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Sobre a Letra Do Espirito Hipoteses Semi

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  • 8/16/2019 Sobre a Letra Do Espirito Hipoteses Semi

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    Limiar  – vol.3, nº5 – 1º semestre de 2016

    SOBRE A LETRA DO ESPÍRITO: HIPÓTESES SEMIÓTICAS PARAUMA FILOSOFIA DA LITERATURA

     Nazareno Eduardo de Almeida1

    Resumo: Este ensaio apresenta um conjunto de hipóteses em prol de uma concepção semióticada filosofia da literatura. Na primeira parte, após descrever a concepção estética da literatura,arumento em favor de sua dissolução em um horizonte semiótico mais amplo de compreensãoda relação pensamento!linuaem!mundo, a partir do "ual uma filosofia da literatura tem de ser conce#ida como uma filosofia do discurso. Na seunda parte, após mostrar "ue literatura é umconceito poliss$mico a#erto e analóico, e%ponho sumariamente como a $nese deste conceitoe%trapola o modelo estético tradicional. Na terceira parte, mostro como a polissemia do conceitode literatura pode ser a#ordada de modo não circular a partir da an&lise do conceito de liter&rio.

    'omo poss(vel aspecto de todo discurso, de um lado, o liter&rio como narrativa se revela mais #&sico do "ue a asserção, e, de outro, deve ser visto como a sinularização do discurso,relacionando!se com os conceitos de desempenho, mutação sem)ntica e criatividade linu(stica.

    Palavras-cave: *emiótica+ filosofia+ literatura+ discurso+ criatividade

    A!s"rac": his essa- presents a set of h-potheses toards a semiotic conception of the philosoph- of literature. /n the first part, after descri#in the aesthetic conception of literature, /arue in favor of its dissolution into a #roader semiotic horizon of understandin of the thouht!lanuae!orld relationship, from hich a philosoph- of literature has to #e conceived as a philosoph- of discourse. /n the second part, after shoin that literature is an open and

    analoical pol-semic concept, / #riefl- e%pose ho the enesis of this concept oes #e-ond thetraditional aesthetic model. /n the third part, / sho ho the pol-sem- of literature concept can #e approached in a non!circular a- startin from the anal-sis of the concept of literar-. As a possi#le aspect of an- discourse, on the one hand, the literar- as narration reveals itself more #asic than assertin, and on the other, should #e seen as the sinlin of discourse, relatin it tothe concepts of performance, semantic chane and linuistic creativit-.

    #e$%or&s: *emiotics+ philosoph-+ literature+ discourse+ creativit-

    ' ( UM PRI)CÍPIO POL*MICO: DA +IS,O ESTTICA . +IS,O

    SEMIÓTICA SOBRE A RELA/,O FILOSOFIA-LITERATURA

    'omecemos com uma estória do tipo 0era uma vez. A relação entre filosofia e

    literatura é "uase tão antia "uanto a oriem da filosofia. 2as ela não é apenas uma

    relação antia: ela é pol$mica. As primeiras evid$ncias dessa relação pol$mica se

    encontram em v&rios framentos preservados dos te%tos de 3enófanes de 'olofão 4séc.

    1 É professor Adjunto II de Metas!a no "epartamento de #loso$a da %nversdade #ederal de &anta'atarna.

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    5/ a. '.6, onde vemos uma cr(tica sat(rica 7 descrição dos deuses feita por 8omero e

    8es(odo. Essa cr(tica indica, em um n(vel mais profundo, uma recusa 7 cosmoloia e

    teoloia impl(citas nestes poetas. 9ouco depois disso, a cr(tica aos poetas prosseue em

    tom não menos &cido nos aforismos de 8er&clito de feso, cheando ao ponto de dizer 

    "ue 8omero e Ar"u(loco deveriam ser e%pulsos dos certames poéticos e açoitados 4;?6, referindo!se, muito provavelmente, aos aedos "ue declamavam seus poemas em

    seu tempo. Em torno de um século após a severa recomendação do ermitão efésio,

    9latão menciona a @antia dissensão entre filosofia e poesia 4 República, 3,  BCD #6,

    dando testemunho e%pl(cito dessa relação pol$mica, precisamente onde empreende uma

    seunda justificação da céle#re e%pulsão dos poetas de sua cidade filosófica.

    E é justamente com 9latão "ue a relação conflituosa entre filosofia e literatura

    anha um novo cap(tulo "uando, em seus di&loos, se instaura a disputa entre filosofia e

    sof(stica pelo posto de condução da cultura intelectual e pol(tica rea, disputa "ue se

    desdo#rar&, de modo mais duradouro, na forma da correlação comple%a entre filosofia e

    retórica ao lono de toda a cultura intelectual da antiuidade. lhando mais de perto o

    todo da República, podemos dizer "ue nesta o#ra polimórfica o mestre da Academia

    constitui a fiura do filósofo e o papel da filosofia na cultura 4 polis6 através da cr(tica

    tanto 7 poesia "uanto 7 sof(stica, de tal modo "ue podemos entender esta instauração da

    filosofia como mais um desdo#ramento da relação pol$mica entre filosofia e literatura

    no mundo reo.? 

    9ouco depois, Aristóteles j& assume em sua Retórica e sua Poética como evidente

    a superioridade da filosofia tanto so#re a poesia "uanto so#re a retórica 4e a sof(stica6,

    superioridade "ue se revela na determinação filosófica das diversas técnicas e funçFes

    discursivas identificadas pelo Estairita no conte%to do mundo reo. Essa

    determinação se faz, de modo decisivo para toda a tradição filosófica posterior,

    assumindo os enunciados declarativos como a pedra!de!to"ue "ue permite esta#elecer oluar e a função espec(fica de todas as técnicas discursivas. s enunciados declarativos

    desempenham o papel central tanto na dialética "uanto na ci$ncia indutiva e

    demonstrativa realizada so# o comando da filosofia. Neste "uadro conceitual, os

    enunciados e discursos retóricos e poéticos são considerados como formas discursivas

    coadjuvantes no palco da racionalidade humana. 'om Aristóteles, em#ora ainda no

    2 *o#re essa passaem cl&ssica e o confronto de 9latão com os poetas, veja!se GE5/N, *. =. The ancient quarrel between philosophy and poetry revisited: Plato and the Greek literary tradition . %ford: %ford

    H9, ?CC1. *o#re a relação de 9latão com a retórica sof(stica, veja!se 2Ac'I, 2. Platão e a retóricados filósofos e sofistas. *ão 9aulo: 2adras, ?C1C.

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     plano puramente teóricoJ, perce#emos o ponto de infle%ão no processo pol$mico "ue

    relaciona filosofia e literatura no mundo reo: tr$s séculos antes do Estairita, a

    literatura na forma da poesia dominava o cen&rio cultural e a filosofia não era mais do

    "ue uma estranha forma discursiva recém!cheada+ um século antes dele, a sof(stica

     punava nas casas e nas assem#leias pela retórica como técnica discursiva capaz de

    conduzir a vida intelectual e pol(tica rea+ aora, no primeiro per(odo em "ue os

    discursos e as pr&ticas filosóficos anham maior notoriedade no cen&rio cultural antio,

    os filósofos se colocam como corifeus do drama intelectual reo, formando em torno

    de si um coro institucional 4composto de te%tos, pessoas e escolas6 "ue pretende

    su#juar a literatura 4na forma da poesia e da retórica6 como sua au%iliar ou su#ordinada

    na tarefa de determinação teórica da verdadeira ordem do mundo, determinação na "ual

    se esta#elece tam#ém o luar do humano dentro desta ordem.> 

    2as en"uanto no mundo antio a proemin$ncia e heemonia da filosofia so#re a

    literatura 4na forma da poesia e da retórica6 é apenas um pressuposto teórico e

    conceitual da"ueles "ue partilham de aluma postura filosófica espec(fica 4platKnica,

    aristotélica, estoica, epicurista etc.6, no decorrer do cont(nuo processo de infiltração da

    mentalidade filosófica nas culturas e linhaens "ue compFem a posterior tradição

    intelectual do cidente, a atitude so#ranceira da filosofia em relação 7 literatura revela

    radativamente "ue o esto teórico de 9latão e Aristóteles 4esto repetido pelas Escolas

    helen(sticas6 aca#aria por dominar efetiva e culturalmente a poesia e a retórica,

    3 Essa o#servação visa lem#rarmos "ue na época em "ue vive Aristóteles a poesia e a retórica eram ainda poderosos atores no cen&rio da cultura rea e continuariam a s$!lo durante o per(odo helen(stico, romanoe até mesmo no fim da antiuidade.

    (  interessante notar "ue tanto a  Retórica "uanto a Poética de Aristóteles só anharam o status de o#rascanKnicas so#re estes temas no alvor da modernidade 4a partir do século 35/6, tendo pouca repercussãoainda no mundo antio. Na realidade, esses tratados são os Lltimos a @fazer efeito na lona e decisivahistória da recepção das o#ras de Aristóteles durante a tradição intelectual do cidente. Em conjunto com

    esta o#servação, é imperioso fazer outra, "ue distinue o status da poesia 4e mesmo da retórica6 em 9latãoe Aristóteles. 9latão com#ate a poesia e a retórica 4tal como conce#ida e praticada pelos sofistas6 por"uev$ em am#as rivais do discurso filosófico, ou seja, assume "ue a poesia e a retórica podem falar dosmesmos assuntos "ue a filosofia. Em Aristóteles, diferentemente, não h& a necessidade de um com#atedireto com a poesia e com a retórica por"ue para o Estairita estas não tratam dos mesmos assuntos "ue afilosofia. /sso fica particularmente claro na o#servação da  Poética  seundo a "ual não é por"ueEmpédocles escreve em versos "ue teria de ser chamado poeta, uma vez "ue toma como evidente não se

     poder chamar um discurso de poético apenas por assumir a forma do verso, mas tam#ém por"ue a poesiaimita açFes 4no#res, no caso da traédia, rid(culas, no caso da comédia6, en"uanto o te%to do pré!socr&ticofala so#re a natureza. /sso mostra "ue é pelo o#jeto, e não apenas pelo modo de a#ordaem, "ueAristóteles separa filosofia e poesia 4'f. Poética, 1, 1>>D# 1B ss6. Alo an&loo se pode dizer no "uetane 7 retórica. 9latão, ao contr&rio, apesar da cr(tica severa "ue faz 7 retórica no Górias, reformula suavisão so#re a retórica no  !edro de tal modo "ue ela possa ser operada pela filosofia. Em suma, h&

    diferenças consider&veis 4mas nem sempre #em consideradas6 entre o modo como 9latão e o modo comoseu mais famoso disc(pulo compreendem a relação entre filosofia, poesia e retórica.

    1)

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    tornando!as, no plano material da cultura, técnicas discursivas secund&rias em relação

    ao lento mas ine%or&vel florescer da racionalidade filosófico!cient(fica ao lono desta

    mesma tradição.

    'om efeito, nas determinaçFes conceituais platKnico!aristotélicas so#re o discurso

     poético e retórico vemos a recepção posterior da filosofia não apenas @vencer

    culturalmente a poesia e a retórica da antiuidade cl&ssica, mas posteriormente tam#ém

    vemos a filosofia, com uma persist$ncia tão poderosa "uanto sutil, so#repor!se ao

    discurso poético e retórico liado 7s reliiFes monote(stas medievais, so#reposição "ue

    se torna vis(vel no humanismo renascentista e se e%plicita finalmente com o processo de

    @desteoloização da filosofia, especialmente com a o#ra de ;escartes, e "ue se

    consuma no @anLncio da morte de ;eus feito por Nietzsche. A"uilo "ue era um esto

    de auto!afirmação teórica e conceitual no mundo antio, torna!se, no mundo moderno,

    um valor social "ue efetivamente remete a poesia e a retórica ao posto de técnicas

    discursivas secund&rias diante da construção da ci$ncia e sua filha ciclópica, a

    tecnoloia.M  9ortanto, é somente no conte%to das sociedades ocidentais modernas,

    reidas pela ci$ncia e pela técnica, "ue a o#stinada aleação de superioridade da

    filosofia so#re a literatura do ponto de vista teórico anha o  status de um valor cultural

    tão evidente e tão radicalizado "ue ameaça a própria e%ist$ncia de parte da filosofia

    como @literatura disfarçada.

    A menção desses fatos conhecidos nos indica alo não tão reconhecido: "# nos

     pri$eiros séculos de e%ist&ncia da filosofia pode$os encontrar' retrospectiva$ente' u$

    con"unto de teses que caracteri(a$ de $odo u$ tanto vao e difuso u$a filosofia da

    literatura, ou seja, um conjunto de teses "ue determinam o modo como a filosofia pensa

    a literatura como alo dela necessariamente distinto e "ue precisa ser arreimentado a

     partir de uma auto!determinação da filosofia como atitude discursiva desde a "ual se

    esta#elece a estrutura e a função de todo discurso humano. 2ais especificamente,através da recepção e incorporação do platonismo e aristotelismo na Antiuidade tardia

    e na /dade 2édia, perce#emos nesses fatos mencionados aluns @momentos

    conceituais "ue determinarão a compreensão e investiação filosóficas da literatura na

    modernidade, particularmente com o advento da estética "ue emere a partir do século

    35///...

    5 Hm sintoma claro deste papel secund&rio da retórica e da poesia frente 7 racionalidade cient(fica na

    modernidade pode ser encontrado na reação de 5ico ao pensamento $ore eo$etrico  instaurado por ;escartes, reação "ue procura mostrar a oriem poética de todas as formas de sa#er humano.

    1*

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    Assim poder(amos encerrar nossa estória introdutória do tipo 0era uma vez so#re

    a relação filosofia!literatura. odavia, por mais arad&vel ou desarad&vel "ue possa

    soar essa #reve estória, ela est& ainda #em lone de poder apreender de modo ade"uado

    a comple%idade da relação filosofia!literatura, ou de dever ser tomada como um pano de

    fundo inevit&vel para formular uma concepção filosófica a#ranente e relevante da

    literatura, ou seja, para formular uma filosofia contempor)nea da literatura. Em primeiro

    luar, por"ue é a partir da filosofia, em sua intensa luta para se esta#elecer no conte%to

    cultural reo e antio, "ue se determina essa relação. s momentos conceituais

    mencionados não falam direta e ade"uadamente da relação entre filosofia e literatura,

    mas falam das primeiras formas de uma filosofia da literatura, ou seja, indicam o modo

    como a filosofia esta#elece sua diferença para com a literatura ao constituir para si

    mesma uma caracterização da literatura na e%ata medida em "ue se proclama como

    atividade discursiva privileiada a partir da "ual não apenas se determinaria a estrutura

    da totalidade, mas tam#ém a estrutura e os limites de todo discurso, incluindo suas

    formas poética e retórica.

    Em seundo luar, é apenas por meio de uma ilusão retrospectiva 4tend$ncia

    "uase @instintiva de projetar no passado os conceitos recentes, confundindo!os com

    suas oriens6 "ue podemos falar da poesia e da retórica como formas da literatura. Na

    realidade, o conceito de literatura, em sua polissemia atual, é #astante recente e

    representa, como indicarei depois, uma forma tipicamente moderna de compreensão do

    discurso humano, uma forma de compreensão "ue certamente enlo#a o "ue antes de

    seu surimento e%pl(cito se chamava de poesia e retórica, mas nem em sonhos pode ser 

    reduzido 7 compreensão do discurso a partir desses dois conceitos antios.B 

    Em terceiro luar, do ponto de vista da moderna teorização da história da

    literatura, a filosofia opera e mesmo institui um conjunto de @$neros liter&rios. A

    separação entre a literatura e a filosofia realizada por esta Lltima desde o mundo reo,6  2inhas an&lises da @modernidade dos conceitos de literatura e liter&rio se coadunam em v&riosaspectos 4não em todos6 com as propostas interpretativas so#re esses conceitos realizadas por 2icheloucault. No aspecto espec(fico a"ui colocado, as seuintes palavras do pensador são prop(cias: @Não étão evidente "ue ;ante, 'ervantes ou Eur(pedes sejam literatura. 'ertamente, hoje fazem parte daliteratura, pertencem a ela, mas raças a uma relação "ue só a nós diz respeito: fazem parte da nossaliteratura, não da deles, pela e%celente razão "ue a literatura rea ou latina não e%istem. Em outras

     palavras, se a relação da o#ra de Eur(pedes com a nossa linuaem é efetivamente literatura, sua relaçãocom a linuaem rea certamente não o era. 'f. H'AHG, 2.  )inuae$ e literatura. /n2A'8A;, O.  !oucault' filosofia e literatura. Oio de Paneiro: Qahar, ?CCM, p. 1JR. Na realidade,retomando um aspecto da estória acima contada, é poss(vel esta#elecer apro%imadamente o florescimentomoderno do conceito de literatura como um processo concomitante 7 perda de proemin$ncia cultural "ue

    a poesia e a retórica sofrem com o advento da moderna noção filosófica de racionalidade técnico!cient(fica.

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    se d& ao assumir, em diversos de seus te%tos fundamentais, v&rias técnicas e estilos de

    discurso "ue atualmente não hesitamos em considerar liter&rios: o poema, o aforismo, o

    di&loo, a ep(stola, o romance etc. A história da filosofia e a história da literatura

    ocidentais, no m(nimo, se confundem e se cruzam de modo comple%o em inumer&veis

    de seus momentos, não sendo nada simples, de um ponto de vista teórico mais amplo,

    mais moderno e mais rioroso separ&!las de modo ine"u(voco. Esses entrecruzamentos

    tornam a relação filosofia!literatura um pro#lema ainda em a#erto, pro#lema para o "ual

    este ensaio procura apresentar alumas pistas de investiação.D

    Em "uarto luar, e mais importante para meus propósitos nesse ensaio, as

    determinaçFes filosóficas da poesia e da retórica antes mencionadas 4#em como sua

    reestruturação na estética filosófica moderna6 são, por assim dizer, apenas uma @pré!

    história da filosofia da literatura "ue atualmente é necess&rio fazer, uma filosofia da

    literatura "ue tem de romper com a recepção, @acomodação e radicalização de tais

    determinaçFes antias realizadas pela estética filosófica moderna. ais determinaçFes

    antias "ue se renovam na estética filosófica moderna 4e no "uadro da filosofia "ue a

    envolve6 t$m de ser totalmente redimensionadas em uma perspectiva conceitual mais

    ampla, na "ual é poss(vel se levar devidamente a sério o conteLdo e o desafio presente

    no moderno conceito de literatura e, a partir dele, o desafio em a#erto na "uestão so#re a

    relação filosofia!literatura. ;ito de modo mais ade"uado, não apenas as determinaçFes

    filosóficas antias so#re a poesia e a retórica 4como primeiras manifestaçFes impl(citas

    de uma filosofia da literatura6, mas tam#ém a formação e desenvolvimento do modelo

    ) Este pro#lema j& foi identificado nas a#ordaens de filosofia da literatura recentes, mas a meu ver nãofoi ade"uadamente tratado. Alumas tentativas de an&lise do pro#lema se encontram em 8AS=EOS, S.G., P*, T. 4eds.6 * co$panion to the philosophy of literature. 2aldenU%ford: Tile-!=lacVell, ?C1C,

     primeira parte. am#ém não é nada frut(fero tomarmos a filosofia apenas como mais um tipo de discursoliter&rio, como, por vezes, tem sido suerido por autores ditos pós!modernos. Em especial, isso acarretauma ar#itrariedade diante da história dos conceitos, dado "ue en"uanto o conceito de filosofia tem mais

    de dois mil anos, o conceito de literatura, como mostrarei a#ai%o, só emere e%plicitamente na acepçãoem "ue o utilizamos h&, no m&%imo, mil, e, sendo ainda mais rioroso, talvez não tenha mais do "uetrezentos ou "uatrocentos. claro "ue podemos 4e até mesmo devemos6 empreender uma leitura dafilosofia como parte da história da literatura, tal como se começou a ler a =(#lia como literatura a partir de1RDC 4e mesmo antes6. Hm deslocamento an&loo aconteceu, por e%emplo, com os poemas homéricos, os"uais, na antiuidade cl&ssica eram te%tos reliiosos, mas "ue, com o advento do cristianismo, passaram aser tomados como te%tos liter&rios. odavia, esse deslocamento da leitura da filosofia como literatura nãoé uma mera @inclusão de classes. Antes, necessita de uma perspectiva ade"uada para não aca#armos emuma supersimplificação tanto da história da filosofia "uanto da história da literatura. 2inha @intuição é ade "ue somente se pode fazer uma an&lise ade"uada da filosofia como parte da história da literatura setivermos uma caracterização ade"uada do "ue pode sinificar os conceitos supostos nos adjetivos0filosófico e 0liter&rio. 9rocurarei apresentar uma caracterização eral do conceito de liter&rio a#ai%o.Hma tentativa recente de fazer uma leitura dos aspectos liter&rios da filosofia e relacion&!los com o

    escopo da filosofia da literatura se encontra em GANS, =. The anato$y of philosophical style: literary philosophy and philosophy of literature. 'am#ride: =lacVell, 1RRC.

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    estético de compreensão da literatura a partir do século 35/// t$m de ser tomadas, 7 luz

    da proposta "ue es#oçarei nesse ensaio, como uma @pré!história de uma filosofia da

    literatura "ue seja mais empiricamente ade"uada e mais antropoloicamente relevante

    do "ue as recentes filosofias da literatura orientadas pelo modelo estético ainda hoje

    heemKnico.

    omando em atenção mais diretamente o modelo estético, é preciso dizer "ue ele

    não é apenas uma continuação das determinaçFes antias so#re a poesia e a retórica.

    Antes, ele retoma as determinaçFes antias dentro do horizonte de uma filosofia

    cartesiana da su#jetividade, especialmente introduzindo como conceitos centrais para a

    compreensão da arte e da literatura as noçFes tipicamente modernas de sentimento,

     #eleza, osto, $nio e #elas!artes, conceitos "ue são assumidos como @crivos

    conceituais para se determinar "uais os o#jetos e eventos da natureza podem provocar 

    o sentimento de #eleza e para determinar como certas o#ras humanas possuem o

    estatuto de 0o#ras de arte e, mais especificamente, "uais os te%tos produzidos pelos

    seres humanos possuem o estatuto de 0o#ras de arte liter&rias. W lhemos ainda mais de

     perto tal modelo conceitual.

    ;esconsiderando as motivaçFes culturais e%tra!filosóficasR, a estética filosófica

    "ue emere no século 35/// é um desdo#ramento do horizonte conceitual "ue instaura

    de modo ine"u(voco a filosofia moderna: o horizonte da filosofia da su#jetividade "ue

    irrompe a partir da o#ra de ;escartes.1C  Hm dos aspectos mais importantes do

    empreendimento cartesiano est& em ter ele dado oriem 7 filosofia moderna ao

    reformular o pro#lema concernente 7 relação entre pensamento, linuaem e mundo,

     pro#lema "ue est& presente na filosofia ao menos desde 8er&clito e 9arm$nides. Apesar 

    da antiuidade da tem&tica, ;escartes esta#elece o par)metro de compreensão e

    * Na realidade, o modelo estético "ue emere entre o meio do século 35/// e as primeiras décadas do

    3/3 pode ser visto como uma reação 7 visão da arte proveniente da retórica e da poética tais como foramretomadas entre os séculos 35 e 35//. No entanto, a relação entre o campo retórico!poético e o estéticonão é de uma neação pura e simples, mas de uma a#sorção e su#stituição. Neste ponto, valem as

     palavras de odorov: @A estética começa no e%ato instante em "ue a retórica termina. dom(nio de umanão é e%atamente o da outra+ elas t$m, porém, pontos em comum suficientes para "ue sua e%ist$nciasimult)nea seja imposs(vel+ a realidade de uma sucessão não só histórica, mas conceitual j& era sentida

     pelos contempor)neos da mudança: o primeiro projeto estético, o de =aumarten, era calcado so#re aretórica. 4...6 A su#stituição de uma pela outra coincide, em linhas muito erais, com a passaem daideoloia dos cl&ssicos para a dos rom)nticos. 9oder!se!ia dizer, com efeito, "ue na doutrina cl&ssica aarte e o discurso estão su#metidos a um o#jetivo "ue lhes é e%terior, ao passo "ue nos rom)nticos elesformam um dom(nio autKnomo. ra, vimos "ue a retórica não podia assumir a ideia de um discurso "ueencontrasse a sua justificação em si mesmo+ a estética, por sua vez, só pode surir a partir do momentoem "ue se reconhece ao seu o#jeto, o #elo, uma e%ist$ncia autKnoma e em "ue o julamos não redut(vel a

    cateorias pró%imas, como o verdadeiro, o #om, o Ltil etc. 'f. ;O5, . Teorias do s+$bolo. *ão9aulo: Hnesp, ?C1>, p. 1WR!RC.

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    investiação moderno desta relação na forma de uma relação entre uma mente su#jetiva,

    interna eUou imaterial "ue, por meio de representaçFes 4e%pressas em ju(zos e

    infer$ncias6 orientadas por alum método aprendido ou espont)neo, pode vir a conhecer 

    a o#jetividade do mundo e%terior real.11 

    A estética se forma a partir do século 35/// tomando tal perspectiva de

    compreensão da relação pensamento!linuaem!mundo. Na realidade, o osto, o

    sentimento de #eleza, a #ela!arte e o $nio são modos su#sidi&rios de compreensão

    da"uilo "ue, por assim dizer, est& 7 marem da produção de conhecimento por meio das

    representaçFes controladas "ue se passam no teatro da mente de um sujeito racional em

    sua #usca pela o#jetividade do mundo. Xuando =aumarten determina a estética como a

    @ci$ncia do #elo conhecimento e, menos de um século depois, 8eel esta#elece a

    estética como @ci$ncia filosófica das #elas!artes 4e estas como a manifestação histórica

    + Alumas dessas motivaçFes podem ser assim descritas: a retomada dos modelos art(sticos do mundocl&ssico em conjunto com uma nova visão do imain&rio cristão+ o surimento de um conjunto de o#ras eartistas pautados pela fiuração realista e mimética a partir do Oenascimento+ a transformação da fiurado artista e o redimensionamento do conceito de arte antio e medieval na forma da noção de #elas!artesa partir dos séculos 35/ e 35//+ o radativo 4mas cont(nuo6 desenvolvimento da ideia de uma autonomiada arte e do artista relativamente ao Estado, 7 reliião e mesmo 7 sociedade. Essas e outras razFes maisdifusas permitem dizer "ue o surimento da estética filosófica é um epifenKmeno ou contrapartidafilosófica para o desenvolvimento do "ue podemos chamar de 0arte estética a partir do Oenascimento.'om efeito, a estética filosófica cl&ssica é uma @superestrutura conceitual "ue emere e%plicitamente noséculo 35/// e "ue se amolda como uma luva a este tipo de arte europeia "ue se faz desde o século 35 e,

    saltando o mundo medieval, "ue toma a arte reco!romana como um modelo oriin&rio, em#ora essemodelo seja um tanto estereotipado pela dist)ncia histórica e pela aus$ncia de e%emplares ou mesmo deestudos históricos mais apurados. utro aspecto e%tra!filosófico importante consiste em "ue oOenascimento, #em antes da estética filosófica 4e suas comple%as relaçFes com as poéticas doOomantismo6, instaura culturalmente a noção do $nio. Nas palavras de Arnold 8auser: @ elementofundamentalmente novo na concepção renascentista de arte é a desco#erta do conceito de $nio, e a ideiade "ue a o#ra de arte é criação de uma personalidade autocr&tica, de "ue essa personalidade transcende atradição, a teoria e as reras, até a própria o#ra+ é mais rica e mais profunda do "ue a o#ra e imposs(vel dee%pressar ade"uadamente em "ual"uer forma o#jetiva. 4'f. 8AH*EO, A.  ,istória social da arte e daliteratura. *ão 9aulo: 2artins ontes, ?CCJ,  p. JJW6 2ais adiante, porém, reconhece ser somente noséculo 35/// "ue tal noção se torna corrente tanto na cultura art(stica "uanto filosófica da Europa:@En"uanto as oportunidades do mercado de arte permanecem favor&veis ao artista, o cultivo daindividualidade não se converte em mania de oriinalidade Y o "ue só vir& a ocorrer na época do

    maneirismo, "uando novas condiçFes no mercado de arte eram dolorosas pertur#açFes econKmicas parao artista. 2as a própria ideia de @$nio oriinal só se manifesta no século 35///, "uando, na transição do

     patroc(nio privado para o mercado livre não!proteido, os artistas veem!se o#riados a travar uma luta pela e%ist$ncia material mais dura do "ue jamais fora até então. 4'f.  -de$, p. J>C!>16. Hma minuciosaan&lise so#re o surimento da noção de $nio no Oenascimento se encontra em E2/*N, 9. A. .reatin the /divine0 artist: fro$ 1ante to 2ichelanelo. GeidenU=oston: =rill, ?CC>.

    10 Htilizo a"ui o termo 0horizonte como indicando uma a#ertura de compreensão muito eral em "uealuma tem&tica ou pro#lem&tica pode ser investiada a partir de diferentes modelos. Assim, @dentro deum mesmo horizonte, é poss(vel haver diferentes modelos, a"ui entendidos como estruturas conceituaismais espec(ficas "ue e%ploram o espaço de compreensão a#erto em um horizonte. 9or fim, @dentro decada modelo é poss(vel o desenvolvimento de diversas teorias concorrentes e complementares "ue sevalem de um mesmo @cen&rio conceitual de fundo. ;e modo mais am#(uo, mas necess&rio por conta da

    comple%idade e polissemia dos temas e pro#lemas tratados, utilizarei tam#ém a noção de perspectiva paraindicar tanto um horizonte "uanto alum de seus modelos espec(ficos.

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    e sens(vel do esp(rito a#soluto6, forma!se como "ue um consenso a respeito do sentido

    eral da estética como um campo de investiação filosófica so#re o sentimento de

     #eleza diante dos o#jetos ou eventos naturais, mas so#remaneira diante das o#ras das

     #elas!artes capazes de instanciar a #eleza e provocar seu sentimento nos espectadores1?.

    Em par com a atividade intelectual de produção do conhecimento "ue se cristaliza

    nas ci$ncias, #em como com o senso moral e sua poss(vel efetivação 4livre ou não6 nas

    açFes e comunidades éticas, o sentimento de #eleza passa a denotar uma das dimensFes

    fundamentais da relação entre a su#jetividade da mente 4ou esp(rito6 e a o#jetividade do

    mundo e%terior 4ou realidade6.1J No final do século 3/3, a estética, ao lado da ética e da

    epistemoloia ou teoria do conhecimento, j& denota um dos campos de investiação da

    filosofia moderna.1> udo se passa a( como se o conceito de arte fosse desde sempre j&

    determinado pela noção de #ela!arte e a estética é assumida como a @descrição das

    11 #viamente esta descrição é apenas caricatural e, por assim dizer, did&tica. 'omo se sa#e, os termos0sujeito, 0su#jetividade, 0o#jeto e 0o#jetividade nem se"uer ocorrem na o#ra filosófica mais importantede ;escartes, ou seja, suas  2edita34es $etaf+sicas. Apenas na terceira meditação 4Z1D6 aparece ae%pressão 0realidade o#jetiva 4realitas ob"ectiva6 desinando a diferença entre ideias "ue possuem apenasrealidade formal 4e%istentes apenas na mente6 e a"uelas "ue possuem tam#ém realidade o#jetiva 4"uee%istem na mente e possuem um correspondente na realidade e%tra!mental6. 'om efeito, o horizontecartesiano da filosofia da su#jetividade só se torna descrit(vel pela terminoloia a"ui adotada no século3/3, "uando entram plenamente em uso, na filosofia e fora dela, termos como 0su#jetividade,

    0o#jetividade, 0representação etc. As consideraçFes cr(ticas "ue são a"ui feitas so#re o horizonteconceitual cartesiano e seus desdo#ramentos no modelo estético devem sempre ter em vista a randeza eo car&ter histórica e conceitualmente ine%or&vel "ue esse horizonte possui para a própria possi#ilidade daformulação de uma perspectiva mais ampla. Essa o#servação pode parecer trivial para aluns, mas énecess&ria para evitar as cr(ticas panflet&rias atualmente tão em moda.

    12 Neste ponto, é importante notar "ue a estética filosófica "ue se constitui a partir de diferentes fontes4especialmente inlesas, francesas e alemãs6 entre 1DJC e 1DRC est& heemonicamente pautada pelosentimento de #eleza "ue os sujeitos podem o#ter dos o#jetos ou eventos naturais, e somente de modosecund&rio do sentimento de #eleza diante dos o#jetos art(sticos. Esse car&ter secund&rio pode provir dasuposição de uma divisão entre o sentimento @espont)neo e aparentemente universal "ue se haure doso#jetos e eventos naturais 4tema mais ade"uado para a filosofia6 e o sentimento @cultivado, dependentedo osto e da cr(tica, "ue é necess&rio para a fruição da #eleza "ue envolve as o#ras de arte. 'omo "uer 

    "ue seja, é somente com o advento do Oomantismo europeu "ue começa a inversão "ue ainda hoje est&esta#elecida no modelo estético, ou seja, a noção de "ue o sentimento de #eleza se d& primordialmentediante dos o#jetos art(sticos e secundariamente diante dos o#jetos e eventos naturais. A consumação dessainversão é #em vis(vel nos .ursos de estética de 8eel 4pu#licados em 1WJM6, consumação especialmentesim#olizada em sua céle#re tese, encontrada loo no in(cio do te%to, seundo a "ual @pode!se desde j&afirmar "ue o #elo art(stico est& aci$a da natureza. 9ois a #eleza art(stica é a #eleza nascida e renascidado esp+rito  e, "uanto mais o esp(rito e suas produçFes estão colocadas acima da natureza e seusfenKmenos, tanto mais o #elo art(stico est& acima da #eleza da natureza. *o# o aspecto for$al , mesmouma m& ideia, "ue porventura passe pela ca#eça dos homens, é  superior  a "ual"uer produto natural, poisem tais ideias sempre estão presentes a espiritualidade e a li#erdade. 4cf. 8ESEG, S. T. . .ursos deestética, vol. 1. *ão 9aulo: Edusp, ?CC1, p. ?W, rifos do autor6. A partir de seus desdo#ramentos

     posteriores, a estética filosófica estar& fundamentalmente associada a certo modo de consideração dahistória das artes 4entendidas como #elas!artes6. A posição central de 8eel na estética filosófica dos

    séculos 3/3 e 33 é incontest&vel. Ela é vis(vel em v&rias das teorias estéticas mais difundidas do século33, a sa#er: nas teorias de 'roce, de GLVacs e de Adorno.

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    condiçFes necess&rias para "ue "ual"uer o#ra humana possa ser considerada uma 0o#ra

    de arte.

    Assim, começa!se a utilizar a noção de uma 0e%peri$ncia estética como dimensão

     peculiar da su#jetividade, uma e%peri$ncia su#jetiva de #eleza diante da natureza ou, de

    modo mais usual, diante das o#ras das #elas!artes. Hma evid$ncia dessa cristalização da

    estética como campo autKnomo da filosofia se encontra na visão de ree, apresentada

    no in(cio de um de seus mais famosos te%tos, 5 pensa$ento 41R1W6, no "ual assume

    como ó#vio ser a lóica a teoria do verdadeiro, assim como a ética é a teoria do #em e a

    estética a teoria do #elo, especialmente a"uele #elo "ue é desencadeado a partir das

    o#ras de arte 4particularmente na forma da poesia6 1M.

    Em#ora a estética filosófica constitu(da no século 3/3 não se volte em nenhum de

    seus momentos teóricos relevantes para uma an&lise do conceito de literatura Y uma vez

    "ue pensa o "ue chamamos de literatura e%clusivamente através dos conceitos de poesia

    e prosa1B  Y a import)ncia de e%por sumariamente estes randes traços do mapa

    conceitual do modelo estético se encontra no fato de a filosofia da literatura recente

    4constru(da tanto na tradição continental "uanto na tradição anal(tica6 estar 

    13  Em#ora essa tripartição das formas de relação entre sujeito e o#jeto j& estivessem impl(citas nafilosofia e na cultura intelectual desde o final do século 35//, é somente na terceira cr(tica de . *ão 9aulo: Edusp, ?C1>, p. 11!>B, 1JD!JW. Em nenhum dostr$s h& "ual"uer uso ou an&lise relevante do termo 0literatura.

    2(

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    heemonicamente pautada por tal modelo, "uer pautada positivamente, "uer 

    neativamente. Esse modelo estético de compreensão e investiação da arte e da

    literatura é assumido como pressuposto para a suposta evid$ncia de "ue a filosofia da

    literatura seria uma parte da filosofia da arte 4entendida, no mais das vezes, como

    sinKnimo da estética6, ca#endo a tal campo espec(fico a tarefa de determinar "uais as

    caracter(sticas 4intr(nsecas ou relacionais6 "ue pertencem 7s 0o#ras de arte liter&rias,

     #em como determinar os padrFes e par)metros através dos "uais os seres humanos

    realizam a @e%peri$ncia estética dessas mesmas o#ras. 2esmo "uando a filosofia da

    literatura se vincula tam#ém aos es"uemas conceituais provenientes da filosofia da

    linuaem, ela ainda pensa a literatura essencialmente como o conjunto de 0o#ras de

    arte liter&rias "ue e%i#em 0caracter(sticas estéticas relevantes e "ue, portanto, estão

    @ontoloicamente separadas de todos os outros tipos de discurso, especialmente ao se

    lhes atri#uir as caracter(sticas do metafórico e do ficcional.

    Apesar de certa transformação da filosofia nos Lltimos dec$nios, em especial com

    a cr(tica 7 filosofia da su#jetividade e da representação, a imaem eral da arte e da

    literatura suposta pelas filosofias da arte e da literatura continua ainda presa ao pano de

    fundo do modelo estético enraizado no horizonte cartesiano da filosofia, "uer tentando

    corriir ou aperfeiçoar este modelo em termos conceituais mais recentes, "uer tentando

    superar ou inverter os valores esta#elecidos por este modelo.1D 9ortanto, uma filosofia

    da literatura "ue procure construir um modelo conceitual mais amplo do "ue o modelo

    estético tem necessariamente de assumir um horizonte teórico mais amplo so#re a

    relação pensamento!linuaem!mundo do "ue a"uele instaurado e e%plorado pela

    filosofia a partir de ;escartes. *em essa perspectiva mais ampla de compreensão e

    investiação da relação pensamento!linuaem!mundo "ual"uer tentativa de construir 

    um modelo conceitual capaz de caracterizar de modo empiricamente ade"uado e

    antropoloicamente relevante os conceitos de arte e literatura corre o risco de se tornar 

    1)  A tentativa de continuidade e aperfeiçoamento do modelo estético de compreensão da arte e daliteratura é dominante em autores da chamada tradição anal(tica. A tentativa de superação ou inversão domodelo estético é dominante nos autores da chamada tradição continental. Em am#os os casos, a@constelação conceitual da estética é em aluma medida preservada, mesmo neativamente. A tentativa"ue ser& feita a"ui não se alinha nem 7s met&foras conceituais da continuidade e do aperfeiçoamento, nem7"uelas outras da superação e da inversão. Não se trata nem de continuar, nem de ultrapassar o modeloestético ou mesmo o horizonte cartesiano, mas de enlo#&!los e reavaliar seus conceitos a partir de uma

     perspectiva mais ampla. ;e todo modo, estas caracterizaçFes são mais caricaturais e did&ticas do "uedescritivas e riorosas em relação 7 comple%idade do panorama teórico recente.

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    ininteli(vel ou, simplesmente, recair nas suposiçFes de fundo da estética filosófica

    tradicional apenas travestidas em eufemismos conceituais.1W

     No presente ensaio, o termo 0literatura aponta para uma perspectiva

    necessariamente contempor)nea de investiar como a relação entre pensamento e

    mundo se d& através do discurso. 9ortanto, a filosofia da literatura aqui propunada

    deve ser to$ada co$o u$a  filosofia do discurso ' entendendo o conceito de discurso

    co$o u$a $odalidade se$iótica funda$ental pela qual os seres hu$anos se

    relaciona$ consio $es$os' co$ os de$ais e co$ o $undo e$ que habita$' visando

    constituir sentido para suas vidas neste $es$o $undo . al filosofia do discurso se

    realiza dentro de um horizonte de compreensão da relação pensamento!linuaem!

    mundo "ue pode ser caracterizado de modo eral como semiótico. 1R Antes de passar 7

    1* Oetiro a ideia de ade"uação emp(rica da filosofia da ci$ncia de =as van raassen, "ue propFe talconceito como um su#stituto mais male&vel para a noção forte de verdade como condição para aaceita#ilidade de uma teoria, ou seja, uma teoria pode ser aceit&vel, mesmo não sendo verdadeira emsentido cl&ssico 4correspondencial6, desde "ue seja capaz de @salvar os fenKmenos: ter poder e%planatório, valor heur(stico, operosidade metodolóica etc. conceito de relev)ncia antropolóica éinspirado no conceito de relev)ncia ecolóica, proposto pelo psicóloo Pames Si#son em sua cr(tica aocar&ter demasiado artificial dos e%perimentos levados a ca#o na psicoloia emp(rica do século 33. critério de relev)ncia ecolóica recomenda "ue um e%perimento em psicoloia emp(rica é tanto maisrelevante "uanto é capaz de se apro%imar da vida mental dos seres humanos em suas circunst)ncias e

     padrFes cotidianos de e%ist$ncia. ;e modo eral, esses dois conceitos são tomados como critériosmale&veis e radativos para avaliar propostas teóricas filosóficas, cient(ficas 4e mesmo art(sticas6 so#re arelação pensamento!linuaem!mundo. Em luar de esperar por uma teoria "ue seria pretensamente

    verdadeira em sentido a#soluto eUou de esperar por uma teoria capaz da maior universalidade conceitual poss(vel, é pelo  grau de ade"uação emp(rica 4a capacidade de @salvar os fenKmenos envolvidos namencionada relação6 e pelo  grau  de relev)ncia antropolóica 4a capacidade de se apro%imar damaterialidade histórico!eor&fica da condição humana6 "ue acredito tanto podermos avaliar de modomais razo&vel as virtudes de "ual"uer proposta teórica so#re a relação pensamento!linuaem!mundo,"uanto compreender de modo mais sinificativo o papel da arte e da literatura nesta mesma relação.

    1+  fato de denotar, em primeira inst)ncia, tal horizonte teórico pelo adjetivo 0semiótico não sinifica"ue eu aceite tudo a"uilo "ue tem sido feito so# o nome de 0semiótica. 2inha orientação dentro destehorizonte é marcadamente proveniente da concepção semiótica esbo3ada por 9eirce. 'omo horizonteteórico, alumas @intuiçFes conceituais e arumentativas me interessam de modo eral no esp(rito 4maisdo "ue na letra6 "ue anima a semiótica de 9eirce. Alumas das noçFes erais da semiótica de 9eirce 4j&entendidas de certo ponto de vista peculiar6 "ue me interessam são: 4i6 a a#ordaem da relação mesma

     pensamento!linuaem!mundo através da noção de sinificação ou semiose e não a tentativa de diluir esta relação em alum de seus )m#itos componentes+ 4ii6 a noção da semiose como processonecessariamente psicossom&tico "ue est& para além da separação mente!corpo, #em como da dicotomiateoria!pr&tica 4resultante do pramatismo6, de tal modo "ue as açFes são tam#ém processos sinificantes enão apenas as representaçFes discursivas e mentais+ 4iii6 a concepção do sino para além do modelo daram&tica e a distinção por função 4e não por $nero6 entre sino e o#jeto+ 4iv6 a adoção de uma visãofali#ilista e a#erta do método filosófico, capaz de permitir sua interação com os sa#eres técnico!cient(ficos e art(sticos, #em como, por isso, a incorporação de diversas tend$ncias da filosofia do século33, superando as disputas estéreis. 'om essas caracterizaçFes erais, é f&cil perce#er "ue a orientação

     peirceana dentro do horizonte semiótico nada tem a ver com uma e%eese de sua o#ra comple%a emultifacetada, mas tem a ver com sua a#sorção en"uanto horizonte teórico suficientemente amplo parainvestiar a relação pensamento!linuaem!mundo de modo distinto da"uele realizado pela filosofiatradicional. 9ara além das diversas colet)neas dos te%tos de 9eirce 4a começar pelos oito volumes dos

    .ollected papers6 "ue e%i#em suas investiaçFes semióticas, uma refer$ncia recente mais j& indispens&vel para se compreender o desenvolvimento da semiótica ao lono da o#ra de 9eirce e suas antecipaçFes de

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    e%ploração deste horizonte como mais apropriado para a investiação do conceito de

    literatura, cumpre apresent&!lo de modo sum&rio em contraste direto com o horizonte

    tradicional de compreensão da relação pensamento!linuaem!mundo, horizonte "ue

    sustenta a aparente evid$ncia da compreensão e interpretação estéticas da literatura na

    maioria das concepçFes filosóficas recentes?C.

    Este horizonte é semiótico por"ue assume a sinificação 4semiose6 como )m#ito

     prim&rio e concreto da relação pensamento!linuaem!mundo, ou seja, como sendo

    sempre instanciada na relação "ue os seres humanos mant$m consio mesmos, com os

    demais e com o mundo através dos processos concretos de sinificação e dos códios

    sinificantes "ue os tornam poss(veis ?1. No horizonte tradicional de compreensão da

    relação pensamento!linuaem!mundo, esta é analisada a partir do priviléio auferido

    ao discurso so#re outros códios sinificantes e, dentre as formas de discurso, a forma

    do discurso declarativo como a"uela capaz de ser portadora de um valor de verdade por 

    ser essencialmente marcada por uma pretensão de verdade. A partir desta compreensão

    da polissemia do conceito de linuaem como sendo redut(vel ao conceito de discurso e,

    so#retudo, de discurso declarativo, torna!se inevit&vel "ue a polissemia do conceito de

     pensamento aca#e reduzida 7s noçFes de esp(rito, mente ou racionalidade, noçFes

    essencialmente entendidas como tendo a finalidade prec(pua de o#eter conhecimento+

     #em como se torna inevit&vel "ue a polissemia do conceito de mundo seja tomada como

    redut(vel 7s noçFes de realidade, ess$ncia ou o#jetividade. ;e modo sim#ólico, é

     poss(vel entender "ue o horizonte tradicional de compreensão e investiação da relação

     pensamento!linuaem!mundo é um horizonte veritativo, ou seja, um horizonte teórico

     pautado fundamentalmente pelo conceito de verdade como finalidade prec(pua da

    v&rias teses e arumentos da filosofia do século 33 é: *8O, . G. Peirce7s theory of sins. 'am#ride:'am#ride H9, ?CCD. Hma colet)nea de te%tos de 9eirce "ue discutem direta ou indiretamente a semiótica

    se encontra em 9E/O'E, '. *. 8e$iótica. *ão 9aulo: 9erspectiva, ?CCC.

    20  Em sua confiuração conceitual moderna, este horizonte tradicional é a"uele esta#elecido pelafilosofia da su#jetividade e da representação instaurada especialmente a partir de ;escartes. 'ontudo, as

     #ases de tal horizonte remontam 7 recepção medieval da filosofia antia, especialmente a"uela centradana investiação dos conceitos de ser e unidade. Em suma, os autores mais importantes "ue estão na #asedo horizonte tradicional de compreensão da relação pensamento!linuaem!mundo são 9arm$nides,9latão, Aristóteles e, de modo @su#liminar, 9lotino.

    21 Em um desdo#ramento recente "ue conrea a ci#ernética, a #ioloia e a psicoloia, os processossinificantes t$m sido analisados não apenas nas correlaçFes entre seres humanos e o mundo natural ehistórico "ue ha#itam, mas tem sido estendido com sucesso pelo "ue se tem chamado de #iossemiótica 7an&lise das relaçFes sinificantes "ue se encontram na natureza viva em eral. Hma a#ordaem

    introdutória e uma seleção de te%tos cl&ssicos da #iossemiótica encontra!se em: A5AOEAH, ;. 4ed.6 9sssential readins in biose$iotics. ;ordrecht: *priner, ?C1C.

    2)

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    relação entre mente e realidade através de discursos declarativos "ue podem o#ter o

     status de conhecimento ou ci$ncia.

     Nos termos da recente filosofia da linuaem, o horizonte tradicional est& fundado

    na ideia de uma an&lise das condiçFes de verdade do discurso, e este, avaliado a partir 

    da forma do discurso declarativo ou asserção en"uanto modo discursivo capaz de ser 

    verdadeiro ou falso.?? Em contraste com este, o horizonte semiótico não toma a relação

    entre pensamento e mundo como sendo necess&ria ou primariamente dada por meio do

    discurso, nem mesmo do discurso declarativo. discurso é, sem dLvida, o mais

     proeminente sistema de sinos através dos "uais os seres humanos se relacionam

    consio mesmos, com os demais e com o mundo. poss(vel mesmo defender "ue o

    discurso é não apenas o códio sinificante mais proeminente do ponto de vista

    histórico, mas inclusive antropolóico e evolutivo. 'ontudo, essa proemin$ncia não é

    e%clusividade ou necess&ria primariedade so#re os demais sistemas de sinos. s

    diversos códios não!discursivos ou semi!discursivos postos em o#ra pelos diversos

    tipos de sa#er humano são tam#ém processos sinificantes "ue, em#ora possam ser 

    analisados pelo discurso, não podem ser ade"uadamente compreendidos em seus modos

     peculiares de sinificação unicamente com #ase na estrutura ramatical, retórica ou

    lóica do discurso em eral ou do discurso declarativo.?J 

    Em contraste com a ideia de uma an&lise das condiçFes de verdade do discurso, é

     poss(vel entender "ue o modelo semiótico de compreensão da relação entre pensamento

    e mundo através da linuaem est& centrado na ideia de uma an#lise das condi34es de

     sentido da sinifica3ão e$ eral' be$ co$o do discurso co$o for$a proe$inente de

     sinifica3ão. /sso não "uer dizer "ue tenhamos de simplesmente a#andonar a noção de

    verdade 4e, com ela, as noçFes correlatas de #em e #eleza6, mas sinifica "ue temos de

     perce#er "ue antes de discursos e "uais"uer outros processos sinificantes serem

    verdadeiros ou falso, #ons ou maus, #elos ou feios, tais processos t$m de  fa(er sentido

    22 Em#ora a noção de 0condiçFes de verdade seja recente, um de seus maiores divuladores, ;onald;avidson, remete a oriem de tal noção na história da metaf(sica 7 o#ra de 9latão e Aristóteles. 'f.;A5/;*N, ;. @he method of truth in metaph-sics. /n ;A5/;*N, ;.  -nquiries into truth and interpretation. %ford: %ford H9, 1RR1, p. 1RR!?1>. ;avidson estava consciente do desafio posto peloconceito de literatura para sua proposta de uma teoria das condiçFes de verdade do discurso. Hmatentativa do autor de arreimentar certa visão tradicional do conceito de literatura a partir da teoria dascondiçFes de verdade encontra!se em @Gocatin literar- lanuae. /n ;A5/;*N, ;. Truth' lanuae'and history: philosophical essays. %ford: %ford H9, ?CCM, p. 1BD!1W1. ;entro do escopo da filosofia dalinuaem e da linu(stica recentes, a ideia de "ue a sinificação 4 $eanin 6 seria plenamente analis&velem termos de uma sem)ntica verifuncional tem sido posta em dLvida em v&rios tra#alhos, particularmentea"ueles liados aos desenvolvimentos da teoria pram&tica da sinificação discursiva. 5eja!se, em

    especial, /EN, '.  )inuistic $eanin' truth conditions and relevance: the case of concessives. Nova/or"ue: 9alrave, ?CCM.

    2*

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    co$o instncias particulares de códios sinificantes partilhados. 9ortanto, a

    centralidade do conceito de sinificação 4não reduzido 7 sinificação discursiva6

    assumida pelo horizonte semiótico de compreensão e investiação da relação

     pensamento!linuaem!mundo é o "ue permite a construção de uma filosofia da

    literatura para além do modelo conceitual da estética cl&ssica, como uma filosofia do

    discurso não mais considerada como sinKnimo de 0filosofia da linuaem, nem

    centrada no discurso declarativo, mas como uma filosofia do discurso entendida como

    uma an&lise das condiçFes de sentido "ue tornam poss(veis as diversas formas pelas

    "uais os seres humanos se relacionam consio mesmos, com os demais e com o mundo

    através dos v&rios modos historicamente constitu(dos de processos sinificantes

    discursivos.

    ;o ponto de vista semiótico, a sinificação 4semiose6 é um conjunto de processos

    de construção de sentido para a vida humana no mundo, processos "ue sempre pFem em

     joo formas de correlação entre eventos psicof(sicos 4mentais e corporais6, estruturas

    sinificantes 4sint&tica, sem)ntica e pramaticamente constitu(das6, entrelaçamentos

    comple%o de sinos de v&rios tipos 4(cones, (ndices e s(m#olos6 e inst)ncias referenciais

    de mundo 4os indiv(duos, os demais seres humanos e os o#jetos e eventos naturais e

    históricos6. Antes de tais processos serem verdadeiros ou falsos, #ons ou maus, #elos ou

    feios, ou serem determinados por "ual"uer par conceitual derivado destes ou a eles

    associados, tais processos se realizam como formas de construção de sentido para a vida

    humana no mundo e, por isso, de construção de sentido do mundo para a vida humana

    envolvida por ele. ais processos sinificantes 4dentre os "uais, de modo proeminente,

    os discursivos6 t$m de primariamente fa(er sentido. Essa visão seundo a "ual a função

    23 Em eral, os e%emplos mais comuns de códios sinificantes e%tra!discursivos prov$m das artes pl&sticas 4desenho, pintura, ravura, escultura, ar"uitetura, cinema etc.6 ou então da mLsica e da dança.

    'ontudo, em um n(vel mais a#strato, os códios matem&ticos 4especialmente após o fracasso doloicismo6 são outro campo de e%emplos menos considerado de códios sinificantes e%tra!discursivos. em especial com o advento e%pl(cito da &le#ra e da an&lise matem&tica "ue perce#emos o "uanto oscódios matem&ticos não são redut(veis 7s estruturas lóico!ramaticais "ue se podem encontrar nodiscurso em suas diversas funçFes. Ali&s, é interessante notar "ue o in(cio do desenvolvimento da lóicamatem&tica, com =oole, coloca como um de seus princ(pios metodolóicos a hipótese seundo a "ual, por tr&s da estrutura ramatical do discurso pode estar um estrutura matem&tica @pré!discursiva. tam#ém a

     partir do desenvolvimento da &le#ra #ooleana "ue 9eirce assume um car&ter mais fundamental doscódios matem&ticos em relação 7 lóica matem&tica e aos códios discursivos. Ademais, como j&indicado antes, tam#ém nossas açFes 4em toda a ama de suas formas6 devem ser consideradas como

     processos sinificantes "ue realizam sentido para nossas vidas no mundo: entre os códios sinificantese%tra!discursivos, temos de incluir tam#ém nossas açFes, na medida em "ue elas possuem um sentido

     para nós mesmos eUou para outros. Em suma, as açFes são sempre, "uer acompanhadas de palavras ou

    não, processos sinificantes. isso, ali&s, "ue torna tão atrativa a literatura em sentido mais estrito: elae%plicita em palavras os poss(veis sentidos de nossas açFes não!discursivas.

    2+

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    do discurso é um modo privileiado de constituição de sentido para a vida humana no

    mundo pode ser sintetizada pela noção de "ue o "ue nos torna humanos no meio do

    mundo é nossa capacidade de produzir processos de sinificação sempre adapt&veis de

    alum modo a nossas necessidades am#ientais e culturais. mundo, na medida em "ue

    é estruturado como a fusão dos horizontes mais erais de sentido, como a"uilo "ue

    usualmente chamamos de cultura e tradição, pode ser considerado como nossa

    semiosfera?>: o @luar onde os processos concretos de sinificação podem fazer ou não

    sentido. omo o conceito de semiosfera como o conjunto de códios sinificantes

     partilhados por uma comunidade de pessoas em um determinado espaço!tempo

    eor&fica e historicamente situado, conjunto de códios "ue são condiçFes de sentido

     para os processos concretos de sinificação operados pelos indiv(duos e rupos

    humanos. Esses códios são a"uilo "ue permite nossa individuação como pessoas com

    identidade pessoal dentro de uma comunidade cercada de o#jetos com sinificado e

    valores conceituais de fundo dispon(veis para avaliarmos em "ue medida nossas

    realizaçFes t$m ou não sentido dentro deste mesmo conte%to.

    A contraparte necess&ria dessa @atmosfera de sentido em "ue estamos imersos

    consiste nos processos sinificantes concretos "ue realizamos neste am#iente de o#jetos

    com sinificado e valores conceituais. A concretude desses processos de sinificação

    4discursivos ou e%tra!discursivos6 pode ser denotado pelo neoloismo 0semanturia.?M A

    2(  conceito de semiosfera foi inicialmente proposto por Iuri Gotman em um artio oriinalmente pu#licado em 1RW>. 'f. G2AN, I. @n the semiosphere. /n 8in syste$s 8tudies, v. JJ, n. 1, ?CCM,trad. Tilma 'larV, p. ?CM!??R. A noção de semiosfera é e%plicitamente proposta por analoia com anoção ecolóica de #iosfera. 'ontudo, a semiótica de Gotman analisa a sinificação dos códios e%tra!discursivos essencialmente a partir do modelo da ram&tica, mantendo!se alinhada ao horizonteconceitual da semioloia inspirada na linu(stica de *aussure. Aproprio!me a"ui do termo 0semiosfera

     para denotar o am#iente cultural em "ue os v&rios códios sinificantes se fundem para permitir o espaço!tempo semiótico "ue d& sentido aos processos sinificantes particulares. odavia, não creio "ue talespaço!tempo semiótico em "ue se fundem diversos códios partilhados por rupos humanos possa ser 

    ade"uadamente analisado em todos os seus aspectos conforme o modelo da ram&tica e da metafórica dote%to.

    25 Apresentei caracterizaçFes erais mais e%tensas so#re o conceito de semanturia em ;E AG2E/;A, N. E.  -nsinua34es: ensaios sobre filosofia da arte e da literatura. lorianópolis: ficinas deArteU=ernLncia, ?CCD. Neste livro, apresentei a semanturia através da seuinte descrição conceitual esim#ólica: a sinificação 4semanturia6 consiste no processo de pKr o mundo em o#ra na linuaem,tornando a linuaem mundo vivido e vivente na correlação sinérica entre percepção, memória eimainação dos indiv(duos e rupos humanos. Etimoloicamente, o termo 0semanturia é composto dedois semantemas: 0semant! e 0!uria, juntos, @traduzem de certa perspectiva, o termo 0sinificação.Essa tradução conceitual pretende tomar o termo 0sinificação primariamente como uma correlação

     primariamente indissoci&vel de pensamento, linuaem e mundo. ;e certo modo, o termo conceito desemanturia é uma tradução conceitual do conceito de semiose, enfatizando "ue este deve ser 

    compreendido como o )m#ito da rela3ão  pensamento!linuaem!mundo entendida de um modoempiricamente mais ade"uado e antropoloicamente mais relevante.

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  • 8/16/2019 Sobre a Letra Do Espirito Hipoteses Semi

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    semanturia pode ser caracterizada como o vasto conjunto de operaçFes de construção

    de sentido para a vida humana no mundo através dos processos sinificantes "ue

    instanciam os códios semióticos compartilhados por uma comunidade de indiv(duos,

     processos "ue tanto mant$m "uanto transformam a semiosfera em "ue nos movemos

    como seres capazes de e%peri$ncia individual e coletiva no mundo natural e histórico

    "ue ha#itamos. Essa operação individual e coletiva de sinificação Y de construção,

    manutenção e transformação de sentido para a vida humana no mundo Y forma nossa

    semiosfera en"uanto espaço!tempo de uma cultura. 9ortanto, a semanturia vive no

    espaço!tempo da semiosfera "ue ela atualiza e transforma, ou seja, a sinificação, como

    operação de construir sentido para a vida humana no mundo através de códios e

     processos sinificantes, se realiza sempre no espaço!tempo da cultura, mas essa

    realização não é apenas atualização de alo pré!e%istente e fi%o, mas a transformação

    desta mesma cultura ou semiosfera.

    s processos sinificantes discursivos, portanto, são a"ueles "ue, por meio de

     palavras, levamos a ca#o em uma determinada semiosfera. Hma filosofia da literatura

    entendida como uma filosofia do discurso en"uanto um @dispositivo humano de

     produção de sentido para a vida humana no mundo procura mostrar as condiçFes de

    sentido "ue permitem ao discurso levar a ca#o esta tarefa. Essa filosofia da literatura

    não é nem estética nem filosofia da linuaem, mas coloca essas duas divisFes da

    filosofia tradicional em "uestão. 5ejamos rapidamente por "u$.

    Esta perspectiva de filosofia da literatura coloca a estética em "uestão ao

     pressupor "ue os processos sinificantes 4e os códios "ue os tornam poss(veis6 são

    técnicas ou artes, de modo "ue o conceito de arte, em sua maior amplitude poss(vel, tem

    de ser visto como uma constante antropolóica de #ase para a compreensão do modo

    como os seres humanos se relacionam consio mesmos, com os demais e com o mundo.

     Nesta perspectiva, mais do "ue um ho$o sapiens Y um animal "ue possui consci$nciade si e do mundo Y o @animal humano é um ho$o faber : um animal "ue constrói

    4material e espiritualmente6 sentido para si mesmo em um mundo cultural @fa#ricado

     por ele em cooperação com os outros. Assim, o discurso é uma das técnicas de

    e%ist$ncia 4fundamentais6 através das "uais os humanos constituem, material e

    espiritualmente, sentido para suas vidas no mundo. A"uilo "ue, sim#olicamente, é

    representado no conceito de literatura é a própria multiplicidade criativa de modos pelos

    "uais o discurso é capaz de se tornar para nós uma forma de nos orientarmos 4ou nos perdermos6 no mundo e não apenas, como costumamos supor no mundo moderno, um

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  • 8/16/2019 Sobre a Letra Do Espirito Hipoteses Semi

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    campo periférico e supérfluo de discursos capazes de nos aprazer deste ou da"uele

    modo. conceito de literatura, mais do "ue "ual"uer outro conceito liado 7 palavra,

    indica a polifonia de modos "ue, ao lono de nossa #reve história no universo, o

    discurso se fez realidade humana e nos ajudou a constituir e manter alum sentido para

    nossa fr&il e%ist$ncia neste mesmo mundo. A"uilo "ue a estética cl&ssica indica pela

    noção de o#ra de arte, na realidade, não é um $nero de o#jetos destinado a ser #elos e a

    nos causar o sentimento de #eleza. =em antes, os o#jetos "ue usualmente indicamos

     pelo termo 0o#ra de arte são o refle%o condensado e sim#ólico desta multidão de

    técnicas de e%ist$ncia "ue pomos em o#ra para constituir sentido para nossas vidas no

    mundo.

    2as uma tal concepção da filosofia da literatura como filosofia do discurso

    tam#ém coloca a filosofia da linuaem tradicional em "uestão. 9rimeiramente, por"ue

    não toma a forma do discurso declarativo como a forma prim&ria e privileiada a partir 

    da "ual seria poss(vel compreender a multiplicidade de aspectos da sinificação

    discursiva. 'omo indicarei depois, se aluma forma discursiva é mais #&sica na função

     prec(pua de construção de sentido para a vida no mundo, esta forma só pode ser a"uilo

    "ue é indicado pelo conceito de narrativa. A asserção e a definição, como os produtos

    mais no#res do discurso declarativo, são forma altamente sofisticadas e @su#limadas do

    discurso e não sua forma mais fundamental.

    2as, em seundo luar, uma filosofia da literatura como filosofia do discurso

    tam#ém coloca a filosofia da linuaem tradicional em "uestão por não tomar o

    conceito de linuaem como sinKnimo do conceito de discurso. conceito de

    linuaem não aponta para o de discurso 4como heemonicamente se pensou e se

     pensa6, mas para a multiplicidade virtualmente infinita de modos pelos "uais se d& a

    sinificação humana. termo 0linuaem é apenas uma indicação formal e meton(mia

    de uma pro#lem&tica "ue envolve a própria relação dos seres humanos consio mesmos,com os demais e com o mundo. A proliferação de sentidos 4na maior parte das vezes

    desprezada pelos filósofos6 do termo linuaem é apenas o ind(cio de "ue a limitação

    tradicional do conceito de linuaem ao de discurso não é mais sustent&vel. Assim, ao

    falarmos da filosofia da literatura como uma filosofia do discurso, estamos, na

    realidade, tomando o discurso como um 4e sem dLvida indispens&vel6 códio

    sinificante e não como o sinKnimo do campo indeterminado da sinificação "ue é

    indicado pelo termo linuaem. Na realidade, como as pes"uisas recentes da psicolinu(stica t$m apontado, o discurso est& entrelaçado com uma multidão de outros

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    códios sinificantes "ue vão dos modelos matem&ticos a#stratos até a materialidade

    fant&stica das redes neuronais, mas "ue passam sem dLvida pelos par)metros culturais

    em "ue somos formados e em "ue atuamos.

    Esse Lltimo "uestionamento e%ie "ue o discurso seja filosoficamente reavaliado

    em seu entrelaçamento e sim#iose com outros códios sinificantes não!discursivos ou

    semi!discursivos, em seu enraizamento concreto na construção de sentido para a vida

    humana no mundo. Essa visão semiótica do discurso é ao mesmo tempo haurida da"uilo

    "ue usualmente chamamos de literatura e procura interpret&!la como o luar onde o

    discurso apresenta seu sentido semiótico prim&rio: não o sentido de dizer a verdade, mas

    o sentido de dar sentido 7 vida humana no mundo. Assim, a literatura em sentido usual

    não é um conjunto de te%tos e atitudes discursivas "ue estão 7 marem de nossos

    interesses vitais, "ue são o#jeto de prazer e lazer, mas representa a realização mais

     #&sica do discurso, sua intenção de dar sentido para nossas vidas para além de #em e

    mal, de verdade e falsidade, e, de modo mais desafiador em relação 7 sua compreensão

    estética dominante, para além de #elo e feio. odavia, para "ue a proposta não fi"ue

    apenas no campo da eneralidade, é necess&rio considerar a $nese do conceito de

    literatura, mostrando por"ue é justamente sua polissemia "ue tanto e%ie "uanto permite

    esse tipo de a#ordaem do discurso humano como forma de produção de sentido para a

    vida humana no mundo.

    0 ( UMA BRE+E ALE1ORIA CO)CEITUAL: SOBRE A 1*)ESE DO

    MODER)O CO)CEITO DE LITERATURA

    termo 0literatura é notoriamente poliss$mico. ;e um lado, pode indicar a"ueles

    te%tos "ue, para uma cultura ou perspectiva teórica, são tomados como tendo o car&ter 

    de o#ras de arte. ;e outro, pode denotar a totalidade dos te%tos humanos produzidos e preservados de alum modo. A atitude filosófica diante dessa polissemia pode variar.

    Hma primeira atitude pode ser a de tomar tal termo não como propriamente

     poliss$mico, mas como am#(uo, de tal modo "ue seus usos não supFem um Lnico

    conceito, devendo!se parafrasear cada um deles a partir do real conceito "ue este supFe,

    desam#iuando!o e dissolvendo!o em seus verdadeiros supostos. Hma seunda atitude

     pode ser tentar encontrar uma hierar"uia onde um entre seus v&rios usos seria postulado

    como prim&rio e a partir do "ual seria poss(vel não apenas definir o "ue é literatura, mastam#ém compreender os demais usos, "uer como usos le(timos em relação ao sentido

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     prim&rio ou como usos ile(timos 4a#usos6 em relação a este areado de sentidos

    enu(nos, usos "ue deveriam ser a#olidos ou modificados.?B  Hma terceira atitude

    consiste em considerar "ue seus diversos usos só t$m, entre si, certos parentescos de

    fam(lia, de tal modo "ue não se poderia encontrar um sentido prim&rio, mas apenas

    correlaçFes analóicas e descentradas entre seus diferentes usos.?D 

    Acredito "ue, to$ada co$o ponto de partida2  a Lltima atitude é #astante

     promissora, uma vez "ue não toma a polissemia do conceito de literatura 4suposto nos

    diversos usos do termo 0literatura e conatos6 como possuindo uma @ar"uitetura

    sem)ntica fi%a, fechada e sincrKnica "ue poderia ser descrita de uma vez por todas,

    nem dissolve 4@analisa6 os diferentes usos do mesmo termo remetendo!os aos

    conceitos "ue eles verdadeiramente suporiam e "ue nada teriam a ver uns com os

    outros. Hma tal consideração a#erta e analóica dos v&rios usos do termo 0literatura

    indicaria um conceito poliss$mico "ue pode ser suposto nesses v&rios usos, mas "ue não

     poderia ser totalmente captado em seus contornos por uma Lnica an&lise, uma vez "ue

    tal polissemia necessariamente tem de ser vista 7 luz da história dos usos do termo, ou

    seja, a polissemia do conceito de literatura através de seus v&rios usos aponta para uma

    @eorafia sem)ntica a#erta, móvel e diacrKnica. Assumindo esta perspectiva, faz!se

    26 al é a proposta de Aristóteles "uando analisa conceitos poliss$micos "ue não se restrinem 7 unidadede um $nero ou tipo eral de o#jetos, tais como os conceitos de ser, #em, unidade, pot$ncia eefetividade. A proposta aristotélica, em#ora os seus detalhes sejam por vezes o#scuros e controvertidos,consiste em esta#elecer um $nero prim&rio 4especialmente o $nero de o#jetos denotado pelo conceitode su#st)ncia ou ess$ncia 4ousia66 "ue desempenharia o papel de sinificado focal de tais conceitos,$nero a partir do "ual, de modo definitivo, seria poss(vel arreimentar a polissemia de tais conceitos,distinuindo entre seus usos le(timos e seus usos ile(timos. 'ontudo, essa proposta pressupFe uma@ar"uitetura sem)ntica fi%a e fechada, en"uanto o conceito de literatura possui uma @eorafiasem)ntica móvel e a#erta. alar de uma polissemia a#erta consiste em perce#er "ue a estrutura derelaçFes entre as sinificaçFes de um conceito não pode ser determinada a partir de um $nero prim&riofi%o e fundamental a partir do "ual seriam leitimadas e e%plicadas as sinificaçFes secund&rias desseconceito.

    2) Esta suestão de an&lise do conceito de literatura é feita por Pohn *earle, em#ora ele o faça apenas demodo muito r&pido do seuinte modo: @Em primeiro luar [ sc. por "ue não se deveria confundir oconceito de discurso liter&rio com o de discurso ficcional\, não h& nenhum traço ou conjunto de traços"ue todas as o#ras liter&rias tivessem em comum e pudessem constituir condiçFes necess&rias esuficientes para "ue alo fosse uma o#ra liter&ria. 9ara usar a terminoloia de Tittenstein, a noção deliteratura é uma noção por semelhança de fam(lia. 'f. *EAOGE, P. O. @ estatuto lóico do discursoficcional. /n *EAOGE, P. O.  9%pressão e sinificado: estudos da teoria dos atos de fala. *ão 9aulo:2artins ontes, ?CC?, p. RD. Neste mesmo conte%to, porém, *earle prefere outra visão, por assim dizer,@disposicional so#re o conceito de literatura, seundo a "ual @ca#e ao leitor decidir se uma o#ra éliter&ria, ca#e ao autor decidir se ela é uma o#ra de ficção.  -de$, ibide$. ;e todo modo, não assumirei anoção ittensteiniana de 0parentesco de fam(lia de modo ortodo%o, mas através de sua inserção em umaestrutura conceitual mais ampla "ue ser& indicada a#ai%o. Hma recente tentativa de aplicar a noção de0parentesco de fam(lia para caracterizar o conceito de literatura em contraste com outras tentativas de sua

    definição se encontra em NET, '.  Philosophy of literature ; an introduction. GondresUNova /or"ue:Ooutlede, 1RRR, cap. ?.

    3(

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    necess&rio proceder uma história enealóica e es"uem&tica do termo 0literatura, na

    "ual veremos "ue tal termo indica um conceito de oriem antia, mas cuja sinificação

    conceitual em "ue o utilizamos é #astante pró%ima de nós no tempo!espaço das

    sociedades ocidentais.

    A formação le%ical do termo 0literatura emere no conte%to do mundo romano

    "ue se apropriava da cultura rea. Giteralmente, o latim 0 litteratura traduz o termo

    reo 0 ra$$atik&, ou seja, em sua oriem, o termo 0literatura é um sinKnimo do

    termo 0ram&tica. Gone de ser apenas uma disciplina "ue esta#elece as reras do uso

    correto da l(nua, a ram&tica rea é tam#ém o luar onde são ensinadas, interpretadas

    e, portanto, salvauardadas e transmitidas as o#ras memor&veis escritas em prosa ou em

    verso. Hm testemunho ao mesmo tempo céle#re e racioso desta correlação e de como

    ela se cristaliza no final da antiuidade se encontra em uma passaem do aleórico  *s

    núpcias de !iloloia e 2ercúrio, escrito por 2arciano 'apella 4séc. 5 d. '.6. 'apella

    apresenta a correlação 4@tradução6 de 0 ra$$atik& por 0litteratura a partir do

    elemento material da letra 4littera6, personificando e @corporificando a Sram&tica

    aleoricamente:

    ra, as minhas partes são "uatro: as letras 4litterae6, a literatura4litteratura6, o letradoUliterato 4litteratus6, o ]estilo^ liter&rio4litterate6. As letras são a"uilo "ue eu ensino 4doceo6+ a literatura sou

    eu mesma, "ue ensino+ o letradoUliterato é a"uele "ue eu ensinei+ o]estilo^ liter&rio é a"uilo so#re o "ue tratar& com per(cia "uem euformo 4infor$o6, apresentando!lhe a natureza do discurso 4orationis6 ecomo trata!lo. a partir da natureza "ue sure o discurso 4 oratio6,]mas^ é pelo o uso 4usus6 "ue assim o chamamos. A estes seacrescenta ainda a matéria, por"ue valoramos ]primariamente^ acoisa da "ual falamos. discurso em si mesmo é transmitido4eruditur 6 em tr$s n(veis, "uais sejam: a partir da letra 4litteris6, das(la#a 4 syllabis6 e a partir da fala 4verbis6.?W

    A aleoria em "ue a própria Giteratura, personificada, apresenta suas partes como

    as partes e funçFes de um corpo nos mostra "ue 2arciano 'apella j& toma o termo de

    usos anteriores. "ue se mostra em 'apella é justamente o sentido intrinsecamente

    formativo e proped$utico associado ao conceito de literatura. No sistema das *ete Artes

    Gi#erais "ue é esta#elecido para toda a /dade 2édia na raciosa o#ra de 'apella, a

    literatura indica o aprendizado da escrita e da leitura, "ue permitir& a introdução das

    2* 'f. 'A9EGGA, 2. )e no((e di !iloloia e 2ecurio  4latim!italiano6. 2ilão: =ompiani, ?CC>, p. 11B!1D, tradução própria.

    35

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    duas seuintes artes li#erais "ue formarão o "ue os medievais chamarão de triviu$: a

    dialética e a retórica.?R 

    2ais ou menos um século depois, 'assiodoro apresenta o primeiro ind(cio do

    sentido amplo "ue o termo 0literatura viria a ad"uirir posteriormente. Hma de suas

    o#ras fundamentais intitula!se  -nstituitiones divinaru$ ac saeculariu$ litteraru$  4c<

    MMC!MWC6, t(tulo "ue podemos traduzir apro%imadamente como  -nicia3ão nas obras

    liter#rias divinas e seculares. te%to de 'assiodoro tem um importante valor por"ue

    antes de apresentar as *ete Artes Gi#erais esta#elecidas de modo canKnico na cultura

    ocidental a partir da j& mencionada o#ra de 2arciano 'apella, apresenta uma lona

    introdução aos procedimentos de estudo e aos principais e%eetas das *aradas

    Escrituras. Na realidade, como e%plica o pref&cio da o#ra, é por causa da aus$ncia de

    uma escola 4devido ao constante estado de Suerra em "ue Ooma se encontrava então6 e

    de mestres para o ensino direto, especialmente das Escrituras, "ue o senador romano

    escreve sua o#ra. 2ais do "ue uma leitura direta das Escrituras e das o#ras liter&rias

    seculares 4paãs6, o te%to de 'assiodoro é um conjunto de indicaçFes so#re as principais

    teses dos estudiosos mais eminentes das Escrituras 4Givro /6 e so#re os principais temas

    estudados nas artes li#erais, associadas ao estudo das o#ras liter&rias paãs 4Givro //6. A

    o#ra, portanto, é uma introdução não 7s o#ras mesmas, mas uma introdução 7s o#ras e

     princ(pios de estudos das o#ras divinas e secularesJC. 

    Em#ora o termo 0litteraru$ do t(tulo se refira tanto aos te%tos dos e%eetas

     #(#licos "uanto dos e%eetas das o#ras paãs, 'assiodoro parece manter uma distinção

    entre o conceito de literatura e o de escritura. s te%tos paãos e as o#ras destinadas a

    sua interpretação são chamados de 0literatura secular 4 saecularis litterae6. A =(#lia, ao

    contr&rio, é denominada pela e%pressão 0saradas Escrituras 4divina$ 8criptura$6.

    2+ *o#re as fontes, motivos e recepção da o#ra de 'apella, veja!se NH'8EG2AN*, S. @9hiloloia et

    son mariae avec 2ercure jus"u7 la fin du 3//e si_cle. /n NH'8EG2AN*, S. 8tudies in the history of loic and se$antics' =>th6=?th centuries. Aldershot: Ashate, 1RRB, p. 1!?>. Em#ora o te%to de 'apellaseja considerado o te%to fundador da ordem cl&ssica das 0*ete Artes Gi#erais, ou seja, do triviu$4ram&tica, retórica e dialética6 e do quadriviu$ 4aritmética, eometria, astronomia e mLsica6, no te%todas @úpcias a ordem do triviu$ aparece na seuinte ordem: ram&tica, dialética e retórica. Essa ordemreflete uma maior import)ncia da retórica so#re a dialética, indicando a posição do autor na "uerela entrea filosofia e a retórica "ue inicia e%plicitamente em 9latão. interessante notar "ue 9eirce, ao ela#orar a@ar"uitetura conceitual de sua semiótica, procura faz$!lo enraizando!a no triviu$, dado "ue, por "uasedois mil anos, a investiação filosófica e e%tra!filosófica da linuaem se pautou por essas tr$sdisciplinas.

    30  preciso a"ui lem#rar "ue tam#ém *anto Aostinho 4um século antes de 'assiodoro6, especialmenteatravés de seu  1a doutrina cristã, e /sidoro de *evilha 4pouco depois de 'assiodoro6, com sua

    enciclopédica o#ra 9ti$oloias, contri#uem decisivamente para instituir no curr(culo medieval o estudode diversos autores e o#ras paãos como preparação eral para o melhor estudo das Escrituras.

    36

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    Assim, em#ora usando pela primeira vez o conceito de o#ra liter&ria para denotar tanto

    os te%tos paãos "uanto os cristãos, permanece no interior da o#ra certa cisão entre

    literatura e escritura. mais importante, porém, consiste no deslocamento do termo

    0literatura como sinKnimo latino da ram&tica rea para denotar, com aluma

    am#iuidade, o conjunto dos escritos so#re as Escrituras e so#re a literatura paã.

    Apesar de ser uma o#ra #em mais #reve e mais simples do "ue a de 2arciano 'apella,

     por sua difusão posterior 4talvez justamente devida ao seu car&ter sintético6J1, o te%to de

    'assiodoro pode ser visto como a primeira manifestação de uma passaem do conceito

    de literatura como denotando o estudo das o#ras liter&rias modelares do verso e da prosa

    4rea e romana6 7 literatura como conjunto de te%tos "ue tam#ém interpretavam estas

    o#ras, #em como as Escrituras. 9arece ser justamente esta visão so#re o conceito de

    literatura e o#ra liter&ria, em contraste am#(uo com as *aradas Escrituras, "ue se

    consolida na posterior tradição intelectual medieval e "ue ser& herdada pelos pensadores

    renascentistasJ?.

    2as a recepção dessa clivaem conceitual pelos renascentistas se transformar&

     profundamente em relação aos séculos medievais em "ue ela inicialmente viorou.

    'omo j& suerido por tienne Silson, a compreensão renascentista da literatura e do

    liter&rio é um suced)neo comple%o do decl(nio de um amplo conjunto de o#ras antias

    4paãs e cristãs6 no sistema de ensino das universidades medievais "ue começavam a se

    constituir no século 3///. justamente neste século "ue a diversidade de te%tos 4paãos

    e cristãos6 da tradição antia e medieval "ue preenchia o curr(culo das *ete Artes

    Gi#erais nas escolas e monastérios d& radativamente luar ao novo modo como essas

    artes são estudadas nas universidades nascentes, a sa#er: através do crescente estudo e

    coment&rio das o#ras de Aristóteles e dos mais destacados autores e comentadores "ue

    em torno dessas o#ras ravitam de alum modo. JJ  desenvolvimento da Escol&stica

    31 *o#re este aspecto e uma visão eral so#re o valor de 'assiodoro na tradição dos estudos liter&rios,veja!se 'HO/H*, E. O. 9uropean literature and the latin 2iddle *es. 9rinceton: 9rinceton H9, 1RRC, p.>>W!>MC.

    32 A cisão esta#elecida por 'assiodoro entre literatura e Escrituras só seria "uestionada no século 3/3,"uando a censura institucional e social, movida pela secularização crescente da cultura europeia, érela%ada e se pode ampliar o conceito de literatura ao ponto de incluir tam#ém a =(#lia 4e outros livrossarados6 como parte dos estudos liter&rios e da história da literatura. odavia, é somente nos Lltimoscin"uenta anos "ue tem crescido o nLmero de estudos so#re os aspectos liter&rios da =(#lia e de outroste%tos sarados.

    33 2as seria um rave e"u(voco pensarmos "ue o papel do corpus aristotelicu$ estava confinado ao deum o#jeto de estudo, uma vez "ue os filósofos e teóloos escol&stico aplicaram seus métodos e conceitos

    tanto para compreender o mundo natural e o luar do humano nele, "uanto para compreender as "uestFesteolóicas derivadas das Escrituras e a ordem das coisas divinas nelas e por elas reveladas.

    3)

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    radativamente pFe de lado a maioria das o#ras do antio curr(culo, em especial como

    tinha se desenvolvido nas escolas e nos monastérios desde o século 5//. 9recisamente

    "uando o estudo da literatura 4paã e cristã6 reco!romana e do alto medievo declina e

    radativamente desaparece das universidades nascentes, justamente a( esta mesma

    literatura é rece#ida de outro modo pelos diversos @heróis "ue, aos poucos mas

    decididamente, começam a constituir o "ue viemos a chamar de OenascimentoJ>.

    'omo j& mostrado por historiadores da literaturaJM, na recepção de autores como

    ;ante, 9etrarca, =occaccio, 'haucer e Oa#elais, a literatura antia e medieval se torna

    não apenas um o#jeto de estudo, mas tam#ém um modelo de imitação e de emulação,

    uma tarefa de tradução e uma fonte de inspiração. Esses autores, ademais, fazem a

    transição da literatura constitu(da nas l(nuas cl&ssicas 4especialmente o latim6 para as

    literaturas constru(das nas l(nuas vern&culas 4o "ue, mais recentemente, chamamos de

    0literaturas nacionais6, inicialmente nas l(nuas italiana e francesa, e, pouco depois, nas

    l(nuas inlesa e alemã. /niciada com a enial ousadia de ;ante, 9etrarca e =occaccio,

    esta transição da literatura cl&ssica para a construção das modernas literaturas nacionais

    tanto dar& oriem 7 noção de uma 0Oepu#lica das Getras JB, "uanto, mais tarde, Y 

    "uando os Estados nacionais j& possuem uma fisionomia própria na forma pol(tica das

    monar"uias e na forma econKmica do mercantilismo Y transformar!se!& na metamórfica

    e ramificada @Xuerela entre os Antios e os 2odernos. JD  Nesse (nterim, forma!se a

    comple%a constelação de homens, o#ras, fatos e instituiçFes "ue realiza a passaem da

    /dade 2édia 7 /dade 2oderna, e "usta$ente nessa transi3ão te$ luar a orie$ do

    3( 'f. S/G*N, E. * filosofia na -dade 2édia. *ão 9aulo: 2artins ontes, ?CC1, p. >RM!M1C+ WRM!RJW.  preciso lem#rar "ue o Oenascimento não apenas instaura uma nova forma de recepção dos te%tos antiose medievais releados pela Escol&stica a um seundo plano nos estudos superiores, mas promove tam#émuma verdadeira @caça ar"ueolóica dos te%tos cl&ssicos então praticamente desconhecidos, #em comosua rea#ilitação, reedição, tradução e estudo.

    35 enho em mente a"ui especialmente o monumental estudo de Sil#ert 8ihet so#re a recepção da

    tradição cl&ssica desde o in(cio da /dade 2édia até o século 33. 'f. 8/S8E, S. )a tradición cl#ssica,v. 1. 2é%ico: ondo de 'ultura, 1RRB, esp. caps. M!R.

    36 A noção de uma OepL#lica das Getras é ampla e comple%a, sendo aplic&vel desde o 8umanismo defins do século 35 4e, talvez, mesmo antes6 até a sociedade europeia do século 35///. *euem alumasrefer$ncias importantes para a caracterização desta concepção: IOAN, 8. Aetween utopia and dystopia<

     9ras$us' Tho$as 2ore' and the hu$anist Republic of )etters. GanhamU9l-mouth: Ge%inton =ooVs,?C1C. S;2AN, ;. The Republic of )etters< * cultural history of the !rench 9nlihtn$ent .GondresU`taca: 'ornell H9, 1RR>. 5eja!se ainda E/*EN*E/N, E. The printin press as an aent of chane. 'am#ride: 'am#ride H9, 1RWC, p. 1JB!1MR.

    3)  Hm panorama sinóptico desta comple%a controvérsia se encontra em 8/S8E, S.  )a tradicióncl#ssica, v. 1. 2é%ico: ondo de 'ultura, 1RRB, cap. 1>. Hma perspicaz leitura da Xuerela de um ponto de

    vista da contempor)nea história das ideias se encontra em ;ePEAN, P.  *ntios contra $odernos: as uerras culturais e a constru3ão de u$ fin de si_cle. Oio de Paneiro: 'ivilização =rasileira, ?CCM.

    3*

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    $oderno conceito de literatura. nesse intervalo entre o século 35 e o século 35//

    "ue desaparece radativamente o conceito antio e medieval de arte 4dividida entre artes

    manuais e artes li#erais6 por conta do advento das noçFes modernas de ci$ncia e

    técnicaJW, oriinando, como seu suced)neo moderno, o conceito eral de #elas!artes.JR

    2as todos esses aspectos por assim dizer @espirituais só foram poss(veis por"ue

    acompanhados pelo surimento da imprensa. A possi#ilidade de difusão e

    reproduti#ilidade técnica da escrita permitida pela invenção de Suten#er, constitui

    uma revolução material e social tão surpreendente e transformadora da mentalidade

    europeia 4e posteriormente mundial6 "uanto o foi, no século 5// a. '., a invenção da

    moeda como valor de troc


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