar a catástrofe que uma taxa de crescimento ne

    gativa provocaria! Assim como não existe nada piorque uma sociedade trabalhista sem trabalho, nãohá nada pior que uma sociedade de crescimentona qual não há crescimento. Essa regressão socialc civilizacional é precisamente o que nos espreitase não m udarmos de trajetória. Por todas essas razões, o decrescimento só pode ser considerado numa “sociedade de decrescimento”, ou seja, no âmbito de um sistema baseado em outra lógica. Portanto, a alternativa é efetivam ente: decrescimentoou barbárie!

    Para sermos rigorosos, em termos teóricos conviria mais falar de “«-crescimento”, como se fala dedHteísmo, do que de (fccrescimento. Trata-se, aliás,

    11. “A ideia de que o crescimento econômico constitui umfim em si implica que a sociedade seja um meio", François 1'lahaut, /> Paradnxe de Robmson. Cdpttalisme et soaélé, Paris, Mille et une nuits,2005, p. 16.

    12. Isso significaria ao pé cia letra: “avançar recuando".

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    de conseguir abandonar unia le ou uma religião,a da econom ia, do progresso e do desenvolvimento, de rejeitar o culto irracional e quase idólatrado crescimento pelo crescimento.

    A princípio, portanto, o decrescimento é simplesmente uma bandeira sob a qual reúnem-se

    aqueles que procederam a uma crítica radical dodesenvolvimento13 e querem desenhar os contornos de um projeto alternativo para uma políticado após-desenvolvimento1'. Sua meta é um a sociedade em que se viverá melhor trabalhando e consumindo m enos15. E um a proposta necessária paraque volte a se abrir o espaço da inventividade e dacriatividade do imaginário bloqueado pelo totalitarismo economicista, desenvolvimentista c progressista.

    13. Ver nosso artigo “En finir une lois pour toutes avec: le développement",  I x Mon/le diplovuUúpte, maio de 2001.

    14. Ver “Brouillons p ou r l'avenir: contribu tions au déba t surles alternatives”,  Les Nouveaux Cahiers de l'IUJÙl), n? 14, Paris-Gene-bra, PUF, 2003.

    15. Isso co rresponde beui ao qu e André Gorz designava outran tpclo lonno (não muito léliz.) de “racionalização ecológica”. “O sen

    tido da racionalização ecológica pode sei resum ido na divisa 'm enosmas melhor’. A modernização ecológica exige que o investimentodeixe de eslar a serviço do c rescimento c passe a servir ao decrescimento da econom ia, ou sega, ao encolhim ento da esfera regida pelaracionalidade econômica no sentido moderno . Não pode haver modernização ecológica sem resuição da dinâmica da acum ulação capitalista e sem redução do consumo por autolimitação. As exigên

    cias da modernização ecológica coincidem com as de uma relaçãoNorle-Sul transformada e com o projeto originário do socialismo",CapUaUxme, socialisme, écologie. Paris, Galilée, 1991, p. 93.

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    A batalha das palavras e das ideias

    Sem dúvida para neutralizar seu potencial subversivo, é comum tentarem fazer o decrescimento en trar no campo do desenvolvimento sustentável, apesar de o termo ter se imposto para sair daimpostura e de confusões criadas por essa expres

    são “balaio de gatos” que encontramos impressaaté nos pacotes do café Lavazza... Outras provasda mistificação do desenvolvimento sustentávelsão, entre tantas, as declarações de grandes empresários, com o o diretor-geral cla Nestlé (“O de

    senvolvimento sustentável é fácil de definir: se oseu bisavô, seu avô e seus filhos forem consumidores fiéis da Nestlé, então nós trabalhamos de forma sustentável. E é o que acontece com mais de5 bilhões cle pessoas no m undo”16) , ou ainda comoMichel-Édouard Leclerc (“O termo [desenvolvi

    mento sustentável] é tão amplo, usa-se e abusa-se tan to dele que, a exemplo do sen ho r Jour-dain, todo o m undo pode reivindicá-lo. Além disso, é verdade, o conceito   está na moda, tanto nomundo empresarial como em qualquer debateda sociedade. E daí? Em todos os tem pos, os comerciantes souberam como recuperar os bonsslogans” 11) .

    16. Peter Brabeck-Lcunathc, diretor-geral da Nestle no fórumdc Davos de 2003, c itado p or Christian Jacquiau , i-es (Umlisses du commerce equitable, Paris, Mille e t une imils, 2006, p. 151.

    17. Michel-Édouard I-eclerc, t.e Nouvel liconmniste, 26 de março dc 2004, citado por Christian Jac.quiau, of>. dL, p. 281.

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    com que o vistam20. Para realizar a quadratura do

    círculo, o desenvolvimento sustentável agora encontrou seu instrumento privilegiado: os “mecanismos limpos de desenvolvimento”, expressão quedesigna tecnologias poupadoras de energia ou decarbono, sob o manto d a ecoeficiência. C ontinuamos na diplomacia verbal. As inegáveis e desejá

    veis performances da técnica não questionam alógica suicida do desenvolvimento. Continua-se am ud ar o penso em vez de pensar a mudança...

    A luta de classes e os em bates políticos tam bémse dão na arena das palavras. Sabemos que o de

    senvolvimento, conceito etnocêntrico e etnocidá-rio, se impôs pela sedução, combinada com a violência da colonização e do imperialismo, constituindo uma verdadeira “violação do imaginário”(conforme a bela expressão de Aminata Traoré21) .

    A batalha das palavras causa estragos, mesmo

    quando se trata apenas de impor nuanças semânticas que podem parecer mínimas. Assim, por exemplo,  por volta do final dos anos 1970, parece que o

    20. Até um economista tão convencional como Cláudio Na-po leon i escreveu no fim de sua vida: “Já não podem os nos con ten

    tar com imaginai um ‘novo modelo dc desenvolvimento'. A expressão ‘novo modelo de desenvolvimento' carece dc sentido.Caso se (jueira enc on trar um novo m odelo, já não será um m odelo d c desenvolvimento [... J. Não creio que se possa resolver simultaneamente o problema de um crescimento mais forte e de umamudança qualitativa do desenvolvimento", in Cercare ancora. Lelte- ra xutta laicità e ultimi scriíti, Roma, Editori Riuniti, 1990, p. 92.

    21. Aminata 'lraoré, /.« Viol de Vimaginaire,  Paris, Actes Sud/Kayard, 2002.

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    mslainabk develofmumt   prevaleceu sobre a expressão

    mais neiilra écodétwlnfrfmmnl   jecodesenvolvimento]adotada em 1972 na Conferência dc Estocolmo, soba pressão do lobby  industrial americano e graças à intervenção pessoal de Henry Kissinger.

    Por trás dessas querelas, percebem-se clara

    mente divergências de opinião, dc concepção demundo e de interesses (e não apenas de conhecim entos)22. O “desenvolvimento sustentável”, invocado de forma encantatória em todos os programas políticos, “tem como única função”, precisaHervé Kempf, “conservar os lucros e evitar a mu

    dança de hábitos quase sem alterar o rum o”19. Falar de um “outro” desenvolvimento, como se falade um “outro” crescimento, traduz ou uma grande ingenuidade, ou uma grande duplicidade. Lembremos, para memorizar, que quam lo, em 1972, o

    presidente da Comissão Européia, Sicco Mansholt, extraindo corajosamente as lições do primeiro relatório do Clube de Roma, quis iníleclir aspolíticas de Bruxelas no sentido de um questionamento do crescimento, o comissário francês Raymond Barre exprimiu publicamente seu desacor

    22. O m ovimento alternativo não  escapa disso. “Briguei contraa palavra ‘crescimento’, que usurpava a palavra ‘desenvolvimento’", declara Alain Ijpielz. “Hoje também luto contra a palavra‘decrescimento’”, in “Pcut-on faire l’économie de l’environnement?”, Cosmopolilùjuts, n? 13, Apogée, 2006, p. 117.

    23. 1 tervé Kempf, Comment les riches détruisent la planète, Paris,

    Le .Seuil, 2007. lile acrescenta: “Mas são os lucros e os hábitos quenos impedem de niud ar de rumo.”

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    do. Acabaram concluindo que era preciso tornaio crescimento mais humano c mais equilibrado.Hoje... Sabemos no que deu. Naquela época, o se-crctário-geral do Partido Comunista Francês (PCF)denunciou o “programa m onstruoso” dos dirigentes da Comunidade Econômica Européia (CEE).Felizmente, as coisas evoluíram. “Em 2006”, se

    gundo Bernard Saincy, responsável pela Confederação Geral do Trabalho (CGT), “atingimos umanova etapa ao fazer do desenvolvimento sustentável uma verdadeira orientação do sindicato com aexpressão ‘dar um novo conteúdo ao crescimento”’.2'1Um esforcinho mais, camaradas!

    É certo que se deve distinguir “desenvolvimento” e “crescimento” (com minúscula), como fenômenos de evolução que se aplicam a um a realidade precisa (a população, a produção de batotas, aquantidade de resíduos, a toxicidade das águas

    etc.) e que podem ser (ou não ser) em inentem ente desejáveis, de Desenvolvimento e Crescimento(com maiúscula), como conceitos abstratos quedesignam o dinamismo econômico que é um fimcm si mesmo. A confusão entre ambos não é   responsabilidade nossa. E intencionalm ente mantidapela ideologia dom inante.

    Contudo, para que o outro m undo em que depositamos nossas esperanças não se pareça demais

    2 i. Entrevista com liern ard Saincy c tab rice Flipo: “CGT etAinis de Ia Tenor quds comproinis possibles?" in Cosmopoliliques,  

    n? 13, (>. dl.,   p. 176.

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    com este em que vivemos, está na hora de desco-lonizarmos nossos imaginários. Não é certo queainda tenham os trinta anos pela frente.

    As duas fontes do decrescimento

    Em bora o termo “decrescim ento” seja, po rtan

    to, de uso m uito recente nos debates econômicos,políticos e sociais, a origem das ideias que ele veicula tem uma história mais antiga, ligada à críticacultumlüUi  da econom ia po r um lado e à sua crítica ecologista por outro. Desde os seus primórdios,a sociedade “termoindustrial” gerou tanto sofrimento e tantas injustiças que não parecia desejável para muitas pessoas. Se a industrialização e atécnica, excetuando a fase do luddismo25, forampouco criticadas alé um período recente, o fundam ento an tropológico da econom ia como teoria e

    como prática, o homo oe.conomicus,  foi denunciadocomo rechitor por todas as ciências humanas*5. Abase teórica e sua aplicação prática (a sociedademoderna) são questionadas pela sociologia deEmile Durkheim e de Mareei Mauss, pela antropologia de Karl Polanyi e Marshall Sahlins, pela

    psicanálise de Erich Fromin ou Gregory Bateson.O projeto de uma sociedade autônoma e econô

    25. M ovim ento ope rár io britânico dos anos 1811-1812, balizado a partir d o n oin e d e seu líder, Ned l.ud

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    mica abarcado pelo slogan  do decrescimento nãoé de ontem. Sem remontar a algumas utopias doprimeiro socialismo27, nem à tradição anarquistarenovada pelo situacionismo, ele foi formulado,desde o fim dos anos 1960 e de um a forma próxima da nossa, por André Clorz, François Partant,Jacques Ellul, Bernard Charbonneau, mas sobre

    tudo por Cornelius Castoriadis e Ivan Illich28. Ofracasso do desenvolvimento no Sul e a perda ciasreferências no Norte levaram esses pensadores aquestionar a sociedade de consumo e suas basesimaginárias: o progresso, a ciência e a técnica.

    Essa crítica resultou na pesquisa cie um “após--desenvolvimento”. Ao mesmo tempo, a (ornada deconsciência da crise do meio ambiente trouxe umanova dimensão: não só a sociedade de crescimento não é desejável, como ela não é sustentável!

    A intuição dos limites físicos do crescimento

    econômico remonta sem dúvida a Malthus (1766-1834), mas só encontrará seu fundam ento científico com Sadi Carnol e sua segunda lei da termodinâmica (1824). Com efeito, o fato de as transformações da energia em suas diferentes formas

    27. Em bo la algumas delas, como bem lem bra T hie ny Paijuot,sejam autênticos precursores do decrescimento. Ver Thicrry Pa-i|iiot, Vlujnesfl ttlofnsles. Paris, l,a Découverte, 2007, p. 33.

    28. Talvez devêssemos mencionar também o grande filósofoam ericano, discípulo de H eury David Tho reau, Jo hn Dewey. Ver aanálise de Philippe Chanial, “Une foi com munc: dérnocralie, donet éduca tion chez Jo hn Ocwey”, in tievu* du MAOSS,  nV 28, Paris,

    La Découverle, segundo sem estre de 2006.

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    (calor, movimento etc.) não serem totalmente

    reversíveis - e de toparmos com o fenôm eno daentropia - não pode deixar de ter conseqüências sobre uma economia fundada nessas transformações. Entre os pioneiros da aplicação dasleis da termodinâmica à economia, convém destacar cm particular Scrgueï Podolinsky, pensa

    do r de um a economia energética, que procurouconcilia r socialismo e ecologia29. No entanto , foiapenas nos anos 1970 que a questão da ecologiano seio da economia foi desenvolvida, resultando sobretudo do trabalho do grande cientista e

    economista rom eno Nicholas Georgescu-Roegen,qu e soube pe rceb er as implicações biocconôm i-cas da lei da entropia, já pressentidas nos anos1940-1950 por Alfred Lotka, Erwin Schrödinger,Norbert. Wiener ou Léon Brillouin30. Ao adotaro m odelo da mecânica clássica new toniana, no ta

    Nicholas Georgescu-Roegen, a economia excluia irrcversibilidacle do tem po . Assim, igno ra a entropia, ou seja, a não reversibilidade das transformações da energ ia e da m atéria. Por isso, os resíduos e a poluição, apesar de serem produtos da

    atividade econôm ica, não en tram nas funções padrão de produção.

    29. Scrguci Podolinsky (1850-1891), aristocrata ucranianoexilado na Franca, que tentou sem sucesso sensibilizar Marx para acrítica ecológica.

    30. Para a pequena história do decrescimento, ver Jacques

    Grinevald, “Histoire d’un mot. Sur l’origine tle l’emploi du motdécroissance”, lintrojria, n? 1, outubro de 200(5.

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    Quando, por volta de 1880, a terra foi elimina

    da dessas funções, rompeu-se o último elo com a natureza. Tendo desaparecido toda referência a umsubstrato biofísico qualquer, a produção econôm ica, tal como concebida pela maioria dos teóricosueoclássicos, parece não estar confrontada comnenhum limite ecológico. Conseqüência? O des

    perdício inconsciente dos recursos escassos disponíveis e a subulilização cio fluxo abundante deenergia solar. Para Yves Gochet, “a teoria econômica neoclássica contemporânea mascara sobuma elegância matemática sua indiferença às leis

    fundamentais da biologia, da química e da física,sobretudo as da termodinâmica”31. Ela c um disparate ecológico32. Em suma, o processo econômico real, diferentem ente do m odelo leórico, não é  um processo puram ente mecânico e reversível; denatureza enlrápica,  ele se desenrola numa biosfera

    que funciona num tempo m arcado pela flecha dotempo33. Disso decorre, para Nicholas Georges-cu-Roegen, a impossibilidade de um crescimento infinito num mundo finito e a necessidade de substituir a ciência econômica tradicional por um a bio-

    31.Yves Cochet, Pétmk apoatlypsr. Paris, Jayard, 2005, p. 147.32. “Um a pep ita de ou ro pu ro con tem mais energia livre

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    economia, ou seja, pensar a economia no seio da

    bioslera. Por isso é que o termo “decrescimento”foi empregado em francês para intitular uma desuas coletâneas de ensaios31.

    Kenneth Boulcling foi um dos raríssimos economistas que extraiu as conseqüências disso.Num artigo de 1973, opôs a economia de cowboy, em que a maximização do consumo se apoia napredação e na pilhagem dos recursos naturais, àeconom ia do cosmonauta, “para a qual a Terra setornou uma nave espacial única, desprovida dereservas ilimitadas, seja para dela extrair, seja

    para ne la verter seus poluentes"35. Quem acreditaque um crescimento infinito é possível em umm undo finito, conclui ele, ou é louco ou e econ omista.

    A adição ao crescimento

    “T oda a a tiv idade d os co m erc i an t e s e dos pu b l ic i tá

    r io s c o n s is te e m c r i a r n e c e s s id a d e s n u m m u n d o

    q u e d e s m o r o n a s o b a s p r o d u ç õ e s . I s s o e x i g e u m a

    t a x a d e r o t a t i v i d a d e e d e c o n s u m o d o s p r o d u t o s

    c a d a v ez m a is r á p id a e p o r t a n t o u m a f a b r ic a ç ã o d e

    res ídu os cad a vez m a is in t ensa e um a a ti v idade de

    t r a ta m e n t o d o s r e s íd u o s c a d a v ez m a io r.”

    B e r n a r d Ma r ís :íu

    34.  La Décroissance, of>. cit.35. Citado p or Denis Clerc, (iosmopolitiqws,  n'.’ 13, op. dl.,  p. 17.

    36. Bernard Maris,  Anlimanuel d ’économie,  volume 2:  L a ('Agates,  l’avis, Bréal, 2006, p. 49.

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    Nossa sociedade amarrou seu destino a urna

    organização baseada na acumulação ilimitada. Essesistema está condenado ao crescimento. Quandohá desaceleração ou parada do crescimento, vema crisc ou até o pânico. Reencontramos o “Acumulem! acumulem ! Pois essa é a lei e os profetas!” dovelho Marx. Tal necessidade faz do crescimento

    urna “camisa de força”. O emprego, o pagamentodos aposentados, a renovação dos gastos públicos(educação, previdência, justiça, cultura, transportes, saúde etc.) supõem o aumento constante doproduto interno bruto (PIB). “O único antídoto

    para o desem prego perm anente é o crescimento”,martela Nicolas Baverez, “declinólogo” próximode Sarkozy, acompanhado nisso por muitos ativistas da antiglobalização3'7. No fim, o círculo virtuosose transforma num círculo infernal... A vida dotrabalhador geralmente se reduz à vida de um

    “biodigestor que metaboliza o salário com as m ercadorias e as mercadorias com o salário, transitando da fábrica para o hipermercado e do hiperm ercado para a fábrica”38.

    Três ingredientes são necessários para que a

    sociedade de consumo possa prosseguir na suaronda diabólica: a publicidade, que cria o desejode consum ir; o crédito, que fornece os meios; e aobsolescência acelerada e program ada dos produ-

    íí"7. Em  La trance qui tombe, Paris, Pcrrin, 2003.38. Paolo Cacciari, Ptnsare la dec.resc.ila. Sostenibilüà ed equilà, 

    )>. cit.,  p. 102.

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    tos, que renova a necessidade deles. Essas três mo

    las propulsoras da sociedade de crescimento sãoverdadeiras “incitações-ao-crime”.A publicidade nos faz desejar o que não leinos

    e desprezar aquilo de que já desfrutamos. Ela criae recria a insatisfação e a tensão do desejo frustrado. Conforme uma pesquisa realizada entre os pre

    sidentes das maiores empresas americanas, 90%deles reconhecem que seria impossível vender umproduto novo sem campanha publicitária; 85%declaram que a publicidade persuade “frequentem ente” as pessoas a comprar coisas de que elas não

    precisam; e 51% dizem que a publicidade persuade as pessoas a comprar coisas que elas não dese jam de fato39. Esquecidos os bens de primeira necessidade, cada vez mais a dem anda já não incidesobre bens de grande. utilidade , e sim sobre hens dê al ia  futilidade 10. Elemento essencial do círculo vicioso

    e suicida do crescimento sem limites, a publicidade, que constitui o segundo m aior orçam entomundial depois da indústria de armam entos, é incrivelmente voraz: 103 bilhões de euros nos Estados Unidos em 2003, 15 bilhões na França. Em

    2004, as empresas francesas investiram 31,2 bilhões de euros em comunicação (ou seja, 2% doPTB e três vezes o déficit, da Previdência Social francesa!). No total, considerando o conjunto do glo-

    39. André (íorz, (jipitalisme, soáalisme, écologie,  Paris, Galilée,

    1991, p. 170.

    40. Paolo Gacciari, o/j. cil, p. 29.

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    l>(), mais de 500 bilhões de despesas anuais. Mon-

    innte colossal de poluição material, visual, auditiva,mental e espiritual! O sistema publicitário “apossa-se da rua, invade o espaço coletivo - desfiguran-do-o apropria-se de tudo o que tem vocação pública, as estradas, as cidades, os meios de transporte, as estações de trem, os estádios, as praias, aslestas”11. São program as televisivos en trccortadospelas inserções publicitárias, crianças manipuladas e perturbadas (pois as mais frágeis são as maisvisadas), florestas destruídas (40 kg de papel porano nas nossas caixas de correio). E, no fim, os

    consum idores pagam a conta, qual seja, 500 eurospo r ano c por pessoa.

    Por outro lado, o uso do d inh eiro e do crédito, necessário para que aqueles cujos rendimentosnão são suficientes possam consumir e para que

    os empresários possam investir sem dispor do capital necessário, é um potente “ditador” de cresci-

    41. Jean-Paul Besset, Comment nephts kreprogm m k... sam

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    m ento n o Norte, mas também, de modo mais destrutivo e mais trágico, no Sul'K. Essa lógica “diabólica” do dinheiro que precisa sempre de mais dinheiro nada mais é do que a lógica do capital. Estamos diante daquilo a que Giorgio RuíTolo dá obelo nome de “terrorismo do interesse composto”'13. Seja com que nome o vistam para legitimá-lo,

    retorno sobre o patrimônio líquido (relurn on equi-  iy), valor para o acionista, seja qual for o meio deobtê-lo, comprimindo impiedosamente os custos(cost killing, downsizing),  extorquindo uma legislação abusiva sobre a propriedade (patentes deseres vivos) ou construindo um monopólio (Mi

    crosoft), trata-se sempre do hiero, motor da economia dc mercado e do capitalismo nas suas diversas mutações. Essa busca do lucro a qualquerpreço se dá graças à expansão da proclução-c.onsu-mo e à compressão dos custos. Os novos heróis de

    nosso tem po são os cosi killers, esses executivos queas firmas transnacionais roubam umas das outrasa preço de ouro, oferecendo-lhes um montão dcsfocli-oplions   e indenizações vultosas em caso derescisão de contrato. Formados geralmente nasbusimss sdmds , que seria mais correto chamar de

    “escolas da guerra econômica”, esses estrategistasempenham-se com ardor para terceirizar ao máxi-

    42. Segun do o Federal Bank, o endividamen to dos lares am ericanos atingiu em 2007 a soma astronôm ica de 28.198 bilhões dedólares, ou seja, 2'18% do PIB.

    43. Giorgio RufTolo, Crcscita e sxnlufijm: critica e frrospetlive,

    con ara/M ace rata, 8-9 de novem bro de 2006.

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    ido s custos a fim de que sou peso recaia sobre

    «eus empregados, sobre os terceirizados, sobre ospaíses do Sul, sobre seus clientes, sobre Estados enobre serviços públicos, sobre gerações futuras,mas, sobretudo, sobre a natureza, que se tornou si-imilianeamcute fornecedora de recursos e lixo.lodo capitalista, todo financista, mas também todo

     /mino oeconomicus   (e todos nós o somos), tende a selomar um “criminoso” comum mais ou menosi umplice da banalidade econôm ica do m al".

    Já em 1950, Victor Lebow, um analista de mercado americano, entendeu a lógica consumista.Ele escreveu: “Nossa economia, imensam ente produtiva, exige que façamos do consum o nosso estilo de vida [...J. Precisamos que nossos objetos seconsumam, se queimem e sejam substituídos e jogados fora num a taxa continuam en te crescente.”1"’( :

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    do esta hoje fabricada a preço de banana pelo tra

    balho escravo do sudeste asiático). Assim é quem ontanhas de com putadores sc jun tam a televisores, geladeiras, lava-louças, leitores de DVD e telefones celulares abarrotando lixos e locais de descarte com diversos riscos de poluição: 150 milhõesde computadores são transportados todos os anos

    para depósitos de sucata do Terceiro Mundo (500navios por tnês para a Nigéria!), apesar de conterem metais pesados e tóxicos (mercúrio, níquel,cádmio, arsênico e chum bo)'1“.

    Transformamo-nos, assim, em “toxicodependen-

    tes” do crescimentos. Aliás, a toxicodependênciado crescimento não é apenas um a metáfora. Ela épolimorfa. A bulimia consumista dos fissuradosem supermercados e lojas de departamentos corresponde o worhaholismo,  o vício em trabalho dosexecutivos, alimentado, conforme o caso, por um

    consumo excessivo de anlidepressivos e até, segundo pesquisas inglesas, pelo consumo de cocaína para os escalões superiores que querem “estarà altura”. O hiperconsumo do indivíduo contemporâneo “turbo-consumidor” redunda numa feli

    cidade ferida ou paradoxal17. Os homens nuncaalcançaram tamanho grau de derrelição. A indústria dos “bens de consolação” tenta cm vão rem e

    46. Alain Gras, “Internet, dem ande de la sueur", ! m  Décroissance,  nV 35, dezem bro d e 2006.

    47. Gilles IÃpovclsky,  Le Bonheur paradoxal, essai sur la société  

    d'hyperconsonmcdion,  Paris, Gallimard, 2006.

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    diar essa situação48. Nesse terreno, nós, france

    ses, somos detentores de uin triste recorde: compram os, em 2005, 41 m ilhões de caixas de anlide-pressivos19. Sem entrar iros deta lhes dessas “doenças criadas pelo homem”, resta-nos apenas assinarembaixo do diagnóstico do professor Belpom-me: “O crescimento tornou-se o câncer da hum a

    nidade.”50

    A alga verde e o caracol

    Haverá realmente quem acredite que um cres

    cimento infinito é possível num planeta finito? Porcerto - e muito felizmente - nossa Terra não é umsistema fechado. Ela recebe a indispensável energia solar. Contudo, ainda que esta fosse consideravelmente mais bem utilizada, a quantidade recebida é limitada e cm nada m uda a superfície dispo

    nível ou o estoque de matérias-primas. No entanto, há economistas que afirmam: “Enquanto o Solbrilhar, rrão haverá limite ‘científico’ inconlorná-vel para o desenvolvimento da atividade econôm ica sobre a Terra, excetuando-se, naturalmente, as

    catástrofes ecológicas potencialmente desencadeadas pela própria atividade humana.” E que daí ti-

    48. Ver Bertrand I-ccInir,  fjlnctiistrie de la consolation, Paris, Verticales, 1998.

    •19. Pascal Canfin,  I.’Economie verte expliquée à ceux qui n ’ y croient   pas, Paris, Les Petits Matins, 2000, p. 110.

    50. Dominique Belpomme,  Avant qu’il ne soit lmp tard, op. cit., p. 211.

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    ram a conseqüência: “Nossa única chance d e con

    seguir corrigir a tempo [os disfuncionamculosj éprogredir ainda mais rapidamente na compreensão e no controle de nosso meio. Portanto, acentuar ainda mais a artilicialização do m undo .”51 Emcerta medida, somente o crescimento permitiráoferecer-se o luxo do decrescimento!52

    A ubris,  a desmedida do senho r e dono d a natureza, tornou o lugar da antiga sabedoria de um ainserção num meio explorado de modo racional.O delírio quantitativo nos condena a cair 110  insustentável, sob o efeito do “terrorismo dos inte

    resses compostos”. E o que se poderia chamar dcteorema da alga verde53.Um dia, estimulada pelo uso excessivo de adu

    bo químico por agricultores ribeirinhos, uma pequena alga veio se implantar num lago muito grande. Apesar de seu crescimento anual ser rápido,

    segundo uma progressão geométrica de razão 2,ninguém se preocupou. Com efeito, se a duplicação é anual, a superfície do lago estará cobertacm trinta anos; no vigésimo quarto ano, somente3% da extensão do lago estava colonizada! Começaram com certeza a se preo cupar quan do ela colonizou a metade da superfície, gerando, a partir

    51. Guillaume l)uval (de  AUmia&ves économiques), in "LMmpassecio ia décroissanee”, Cosnutpolili(ju

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    de então, urna ameaça do eutrofização, isto é, de

    aslixia da vida subaquática. Embora ela tivesse levado várias décadas para chegar a esse ponto, umano seria suficiente para provocar a morte irremediável do ecossistema lacustre.

    Chegamos precisamente a esse momento em

    que a alga verde colonizou a metade de nossolago. Se não agirmos muito rápido e muito energicamente, o que nos espera em breve é a mortepor asfixia. Abraçando a razão geométrica quepreside ao crescimento econômico, o homem ocidental renunciou a qualquer medida. Com uma

    alta do Produto Nacional Bruto (PNB) per capita  de 3,5% ao ano (progressão média para a Françaentre 1949 e 1959), chega-se a uma multiplicaçãode 31 num século e de 961 em dois séculos! Comuma taxa de crescimento de 10%, que é atualm en

    te a da China, obtém-se uma multiplicação por’736 num século!51 A uma taxa de crescimento de3%, multiplica-se o PIB por 20 num século, por100 em dois séculos, por 8 mil em três séculos!55Se o crescimento produzisse mecanicamente obem-estar, deveríamos viver hoje num verdadeiro

    paraíso, desde os tempos... Contudo, o que nosameaça é bem mais o inferno.

    Nessas condições, é urgente redescobrir a sabedoria do caracol. Ele nos ensina não só a neces-

    54. R ertntrttl de jou ven el,  Arauto, Essms s w k mieux-xmm,  Pa

    ri», Sedeis, 19(>8.55. Jcan-Picrrc Tcrlrais,  Du dévdoppmenl..., op. cil.,  p. 14.

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    sária lentidão, mas uma lição ainda mais indispen

    sável. “O caracol”, nos explica Ivan lllich, “constrói adelicada arquitetura de sua concha adicionando,uma após a outra, espiras cada vez mais largas edepois cessa bruscamente c começa a fazer enro-lamentos agora decrescentes. Isso porque umaúnica espira ainda mais larga daria à concha uma

    dimensão dezesseis vezes maior. Ao invés de contribuir para o bem-estar do animal, ela o sobrecarregaria. A partir de então, qualquer aumento desua produtividade apenas serviria para paliar asdificuldades criaclas por esse aumento do tam anho

    da concha para além dos limites fixados por sua finalidade. Passado o ponto-limite de alargamentodas espiras, os problemas do excesso de crescim ento multiplicam-se em progressão geom étrica,ao passo que a capacidade biológica do caracolpode apenas, na m elhor das hipóteses, seguir uma

    progressão aritmética.”511Esse divórcio entre o caracol e a razão geométrica, que ele também abraçara por um tempo, nos mostra o caminho parapensar uma sociedade de “decrescimento”, se possível sereno e convivial57.

    56. Ivan Illicit,  Le (lume vcrnnculaire,  in OEuvres completes,  tomo2, Paris, Fayard, 2005, p. 292.57. Teoricam ente, pode-se lazer a razão geométrica func ion ar

    no sen tido inverso. '‘Um dec resc imento de 1% ao ano faz econ omizar 25% (da produção) em 29 anos e 50% cm 69 anos. Um d ecrescimento de 2% :

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    Uma pegada ecológica insustentável

    Nosso crescimento   econômico excessivo   choca-se(om os limites da finitudc da biosfera. A capacidade de regeneração da Terra já não consegueacom panhar a demanda: o homem transforma os

    recursos em resíduos mais rápido do que a natureza consegue transformar esses resíduos em novosrecursos58.

    Se considerarmos como indicador do “peso”ambiental de nosso modo de vida sua “pegada”ecológica em superfície terrestre ou em espaço

    hioprodutivo necessário, obteremos resultados insustentáveis tanto do ponto de vista da equidadede direitos de saque sobre a natureza quanto doponto de vista da capacidade de carga da biosfera.0 espaço disponível no planeta Terra é limitado.

    1,le representa 51 bilhões de hectares. O espaço“bioprodutivo”, ou seja, útil para nossa reprodução, é apenas uma fração do total, ou seja, cercade 12 bilhões de hectares59. Dividido pela população mundial atual, isso dá aproximadamente 1,8

    la à Idade da Pedra. C) decrescimento decerto não é uma inversãomecânica do crescimento, é a construção de uma sociedade autônom a, certam ente mais sóbria e, sobretudo, mais equilibrada.

    58. VVVVls Relatório Planeta vivo 200(>, p. 2.59. Um hectare de pasto permanente, p or exemplo, é conside

    rado equivalente a 0,48 hectare de espaço bioprodutivo e, paraum a zona de pesca, 0,30 (Mathis Wackernagel, “11 nostro pianola

    si sla esauren do ”, in Economia e Ambiente. Lasfiila dei teixo milletmio, Bolonha, EMI, 2005).

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    palavras, a humanidade já consome quase 30%

    iilêin da capacidade de regeneração da biosfera.Sc todos vivessem como nós, franceses, seriam precisos três planetas contra seis para acompanharnossos amigos americanos.

    Como isso c possível? Graças a dois fenômenos.Primeiro, porque, como crianças pródigas, nãonos contentamos em viver de nossa renda, vivemos comendo nosso patrimônio. Queimamos emalgumas décadas o que o planeta levou milhõesde anos para fabricar. Nosso consumo anual de carbono c de petróleo eqüivale a m na biomassa acu

    mulada sob a crosta terrestre em 100 mil anos delótossíntese do sol02. Depois porque recebemos,no Norte, uma assistência técnica maciça dos países do Sul. A maioria dos países da África consome menos de 0,2 hectare de espaço bioprocluti-v, ou seja, um décimo de planeta, em bora forne

    çam os alimentos de nosso gado. Também é preciso destruir um hectare de madeira para produziruma tonelada de farelo de soja. Se, daqui até 2050,não modificarmos a trajetória, a dívida ecológica,ou seja, a soma dos défícits acumulados, corresponderá a 34 anos de produtividade biológica do

    ]>or ano. O u [...J para gerar 100 dólares dc renda, necessita-se deic rc a de 300 kg de recursos naturais" (Vvos Cochet. e Agnès Sinai,Smtverlu tem, oj>. cil., p. 38).

    62. De acordo com o cálculo do histor iado r alem ão R. l’ctc rSicfcrle in Piero Bevilac.qua,  Demetra e Clio: umnini e ambiente nella sluria, Roma, Donzelli, 2001, j>. 112. Um litro de gasolina provém

    de 23 toneladas de matéria orgânica transformada uniu períododc um m ilhão de anos! (Dom inique Belpomm e, o/>. cil.,  p. 229).

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    planela inteiro83. Mesmo que os africanos aper

    tem o cinto ainda niais, não teremos como encontrar esses 34 planetas necessários para ressarcir!

    A entrada de nosso sistema muna órbita errônea remonta ao século XVIII, mas a dívida ecológica é recente. Em termos mundiais, ela passou de70% para 120% do planeta entre 1960 e 1999«.

    Além disso, para m an ter a biodiversidade, é essencial poupar uma parte d a capacidade p rodutiva da biosfera para garantir a sobrevivência dasoutras espécies, particularmente a das espécies selvagens. Essas reservas de biosfera devem ser equi-

    lativamente distribuídas entre os diferentes domínios biogeográficos e os principais biomas®. Comoo patamar mínimo dessa parte a ser preservada éavaliado em 10% do espaço bioprodutivo66, seriasensato decretar desde já uma moratória para reservar o que ainda está disponível para as espécies

    animais e vegetais em questão.

    Uma falsa solução: reduzir a população

    Para resolver a equação da sustentabilidade ecológica, será que não bastaria reduzir o tamanho

    63. WWF, op. cil,  p. 22.04. “A pegada pasto da hum anida de aum entou 80% en tre

    1961 e 1999”, Yves Cochet e Agnès Sinai, op. cit., p. 36.65. VVVVK Relatório PianeUt vivo 2006,  p. 3.66. Para Jean-Paul Besscl: “Com partilha r o espaço corn as ou

    tras espécies, deixando-lhes po r exem plo os últimos 20% do espaço terrestre de que a humanidade ainda não se apropriou, passapela inte rrupção do caráte r sistemático dos processos de planilïca-ção, de infraesiruluras e de urbanização”, op. cit., p. 318.

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    do denominador até encontrar unia pegada cor

    reta? Os geopolíticos conservadores preconizamessa solução preguiçosa. Num memorando datado de 10 de dezembro de 1974, intitulado “Incidências do crescimento da população m undial sobre a segurança dos Estados Unidos e sobre seusinteresses ultramarinos”, Ilenry Kissinger escrevem “Para perpetuar a hegemonia americana nomundo e garantir aos americanos um livre acessonos minerais estratégicos de todo o planeta, é necessário conter ou até reduzir a população dostreze países do Terceiro Mundo (índia, Bangla

    desh, Nigéria...), cujo peso demográfico por si só ja os condena, por assim dizer, a desem penhar umpapel de primeiro plano cm política internacional.” Para atingir essa meta, é preciso fazer os líderes do Terceiro Mundo aceitarem os métodos decontrole tie natalidade, por meio de unia incita

    ção política (tomando cuidado para que tais pressões não apareçam como uma “forma de imperialismo econôm ico ou racial”!!!). E, se esse plano seicvclasse ineficaz, seria preciso recorrer a métodos inais coercitivos. Também era essa a opiniãodo Dr. M, King, um dos responsáveis pelas estraté

    gias demográficas: “Tentem o planejam ento familiar, mas, se isso não der certo, deixem morrer ospobres, porque eles constituem um a ameaça ecológica”!!! Já nos anos 1950, um autor americano,William Vogt, pregava um a redução drástica da po

    pulação: “Uma guerra bacteriológica cle grandesproporções seria um meio eficaz, se fosse cnergi-

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    camentc conduzida, de devolver à terra suas flo

    restas e suas pastagens.”67 A “solução final” do problema ecológico pela redução demográfica seapoiaria em algumas evidências de bom senso, dotipo: um planeta finito é incompatível com urnapopulação infinita.

    “A verdade”, segundo David Nicholson-Lord,que se faz porta-voz dessas idéias, “é   que modosde vida mais ecológicos po dem certam ente fazera diferença, mas que uma vida com zero de impacto é uma quimera e que o núm ero de habitantesconta m uito. Os estudos de pegadas ecológicas de

    Andrew Ferguson da Optinmm Population Trustmostram que, se os 6 bilhões de habitantes vivessem com um m odo de vida ocidental m odesto totalmente baseado em energias renováveis, aindaprecisaríamos de 1,8 planeta.”'18Por volta dos anos1970, em La Surchaujje d? In croissance  [O superaque

    cim ento do crescimento |, François Meycr deu osinal de alarme. Segundo ele, a aceleração dem ográfica de form a superexponencial é um fato central que nos afasta de qualquer solução logísticacapaz de nos recon du zir a um certo equilíbrio.*’'1

    n /iá>dnj>jmnenl...t oj>.  p. 35.68. "Sommes-nous trop nombreux?", Vlicologiste,  20, setcm-bro-novembro do 2006, p. 20.

    60. /.« Suvchmijft de ia enrissance,  Paris, Fayard, 1974 (ver lambi™ Problématiíjui• de févalution,  Paris, PUF, 1954). Em  Le Théotbne  du nmuphar, Albert Jacqu arl também nota q ue, com um a taxa decrescimen to constante de 0,5% ao an o, a popu lação hum ana, queera

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    Com base em 135 milhões de km2dc terras emersas, ele fazia o seguinte cálculo: em 1650, a superfície teoricamente disponível por indivíduo era de0,28 km2, em 1970, ela não passa de 0,04 km2, ouseja, sete vezes menos, e em 2070, segundo todasas probabilidades, ela estará reduzida a 0,011 km2,isto é, quatro vezes menos, o que eqüivale a um es

    paço bioprodutivo insuficiente para sobreviver.Inversamente, uma visão igualmente mecani-cista - mas otimista - destaca que, no tempo emque a população do planeta se multiplicou porum coeficiente 6, passando em dois séculos c meiode 1 para 6 bilhões, as forças produtivas se multi

    plicaram várias centenas de vezes. Portanto, emteoria, cada um dos 6 bilhões de indivíduos talvezesteja estatisticamente cem vezes mais rico que seuancestral. Por conseguinte, não há motivo para sepreocupar!

    Quantos seremos em 2050, data simbólica (earbitrária) da hora da verdade, em que se acum ularão os efeitos da mudança climática, do fim dopetróleo (e até dos recursos halicuticos70) e dascrises econômicas e financeiras previsíveis? De 12a 15 bilhões, como previa o prim eiro relatório do

    Clube de Roma há 35 anos? Nove bilhões, segundo as análises dos demógrafos que se baseiam na

    70. Conform e utn relató rio da FAO, se as retiradas continuarem no ritmo atual, os oceanos estarão esgotados, considerando todos os tipos de pesca, cm 2048 (Boris Worm et n l, “Impacts o f Biodiversity Loss on Ocean Ecosystem Services', Science, vol. S14, novembro

    de 2006, pp. 787-90).

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    “transição” demográfica? Muito m enos se a esteri

    lidade da espécie, sob efeito das substâncias re-protóxicas, con tinuar a progredir e a hum anidadese encaminhar para sua extinção? Difícil ser profeta. Segundo o professor Belpomme, “existem cinco cenários possíveis para nosso desaparecimento:o suicídio pela violência, po r exem plo, um a guerra atômica [...], o surgimento de doenças extremamente graves, como uma pandemia infecciosaou uma esterilidade que-provoque um declíniodemográfico irreversível, o esgotamento dos recursos naturais [...], a destruição da biodiversida

    de [...], enfim, modificações físico-químicas extremas de nosso ambiente inerte, tais como o desaparecimento do ozônio estratosférico e o agravamento do efeito estufa”71.

    Contudo, essas abordagens escamoteiam o principal problema, a lógica de desmedida de nosso

    sistema econôm ico. Se esta for jugulada e a indispensável mudança de paradigma se realizar, aquestão demográfica pode ser abordada e resolvida mais serenamente. As tensões são elásticas. ()excesso de consumo de carne por parte dos ricos,fonte de vários problem as sanitários e ecológicos,exige dedicar 33% cias terras aráveis do planeta(além dos 30% das superfícies emersas que constituem pastagens natura is)72 à cultura de forragem .

    71. Do m inique B elpomm e,  Avant qu'il ne soit lmp tard, op. cil., p. 194.

    72. Thierry Paquot, Petit manifeste pour une écologie existentielle, Paris, Bouiin éditeur, 2007, p. 13.

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    Uma diminuição relativa da criação de animais

    com m elhorad o tratam ento do rebanho possibilitaria alimentar uma população mais numerosa edo maneira mais sadia e, ao mesmo tempo, diminuir a emissão de dióxido de carbono™. Pode-seconcordar com Jcan-Pierre Tertrais: “Portanto, oproblem a colocado já não é o de indagar sobre o aspecto matemático das variações da espécie hum ana: é imperativo que esta consiga, no atual século,cheg ar a um a estabilização de sua popu lação. Aquestão central é saber se esse movimento seráimposto pelos acontecimentos, por políticas au to

    ritárias, por métodos baseados na coerção ou aténa barbárie, 011 se ele resultará de mna escolha voluntária, não admitindo que o desejo de procria-ção se torne programável por uma pretensa eliteesclarecida.”74 lalvez seja a um especialista de nossos sábios primos, os bonobos, que caiba a última

    palavra: “O problema colocado por uma demo-graiia mundial galopante”, escreve Frans de VVaal,“não é tanto saber se somos ou não capazes de administrar o superpovoamento, mas se saberemosdividir os recursos com honestidade e equidade.”7r>

    Esse é o desafio do decrescimento.

    73. Lembremos que a criação de animais seria responsávelpor 37% das emissões de metano decorrentes de atividades humanas, ou seja, mais, cm equivalente

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    A corrupção política do crescimento

    Durante os Trinta Gloriosos, só era possível denunciar os eleitos nocivos do crescimento e dodesenvolvimento no Sul, ali onde eles eram maisvisíveis, porque acarretavam desculturação, homo

    geneização e pauperização. Se,110

     Norte, a paupe-rização no sentido econômico contrariava a evidência vivida durante a era consumista, a desculturação e a despolitização avançavam contudo agrandes passos. Ilavia quem analisasse e denunciasse esse fenômeno de maneira mais ou menos

    habilidosa, como Pier Paolo Pasolini ou Guy Debotei. A destruição das cidades em tempos de paz,com a “periferização” das novas camadas médiasou imigradas {em condomínios residenciais, emgrandes conjuntos ou em IILM*), o incremento

    na participação das grandes redes de varejo (super c hipermercados), do automóvel e da televisão, minavam sub-repticiamente a cidadania, fabricando um “segundo povo" quase invisível e semvoz, facilmente manipulado por um poder midiá-tico sem escrúpulos, ligado às empresas transna-

    cionais. A globalização, ao favorecer grandes deslocamentos de populações e o desmantelamentodas redes de proteção social, concluiu a destruição da cultura popular. Essas evoluções abriram cam inho para uma classe política populista, corrup-

    * Habitações

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    ta, quando não criminosa. Na Itália, o “fenôm eno

    Berlusconi” é uma ilustração caricatural disso. Masa berslusconização, com ou sem o “Cavaliere”, continu a causando devastação em toda a Europa e foradela. O fenômeno das “maiorias satisfeitas”, segundo a feliz análise de John Kenneth Galbrait h7®,que se manifesta pela passagem que as classes médias fazem da solidariedade para o egoísmo individual, e pela orientação dos Estados ocidentais emdireção à contrarrevolução neoliberal que desmantela o Estaclo-providência, possibilitou a transiçãoe ao mesmo tempo rnascarou o fenômeno. Por isso

    é que o projeto de decrescimento passa necessariam ente por uma refundação do político.

    70. Jo h n Ken neth G albraith, i< A'ouvel Etat industriei (1967),trad ução francesa, Paris, Ga llimard, 1974.

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    um a ruptu ra é necessária. Todo o m undo ou qua

    se todo o mundo concorda com isso, mas ninguémousa dar o primeiro passo. Iodos os regimes modernos foram produtivistas: repúblicas, ditaduras,sistemas totalitários, fossem seus governos de direita ou de esquerda, liberais, socialistas, populistas,

    social-liberais, socialdemocratas, centristas, radicais,comunistas. Todos propuseram o crescimento econômico como urna pedra angular inquestionávelde seu sistema. A m udança indispensável de rum onão é daquelas que uma simples eleição poderiaresolver instituindo um novo governo ou vo tan

    do a favor de outra maioria. () que é necessárioé bem mais radical: uma revolução cultural, nemmais nem menos, que deveria culminar numa re-fundação do político.

    Tentar esboçar os contornos do que poderiaser um a sociedade de não crescimento é um pre--requisito de qualquer programa de ação políticaque respeite as exigências ecológicas atuais.

    C) projeto do decrescimento é portanto umautopia, ou seja, uma fonte de esperança e de sonho. Todavia, longe de se refugiar no irreal, tenta

    explorar as possibilidades objetivas de sua aplicação. Daí o qualificativo “utopia concreta”, no sentido positivo que lhe deu Ernst Bloch'. “Sem a hipótese de que um outro mundo é possível, não hápolítica, há apenas a gestão administrativa dos ho-

    2. lirnsl Bloch,  Le fr inàpe li\pémnc.e,  edição Frankfurt, 1953)Paris, Gallimard, 197C.

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    mens e das coisas”.'1() decrescimento c portanto

    um projeto político, 110  sentido forte do termo,projeto dc construção, no Norte e 110  Sul, de sociedades conviviais autônomas e econômicas, sempor isso ser um programa no sentido eleitoral dotermo: ele não se inscreve 110  espaço da políticapolitiqueira, mas visa devolver toda a sua dignida

    de ao político. Ele pressupõe um projeto baseadonuma análise realista da situação; contudo, esseprojeto não pode ser imediatamente transformado em objetivos passíveis de serem postos cmação. O que se procura é a coerência teórica doconjunto . Embora, para fins de exposição, seja cômodo distinguir etapas, estas não devem ser in terpretadas como as de unia agenda. O calendáriovem depois. Assim é que se deve entender o círculo dos oito “erres” c as perspectivas que deles seextraem. Passaremos brevemente em revista as

    etapas desse processo de transformação (diferentes clas fases concretas, que serão examinadas naterceira parte)'1e vamos nos dem orar em algumasdaquelas que ocupam um lugar “estratégico”. Naprática —e é bom que assim seja —essas etapas seconfundem e interagem continuamente, o que

    permite considerar as mudanças de forma progressiva administrando transições das quais o esquem a teórico não dá conta.

    3. Genevieve Decrop, “Redonncr scs chances à 1’iiiopic”, Uto pia,, n“ 1, p. 81.

    4. Esses 8 “erres” são objeto de amplos desenvolvimentos em Lr Pari de Ia décroitsance. aos quais rem etem os o leitor interessado.

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    O círculo virtuoso do 

    decrescimento sereno

    Nos anos 1960, os professores de economia eos tecnocratas se deleitavam com o.s círculos virtuosos do crescimento, Essa época, qualificada de“Trinta Gloriosos”, foi sucedida por aquela que os

    economistas críticos designam como os “TrintaLastimosos”. Na realidade, os próprios Trinta Gloriosos, feito o balanço dos estragos sofridos pelanatureza e pela hum anidade, também foram, comodiz o “jard ineiro planetário” Gilles Clém ent, “Trinta Desastrosos”5. Afinal, os círculos virtuosos re-velaram-se basicamente perversos sob vários aspectos. O desequilíbrio climático que nos ameaçahoje é fruto de nossas “loucuras” de ontem. Emcompensação, a revolução exigida para a construção de uma sociedade autônom a de decrescimento

    pode ser representada pela articulação sistemática e ambiciosa de oito mudanças interdependentes que se ref orçam m utuam ente. Podemos sintetizar o conjunto delas num “círculo virtuoso” de oito“erres”: reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar, reciclar. Es

    ses oito objetivos interdepen den tes são capazes dedesencadear um processo de decrescimento sereno, convivial e sustentável1’.

    5. Gilles Clément c Louisa [ones, lh e écnln^ie humanistn,  Paris,Aubanel, 2006.

    6. Poderíamos en rom pr idar a inda mais a lista dos “erres” e, acada intervenção ou quase, aparece alguém pro po nd o uni novo R

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    Reavaliar.  Vivemos em sociedades que repousam sobre velhos valores “burgueses”: a honestidade, servir ao'Estado, a transmissão do saber, o t rabalho benleito etc. Todavia, “é público c notórioque esses valores se tornaram dcrrisórios, |...J aúnica coisa que conta é a quantidade de d inheiroque você embolsou, pouco importa como, ou a

    quantidade de vezes que você apareceu na televisão”5'. Para dizê-lo de outra forma, com Domini-que Belpomme, os “bastidores” do sistema revelam “uma megalomania individualista, uma recusada moral, um gosto pelo conforto, um egoísmo”8.Percebe-se de imediato quais valores cumpre pro

    mover, aqueles que deveriam predominar em relação aos valores (ou ausência de valores) dominantes atuais. O altruísmo deveria prevalecer sobre o egoísmo, a cooperação sobre: a competiçãodesenfreada, o prazer do lazer e o étiws  do jogo so

    bre a obsessão do trabalho, a importância da vidaque julga essencial, como radicalizar, adaptar  \rewnverlir\,   redefinir, reinventar (a democracia), redimensionar, remodelar, reabilitar, reduzir (a velocidade), relaxar, restituir, devolver  \rrndre\, recom prar, ressarcir, renunciar, rep ensar etc. - mas todos esses “erres” já estão mais ou menos incluídos nos o ito primeiros.

    7. Cornetins Castoriadis,  I m  Montée de Vinsignifumce,  I  j s   C.am-   fours du labyrintkeIV,  Paris, Le Senil, p. 08.

    8.  IbUL, p. 220. Ele acrescenta: "Que observamos no m undo? Am entira , um a justiça de dois pesos e duas m edidas, a busca do poder pelo poder, do dinheiro pelo dinheiro, a exclusão dos pobres, acalúnia, a cupidez, c a corrupção, a democracia achincalhada, a des-saci alização dos valores, mas a sacralização dos meios que se to m amfins cm si, a recusa de cultura, as guerras, a tortura e, finalmente, a

    transgressão dos direitos.”

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    social sobre o consumo ilimitado, o local sobre o

    global, a autonom ia sobre a heteronomia, o gostopela bela obra sobre a eficiência produlivista, osensato sobre o racional, o relacionai sobre o material etc. “Preocupação com a verdade, senso de justiça, responsabilidade, respeito da democracia,elogio da diferença, dever de solidariedade, vida

    (•spiritual: eis os valores que devemos reconquistar a qualquer preço, pois são a base de nosso florescim ento e nossa salvaguarda para o futu ro”.9

    O filósofo Jo hn Dewey já denunciava a “culturapecuniária” e acusava a instituição escolar de preparar a criança para o m undo d a competição em

    vez de ser um laboratório da cidadania111. Que teria ele dito se tivesse conhecido a sociedade de comunicação atual, com seus excessos de manipulação através da publicidade? “Assim como custa entender como um a ‘sociedade de consum o’ poderia continuar a existir se estivesse composta decidadãos de costumes ascéticos que levassem um avida monástica”, escreve François Brune, “tampouco se pode imaginar uma sociedade de decrescimento que funcione com indivíduos que, até o fundo reflexo de suas pulsões espontâneas, fossem

    moldados pelo imaginário e pelo ‘modo cle vida’da ‘sociedade de consumo’”11.

    9.  Ihid.,  p. 221.10. Philippe Chaînai, “Une foi commune: démocratie, don et

    édu cation chez Jo hn Dewey”, in  /{ante du MAUSH,  n'.' 28, Paris, I.aDécouverte, segun do semestre de 2006.

    11. François Brune, “La frugalité heureuse: une utopie?”, Entropia, n'.‘ 1, p. 73.

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    Convém sobretudo passar de uma crença nadom inação da natureza para a busca de uma inserção harmoniosa. Substituir a atitude do predadorpela do jardineiro... Para os cristãos ecologistas, esse seria o décimo prim eiro m andam ento: “Respeitar a natureza e nquanto criação d ivina.”12 A fantasia tecnicista e prometeica de urna artifidaliza-

    ção do universo é unia forma de recusa do m undoe do ser13.

    Reconceituar. A mudança de valores acarreta outro olhar sobre o m undo e, portanto, outra maneira de apreender a realidade. Re-conceituar, ouredefinir/redimensionar, impõe-se, por exemplo,para os conceitos de riqueza e de pobreza14, mas

    12. Sobre a Kleveuth Coinmandinent 1'ellowslnp (Sociedadedo décim o primeiro m andam ento) desenvolvida pe lo teólogo l’aulE Knitter, pode-se consultar o trabalho de Vittorio l.anternari,

    licoantrofmiogia. Dall'vijfenmza ecologica alia svoltn ctico-culturule, Bari,Kdizioni Dedalo, 2003. Não c  p o r acaso qu e Knitter c- também umad ep to d o “relativismo religioso” e do diálogo intercu llural e, po rtodos esses motivos, seja atacado pelo “teocons” (teólogos conservadores), que vão de vento em popa desde a eleição do cardealRatzinger, novo pontífice rom ano .

    13. Ver a bela tese de Gamilla Nai boni, “SïiU'incuria delia cosa:

    considerazioni lilosofichc sui riliuti e sul mondo saccheggiato".Universidade de Pávia, 2000.14. Ao mesmo tempo que, com a globalização e a destruição

    das solidariedades orgânicas, prossegue n o Sul a deslegitimação dasobriedade tradicional c a miséria aparece. Ver Philippe Tanguy,“Pauvreté et cohésion sociale en Mauritanie. Construction sociale et fonction d’une catégorie stigmatisante: la pauvreté”, Magímb-M achmk, n? 190, 2007. Ver tam bém : Patrick Viverct, tie- 

    cunsidérer la richesse,  l.’Aufoc/ Nord, 2003; Majid Rahnema, Quand 

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    também para o par infernal escassez/abundância,fundador do imaginário econômico c que urgedesconstruir. Como bem mostraram Ivan Ulich eJean-Pierre Dupuy, a economia transforma a abundância natural em escassez pela criação artificialda falta e da necessidade m ediante a apropriação

    da natureza e sua mercantiüzação15. Última ilustração do fenôm eno: depois da privatização da água,a apropriação do ser vivo, em particular com osOGM. Assim, os camponeses são despojados dafecunclidade natural das plantas em benefício das

    em presas agroa lim en tares. “A im aginação domercado”, observa Bernard Maris, “é incomensu-rável. Tal como um cuco, ele se instala em tudoo que é gratuito. Exclui uns e outros, etiqueta agratuidade, impõe-lhe logotipos, marcas, pedágios e depois a revende.”15 Essa escassez postulada

    pelos economistas se torna uma profecia que seautorrealiza e não poderemos sair da economiasem enfrentar o desafio do desaparecimento dosrecursos naturais.

    Reestruturar.  “Reestruturar” significa adaptar oaparelho produtivo e as relações sociais em fun-

    Ut misère chasse tu pnmtrelé,  Fstyard/Actes Sud, 2003; Arnaud Bert-houcl, “I

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    to, segundo a clássica análise; de Thorstein Veblen,

    o desejo de c onsumir depe nd e menos da existência de uma necessidade do que do desejo de aflr-

    • m ar seu status   imitando o modelo daqueles queestão logo acima de nóslw.

    As relações de redistribuição Norte/Sul colocam enormes problemas. Contraímos em relaçãoao Sul uma imensa “dívida ecológica”19. Começara ressarci-la  reduzindo nossa predação seria um atode justiça. Como veremos, não se tratará tan to dedar mais, e sim de ex trair menos20.

    A pegada ecológica (que pode até sei- de talha

    da por tipo de atividade ou de consumo) c. umbom instrumento para determinar os “direitos de

    saque” de cada um. E possível imaginar “mercados” desses direitos em vários níveis paia favorecer as trocas de rações e de licenças para consumir.

    Evidentemente, não se traia dc mmtinlilizar   umpouco mais a natureza, mas de in troduzir alguma

    18. Thorslein Veblen, Théorie de lit classe tic loisir,  Paris, Gallim ard , ro). '‘Te l11, 1970. Hervé Kempf, com muiln propriedad e, recuperou ess:» análise cm Comment les riches détruisent la planète,   Paris, 1,e Seuil, 2007.

    19. Allac, Pauvreté et inégalités, ces créatures du néolibéralisme, Paris, Mille et une nuits, 2006, p. 44.

    20. “A chamada dívida ecológica dos países ricos cm relaçãoaos países pobres: os prim eiros tomam ‘em prestadas’ dos paísesdo Sul (sem pagar por elas, enquanto não houver altas taxas)enormes superfícies de recursos naturais, terras aráveis, florestas.Exportam pata eles sua poluição, ao menos aquela que não co

    nh ece fron teiras, a com eçar pela dos gases do efeito eslufa”, WWF,oj>. cit.,  p. 25.

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    llexibiliclade tio m odo dc gestão dc sons limites. O

    desafio, nesse caso com o cm outros, está na passagem ao ato.

    Relocalizar.  “Rclocalizar” significa, é claro, produzir localmente, no que for essencial, os produtos destinados à satisfação das necessidades da po

    pulação, em empresas locais financiadas pela poupança coletada localmente. Toda produção quepossa ser feita em escala local para necessidadeslocais deveria, portanto, ser realizada localmente.Se as ideias devem ignorar as fronteiras, os movimentos de mercadorias e de capitais devem, aocontrário, limitar-se ao indispensável. Do pontode vista da construção de uma sociedade de decrescimento sereno, a relocalização não é apenaseconômica. A política, a cultura, o sentido da vidaé que devem recuperar sua ancoragem territorial.

    Isso implica que toda decisão econômica, políticae cultural que possa ser tomada em escala localdeve ser tomada localmente.

    Reduzir. “Reduzir” significa, em prim eiro lugar,dim inuir o impacto sobre a biosfera de nossos mo

    dos de produzir e de consumir. Trata-se, inicialmente, de limitar o consum o excessivo e o incríveldesperdício de nossos hábitos: 80% dos bens postos 110  mercado são utilizados uma única vez, antes de ir direto para a lata de lixo!21 Hoje, os países

    21. Nicolas Hulot, Pour un pacte écologique, op. dl,,  p. 237.

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    ricos produzem 4 bilhões de toneladas de resíduospor ano22. A produção de lixo doméstico por habitante é de 760 kg por an o nos Estados Unidos, 380kg na França e 200 kg na maioria dos países doSul23. Outras reduções são desejáveis, desde a dosriscos sanitários ate a dos horários de trabalho. Aredução dos riscos sanitários deveria implicar an

    tes a “precavenção” (precaução/prevenção), pararetomar o neologismo do professor Belpomme,do que a reparação - pensemos que, em 2005, asfarmácias francesas venderam 2,6 bilhões de caixas e de frascos, isto é, um crescimento de 8% cmcom paração com o ano anterior!

    Outra redução necessária: o turismo de massa.A idade de ouro do consumismo quilométrico ficou para trás. No m om ento em que Richard Bran-son, o bilionário inglês proprietário do g rupo Virgin, qu er pôr o turismo espacial ao alcance de to

    dos-1, o p róprio jornal muito ortodoxo Financial  Times   reconhece: “O turismo será consideradocada vez mais o inimigo público ambiental número l .”2"’ Sem dúvida inscrito no coração do homem ,o desejo de viajai e o gosto pela aventura são um afonte de enriquecim ento que não deve secar, masa curiosidade legítima e a pesquisa educativa fo-

    22. Bernard Maris,  Anlimanuel..., oj>. cü., p. 327.23. Fome: Thierry Paquot, Prtit manifeste pour m u éeologie exis- 

    tmliclk, op.  (Mi, p. 45.24. U Monde,  19 de abril de 2006.25. R ichard Tomkins, “W ek om e l the age ol Iess”, Financml 

    'Ivmes, 10 de novem bro de 2006.

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    ram transformadas pela indústria turística em

    consumo mcrcanl.il destruidor do meio ambiente, da cultura e do tecido social dos países “alvo”.O “ bougismé’* ,  a mania de ir cada vez mais longe,cada voz mais rápido, com uma frequência cadavez maior (e pagando cada vez menos), essa necessidade amplamente artificial criada pela vida“supermoderna”, exacerbada pelos meios de comunicação, solicitada pelas agências de viagem,pelos guias de viagem e pelas operadoras de turismo, tem de ser revista pa ra baixo. E legítimo indagar se o “ecoturismo”, definido como um turismo

    ético, justo ou responsável, proposto 110  lugar doturismo de massa, não formaria tun ox imoro cúmplice daquele outro que é o desenvolvimento sustentável: acaso não visa ele prolongar a sobrevivência de uma atividade mercantil, condenada econdenável? O álibi por ele alegado de ajudar o“desenvolvimento” do Sul é falacioso. Segundo aFederação Artesãos do Mundo, num pacote deviagens de 1000 curos, menos de 200 euros emmédia ficam com o país hóspede. Por causa da penúria de petróleo e do desequilíbrio climático, eis

    o que o futuro nos promete: cada vez menos longe, com uma frequência cada vez menor, cada vezmenos rápido e cada vez mais caro. A bem dizer,isso só é dramát ico devido ao vazio e ao dcsencan-lamento que nos fazem viver de forma cada vez

    * Ncologisnio. que vem

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    mais virtual, quando, na realidade, viajamos às ex-pensas do planeta. Temos de reaprender a sabedoria dos tempos passados: desfrutar da lentidão,apreciar nosso ter ritório. Segundo Bernard Revel,“Viajai era, outrora, uma aventura cheia de imprevistos, de tempos e de incertezas, a começarpela do retorno. | ... | Conm inente, contudo, ho

    mem de solas enraizadas, permanecia-se na terranatal. Um campanário no centro e à volta deletoda o ho rizonte delimitam um território suficiente para uma vida de homem. Entre mil e um possíveis, escolher aquele que o acaso propõe 110 próprio lugar em que ele nos fez nascer, não é obrigatoriamente uma falta de imaginação. Pode até sero contrário. Não é preciso se mover para que aimaginação abra suas asas”2,i. Diferentemente dos750 povos papuas, condenados durante milêniosa viver toda a experiência hum ana 110 horizon te li

    mitado de seu cantão (algo com que eles não pareciam sofrer em demasia), temos a sorte inédita,graças às maravilhas da tecnologia, de poder viajarvirtualmente sem sair de casa. Além disso, a almaaventureira sempre poderá ir até as ilhas Seychel-les num a prancha avela, se essas ilhas não tiveremsido engolidas pelo oceano...

    Reduzir o lempo de trabalho, enfim, c um elemento essencial, que também encontraremos napolítica de lula contra o desem prego. Trata-se por

    2(5. liernard Revel,  Juumal tk la pluie et du beau temps,  Cauct,

    Trabucaire, 2005, p. 119.

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    certo dc dist


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