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© Agnes Guimaraes Rosa do Amaral, Vilma
Guimaraes Rosa eNonada Cultural Ltda.
Direi tos de edi l' iio da obra em lingua portuguesa
adquiridos pela EDnORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Todos os direitos reservados. Nenhuma p'lrte
desta obra pode ser apropriada e estocada em
si stema de banco de dados ou processo s imi la r,
em qualquer forma ou meioj.{~j~ e le tr6nico, de
fotocopia, grava\:ao etc., scm a permissao do
detentor do oopirraitr-.
--, ,_ Morro alto, morro grande,
m e conta 0 ten padecer.
P ro baixo de mi m, tuio olho;
p'ra cima, nao posso v c r . ..
(Contracanyao_ Peca pscudofolckn-ioa.)
EDlTORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Ru a Bambina, 2 .5 - - Botafogo 22251-0S0
Rio de Janeiro - R J Brasil
ra. (21) 2131-1111 Fax: (21) 2286-6755
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o recado do morro
Bihlioteca do Estudante
CDD: 869.93
CDU: 821.134.3(81 )-3
em que bern se saiba, conseguiu-
se rastrear pelo avesso urn caso de vida e de morte,
extraordinariamente comum,que se armou com
o enxadeiro Pedro Orosio (tambem acudindo par
Pedrao Chabergo au Pe-Boi, de alcunha), e teve
aparente principio e fim, num julho-agosto, nos
fundos do municipio onde ele residia; em sua raia
noroestea, para dizer com rigor.
Desde ali,0ocre da estrada, como de costume, e
um S,que comeya grande frase. E iam, serra-acima,
ClP,Brasil. Cataloga\,ao-na-fonte
Sindicato Nadonal . dos Editores de Livros, RJ.
R694r Rosa, Joao Guimaraes., 1908-1967
() rccado do morro I Joao Guirnaraes
Rosa. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2007<(Btblioteca do estudante)
ISBN 978-85··209- J 977-·4
1. Couto brasileiro. LTitulo.IL Ser ie,
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o RECADO DO MORRO ~ 7
cinco homens, pelo espi~ao divisor. Dia a muito
menos de meio, solene sol, as sombras deles davam
para 0 lado esquerdo.
Debaixo de ordem. De guiador ---- ape, des-
calco - Pedro of6sio: moco, a nuca bem--feita,
grallda membradura; e marcadamente erguido: nem
lhe faltavam cinco centimetres para ter urn talhe de
gigante, capaz de cravar de engolpe em gualquer
terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em
cruz os ossos da cabeca de urnmarruas, com urn soco
em sua cabeloura, e de [evantar do chao umjumento
arreado, carregando-o nos braces por meio qUil6-
metro, esquivando-se de seus coices e mordidas, e
sem nem por isso alrouxar do f()lego de ar que Deus
empresta a todos.
Seguindo-o, a cavalo, tres patroes, entrajados e
de Iimpo aspecto, gente de pessoa. Urn, de fora, a
quem tratavam por seoAlquiste ou Olquiste - espi-
go, alernao-rana, com raro cabelim barba-de-rnilho
e cara de barata descascada. 0sol faiscava-Ihe nos
aros dos 6culos, mas, tirades os oculos, de grossas
lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul,
inocente e terno, que ate por S 1 semblava rir, aos
poucos se acostumando com a forte luz daqueles
altos. Caicava botas cor de chocolate, de um novo
feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-p6 de
Iinho, para verde; traspassava a tiracol as correias
da codaque e do binoculo; na cabeca urn chapeu-
de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na
roca. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto
enxergava dava urn mesmo engrayado valor: Fosse
uma pedrinha, uma pedra, urn cipo , uma terra de
barranco, urn passarinho atoa, uma moita de carra-
picho, urn ninhol de vespos.
Segundo, urn frade louro _- frei Sinfrao des-
ses de sandalia sem meia e tunica marrom , que tern
casa de convento em Pirapora e Cordisburgo. Tam-
bern trazia, sobre °habito, urn guarda-p6, creme; e
punha chapeu branco, de pano mole. Relia 0brevia-
rio, assimmesmo montado, e fumava charuto. Falava
completo a lingua da gente, porem sotaqueava.
Com eles, seo Jujuca do Acude, fazendeiro de
gado, e filho de fazendeiro, deseu Juca Vieira, com
apelido seu Juca do Acude, da Fazenda do Acude,
para 1. 1atras do Saco do Sajoao.
Derradeiro, outro camarada - a cavalo esse, e
tangendo os burros cargueiros -: urn Ivo , Ivo de
Tal, Ivo da Tia Merencia.
De seu, 0guia Pedro Or6sio preferisse mesmo
viajar a pe , ou talvez, culpa de seu tamanho, nem
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8 IIIJOAO Gur!\.'iARAES ROSAo RECADO no MORRO °9
acharia cavalgadura que Ihe assentasse. Mas ele era
urn sete-pernas. Abrindo passo muito extenso e li-
geiro, e, tao forcoso, de corpo nunca se cansava. Por
mais, aqueles ali nao estavam apurados, iam jornada,1'
vagarosa. 0 loura~a, seo Alquiste, parecia querer
remedir cada palmo de lugar, ver apalpado as grutas,
os sumidouros, as plantas do caatingal e do mato.
Por causa, esbarravam a todahora, se apeavam, meio
desertavam desbandando da cstrada-mestra.
De feito, diversa e a regiao, com belezas, mara-
vilhal. Terra longa e jugosa, de montes p6s montes:
monos e corovocas, Serras e serras, par prolonga-
cao. Sempre urn apique bruto de pedreiras, enormes
pedras violaceas, com matagal ou Iavadas. Tudo cal-
careo. E elas se roem, nao raro, em formas -, que
nem pontes, torres, colunas, alpendres, chamines,
guaritas, grades, campanarios, parades animais,
destrocos de estatuas ou vultos de criaturas, Por L 1 ,
qualquer voz volta em belo eco, e qualquer chuva
suspende, no ar de cristal, todo tinto arco-iris, cor
por cor, vi vente longo ao solsim, feito urn pavao.
Umas redondas chuvas acidas, de grande diametro,
chuvas cavadoras, recalcantes, que cacm fumegando
com vapor e empunam enxurradas mao de rios,
se engolfam descendo por funis de furnas, antros e
grotas, com tardo gorgolo musical. Nos rochedos,
os bugres rabiscaram movidas figuras e letras, e sus
se foram. Pelas abas das serras, quantidades de ca~
vernas - do teto de umas poreja, solta do tempo,
a agiiinha estilando salobra, minando sem-Iim num
gotejo, que vira pedra no ar, se endurece e dependu-
ra, por toda a vida, que nem renda de torroezinhos
de amendoa ou fios de estadal, de cera-benta, cera
santa, e grossas lagrimas de espermacete; enquanto
do chao sobem outras, como crescidos dentes, como
que aquelas sejam goelas da terra, com boca para
morder. Criptas onde 0ar tern corpo de idade e a
agua forma pele muito fria, e a escuridao se pega
como uma coisa. Ou lapinhas cheias de rnorce-
gos, que juntos chiam, guincham, porfiam. Largos
ocos que servem de malhador ao gado, no refrio
das noites, ou de abrigo durante as ternpestades.
Lapas, com salitrados desvaos, onde assiste, rodeada
de silencios e acendendo glob os olhos no escuro, a
coruja-branca-de-orejhas, grande mocho, a estrige
cor de perolas --- strix perlata, Cafurnas em que as
andorinhas parte do ano habitam, fazendo ninho,
pondo e tirando cria, depois se sornem em bandos
por este mundo, deixaram Ia dentro s o a ruiva mo-
Ieja, as rumas, e sua ardida cheiracao. Fim do campo,
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-t 0 ij J 0 A 0 G U ] MAR A 1, S R 0 SA o RfCADO DO MORRO =- r r
nas sarjetas entremontas d~s bacias,um ribeirao de
repente vern, desenrodilhado, ou 0fiume de urn
riachinho, e da com 0 emparedamento, entao cava
urn buraco e por ele se soverte, desaparecendo num
emboque, que algmt'lsainda tern pelo nome gentio,
de anhanhonhacanhuva. Vara, suterrao, travessando
para 0 outro sope do morro, ora adiante, onde re-
brota desengulido, a agua ja filtrada, num bilo-bilo
facil, logo se alisando branca e em leves laivos se
azulando, que qual polpa cortada de caju. Emesmo
corregos se afundam, no plao, sem razao, a nao ser
para poderem cruzar intactos por debaixo de rios,
e rernanam do tune], ressurtindo, longe, e depressa
se afastam, seguindo por terem escolhido de afluir
a urn rio outro. E lagaazinhas, em pontos elevados,
sao ao contrario de todas: se enchem na seca, e
tempo-das-ayuas se esvaziam, delas mal se sabe. E
nas grutas se achavam ossadas, passadas de velhice,
de bichos sem estatura de regra, assombracao deles
--- 0megaterio, 0 tigre~de-dente-de-sabre, a proto-
pantera, amonstra hiena espelea, 0paleo-cao, 0lobo
espeleo, 0 urso-das-cavernas -------, homenzarros,
duns que nao ha mais. Era so cavacar 0duro chao, de
laje branca e terra vermelha e sal. Montes de ossos,
de bichos que outros arrastavam para devorar ali, ou
que massas d'<igua afogaram, quebrando-os contra
as rochas, quando as manadas eles queriam fugir,
se escondendo do Diluvio. Agora, pelas penedias,
escalam cardos, cactos, parasitas agarrantes, gravatis
se abrindo de Hares em azul-e-vermelho, azagaias
de piteiras, 0 pau-d oleo com raizes de escultura,
gameleiras manejando como alavancas suas sapope-
mas, rachando e estalando 0que acham; a bromelia
cabelos-do-rei, epifita; a chita-- uma orquidea; e a
catleia, sofredora, rosissima e roxa, que ali vive no
rosto das pedras, perfurando-as, Papagaios rouco
gritam: voam em amarelo, verdes. V ez ern vez, se
esparrama urn grupo de anus, coracoides, que piam
pingos choramingas. 0 caracara surge, pousando
perto da gente, quando menos se espera -- urn
gaviaoao vistoso , que gutura. Por resto, 0mudo
passar alto dos urubus, rodeando, recruzando -~;
pela guisa esses sabern 0 que-ha-de-vir.
Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo
nao se governava bern. Tomava nota, escrevia na ca-
derneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande
esta estrangulando com asraizes a paineira pequena!
- de apreciava, a exclama. Colhia com duas maos a
ramagem de qualquer folhinha campa scm serventia
para se guardar: de marroio , carqueja, sete-san-
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r 2 It J 0- A . 0- G U I M A It A l: S R 0 $ A o Rl,CADO DO MORRO'" (3
grias, amorzinho-seco, pe-,de-perdiz, joao-da-costa,
unha-de-vaca-rdxa, olhos-de-porco, copo-dapua,
Hngua-de-tucano, lingua-de-tciu. Umahora, revirou
a correr atras, agachado, feito pegador de galinha,
tropecando no barllburral e espichando tombo, 56
porter percebido de relance, inho e zinho, fugido no
balango de entre as moitas, 0orobo de urn nhambu,
Outrarnao, ele desenhava, desenhava: de tudo tirava
trace e figura leaL Daquelas cumeeiras, a vista vai
de bela a mais, dos lados, se alimpa, treze, quinze,
vinte, trinta Ieguas lonjura .....- "Da acoite de se
ajoelhar e rezar ... "-- ele falou. Dava. E sorria de
ver, singular, elas trepando pela reigada da verten-
te, as labaredas verdes dum canaviaI. Saudou, em
beira de capac, urn tamandua longo, saido em seu
giro ineerto; se nao 0 segurassem, ia la, aceitava 0
abraco? Mas bastantemente assentava no caderno,
it sua satisfacao, Quando nao previa melhor coisa,
especulava perguntas; frei Sinfrao, que se entendia
na Iinguagem dele, repetia:
-- Quer saber donde voce e , Pedrao. Se voce
nasceu aqui?
Nao. Pe-Boi era de mais alastado, catrumano,
nato num povoadim de vereda, no sertao dos cam-
pos-gerais. Hornem de brejo de buritizal entre cha-
padas arenosas, terra de rei-trovao e gado bravo. E,
mesmo agora, 56 se ajustara de vir com a comitiva
era porque tencionavarn chegar, mais norte, ate ao
comcyo de la , e ele aproveitava, queria rever a va-
queirama irma, os de chapeu-de-couro, tornar a es-
cutar os soires cantando claro em bando nas palmas
da palmeira; pelo menos pisar 0 chapadao ehato,
de vista descoberta, e cheirar outra vez 0 resseco
ar forte daqueles campos, que a alma da gente nao
esquece nunca direito e 0 coracao de geralista esta
sempre pedindo haixinho. Porque Pedro Orosio nao
era servical de seu Juca do Acude > ele trabucava
forro, plantando a meia sua rocinha, colhia ate cana
e algodao.
_._-_Se voce e solteiro ou casado, Pedro?
E frei Sinfrao mesmo sabia, ja respondia, jocoso,
linguajando. Que 0Pedro era ainda teimoso solteiro,
e 0rnaior bandoleiro narnorador: as moyas todas
mais gostavam dele do que de qualquer outro; por
abuso disso, vivia tirando as namoradas, atravessava
e tornava a que bern quisesse, s o por divertimento
de indecisao, Tal modo que muitos hom ens e rapa-
zes the tinham odic, queriam 0fim dele, se nao se
atreviam a pega-lo era por sensatez de medo, pOI'
de ser turuna e primao em forca, feito um touro
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.E4 -·JO I\O GUrM A RAES ROSAo RECADO DO MORRO I 'S
ou uma montanha. Aquelemesmo Ivo, que evinha
ali, e clue de primeiro tao seu amigo fora, andava
agora com ele estremecido, por conta de uma mo-
cinha, Maria Melissa, do Cuba, da qual gostavam.
E, a causa de outra< delas nem 5e lembrava, ali em
Cordisburgo tinha 0Dias Nemes, famanaz, virado
contra ele no vi] frio de uma inimizade, capaz de
tudo. Com frequencia, Pedro Orosio tirava do bol-
so um espelhinho redondo: se supria de se mirar,
vaidoso da constancia de seu rosto.
-----E quando e que voce toma juizo, Pedro, e
se casar
Todos riam. Ate 0Ivo, que ria fazia, destornado.
Seu Alquiste quis bater uma fotografia de Pedro
Orosio: recomendou que ele ficasse teso, descidos
os braces. -"Grande ... Muito grande ... "---falou.
- "Born para soldado 1"De por si sem acanhamen to
nenhum, antes saido, e mais ainda se espiritando
com aquele regozijo geral, 0Pedro prosapiou gra<;:a
de responder, sem quebra de respeito- que per-
guntassem ao outro se na terra dele as mo<;:aseram
bonitas, pois gostava era de se casar com uma assim:
de cara rosada, cabelo amarelo e olho azul ...
Seo Alquiste, quando 0frade a entendeu para
de, apreciou muito a parlada, e mesmo disse urn
ditado, la na lingua: que um quer salada fina e
. outro quer batata com a casca . .. Porque ele, seo
Olquiste, premiava para si, se pudesse, era casar
com uma mulata daqui, uma dessas quase pretas de
tao roxas ... E entao 0Iva, Iide tras, encolhido na
sela mas forcejando pOl'espevitar boa-cera, a refal-sa, tambem disse: "A born, amigo Pedro, quem
sabe ele havera de querer te levar, por conhecer a
cidade dele?"
E Pedro Or6sio, subido em sua fiuza, dava
resposta de claro rosto. Tinha medo de ninguem,
assim descarecia de Hgado ou peso de cabeca para
guardar rancor. Contentava-o ver 0 Ivo abrir paz;
coisa que valia neste mundo era se apagarern as
duvidas e quizilias. 'Ioda desavenca desmanchava 0
agradavel sossego simples das coisas, rendia ate pre-
gui<;:apensar ern brigar. Nunca desgostara do Ivo, e,
quando mesmo, ali era 0Ivo0unico de sua igualha,
a proprio, e a gente sentia falta de algum compa-
nheiro, para se entreter presen<;:ade conversa; do
contrario a viagern ficava aborrecida. Outros eram
os outros, de born trato que fossem: mas, pessoas
instruidas, gente de mando. E urn que vive de seu
trabalho bracal nao cabe todo avontade junto com
esses, pOl' eles pago.
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~6.Q-J-oA.o GUlMARAES ROSA o RECADO DO MORRO =- r7
De qualidade tambem, que, os que sahem ler e
escrever;.a modo que mesmo °trivial da ideia delesdeve de ser muito diferente. 0 seo Alquiste, por
um exemplo, em festa de entusiasmo por tudo, que
nem uma crianca ,rio brincar; mas que, sendo sua
vez, atinava em por na gente um olhar ponteado,
trespassante, sernelhando de feiticeiro: clue divul-
gava e discorria, ate adivinhava sem ficar sabendo.
Ou 0frade frei Sinfrao, sempre rezando, em hora
e folga, com 0terce ou no missalzinho ;mas rezava
enorrnes quantidades, e assim atarefado e alegre,
como se no lucrativo de urn trabalho, produzindo, e
nao do jeito de que as pessoas comuns podem rezar:
a curto e com distracao, ou entao no per-socorro
de uma tristeza ansiada, em momentos de aperto.
Por isso tudo, aqueles a gente nem conseguia bem
entender. Mesmo 0 seo Jujuca do Acude , rapaz
moyo e daqui, mas com seus estudos da lida certa
de todo plantio de cultura, e das doencas e remedies
para 0gado, para os anirnais. Pois seo Jujuca trazia
a espingarda, cayava e pescava; mas, no mais do
tempo, a atencao dele estava no comparar as terras
do arredor, lavoura e campos de pastagem, saber
de tudo avaliado, por onde pagava a pena comprar,
barganhar, arrendar -- negociar alqueires e novi-
lhos, rnadeiras e safras; seo Jujuca era urn moco
atilado e ambicioneiro.
Do que des tres falavam entre si, do muito que
achavam, Pedro Orosio nao acertava compreender, a
respeito da beleza e da parecenya dos terrttorios, Ele
sabia para isso qualquer urn tinha alcance------que
Cordisburgo era 0 Iugar mais formoso, devido ao
ar e ao ceu, e pelo arranjo que Deus caprichara em
seus morros e suas vargens; por isso mesmo, la, de
primeiro, se chamara Vista-Alegre. E, rnais do que
tudo, a Gruta do Maquine - tao inesperada de
grande, com seus sete saloes encobertos, diversos,
seus enfeites de tantas cores e tantos formatos de so-
nho, rebrilhando risos na luz-- ali dentro agente se
esquecia numa admiracao esquisita, mais forte que
o juizo de cada urn, com mais gloria resplandecente
do que uma festa, do que uma igreja.
Nao, bronco ele nao era, como 0 Ivo, que nem
tinha querido entrar, esperara ca fora: disse que je i
estava cansado de conhecer a Lapa. Mas, daquilo,
daquela, ninguem nao podia se cansar. Ah, e as es~
trelas de Cordisburgo, tambem v+ 0 seo Olquiste
falou ~- eram as que brilhavam, talvez no mundo
todo, com mais agarre de alegria.
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,8 °JOAO GUIMARAES ROSAO RJ~CAno DO MOnRO· '9
Pedro Orosio achava do mesmo modo lindeza
comum nos seus campos~gerais, porsaudade de 1 . 1 ,
onde tinha nascido e sido criado. Mas, outras coisas,
que seo Alquiste e 0frade, e seo Jujuca do Acude
referiam, isso ficavapor ele desentendido, fechado
sem explicacao nenhuma; assim, que tudo ali era
uma Lundiana ou Lundlandia, desses nomes. De
certo, segredos ganhavam, aspessoas estudadas; nao
eram para 0usa de urn lavrador como ele, so com
sua saude para trabalhar e suar, e a protecao de Deus
em tudo. Urn enxadeiro, sol a sol debrucado para a
terra do chao, de orvalho a sereno, e puxando toda
forca de seu corpo, como e que ha de saber pensar
continuado? E, mesmo para entender ao vivo as
coisas de perto, de so tinha poder quando na mao da
precisao, ou esquentado _. por odio ou por amor.
Mais nao conseguia.
Agora, 0que 0tirava, era 0garantido de voltar
por um pouco aos Gerais, ate h i iam, para h i guiava.
E chegariam aos Gerais quase sem necessidade de
se apear das serras em seu avanqo: uma emendada
com outra, primeiro aque1as com pedreiras; depois
as com cristais recortados; depois, os escalvados, de
- d d d "al "" ."hao rosa 0 e greta 0, os a egres e campmas ;
enfim, depois as serras areentas: e a gente dava com
a primeira grande vereda -- os buritis saudando,
Ievantantes, sempre tinham estado la , em sinal e
ceu, porgue 0buriti 6 mais vivente.
Entrementes, ia cantando. Gostava. Canta-
cantando, surdino, para nao incomodar os grandes
nern os escandalizar com toadas assim: ".. .Jararaca,
cascavel, cainatia ... Cunhiio de u rn gata, cunhiio de lim
rata. . . a qual cantarolava, parecia um sobredizer
de maluco. 'Moda de copla ouvida do Laudclim, que
era dono de tudo que nao possuisse, ate aproveitava
a alegria dos outros -- trovista, repentista, preci-
sando de viver sempre em mandria e vadiice, mas
mais gozando e sofrendo por seu violao; apelido dele
era Pulgape. Fazia tempo que Pedro O1'6s10 nao 0
via. Mas era, quem sabe, 0unico amigo seguro que
Ihe restasse, agora que quase todos os companheiros
estavam de volta com ele e lhe franziam cara, por
meia-bobagem de ciumes.
Ainda na vesper a, na Fazenda do Saco-dos-
Cochos, de sea Juca Saturnine, onde tinham falhado,
aparecera 0Maral, primo do Iva, os dois resurniram
muita conversa apar tada. 0Maral, outro que mal-
escondia 0Ierrao. Sujeito feioso e lero, focinhudo
como um coati. Entao era de, Pedro, quem devia
crime, par as mocas nao gucrerem saber de namo-
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l c ~ J 0 -1 \ 0 G U I MAR A E s R a SAo Rl~CAD() DO MOrt.RO ,a. 2J
ro com esse? Em todo 0c,aso, melhor estava que 0
Ivo retornasse as boas. A vida era curta para nela se
trabalhar e diver tir; para que tantas dificuldades?
Prazia caminhar, isto sirn , e estava sendo bern
gratificado. Cantav/ou assoviava, e, pe-dobro, puxa-
va estrada. Ajeitava a calca preta de zuarte, desbotada
mas bern arrega<;ada, por nao poir a barra da roupa;
dobrava-a para dentro, para nao ajuntar poeira. E,
os pes de sola grossa, experimentava-os firme em
qualquer chao.
o ceu nao tinha fim, e as serras se estiravam,
sob 0esbaldado azul e enormes nuvens oceanosas.
Ora os cavaleiros passavam por urn socalco, entre
uma quadra de pedreira avancante, pedra peluda ,
eo despenhadeiro, uma fra altissima. Eles seguiam
Pedro Orosio; era vaqueao, nele se fiavam. Ia bern
na dianteira, Aquele elevado moyo, sern palet6, a
camisa furada, urn ombro saindo por urn buraco;
terminando, de velho, seu chapeu-de-palha: copa
uma linha geodesica. Mais ou menos como a gente
vive. Lugares, Ali, 0 caminho esfola em espiral uma
laranja: ou e a trilha escalando contornadamente
o morro, como urn 1a<;0jogado em animal. Que-
dam subir, ever. 0 mundo disforrne, de posse das
nuvens, seus grandes vazios. Mas, com brevidade,
desciam outra vez. Sairam a onde a estrada e reta,
born estirao. Ate que, a pouco trecho, enxergavam,
adiante uma pessoa caminhando.
Um homenzinho terem-terem, ponderadinho
no andar, todo arcaico." ' G ·lh·" pA B . d'--. Eo' orgu 0... _.0 c- 0] isse.
Quem? Urn velhote grimo, esquisito , que mo-
rava sozinho dentro de uma lapa, entre barrancos e
grotas - uma urubuquara casa dos urubus, uns
lugares com pedreiras, 0 nome dele, de verdade,
era Malaquias.
E ia 0Gorgulhodireito bern no meio da estrada,
parecia urn garatujo, urn desses calungas pretos, ou
carranquinha escoradora dc veneziana. Tinha urn
surrao a tiracolo, e se arrimava em bordao ou man-
guara. Como quase todo velho, andava com maior
afastamcnto dos pes; mas sobranceava comcdimento
e esturdia dignidadc.
I I A , .e circu 0, com 0 rego concave, e a cintura a garru-
h f - . 1 "S - "ana capa, e urn acao; ia, a ongo ~ oansao .
- disse seo Alquiste, Fazia agrado ver sua boa co-
ragem de pisar, seu decidido arranque.
E assim seguiam, de urn ponto a urn ponto, por
brancas estradas calcareas, como par uma linha va,
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o RECADO DO MORRO" 13
2'2 oJOAO GUIMt\RAES ROSA
Devia de ouvir pouco, pois a cornitiva ja quase
o alcancara e ele ainda nao dera por isso. Ora, pela
calada do dia, ali e lugar de muito silencio. Assim
que, 0Gorgulho ca!<;:avaalpercatas, sua roupa era,
de sarja fusca, for~ato antigo-- casacao cornpri-
do demais, com gualdrapas; uma borjaca que de
cerro tinha sido de dono outro-- mas Iirnpa, sem
desalinho nenhum; via-se que de fazia questao de
estar composto, scm em ponto algum desleixar-se.
E 0 que empunhava era uma bengala de alecrim, a
madeira roxo-escura, quase preta.
E, nisso, de arranco, ele esbarrou, se desbracan-
do em gestos e sestros, brandindo seu cacete, Fazia
espantos, Falou, mesrno, voz irada, logo ecfonico:
._ Eu?! Naol Nao comigol Nenhum filho de
nenhum ... Nao tou somando!
Tomou fOlego, deu um passo. Scm sossegar:
--....Nao me venha com [oxiasl Conselho que nao
entendo, nao me praz: e agouro!
E mais gritava, batendo com 0alecrim no chao:
______i, judengo! Tu, antao, vai p'r' as profun-
dasl ...
De tanta maneira, sincera era aquela furia. Silen-
ciou. E prestava atencao toda, de nariz alto, como se
seu queixo Fosse urn aparelho de escuta. Ao tempo,
enconchara mao a orelha esquerda.Alguem tarnbern algo ouvira? Nada, nao. En-
quanto 0 Gorgulho estivera aos gritos, sim, que
repercutiam, de tornavoz, nos contrafortes e pa-
redoes da montanha, perto, que para tanto sao dos
melhores aqueles lancos.Ajjora e antes, porern , tudo
era quieta.
-- "Que foi que foi, seuMalaquia?"- ja ao lado
dele Pedro Orosio indagava.
Apenas no instante 0 Gorgulho percebia-os.
Voltou-se . Mas nao rcspondeu. Empertigou-se,
saudando circunspecto; tudo nele era formal. Ate a
barba branco-amarela, s6 na orla do rosto, chegan-
do ao cabelo. Pedro Or6sio teve de apresenta-Io, a
cada urn, e ele cumpria serio 0cumprirnento, com
vagar a frei Sinfrao beijou a mao, mencionando
Jesus Cristo. Se descobrira e segurava 0chapeu ,
pigarreando e aprovando, com lentos anuidos, a
boa preseno;a daquelas pessoas. Mas a gente notava
quanto eslorco de fazia para se center, tanta per-
turbacao ainda 0 agitava.
"H'h Q / t. um... ue e que 0morro nao em
preceito de estar gritando ... Avisando de coisas ... "
--- disse, por fim, se persignando e rebenzendo, e
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24 " J 0 A 0 G u [ MAR Ji . E S R 0 SA o RECADO DO MORRO'" 25
apontando com 0 dedo nO.rumo magnetico de vinte
e nove graus nordeste.
La_- estava 0Morro da Garca: solitario, escale-
no e escuro, feito uma piramide. 0 Gorgulho mais
olhava-o, de arrevirar bogalhos; parecia que aqueles
olhos seus dele iam sair, se esticar para fora, com
pedunculos, como tentaculos.
"P 'I havid 1 '?" f.- OSSlve ter aVl 0 a guma COlsa. --- reI
Sinfrao perguntava. -- "Essas serras gemem, ron-
cam, asvezes , com retumbo de longe trovao, 0chao
treme, se sacode. Serao descarregamentos subter-
ranees, 0desabar profundo de camadas calcareas,
como nos terremotos de Bom-Sucesso ... Dizem que
isso acontece mais e pOl' volta da lua-cheia ... "
Mas, nao, ali ilapso nenhum nao ocorrera, os
monos continuavam tranquilos, que e amaneira de
como entre si eles conversam, se conversa alguma
se transmitem. 0 Gorgulho padeceria de qualquer
alucinacao; de que ate era meio surdo. E Pedro
Orosio, que semelhava ainda mais alteado, ao lado
assim daquele criaturo ananho , mostrava grande
vontade de rir. 0 GorguIho ainda arirmava a vista,
enquanto engulia em seco, seu gogo sobe-descia.
-- "E que foi que 0Morro disse, seu Malaquias,
que mal pergunto?" -- seo Jujuca quis saber.
-- Pois, hum .. , Ao que foi que ele vas disse,
meu senhor? Ossenhor vossernece, com perdao,
ossenhor nao esta escutando? Vigia ele-la: a modo
e coisa que tem paucta ...
Muito mais longe, na direcao, outras montanhas
-- sendo azul a Serra da Diamantina. Sobre essa,
o estender-se de estratos. Depois, 13:puxada por
grandes maos, sempre nuvens ursas giganteiam. E
aqui perto; de repente, se tracou 0rapido nhar de
urn gaviao, passando destombado, seu sol nas asas
chumbo: baixava para a bacia, para as restingas de
mato.
- E-e-e-e-e-e-ch, morro! ... - bradou entao
Pc-Boi, por desfastio. Mas fazendo a moda certa deecar do povo roceiro serraino, por precisao de se
chamarem pelo ermo de distancias, monte amonte:
a1ongando 0 eb, muito agudo, a toda a garganta, e
dando curto com 0nome final, tal uma martelada,
que quase nao se ouve --- so 0sell dono entende.
Perspeito , em seu pousado, 0da Garca nao
respondia, cocuruto. Nem ele, nem outre, aqui
a esquerda, proximo, superno, morro em mama
erguida e corcova de zebu,
A i de, ja se arapuava 0Gorgulho, mestre na des-
confianca. Com urn modo proprio de qucrer rodar
B U 3 U O T E C A ss C E FE T , . M GC F ~ M ? U SI
i
i
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26°JOAO Glrji\1AR)~":ES Ros :A. o RIC.f\DO no MORRO .g, 2]
'"!
com 0nariz e revolven?o as magras boeheehas.
Dele, ai, ninguem zombava graeejo, que era homem
se prezando, forte zangadiyo. Piscava redobrado, e
para a beira da estrada se oeupou, esperando que
os outros passasseme se fossem- fazia por viajear
fora de cornpanhia.
-- O f Ack ! -_ glogueou seo Olguiste, igual urn
pato. Queria que 0Gorgulho junto viesse. -- Tro-
g lo dyt? T ro glo dyt? - inquiria, e, abrindo grande a
boca, rechupava um o o h ! . .. Quase se despencando,
desapeou. Frei Sinfrao e seo Jujuca desmontaram
tambem.
o Gorgulho persistia calado, amarrada a cara.
Gastara voz, saira de si, agora estava aquietado,
cansado quem-sabe. De tao alto em sua estima, e
cerimonioso , ganhava meia parecenya com algum
bicho, que nunea demuda de suas praxes. Enquanto
seo Alquiste se afadigava, como com eerto susto de
que 0homenzinho Fosse escapulir, E frei Sinfrao
cayoava e se afligia, repartido no receio de que seo
OIquiste se desgostasse, mas tambem de que pudes-
se obrar alguma maior inconveniencia. E seo Juju-
ca se tolhia, no dever de que tudo se arranjasse a
gosto de seus h6spedes. Seo Jujuca se aborrecia.
Nunca de seguro imaginara que urn divertido de
gente como aquele Gorgulho - que nem casa tinha,
vivia nurna gruta, perto dos urubus, definito sozi-
nho - que pudesse se eneoseorar, assirn, se dando
tanto valor. E Pedro Orosio mais 0 Ivo tinham de
tomar em si parte dessas tribulacoes, conforrne aos
empregados serve. S6 mesmo 0Gorgulha era ali
quem resguardava sua inteireza.
Mas Pedro Orosio tocou ajuda:--- "Ele gasta
d ." di "L. ."e rrum -. isse. -- Emeu amlgo ... ---; e, sem
pau nem pedra, fez a velhouco vir a fala, repedindo,
nome do frade, que ele quisesse de bern se chegar
e emparelhar caminhada.
Pclo que, de concordando, tiveram de ir dali
por diante todos a pe e a contados passos, visto que
o Gorgulho, a-prazer-de se empenhando, sempre
nao passava de urn poupado andarilho. Nem ne-
nhum deles ria, a que a menor mencao de troca 0
Gorgulho subia no S1S0, hornem de topete. Doido,
'? "N- El ' !, , A· 1 dsena. - 1rao. e, no que e, e e plrronlco, (a 0 a
essas manias ... Que parece foi querer morar inde-
pendente em oco de pedreira, so p'ra ser orgulhoso,
longe de todos. Enao perdeu 0bom-uso de qualquer
sociedade ... " Pedro Or6sio podia explicar isso, bai-
xinho, ao sea Jujuca, des que 0Gorgulho escutava
reduzido. Mas ele respondia as perguntas, sempre
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18 ·JOAO GUJMARAES ROSA
o RECADO DO MORRO -a 2.9
depois de rnatutar seu pouco, retorcendo 0 nariz e
bufando fraco, A faIa dele era clue nao auxiliava 0 se
entender .._ as vezes urn engrol fanho, ou baixando
em abafado nhenhenhem , mas com partes quase
gritadas. Em cada ftl0mento, espiava, de reves, para
o Morro da Gan;:a, posto la, a nordeste, testemunho.
Belo como uma palavra. De uma feita, 0Gorgulho
levou os 01h08 a de, abertamente, e outra vezse
benzeu, tirado 0 chapeu; depois, expediu urn escon-
jure, com a mao canhota. Frei Sinfrao recomendava
a seo Alquiste que agora deixasse de tornar notas na
caderneta.
Passando-se assim estas coisas, discorriam de
ficar sabendo, melhor, que 0 Gorgulho residia, havia
mais de trinta anos, na dita furna, urna caverna a cis-
morro, no ponto mais brenhoso e feio da serra gran-
de. Lapinha antes anonima, ou "Lapa dos Urubus",
mas agora chamada a "Lapinha do Gorgulho". Santo
de sozinho de santo: nunca tivera voutade de se casar
"0 hor saib . .,_ ssen or Sal a; nem con]o, nern conp -_ mea
razao sera esta ... "Mesmo 0motive dessa sua viagem
era ir de visita ao seu irrnao Zaquias, morador tao
lontao, tambern numa gruta pequena, pegada com
a Lapa do Breu, rumo a rumo com a Vaca-em-Pc.
Porque tinha tido sabenca de que 0 Zaquia andava
imagiuando se casar. E entao ele achava obriga<;ao
de aviso de deixar seus trabalhos, por uns dias, e vir
reconselhar 0 irmao, tivesse juizo, considerasse, as
paciencias, nao estava rnais em era de pensar em
mulher. E, de s se modo, pondo em efeito.
Afora causa tao precipitada, so de longes meses,
nao mais de uma vez na roda do ano, era que urn
deles resolvia, deixava sua gruta, e espichava estrada,
por mor de vir vel' 0 outro irmao Iapuz. - "Mas, pOl'
- . 7" "0 h di ? "que nao rnoram Juntos. - ssen or isse....
- e 0Gorgulho fitava 0 frade, espantado com 0
desproposito,
Porem seo Olquiste queria saber como era a
gruta, pOl' fora e pOl' dentro? Seria boa no tamanho,
confortosa, com tres comodos, dois deles dareados,
por altos suspires, abertos no paredao, 0 salao der-
radeiro e que era sempre escuro, e tinha no meio do
chao urn buraco redondo, sem fundo de se escutar
o fim duma pedra cair; mas l a a gente nao preci-
sava de entrar - so urn casal de suindaras certos
tempos vinha, ninhavam, esse corujao faz barulho
nenhum. Respeitava ao nascente. A boca da entrada
era estreita, urn atado de feixes de capim dava para se
fechar, de noite, mode os bichos. E tinha ate trastes:
urn banco, urn toco de arvore, urn caixote e uma
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30-q>jO A.O G UfM AR A f;,'j ROSAo RECADt) DO MORRO ~ 3'
barrica debacalhau. E ti?ha pote d'agua. Dormir,
ele dormia numa esteira, Vivia no seu sossego.
E de que vivia? Plantava sua roca, colhia: --- "A
gente planta milho, arroz, feijao, bananeira, abo-
bra, rnandioca, m~ndobi, batata-doce, rnelancia ... "
Roca em terra geradora, ali perto, scm possessao de
ninjjuern, chao de cal, dava de tudo. Que ele tinha
sido valeiro, de profissao, em outros tempos ...
-- emendava baixinho Pedro Or6sio. Abria valos
divisorios. Trabalhava e era pago pOl' varas: preyo
por varas. Pago a pataca. Fechou estes lugares todos.
_. "Pechei!" - ...de mesmo dizia. Contavam que
ainda tinha guardado hom dinheiro, enterrado, por
isso fora morar em gruta: tudo em meias-patacas
e quarentas, moedoes de cobre zinhavral. Com a
mudanca dos usos, agora se fazia era cerca-de-ara-
me, ninpuem queria valos mais; ele teve de mudar
de rumo de vida. Cultivava seu de comer. E punha
esparrelas para caca, sabia cavar fajo grande; pOl'
redondo ali, dava muita paca: nem bern ve uma
semana, tinha pegado em munden uma paca ama-
rela, dona de gorda. S6 pelo sal, e pOI' se servir de
merce de alguma roup a ou chapeu velho, era que
ele surgia, vez em raro, em fazenda ou povoado.
Trazia frutas, tambem fazia os balaios, mestre no
interteixo. Dizia: -- "Tambem faco balaio ... Os-
senhor fica com 0balaio ... Tambem faco balaio ...
Tambem faco balaio ... "
Mas, nesse entremeio, baixando 0 lancante,
chegavam a urn lugar sombroso, sob muralha, e
passado ao fresco por urn riaohinho: cis, cis. Urn
regato fluifim, que as pedras olham. Mas que mais
adiante levava muito sol. Do calcareo corroido subia
e se desentortava velha gameleira, imensa como urn
capao de mato. Espacados, no chao, havia cardos,
bromelias, urtigas. Do mundo da gameleira, vez clue
outra se ouvia urn trinco de passarinho, Ali fizeram
estacao ·para a hora de comer.,
Dado urn lombo aos cavalos, estes pegavam a
pastar, nas bocainas do barranco, urn mdoso ressal-
vado da seca e entrancado, cheirando born, com seus
6leos e seus pelos, Pedro Orosio ia ajuntar galhos de
graveto, acola, debaixo dos pes de itapicuru; acendia
o foguinho, coava cafe. Davapreven9ao: de repente,
uma laje daquelas, da trempe, podia estalar, rachada
se esquentando, com bruto rumor. Tinham queijo,
biscoitos, farinha, e carne de porco nevada na banha,
numa lata. Todos se assentavam, mesmo no solo, ou
em blocos e lascas de pedra, s6 0Gorgulho como
que teimava em ficar de pe, firme em seu pr6prio
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todo respeito e escoradoem seu alecrim. Rejeitou
de tudo, com breves mesuras de cortesia: ~ "A
Deus sejam dadas! Ea rnelhor sustancia paraVossen-
cias ... N6s matulamos inda agorinhao. 0"--- falou.I'
"E I 1 0 I d b ba?" J 0--._- .stara e e JeJuan 0 sua so er _ao·--·- seo ujuca
perguntou, baixo. Mas Pedro Or6sio sussurrou es-
I . t I lh di "/" .iarecrmen 0,que a guns ve os izram nos aSSIm,
que de certo era por eles mesmos e de cada urn seu
anjo-da-guarda, por mais de.
POl' ai, caso e coisa, e j.1 que de morava dito
numa urubuquara, queriam poder saber a respeito
de cornpanhia tal, dos urubus, qual era 0regimento
d "A I" - 1 Iesses. ---- rre. ~ que nao era ~ e e renuia, vez
vezes. Nao em sua gruta de vivenda, onde assistia.
Urubu nenhum 1.1nao entrava, nenhonde. --- "Mas,
?" "P "Q rpor perto. or perto, por perto... ue e que
de podia fazer, por evitar? Urubu vinha la, zuretas,
se ajuntavam, chegavam por de longe, muitos todos,
gostavam mesmos daquelas covocas. Que e que ele
ia fazer? Ossenhor diga ... Amem que, urubu, de
seu de si, nao arruma perjuizo p'ra ninguem, mais
menos p'ra ele, que nao tinha criacao nenhuma,
tinha so lavouras ... E 0Gorgulho calcava -com a
ponta da bengala em terra, e grave, de cabeca,
afirmava, atirmava.
o RECADO DO MORRO'" 33
Todo mesmo, percebeu comoreperguntavam, e
botousilencio, desengrayado com isso, nao enten-
dendo COIDO pessoas de tao alta distincao pudessem
perder seu interesse, em coisa. E so manso a manso
foi que Pedro Or6sio e frei Sinfrao conseguiram tirar
dele noticia daqueles passaros, 0geral deles.
Assaz quase milhares. Que passam tempo em
enorrnes voos por cima do mundo, como por cima
de urn deserto, porque so estao vendo o seu de-
comer. Por isso, despois, precisam de um lugar
sinaladamente, que pequeno seja. Para eles , ali era 0
mais retirado que tinham, fim-de-mundo, cafund6,
ninpuern vinha bulir em seus avos. -~ "Arubu tirou
heranca de alegre-tristonho ... "Tinha hora, subiam
no ar, urn chamava os outros, batiam asa, escure-
dam 0 recanto. Algum ficava quieto; descansando
suas penas, 0 que costuravam em si, corn agulha
e linha preta, pareda. Careca ,-- mesmo a cabe-
<;ae 0 pescoqo sao pardos. Mas, bern antes, todos
estavam ali, de patuleia, ocasioes de acasalar. Os
urubus, scm chapeu, e dansam seu baile. Quando e
de namoro, urn figurado de dansa, de pernas moles,
despes, desesticados como de urn chao queimante,
num rebambejo assoprado, de quem estaria porse
afogar no meio do ar. Ou entao, pousados, muito
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.3 4- ·0[o 0 G u ~M·A R A f ~ Ro s I\.
existentes.todos rodeados. Pretos,daquele preto
de dar einzas, umpreto que se esburacae que rouba
alguma coisade vida dos olhos da gente. A chibanca,
de quando vinham. Chegavam no sol-se-por.Vinham
magros, vinhanf gordos ... Botavam seus ovos, sem
ninho nenhum, nossolapos, nas grotas, nas rachas
altas dos barrancos, nos buracoes, nas arvores do
mato Iajeiro. Cada precipicio estava eheio de nichos,
dentro eles ehocavam, punham para fora as cabecas e
os pescoyos, pretos, de latao. Era ate urgente, como
espiavam pra urn e pra outro lado. Dai, tiravam os
filhotes. Entao, f'cdiam multo, os lugares.Cada par
comseus dois filhos, danados de bonitinhos, primei-
ro eram plumosos, branquinhos de algodao, por logo
lam ficando Iilas. Quando viam a gente, gomitavam:
~ "Arubu pequeno rumita 0tempo todo, toda a
vida ... " Tambem e dessa feiyao assim que pai e mae
botam comida no bico de cada urn. Eh, arubuzinho
pia como pinto novo: pintos pios ...
Sc nao tinha me do de serem tantos, e ali encos-
tados? Ah, nao, ch, eles tambem tern ate regra: uns
castigam os outros. Dao paneada, dao urn assorto
de guincho, de repreensao. Eh, e urn reino deles.
Tal que, ali no esconso , uns podiam se apartar para
morrer, morriam rnocos, morriam velhos, doenca
o RECA.DO DO MORRO • 3~·
mereciam? Uns cscondiam os pes, clams, e abriam
as asas, lam eneostando as asas, no chao, tempo-
de-chuva chovia em cima, urubu virava monturo,
se acabava, quase... Mais morre, ou nao morre?
~_ "Eu nunca vi arubu morto ... Eu nunca vi arubu
morro ... "
E se tinha, se era verdade, urn urubu todinho
branco, sempre escondido pclos outros, mas que
produzia as ordens? Nao, disso 0Gorgulho nunca
tinha vislu.mbrado. Pudesse em haver, so se sendo
o capeta ... Tcsconjurava. E a fala deles, uns com
os outros? Conversavam? 0seu Malaquias enten-
dia? () Gorgulho mais se endireitava, cismado; sua
cara era tao suja, sarrosa. Que nao nem que sim:
nunca tinha vislumbrado. Mas falava. Pela feitura,
talvez ele nao pudesse ter toda a mao em seu dizer,
porquanto tanto esforco punha em nao bambear 0
corpo. Se esdruxulou:
~ "Vao pelos mortos ... Oficio deles, Vao pelos
mortos ... Dar em vante. Este morro e born de ven-
to ... Eu sou velho daqui, bruaca velha daqui. A fui
morar la, rna de me governar sozinho. Tenho nada
com arubu, nao. Assituamento deles. Por este e este
cotovelol Vossernece ossenhor sabe. Careco de ir
dereitamente, levar conselho de conigimento p'ra
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meu irmao Zaquia, Por conta de coisa que se diz,
que ele cluer se casar. ;rira meu assossego. Careco de
desdizer que nao case. Ta Irouxo de juizo?Viagem
desta muito me cansa, estou de grandes dias, fora de
forya, maItreito. 56 por ele ser 0rneu irrnao, rnais,J'
novo. Arreside Com ruins vizinhos perto, aprende
o mal, ideias, Se casa, casa scm rneu agrado: seu
quis, sen seja ... Vou indo de forasta, tendo minhas
obriga<;:oes, e, dai, aquele Morro ainda vern gritar
recado?! Quer falar, fala: nao escuto. Tenho minhas
amarguras ... "
o Gorgulho, como arrastava as palavras, aoparecer de se esquecia, num costume de quem rno-
rava sozinho e sozinho necessitasse de falar. E, nesse
eomenos, Pedro Or6sio entrava repcntino num
imaginamento: urna vontade de, voltando em seus
Gerais, pisado 0 de la , ficar pennanecente, para os
anos dos dias. Arranjava uns alqueires de mato, roca-
va, plantava0
bonito arroz, urn feijaozinho. Secasavacom uma moca boa, geralista pelo tambem, nunea
mais vinha ernbora ... Era uma vontade empurrada
ligeiro, uma saudadea ser cumprida. Mas pouco
durou seu dar de asas,porque a cabeya nao sustentou
dernora, se distraiu, eora9ao fieou batendo somente.
Pequenino, Urn resto de tristeza se queixando por
o RECADO DO MORRO 0
37
dentro, de transmusica. Ali0riachinho, por pontas
de pedras, parecia correr defugido, branquinho com
uma porcao de pes. Suaves aguas. Da gameleira, 0
passarim ,superlim. E, longe, piava outro passarinho
_.- urn sern nome que se saiba --- 0que canta a toda
essa hora do dia, nas ar vores do r'ibeirao: --~-"Toma-
a-benfao-ao-seu-ti-f-o,joao! ... "
Mas, enquanto isso, seo Alquiste punha uma
atenc;ao agl~da, quase angustiada, nas palavras do
Gorgulho -- frei Sinfrao e seo J ujuea se admiravam:
como tinha de podido saber que agora justamente
o Gorgulho estava recontando a doidice aquela, de
ter eseutado 0Morro gritar? Pois falava:
-~ Que que disse? DeI-rei, 6, demo! Ma-hora,
esse Morro, asparo, so se e de satanaz, hoi Pois-olhe-
que, vir gritar recado assim, que ninguem nao pediu:
(;de tremer as peles ... Por mim, nao encomendei
aviso, nem quero ser favoroso ... Del-rei, del-rei,
que eu ca
eque nan arrecebo dessas conversas,
pelo similhante! Destine, quem rnarca e Deus, seus
Apostolosl E que toque de eaixa? E festa? S6 se for
mor te de alguem ... Morte a traicao, foi que ele
Morro disse. Com a caveira, de noire, feito Historia
Sagrada, del~rei, del-rei! ...
- "Vad?Faro?Pan?":»: e seo Alquiste se levan-
tava. -_. "Hom' est' diz xoiz" imm'portantl" ---- ele
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.3 - 8 • J o.A- 0 G U [ M II R A. E.s R 0 S ,,\
falou,brumbrum. S6.se pelo acalor. de voz do Gor-
gulho de pressentia. E ate se esqueceu, no afa, deu
apressadas frases ao Gorgulho, naque1a lingua sem
as possihilidades. 0 Gorgulho meio se arregalou, e
defastou urn pl'isso. Mas se via que algum entendi-
mento, como que de palpite, esteve correndo entre
ele e 0estranjo: porque ele ao de leve sorriu, e Ioi a
unica vez que mostrou urn sorriso , naquele dia. Os
dois seremiravam. SeoOlquiste reconheceu que nao
podia; e olhou para frei Sinfrao. -- "Chois' muit'
imm'portant?" ..-.- indagou.
Nao, nao era nada importante, 0frade explicou,
o quanto pode. No mais, que 0Gorgulho disse, que
foi breve, se repetia menos mesmo, continuativo,
nao havia pOl' onde se acertar. -_- " E do airado ... "
-- disse seo Jujuca. Nem eram coisas do mundo
entendivel. De certo 0Goraulho por sua maniab ,
estava transferindo as palavras. Mais achou, como
de relance, que seo Alguiste era capaz de pegar 0
sentido escogitado; e entao afiou boca. Mas, nesse
afogo, falando rnuito depressa, embrulhava tudo.riao
vencia se desembargar. S6 Pedro Orosio asvezes ca-
piscava, e reproduzia para frei Sinfrao, que repassava
revestido p'ra seo Olquiste. E seo Jujuca tambem
auxiliava de falar estrangeiro com frei Sinfrao -_. mas
ORE C A f) 0 D 0 i\"l. 0 R R 0 .e 39
era vagaroso e noutra toada diferente de linguagem,
issose notava. Mas,depois, todaa.resposta de seo
Alquiste retornava, via 0frade e Pe-Boi. Por tanto,
todos entao estavam nervosos, detanta conconversa.
E 0Ivo, que no meio daquilo era 0sem-prestimo,
glosou qualquer tolice -- nem era chacota -, e0
Gorgulho expeliu nele urn olhar de grandes raivas;
e dai esbarrou: quis nao falar mais nada nao.,
Ao fim de tanto transtorno, 0 rosto de seo Al-
quiste se ensombreceu, .meio em decepcao; e de
desistiu, foi se sentar outra vez no pedaco de pedra,
56 se ouvia 0resumo de uma mosca-verde, que pas-
sava; 0tertere dos anirnais boqueando seu capim; e
o avexo em chupo do riachim, que estarao frigindo.
Tambem 0passaro da copa da gameleira fufiou. E0
outro, 0passarinho anonimo, 1aem baixo, no morro
de arvores pretas do ribeirao: Toma-a-bencdo-ao-
seu-ti-lo.Lo-aol 0 resto era 0 calado das pedras, das
plantas bravas qlJecrescem tao demorosas, e do ceu e
do chao, em seus lugares. 0 Gorgulho riscava 0ter-
reno com a bengala; pigarreou, e perguntoll se seo
Olquiste nao seriaalgum bispo de outras comarcas,
de longes usancas, vestido assim de cidadao?
Mas seo Alquiste pegava no lapis e na caderne-
ta, para lancar os assuntos diversos, Do Gorgulho
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40 -. J 0, k 0 ',G U tM A oR PI . E S : R 0 S A
ningwhn queria escarnir, mas todos estavam risaos,
porqueele tinhaquebrado seu encanto, agora chega
caceteava. Aide mesmo devia de ter sentido isso, ou
notou que a tempo do sol iaavancando, Caso que
tirou 0chapeu e bferton as despedidas: care cia de
segnir, alcancar de noitinha no seu ir-mao Zaquias.
---"Ver 0outro espeleu, em sua outra espelun-
ca... "_ 0frade pronunciou. Eo Gorgulho pensou
que era algum abencoado, e fez 0em-nome-do-
padre. Sea Olquiste enfioua mao no .bolso, tirou
a carteira de dinheiro. --- "Olhe, que de vai nao
aceitar, com ma-criacao!" _ seo Jujuca observou.
Mas, jeito nenhum: 0Gorgulho bern recebeu anota,
nao-sei-de-quantos mil-rei», bem a dobrou dobra-
dinho, bem melhor guardou, no fundo da algibeira.
"0 dA bA
I I "-ens vos e a oa paga, pOl' esta esportu a...
-- disse merce.
A termo que, depois de outra reverencia, deles
sequitou, subindo par urn sernideiro, caminhando
sem se voltar, firme com 0 alecrim. A formiga, su-
miu-se na ladeira, tapado pOl' uma aresta de rocha
e urn gravata _ panoplia de muitas espadas presas
pelos punhos. Ainda tornou a aparecer, um instante,
escuro como urn gregotim, que muito sol alumiava,
no patamar da serra, E, de vez, se foi.
o RECADO DO MORRO ·41
Trastanto, set>Olquiste se estendeu nos pelegos,
para sestear, segundo uso. 0 .frade desembolsou 0
rosario, tecendo uma pouca de reza, ali na borda
do riacho, cuja agua, alegrinhaem frio, nao espera
pOl'ninguem.----- "Voce sabe 6 que 0Ingar aqui esta
aconselhando, 6 Pedro ?"--- ele pas. _- "Pais para
fazer arrependimento dos pecados, p'ra se confes-
sar. .. Hemr Voce esta recordado do catecismo? .. "
Frei Sinfraose faziamuito ao gracejar com a gente,
dava gosto. Rezava como se estivesse debulhando
milho em paiol , ou rocando mato. Aquele exemplo
aumentava qualquer fe. 0Ivo tinha botaclo as gar-
rafas de cerveja debaixo da correnteza d' agua, para
refrescarem; entre uma oracao e outra, frei Sinfrao
bebia um copo cheio.
Mas, porque havia de ter ameacado com aquilo,
de contricao e conlissao? Pe-Boi restava perturbado,
seu pensamento desobedecia ..Aquela hora, nem
que quisesse, nao podia dar balance em pecados
nenhuns. Frei Sinfrao podia tel' comecado pelo Iva.
o Ivo que nao perdia vaza de adular: fora cortar
capim para calcar par baixo dos pelegos, sempre
na esperanqa de que seo Alquiste ao fim 0gratifi-
casse com bom dinheiro, -- "Voce nao quer confes-
sar com 0 frei, por absolvicao, hem Iva?" "-- Ara,
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4.2 • J . Q.·.A_, ·o ·G U: I·M A RAE S R () S A
t ... d "ou.asorc ens ... ----':-~"<Ivo .respondia. Abem dizer
1 - I '
e e nao era rna pessoa. Ia cuidar dos cavalos.
E Pedro Orosio nao podia parar quieto. 0 es-
tatutode seu corpo requeria sempre movimentos:
tinha de estar;,trabalhando, ou caminhando, au
ca9~n~0 como se divertir, Seo Jujuca tinha pegado
o binoculo do outro, e vinha ate ao tim do lanc;o da
escarpa-- onde razoavel tempo esteve apreciando:
no co~ao, uma boiada branca espalhada no pasto.
P~,ra~l,a gente avistava mais trilhos-de~vaca do que
veiazinhas nas orelhas de urn coelho N . d' ,10macro 0
ceu, seria born passar 0dedo.-- "Voce entendeu al-guma coisa da estoria do Gorgulho, ei Pedro?" "-~-A
pois, entendi nao senhor, seo Jujuca. Maluqueiras ... "
Claro que era poetage E, J .. , m. seo uJuca emprestava
a Pedro Orosio 0 binoculo, para uma espiada, Ele
havia a linha das serras desigualadas a toda I ., onjura,
as pontas dos morros pondo 0 ceu ferido e bai xo.
Olhou, urn tanto. Depois, esbarrado assim, sem que-
fazer, sem ser para prosear ou dormir, desnorteava.
Praz:ive~ era se estivesse com companheiros, jogar
uma mao de truque. 0riachinho, revirando, todo
se cuspia. E foi contentamento para Pedro Orosio,
quando se arrurnaram para continuar de seguida.
E, indo des pelo caminho, duradamente se
avistava 0 Morro da Caroa, sobressainte. 0 qual
o HECADO D) MORRO "'43
comentaram. Pedro Orosio bern sabia dele, de ouvir
o que diziam os boiadeiros. Esses, que tocavam com
boiaelas do Sertao, vinham do rurno ela Pirapora,
contavam --- que, por eliase dias, caceteava enxer-
gar aquele Morro: que sempre clavaar de estar num
mesmo lugar, sem se aluir, parecia que a viagem nao
progredia de render, a presenc;a igual do Morro era
o que mais cansava.
E voltou a mente 0 querer se deixar ficar [a,
em seus Gerais, nao havia de faltar onde plantar ameia, uma terreola; era um born pressentimento.
Mas logo a ideia raleou e se dispersou --- ele nao
tinha passado pOI'estreitez de dissabor ou sotrimen-
to nenhum , capaz de impor saudades. Assim, era
como se minguasse terra, para dar sustento aquela
semen tezinha.
Agora estavam torando para a fazenda do Jove,
pOI' pernoite. Depois, desde a manha seguinte,
sempre para 0norte, H onde agora se fechava um
falso-horizonte de nuvens, a sobre. Caminhar era
proveitoso. Aqui, c a arras, os outros conversavam e
riam ~ seo Alquistee frei Sinfrao cantavam canti-
gas com rompante, na lingua de outras terras,que
nao se entendia; seo Jujuca acompanhava-os. Enin-
guem se lembrou nem disse rnais do Gorgulho,nem
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44 - I J 0 A 0 G U I MAR A E S R -o S ~ '\
da serra que Bcou li.l::u:deava, quando chegaram no
Jove, a casa de {rente dada para urna Iagoa. Marre-
cos voavam pretos para 0ceu vermelho. que vao se
guardar junto com 0sol.
Adiante, hcnfve dias e dias, dado resurno.
A onde queriam chegar, ate Iichegaram, a co-
mitiva, em fins.
Mas, quando vinham vindo, terminando a torna-• • I I 1 Jvlagem, ja 0ceu ue todas as partes se enfumac;:ava
cinzento, por conta das muitas queimadas que nas
encostas lavravam. 0 sol a tarde era uma bola car-
mesim, em liso, nao obumbrante_ A barba do Ivo
igualava, apontando cavanhaque em feio corneco.
E Pedro Orosio, espiando no espelhinho, se achava
meio carecido de cortar 0 cabelo, que pOl' sobre as
orelhas caracolava.
Variavam aIgum trajeto, a mol' evitavam agora os
espinhacos dos morros, por causa do frio do vento
-- castigo de ventanias que nessa curva do ano
rodam da Serra Geral. Mas quase todas as mesmas,
que na ida, eram as moradias que procuravam, para
hospedagem de janta ou almo~~o, ou em que ficavam
de aposento. As quais, so] a sol e val a val, mapeadas
por modos e caminhos tortos, nas principals tinham
sido, rol: a do Jove, entre 0 Ribeirao Maquine e 0
o RECADO DO MORRO ~45
Rio das Pedras--- fazenda com espayo de casarao
e sobrefartura; a dona Vininha, aprazivel , ao pe da
Serra do Boiadeiro ------ai Pedro Orosio principiou
namoro com uma rapariga de muito quilate, por
seus escolhidos olhos e sua fina alvura; 0NhS Herme s ,
a beira do Corrego da Capivara ---~-----nde acharam
noticias do mundo, por meio de jornais antigos e seo
Jujuca fechou compra de cinquenta novilhos curra-
leiros; a Nha Se lena, na ponta da Serra de Santa Rita
-~ onde teve uma festinha e frei Sinfrao disse duas
missas, conf:essou mais de umas duzias de pessoas;
o Marc iano , na fralda da Serra do Repartimento, seu
contraforte de mais cabo, mediando da cabeceira do
Correzo da Onca para a do Con-ego do Medo Ii
o Pedro quase teve de aceitar malajuizada briga com
urn campeiro morro-verrnelhano; e, assaz, passado 0
Sao Francisco, 0Apolinario, na vertente do Formoso
-- ali ja cram os campos-gerais, dentro do sol.
Medido, Pedro Orosio guardara razao de orgu-
Iho, de vel' 0alto valor com quc seo Alquiste con-
templara 0 seu pais natalicio: 0 chapadao de chao
verrnelho, desrcgral, 0 frondoso cerrado escuro
feito urn mar de arvores, e os brilhos r isonhos na
grava da areia, 0ceu urn ser tfio de tao diferente
azul, que nao se acreditava, 0ar que suspendia toda
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46 " J () A 0 G U I M A I I . . . A E S R 0 S A
claridade, e OS brejos compridos desenrolados em
dobras de terreno montanho _. veredas de atoleiro
terrivel, com de Iado e lado 0enfile dos buritis, que
nem plantados drede pOl' maior mao: por entre
o voar de araras e papa.gaios, e no meio do gemer
das rolas e do assovio limpo e carinhoso dos sofres,
cada palmeira semelhando urn bem-querer, coroada
verde que rnais verde em todo 0verde, abrindo as
palmas numa ligeireza, como sois verdes ou estrelas,
de repente.
Ah, quern-sabe, trovejasse, se chovesse, como
lembrando longes tempos Pe-Boi talvez tivesse re-
pens ado mesrno sua ideia de parar para sempre por
la, e ficava. Mas, de assim, ali, a saudade nao tinha
presa, que ela e outro nome da agua da distancia
- se voava embora que nem passaro alvo acenando
asas pOI'cima de uma.lag6a secavel. Eo que ele mais
via era a pobreza de muitos, tanta mlngua, tantos
trabalhos e dificuldades. Ate lhe deu certa vontadc
de nao ver, de sair dali sem tardanca, .
Mesmo,senso reconhecia, no que estavam
praticando os tres donos viajantes. ~.- "Eu estou
em ferias, descanso ... " --- frei Sinfrao explicava.
E carregava pedras --- confessando, doutrinando,
pondo 0povo para rezar conjunto, onde estivessem,
o R:ECAUO DO MORRO 447
todas as noites; e terrninou uma novena no Marcia-
no, e ja na Nha Selena comecava outra. E seo Jujuca
aprendia tudo de seu interesse ~- tirava conversa
com os sitiantes e vaqueiros, ja tracava projeto de
arrendar par Ii urn quadradao de pastagens, que ali
terra e bezerros formavam maisemconta. E 0 seu
olquiste estudava 0que podia, escrevia amonte em
seus muitos cadernos, num Iugar recolheu a ossada
inteira limpa de uma anta-sapateira, noutro ganhou
uma pedra enfeitosa, em formato de Iundido e cores
de bronze, noutro comprou para S 1 urn couro de
dez metros de sucuri macha.--- "Cada urn e d6ido
de sua banda!" - definia 0 Ivo, a respeito, E em
combinavam no rir, Pedro Orosio e ele.
Porque, desde dias, estavam outra vez compa-
nheiros, a amizade concertara. Ao que 0lvo era
um rapaz correto, obsequioso. -- "Mal-entendido
que se deu, so ... Ma estoria, que um bom gole
bebido junto desmancha ... " Nisso que 0Ivo pelos
outros respondia tambem: 0Jovelino, 0Veneriano,
o Martinho, 0Helie Dias Nemes, 0Joao Lualino, 0
Z6 Azougue ...~ que, seainda estavam arredados,
ressabiando, no rumo nao queriam outra coisa senao
se reconciliar, Deixasse, que ele, Ivo, logo chegassem
de volta no arraial, arreunia todos, festejavam aspa-
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zes;~"O Nemestambe,m?!"- -Pe-Bot perguntou,
duvidoso, quase nao.crendo. - "Pois elel Voce vai
ver. No simpor mim, velho! ... "Eesse Ivoera urn
sujeito, de muita opiniao, clue teimava de cumprir
tudo 0que dava.anuncio de urn dia fazer, Por isso, 0
apelido dele, que tinha, era; "Cronico" - (do qual
nao gostava). Agora, que vinham seaproximando
de final, os agrados dele aumentavam. Adquiriu
uma garrafa de cachaca, deviam de beber, os dois,
dum eopo so. E estendeu a mao, numa seriedade
1 1 "'T" "\I" "'T" I"D' .ea ; .~. !Oques (. -- lOques. OlS almgos se
entendiam.
Isso foi no Nha Hermes. De Ia ate a dona Vini-
nha, era urn transvale com cerradao de altas arvores ,
o que enjoava. Mas, lisas, no meio daquilo, as vezes
umas varzeas de brejo, verdoengas, feito recantos
oasis. Touros mais suas vacas se viam, pastando num
ponto 01.1 noutro, A toda hora urn gaviao voante,
sempre gavioes, sempre 0brado: pinh'nh!! E, como
chegaram tarde-noite na dona Vininha, Pedro Oro-
sio nao pade ver aquela moca de finos oIhos.
Mas bern veio que, redespertos, ao outro dia, se
achavam todos no alpendre da Fazenda, de I a esti-
mavarn 0movimento da tiracao de leite no curral, e
mesmo 0estilodo tempo, pois fazia uma viva manha
de amarelo em branco.
ORE CAD 0 DO M 0 R R0 '" 49
Ali era uma varanda abastante extensa. Seo
Olquiste, {rei Sinfrao e seo Jujuca formavam roda
com a dona Vininha e seu Nh6to, rnarido dela. Por
quanto, em outra ponta, PedroOrosio, conversava
com 0menino joaozezim _.- a meio de saber noti-
cia daquela moeinha completa, cujo nome dela era
Nhazita. Pedro Orosio podia notal' -~ e ate, sem
nada dizer, nisso achava certa graya ~ ..que 0 Ivo se
desgostava; serio, de que ele caprichasse tanto inte-
resse nessas namoracoes, - "Descaminha filha-dos-
outros nao,meu amigo!"- 0 Ivo cochichava, pelo
menino joaozezim nao ouvir, Ao que esse menino
Joaozezim era urn caxinguele de ladino: pis cava os
olhinhos, arregalava os olhos, de bonitas crescidas
pestanas, e divisava a gente de cima a fundo, nada
nao perdia. Pena era que a mOya Nhazita, segundo
se sabia agora, ali nao estivesse mais. Tinha passado
por la , com 0 pai, s6 de vinda da casinha deIes,no
Morro da Cachaca, e indo para 0lugar conominado
Osorio de Almeida, beira de estrada-de-Ierro. E essa
moca era noiva -- 0 noivo estava par mais urn ana
no Curvelo, purgando por crime, prisioneiro de
prjsao. Pareee que se chamava Jose Antonio.
Desde isso, porem , veio ehegando, saco bern
mal-cheio as costas e roupinha brim amarelo de
o RI~CADO n o MORRO· SO l
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paleto ccalca, umcamarada .muito comprido; rna-
grelo, com cara de sandeu·-~custoso mesmo se
acer tar alguma ideia de donde, que calcanhar-do-
judas, urn sujeito sambanga assim pudesse ter sido
produzido. 0 pal~to era tao grande que nao se aca-
bava, abotoados tantos.botoes, mas a calyachegava
so, estreitinha, pela meia-canela. Os pes tambern
marcavam por descomuns no comprimento, calca-
dos com umas alpercatas floreadas, de sola do sertao.
Ao que, com tudo isso, prasapio assim, mas de era
dos desses vaidosos. Caminhava com defeitos, e, das
pernas ao pesco<;:o, se alceava em tres cur vas , como
devia de ser uma cobra em pe. Viu urn banco vazio,
e confiou 0 corpo as nadegas. Nao cumprimentara
ninguern. Mas todo se ria, fechava nunca a boca.
- ~ E 0Catraz! --. 0menino Joaozezim logo
disse.~Apdido dele e Qualhacoco, Mas, fala nao,
que ele da odio ... Ele cursa aqui. E boco.
o Catraz tinha 'linda berganhar milho por fuba,
condizia 0conteudo do saco. Mas nao mostrava
nenhuma pressa. Ver tanta gente reunida, para de
mudava as felicidades. ~~. "A-ha~ha ... Pessoas de
criacao ... ".- ele disse, espiando os viajantes. ---~"0
Catraz, conta alguma novidade! Voce viu 0arioplae?"
" A pois, inda ontem , ele torou avoando p'ra a
banda de baixo ... Passarao de pescoyo duro ... "Mais
o menino Joaozezim perguntava: ~~ "E a mo<;a da fo-
lhinha, CatrazrVoce guardou?"~-·; qual era uma es-
tampa de calendario de parede, a figura de uma moca
civilizada, com um colar de sete voltas, 0Catraz pelo
retrato pegara paixao, e tanto pedira, tinham dado
a ele. _- "Ha-de, ha-de, que esta la o Fremosural ...
Ah, s6, a mo de coisa que ela e tabaquista, e ficou
com aquela pintinha preta de rape, na cam ... Ainda,
ainda, que eu conseguisse de casar com cia, ah, ah .
Fiz promessa de nao casar com mulher feiosa "
o Catraz suspirava com 0saco. -- "Mal que foram
contar pra 0 meu irmao Malaguia que eu estava
tratando casorio ... Meu irmao Malaquia entonces
veio me ver, de passar pito. Ele e casmurro , e muito
apichicado ... Malaquia me apertou, ei, tive de dar
juramento, de ao menos nao me casar nesses prazos
de clez anos, A escapula que tive, Me vali com aguas
"ornas ...
_~_ "Este Catraz tern urn dinheirinho. EIe ate
engorcla porco ... " ~~ alguem dizendo. Mas Pedro
Orosio disfarcara e saira a chamar seo [ujuca, 0
frade, seo Alquiste: estava ali 0 irrnao do Gorgulho,
e tambem grotesco. Aqueles acorreram. Explicaclo,
seo Olquiste exclamouzao: -~- Yppetst! E 0Catraz,
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52 ·R J 0 .i\ 0 G u r 1 ' . 1 A 'R Ii: E S R 0 S A
falanfao, naose acanhaya com as altas presen~as,
antes continuava a esparolar, se dando a todos os
desfrutes.
..- "Vamos ver esse milho, 0 Catraz. Despeja 0
saco " ~..~ diss{"eo Nhoto, pegando uma medida
de cinco litros e erguendo a tampa da tulha de ma-
deira, que era ali rnesmo, de duas partes, uma com
milho, a outra repleta de fuba rosado. Entre tudo,
atento a medicao, 0 Catraz se [astimava: ~- "Aqui
me valha, ossenhor seu Nhoto, ossenhor homem
dinheiroso! ".; ..suplicando que 0 fazendeiro encal-
casse cada mancheia de fuba, a mais caber, e ao fim
deixasse ainda alto 0 cogulo, scm 0 rasourar com
a borda da mao. Pobre triste diabo risonho, desse
Catraz. Mas seu Nhoto cedia em sobreencher a vasi-
lha, para 0alegrar .. -~ "Ah, exatosl Ah, bern medido,
mesmo ... " .-~ de se balancava. Ai abria a boca do
saco, recebendo seu fuba, e logo a amarrava bern,
com tres nos de embira.
A tao, de respondia e proseava, lesto na loque-
lao Arenas, nada conseguia relatar da lapinha onde
morava, agenciada no mineral branco, entre plantas
escalantes, debaixo do mato das pedreiras, Visfvel
rnesmo se admirava de que especulassem de a saber,
dessem importancia ao que menos tinha. Por que
o !"l..ECA()() DO MORRO ""5·3
vivia hi dentro? Ara, causa do Malaquia, que tudo
aconselhava. E a lapa era de born agasalho. Bichos? A h ,
nao. So uns buracos, por onde entravam morcegos. E
.~ " " ho-d "t~ ..cocuruJao.,. ~ .....Eo moe o-nas-grutas ... -. rei
Sinfrao esclarecia. E 0Catraz 0Iitava, reverente,
c ord o, - . _.. "Ah, 1.1eu tenho de tudo. Ate banca de ca-
rapina ... "Que era verdade falou seu Nhoto. Esse
Catraz urn sujeito que nunca viu bonde ..... - mas
imaginava rnuitas invencoes, e movia tabuas a serrote
e martelo, para coisas de engenhosa fabrica. "0
antomovej.ihern, Catraz?""- Uxe, me falta e uma
tinta, p'ra mor de pintar ... Mais, pOl'o ras, de so anda
na descida, na subida e no plaine ainda nao e capaz
d d " "E r A A ' Z · · · · · . ' 7"e se 1'0 ar .. , ~- 0 carroco que avoa, se lqma.
" Vai vel', urn dia, inda apronto ... " Era para ele se
sentar nesse, na boleia: carecia de pegar duas duzias
de urubus, prendia as juntas deles adiente; entao,
levantava urn pedaco de carnica, na ponta duma vara
desgrayada de cornprida: os urubus voavam sempre
arras, em tal guisa, 0trern subia viajando no ar. , .
"E seu irrnao Gorgulho, s e Ziquia? Quantos
dias passou de hospede Ia em sua lapa?" "-- S6 uns
tres dias so. Transeunte. Dixe que, eu casar, cIe me
amaldicoa ... " , ,~- E 0 que mais, que de dizia e fa-
zia?""~· Dava todos os eonselhos. Ficava os tempos
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54 ,,_ o i\_ 0 G U·I M r\ R 1\ ); : s ·R 0 SA o R fi. CAD 0 T) 0 M 0 R RO· .. 5· 5
sentado de coc'ras, na beira da grota. Gosta mais de
sol do que jacare ... Mas escria pessoa, rneu irmao
. lh "" J I AC t ?"" Eh .! Oats ve 0... -- acare,o a raz. -- ,pOlS. "-
jacarefica de h i na moira, com seu olhao dcle?Tiro
em cabeca de jat:~re nao adianta nada ... "
Mas 0MaJaquia conversava com de coisas de
relighio, tambern. Tinha falado num lUgar, no lugar
muito estranho -- onde tem a tumba do Salomao:
quase que ningucm nao podia chegar ate h i. Recanto
Iimpo e fundo, entre desbarrancados, tao sumido que
parecia a gente estar vendo ali em sonho; e so com
umas palmeiras e urnas grandes pedras pretas; mas
o melhor era que 1<1em urubu nao tinha Iicenca de
if. ..-"A born, agora e que eu estou alembrado, vou
contar 0que foi que meu irrnao Malaquia dixe ... "
Mas, por essa altura, so 0menino joaozezim,
que se chegou mais para perto, era quem 0 ouvia.
- "Dixe que ia andando por urn caminho, rom-
pendo por espinhaco dessas serras ... " Porque seo
Jujuca se entendia com seu Nhoto, assunto dumas
vacas e novilhas - massa de negocio provavel. Frei
Sinfrao abrira obreviario e Iia suas rezas. 0 Ivo fora
ate la , no curral, sempre inquietamente. Dona Vi-
ninha entrava para a casa, decerto dar uma vista no
apreparo do almoco. Sco Olquiste agora desenhava
na caderneta as alpercatas do Catraz.era 0que de
portava demais imponente. E PedroOrosio mesmo
se esquecia, no meio-lembrar de uma coisa ou outra,
fora do que 0Catraz estivesse dizendo.
- " ... E urn morro, que tinha,gritou, enton-
ces, com de, agora nao sabe se foi mesmo p'ra ele
ouvir, se foi pra alguns dos outros. E que tinha uns
seis ou sete homens, pOI'tudo, caminhando mesmo
juntos, por. ali, naqueles altos ... E0morro gritou
foi que nem satanaz. Recado dele. Meu irrnao Ma-
laquia falou del-rei, de tremer peles, nao querendo
ser favoroso ... Que sorte de destino quem marca
e Deus, seus Ap6stolos, a toque de caixa da morte,
coisa de festa ... Era a Morte.Com a caveira, de
noite , feito Historia Sagrada ... Marte a traicao ,pelo semelhante. Malaquia dixe. AVirgem! Que e
que essa estoria de recado pode ser?! Malaquia meu
irrnao se esconjurou, recado que ninguern se sabe
di "e pe ru...
De repente, frei Sinfrao ergueu os olhos do
b .1. "\1, A I d Drevtarto: - oce como e que an a com eus,
meu filho?"- docernente perguntou ._--."Voce sabe
rezar?" "- Ah, isso, rezo. Rezo p'ra as almas, toda
noite, e de menha rezo p'ra mim ... Pego com Deus.
A gente semos as criacaozinhas dele, que nem as
1· h "a IIIias e as porcos ...
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~6 • j 0 A 0 G U I MAR II E S R 0 A
E 0Catraz botava osacoaoombro, se dispunha
a puxar embora.caminho de sua Iapa, lapinhaperto
pegada corn a Lapa do Breu, rumo a rumo corn a
Vaca-em-Pe, em partes terrentas de pedreiras e
rocha nua, num ponte diante do qual outra serra
vai Ingreme, talhada como urn queijo. Disseram-
lhe que retardasse urn pouco: aproveitasse cafe e
almoco. E de concordou, mas tinha apuro -- desceu
a escadinha da varanda, ebeirou a casa indo para a
porta da cozinha. Falando, perguntando, 0 rnenino
joaozezim 0acompanhou,
Assim. Tanto que almocararn, sua vez os viajantes
iam tambem partir. Nem viram mais 0Catraz, nele
nem pensavam. Ate certa distancia ate ao Pantano. ,
porem, em compensacao, teriarn outro companhei-
ro, da mesma vaza.
Esse urn ~- 0Guegue -- que outro nome nao tinha;
e nem precisava, 0 Guegue era 0bobo da Fazenda.
Retaco, grosso, mais para idose, e papudo -"- urn papaem tres bolas meando emendas, urn tanto de lado.
Nao tirava da cabeca urn velho chapeu-de-couro de
vaqueiro, preso por barboqueixo. Babava sempre um
pouco, nos cantos cia enorrne boca com um au dois
tocos amarelosde dentes. Uma faquinha, de nao es-
tando trabalhando, figurava com a dita namao. E tinha
intensas maneiras diversas de resmungar. Mas falava.
o RICADO 1)0 MORRO' 57
Ah, era urn especialmente, 0Guegue! --- dona
Vininha e seu Nhoto contavam, para se rir.Tratava
dos porcosde ceva, levava a comida doscamaradas na
roca, e cuidava acontento de todoservicode terreiro,
prestavamuito zelo. Derradeiro, a Lirina, filha de dona
Vininhae seu Nhhto, se casara, fora morarno Pantano,
dali a legua irnperteita, Quando se carecia, mandavam
la 0Guegue ~ com recados, ou doces, quitandas,
objetos de emprestimo. Principalmente, era de por-
tador de bilhetes, da mae ou da fiIha, rabiscados a.lapis
em quarto de folha de papel. Mais pois, de apreciava
tanto aquela viajinha, que, de aIgum tempo, os bilhetes
depois de lidos tinham de ser destruidos logo; por-
que, se nao lhe confiavam outros, 0Guegue apanhava
mesmo urn daqueles, ji bern velhos, e ia levando, 0
que produzia confusao. A outros lugares, 0Guegue
nem sempre sabia ir. Errava 0caminho sem erro, e se
desnorteava devagar.Levavarn-no a qualquer parte, e
recomendavam~Ihe que marcasse atencao, entao de ia
olhando os entressinados, forcejando pOl' guardar de
cor: onde tinha aquele burro pastando, mais adiante
tres montes de bosta de vaca, urn anu~branco chorro-
chorro-cantando no ramo de cambarba, uma galinha
ciscando com sua roda de pintinhos. Mas, quando
retornava, dias depois, se perdia, xingava a mae de
,SO J O A O GU1MARA1<:' Ros" o !l..ECADO DO MORRO ·59
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todo 0mundo .-.- porquE; nao achava rnais burrinho
pastador, nem trarnpa, nem passaro, nem galinha e
pintos. 0Guegueeraum hornem serio, racional.
Reconforme, viria junto 0 Guegue, pois passa-
yam pelo Pantano.El« devia de trazer urn boiao com
doce de limao em calda, mais urn bilhete para a NM
Lirina. E ja estavam arreando os cavalos, quando 0
Guegue aparecia, rico de seus movimentos sem-cen-
tro, saindo dos fundos de uma grave manha: tinha
estado a amarrar, por simpatia, urn barbante na cerca
da horta, para 0xuxu crescer depressa; ele estava
sempre querendo fazer alguma coisa de utilidade.
A mais, Iimpara, ja pronta, urna saboneteira, feita
da concha de um cagado. A bern dizer, seu trabalho
nisso fora longo esimples: pegara 0cagado na rede
do rego, matara-o a pontadas de faca no entre-casco,
depois 0colocara por cima de urn formigueiro - as
formiguinhas, devorando, consumiram 0 glude,
fabricaram a saboneteira, a qual ele presenteava ao
menino [oaozezim. Era s61avar, no rego -_- 0Cue-
gue vivia it sua beira, 0rego era 0rio dele.
Por modo, quem ia por atenyao no Guegue?
Quem, no menino Joaozezim? Onde foi assirn que
este ultimo achava de contar ao outro aquilo que ou-
vira e lhe soara tao importante por esquipatico , e
• I mais aceitaria de comentar. Nenhumque nmguem . ,_ . ' ,
d 1 T mbem por ardicao que trvesse, 0dos autos. a. .,
- J - I'm nao conferira 0 assunto commenmo oaozez ..
. .. . 1 siso desgostariam de se es-aqueles _-- que, pe o s ,
1 .- . nte 0 silencio que vern antes da per-c are eel , consoa .
, lados J - a estao nao-respondendo.gunta: e que, ca ,
__ ". ,.Urn morro, que mandou recado! Ele
1- Catraz o Qualhac6co -- . Esse Catraz, Qua-( isse, 0·,
lhacoco, qlJe mora na lapinha, foi no Salornao, ele
disse. ,_ E tinha sete homens la, com 0 irrnao dele,
ih d - tos pelos altos, .. Voce acredita?"camm an 0 jun ., .
·E . -. Jo-aozezim .primeiro quis olhar deo menmo "- b - 0o Guegue' nao podendo, por serpe-Clma para aIX .1 c ' _
- , acocorou e ficou agachado assrm, 0queno, entao se ,
" do para 0ar: pare cia urn pato branco.pescoyo estica .. A
I 'a So' the faltava crescer as orelhaso Guegue OUVI -
I 1 uito peludas, Babeava, mostrava ose avanca- as, m
dois cacos de dentes. E se ria.
_~_recadofoi este, voceescute certo: que era
. "\T ~ ,,.,be0que e rei? 0 que tern espada nao rei. .. voce sa
- c . - omprido e fino chama espada. Re-mao, urn racao c '. _ .
Ab 0 rei tremia as peles, nao quena serpete. om", r
f ' Disse que a sorte quem marca e Deus,avoroso. .
A I ,t 1 sEa Morte tocando caixa, naquelaseus pos 0o. , ~., ,
f. t A Morte com a caveira, de noite, na Festa. Ees a.
matou a traicao. --
o (l.ECADO DO MORRO II 6r
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60 0;. J 0 A 0 G u ~MAR A E S R 'O S A
omenino joaozezimfalava desapoderado, como
se tivesse aprendido s o na memoria 0ao-comprido
da conversa. Equeria uma confirrnacao de resposta,
saber do Gucgue. Mas, enquanto a esperava, nao
podia deixar de rriexer os Iabios, continuasse a re-
produzir tudo para si, num sussurro scm som.
Mas0Guegue nao sabia dar opiniao, apenas rept>
tia, alto, as palavras; e, no intervalo , imitava com 0
cochicho de beicos. Representando por gestos cada
verdadc que 0menino dizia: sungava asmaos a alturade urn homem, ao ouvir do rei; e apontava para 0
morro, e mostrava sere dedos pelos sete homens,
e alongava 0brace por diante, para ser a espada, e
formava cruz com dois dedos e beijava-a, ao nome de
Deus; e batia caixa com as rnaos na barriga, e com
uma carcta e um esconjuro figurava a aparicao da
Morte. Tudo, por seus meios, ell" recapitulava, e
pontuava cada estancia com um feio meio-guincho.
Mas Pedro Orosio , que via e ouvia e nao entendia,
achava-lhe muita (Jraca.b '
--Voce tem medo nao, Guegue?-- 0menino
joaozezim perguntava, ao cabo.
Entao 0Gucgue foi apanhar no telheiro do enge-
nho ()seu bom cacete, um calaboca, que levavapreso
debaixo do brace, mesmo quando carregando 0boiao
de d6ce e tocando pela estrada, com a pequena ca-
ravana, ape e as gingas, e resmungando 0resmungo
sibilado, para apar com Pedro Orosio, osdois a frente
de todos.
- Mais urn dia, rnano Pedro, a gente esta aqui
esta chegando ... - 0 Ivo observara.·~- Voce tern
o que fazer, por este restinho de semana?
__ Nenhum, nao. 0 trivial, vou ver'... Ta em
prazos de se rocar e encoivarar, ja principia 0tempo
d' a coclorniz cantar, querendo chuva ...
Oras, deixa! A gente carece de arrumar urn
pagode, com os companheiros, carece de se gastar
este dinheirinho tao ganho ...
Seguiam por terras convalares, na bacia do
Riacho Magro, sob 0palido ceu de agosto, fumacas
subindo para ele, de tantos pontos. Ai, quando che-
gavarn no topo de alguma ladeira e espiavam para
tras, la viam 0Morro da Garca so -.. seu agudo
vislumbre. Assim bordejavam alongados capoes, e
o mais era 0campo estragado, revestido de placas
de poeira. Va, a distancia, aquela sucessao de linhas,como 0 quadro se olerece e as serras se escrevem e
em azul se resolvem. A direita, porem, mais proxi-
mas as encostas das vertentes descobertas, a grossa, '-
corda de morros ~ ...sempre com as cstradinhas, as
62 "JO AO GtlIMAR,~ES RO$,~ o l-tECAI)O DO MORRO "6J
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trilhas escalavradas, OS cap~netes nas dobras, sempre
a sempre. Mesmo seo Jujuca sequeixava: -"Como e
que urn pode conhecer esses espig6es? E tudo igual,
c tudo igual ... E 0mesrno diflcil que se campear em
lugares de vargem,. :."
Frei Sinfrao rezava ou se queixava do rnau comedo
na sela. Seo Olquiste quase nao davamais ar de influen-
cia: por falta de pratica, ja se via que ele estava cansado
de viagern; e com soltura de disenteria, pelos bons de-
comer nas fazendas. 0jenipapeiro grande, na cur va
do Abelhciro, calvo de toda folha. Menos afastado,
trafegou urn carro-de-bois, cantando muito bonito,
grosso- devia de cstar com a roda bern apertada,
e 0eixo seria de madeira de itapicuru. Passon urn
casal de pica-pans, de pervoo, de belas cores. A gente
agora ouvia 0pipio seriado da codorna. Uma res veio
ate ca - urn boi pesado de ossos secos.
- Born rapaz, esse Pedro ... - dizia seo Ju-
Juca.
- Por uns assim, costumo rezar mais ... -~ frei
Sinfrao respondeu.
Mas seo Olquiste agora so dava atencao a aIgum
passaro. 0pitangui, escarlate, sangue-de-boi. Mes-
mo voava urn urubu-cacador, de asas preto e prata.
o mais eram joaos-de-barro, A viuvinha-do-brejo
tentava can tar melhor: 0macho se dihgindo a fe-mea, no apelo de reunir, Depois, vendo 0espiralar
de gavioes,soltou 0grito-pio de alarme.
E0Guegue a cacetadas matou umacobra vene-
""1.[ A f' . . . f" E Itnosa: - voce 01VIr,agora morre: . sevo avap ara
os ou t ros: - "Eh, cobra anda em toda parte ... "
-Olhao boiaol Olhao boiao, Guegue! --(de
depusera 0boiaono chao).
E Pedro Or6s10 se incomodou: tinham errado 0
caminho? POl' certo, alguma errata dera, havia mais
de hora-e-rneia caminhando, por uma estrada de
carros-de-bois e por fim de trilha em trilha, e nao
chegavam a fazendola do genro de dona Vininha. Per-
guntou ao Guegue, oGuegue demorou explicacao.
Que tinha favorccido essas voltas, de extravio, pelo
agrado de se pass ear, em tao prezadas condicoes. 0
que fosse urn tel' confianca em mandadeiro idiota!
Onde vinham parar era no rasa da Vargem~do-
Morro, seu paredao , e 0Sumidor do Sujo. Ali, re-
conhecia, aquele plaine pardo, poeirante, Iugar de
maIhador de gada selvagem, um ermo sem vivalma,
nem bananeiras, nem telhado de gente residindo
perto. Pastos do Modestine. S6 os grupos de gran-
des pedras, lajes amarelas, espalhadas. Urn cocho
o RECADO DO MORRO - 8 6 s '
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velho, abandonador.asombra de urn pau-d' 6leo. E,
asombra de uma faveira.e de umjacaranda-cabiuna,
a lagoinha de agua salgada e turva. Motivo desse
bebedouro, sempre rodeavam por Ia numerosas
manadas, e na c~sca das arvores havia riscas de
afio das pontas dos touros. Mas, aquela hora, so se
enxergava uma vaca, angulosa, mal podendo com
seus enormes chifres. Desde que cessou 0 pipar
de dois gavi6es que se libravam circunvoantes, no
silencio daquela solidao podia-so escutar 0 sol. Era
uma planicie morta, que ia vazia ate longe, na barra
escura do Capao-do-Gemido. Ca, no reconcavo cia
bocaina , a serra limitava urn quadrante, 0 paredao
arcade, uma ravina ,com sombrias bocas de grutas.
Trepava-se caminho acima, contornado, de desvio,
segurando no cipo-neyro e no cipo-escada, aprovei-
tando uma grota seca, muito funda e apertada, cheia
de calhaus. Quiseram ir acola, para ver, em certo
terraplem, um salto-d'agua, barbadinho, surtido da
pedra fonta e logo desapareeido em ocos, gologolao.
Mais urn cruzeiro em que 0raio desenhara a quei-
mado umas figuras bern repartidas, sobreditas como
milagrosas; Mas disseram a Pedro Orosio que os
esperasse, ficando vigiando os animais, e 0Gucgue,
porconta do boiao de dace.
Ficaram.
E entao grande foi 0susto dos dais, quando uma
voz solene e cavernosa proclamou de la, falafrio:
.-_._Bendito! que evem em nome em d'ho-
mem ...
Ai, viram. Quanda.o, donde viera a rna voz, se
soerguia do chao uma cabecona de gente. Era um
homem grenhudo, magro de morte, arregalado,
seus olhos espiando em zanga, requeimava. Deitado
debaixo duma paineira, espojado em dma do esterco
velho vacum, ele estava proposto de nu s6 tapado
nas partes, com urn pano de tanga. E assim tornoua arriar a cabeca e estirado de semelhante feiyao
continuou, por nao querer se levantar.
-- Bendito, quem envem em nomindome!
E solevava numa mao uma comprida cruz, de
varas amarradas a cipo --- brandia-a, com autorida-
de. Era urn doido. 0 Guegue nao lhe tirava de riba
as olhos, satisfeito, uma coisa de tanto feitio ele
jamais tinha avistado, POl'fim, se voltou para Pedro
Orosio, e perguntou:
- ~ E logro?
Mas foi 0proprio sujeito seminu do chao quem
entrou com a resposta:
~ E logro? E virtude? Em nome do Pai, do
Filho, do Espirito-Santo ~_ quem esta vos pergun-
." ... -.----." .. ~.~,~-~,,--_..~ . . . . : . . : . ;
66 - ] o· A . o G u r M A I I . . A T; S R 0 S Ao RJ,CADO DO MORRO ~ 67
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tando SOU eu, me declarern: voces dois sao criaturas,
ou sao figurados do Inimigo?l Entao, me sigam no
sinal sagrado f---- e tracou em testa e boca e peito
o cia Cruz. Pedro Orosio e 0 Guegue 0 imitaram ,
Jcom 0 que de pareceu se abrandar .. -- Se vos sois
anjos, mandados pelo Divino, para refrigerar minha
fe no duro da penitencia, dizeis! vos rogo, porque,
seforem, entao me levanto do estrume dos grandes
bichos do campo, limpo minha cara e meus cabelos,
e vos recebo ajoelhado, loas e salmos entoamos ...
Aceitou 0 que 0 Pedro Orosio disse: que era
apenas um sitiante cornum, com sua lavourinha
para tras da Serra do Cuba; e que ali 0 Guegue
era acostado na dona Vininha, fazenda do Boamor;
e que vinham transeuntes, jornaIados, service de
comitiva.
-- Faz mal nao. Bendito 0 que vern in nomine
Domine! ... Todo service pode ser de Deus, meus
filhos. Secorrijam! Ainda nao completei meus nove
dias de jejum e reforco, que vim preencher aqui
neste deserto, entre penhas e fragas brabas ... Mas
estou em acabamento -------epois-d' amanha tenho de
tornar a sail' pregando, pois 0 fim-do-mundo esta
apressado, nao dou por mais tres meses, se tanto. A
humanidade ve? Nao vel Nao sabe. Cada um agar-
rado com seus muitos pecados ... Mas hei de gritar
fOgo e chorar sangue, ate converter ao menos uma
boa partel Vao rezando, VaG rezando: VaG se conver-
tendo logo, pOl' si, pra me poupar trabalho ... Mas,
olhem 0Arcanjo! Silencio, ajoelhem ai em ponto,
I •rezem urn rosario ...
Edepos a cruz do lado do corpo, fechou os olhos,
as maos no peito, feito gente morta. Agente podia
admirar e achar .- que as delicias e que estavam
com ele,
Em seguimento disso, porern, Pedro Or6sio se
afastou, cacando urn Iugar melhor, para se sentar.
Por seguranc;:a, pegou 0boiao de dace das maos do
Guegue. Mas 0Guegue, se acocorando, nao queria
sail' da beira do outro. Pedro Orosio, ali perto uns
dez metros, de olho em ambos, para 0caso de ter de
moderar alguma malucagem, espantava os mosqui-
tos, enquanto escutasse qualquer alta conversacao.
Primeiro, 0Guegue se permanecia, temperado,
de certo repassava, descascava suas ideias, 1SS0 para
de sempre ainda mais dificil. Aquela vaca junqueira
se deitou, para remoer seus dentes. Amais, uma pe-
quena maloca de gada deu de aparecer ~-- um tourao
e umas novilhas, que de distancia espiavam -- que-
riam da agua da lag6inha. Se feriu, das brenhas da
6· 8 .I I : ! .J 0 A 0 G U 1M A. R ,~ES R 0 SA o RECAno DO MORRO " " 6 9
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encosta, urn rente grito: urn casal de maitacas saiu
pelo ar, A gente olhavapara 0 ceu, e esses urubus,
Vez em quando, batia 0vento -_ girava a poeira
brancada, feito moido de gesso ou rnais cinzenta,
dela se formam v6ltos de seres, que a peclra copia. 0
goro, 0onho e a saponho, 0 6sgo e0pitosgo, 0nha-a,
o zambezao, a quibungo-branco, 0 morcegaz, 0
regonguz, 0sobre-Iobo, 0monstro hornem.
o Guegue, por fim, perguntava:
--- Oce e da procissao? Vai dansar no Rosario?
A nhum? Mundo vai se acabar? Oce disse ... Oce
sabe?
--- Silencio, mais silencio! Me deixa, a hora e
de Deus. Nao embargando, voce e urn pobre filho
dele, se ve que tern 0 espirito simplorio ... Quer
ver 0fim do mundo? Que vern vindo redondando
ai, rodando feito pe-d'agua, de temporal e raios: os
querubins ja estao com as brasas bentas, arnontados
em seus trapes cavalos] Tu, treme ...
- Ue ... Como e que oce sabe? Oce e padrealgum?
- Enche tua boca de bosta, p'ra nao carecer
de blasfemarl Como que sei?Tu tambem vai saber,
refiro que nao seja tarde: assentado de dentro da
panda de breu, tu entao sabe ... Arrepende, treme
e reza, e te prostra, cara no chao, infieis publicano!
Olha a trombeta! De profundas, eu escuto: olha a
morte, atencao]
~-- Uai, entao e ! E que nem 0 Menino ...
---0menino? 0menino? De uns assim foi dito,
que entram no Reino-do-Ceu dansadamentc. , . Que
menino?
- A born, no Boamor: foi que 0Rei isso do
Menino -_ com espada na mao, tremia as peles, nao
queria ser favoroso. Chegou a Morte, com a caveira,
de noite, falou assombrando, Falou Ioi 0 Catraz,
Qualhac6co: 0da Lapinha ... Fez sinosaimao .. , Mas
com sete homens, caminhando pel as altos, disse que
a sorte quem marca e Deus, seus Doze Ap6stolos,
e a Marte batendo jongo de caixa, de noite, na festa,
feito Historia Sagrada ... Querendo matar a trai-<;:ao.. Catraz, 0 irrnao dum Malaquia ... Oce falou:
a caveira possui algum poder? Efim-do~mundo?
- Eo comeyo dele, e 0come90- alvorada de
toda a Gloria! Urn arcanjo sabe 0poder de palavras
que acaba de sair de tua boca ... Ajoelha, as gra9as,
ajoelha, ja!
o Guegue obedecia, se ajoelhava. Mas aquele
estapafurdio - 0 esturdio homem, pronto nu e
espichado no scm pre do chao, lazarado por seu
7 C -III J 0 ;; ._0- G U 1 MAR A :Es R 0 S A o RECADO DO MORRO "7]
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proprio querer, ali entre 0verde e 0preto do gado
solteiro do Modestino --- agora mandava que ele
botasse fora 0cacete. E 0Guegue hesitava,
_~m Se c vossa vez, encosta aqui comigo, para um
resto de jejum e l\efuissao aspra: que de hoje a dia-e-
meio podemos pegar este mundo pelas alcas ...
U e, eu nao posso. Tenho de levar recado
e boiao de dace, nha Dona Vininha mandou ...
Posse nao.
- Nao pode, pela salvacao dessa humanidade
sacana, em vesperas de inferno geral?J Que e de seu
companheiro?
- A , ali, atras do joao,
..._ Sursol Surge!
Mas 0homem se solevava e virava, via 0que via
atras da moita de mentrasto, e iracundo aborninou:
~----"Caifaz! Isso e direito? E respeito?! Raca de
viboras, cambada de pagaos, obrando! Te aparta,
maldito! Raca de viboras! ...
Nenhuma cortesia ou desculpa para de tinha
valor: se levantou de todo, sacudiu aquele corpo
mujo de magro e nuelo, segurou muito a cruz e foi
desertando,audaz, se caminhando para longe--- ain-
da prometia que ia para 0beira-rnato, prosseguir em
seu forte dever de penitenciacao. Ao gue bramava e
escarceava, semolhar para tras. Com uma gaforina
de cabelo assim , devia de ter ate piolho,
o Guegue queria ir tendo algum medo, acari-
nhava seu grande papo. Mas Pedro Orosio veio e lhe
entregou de novo 0 boiao de dace, sem parlandas.
Dava 0 vento, outra vez, suspendia maos daquela
esponjosa poeira, que tem gosto de agua de pote e
de comida cozinhada. Aquele lugar era muito feio.
- U e, uai, eh ... - 0 Guegue se manifestava.
- ... Homem zuretado! ... Sera que 0mundo
acaba?
Que nada e nao, assegurava Pedro Orosio. Aca-
bava nunca. E aquele inesperado homem era leso do
juizo, DO que dizia nao fazia razao, Ca, se tivesse 0
mundo de se acabar, outros, de mais poder e estudo,
era que antes haviam de obter sua noticia. E bem
veio que, pOl' essa altura, justa 0 pessoal estavam
retornando.
DaB sairarn , rearrumando rumo, modo de
conduzir 0Guegue ao Pantano, de nha Lirina e sio
Duque, seu marido. Constando que era uma bonita
fazenda branca, entre arvores; l a tomaram cafe com
biscoitos, e h1deixaram 0Guegue e 0boiao.
Daf, acima caminho, ainda Pedro Or6sio se
lembrou de dar parte ao frade do que no raso do
]2 o5IJO;\O GUIMARi\ES ROSAo RECADO D{) MORRO 073
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pronunciando brados do fim-do-mundo --~ estreito
prazo de tres meses ... Bomjdesse jeito, assim, nao
c vantagem: algum dia ele acerta ...
o velho Trontoio riu, de si, e se tocou avante,
lambando no cavalo baio a tala do chicote. Ao que
de era tic-avo de uma mocinha, das Iindas, cha-
mada Quiteria, ai Ribeirao-da-Onya abaixo. Born
homem.
-- "Sera que foi, a respeito de quem era clue voce
estava perguntando?" _- 0 Ivo qUlS se informar, ja no
Jove, depois que tinham jantado e faziam redondo
de conversas no patio da [rente, junto com algum
pessoal de h i.
"Fa1ando do Rosario, da festa ... "- Pe-Boi
preferiu atalhar, por preguiyas de depor a verdade,
tao tola.
_- Ah, pois isso, A festinha, vamos ter e no
Azevre, domingo de noite, na certa. Sem falta, voce
vem ... Alegria da palavra!
Nisso , outros vinham. Eram, ver e nao ver, 0
Joao Lualino e 0Veneriano - e nao despraziam de
se encontrar com ele, Pedro Or6s10, por contrario
riam amistosos, e se chegavam. -"Pois, ei ,Croni-
co ... Ei, Pel Salve essa bizarria ... " Saudavam com
palmadas de abraco. E0Ivo tomava a gerencia da
Modestino se passara, e 90 extraordinario daquele
homem por nu - 0Nomindome - ameacador de
tantas prosopopeias. Embora, ficou calado. Expor
tudo nao era convinhave], ele nao sabia facil passar
a ideia de como "tinha sido, e eles podiam fazer
maiores perguntas cansava sua cabeca distribuir
a pess6as cidadas um caso de tanto comprimento.
Guardou consigo. 56, ja quasc chegavam no Jove,
de tardinha, cruzou numa porteira com um velho,
das Lajes, um Torontonho ou Tororitoe, que vinha
ate no joao Salitreiro, comprar fogos para as festas
do Rosario. Tal veIho conhecia 0Nomindome: re-
portou que ele era d6ido varrido, mas tinha passado
bons anos no Serninario de Diamantina. Seu nome
em Deus, ninguem nao sabia, portanto. 56 era co-
nhecido por apelativo de Jubileu, ou Santos-Oleos,
- Faz tempo quc esse Santos-Oleos, ou Jubileu,
o que seja, que nao aparcce por arrabaldes. Ninpuern
sabe donde ele assiste, nao tem pouso nenhum. Vara
por este mundo todo: some daqui, vai se apresentar
jajao em longes beiradas, diz-se que testemunha
ate nos Fechos-do-Funil, numa tapera de capela,
em Oestes, mais 1ade la da capital do Estado ... De
uns dez anos que ele sobrevive as feitas carreiras,
d' acola p'r' alem, enfiando por dia muitos lugares, e
74 • J o A. 0 G U J MAR A E S R 0 S A o RECADO DO MORRO 07,)'
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conversa, avindadorqueria que todos rnais compa-
nheiros estivessem , fora de lembranca de qualquer
injuria passada. -- "A mais e a festa, hem, hem?"
" T" tei " 1 ' / . bi d» d- am elra. a com ma os ... --- respon iam.. . /
oVeneriano era um pre to jeitoso, impapavcl em
toda festanca, pelo que melhor dansava _ ..- nem
se imagina: mesmo com aqueles pes de inhauma,
dedoes abertos e enorrnes , e 0calcanhar muito
salientado, cabo de cacarola. 0 joao Lualino ,
pardaz, sempre muito luxo no vestir, botava ate
agua-de-cheiro na cabeca; diziam que era sujeito
muito mau, e sangrador, faquista. -"A ser, quand'
e que voces ficam forros de pajear essa gente de
ambulante?" -- 0Joao Lualino perguntou. Arre,
era amanha, estavam no arraial, de volta -_._0 Ivo
explicava.i--; "Eh, Cronh 'co -_._falava 0Veneriano
-: Voces foram arranjar urn carcamano mais es-
tranhavel. Hum, que zanza pOl' ai a garimpa, mo de
atestar amostra de pedrinhas e foIhas d' arvores ...
Que e que estara percurando, de verdade?" E 0
Lualino: - "Alto cidadao Vai ver, e cristaleiro,
mais safado que os outros Botar preso em cadeia,
mode se dizer de ser , . . " POl'urn meio-pensamen-
to, Pedro Orosio se comparava: aqueles pareciam
hom ens mais seguros de si, com muita capacidade.
Estavam rindo, falando por brincadeira, mas mes-
mo assim a gente via que, des, cada urn queria ser
sem chefe, scm obrigayao de respeito , alforriados
de qualquer regra. Talvez de, Pe-Boi, dava apreyO
demais aos patroes, resguardando a ordem, Ihe
faltava calor no sangue, para debicar e dizer ditos
maldosos. Outramente, admirava seu tanto a vivice
do Lualino, mesmo do Ivo Cr onico. Por rnais que
virasse e vivesse, eleficava diferente daqueles: era
sempre 0horn em dos campos-gerais, ser'io festivo
para se decidir, querendo bern a tudo, vagaroso.
Agora, tinha estado la, ate nas veredas do Apoli-
nario, onde papagaio bravo revoando passa, a qual-
quer parte do dia. Ao que fora, imapinando de ficar,
e nao tinha Iicado. Mesmo no momento, se queria
par a rumo 0pensamento, de [ernbranca de hi, nao
conseguia, sem sensatez, sem paz. Faltava a sauda-
de, de sope. Toda aquela viajada, uma coisa logo de-
pois de outra, entupia, entrincheirava; so no fim,
quando se chega em casa, de volta, 6 que urn pede Ii-
vrar a ideia do ernendado de passagens acontecidas.
Mais valia a boa amizade, companheiragem
- 0 Iva Cronico , 0 ]oao Lualino , 0 Vener ia-
no -- e a festa, pOl' ser, ja que ocasiao dela: nas
cafuas, perto de estradas, em casas quase de cada
7 6 O l o J O A O GUr!\1,"R.~FS ROSA o RECAI)O DO MORRO'" 77
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negro se ensaiava, tocando. caixas, com grande
ribombo. Agrado de festar, isso sim, as mocinhas
mocas, tinha desejos de umas.Ao depois, care cia de
retomar seu trabalho costumeiro, ir dando preparo
para 0plantio das'rocas, reconhecia falta dessa lida,
mesmo que nem igual de dorrnir, tomar cafe, comer
e beber. -~ "Ouve, Pedro: alern do que foi ajustado,
voce acha que eles vao gratificar a gente com mais
urn POllCO mais? Ah, 0carcamao de certo da, Ele e
frouxo de munheca ... " o Ivo, no fa.lar, pegara mao
no braco dele; 0 Ivo era amigo, supria confianca,
Pedia para ver a arrna: ~.- "Oi, Pe, essa sua garru~
cha e mesmo boa, mandaddra?" "--- Regularzim.
Tiver urn dinheiro, compro outra. Revolver, feito
" " A db" "0 csse seu... ~ ra, na a, ozoqe... Ivo lazia
questao de encarar bern a gente, com uma firrneza
de ser sincero, e falava falas de afeiyiio. Unico defei-
to dele era urn cismo destruido no jeito de olhar e
falar, parecendo coisa que estivesse reparando uma
A • t boi d "Ab A des VIS osa, urn 01 gor o.~ em, Pe, tu isse
que estava pensando em querer voltar p ' ra la, pra os
Gerais altos ... " 0 Ivo, falante assim , a gente tinha
urn gostinho de rebater os conselhos dele: - "A
ja , Cronhco velho, aquilo era aragem de fantasia
atoa, so. Eu fico, mas fico aqui mesmo ... "A mais,
outro gosto, de arreliar adiante 0amigo, que estava
sempre volteando e se queixando no mesmo assun-
to, de que ele Pedro devia de nao querer namorar
com as m09as todas, mas escolher uma, ou as duas
ou tres, s6, e deixar a cada urn outro a de amor de
cada urn: --- "Voce sabe, Cronhco, 0 remelhor e ir
namorando namoriscando, enquanto elas quiserem.
Mocidades ... " Entao 0Ivo arriava a crista, demu-
dava de conversacao. Ali no Jove tinha luz-eletrica,
o povo escutava radio, se ia dormir mais tardado. E
se cornia uma ceia boa: de sopa-de-batatinha com
bastante sal, com folha verde de eebola picada, e
broa de milho; depois, leite frio no prato fundo, com
queijo em pedacinhos e farinha-de-munho. Ca fora,
as estrelas belezavam, e a lua vinha subindo cedo,
ja bern: dali a uns tres dias, era 0dado da lua-cheia,
conforme se sabe.
De vez , ora assim foi que, no outro dia, em
vez de torarem para 0arraial, ainda inventaram de
enrolar caminho para as'Trairas, pOI' mostrar ao seu
Alquiste 0rio das Velhas ~ seus matos montoados,
suas belas varzeas, seus passaros vazanteiros. Urn
aborreeimento. Tino foi 0do frade, que disse nao
podia vadiar mais, se separou e desviajou deles. Seo
[ujuca determinou que, se 0Ivo quisesse, podia ir
o RECAlJO DO MORRO Ojl 79
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tambem, acompanhar frei Sinfrao, agora 0movi-
mento era mais resumido, tao perto. 0 Ivo nao quis
--- por esperanya de maior dinheiro, sarnava de ficar
ate ao fim. Pedro Or6sio mesmo, pelo sim pelo
certo, tratava de zd1ar mais agl'adador e prestativo.
Mas achava mais graqa nenhuma, no seo Olquiste,
sempre nas manias de remexer ever, e pel'guntar,
e tomar 0mundo por desenho e escr ito. 0 que, a
partir dali, esclarecia aos tantos seucoracao, era 0
palpite da festa. E foi 0 proprio Ivo que uma hora
careceu de ter mao nele: - "Modera essa influen-
cia, P c , que ainda nao e hoje. Mas vai ser festa p'ratoda a vida ... " E Pedro Or6sio, pelo que tinha de
esperar, repensava na Laura, filha do Timber to, do
Saco-do-Mato, e na Teresinha e na Joana Joaninha,
do arraial; e em todas. A-prazer-de que nao queria
deixar de pensar tambem na Maria Melissa, do
Cuba, por causa do Ivo ele sentia uma qualidade
de rernorso; descontente com isso, do Ivo mesmo
era que entao comeyava quase a tel' raiva. Andava,
d "M A I l' pA S I'n ava.~.. as voce e gera ista, e .... ua terra, a,
.. ' 'b ' bA
" " U I P' .u VI, e em que e oa... - rna osga ... OlSVal
'I' A P I -. dP ra a, voce. . . ra vel' como e que 0sertao e pat e
bom ... ""-- A bern, falei pOI' falar. Azanga comigo
nao, Pe ... "Ate escarmentava a paciencia da gente,
aquele lazer do Iyo. Ao que tinha interesse nenhum ,
de cabimento, aquela andacao, para deletrear ao seo
Alquiste os recantos do rio das Velhas. Poetagem.
o trivial estava indo, sem pior; mas 0que havia era
que a vida toda se retardava.
Ao em seguimento disso, s o na sexta-feira de
tardinha foi que chegaram no arraial, terrninada a
viajacao. Aquela hera mesma, Pedro Orosio e 0Ivo
tocaram suas pagas e agrados 0gratisdado, em
boas cedulas. "Gastar at6a, nao gasto. E baixo] Nem
entro em frojoca.,." -- Pedro se constou. -"Ain~
da, olha, amanha de noite e a festa, oe? Melhor a
gente ir junto, em az.ViTO,venho te buscar ... "-~ 0
I di A "U . "A' P 1 0"o lSpOS.----- ai, ara... 1, ec ro rosio passou
para a casa de seo TolendaI, que tinha venda. A ele
satisfez 0resto de urn as dividas, 0restante Ihe pediu
que guardasse. Cobre seu, nao-ve, era para bern-
baratar no justo e certo. E seoTolendal
entendido em confianca e inteligencia
homem
mandou
arrumar uma cama para 0 Pedro repousar aquela
noite. Dorrniu em born colchao com lencol e colcha,
em cima do balcao.
E faz e acontece que, sabado, de manha, cedinho
ate demais, 0povo todo morador naquela rua prin-
cipal teve de se acordar debaixo duma continuacao
80 .. J 0 A 0 G U I MAR A . E -S R 0 SAo RECADO DO MORitO I 8r
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de gritos grados, que naoachavam suspensao. Pedro
Orosio se levantou, abriu em fresta a porta da venda.
Que viu? Era 0homem doido ~ aquele Nomine-
domine! Em bern que ele aoora estava vestido deb '
algum jeito. E tinli'a enrolado uma ruma de panos
em cada pe, em guisa de servir de calcado: aquilo
pareda 0 sujeito pisando poeira enfiado em dois
travesseiroes, frouxoso. Estaferrno mesmo assim ,
Se via que de estava no ultimo ponto de escar-
nado, escaveirado, 0sol queimara aquela cara, de
descascar pele. Mas perdera a gaforina devia
de ter pedido a alguem para lhe rapar a cabeca. E
os olhos frechavam, resumode brasas. Dava pena.
De seguro, teria terminado 0 traquejo de jejum e
rezas no malhador de gado do raso do Modestim, e
nem esperara por mais nada, para executar 0danado
avanco, de deu em deu, em nome de Deus. S6 podia
ser que tivesse navegado a madrugada inteira, para
vir chegar agora a esta hora. Em algum sitio podia
ser que tivessem dado a ele urn cafe?
~ ... Sua pergunta e do rogo da fe, e nao da
carne, nao, moco. 0 senhor ehomern gentil, tern ga-
lardao!"fem galardao ... Mas eu sou 0zerinho zero,
malemal uma humilde criatura do Senhor: eu nem
sou aVoz... Vinde, povo: senvergonhas, pecadores,
homens e mulheres, todos. Todos eu amo, vim por
vosso service, Deus enviou par mim, ele rcqucr
o vosso remimento. Dele tenho 0praz-me. Olha 0
aviso: evem 0fim do mundo, em fogo, fOgo e fogo!
o mundo ja comecou a se acabar, e v6s semprando
na safadeza, na goiosa! Contraforma! Contraforma!
Olha 0enquanto-e-tcmpo ... Vamos, vamos: p'r' a
igreja! Todos me acompanhem. Aqui-del-papal
Aqui-del- presidentel
arava 0 passo, pernas tantas, ate cada £lm da rua, e
retornava, estroso, ardente, cachorro cacado, sete
folegos. Abria 0 peito: -- " ... E aVoz e 0Verbo ...
E aVoz e 0Verbo ... Arreunam , todos, e me escu-
tem, que 0Iim-do-mundo esta pendurando! Siso,
que minha predica e curta, tenho que muito ir e
converter ... "
Da casa-de-venda do Flor, do outro lado da
esquina, urn moco cometa se chegava a janela e
t ", r A I C . t tpergun ava: ~ voce e risto ,mesmo, ou e so Joao
Batista? .. "
E0vira-mundo malucal, que ja ia se afastado, se
revirou, rente, pOl'sobre 0descompasso de suas altas
pernas, que nem umas andas, e levantou os braces,
bern escancarados - feito precisasse de escorar a
qucda do ceu. E deu exclama:
- Bendito 0 que vern in nomine Domine! ...
82 °JOAO GUIMARAES ROS , i J . .o RECADO DO MORRO I 8].
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Desabalou de vez, olho da rua a longe,quase cor-
rendo, feito pulando reg~, tinha de alargar tambem
as pernas .. aqueles rolos de pano nos pes dele foi-
cavam porcao de poeira. Por um vago, a gente estre-
mecia, salteado d e f aflecho eomandante daquela voz,
que instava calafrios: quase que se ia aereditando. As
mulheres se benziam. Ai ja havia pessoas em prac;a
---- pois era vespera de festa, a arraial se apostava
com limpezas e arcos embandeirinhados, estando
cheio de forasteiros; par major, pretos. Outros, que
acordaram com a latomia do Nominedomine em seu
ir e desvir, durado em mais de quarto-de-hora, ja
tinham vestido roupa, e saiam como publico. Que
era que deviam de fazer? Ir chamar os frades? 0
doido, direto para a igreja do Rosario, era capaz de
obrar muitos desatinos. Devia-se de ir para h i. Pedro
Orosio tambern ja estava pronto, fora de portas.
Aquele dia-de-sabado principiava bem.
Ede repente 0sino do Rosario se tangeu - col
a col, cantarol. Ah, quem batia, sabia: tantoava em
repique e repinico, muito claro no bimbalho. Mas,
foj logo a forte, dez maos pelo badalo, pegon a be-
delengar a torto, dla e dlem, parecia querer romper
de vez a forma de seu caroyo dele. Virgem! -- 0
Nomined6mine tinha alcancado de chegar a torre,
a igreja estava entregue aos mascaras, carecia de a
pessoal todo do arraial correr para lao 0 hom em
dava rebate, rebimbo, dobra que redobrava, a tal.
Depois, perdia qualquer estilo. Era so aquela Furia:
dladlava, dlandoava, a sino tambem fer-via do [uizo l
Ora, a sinao do Rosario e reinol, de boa marca, bern
santificado: e sino de uma legua. A portanto, aquilo
bronze zoava fora de rol, transtornava a gente.Ago-
ra sim 0 Nomined6mine, Nomendome, Santos-"
Oleos ou Jubileu -----ele cujo tinha encontrado seu
poder de rachar os ouvidos do povo todo, em prol,
corn sua or itacao do fim do mundo. Corriarn parab '
1.1.Manejar errado com sino e neg6cio tenebroso.
E Pedro Orosio cor-ria mais na frente--- ele era
por longe 0 truculo de homem mais possante do
lugar, capaz de capaz. Para agarrar, seguro, braces e
pernas do desgraqado, e arretira-lo do santo assoa-
lho da igreja, e socar paz e sossego, a bern dos usos
da razao. Todos iam ficando por detras do Pedro.
- "Dit nele, Pel Senta a mao nesse desordeiro ...
Isso Ie pmo herege!" --~ uns gritavam, ja alegres,
assanhados. Eo sino feria, estalava facas no ar, feito
raios, Mas no plem dele se sentia uma alegriama-
luca e santa, rompendo salvacao, pelas altas g16rias.
A voz do Nominedornine, em seu desproposito de
84 0 : 1 ' J o i\ o G U l.M .\ It A E S R 0,0; A o RECADO DO M()RRO I'- 8 5 "
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urgente felicidade. A i, quando iam acabando de subir
a Iadeirinha, e chegando la~~- ele parou. Esbarrou
de tocar, de urn pronto curto, no coracao da gente,
que se tonteou. Como quando uma cigarra grallda
de dezembro esta ti'hindo muito perto, e acaba.
Na igreja, la estava ele, 0Santos-Oleos, junto
do altar-mer e virado para os fieis--- pois mesmo
aquela hora ja havia gentc ajoelhada em posto ---- as
velhas igrejeiras, umas velhas ou mesmo mocas,
cada qual com seu terce nosdedos, quase todas com
mantos na cabeca, seus fichus.
E pois, de pregava. Alargaya bravos altos, glo~
riava os olhos, santamentc, para cima, cruzes que a
mao sinalava no ar, administrava, Mas muito sacu-
dia as pernas, ligeiroso, 0pior era que a gente via
aqueles travesseiroes que ele calcava, parecia coisa
que estava maldansando.
A igreja agora estava cheia, de mulheres e ho-
mens, que escutavam aquietados. E ninpuem , nem
Pedro Orosio, nao tinha coragem de ir sojigar 0
homem dali, e 0 expulsar pra fora, so pelo tanto
que ele invocava 0 nome da Virgem e de Deus, e
po1'que tinham medo de produzir algum sac1'ilegio, .
no consagrado daquele recinto, estando 0Senhor no
Tabernaculo, Mas nada ou quase nada do que 0No-
mined6mine dava dc serrnao, se aproveitava. Que
o que ele dizia:
A s almas, meus irrnaosl 0 fim do mundo,
mesmo, ja comecou, pOl' longes ten-as. E vern vin-
do ... Olha os prazos!Vamos rezar, vamos esquentar,
vamos sed Bons jejuns ... Alerta-- as almas! ...
Daqui you, beijar 0 pe esquerdo e a mao direita de
Santa Manoelina dos Coqueiros. A data exata do
fim, Deus val me dizer e la na capelinha largada nos
campos, nos Fechos-do-Punil ... La nao me ouvem:
terra de um maltrata seu mensageiro. Carnbada!
Quer sono, nao tem sonho ... Orate fratres ... Voces
mesmo nao notam: mas a alma de cada um ja come-
yOU a ficar adorrnecida ... Olha os prazosl Olhem
para os bichos, por comparacao ...
Mas, nesse justo momento, vinham ehegando os
frades -- frei Sinfrao e frei Florduardo -- evinham
en(~rgicos. 0 Nomined6mine, de la do altar, eurvou
me sura profunda, e garrou a acabar de serrnoar,
depressa ainda mais, sabendo que agora Ihe sobrava
pouquinho tempo. Refalava: ~" ... No errno onde
fortifiquei meus dias de jejum maior, num recampo
de gados, veio um anjo mandado, urn anjo papudo
e idiota mais do que assim eu nao mereci ... Ele
mesmo me confirmou e me disse do aspecto do fim
grave. Me escutem!"
86 • J 0 A 0 G u [ M A n A E S R 0 s .o RECADO DO MORRO ~87
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E nisso Pedro Orosio, correndo pelo meio da
igreja, a fito de ajudar a defender os frades, caso 0
Nominedomine reagisse contra eles, deu uma es-
barrada no Cole tor, 0 qual Coletor era outro que
nao regulava beY;;. Estava com sua pilha de papeis e
jornais, e com as algibeiras cheias de tocos de lapis,
com des constantemente fazia contas de numeros
nas beiradas brancas dos jornais. E 0 Coletor era
urn que gostava de frequentar scmpre perto ou
dentro de igreja, e se ajoelhara rente na primeira
fileira, junto com as mulheres mais beatas, ao pe do
gradil da banca de cornunhao. E com 0 esbarrao
do Pedro Orosio de se desper tou e alevantou a
prumo a cabeca,
-- ... Escutem minha voz, que e a do Anjo dito,
o papudo: 0que foi revelado. Foi 0Rei, 0Rei-Me-
nino, com a espada na mao! Tremam, todos! Traco
o sino de Salomao ... Tremia as peles --- este e 0
destine de todos: 0fim de mor te vern a traicao,em hora incerta, e de noite ... Ninguem queira ser
favoroso! Chegou a Morte -- aconforme urn que
ca traz, urn dessa banda do norte, eu ouvi - ba-
tendo tambor de guerra! Santo, santo, Deus dos
Exercitos ... A Morte: a caveira, de dia e de noite,
Festa na floresta, assombrando. A sorte do destino,
Deus tinha marcado, ele com seus Doze! E 0Rei,
com os sete homens-guerreiros da Historia Sagrada,
pelos caminhos, pelos errnos, morro a fora ... Todos
trerneram em S 1 , viam 0poder da caveira: era 0fim
do mundo. Ninpuem tern tempo de se salvar, de
chegar ate na Lapinha de BeICm, pe da manjedou-
ra ... Aceitem meu conselho, venham em minha
companhia ... Deus baixou as ordens, temos so de
obedecer, E 0 rico, e 0 pobre, 0 fidalgo, 0 vaqueiro
eo soldado ... Seja Caifaz, seja Malaquias! Eo fim
e a traicao. Olhem os prazosl ...
Mas, pOl' ai, 0frei Florduardo ja se chegava,
bastou so levantar a mao, para atencao: eo Nomi-
nedomine se ajoelhou de vez, aos pes dele, prostrou
a cara.- "Pode ir, meu filho. Deus te abencoe ... "
· · · · · · · · 0 frade falou. EoN ominedomine se levantou e
foi puxando, vagaroso, pela beira da igreja, de olhos
postos, rezando cantado em latim 0Credo e 0Padre-
Nosso, com voz tao enfadonha. A porta, se voltou e
dedarou assim inesperado: -"Olha 0responsoriol
Olha 0Ialimento do fim, cambada!" Dai, se foi.
Dava do. Quem sabe ele nao estava pressentindo
urn Iiapo dos tempos? Pedro Orosio ainda veio ca
fora, persegui-Io com a vista. Embora, 0 cujo para
comer estrada: rumou, rumou, era aquela terrive]
88 ~ JO A O GUIMAR)iES RosA o Il."ECAD() no MORRO & 89
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Viva 0nosso santo Sao Benedito!" Mesmo, em di-
versas casas, na Rua dos Pequis e Rua dos Pacas, se
ajuntavam pessoas, e era aquele guararape brabo:
rufando as caixas, baqueando na zabumba. Mor,
lomba acima, indo para a Matriz do Sagrado Cora-
cao, uma turma serodeara, a sombra de uma arvoregrande, ali tarnbem ainda ensaiavarn: era 0pessoal
do Mascamole --~ ele e 0Tu, cunhado seu, vin-
dos do Santome , Multo reluziam. 0 povo vivava. E
oTu co Mascamolc, chefes, tribuzando no tambor:
tarapatao, barabao , barabaol ... Tudo era grande
muito movimento.
Baixo urn momento, Pedro Orosio esteve namo-
rando, com uma rnoca ou outra, a incerta. Depois,assim sem prisao de regra, tcncionava trancar pelo
arraial, resves, para valer ° tempo. S6 um tanto, por
tudo, agora ele precisava de querer pensar em sua
casinha, sua lavoura -- na segunda-feira era que ia
la , por fim de ter andado fora pouco faltava para urn
mesoTarnal' a entrar no diario do trabalho tambem
era aceitavel, mestreava 0 corpo, e punha calco na
cabeca, pais mais a ideia da gente vinha sendo tao
removida. E encontrava 0Josue, quase seu vizinho.
---.. "Tudo ta bern, ta la, Zue?""-- Ta la , ta." 0 Josue
j<'linha queimado campo, estava encoivarando para a
velocidade, dum lado e doutro nao queria saber
de nada. Tirou dali, desceu, cortou a varzea, subiu
como quem ia para a Lag6a, pelo Bento- Velho. Ja
estava alongado demais. Por fim, foi para 0morro,
"dversamente, abriu urn furozinho preto no hori-
zonte, pOI' de se passou, e se sumiu do mundo.
Mais tinha esquentado aquele sabado. Frei
Sinfrao ja come«ara uma missa, sempre mais povo
chegando, a reio. Tambem muitos ja revestidos, para
figurar na festanca do dia-seguinte. Os dos ranchos:
os moyambiqueiros, de penacho e com balainhos
e guizos prendidos nas pernas; grupos congos em
cetim branco, e faixa, s6 faltando os mais adornos;
e a rapaziada nova, com uniforme da guarda-mari-
nheira.lmponente foi quando comungaram 0preto
Zabelino, todo serio, e a preta Maria-da-Fe, com
urn grande ramo de flores nos braces, quens iam
ser rei-congo e rainha-conga. Seo Alquiste estava
presente, com sea Juca do Ayude e seo [ujuca, e as
senhoras da Fazenda, e acabada a missa seo Alquiste
aproveitou para bater chapa de todos os fardados.
Musica ia tocar era no outro dia, no outro dia era
que era 0registrado da festa. Uns gritavam desde
agora seu grande contentamento:---"Viva a Senho-
ra do Rosario! Viva a grande santa Santa Efigenia!
90 '" j 0 A 0 G U 1 .'1.1A R ii_ I': S R 0 5 A o RECADO DO MORRO °91
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roca. Eo Alvinho Diogo ja tinha seu servico acabado
de pronto; p'ra semear agora 56 esperava chuva.
Prazia 0Pe vir beber urn gole? Se ia. ~- "Capaz que
este ana chover cedo ... "Tomara. Deus queira, E,
apesar d' ele ser nlpiau, roceiro muito, aspessoas fi -nas do arraial apreciavam 0Pedro --- principalmente
por seu tamanho em desabuso, forcudo assim, dava
gosto e respeito.
De contria, vinham 0Ivo e0Martinho -- mais
esse!---- queriam pOl'toda a le i que 0Pedro Orosio
quisesse ja de ja se amadrinhar com eles.---- "Nao,
por ora, amigos .. ." Pois enquanto, ele precisava de
gerir seu dia sozinho. A bern nao falar, alguma coisa
naqueles ainda 0 punha a resguardar urna menos
confianca, Muito leve. -- "Mas, olha: de tardinha,
depois do jantar, hcm?''' '---- Mas a festa nao e ama-
nha?""-Virou pra hoje. Sabc nao sabe?Voce e um)"" 'r "ue vern, ---- vou,
POI'vez, nao tivesse dado palavra. Quem diga
Fosse melhor nem nao ir? Essa festa, meio longe,
quando a ooasiao maior estava sendo no arraial,
aquilo mesmo desdizia, uma duvida lhe soletrava
assim. Repensou e nao pensou.
--- Ara veja, Peboizao! ...
A i quem estava saudando era 0Laudelim Pul-
gape, bons olhos 0 conhccessem. Como scmpre
amigos, se encontravam. A- e bem -_- era ideia:
o Laudelim podia vir junto, cornpanhia confortada.
-- "Vamos batucar hojc, Pulgo velho, na beirada
do Cuba numa casa?" "--- Vou nao." 0 Laudelim
marcara de ir tocar e cantar, para aquele homem
estrangeiro, no hotel do Sinval. Depois, ele tinha
de dormir para arnanha.
o Laudelim era alegre e avulso. POI'perto da
matriz , estavam num campo aberto. E ele olhou
urn cavalo que pastava, c se lembrou de seu violao.
Com 0 Laudelim, se podia Iacil conversar, ele en-
tendia 0mexe-rnexe eo simples dos assuntos, sem
precisao de urn muito se explicar; e em tudo de
cornpletava uma simpatia. 0 violao estava mesmo
ali a mao, no botequim. Dat que 0Laudelim tam-
bern usava cisminha de tristeza, que era urna tris-
teza leviana, diversa das de todos, uma tr isteza sem
razao cer ta, que nem doenca pegada ou chao para
a sombra de sua alegria. Dava agora para querer
passear vago, violao ao peito, votou que chegassem
ate no cerniterio -- carecia de visao assim, porque
aquela noite tencionava cantar melhores, Pois ca-
minharam. Mas, passando pelo oitao da Matriz, l e i
estava 0Coletor, rabiscando suas contas.
Se disse que esse Coletor era gira. Bern dizer,
nem nunca tinha sido coletor , nem aquele era nome
92 a-JO AO GUIMAH)\ES ROSA o RECADO DO MORRO ~9J
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valido. Transtornos e desordens da vida, a peso disso
ensandecera. Agora, achacado e velho, inda bom que
a doideira dele era uma so: imaginava de ser rico,
milionario de riquissimo, e 0 tempo todo passava
revendo a conta,gem de suas posses. Escrevia empapel, riscava no chao, entalhava em casca de arvore,
em qualquer parte. Mas onde tinha mais gosto de
cifrar aquelas quanti asera nas paredes, porque assim
todo 0mundo podia invejar a irriensa fortuna. De
qualidade que, pOl' azo, preferia a Matriz, por ter
asmaiores paredes brancas no arraial, Ia alinhando
nurneros tao desacahados de compridos, que pes-
soa nenhuma nao era capaz de tabuar: seus ouros,
suas casas, suas terras, suas boiadas no invernar, sua
cavalaria de otimas eguadas, seus contos-de-reis
em numerario, cada Iancamento daqueles era feito
uma correicao de formiguinhas pretas enfileiradas.
Aquele homem tinha uma felicidade enorme.
Quando a Laudelim e Pedro Orosio vinham
transeuntes, cayaram jeito de desladear urn pouco,
pOI-quetinha vez que 0Coletor estava tao duro en-
tertido nas somas, que ate gemia e coyava a cabeca,
e dava pena na gente, pois aquila semelhava urn
afadigo de tarefa de cativo.
Mas, par dessa, ele Coletor mesmo foi quem
se virou e sorriu.
- "6, 0 senhor, 6 0 das botas! Faz favor ... "
- foi 0que ele invocou. 0 que, por mais, tambem
era absolute absurdo, porquanto nem Pedro Orosio
nem 0 Laudelim, perfeitamente, nao tinham nem
calcavam betas nos pes. Mas entao 0 Coletor pas-
sou a mao aberta em frente de seus olhos, feito se
retirasse daquele espayoa lubrina de alguma visao
outra, pelo que ele mesmo via estar errado. Emos-
trou 0encifrado novo algarismal, que se produzia
por metros e metros na face do oitao, era aritme-
tica toda muito bern feita, sem tremor de mao, os
numeros altamente caprichados. E ele, orgulhoso,
muito se considerava. Os dois concordaram com 0
acerto de tudo, deram louvor. - "Estou padre de
rico, padre de rico ... "~~ 0Coletor faIou. -- "To~
mara agora eu saber 0menos de fazer, com tanto
dinheiro ... " E retornava a numerar, nao podia es-
perdicar tempo. -"0que eu precise e dum born
guarda-livro, de confianca Acho que, depois da
coresma, vou chamar ajuda "A nao regular, nem
mesmo ele sabia em que era do ana se estava. Por
ultimamente, 0 Laudelim notou, quase que de so
assentava numeros maiusculos, par render mais: os
noyes, oitos ou setes. E, de costas mesmo, sempre
registrando, e1e ponderou em voz: --"Friolei-
94 '" J 0 A a G U I MAR A E S R () S A o R~,;_CA.DO Do MORRO -95
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rasl ... " Ih, ah, que aqui ele estava ficando com
raiva. - "Frioleiras, baboseiral Fim do mundo ...
J.1se viu?!"Virou a cara - avermelhado, aperuado,
- "Por que 0senhor nao pegou aquele, a forca, nao
derrubou pla porta a fora, da igreja, zero, zezerol?"
Ele suspendia as sobrancelhas ..- "Aquele, sim , 0
Santos-Oleos ~-- diz-se que Ie 0 vulgo dele. PO lS
o senhor nao investiu?Ate naome esbarrou, 1.1dentro,
ao pe do Sacrario? .. " Botou mais urn palmo de nu-
meracao, ligeiro, ligeiro. -"Fim do mundo ... Fim
do mundo ... 0 cao! Agora que eu estou tao rico ...
Pois ainda nem acabei de pOl' em competente firma
todas as riquezas minhas, de meu possuido, p'ra
depois poder so descansar e gozar ... E aquele vern
prenunciar 0£lm do mundo! Uma tana! ... "Agora,
escrevia mais Iestinho, a gente tinha de vir andando,
beirando aMatriz, para 0seguir. E so Iancava ----di-
zia 0Laudelim - .era noyes, noyes, noves.
Acabou quebrando a ponta do lapis; enfiou
aquele toea na algibeira, foi logo tirando outro,
born. _ "Uma tana! Mistifo do homem Por meu
seguro Onde Ie que j.1se viurl 0 rei-menino ...
Bom, isso tern, na Festa: urn rei menino, uma rainha
menina, mais 0Rei Congo e a Rainha Conga, que sao
os de proprio valor ... 0 rei-rnenino , com a espada
na mao! Eo cinco-salmao: ara , s o se ve disso, hoje
em dia, e na ba.ndeira do Divino, bordado rebor-
dado ... Baboseiral Morrer a traicao, hora incerta,de tremer as peles ... Doze Ie duzia isso e mo-
do de falar? 0 que vale a gente e as leis ... Quero
vel',meu ouro. Nan sou 0favoroso? Mais novecentos
mil e novecentos e noventa-e-nove mil milhoes de
milhoes ... A Morte -- esconjuro, credo, vote vai ,
ca l Carece de prender esse Santos-6Ieos, mandar
guardar em hospicios ... VeIie a Morte vern vindo,
dai da banda do Norte, feito coisa de Embaixador,
no represento de Festa de cavalhada? E caixa e tam-
bor, quem estao batendo Ie essa gente do Satome, a
revelia ... Cristaos scm 0que fazer. .. Frioleiras ...
De que 0Rei, pelos ermos, sete soldados, fidalgos
e gucrreiros da Historia Sagrada, e lapa de Belem,
tudo por traicao, dando conselho e companhia, ao
pe da manjedoura, porque Deus baixou ordens .
Novecentos milhoes ... Nove, seis e urn -----sete .
Acabar? Posso dar meu juramento. Acaba nunca!
Isso de mundo se acabar, de noite ou de dia, e inven-
cao de gente pobre ... Arrenego! Uma tana! Que seja
p'ra o Capataz, e esta aqui pra 0Malaquias! ... "
Por assim , e quantos numcros compunha, 0
Coletor nao esbarrava de resmonear 0 serrnao do
96 I JO. l \O ·GUfMARAES ROSA ORE C i\ DO D 0 MOrt ..H0 00-.97
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Nominedornine, sem-pes-nem-cabeca, Na pobre
da ideia dele, ia levar tempo para se gastar aquilo.
~- "Vamos chegando, Pulgape ... "--- chamou Pedro
Orosio, Mas 0Laudelim cismara tanto e tanto, en-
quanto estava ou'Vindo, seu rosto se ensombreceu,
logo se alumiou ainda mais. C a que nao se esperava,
ele propunha assim desses esquisitos.Ave, matutava.
E mesmo, quando 0 Pedro Or6sio 0 pegou pelo
brace e ia levando, ele entreparou, asseteado, pe
"I I • t I" di E Jno ar. -- sso e Impor ante. -- isse .. pennurou
cara, por escutar mais. -" ... 0 extraordinario de
importante. .. Tremer as peles,>, Cristdos sem a que
JazeT. .. Qyero ver meu aura ... Urn danado de extraor-
dinaric! ... " 0 que? A tontaria do Coletor? Patarata!
Mas, que e que se havia, se 0Laudelim era mesmo
assim - que dava de com os olhos nao ver, ouvido
nao escutar, e se despreparava todo, nuvejava. Nunea
se sabia de seus porhns. Ainda, ainda. E a-duro vinha
vindo, mas quebrou para abanda da casa do Sio'Tico,
de donde se avistava todo 0arraial, L i em baixo, e a
a gente ir aproveitar 0oco do mundo noutra parte,
conceder que ele ficasse fieando. - "Vai embora
inda nao" ele pediu. 0 violao toava bem afinado.
"P , A -I d'E perguntou:-- _or que e que voce nao des lZ
_] f' _ .,r . " " A h -essa estar vem Junto, se cantar , . . ....._- , nao.
Mulheres quem." 0 LaudeIim mal ouvia. Relou as
cordas, ponteando, silamissol cantava. Arrastou urn
rasgado. Pe-Boi se despediu, ---"''' '--0 Rei menino ...
Passagens fortes! A toque de tomb or , .. Passagens
fortes .. , Passagens fortes.,. "- 0 Laudelim deu
resposta.
A i, em tudo e por tudo de S 1 satisfeito, Pedro
Or6sio passeou. Chefe que sechegou, aqui e ali, ven-
do bastante gente e com tantas pessoas proseando,
ponto, falando e ouvindo disto e daquilo, duma coisa
e outra; e mesmo, em sabado de festa, vespera do
Rosario, 0arraial nao era tao pequeno assim.
Almocou no J i Antonho, na Rua-de-Cima, esse
tinha duas carrocinhas e quatro burros, ultima-
mente andava tirando areia das beiras do da Onca e
trazendo para revender-- e era homem de carater
muito exato, contava estorias porcas, engrayadas,
e tratava todos de "compadre". Filhas mocas do J i
Antonho eram duas: Nelzi e Nilzi. Para se com pare ~
eer razoavelzim em tao born almoco, Pedro Orosio
r '" t . . ,. - J ' hei "varzea. ~--.. vou mars no cerrnterio nao. a ac CI ...
Que era que podia tel' aehado? Se sentou debaixo
do itapicuru, temperava 0violao, apalpou as cordas.
Com ele desse jeito, arredado crente, baas horas de
perdidas se podia tel'. Melhor, mesmo melhor, era
98 • J ( ) A () G U 1 MAR A E S R () S Ao RECADO DO MORRO "99
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foi buscar tres garrafas de cerveja, que ofertou, pOl'
mais que 0 Ji Antonho falasse que nao fizesse, que
nao carecia de tomar incomodo. Nelzi era a mais
bonita. Com elas, quer dizer, com todo 0 pessoal,
inteirado pOI' outros pais e maes, e outros rapazes e
mocas, se veio ate it Rna-de-Baixo it estacao _ ver, ,
alegres falas. Mesmo 0Helio Nemes, que tinha sido
o mais picado de todos. 0 Nemes, dito urn dunga,
felao de mau. Amem, medo, ah, isso, e de ningucm,
de Pe nunca sentiral Bastava se ver, pra saber. Receio
de mazda, isto sim, de algum dia se enfermar de
grave doenca, nao dar conta de cumprir seu trabalho
para sustento, nao ser mais querido das moyas nem
respeitado do povo. _ "Oi, Pedro, como e que vai
essa carcaca?" ,,_ Banzando... E voce, Jize?" Ze
Azougue era irmao do Martinho. Contavam que
eles, com 0pai, ja falecido em Deus, uma vez ti-
nham matado urn homem, por conta de uma divida
atoa. E vinham passando uns vinte sujeitos, todos
compostos nos trajes brancos e com os capacetes
- era a Guarda Marinheira - arnanha haviam de
dansar e cantar, rendendo todas as cortesias a Nossa
Senhora dos Pretos, E a Nelzi se virava para de e
perguntava: --- "Seu Pedro, o senhor nao gostade
figurar?" "_._ Tenho graya nenhuma ... Ate iam se
rir, por meu tamanhao ... "_ de tinha respondido.
A Nelzi era muito boazinha. -- "Pois eu gosto de
pessoa alta. Acho que assenta bern, emhomem ... "
Pe- Boi nao se acanhava facil: .._ "Muito agradecido,
por suas boas palavras ... " S6 nao teve coragem fo i
d di " h . "f' fiizer sen onta - con orme pensou; era no.
passar 0trem-expresso que segue para 0Sertao. Urn
dia tivesse de casar, mas mais tarde, podia mesmo
ser com a Nelzi que ele havia-de. E mocinhas de
fora compareciam , de maos dadas, umas ate eram
de Araya ou das Lajes, ele bern cer to nao estava.
Todas tao bern vestidas, todas elas de novo. Era sorte
que de estava assim calcado de botinas, apertavam
urn pouco os pes, nao fazia mal. As botinas era que
pareciam grandes demais, maiores que as de todo
o mundo. E dai? 0 que valia era estar com sua vida
em ordem, e no perfeito da saude, Da estacao, en-
tender am de ir de visitas, Muita gente queria visitar
com altas honras a Maria-da-Pe e 0preto Zabelino,
que iam ser os reais.
Mas, por umas tres vezes, Pedro Orosio se
encontrou com 0Ivo Cronico, que vagueava. Ate,
sem querer rnau juizo, mas parecia que 0Ivo tomava
conta. Sujo desse ciume, causa das mocas, azangan-
do. Ainda bern, que agora estavam reavindados, em
IOOOJO·A.O GU1MAJI,.AES ROSA o RECADO DO MORRO'" iOI
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A cabecinha da Nelzi nao ,dava no ombro dele. A
parte que ela falava: de sua vida em casa~- gostava
de fazer doces, de cozinhar, os irrnaos peguenos
cram uns dcmoninhos de engrac;:ados,0pai dizia queI'
no carnaval clue vern iam todos em cidade. Pedro
Orosio podiaficar muitas horas perto dela, ate se
esquecia das outras demais,
A Festa era de pretos e brancos, mas mais dos
pretos: ja naquele dia eles espiavam os brancos com
sobrancaria de importancia maier -~ pois eram os
donos da Santa. Carecia de rnandar fazer urn ter-
no de brim novo, tirar do dinheiro para comprar
umas duas ou tres camisas, melhor das que tern
bolsinhos, Nao imaginava como era que alguem
podia querer ser trabalhador de trem-de-ferro:
guarda-freio, foguista, maquinista, Dansador de fa-
rna -~ 0Juminiano, agora alguns tinham escrupulo
com ele, porque 0 pai dele morrera com mal-de-
lazaro. 0 pior, quando se esta em roda de pessoas,
conversando com moyas, e quando da vontade de
verter agua, carece de arranjar desculpa, para sair
de perto, pior entao e quando a gente volta. Cria-
tura para conversar fiado nunca falta: como e que
urn podia afirmar, em mes de agosto, se as chuvas
do ana vao vir mais cedo ou mais tarde? Mulher-da-
vida, quando passa na rna, em dia de festa, adquire
urn ar de sobre-dona, desdenha do alto as senhoras
e mccas-de-familia. Por agora, no arraial, dava de
estarem levantando muitas casas novas; mas, quando
aquele movimento esbarrasse, quem e que ia com-prar areia do Ji Antonho? E 0quee que ele ia fazer
das carrocinhas e dos burros? Ji Antonho dizia que
era patricio, geralista tambem; aldemenos afirmava
que era, dos Gerais de Andrequice. Se os parentes
dele, Pedro, no Veredao da Cuia, se des ficassem
sabendo que ele tinha ido ate Iiperto, nos Gerais,
mas sern chegar nem aparecer, haviam de ficar pen-
sando mal, Viajar era born, mas pOI' curto prazo de
tempo. Se entre aquelas vaquinhas que pastavam ali
no capim daVargem, que alguma delas fosse brava,
e quisesse bater, ele escorava a bicha, escornava e
baqueava----~ salvava a vida daquelas mocas todas,
salvava mais era a Nelzi, e era uma imponencia,
todos tinham de vel', gabar e admirar, Para namoro,
de noite e muito mais agradavel do que de dia. Mais
festivo, melhor de tudo, e em igreja - todos em
seus lugares, 0padre naquela solenidade de estado,
o harmonic tocando, mulheres cantando; e a gente
correndo com jeito 0 olho, era capaz de namorar
com diversas, de uma vez, Quantos anos devia de
l 0 1 • j 0A 0 G U 1 11 ' AR A li' R 0S A o RECADO DO MORRO" 103
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ter a Nelzi? A .Nelzi era a mais velha. Do Laudelim
Pulgape era que as familias e as moyas nao queriam
saber ..~~ diziam que era bandalho. Tocar bern urn
violao era a coisa que ele P c mais invejava. Amanha,
devia de se apresentar para tamar acorea, no giro de
redor da igreja, agradecendo asbencaos? Nao Fosse 0
rebulico born do dia, e a batuque determinado para
de noite, dava vontade era de sentar as pes par ai,
ir ate em casa, via como par ti estavarn as coisas, de
tardinha mesmo jo i estava de volta, bern era capaz.
Dia de domingo mesmo nao estando quente, a gente
sente mais calor: calor e poeira estao s6 combinados
de amarrotar e sujar a roupa da gente, em tudo se
precisa de por atencao. E, ei, que aquele ainda nao
era bern dia-de-domingo, era so sabado de vespera,
mas domingo parecia - todo 0mundo revestido
e passeando ...
E ele felizmente tinha 0 assunto da viagem feita,
para conversar, De sea Jujuca, sempre negocioso. Do
frei Sinfrao, como folgazao rezava. 0 seo Alquiste?
Era doutor, era sim. E doutor dos bons, de mao
cheia. Homem importantissimo, Queria ate levar ele
Pedro para seu ajudante, a fim de conhecer a terra
dele, tao estrangeira. Dizia que Ia 0 P e podia ser
soldado ... -"Fosse eu, ia ... "- falava a Nelzi, se
via que por momice, leve de despique. _. "Ah, isso
nao] Absolutamente ... Nao quero ficar tao lange das
pessoas de que eu gosto ... "- ele aproveitava para
referir, olhando bern para ela, se pondo e repondo
nesse olhar, Eh, bern que de podia passar meses e
anos assim pertinho. A Nelzi era a cabeceira entre
todas, senhorinhazinha, rainha de solertes forme-
suras, aquela merecia amor,
Mas, par cabo do dia, nao podia ficarmais tempo.
Aquilo ainda nao era noivado, como para embroma,
dando na vista: 0que nao e cas6rio e fa1at6rio! Disse
adeus, com pena. _.._ "Amanha 0 senhor vern?"Ah,
amanha ele estava. Supridamente.
Jantou no Tolendal, nao podia ser ingrato com
os amigos bons protetores. E0Floriao estava la, se
conversou. 0 Floriao tinha chegado, com 0cami-
nhao dele, vindo para a festa. Falavam na confusao
daquela manha, na trompagem do Santos-6Ieos. Eo
Floriao, por volta de meio-dia, tinha avistado aquele,
cruzmente, despassado pela estrada pelo menos
a umas quatro leguas dali. ~- "0 tal parece ia tirar
algum pai da forca ... Gritou: Viva Deus, e 0fim do
mundo! ..~~ e ainda espripipipou mais, envoado ... "
o diogo, urn desse, 0coitado! Mais para grac;a nao
eram as panoes enrolados nos pes, ja se viu alguma
104 .,._ 0 A 0 G U I MAR i\ E S R 0 SAo RICADO DO dIl,l,ORr~() I IO~·
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vez disso?Mas, nao-- 0Floriao informava - quan-
do 0 caminhao se cruzou com de, decerto ja tinha
desmanchado e Iargado aqueles aparelhos - pois
assim mesmo clemente andava, andava, quase corr ia,I
estava descalco de'toclo, seco, serio, sorteado. Que
lugares enguliam urn homem assim?
Falar nisso , 0 sino repicou, era hora da reza,
noveneira. Outra vez 0povo para a igreja. Pe-Boi
tambem . Para a andaclura dele, aquelas ruas e a
ladeira eram menores. - "Eh, Pedro! Desta vez,
nao te largo. Despois, daqui, a gente ruma ... " Era
o Ivo, Que seja, por certo, estavam compalavrados.
Enfileiracla no aclro, a tunna dos Mocambiqueiros,
completa, a luz da tarde. Da outra banda, a Guarda
Marinheira, clavaprazer vel'0estique deles, eada urn
de queixo alto--- nenhum nao se ria. Eja vinham
chegando os Congos, a toque de rufo, pessoal do
Tu e do Mascamole adiante. Aqueles ranchos todos
porfiavam. E passavam muitas senhoras, levando
para dentro suas criancas em branco, preparadas
de virgens e de anjos. S6 mesmo na hora em que os
coroinhas do padre tangeram sineta, foi que esbar-
rou, a um tempo, de e e l e de hi, 0tungo e 0vungo
das caixas de couro, Ah, uma festa, com suas saudes,
era boa estancia, mesrno assirn de vespera so.
--A paz, agora vamos ...
- Pais vamos. Qu' e de as outros?
- Estao esperando , no fim do beco do Satur-
nino.
Ia porque ia , a bern dizer nao tinha grandes
vontades. Ao mesmo, enquanto durava a reza.
Nchi estava la, na parte das mulheres, e ela olhava
para de, com sineeras docuras. Aquela, s o sim. A
proprio, Pedro por ela desdeixara de namorar as
outras. Somente, par habituacao, olhara uma vez
para a Miinha, clara, que estava na escada do coro.
Uma vez, ou urnas duas. E outras tantas para uma
mocinha doAraca, de vestido vermelho .~ disseram
que a graya dela era Candida. _- "Bam, tao que-
rendo, vamos ... " Nao queria ser discordioso. Mas,
pOl' primeiro, segundo 0Iva, careciam ja de beber
urn cauim qualquer. Ah, co Pulgape? _... "Ternos de
passar mesmo pOl' defronte do hotel do Sinval... "
Na saida, em ouso saudou a Nelzi, com aceno de
cabeca. 0 mes de agosto, ainda anoitece depressa;
fuseava.-- "Pode sossegar, Pe, que la tambem vai
tel' maya, e muitas ... E baile de born batuque, samba
t d !"" 'IT •• 1 "" Mapa ea o. --_ vamos inteirar ( e ver. ~ as, os
principios, a gente prova urn acende-goela.Tu, bebe,
bebe, Pedro: estou com uma garrafa aqui ... "
1 06 .0 J 0 A 0 G U I MAR A a s R 0 s A ORE CAD 0 DO M 0 R It0 OJ 107
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o violao do Laudelim ja desestremecia, ah, pi-
nho assim na mao, prosa que e um reinado. E podiam
entrar, tambem, caso quisessem. Queriam nao, dali
de fora mesmo, da janda, estavam em comedo de es-
eutar ever, a dernora deles era apoucada.-- "0 lha,
a gente nao deve de estabe1ecer, Pe. Por causa do
born caminhar que ainda falta ... " -------or baixo e
por cima 0 Ivo de 0 puxar nao esbarrava. Um raio
de Ivo Cronhco, pago por molestar a perscveranya
da gente, poaia. Mas, dentro de sala, governava 0
Laudelim, Pulgape born amigol - ..~ assentado im-
portante entre as pessoas, impondo 0aprumo de seu
valor. Que e <:Jueele cantava? Ai encerrava de dar 0
lundu da Gamela. Todos batiam palmas. Sea Alquis-
te E tomava um copo grande de cerveja, Iimpava
os cantos da boca com a guardanapo. Batia com as
maos, estrondoso. Punham cerveja para 0Laudelim
tambem. Ah, de estava de grandartel Agora, bom
de ja bcbido, retomava 0 violao, desrasgava, trazia
das cordas, principiava aquela trova tao formosa,
canto retardado, que pespega so: ... Serra, serra
--- serrania ... - dizendo a relrem. Ave de aprazivel,
aquilo geava.
Mas, de Ia, aquele seo Alquiste, que era homem
terrivel para tudo enxergar, tinha feito reparo neles
dois - no Ivo e no Pedro, e e l fora. E seo Alquiste se
alegrou, saudou grosso alto, chamou que entrassem,
era precise de se servir uma cerveja para eles. Seo
Jujuca vinha insistir. Born homem notavel, 0 seo
Alquiste. Pouco era0
que ele falava em vulgar, masassim mesmo alguma coisa se colhia. E 0 Laudelim
tanto ficava satisfeito, de ver seu amigo cumprindo
de vir, para ajudar a apreciar,
Assim ele cantava agora 0lundu da Laranjinha
--- a pedido do seo Juca do Acude, Acabou -- pal-
mas. Seo Alquiste esvaziava de continuo sua cerveja,
e zas na caderneta, escrevendo, escrevendo. "Lau-
dlim ... - dizia ele batidas vezes: - Laud'lim ...
Lau'dlim ... l.aau-d'limm - falava Laude1im assim,
quica nos sentimentos dele fazia coisa que se estives-
se tremeluzindo campainha. E mais escrevia. Tudo
o gue dos versos nao era para ele poder entender,
seo Jujuca transfalava todo 0simples significado. A
mor, quem ria, ria bern.
Ai, de arranco, deu seguida que 0 Laudelim
mudou, cavalo de orgulhoso, estadeava. Afa, que 0
violao obedecia, repulando a teso, nas pontas de seus
dedos, a virtude; com um instrumento fogoso tal,
tal, em mesmo que ele podia tomar 0espayo. Se via
que vinha ja 0maior melhor, aos sons de retombou
a cabeca, carinhoso, seus olhos se fechavam.
10S'liJOAO GUIMARAES ROSA o H.r: CAD 0 nOM OR It0 " 109
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~.~ Que e que vern, Laudelim? - seu Juca do
Acude indagou.
--- Pobre coisinha minha, se licenca me dao.
Cornposicao ...
Todos acenararrf que srm , com atencocs, que
esperavam. Pulgape pronto. Apos que pigarreou,
dedeou de esbarrondo, e meteu comcyo, com rom-
pante, descantou:
chegou da banda do norte
e com toque de tambor.
Disse ao Rei:-~ A tua sorte
pode mais que a teu valor?
Qyando a Rei era menino
)6 tinha espada na mao
e a barule ira do Divino
com a siqtio-de-salomiio.
Mas Deus marcou seu destino:
de passar par traicdo.
---- Essa caveira que eu vi
nao possui tienhum podet!
~ Grande Rei, nenhutn de nos
escutou tambor bater ...
Mas e so baixar as ordens
que havemos de obedecer.
Doze guerreiros somaram
pm servirem suas leis
-_ ganharam prendas de aura
usaram names de teis.
Meus soldo do s , minha gente,
esperem por mim aqui.
Vou a Lapa de Belem
pm saber que J O i que ami.
E qual a sorte que e minha
desde a bora em que eu nasci . ..
Sete deles mais valiam:
---- Niio convem, oh Grande Rei,
juntar a noite com a dia ...
--- Niio pedi vosso conselho,
pq:o a vossa cotnpanhial
Meus sete bans cavaleiros
dos doze eram um tnais seis ...
Mas, um dia, vela a Marte
vestida de Embaixador: fiSr da minba fidalguia ...
IIOOJOAO GUIM.f\RAES ROSA o RECAOO 00 MORRO" III
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UmJalou pra OS outros seis
e as sete com um pensamento:
-- A sina do Rei e a motte,
temos de tamar assento ...
Beijaram suas sete'espadas,
produziram juramenta.
belos entusiasmos! 0 que era, era que nao conse-
guia, nao aguentava mais. - "Diabo! Despois tu
mija! ... " ---- 0Ivo cochichou ralhando. Eo que era
[usto, Valia a pena, por tanta saboria de sonancia, eo
gloriado daquele descante, as grandes palavras.Valia
mesmo, apertar as pernas uma na outra, e curtir a
dura necessidade. 0 Ivo razao tinha.
Mesmo porque, por diante, 0Laudelim percor-
ria todo 0viajar, com suas vicisses, e dava no vivo
da est6ria cantada ~-- com urn sinalamento preto
no ceu, e a lua no redeado das arvores, e 0 rir do
corujo vismau, saido de sua gruta, que anunciavarn
a falsimonia, Triz e truz dai, era aquele desatamento,
presto: 0nefand6rio! Arre, al, que tudo fuzuava, no
roldao de uma matanca quando os reus guerrei-
ros investiam no Rei, de mao-comurn, suas espadas.
Nas champas delas 0 luar lampeava, contra todos os
sete 0Rei se defendendo, que esbravejava, acuado
mas scm se entregar, ao longo choro do vento e.na
solidao dos campos - par Iorca e armasl
Nos entres dos pes-de-verso, 0 Laudelim dava
urn acompanhamento dace, de contraste, em diz
pim-pim, feito os passarinhos madrugados. Aquela
estoria era terrivel!
A viagemfoi de noite
por ser tempo de luar.
Os sete nada diziom
porque 0 Rei iam tnatar.
Mas 0 Rei estava alegre
e eomefou a cantor ...
-~ Escuta, Reifavoroso,
nosso humilde pareeer:
Ainda mal que, por essa altura, Pedro Or6sio
tinha de sair l a fora, por forca, jit vinha nao rcsistin-
do, se sentando no banco de meia-esgueIha; ca<;:ou
formas de escapar sem percebido ser. Mas 0Ivo
segurou-o pelo palet6: que tal coisa nao fizesse, que
ficasse! Ah, nao por isso, que ate estava gostando
apaixonado dessa cantiga, ela era de referver. Os
Mais. Cada que 0 Rei dava urn urro, por ferido
- era tambem urn dos outros, que matado. Travante
112 eJOA.O GU.fM.ARAES ROliA o R]~CADO DO .i\'10RRO "11)
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gritavaque malditos fossem, por assim quererem
apagar 0 ro1 de tantos beneflcios .dos palacios 0 A i,
entao, eles careciarn de ser bichos, de odio. De vez-
vez defastavam e revinham, mais crus, sangue se via,
de noire,0
verrnelho nas roupas semelhava pretooUivavam. Dcsuso --- que nem urn estouro de hoiada
curraleira: tudo em estrondo e estracalho. Mas a dol'
no corp a do Rei ardia, pOl' seus muitos bastantes
talhos sofridos, de tanto sangue que perdia ia-se
indo em cansaco, e do seu sangue rnesmo precisava
de aparar e rebeber, pOl' nao deixar 0alento. Pedro
Orosio ja estava nas ultimas. Mas ai0
Rei matava0
derradeiro setimo, e proprio morr ia -- na horinha
de falecer via 0 escrito de sua velha sina, nos altos
do ceu ...
e os cegos vendern pelas estradas. Ate ao seu [uca,
seu pai, ou mesmo a urn sujeito rustico bracal,
como aquele Ivo, ali defronte, se embaciavam os
olhos, quase de cai lagrimas. "Impor tante ...
Importante ... "-- atirrnava0
senhor Alquist, sisudosubitamente, desejando que Ihe traduzissem 0 texto
digestim oc districtim, para 0 anotar, Scm apreender
embora 0inteiro sentido, de fora aquele pudera
perceber 0 profundo do bafo, da forca melodia e
do sobressalto que 0 verso transmuz da pedra das
palavras. E seo Jujuca pedia ao Laudelim que recan-
tasse e acornpanhasse em surdina, e ia explicando.Tarefa que se Ievava, pois ° senhor Alquist queriacomentar muito, em Ingles ou frances, ou mesmo
em seus cacos de portupues, quando nao se ajudando
com terrnos em grego ou latim, ~ .....Digno! Dig-
no! Como na saga de Hrolf filho de Helgi, Hrolf 0
Liberal: ainda era menino, quando Helgi morreu,
e ele subiu ao tr0110 da Dinamarca ... " Referia:-----~Ah, esta em Saxo Grammaticus! Ou quando 0
outre, Hrolf Kraki, entrou na peleja: Io i como urn
rio estua no mar - ele simultaneo, a todo atimo
pronto na espada, qual com os bifidos cascos 0veado
se atira ... Esta em Saxo Grammaticus ... " E, nesse
ardor, senhor Alquist Iimpava os oculos, e, tornando
Ainda bern que 0Pedro ainda teve tempo de sair
do salao, e chegar hi fora em prazo. Trasquanto os
restantes batiam palmas, mais valentes do que das
outras vezes: de entoar e acompanhar assim,0Lau-delim merecia florae de cantador-rnestre. Prazia.
Era 0que pensava seo jujuca, molhando cerveja
na boca e atendendo a s perguntas do senhor Alquist.
Comovido, ele pressentia que estava assistindo ao
nascimento de uma dessas cantigas migradoras, que
pousam no coracao do povo: que as violas serneiam
1 I4° J 0 A . 0 G 11 1 MAR A I~ S R () .< ; A o R,ECADO DO MORRO .I Il~
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a entrar na sala ° pobre do Pedrao Chabergo, urn
capiau simplorio, assim transvisto, sem outro des-
taque a nao ser 0 da estatura _ ..0 senhor Alquist
o admirava, dizia: k a lo s k a 8a th 6 s . .. Q sertao tivesse
mais uns assim. ,f
E 0Pedro vinha voltando, aliviado, cacava seu
Iugar em seu banco, clava com os olhos em seo
Alquiste. Esse sonia, e para de Ievantava 0copo,
v Id . D' . "E 1 I "E Isau e, nas praxes. lZla: _ ~sco a,... ~ e e
Pedro retribuia com 0mesmo born gesto, tambem
ja tornava a ter sede de cerveja, mais bebia. Nisso 0
Laudelim retomava a cantar a recem grande cantiga,
para os frades ouvirem, pois frei Flor e [rei Sinfrao
estavam chegando.
Num sempre se podia ficar escutando, sem fastio,
Mas 0too mesmo da trova se recebia na gente, teso
em cheio, precisao de urn se engrandecer, por meio
de qualquer movimento _ espiritacao de romper,
andar, caminhar, _.- "Eh, born, vamos, Cronhco?"
o Pe-Boi proprio ora convidava, em doenca de se
ir, ~- "Quero com vontade de dansar urn recorta-
do ... "Eo Ivo tambern se aluia, quase entre a-gosto
e contragosto, reproduzindo: -~ "Em boa razao,
A pois, vamos." Mas 0 Ivo, em luzes assim, tinha
que ficava com os olhos encarnicados, de cachorro
que cacou onca. _ "Tu behe?" "_ Se hebe!" Por
bern, os dois saiam, sem mencao de ninguem. Va-
ravam pelaspessoas no sereno. -"Oi la , Rijino ... "
,,_ Chama ninpuem mais p'ra vir, nao ... " _. baixo
o Ivo recomendava. Laudelim descantava solene l e i
dentro, estribil, ele cantava continuado. A lua havia,
grandada, clara. EIes passavam 0comprido do beco.
Ainda vinha, a toada tarda. Passavam 0bambuzal.
"_ Se bebe?''' '-~ Bebe!" A cantiga adormeceu.
A i eis que ali, no juajem, na ultima casa sozinha,
na saida para 0Saco-dos-Cochos, estavam todos os
companheiros, por cerimonia de recongraya. _
"Ara viva, Pe-Boil Pedrao Chabergo, velhol" Aqueles
eram ° Jovelino, 0 Martinho, joao Lualino, 0 Z e
Azougue, 0Veneriano, 0 Helio Dias Nemes. Pois,
iam. Casa de luzinha, no campo, estavam tocando?
Estavam dansando 0bendengo. Todos 0rodeavam, a
d d "A' A • PA • !"}) dfeicao e agra os: ~ mlgos,Ol e amigo. e ro
Orosio queria andar a folego, singular, com muita
perna e muito brace, sem cuidando; daque1a estatu-
ra de passo, nenhum com ele podia se emparelhar,
-"Que e isso, gente?Tao me levando de charola?
Deixa de enrolo ... " Todos davam a ele a confirrna-
I ",r' deterrninar.v."aO (0 r iso. ~ vamos If, vamos eterrnmar ...
_ 0 Ivo Cronhco falava, 0 Ivo era 0 cabecilho,
116 "JOAO GUIMARAES RO.~A o RECADO DO MORI-tO ·]'7
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Carecia de ordern, porque tinharn estado bebendo.
o Martinho vinha com uma lata com comida de
farofa, comia deb corn uma colher. 0Joao Lualino
tocava urn reco-reco. 0Veneriano pegou de ir na
[rente. lam indio-asindio. Pedro Or6s10 regozijava
de eaminhar de noite, debaixo de Iua.
Entremente, ia cantando. Mal e mal, tinha apren-
dido uns pes-de-verso, aquela cantiga do Rei nao
sara do raso de sua ideia. Canta que canta, ate 0 Ivo
tambern, de falsete. E 0Veneriano, que tinha bom
ouvido, acompanhava, segundando. Era bonito, era
born. Pulgape devia de ter vindo. Ao que se podia
arejar, cabeca e 0 corpo ganhando ern levezas, Cos-
tava daquela musica, Gostava de viver.
Ao sim, tinha viajado, tinha ido ate principio
de sua terra natural, ele Pedro Orosio, catrumano
dos Gerais. Agora, vez, era que podia ter saudade
de la, saudade firme. Do chapadao - de onde
tudo se enxerga. Do chapadao, com desprumo de
duras ladeiras repentinas, onde a areia se cimenta:
a grava do areal rosado, fazendo pururuca debaixo
dos cascos dos cavalos e da sola crua das alpercatas,
Ou aquela areia branca, pOl' baixo da areia amarela,
pOl' baixo da areia rosa, pOl'baixo da areia vermelha
- sarapintada de areia verde: aquilo, sim, era tel'
saudadel 0 vivido velho dos vaqueiros, gritando
galope, encourados rentes, aboiando. Os bois de
todo berro, rnarruas com marcas de unha de onca.
Chovia de escurecer, trovoava, trovoava, a escuridao
Iavrava em fogo. E na chapada a chuva sumia, bebida,
como por encanto, nao deitava urn lenco de lama,
nao enxurrava meio rego. Depois, subia urn branco
poder de sol, e urn vento enorrne falava, respondiam
todas as arvores do cerrado ~- a caraiba, 0 bate-
caixa, a simaruba, 0pau-santo, a bolsa-de-pastor,
De lua a lua. Sempre corriam as ernas, os veados,
as antas. Sonsa, nadava a sucuriju, Tanto 0gruxo de
gavioes, que voavam altos, os papagaios e araras,
e a maria-branca cantava meiguinha, todo aquele
arvoredo ela conhecia, simples, saia pimpa do meio
das folhas verdes com urn fiinho de cabelo de boi no
bico.Ar assim farto, ceu azul assim , outro nenhurn.
Uma luz mae, de milagre. E 0 coracao e coroo de
tude, 0 real daquela terra, cram as veredas viven-
do em verde corn 0muito espelho de suas aguas,
para os passarinhos, mil -._ e 0buritizal, realegre
sempre em festa, 0belo-belo dos buritis em tanto,
a contra-sol.
Urn hornem chega a porta de sua casa, se rindo
de si e eseorrendo agua, desvestia pesada a croya de
r l S .. J 0 Ii0 ·G U I MAR A ES R 0 SAo RECADO DO MORRO" 119
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fibra de palmeira boa. E uma mulher moca, dentro
de casa, se rindo para 0homem, dando a ele cha de
folha do campo e creme de cocos bravos. E urn
menino, se rindo para a mae na alegria de tudo,
como quando tudo'€ra falante, no inteiro dos cam-
pos-gerais ...
Ah, ele Pedro Orosio tinha ido h i, e hl devia de
tel' ficado, colhendo em sua roya num terreol- era
o que de profundos dizia aquela cantiga memoria:
a cantiga do Rei e seus Guerreiros a continuar seus
caminhos, encantada pelo Laudelim. "Se bebe?"
"'T' . - pA
A h "" A !"- lorna mms nao, e. c ega. ---. rre.
Em vel', que tinham medo dele. Ah, tinham!
Aquele Ivo Cronhico, ranheta, cocador de costa de
mao; aquele Jovelino ~-- eh, bronho, - metade
de si mesmo! Aquele Martinho ... Companheiros
para ele? De muxoxo ... Cabecudo como esse Cro-
nhico: pior que se meter 0 freio na boca dum ruirn
burro. E 0Veneriano pe prancho, e 0focinho do
Martinho, e esse joao Lualino assassinador de gente,
todos eles. E0Nemes? Podia algum?! Sucia ...
Deveras, tinham receio. Pois nao era? Urn exa-
gero de homem -boi, urn homao desses, tao alto que
urn morro, a sobre. Assim desmarcado, pescoyo
que nao dobrava, braces de tamandua, inchos de
musculos, aquilo era de ferro se eleestouvava,
perigava qualquer sociedade, destruia as certezas.
-"Escuta, gente. Escuta, Pe. Vamos determinar ... "
- falou 0 Ivo, quando pararam. - "0 quer!"
" PIBAd ' A I
- ec 1'0 ergo, voce tomou .emais, voce esta
esquentado. Entao, melhor, reservar com a gente
sua garrucha e faca, p'ra se guardar ... Evita alguma
di t - A t h "" U I f dif ?"S racao que voce en a... - e, az 1 erenya.
"--- Convinhavel dar. 0 Ivo pode ter razao, P e . .. "
" E 1 I "" E 1 A PA ? D id . "- - - s eo a . . . . .- - - - - seo a 0 clue, e . 01 eras ...
"A t - "I ' b ?!"" N d - -- que e... usa e.. _._ ome- a-mae, nao,
, P "ente. az ...
-- "Pois canta!" ---- Pedro gritou, animante.
~ -- - " Es co la l .. . "Sobre sem sim, e andado, ele se sen-
tia, estava grave. P e- Bo i, P e- Bo i, P e- Bo i. .. Caminhava,
Cantava forte, do Rei, com a lua, pelas estradas, dos
Guerreiros, das espadas, do violao do Laudelim.
Bem, agora estava ali mesmo, indo para a festa, indo
para sua casa, para Iido alto do Saco-do-Campo, ou-
tras encostas da vertente. Toda aquela serra subida,
cheia de grutas e sumidouros - 0dos Morcegos,
o da Lapinha do Geraldo, 0do Brejinho, 0funil da
Pedra Bonita, 0do Corgo do Cuba --, cheia de
tratos onde ninpuern pode pisar e 0 gaviao-gran-
de e dono. Conhecia ali, palmo e palmo , tambem
! "2 0 "" J 0 A 0 "G U 1 MAR Ii. E S R 0 s !\ o R"ECADO no MORRO" i z r
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era de muito terra dele, aqueles contornos. Toda
parte, por la, 0corujao saia esvoacado dum oco de
lapa, pousava em ponta de pedra, dava gargalhadas
-- assim com luar a eoruja branea depunha sombra.
Quanta eoisa que a'gente nao sabe nunea no escuro ,
sufocado: como 0glude frio das minhocas da terra.
Seo Alquiste soubesse? 0 trade sabia? Seo Jujuca?
Ele Pedro Orosio .tinha sua easinha-- . uma easinha
pobre, com alpendre, entre umas palmeiras, terra
boa, de orecanga. Perto da Pedra do Boi, perto do
reconcavo dos Monjolos, depois do Pasto dos Mon-
jolos, depois do Capac do Pequi, rumo a rumo com
o Limpa-Goela, onde tern 0morrinho, um cruzeiro
e urn banana], indo pelo espigao da Ponte-Seca ...
Grande Rei, a tua sorte - pede t na is q ue 0 teu valor?
Pedro Orosio esbarrou, As botinas 0 rnaltra-
tavam. Sentou no chao, se [ivroti. Deu ao Iva as
botinas, para levar. Grande Rei, a tua sorte ... Dai, se
rernantelou em pe , ealcou bern a terra, sapateou
urn tanto. Grande Rei ... Tinha ido e tinha voltado,
por aquelas todas fazendas --- dcsde 0Apolinario:
o Marciano, no eaminho das boiadas do Norte; a
Nha Selena, numa belavista, fim de serra; 0Nh6
Hermes, na Capivara; a dona Vininha, tinha aquela
moqa tao alva; 0Jove, donde quebra para as boiadas
)
que vern do Urucuia e do Abaete ... Eh, Ivo Cr6-
nhico, carrega minhas botinas! Ele, Pe, era 0Rei,
dono dali, daquelas faixas de matas, verdes ver ten-
tes, grandes morros, grotas cavacadas e lapas com
lagoinhas, poc;:osd' agua. Mas e s6 batxat as ordens, que
h av em os de o bed ece t ... Ai entrar outra vez dentro da
Gruta, a Lapa Nova do Maquine ~ onde a pedra
vern, incha, e rebrilha naquelas paredes de Iencois
molhados, dobrados, entre as roxas sombras, escor-
rendo as lajes alvas, com grandes form as e bicos de
passaros que a pedra fez, pilhas de sacos de pedra, e
o chao de cristal, sernelha urn rio de ondas que no
endurccer esbarraram, e vindas de cima as pontas
brancas, amarelas, branco-azuladas, de gelo azul,
meio-transparentes, de todas as cores, rindo de
luz e dansando, de vidro, de sal: e afundar naquele
bafo sem tempo, sussurro sem sorn, onde a gente se
lembra do que nunca soube, e acorda de novo num
sonho, sem perigo sem mal; se sente.
Que desse as arrnas, por guardar, que era mais
assisado 0Ivo fechou mao nisso. -_.-"Uma osga!"
Pe-Boi nao queria saber de embusteria.·-"Cuida
das botinas, amigo, que eu quero e festal" Queria
cantar. Vieram todos de pare lba . . . 0 Rei. . . E em eles
tremerata p e le s . .. A sina do Rei e avessa ... 0Rei dava,
l 24- j o X 0 G 1J 1M A It i\ E S R 0 S- A
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entao 0depoSitou,o depos, menino, no centro do
chao.
Dai, com medo de crime, esquipou, mesmo com
a noite, abriu grandes pernas. Mediu 0mundo. Por
tantas serras, pulando de estrela em estrela, ate aos
seus Gerais.
Roteiro de leitura
II!
i
i
I ,
1. A novela "0 recado do morro" foi publicada
pela primeira vez em 1956, no livro C or po d e b aile ,
que reunia sete novelas. Segundo [oao Guimaraes
Rosa, as novelas de Co rpo de ba ile compunham um
espetaculo unico, cada historia e seus personagens
encenando urn ato desse grande espetaculo. o que
significa dizer que, mesmo com todas as suas dife-
rens:as, as novelas de Corpo d e b aile se comunicam.