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Teoria Social de Habermas

Date post: 19-Nov-2015
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Livro de Habermas
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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros URIBE RIVIERA, FJ. Agir comunicativo e planejamento social: uma crítica ao enfoque estratégico [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1995. 216 p. ISBN: 85-85676-16-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Capítulo 2 - Teoria social de Habermas: evolução social, sociedade e poder Francisco Javier Uribe Riveira
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  • SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros URIBE RIVIERA, FJ. Agir comunicativo e planejamento social: uma crtica ao enfoque estratgico [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1995. 216 p. ISBN: 85-85676-16-7. Available from SciELO Books .

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    Captulo 2 - Teoria social de Habermas: evoluo social, sociedade e poder

    Francisco Javier Uribe Riveira

  • CAPTULO 2

    A T E O R I A S O C I A L D E H A B E R M A S :

    E V O L U O S O C I A L , S O C I E D A D E

    P O D E R

    1. APRESENTAO

    Neste captulo, faremos uma sntese da teoria da sociedade de Habermas, explicitando os conceitos de mundo da vida e de sistema - os dois componentes polares de sua concepo da ordem social. necessrio assinalar que a anlise do autor, formulada desde a perspectiva da teoria da ao, acentua que a questo terica de como possvel a ordem social remete questo de como se coordena a ao de (pelo menos dois) participantes de uma interao. Sob este pressuposto, mundo da vida e sistema so duas ordens institucionais que correspondem a duas formas bsicas de integrao (coordenao) da ao: a integrao social e a inte-grao sistmica.

    Esta sntese nos permitir entender a teoria da modernidade do autor, en-quanto um diagnstico da dinmica evolutiva das sociedades modernas, que se ca-racteriza por apresentar algumas tendncias gerais como: o "desengate" progressivo entre o mundo da vida (razo comunicativa) e as estruturas da reproduo material e do poder que se autonomizam e se configuram como sistemas, e a colonizao do mundo da vida pelo sistema (como tese fundamental). Nesse contexto, as formas de coordenao intersubjetiva da ao cedem espaos e em larga medida ficam subju-gadas pelas formas objetivas e estratgicas de coordenao que os sistemas realizam.

    Desta maneira, a anlise em termos de uma pragmtica formal (teoria dos usos prticos da linguagem via anlise ideal) se vincula, aqui, a uma anlise dos pro-cessos societrios, a qual nos permite entender a contradio bsica da modernida-de como uma tenso dialtica entre as duas formas de integrao aludidas, aplicvel teoria das organizaes.

    Inclumos neste captulo uma anlise crtica dos meios de controle social de Parsons, anlise que tende a questionar a possibilidade de generalizao de um tipo de racionalidade sistmica ou estratgica.

  • Inclumos, tambm, uma apresentao da teoria da evoluo social haber-masiana, na qual o autor precisa as caractersticas dos vrios estgios de desen-volvimento social por ele reconhecidos, e estabelece um dilogo crtico com o marxismo.

    Finalmente, apresentamos o conceito de poder do autor, que mantm uma coerncia estreita com a sua teoria da ao e com a teoria social.

    2. O CONCEITO DE MUNDO DA VIDA

    Inicialmente diremos que o conceito de mundo da vida corresponde ao hori-zonte onde se realiza uma situao de ao. o ambiente apreendido onde se situa uma ao. Esse ambiente se desloca medida que as situaes variam. Sobre esse(s) ambiente(s), os agentes dispem de saberes prvios ou de pressuposies. O mundo da vida em relao ao horizonte esse conjunto de referncias que os agentes cons-troem lingisticamente e acumulam, servindo para orientar a compreenso de cada ao "nova" (no caso, de cada "novo" ambiente situacional).

    Sob outro aspecto, o mundo da vida o conjunto de referncias culturais e de outro tipo (como veremos) que permite interpretar os componentes internos de uma situao de ao (que se constitui a partir de temas especficos). o celeiro de interpretaes acumuladas ou de recursos que permite a definio de uma situao de ao a partir dos fins dos agentes. Esta acepo a do contexto cultural.

    O mundo da vida corresponde, por conseguinte, linguagem e ao reservat-rio cultural em cujo contexto os sujeitos desenvolvem a interpretao de uma situa-o e uma ao correlata.

    Como afirma Herrero:

    o mundo da vida introduzido como correlato dos processos de enten-dimento, pois os sujeitos que agem comunicativamente entendem-se sempre no horizonte lingstico de um mundo vital partilhado por eles. Este mundo forma o horizonte contextual em que os sujeitos sempre se movem no seu agir. nesse horizonte que os sujeitos ordenam os con-textos situacionais que se tornam problemticos atravs do andaime for-mal armado pelo trplice conceito de mundo e suas correspondentes pretenses de validade. A linguagem assim constitutiva do mundo da vida ...Mas alm de horizonte, o mundo de vida exerce a funo de re-servatrio cultural, no qual so conservados os resultados das elabora-es histricas realizadas pelos processos de ao. Neste sentido, o mundo da vida armazena o trabalho de interpretao feito previamente pelas geraes anteriores. Esta proviso de saber fornece a seus mem-bros convices de fundo admitidas e compartilhadas sem problemas. O mundo da vida o contrapeso conservador contra o risco de dissen so que surge com todo processo atual de entendimento. A cultura pois constitutiva do mundo vital. Assim, o mundo da vida como que o lugar transcendental em que falante e ouvinte se movem, onde eles po

  • dem levantar reciprocamente a pretenso de que seus proferimentos se ajustam ao mundo objetivo, social e subjetivo, onde eles criticam e con-firmam essas pretenses de validade, suportam seu dissenso e podem obter um acordo (HERRERO, 1987:20-21).

    Linguagem e cultura se condicionam mutuamente. A linguagem conserva as tradies culturais, as quais s existem sob uma forma simblica e na maioria dos casos atravs de uma encarnao lingstica; a cultura tambm marca a linguagem, pois a capacidade semntica de uma linguagem depende da complexidade dos con-tedos culturais, dos padres de interpretao, avaliao e expresso que essa lin-guagem acumula. Ambos os contextos ocupam um lugar semitranscendental, no sentido de que em face a eles os sujeitos no podem assumir uma posio externa, como se estivessem lidando com "algo no mundo" ou com instncias intramundanas: a linguagem que os sujeitos utilizam permanece "s suas costas"; impe-se a "tergo" sobre os sujeitos.

    Na interpretao culturalista, o conceito de mundo da vida diz respeito ao conjunto de recursos interpretativos que os atores utilizam para definir suas situaes de ao. Como totalidade, o mundo da vida indeterminado, ilimitado; permanece na "penumbra" como um marco inquestionado, aproblemtico (taked for granted). S aquele fragmento relevante para uma determinada situao de ao se projeta do contexto difuso do mundo da vida como totalidade e se evidencia como uma pr-compreenso situacional que pode ser tematizada (o que significa que essa com-preenso pode ser criticada e superada).

    Mundo da vida e ao comunicativa so dois conceitos complementares que se encontram em uma tenso permanente. O mundo da vida o horizonte da ao comunicativa (fornece a esta evidncias e certezas culturais de fundo) e a ao co-municativa reordena criticamente os elementos do mundo da vida, contribuindo para sua reproduo ou atualizao. Nas palavras de Habermas:

    La accin o Ia dominacion de situaciones, se presenta como um proce so circular en el que el actor es al mismo tiempo el iniciador de actos que le son imputables y producto de tradiciones en cujo seno vive, de grupos solidrios a que pertence e de procesos de socializacin y apren dizaje a que est sujeto. Mientras que a fronte el fragmento del mundo de Ia vida relevante para a situacin se le impone al actor como proble-ma que ha de resolver por su propia cuenta, a tergo ese mismo agente se ve sostenido por el transfondo de su mundo de Ia vida, que en modo algun se compone solamente de certezas culturales (HABERMAS, 1987:192).

    Alm da dimenso cultural, o mundo da vida articula os processos de intera-o social e de socializao dos indivduos. O mundo da vida fica assim constitudo por trs estruturas simblicas: cultura, sociedade e personalidade. Alm destes trs componentes simblicos deve considerar-se a reproduo material do mundo da vida, que se realiza atravs do meio da ao teleolgica, cuja lgica melhor capta-da pela perspectiva do sistema.

  • Habermas define assim os componentes simblicos:

    LLamo cultura al acervo de saber, en que los participantes en Ia comu nicacin se abastecem de interpretaciones para entenderse sobre algo en el mundo. Llamo sociedad a Ias ordenaciones legitimas a travs de Ias cuales los participantes en la interaccin regulan sus pertencias a grupos sociales, asegurando com ello Ia solidariedad. Y por personalidad entiendo Ias competencias que convierten un sujeito em capaz de len guaje e de accin, esto es, que lo capacitan para tomar parte en proce sos de entendimiento y para afirmar en ellos su prpria identidad (HA-BERMAS, 1987:196).

    Habermas no unilateraliza o conceito de mundo da vida. dimenso cultu ralista de Schutz, o autor agrega a dimenso da integrao social de Durkheim e a dimenso da socializao dos indivduos de Mead. A ao comunicativa (e seu cor-relato, o mundo da vida) cumprem, desta maneira, trs funes bsicas: atualizar a tradio e expandir o saber vlido (entendimento em nvel cultural); promover a in-tegrao social e a solidariedade (dimenso social); e promover ao longo do tempo biogrfico a formao da identidade pessoal, das competncias da personalidade (dimenso do tempo histrico).

    Nesta viso ampliada do mundo da vida, sociedade e personalidade no ape-nas operam como restries, mas tambm servem como recursos. "La aproblematici dad del mundo de Ia vida sobre cuyo trasfondo y a partir del cual se actua comunica-tivamente se deve tambien a la seguridad que dan al actor Ias solidariedades acredita-das y Ias competencias probadas" (HABERMAS, 1987:192). O nvel de racionalizao da ao comunicativa depende, portanto, do desenvolvimento cognitivo-moral dos indivduos e do grau de desenvolvimento normativo dos coletivos, os quais se acu-mulam como capacidades do mundo da vida.

    Os trs componentes simblicos do mundo da vida se condicionam recipro-camente. Quando a cultura oferece suficiente saber vlido para satisfazer a necessi-dade de entendimento, o processo de reproduo cultural contribui para a conser-vao dos outros dois componentes com legitimaes para as instituies existentes e com modelos de comportamento eficazes para a formao da responsabilidade. Quando a sociedade mostra uma solidariedade dos grupos capaz de satisfazer a ne-cessidade de coordenao da ao, o processo de integrao social oferece aos indi-vduos pertenas sociais reguladas legitimamente e obrigaes morais no plano da cultura. Quando os sistemas de personalidade formam uma identidade to forte ca-paz de dominar as situaes emergentes no mundo da vida, o processo de socializa-o fornece prestaes de interpretao cultura e motivaes para a ao confor-me as normas da sociedade (vide Fig. 2.1).

  • Figura 2 .1 . CONTRIBUIO DOS PROCESSOS DE REPRODUO PARA A CONSERVAO DOS COMPONENTES ESTRUTURAIS DO MUNDO DA VIDA

    As falhas nos mecanismos de reproduo ficam em evidncia quando as si-tuaes novas no podem ser articuladas com os estados ou recursos do mundo existentes, isto , quando o estoque de saber vlido, as normas sociais e as capaci-dades da personalidade no conseguem dar conta das novas situaes, promovendo o entendimento, a interao social e a motivao individual (ou quando esses recur-sos no se renovam ou se atualizam na medida suficiente para o cumprimento de suas funes). As falhas na reproduo cultural manifestam-se na perda do sentido e nas correspondentes crises de legitimao social e de orientao pessoal. O fracasso na integrao social manifesta-se.no estado de anomia e nos correspondentes confli-tos de insegurana da identidade coletiva e de alienao pessoal. As perturbaes do processo de socializao manifestam-se em patologias psquicas e nos correspon-dentes fenmenos de ruptura com a tradio e de perda de motivao (vide Fig. 2.2).

  • Figura 2 .2 . CRISES NAS PERTURBAES DE REPRODUO (PATOLOGIAS)

    Nesses trs casos, observa-se a escassez de trs recursos: "sentido", "solidarie-dade social" e "fora do eu".

    O processo evolutivo se caracteriza, para Habermas, pela crescente racionali-zao do mundo da vida, a qual se expressa pelo desenvolvimento progressivo da linguagem segundo uma lgica interna que aponta para uma maior capacidade de produzir consenso sobre a base de pretenses de validade diferenciadas e funda mentveis racionalmente.

    O autor avalia essa racionalizao atravs dos seguintes processos (HERRERO, 1987:25): H uma diferenciao estrutural do mundo da vida, entre sociedade e cultura,

    isto , entre os sistemas de instituies sociais e as vises do mundo; entre perso-nalidade e sociedade no sentido de que as relaes intersubjetivas vo se inde pendizando da regulamentao social (aumenta o espao de contingncia no es-tabelecimento dessas relaes); entre cultura e personalidade na medida em que a tradio cultural vai sendo submetida crtica inovadora dos indivduos;

    Esta diferenciao estrutural acompanhada de uma ulterior diferenciao entre forma e contedo. No plano cultural, destacam-se os elementos formais (como conceitos de mundo, processos de argumentao, valores abstratos...). No plano da sociedade, princpios universais so abstrados dos contextos particulares. No plano da personalidade, as estruturas cognitivas adquiridas nos processos de so-cializao separam-se dos contedos culturais (pensamento abstrato versus pen-samento concreto);

    diferenciao estrutural corresponde, finalmente, uma especificao funcional dos processos de reproduo que assumem tarefas especializadas. So significati-vas no mbito da tradio cultural os sistemas de ao para a cincia, direito e arte; no mbito da integrao social as modalidades de formao discursiva da vontade (formas democrticas de formao de uma vontade coletiva); no mbito da socializao a profissionalizao dos processos de educao. Esta ltima espe-cificao leva consigo um desdobramento reflexivo da reproduo simblica do mundo da vida.

  • A racionalizao do mundo da vida possibilita cada vez mais uma integrao social baseada no mecanismo de uma comunicao orientada para o entendimento como princpio coordenador da ao, isto , de uma comunicao orientada por pretenses da validade.

    No entanto, essa mesma racionalizao permite a introduo paradoxal de novos mecanismos de coordenao, melhor captados da perspectiva sistmica. Por enquanto nos satisfaremos com a seguinte compreenso: a ruptura do componente normativo com os ncleos dogmticos da tradio, a formalizao do direito (o qual passa a responder a princpios gerais e no a contedos especficos, garantindo o li-vre jogo do individual) e a autonomizao da moral em relao legalidade (a moral passa a depender mais intensamente da esfera da personalidade) configuram pro-cessos que unidos a uma especializao cada vez maior do mundo da vida geram uma sobrecarga comunicativa aumentada: os processos de entendimento depen-dem em maior intensidade de princpios altamente abstratos e das capacidades cog-nitivas dos indivduos. Cresce assim tanto a possibilidade do dissenso quanto a ne-cessidade do entendimento. No h mais um solo seguro onde se apoiar na tarefa do entendimento (papel que cumpria a tradio). Esta situao permite a generaliza-o dos mdiuns ou de novas formas de coordenao objetiva da ao, como o di-nheiro, o poder, a mdia etc., os quais atuam provocando uma descarga ou uma exonerao comunicativa que libera os atores da "pesada" responsabilidade pelo consenso.

    A teoria da modernidade de Habermas se baseia no diagnstico, de um lado, da progressiva racionalizao do mundo da vida (que coloca restries estruturais evoluo sistmica da sociedade) e, de um outro, do desengate progressivo do siste-ma a partir do mundo da vida, dando lugar autonomizao sistmica e ao subse-qente fenmeno da colonizao do mundo da vida. A penetrao da lgica sist-mica no mundo da vida explica em grande medida as patologias da sociedade mo-derna, o que sugere que a reproduo simblica do mundo da vida tambm pode ser afetada pelo sistema da reproduo material. Sobre este particular voltaremos mais adiante.

    Concluindo esta sntese do conceito de mundo da vida, importante assina-lar o seguinte: este conceito diz respeito ao pano de fundo comum a todos os atores envolvidos em uma mesma situao, ao seu horizonte social, constitudo pela expe-rincia comum, pelas mesmas tradies, pela lngua e a cultura compartilhada por todos e a todos acessvel. Este conceito se aplica, rigorosamente, a grupos sociocul turais mais ou menos homogneos. Nas situaes caracterizadas pela diferenciao sistemicamente induzida de grupos sociais, o correto seria falar em vrios mundos da vida, fragmentados. Neste caso, mais real, a diferenciao externa do mundo da vida representa um bice para o livre desenvolvimento da racionalidade comunicati-va, colocando em pauta mecanismos de regulao estratgica. Entretanto, a genera-lizao da racionalidade comunicativa em todos os grupos pode significar a possibili-dade (por sinal necessria) de que as situaes de interesses diferenciados ou situa-es estratgicas sejam resolvidas discursivamente, reduzindo-se o campo para a im-plementao de pretenses de poder. De qualquer maneira, situaes estratgicas iro conviver naturalmente com situaes comunicativas, em uma amlgama entre as operaes empricas ou de poder e as operaes discursivas.

  • 3. A INTEGRAO SISTMICA NA MODERNIDADE

    perspectiva de integrao social, acima definida como a coordenao da ao realizada a partir das trs orientaes bsicas da ao comunicativa (entendi-mento, integrao social e afirmao da responsabilidade pessoal), Habermas ope a forma de integrao sistmica como a integrao induzida mediante um controle no normativo de decises particulares, carentes subjetivamente de coordenao.

    integrao sistmica correspondem os dois sistemas bsicos: o sistema eco-nmico e o sistema estatal-burocrtico, os quais tornam-se gradativamente inde-pendentes de seus fundamentos prtico-morais.

    Habermas, que no um terico de sistemas, assume a definio parsoniana de sistema:

    Los sistemas vivos son entendidos como sistemas abiertos que mantie nen su consistencia frente a un entorno instable e supercomplejo por medio de processos de intercambio que se efectum atravs de sus limi-tes. Todos los estados sistmicos cumplem funciones en relacin con Ia pervivencia del sistema (HABERMAS, 1 9 8 7 : 2 1 4 ) .

    Assumindo a sociedade como um sistema aberto, o autor assinala que a evoluo sistmica se mede pelo aumento da capacidade de controle de uma sociedade.

    Para o programa "sistema social" o que interessa, segundo o autor, no o significado que uma ao tem para um ator, mas as conseqncias que uma ativida-de tem para um sistema de atividade. Neste caso, a coordenao da ao dos sujei-tos opera "atravs de um entrelaamento funcional de conseqncias da ao que permanecem latentes, i., que podem ultrapassar o horizonte de orientao dos im-plicados" (HABERMAS, 1 9 8 7 : 2 8 6 ) . A integrao sistmica uma forma de processos que asseguram a conservao e a manuteno do sistema.

    A necessidade de trabalhar com as duas perspectivas, a do mundo vivido e a do sistema, explica-se porque a perspectiva do mundo da vida unilateral e estreita: traduz a vivncia particular dos atores envolvidos em uma situao, na sua prxis quotidiana, e pressupe uma comunidade de interesses, s possvel no interior de um mesmo mundo. A perspectiva do sistema, em troca, vai dar conta da sociedade como um todo, com sua estrutura prpria, com seus mecanismos globais de auto-re gulao, transcendendo os interesses e as motivaes de atores particulares. Estas duas perspectivas correspondem ao do participante "de dentro" de uma determina-da situao (e mundo da vida) e ao do observador terico, que totaliza e objetiviza o mundo da vida, apreendendo suas segmentaes, conflitos e os influxos que sobre ele realiza o aparelho de reproduo material e o poder estratgico, como instncias "deslingistizadas" de controle global (FREITAG, 1 9 8 5 : 1 1 5 - 1 1 6 ) .

    Tendo em vista destacar ou justificar a perspectiva do mundo da vida, Haber-mas argumenta no sentido de que:

    - a racionalizao concreta do mundo da vida o nico parmetro para avaliar as patologias sociais da modernidade;

  • - a racionalizao do mundo da vida , em larga medida, uma restrio estrutural para as variaes sistmicas;

    - a racionalizao do mundo da vida ajuda a catalizar o processo de autonomiza-o dos mdiuns dinheiro e poder, que correspondem aos dois subsistemas bsi-cos que se diferenciam da ordem institucional;

    Vejamos, a seguir, quais so os elementos bsicos da ordem social burguesa, segundo o autor. Utilizaremos uma definio que deixa transparecer que os mundos da vida se adaptam aos mbitos de ao integrados sistemicamente:

    En Ia sociedade burguesa los ambitos de accin integrados socialmente adquieren frente a los ambitos de accin integrados sistemicamente que son Ia Economia e el Estado, Ia forma de esfera de Ia vida privada e esfe-ra de la opinin pblica, Ias cuales guardam entre s uma relacin de complementariedad. El ncleo institucional de Ia esfera de Ia vida priva-da Io constituye Ia familia pequea, exonerada de funciones econmicas y especializada en Ias tareas de Ia socializacion, Ia cual queda definida desde Ia perspectiva del sistema econmico como economia domstica, es decir, como un entorno del sistema econmico. El nucleo institucio-nal de Ia esfera de la opinin pblica Io constituem aquellas redes de comunicacin reforzadas inicialmente por Ias formas sociales en que se materializa el cultivo del arte, por Ia prensa, y ms tarde por los medios de comunicacin de massas, que posibilitam Ia participacin del pbli-co de ciudadanos en Ia integracin social mediada por la opinin pbli-ca. Las esferas de la opinin pblica cultural y poltica quedan definidas desde Ia perspectiva sistmica del Estado como el entorno relevante para Ia obtencin de Ia legitimacin (HABERMAS, 1987:452).

    O conceito bipolar de sociedade exige a distino de perspectiva na anlise das relaes de troca que nela se instauram.

    Do ponto de vista dos subsistemas, o sistema econmico troca salrios por prestaes de trabalho, e bens e servios por procura dos consumidores; o sistema administrativo troca prestaes organizativas por impostos, e decises polticas por lealdade das massas.

    Do ponto de vista do mundo da vida, cristalizam-se em torno dessas relaes de troca os papis sociais de trabalhador e de consumidor do lado da esfera privada, e de cliente e de cidado do lado da esfera pblica, (vide Fig. 2.3)

    Na regulao destas relaes podemos distinguir duas modalidades. Os pa-pis de trabalhador e de cliente mediatizam a relao dos sistemas econmico e ad-ministrativo com as correspondentes esferas privada e pblica do mundo da vida. Ambos os papis dependem da organizao, seja econmica, seja administrativa e, por isso, so definidos em relao a ela, embora regulados na forma do Direito. Os membros que assumem esses papis se desligam dos contextos do mundo da vida e se adaptam a mbitos de ao organizados formalmente.

  • A outra modalidade refere-se aos papis de consumidor e de cidado do Es-tado. Estes tambm so definidos em relao a mbitos de ao regulados formal-mente, mas no dependem da organizao. As regulamentaes jurdicas corres-pondentes tm a forma de relaes de contrato ou de direitos pblicos subjetivos, cuja realizao pressupe orientaes de ao provenientes de uma conduta de vida privada (esfera privada) e de uma forma de vida cultural e poltica dos indiv-duos socializados (esfera pblica). O sentido desses papis provm pois de processos precedentes de formao nos quais se formam as atitudes, as preferncias, os valo

  • res etc. Essas orientaes da ao so formadas na esfera privada e pblica do mun-do da vida. Assim, atravs dos papis de consumidor e de cidado do Estado surgem estruturas prprias de sentido que se manifestam nos modelos concretos de procura de bens (deciso de compra) e de legitimao da administrao (deciso de eleio), que no podem ser manipuladas nem "compradas" (como a fora de trabalho ou im-postos) por organizaes privadas ou pblicas.

    Ou seja, neste processo de acomodao do mundo da vida aos imperativos sistmicos, veiculado atravs de meios de intercmbio e controle, os papis de cida-do e de consumidor "permanecem ligados a los contextos del mundo de Ia vida y no estan tan abiertos a los ataques de Ia economia e de Ia poltica como Io estn Ias magnitudes ms abstractas que son Ia fuerza de trabajo y los impuestos" (HABERMAS, 1987:456). Apesar disso, os sistemas procuram transformar as orientaes para valo-res de uso e as manifestaes da vontade coletiva em "preferncias do consumidor" e em "lealdade generalizada" para poderem ser trocadas respectivamente por bens de consumo e por liderana poltica.

    Esta "reorganizao" do mundo da vida em razo da lgica do sistema provo-ca efeitos patolgicos, que em parte podem ser explicados desde a perspectiva we beriana da perda de liberdade e do desencantamento do mundo, correlatos buro cratizao. Os efeitos da monetarizao e da burocratizao dos elementos do mun-do da vida so vrios: individualismo, competitividade e utilitarismo (inerentes ao modelo de ao racional finalstica); hedonismo (como ponto de fuga para o ante-rior); manipulao das lealdades polticas; tecnificao das questes prticas; espe-cializao elitizada do saber; falta de referncias culturais globais etc. H uma "coisi ficao" de todos os mbitos comunicativos e uma orientao seletiva para o cogniti vo-instrumental.

    Para o autor essas patologias no podem ser creditadas nem diferenciao sistmica nem diferenciao estrutural da sociedade, assim como tambm no po-dem ser atribudas secularizao das imagens do mundo (profanao do sacro, das tradies), mas penetrao das formas de racionalidade econmica e administrati-va em mbitos de ao especializadas na integrao social.

    Nem o avano tcnico-produtivo, nem a racionalizao do mundo da vida, em separado, podem explicar esses fenmenos. Neste ltimo caso, a diferenciao estrutural e a especificao funcional do mundo da vida devem ser apontados, antes de mais nada, como fatores que consolidam o processo de individuao (e que no tm, portanto, um efeito de alienao). O que gera a coisificao e o empobreci-mento cultural (no-apropriao por parte do pblico dos avanos trazidos pela es-pecializao da cultura) a invaso do mundo da vida pelo sistema, em uma lgica incontida que pode ser explicada em parte a partir de Marx:

    talvez Ia referencia a una dominacin econmica de c/ases que se en trinchera tras Ia dinmica especfica y annima de un proceso de reali-zacin de capital, desconectado de toda orientacin conforme a valores de uso' pueda explicar porque los imperativos que Weber asocia con Ia expresion burocratizacin contagian de tal suerte los mbitos de accin estruturados comunicativamente, que ya no puede hacerse uso de los espacios que Ia racionalizacin del mundo de Ia vida abre para una for

  • macin prtico-moral de Ia voluntad colectiva, para una auto-presenta cin expresiva y para el goce esttico (HABERMAS, 1 9 8 7 : 4 6 6 ) .

    Ora, a referncia dominao de classe no pode explicar, por exemplo, a autonomizao do sistema administrativo no socialismo. Por outro lado, o autor ob-serva que os efeitos da "coisificao" so inespecficos de classes.

    O modelo da mercadoria como encarnao abstrata de uma fora de traba-lho indiferenciada, como uma relao de produo indiferente ao mundo da vida dos trabalhadores, a expresso paradigmtica do meio de controle dinheiro, tal como analisado por Parsons. A lgica da produo de mercadorias, baseada na au topotencializao contnua do capital, atravs da institucionalizao da relao de trabalho assalariado criador de valor, uma brilhante descoberta de Marx que pode ser esgrimida como uma funo clara de integrao sistmica que transcende orien-taes tico-normativas particulares e mecanismos cooperativos ou comunicativos. A superioridade do modelo de Marx em relao ao funcionalismo est porm em articular dinmica sistmica o aspecto "reflexivo" da relao entre classes ou grupos socioculturais, isto , em considerar o "mundo da vida" e o "sistema" no binmio re-laes sociais e foras produtivas.

    Entretanto, algumas limitaes importantes podem ser observadas no modelo marxista: Marx concebe a relao entre foras produtivas (sistema) e relaes sociais (mun-

    do da vida) como um todo lgico. Ao no separar os dois termos, concebe o ca-pitalismo como a forma fetichizada ou fantasmagrica de uma relao de classes, deixando de ver, em conseqncia, o "intrnseco valor evolutivo" que possuem os subsistemas regidos por meios (no que diz respeito abertura de novas possi-bilidades de controle tcnico-instrumental). Essa "amarrao dialtica de uma teoria de sistemas e de uma teoria da ao leva Marx a prognosticar que com a superao da relaes de classes ser possvel o controle ou a "humanizao" do sistema econmico. Em face desse prognstico, a preciso de Weber de que a desmontagem do capitalismo privado no significaria a ruptura da gaiola de ferro do moderno estado fabril demonstrou estar certa;

    Marx carece de critrios para distinguir entre a destruio das formas tradicionais de vida e a coisificao dos mundos da vida ps-tradicionais. Ao no dispor de um conceito de racionalizao do mundo da vida, no tem condies de avaliar as sndromes de alienao que o sistema produz ao se projetar invasivamente so-bre aquele. Desta maneira fica restrito denncia de uma alienao indetermi-nada ou da instrumentalizao de uma vida indefinida, apenas determinada pro-dutiva e materialmente;

    Marx s identifica uma forma de subsuno do mundo da vida no sistema, qual seja o mundo do trabalho. Ao no identificar a fora integradora especfica do mdium poder, no permite perceber os modernos fenmenos do Estado Social, do intervencionismo estatal e da democracia de massas como formas de regula-o do mundo da vida, de carter neutralizador e pacificador.

  • A lgica de evoluo sistmica da modernidade se caracteriza, como vimos, pela autonomizao do sistema econmico no capitalismo e pela autonomizao do sistema administrativo no socialismo (sustentada pela estatizao dos meios de pro-duo e pelo domnio do partido nico). Os desequilbrios sistmicos endgenos (crises cclicas de capital e efeitos autoparalisantes da planificao econmica, res-pectivamente) so deslocados para o subsistema complementar, o qual mobilizado para enfrentar esses conflitos (isto explica a oscilao entre plano e mercado no ca-pitalismo e a oscilao entre centralizao e descentralizao, produo de capital ou de bens de consumo no socialismo). Estes desequilbrios podem gerar crises de controle quando as prestaes do Estado e da economia, respectivamente, perma-necem abaixo do nvel de aspirao estabelecido e prejudicam a reproduo simb-lica do mundo da vida, gerando resistncias e conflitos (isto , quando se estendem ao mbito da integrao social, ocasionando uma tendncia para a anomia). Essas crises so enfrentadas redefinindo-se sistematicamente o mundo da vida da seguinte maneira: no capitalismo, a revalorizao do papel de consumidor (potencializado pela poltica de salrios reais maiores) neutraliza o papel de trabalhador (na esfera privada) e correlativamente, a revalorizao do papel do cliente neutraliza o papel generalizado do cidado. Esta monetarizao e burocratizao do mundo da vida provoca uma reificao das relaes comunicativas; no socialismo, onde a poltica domina a economia, a colonizao do mundo da vida se revela na impostura das re-laes comunicativas. Surge uma pseudopolitizao que humaniza pela coao bu-rocrtica. As organizaes do aparelho estatal e da economia, funcionando com uma lgica sistmica, so transferidas ficticiamente para um horizonte simulado da vida. "Enquanto o sistema se disfara de mundo da vida, este absorvido pelo siste-ma" ( H A B E R M A S , 1987:30).

    A substituio das crises de controle por patologias sociais ocorre quando os estados anmicos so evitados, substituindo-se os mecanismos "normais" de integrao social por essa redefinio do mundo da vida em funo de papis sistemicamente determinados. Neste caso, "evita-se" a anomia s custas dos dois outros recursos do mundo da vida, na direo dos quais deslocam-se os confli-tos: cultura e socializao. O resultado a alienao e a insegurana quanto identidade coletiva.

    Apesar deste quadro sombrio, Habermas acredita firmemente na pervivncia da racionalidade comunicativa em determinados "nichos" situados nas "costuras" en-tre o sistema e o mundo da vida. Apia sua comunicao no raciocnio de que uma anlise reconstrutiva da evoluo da institucionalizao jurdica da sociedade mo-derna mostra que desde o Estado absolutista, passando pelo Estado democrtico de direito, at chegar no Estado do direito social, o sistema deve conceder ao mundo da vida espaos de liberdade, ao modo de falsear esta liberdade. Refere-se ao reco-nhecimento do direito de cidadania e institucionalizao dos direitos sociais, via legislao social (admitindo tambm o avano que significou o direito privado bur-gus no econmico).

    Apesar dos constrangimentos sistmicos condio de cidado, tais como: a burocratizao e elitizao dos partidos polticos; a manipulao dos meios de co-municao; a "segmentao" do papel de eleitor, o que significa que o cidado par-ticipa eventualmente da escolha de um governante e no discute os motivos da ad

  • ministrao etc., h espaos de formao de uma vontade coletiva agindo como um contrapeso ao sistema.

    O direito social, sem dvida, representa a regulao ou seleo positiva de si-tuaes de necessidade comunicativamente afirmadas. Conquanto, desde a pers-pectiva sistmica esse direito utilizado como meio de controle burocrtico e im-pessoal da vida. Por outro lado, pode ser visto como uma instituio jurdica do mundo da vida. Esse direito tem, assim, uma estrutura ambivalente.

    Em relao aos meios de comunicao de massas, Habermas se recusa a acreditar que estes possam ser tratados univocamente como instrumentos de contro-le. Tambm teriam eles uma estrutura ambivalente, que justifica um certo otimismo.

    No final da TAC, Habermas analisa uma srie de contratendncias nas socie-dades atuais colonizao sistmica que apontam para um futuro promissor no qual a racionalidade comunicativa possa se impor s tentativas invasoras de racionalidade instrumental.

    4. A TEORIA DOS MDIUNS DE PARSONS A CRTICA DE HABERMAS

    Afirmamos anteriormente que a integrao sistmica se caracteriza pelo "controle no normativo de decises individuais carentes subjetivamente de coordenao" (HABER-MAS, 1987:213). Esse termo sinnimo da "funcionalizao" das conseqncias da ao dos agentes, ou do que similar, da articulao objetiva das mesmas de acordo com as funes ou fins atribudos ao sistema. Esta transformao das orientaes particulares em plexos funcionais cuja lgica escapa ao controle dos atores corresponde ao que na linguagem sistmica se conhece como a realizao de funes latentes.

    Para Parsons, esta coordenao objetiva da ao se realiza mediante os m-diuns, enquanto formas de comunicao que substituem a linguagem. Os quatro mdiuns identificados pelo autor correspondem s funes bsicas dos quatro sub-sistemas do sistema social: o dinheiro, que regula a funo de adaptao produtiva do subsistema econmico (adaptation); o poder, que regula a funo de realizao de fins (goal-attainment) do subsistema poltico; "a influncia", "o status" ou "o prest-gio", que regula a funo de integrao social (integration) tpica do subsistema nor-mativo da sociedade; "a liderana moral" ou "compromisso valorativo", que regula a funo de manuteno dos padres culturais (latency), do subsistema cultural. Estas funes correspondem ao clssico esquema Agil (HABERMAS, 1987:340-50).

    A sociedade, na concepo parsoniana, estabiliza-se como sistema (conserva seus limites e afirma a sua identidade) e adquire uma organizao interna progressi-vamente maior (reduo seletiva das inmeras possibilidades contingentes inerentes ao meio), graas aos intercmbios controlados que realiza com o meio circundante e aos condicionamentos ou complementaes recprocas dos seus subsistemas. Esses intercmbios so regulados pelos mdiuns, os quais tambm coordenam interna-mente as interaes de cada subsistema.

    Atores e instituies so vistos, nesta concepo, como lugares abstratos aon-de confluem essas quatro funes integradoras. A ao individual e a dinmica orga-nizacional so, assim, sobredeterminadas por umas funes que tm como objetivo

  • a sobrevivncia do patrimnio sistmico. Esta "sobredeterminao" implica que os desempenhos individuais s interessam do ponto de vista de suas conseqncias para as funes reguladas pelos mdiuns.

    Enquanto elementos que interagem nas organizaes (concebidas como sub sistemas da sociedade), os atores "orientam" suas intervenes pelos mdiuns sist-micos, os quais assumem a figura de formas "de codificao e de simbolizao que descarregam a conscincia e aumentam assim a capacidade de orientar-se em funo das contingncias" (HABERMAS, 1987:377). Para que os mdiuns realizem esse papel necessrio que eles adquiram um carter geral e objetivo, destitudo de valorao e de elementos subjetivos. Em outras palavras, preciso que sejam reconhecidos por todos por suas qualidades universais e empricas de instrumentos de coordena-o da ao.

    A crtica de Habermas se concentra, de um lado, na difcil comparabilidade entre dinheiro e poder (o que dificulta um tratamento semelhante) e, de um outro lado, na possibilidade de considerar "a influncia" e a "liderana moral" como m-diuns rigorosos. A crtica, em suma, refere-se dificuldade de conceber a institucio-nalizao estrita dos trs ltimos mdiuns, especialmente dos dois ltimos, conside-rados como instrumentos de controle objetivos que podem dispensar plenamente o entendimento e encarnar uma lgica racional no sentido da racionalidade formal (de fins) (HABERMAS, 1987:366-402).

    Sobre o dinheiro, Habermas concordar com Parsons em torno de algumas caractersticas que tornam aquele cdigo um prottipo de mdium: O dinheiro a expresso simblica de uma pretenso de oferta econmica em face da qual o re-ceptor desta mensagem pode concordar ou no. A oferta e a demanda de bens (a troca de equivalentes) a situao padro onde os atores orientam suas pretenses em razo notadamente da utilidade econmica (como valor generalizado que o di-nheiro encarna) e condicionam mutuamente suas posturas atravs de ofertas econ-micas. Este tipo de procedimento est desvinculado de consideraes tico-normati vas e no subentende a cooperao, mas a realizao egocntrica de uma utilidade, isto , baseia-se primordialmente em razes empricas.

    O dinheiro, como pretenso nominal, expressa um determinado valor de tro-ca que pode transformar-se em valores reais de uso: aquisio de bens reais que po-dem satisfazer uma necessidade. O valor de troca do dinheiro vem respaldado por reservas monetrias. A pretenso de validade corresponde ao valor de troca atribu-do a um determinado produto e expresso monetariamente, enquanto o desempe-nho da pretenso de validade est ligado utilidade real que pode ter aquele pro-duto na satisfao de uma necessidade.1

    O dinheiro, como substituto do entendimento, um bom exemplo de m-dium universal por acrescentar algumas caractersticas objetivas:

    - pode medir-se;

    - pode alienar-se;

    - pode acumular-se;

    1 importante reparar que Habermas faz a anlise dos meios tendo como referncia o modelo de anlise da linguagem (fala em pretenses de validade, desempenho de... etc.)

  • Enquanto as emisses lingsticas adquirem um significado em relao a con-textos particulares e delas no possvel apropriar-se a ttulo individual, o dinheiro (como forma de exercer influncia) encarna magnitudes objetivas de valor (que in-dependem do particular) e que podem ser adquiridas em quantidades variveis, que podem passar de mo em mo; em uma palavra: que podem circular. Finalmente, essas quantidades podem ser acumuladas (depsitos em bancos), dando lugar a cr-ditos e a inverses que potencializam esses valores iniciais (diversificando as estrutu-ras econmicas).

    Estas diferenas em relao ao meio lingstico so ntidas. Uma ltima di-ferena importante para Habermas a seguinte: enquanto o meio lingstico no precisa de nenhum referendum, em virtude de que quem atua comunicativa mente est movimentando-se "desde sempre" no seu seio, no desconfiando dele, o dinheiro, ao contrrio, precisa de uma "ancoragem" institucional, repre-sentado pelas instituies privadas da propriedade e do contrato, que regulam as posses monetrias. O dinheiro, pela desconfiana implcita, precisa ser "reconec tado" formalmente ao mundo da vida, atravs de uma normatizao de direito privado das relaes de troca.

    Habermas afirma que o subsistema econmico s se diferencia plenamente atravs do mdium dinheiro quando surgem mercados e formas de organizao que colocam sob seu controle no apenas o "trfego" interno ao sistema, mas acima de tudo o "trfego" com os entornos relevantes. Isto , quando as economias domsticas e o sistema administrativo ficam monetarizados nas suas relaes com o sistema econmico (atravs do pagamento da fora de trabalho e dos impostos). Quando as economias domsticas, "ex-mundo da vida", ficam completamente (re)organizadas em funo do dinheiro possvel falar em tecnificao do mundo da vida. Contra esta possibilidade Habermas se insurge, sustentando que a racionalizao do mundo da vida no pode ser substituda por meios.

    Parsons tenta atribuir ao poder a condio de mdium, buscando analogias estruturais entre ele e o dinheiro. Vejamos a interpretao de Habermas. O poder uma pretenso de obedincia (valor de troca) que pode transmutar-se, como valor de uso, na realizao de fins coletivos (razes que podem justificar aquela preten-so). Por outro aspecto, o poder est respaldado pela posse de meios de sano ou de coero.

    O valor generalizado ao qual os envolvidos em uma situao de poder ade-rem a eficcia na realizao desses fins (como no caso do dinheiro era a utilidade). Quem ostenta o poder procurar aumentar sua rentabilidade poltica, adquirindo mais poder ou sendo mais eficaz na produo de resultados. Em face da pretenso obedincia levantada por ego, alter pode responder apoiando ou rejeitando, mas a postura deste ltimo ser objetivante, no sentido de orientar-se pelas conseqncias de uma ao, isto , pelos valores de uso derivados daquela pretenso e principal-mente pelas sanes empricas que se encontram respaldando o poder. O exerccio do poder, assim, no subentende necessariamente a cooperao. Quem detm o poder pode condicionar as posturas dos submetidos ao poder mediante desempe-nhos empricos.

    Se o poder assegura, em parte, um certo automatismo no prosseguimento das interaes (pelas condies de racionalidade apontadas), h, no entanto, alguns obs

  • tculos pretenso de que seja tratado da mesma forma que o dinheiro como uma massa de valor facilmente identificvel e manipulvel. Estes obstculos apontados por Habermas seriam os seguintes:

    - O poder no facilmente mensurvel. No possvel uma quantificao do po-der e no simples a atribuio numrica de unidades de medida a magnitudes polticas. Como diz o autor:

    ... el poder no dispone de un sistema de signos equivalentes al dinero. Hay una diversidad discontinua de smbolos del poder que van desde los uniformes y los emblemas de Ia organizacin poltica hasta los sellos oficiales y Ia firma de los que tienen competencia para firmar, pero nada que desde un punto de vista sinttico pudiera compararse con los pre cios... A falta de medidas de poder ms exatas, puede recurrirse a Ia or denacin jerrquica de Ias competencias formales de decisin y, en ge-neral, a Ias jerarquias de status. Pero como es sabido por Ia experiencia cotidiana y por estudios empricos, estos indicadores resultan a menudo ambiguos (HABERMAS, 1 9 8 7 : 3 8 4 ) .

    - O poder pode ser alienado, transferido, mas no circula to sem restries como o dinheiro. Pode vincular-se simbioticamente pessoa do poderoso e ao contex-to do exerccio do poder, isto , a situaes particulares, com muito mais intensi-dade que o dinheiro. Esta diferena fica patenteada quando se considera que o dinheiro antes de poder gerar um sistema j era um meio circulante de valor ge-ral e abstrato, enquanto o poder antes de sua diferenciao sob a forma de uma dominao legal e racional estava adscrito figura de uma autoridade carismti-ca, mantendo, em grande medida, ainda hoje, essa forte tendncia;

    - O poder no pode ser depositado com a mesma confiana que o dinheiro. Por um lado, se bem o poder pode ser considerado do ngulo da renovao poltico-eleitoral como um depsito (de potencialidades de realizao) que os eleitores fazem s direes partidrias que assumem mandatos, por outro, a esse potencial de poder depositado parece ser-lhe inerente a tendncia a degenerar. Ainda tem uma diferena importante: o governo, alm de procurar rentabilizar o depsito de poder que lhe foi confiado, tem necessidade de atualiz-lo atravs de de-monstraes de poder, ou seja, tem que coloc-lo prova (submet-lo a con-frontaes) para mostrar que seu poder tal poder (por exemplo, o uso da polti-ca exterior para fins internos). Ou seja, o poder no tem a mesma segurana que o titular de uma conta bancria no que diz respeito aos seus depsitos;

    - Se o financiamento de dinheiro, isto , a concesso de crditos, um mecanis-mo que possibilita uma maior complexidade interna do sistema econmico (maior diferenciao produtiva), a autopotenciao do poder (a tentativa de in-crementar o poder prprio), em troca, um mecanismo que gera contrapoder e que, em geral, causa uma indiferenciao do sistema de poder.

    Mas a diferena mais importante, para Habermas, que o poder, no obstan-te estar normatizado juridicamente atravs da organizao de direito pblico dos

  • cargos (como antdoto para a desconfiana), precisa de uma ulterior base de con-fiana, a saber: de legitimao. No caso do dinheiro, no h essa analogia estrutural. Esta diferena se explica pelo seguinte: a relao ideal de troca monetria difere das condies essenciais envolvidas em uma relao de poder, pois se no primeiro caso imaginvel uma troca que venha a redundar no benefcio utilitrio das duas partes interessadas, no caso da segunda h sempre uma assimetria, na medida em que o submetido a mandatos encontra-se estruturalmente desfavorecido em face de quem detm o poder. Inclusive, o detentor de poder pode causar danos ao desobediente. Esta desvantagem bsica tem que ser compensada mediante a referncia a fins dese-jados coletivamente. Ora, como aquele que detm poder pode definir unilateral mente os fins que devem ser considerados coletivos, essa desvantagem s ser com-pensada se os subordinados ao poder conseguirem julgar de um ponto de vista nor-mativo esses fins e puderem referend-los ou rejeit-los. A referncia a um interesse geral inerente aos fins governamentais implica necessariamente em um consenso en-tre os membros de um coletivo acerca da validade conteudstica dessa referncia, vinculado a uma prtica lingstica. No caso de uma relao monetria, essa necessi-dade de entendimento no obrigatria, isto , os interesses podem ser divergentes e se articulam em um clculo egocntrico de utilidades.

    Assim, o poder necessita de um apoio normativo mais exigente que o dinhei-ro. Como sustenta Habermas: "Slo Ia referencia a fines coletivos susceptibles de legi-timacin crea en Ia relacin de poder el equilibrio con que Ia relacin tpico-ideal de intercambio cuenta ya de antemano" (HABERMAS, 1987:388).

    Desta maneira, o poder constitui um mdium difcil de institucionalizar como va-lor objetivo capaz de exercer uma fora motivadora da ao de natureza no lingstica. , no mximo, um meio hbrido. Pois bem, no caso dos "mdiuns" influncia e autorida-de moral impossvel conceber, na modernidade, a possibilidade sistemtica de um uso manipulativo (estratgico) de bens no manipulveis como o so a formao cultural e normativa e a formao moral. Sintetizaremos esta crtica de Habermas.

    O mdium "influncia" refere-se capacidade de exercer influncia sobre as convices culturais e sociais das pessoas que determinados lderes de partidos, pu-blicitrios, artistas e intelectuais podem incorporar no espao pblico constitudo pela mdia e as formas gerais e particulares de instruo. Esse poder de convico no est respaldado pela autoridade de um cargo, mas pelas hierarquias de status. Como mdium virtual, a influncia explicita-se, na elaborao de Parsons, no poder motivador que essas pessoas e instituies exercem mediante declaraes que pro-vocam um assentimento quase que imediato, no acertado lingisticamente em um processo coletivo de formao de um consenso.

    O mdium autoridade moral refere-se capacidade que certas instituies como as igrejas tm de incutir obrigaes morais nas pessoas, margem de proces-sos comunicativos amplos. A autoridade moral dessas lideranas apoiar-se-ia, segun-do Parsons, em certos investimentos morais que as entidades papais, por exemplo, realizam e "acumulam" como razes fundamentais para o exerccio de uma prtica de exortao moral cujo objetivo impor obrigaes que caso no sejam internali-zadas geram sanes internas.

    A argumentao de Habermas (no reproduzida integralmente aqui) aponta para o fato de que em ltima instncia a validade (o critrio de) das declaraes e

  • exortaes reside no mundo da vida, isto , nas tradies culturais, nas formas de vida solidrias e nos valores internalizados que so comuns aos grupos e que foram sendo consolidados historicamente na prtica comunicativa. Que o pano de fundo cultural comum ou que os motivos ou sentimentos de culpa possam ser "aquartela dos" como o ouro e as armas algo que para o autor pode ter mais sentido nas so-ciedades pr-modernas onde as igrejas tiveram firmemente nas suas mos a adminis-trao central dos bens da salvao. Na modernidade, ao contrrio, dificilmente es-ses "mdiuns" podem exercer um influxo de tipo emprico ou objetivo sobre a for-mao de convices, da solidariedade e da integridade moral. Estes processos re-metem, em ltima anlise, ao reconhecimento intersubjetivo de pretenses de vali-dade cognitivas e normativas.

    Habermas prefere entender essas formas de regulao da ao como "formas generalizadas de comunicao", como formas que elevam ao valor generalizado a solidariedade e a integridade moral, os quais, em ltima instncia, so dois casos de acordo que remetem ao plano das interaes diretas que as pessoas travam no mun-do do cotidiano. Essas formas no podem como o dinheiro e o poder substituir a lin-guagem na sua funo coordenadora. Podem, eventualmente, tambm distorcer a linguagem, mas no permanente ou completamente. Nas palavras do autor:

    No pueden, como los mdios dinero y poder, substituir al lenguaje en su funcin coordinadora, sino slo aliviarle Ia carga abstrayendo de Ia 'complejidad del mundo de Ia vida. En una palavra: los medios deste tipo no pueden tecnificar el mundo de Ia vida (HABERMAS, 1 9 8 7 : 3 9 5 ) .

    O resumo das caractersticas dos meios de controle apresentado na Fig. 2.4. com base nesta apreciao da dificuldade de institucionalizao desses

    meios que Habermas sustenta seu otimismo na sobrevivncia e na resistncia do mundo da vida e da prxis comunicativa em face das investidas do sistema.

    Figura 2.4. MEIOS DE CONTROLE NO PLANO DO SISTEMA SOCIAL

  • 5. A TEORIA DA EVOLUO SOCIAL HABERMASIANA

    Desde seus primeiros trabalhos, Habermas sustenta que o fenmeno da ra-cionalizao deve ser explicado a partir de um novo enquadramento categorial, ba-seado na distino fundamental entre trabalho e interao (que se remontaria ao jo-vem Hegel da poca de lena). Por "trabalho" ou ao racional teleolgica o autor en-tende, ou a ao instrumental, ou a escolha racional, ou a combinao das duas. Por outro lado, o autor entende por ao comunicativa uma interao simbolica-mente mediada.

    O trabalho a esfera em que a espcie se relaciona com a natureza, a fim de submet-la a seu controle, por meio de instrumentos. Esta esfera regida por regras tcnicas, baseadas num saber emprico, e implica prognoses sobre acontecimentos observveis atravs da correta organizao dos meios. O subsistema especfico do mundo do trabalho o econmico. A escolha racional, por outro lado, realiza fins sob condies dadas; orienta-se por estratgias que se baseiam em um saber analti-co, na valorao correta de possveis alternativas de comportamento, que s podem obter-se de uma deduo feita com o auxlio de valores e mximas. Seu subsistema especfico o aparelho estatal, enquanto a parte do marco institucional que elabora e realiza acima de tudo as proposies acerca de aes racionais teleolgicas. Os dois subsistemas da ao racional relativa a fins se "incrustam" no enquadramento institucional de uma sociedade ou de um mundo sociocultural, que corresponde esfera da ao comunicativa (a eventual no-institucionalizao da ao racional no enquadramento social confere a essa ao o carter distorcido de uma relao mo nolgica).

    A esfera da ao comunicativa ou do mundo sociocultural (das relaes so-ciais no sentido amplo) corresponde interao que se estabelece entre os homens por meio de normas e instituies que so mediatizadas simbolicamente pela lin-guagem. As normas definem expectativas recprocas de comportamento, formuladas numa linguagem compreendida e reconhecida por, pelo menos, dois atores. Duas instituies modelares desta esfera so a famlia e o parentesco.

    Enquanto as regras tcnicas so apreendidas e produzem uma competncia tcnica (sua no observncia implica, como sano, o malogro da ao), as normas so internalizadas e produzem estruturas de personalidades (sua no observncia leva ao comportamento desviante, sujeito a sanes sociais variveis segundo o meio e o momento) (ROUANET, 1 9 8 6 : 2 6 0 - 6 1 - 8 2 ) .

    Em Trabalho e Interao, Habermas sustenta que "a emancipao relativamen-te fome e misria no converge necessariamente com a libertao a respeito da servido e da humilhao, pois no existe uma conexo evolutiva automtica entre trabalho e interao" (HABERMAS, 1 9 8 6 : 4 2 ) , e que, apesar de tudo, existe uma rela-o entre os dois momentos, cujo esclarecimento importante, pois dessa conexo depende essencialmente o processo de formao do esprito e da espcie.

    Em Cincia e Tcnica como Ideologia (HABERMAS, 1 9 8 6 : 4 5 - 9 2 ) , Habermas dis-cute essa relao e aponta para uma nova classificao ou seqncia dos modos de desenvolvimento social. Nessa discusso, o autor conclui que a dialtica foras pro-dutivas/relaes de produo tem uma validade historicamente restrita ao capitalis

  • mo liberal, no dando conta do que ocorre antes, nem depois. Como conseqncia sugere a distino, mais geral, de trabalho e interao.

    O ponto de partida da nova seqncia de modos est representado pelas "so-ciedades de classe tradicionais", onde o quadro institucional prevalece sobre a esfera do trabalho social e onde as relaes de fora nela cristalizadas eram legitimadas de cima, atravs dos padres normativos inscritos em vises de mundo, de carter mti-co, religioso ou metafsico.

    Com o advento do capitalismo liberal surge, pela primeira vez, uma situao em que a rpida e permanente expanso das foras produtivas e dos subsistemas de ao racional (que se autonomizam em relao s normas sociais) impugna a forma pela qual as culturas superiores legitimam a dominao mediante interpretaes cosmolgicas do mundo. Com o colapso da forma tradicional de legitimao, a do-minao poltica pode doravante legitimar-se "a partir de baixo", do prprio merca-do, mediante a ideologia da reciprocidade. Assim:

    s com o meio de produo capitalista pode a legitimao do marco institucional religar-se imediatamente com o sistema do trabalho social, pois s ento pode a ordem da propriedade converter-se de relao po-ltica em relao de produo, pois se legitima na racionalidade do mer-cado, na ideologia da troca (entre equivalentes), e j no mais numa or-dem de dominao (politico-cultural) (HABERMAS, 1 9 8 6 : 6 4 ) .

    No capitalismo liberal, portanto, o marco institucional migra para a esfera das relaes de produo e se funde com ela, sendo possvel o reconhecimento desse marco atravs dessas relaes. Nessa ordem, por conseguinte, o marco institucional pode ser visto como superestrutura ou epifenmeno das relaes de produo, mas s nessa ordem.

    No capitalismo monopolista, finalmente, observa-se: um crescente interven-cionismo do Estado, que passa a regular as prprias foras produtivas e a assegurar a estabilidade do sistema atravs de um programa substitutivo; e uma crescente inter-dependncia da investigao tcnica, que transformou a cincia na primeira fora produtiva. Para Habermas, com a crescente interveno do Estado, o marco institu-cional repolitizou-se, no coincidindo de forma imediata com as relaes de produ-o. A poltica no mais "autnoma", pois j no se mantm auto-regulando-se como uma esfera que precede e subjaz ao Estado. As relaes entre Sociedade e Es-tado deixam de ser captadas por meio da clssica relao entre base e superestrutu-ra. O dado novo desta ordem, ainda, o fato da legitimao enraizar, atravs da ideologia tecnocrtica, diretamente, na esfera das foras produtivas, sendo a cincia a principal dessas foras, e no como no passado, na esfera da interao (ainda pre-sente na ideologia da troca de equivalentes). Ao contrrio, o que acontece uma completa represso dessa esfera; no dizer do autor, uma total represso da eticidade em favor de uma razo tcnica, que dispensa a discusso racional das questes pr tico-sociais e vitais. Essa nova forma de razo, ensejada de "cima para baixo" pelo Es-tado, considerado como o principal responsvel pela introduo tecnolgica no mundo da produo, tende a obliterar quase que completamente o espao que

  • existe entre a prxis e a tcnica, (ou entre trabalho e interao, dualismo que colo-cado em segundo plano fora da conscincia dos homens).

    Assim, se no capitalismo liberal as foras produtivas podiam ser consideradas como instncias crticas das relaes sociais e de legitimao (ancoradas nas relaes de produo), no capitalismo monopolista essas foras funcionam como critrio apologtico em que essas mesmas relaes de produo podem tambm justificar-se como um enquadramento institucional funcionalmente necessrio. Segundo Ha-bermas:

    ao nvel do desenvolvimento tcnico-cientfico, as foras produtivas pa-recem entrar numa nova constelao com as relaes de produo: j no funcionam em prol de um esclarecimento poltico como fundamen-to da crtica das legitimaes vigentes, mas elas prprias se convertem em base da legitimao. Isto , o que Marcuse considera novo na hist-ria mundial (HABERMAS, 1986:48).

    Em Para a Reconstruo do Materialismo Histrico (1983:I e III) Habermas ir aprofundar a anlise da teoria social marxista, marcando suas diferenas e sugerindo novas compresses, as quais, ao invs de negarem radicalmente essa teoria, visam sua desconstruo e aproveitamento em novas bases. Sinteticamente, referimos a se-guir algumas de suas idias:

    - para explicar satisfatoriamente a forma de vida tipicamente humana e a evoluo social, mister acrescentar ao trabalho o ncleo da organizao familiar;

    - os impulsos iniciais para a evoluo social surgem no mbito da reproduo ma-terial, expressando-se no desenvolvimento endgeno de um saber tcnico-pro dutivo, o qual poder deslanchar um avano das foras produtivas. Ora, esse po-tencial cognitivo, liberado por uma necessidade sistmica, s poder ser utilizado plenamente se houver uma mudana do quadro institucional que se responsabi-liza pela integrao social;

    - a explicitao das foras produtivas deve ser entendida como um mecanismo que cria problemas e que, decerto, abre caminho para a subverso das relaes sociais e para uma renovao evolutiva do modo de produo: mas no as pro-duz. A introduo de novas formas de integrao social (relaes sociais) requer um saber especfico, prtico-moral, e tal exigncia implica, acima de tudo, aces-so a novos nveis da aprendizagem, possibilitado caracteristicamente pela lingua-gem;

    - o desenvolvimento das estruturas normativas tem uma histria prpria, apesar de reagir a desafios sistmicos da "base" da sociedade. A cultura, mesmo que possa ser concebida como superestrutura, tem aqui uma preeminncia no imaginada pelos marxistas;

    - os mecanismos da aprendizagem, situada ao lado do trabalho como motor da evoluo social, devem ser buscados, antes de mais nada, no plano psicolgico. As sociedades, como macroentidades, s "aprendem" em sentido figurado. Quem aprende, em primeira instncia, so os sujeitos; ora, estes aprendem no processo de socializao. Individuao e socializao so, assim, inseparveis. A

  • teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget, alm de permitir explicar o de-senvolvimento da aprendizagem no nvel ontogentico, pode oferecer motivos para estabelecer uma correlao com os nveis filogentico e sociogentico, assu-mindo-se que nestes ltimos tambm se pode falar de uma lgica de desenvolvi-mento, caracterizada por determinados estgios ou modelos abstratos de desen-volvimento, que correspondem a regras para possveis solues de problemas;

    - o saber em geral e as capacidades de aprendizagem so produzidos pelos sujei-tos socializados e armazenados no mundo da vida como imagens do mundo e como capacidades. S "em um segundo momento" que esse saber pode ser institucionalizado ou difundido em escala social, como resposta a um desafio sis-tmico. Como se viu, a plena incorporao desse saber (nos sistemas de ao como o econmico), desatando o avano das foras produtivas, s se efetiva quando novas instituies sociais irrompem, consolidando um determinado avano no mbito do saber prtico-moral. As instituies normativas agem, as-sim, como "abridoras de caminho" para a evoluo social, permitindo a plena im-plementao das foras produtivas existentes ou de novas foras e possibilitando, portanto, uma maior complexidade social. Como afirma Habermas na TAC: toda diferenciao sistmica precisa ancorar-se no mundo da vida, nas instituies da poltica, da moral e do direito (e a evoluo desse mundo no pode ser analisada como uma simples conseqncia da evoluo sistmica);

    Na TAC, Habermas retoma de maneira mais ampla esta problemtica. No ca-ptulo VI, "Sistema e Mundo da Vida", aborda novamente a frmula base e superes trutura e a teoria da evoluo social (HABERMAS, 1987:161 -280), temas aos quais nos referiremos.

    Como j tinha sustentado, em Para a Reconstruo..., Habermas recorda que os termos base e superestrutura, aplicados anlise da evoluo social, s tm vi-gncia naquelas situaes novas em que se pe em questo uma velha sociedade, prenunciando-se uma diferente; eles no dizem respeito, necessariamente, s rela-es que imperam entre a estrutura social, a poltica e a cultura durante o pleno de-senvolvimento de uma determinada forma de sociedade. Por outro lado, insiste que as relaes de produo s assumem uma forma tipicamente econmica durante o capitalismo. Apoiando-se em Godelier, argumenta que nas sociedades arcaicas uma instituio normativa, o parentesco, subordina e expressa as relaes de produo: enquanto nas sociedades estatalmente organizadas e estratificadas o Estado se dife-rencia da ideologia (a qual assim pode ser considerada superestrutura) e ele prprio encarna as relaes de produo. S no capitalismo que o sistema econmico se diferencia do Estado, e estes dois mdiuns, por sua vez, se diferenciam claramente dos mecanismos de reproduo social, cultural e da personalidade, e na sua forma liberal o Estado pode ser legitimamente considerado uma superestrutura e no assim no capitalismo tardio, pois neste ltimo o Estado se liga organicamente produo educativa e de pesquisa cientfica, as quais so foras produtivas de primeira impor-tncia (podendo-se dizer que pertencem base da sociedade).

    A evoluo social, para Habermas, um processo que supe simultaneamen-te a diferenciao funcional e complexificao do sistema social e a racionalizao do mundo da vida, em uma conexo particular e sempre redefinida.

  • Os estgios evolutivos so analisados abstratamente em razo dos desenvolvi-mentos singulares desses componentes da sociedade e de suas relaes, constituin-do-se em quatro tipos gerais ou bsicos, cujas caractersticas resumidas so agora consignadas (vide Figuras 2.5 e 2.6):

    - As Sociedades Primitivas Igualitrias: nestas o ncleo institucional que predo-mina o parentesco. Todas as diferenciaes segmentrias e por estratificao se estabelecem no interior dessa relao bsica. Assim, a sociedade se complexifica e se especifica funcionalmente tendo como parmetros: o estabelecimento de clivagens demogrficas no interior de uma mesma linha de descendncia; o esta-belecimento de linhas de autoridade com base na idade; e o intercmbio entre unidades similares a partir do matrimnio (capaz de produzir novas combinaes ou estruturas). As prprias relaes de troca econmica se subordinam s relaes de parentesco ou exigncia normativa de uma conciliao. No h ainda nes

  • tas unidades pequenas e similares, de tecnologia simples, estmulos relevantes para a constituio de trocas econmicas, dissociadas de motivos normativos, isto , neutras em relao integrao social. Por fim, nestas sociedades d-se uma particular conjuno entre a concepo mtica do mundo, a estrutura insti-tucional e as esferas de relevncia individual, assim como no existe uma dife-renciao clara entre natureza ou cosmos e sociedade: tudo parece ser um mun-do da vida mais ou menos homogneo, na medida em que predominam carac teristicamente as interaes simples (relao permanente e direta entre atores e motivos) e estas descansam em um saber cultural comumente partilhado, pouco problemtico (ou dogmtico);

    - As Sociedades Primitivas Hierarquizadas: estas j no descansam apenas na di-ferenciao entre papis definidos no interior de uma mesma relao de paren-tesco, mas se caracterizam por hierarquias entre unidades similares, que se defi-nem pelo status ou prestgio (vinculado origem aristocrtica ou ascendncia divina de um grupo de descendncia dominante). So notrios os desenvolvi-mentos organizativos que a figura do chefe traz para estas sociedades.

    - As Sociedades Estatal mente Estratificadas: estas sociedades correspondem fa miliarizao do poder poltico, da dominao poltica, assentada em uma base jurdica (para a qual pode ser reivindicada uma legitimidade universal). Trata-se da instituio da autoridade do cargo. A organizao do poder leva estas socie-dades estratificao por classes socioeconmicas e a uma ampliao das trocas econmicas. Os efeitos produzidos por uma administrao central sobre as foras produtivas so extraordinrios. A necessidade de legitimao do poder ainda se articula necessidade de um contato com os vrios mundos da vida que estas sociedades geram de um modo desigual: as acepes do mundo (de base filos-fica ou religiosa) tm uma formao ideolgica, ilusiva, mas ainda transparecem indiretamente os desgnios do mundo da vida. O surgimento da organizao for-mal Estado (e da categoria dos cidados que pertencem ao mesmo) implica a di-ferenciao da sociedade como uma nica organizao total. Desta forma, o es-tgio das interaes simples vai cedendo lugar ao estgio das organizaes (Luh-mann): os cidados devem obedincia ao Estado, repassam parte de sua respon-sabilidade normativo-comunicativa a uma entidade "supra-social".

    - As Sociedades Modernas: nestas se independiza o sistema econmico, o qual se torna neutro do ponto de vista tico. A produo para a troca simples se transfor-ma em uma produo de mercadorias e se generaliza o trfego de mercadorias entre empresas e entre estas e o Estado e a esfera familiar (em nvel nacional e internacional). So essenciais a este tipo de sociedade a institucionalizao do trabalho assalariado e do Estado Fiscal, assim como o surgimento da moderna empresa capitalista, dotada de uma racionalidade formal. O Estado, separado do mdium dinheiro, subordina-se inicialmente lgica do sistema econmico, de-pendendo deste ltimo para seu funcionamento (via impostos). As grandes orga-nizaes econmicas e administrativas, especializadas e autonomizadas, passam a mediatizar e a deslocar o mundo da vida (transformado em entorno dos subsis temas), impondo-lhe a lgica do xito. A legitimao vai depender principalmen-te do desenvolvimento da cincia e da tcnica (na fase tardia). Normativamente, estas sociedades se estruturam em torno de concepes universalistas, consagra

  • das pelo direito burgus: a liberdade civil dos agentes econmicos privados; a soberania do cidado (que legitima o sistema democrtico atravs de eleies) e a integridade ou autonomia moral do indivduo.

    Nesta evoluo (esboada em grandes linhas), o que se observa o progressi-vo desengate entre o mundo da vida (que era totalizador nas sociedades primitivas) e o sistema (poder, dinheiro). No obstante esta separao progressiva, correlata da complexificao do sistema e da racionalizao do mundo da vida, a evoluo sist-mica opera sempre atravs de instituies normativas: o papel, o status, a domina-o poltica baseada na judicatura e o direito privado burgus.

    A evoluo destas estruturas normativas segue uma lgica, a qual pode ser to-mada de emprstimo da teoria dos estgios da conscincia moral (capacidade de re-solver conflitos da ao) de Kohlberg:

    - Nas sociedades primitivas predomina uma moral pr-convencional: a resoluo dos conflitos no leva em conta as inclinaes ou motivaes dos participantes, mas as conseqncias da ao, e se confunde com a restituio dos "direitos" le-sados de um litigante (ressarcimento). No existe a figura do direito coercitivo, a presena de normas vinculantes e positivadas (prescritas convencionalmente por um poder legislador), assim como a diferenciao de uma administrao da justi-a. O direito se confunde com a comunidade de culto. A resoluo dos conflitos, s vezes administrada por tribunais subalternos, implica auto-auxlio dos litigantes e busca da conciliao entre as partes, cujos interesses so socializados pelos gru-pos de referncia (tribo, parentesco): essa resoluo (que no pode contrariar os interesses de pelo menos uma das partes) sempre contingencial, por causa da indiferenciao normativa;

    - Nas sociedades estratificadas e organizadas estatalmente, o direito e a moral assumem uma forma convencional: julgam-se as intenes, individualmente imputveis, dos atores e sua conformidade a normas intersubjetivamente vli-das. Surge uma magistratura rgia, uma administrao da justia, a qual dis-pe dos meios de sano em casos de conflito: essa disponibilidade repousa sobre a crena na legitimidade do poder judicirio, das normas. em torno da judicatura que se cristaliza o poder poltico, o poder do Estado como orga-nizao total. De qualquer maneira, o poder poltico e o poder das normas ainda esto presos a uma legitimao ideolgica, dada pela religio (doutrina dos dois reinos): o poder a expresso de um ordenamento salvfico no qual se cr e que considerado absoluto. O direito tem uma estrutura tradicional, ou seja, corresponde interpretao da tradio conhecida ou reconhecida (no um direito positivado, isto , no exprime a vontade de um legislador soberano que, por meios jurdicos de organizao, regra convencionalmente estados de fato social). O direito engloba contedos ticos particulares, dog matizados; est impregnado de valores. Apesar deste tradicionalismo moral, finalmente, as imagens do mundo evoluem para o universalismo religioso-filo sfico, pela remetncia a princpios ltimos, abstratos e desterritorializados (como Deus, o Ser, a Natureza ou algum princpio ontolgico), os quais so assumidos, porm, como limites insuperveis, de carter absoluto.

  • - Nas sociedades modernas predomina uma moral ps-convencional: as prprias nor-mas perdem seu dogmatismo e podem ser julgadas luz de princpios (questionada sua legitimidade). Esta fase corresponde generalizao do raciocnio hipottico-abstrato, tpico da cincia, no mbito moral. Neste estgio, evidencia-se uma distin-o entre legalidade (o direito positivado, legalizado e formalizado) e moralidade. O direito coativo, externo; ele deixa de prescrever contedos ticos precisos, manda-mentos morais particulares e se define negativamente como o domnio do que tem que ser proscrito ou evitado, como aquilo que o exerccio da liberdade individual deve inibir; um direito formalizado, porque se limita a demarcar os domnios onde se deve exercer o livre arbtrio individual; , ainda, um direito legalizado, porque no atribui motivaes ticas aos indivduos, apenas se limita a avaliar a conformida-de das conseqncias da ao s leis (pauta-se pela obedincia abstrata s normas). A moralidade, todavia, afigura-se como a capacidade de julgamento tico-individual a partir de princpios gerais, universalmente aceitos; esta moral, autnoma (no que diz respeito s obrigaes especficas, aos contedos da ao), passa a ancorar-se no mundo da personalidade, de suas capacidades cognitivas e interativas, diferencian do-se do ordenamento social. Observa-se que tanto a legalidade quanto a moralida-de passam a depender da aplicao de regras de procedimento ou de direitos uni-versais, tais como a integridade dos outros, os direitos humanos, a reciprocidade, a soberania, a justia social etc., os quais estabelecem assim uma ponte entre aqueles dois termos desacoplados (e esto consagrados pelo direito constitucional burgus). Finalizando: o direito privado burgus, ao delimitar um territrio eticamente neutro - o mercado - onde os agentes econmicos podem fazer valer o princpio da liber-dade e da igualdade civis, como proprietrios de mercadorias, contribui para a ex-panso do agir estratgico, tpico da racionalidade formal do capitalismo; a institu-cionalizao das relaes de trabalho, do contrato de trabalho (assim como o pr-prio princpio da soberania popular) repousam sobre a idia do acordo, a qual su-bentende que a validade conteudstica do contrato est na dependncia da legitimi-dade dos procedimentos do mesmo (que so aqueles que se confundem com a ga-rantia da liberdade e da igualdade individuais e da reciprocidade ou alienao co-munidade dos equivalentes no mercado). Vide Figura 2.7.

  • Como tendncia de fundo, a evoluo das estruturas normativas se caracteri-za pela progressiva dissoluo dos ncleos dogmticos, pela exacerbao da critici dade, pela formalizao do direito (propiciando a intensificao da racionalidade cognitivo-instrumental) e pela individualizao da moral, revelando a necessidade da aplicao de princpios cada vez mais gerais s situaes concretas de conflitos da ao. Essa evoluo denominada de "generalizao dos valores" implica, como se viu, a liberao da ao comunicativa do peso das prescries normativas da tradi-o. Cada vez mais as interaes escapam ao controle normativo direto. Esta ten-dncia gera, para Habermas, uma sobrecarga comunicativa, aumenta a possibilidade do dissenso e a necessidade do assentimento. Estabelece-se, assim, uma rede mais obstruda de interaes, um maior nmero de interaes crticas, problemticas; esta a condio que facilita a autonomizao do sistema, isto , a substituio da coordenao comunicativa da ao pela coordenao objetiva realizada pelos m-diuns dinheiro ou poder ou pela mdia (que condensa e especializa a comunicao). Esta substituio exonera a comunidade da responsabilidade crescente de uma ao normativo-comunicativa.

    Desta maneira, explica-se como a racionalizao do mundo da vida possibili-ta, simultaneamente, a institucionalizao do sistema e a retroao negativa que este realiza sobre aquele e que se expressa na tese da colonizao do mundo da vida. Dito de outra maneira (e reafirmando): a evoluo social, definida sistemicamente como o avano para a racionalidade formal do capitalismo, supe, de um lado, a progressiva racionalizao da esfera normativa e das estruturas do entendimento, no sentido de um maior descentramento cognitivo-moral, e, de um outro, este ltimo processo conduz a uma progressiva autonomizao do sistema e do agir estratgico e a um predomnio destes sobre o mundo da vida. Este movimento irnico e para-doxal pode explicar a assertiva marxista de uma dependncia da superestrutura em relao base de uma sociedade. De qualquer modo, essa assertativa deve ser en-carada, segundo Habermas, como um diagnstico emprico e nunca como uma pre-deciso analtica (como insinua a teoria de sistemas).

    Terminaremos esta parte com uma citao do prprio autor, que alude que-le paradoxo:

    cuanto ms complejos se vuelvem los sistemas sociales, tanto ms pro-vincianos se tornam los mundos de Ia vida. En un sistema social diferen-ciado, el mundo de Ia vida se encoge e se convierte en um sistema ms. Ciertamente que de este enunciado no se puede hacer una leitura cau-sai, como si Ias estruturas del mundo de Ia vida dependieran en sus mu taciones de los incrementos de complejidad del sistema. Al contrrio: los aumentos de complejidad dependen por su parte de Ia diferencia cion estrutural del mundo de Ia vida. Y este cambio estrutural, cualquie ra que sea Ia forma en que se explique su dinmica, est a su vez sujeito a Ia lgica propria de uma racionalizacin que es racionalizacion comu-nicativa (HABERMAS, 1 9 8 7 : 2 4 5 ) .

  • 6. O CONCEITO DE PODER

    O conceito de poder em Habermas tem vrias dimenses: "Devemos distin-guir a dominao, ou seja, o exerccio do poder poltico, tanto da aquisio e preser-vao do poder, como de sua gestao. Neste ltimo caso, e somente nele, o concei-to de prxis pode auxiliar-nos...[no sentido do comportar-se solidariamente de Gada mer]..." (HABERMAS, 1980). Esta brilhante afirmao revela um conceito multidimen-sional de poder.

    De um lado, deve-se considerar o poder utilizado administrativamente (cor-respondente ao exerccio de uma administrao legitimada), onde o que conta no a razo prtica do uso das normas, mas a eficcia na implementao de um pro-grama. Por outro, no se pode deixar de incluir o elemento da ao estratgica que se define como a violncia ou a capacidade de impedir outros indivduos ou grupos de defender os seus prprios interesses. Este fenmeno, amplificado e institucionali-zado nas sociedades modernas, deve ser distinguido do exerccio do poder adminis-trativo, tendo em vista que a lgica deste "produzir" a lealdade das massas atravs de um programa de preveno das crises e de compensaes sociais, ao qual no alheio de todo a busca de uma legitimao. Ora, estas duas formas tambm se inte-gram e confundem parcialmente, visto que nas modernas sociedades tecnocrticas a no tematizao e a manipulao dos apoios so traos marcantes. Por fim, deve-se incluir a fonte da legitimidade representada pelo poder comunicativo, que corres-ponde ao poder como um fim em si mesmo a servio da prxis. Postula-se este nvel porque se considera que o poder em geral precisa estar ancorado, em ltima instn-cia, em leis e instituies polticas, as quais dependem das convices comuns que se formam num processode comunicao no coercitiva.

    O conceito de poder poltico de Habermas se alimenta do conceito de poder comunicativo de Arendt. Ambos ressaltam a importncia da prxis. Contudo, Haber-mas impugna a abstrao que a autora faz da violncia (ao definir poder como o oposto da violncia), sublinhando, assim, a presena contraditria das duas formas.

    Desde uma perspectiva comunicativa, a ao estratgica, que pode estar em-butida estruturalmente nas instituies polticas e no exerccio administrativo, como de fato est, deve ser entendida como um bloqueio imperceptvel dos processos co municativos, o qual explica a formao da ideologia, de convices ilusrias que vo contra os interesses dos seus prprios formadores. A ao comunicativa, que se co-loca na base do poder legtimo, aquela medida crtica que atuando sobre a "com-petio" estratgica permite, em ltima anlise, diferenciar as convices ilusrias das no ilusrias. Como vimos, ambas as formas coexistem tensionalmente. Haber-mas atribui a primazia, no entanto, ao poder comunicativo, pelos seguintes motivos: por ser um parmetro de crtica permanente ideologia; porque duradouramente as instituies polticas no perduram sem legitimidade; porque no possvel falar em ganhos ou em crescimento do poder como obje-

    tivo do exerccio da dominao - atravs da lgica da ampliao dos inputs do sistema administrativo (apoio, lealdade, necessidades) - , sem atentar nem que seja indiretamente para a legitimidade. Para Habermas, difcil conseguir uma ampliao do poder pela violncia ou pela manipulao sistemtica dos apoios. Assim, a ltima fonte do poder a prxis.

  • A questo da interpenetrao do poder administrativo e do poder comunica tivo no , para Habermas, algo que se resolva em nvel da teoria: como se relacio-nam e quem domina quem uma questo emprica; no entanto, essa relao per-manente. Ela se evidencia claramente na dependncia do poder administrativo dos fundamentos normativos. Isso se explica pelo seu carter jurdico. A especificidade do poder administrativo, entretanto, est no fato de contemplar instrumentalmente as normas prticas, as quais valem "como racionalizaes de acrscimo a decises anteriormente induzidas". Apesar disso, Habermas formula que "nem tudo o que se-ria factvel para o sistema poltico vai adiante, se a comunicao poltica ligada ante-riormente a ele desvaloriza discursivamente os fundamentos normativos alegados, mediante fundamentos contrrios" (HABERMAS, 1990:109). Ou seja, a comunicao poltica comportaria a possibilidade de influir restritivamente sobre a ao adminis-trativa negando, se for o caso, legitimidade aos seus produtos.

    Na caracterizao da relao ideal que se deveria estabelecer entre os dois poderes, Habermas evoca o modelo de uma orientao indireta: "A partir da relao entre administrao e economia conhecemos o modelo da orientao indireta, da in-fluncia sobre os mecanismos de auto-orientao (ajuda para que o outro se mante-nha por si). Talvez esse modelo possa ser transferido para a relao entre o espao pblico democrtico e a administrao" (HABERMAS, 1990:109). Desta maneira, a "so-berania popular" no se expressa unicamente no campo dos processos democrticos e comunicativos de formao de vontade, seno que tambm "se sublima quelas interaes de difcil apreenso" entre a formao de vontade institucionalizada de modo jurdico-estatal e aqueles espaos pblicos mobilizados culturalmente. Ela pre-cisa tomar forma nas decises.

    A especificidade da soberania popular est na contnua autotematizao, re-ferida aos pressupostos ideais de uma comunicao livre. Seu objeto a prpria ma-nuteno desses pressupostos - que no pertencem a ningum em particular - , im-pedindo o congelamento hierrquico-burocrtico, as assimetrias, a induo de argu-mentos e comportamentos. A figura de uma soberania popular corporificada em as-sociaes ou organizaes (mais ou menos rgidas) no expressa bem o significado que ela tem como criticidade, como resgate permanente dos procedimentos (ticos) do discurso. Esses pressupostos esto implicados "nas formas oscilantes de uma co-municao sem sujeito", autnoma ou "no organizvel no seu todo pelo prprio sis-tema poltico".

    Essa permanente criticidade auto-referida pode ser transferida, segundo o modelo da orientao indireta, ao mbito institucional onde interatua a legitimidade com o poder de tomar e implementar decises orgnicas e formais. A necessidade de uma avaliao sistemtica das instituies polticas e estatais torna-se assim um imperativo da legitimidade. Nesse contexto, o modelo da orientao indireta tem a seguinte expresso:

    O poder comunicativo exercido no modo do assdio. Ele atua sobre as premissas dos processos decisrios do sistema administrativo sem in-teno de conquista, a fim de apresentar seus imperativos na nica lin-guagem que a cidadela sitiada entende: ele gere o pool de fundamentos com os quais o poder administrativo pode lidar instrumentalmente, sem

  • contudo poder ignor-los tais como so concebidos juridicamente ( H A -BERMAS, 1990:111).

    Como se v, a teoria do poder poltico de Habermas absolutamente coe-rente com a teoria da ao, surgindo desta ltima. O novo equilbrio ou a nova combinao entre ao teleolgico-estratgica e ao comunicativa, reclamado por Habermas, tem uma traduo semelhante na sua teoria da sociedade:

    As sociedades modernas dispem de trs recursos que podem satisfazer suas necessidades no exerccio do governo: o dinheiro, o poder e a soli-dariedade. As esferas de influncia desses recursos teriam que ser postas em equilbrio. Eis o que quero dizer: o poder de integrao social da so-lidariedade (mundo social da vida) deveria ser capaz de resistir s foras dos outros recursos, dinheiro e poder administrativo. Pois bem, os do-mnios da vida especializados em transmitir valores tradicionais e co-nhecimentos culturais, em integrar grupos e em socializar conhecimen-tos, sempre dependeram da solidariedade. Mas desta fonte tambm te-ria que brotar uma formao poltica de vontade que exercesse influn-cia sobre a demarcao de fronteiras e o intercmbio existente entre es-sas reas da vida comunicativamente estruturadas, de um lado, e Estado e Economia, de outro lado (HABERMAS, 1987:112).

    claro que esta combinao de "poder e autolimitao meditada" s pode ter como pano de fundo um mundo da vida fortemente racionalizado (culturalmen-te). Esta demanda de racionalizao no pode ser entendida, porm, como apan-gio para teses vanguardistas e restringida mente intelectualistas. A participao aqui requerida deve ser "ampla, ativa e disseminante". Esse pano de fundo corresponde a uma cultura poltica igualitria, desprovida de privilgios de formao e "tornada in-telectual em toda a sua amplitude".

    Offe nos brinda com uma boa interpretao da lgica da dominao do Esta-do ou do exerccio administrativo do poder legitimado (como diria Habermas).

    A funo de dominao estatal entendida como um processo de seletivida de, de incluso e de excluso de interesses, que se desenvolve imanentemente no nvel poltico (sem ter que ser explicado necessariamente com termos de determina-es pr-polticas) e cujo objetivo a estabilizao do sistema e no diretamente a dominao de uma classe por outra. Evidentemente esta compreenso est contex tualizada no capitalismo moderno regulamentado estatalmente (especificamente dos pases centrais).

    De acordo com essa definio, o que interessa funo do Estado menos o privilegiamento de uma minoria dominante tambm em termos econmicos, mas sim a eliminao e a represso das articulaes de necessidades que ameacem o sis-tema (OFFE, 1989:116). Este o contedo repressivo da funo estatal, que se viabi-liza politicamente atravs de mecanismo de "disciplinamento embutidos nas institui-es de articulao poltica de necessidades" (parlamentos, partidos, associaes etc.).

  • Na perspectiva de Offe, o Estado moderno enfrenta trs problemas funda-mentais para o sistema, cuja resoluo autonomizou-se no sistema poltico, por esta-rem sujeitos a imperativos "objetivos", no especficos em termos de interesses. Esses problemas, que assumem a relevncia de questes de sobrevivncia, so:

    a problemtica da estabilidade econmica, que abrange as questes do pleno emprego assegurado e do crescimento econmico equilibrado. Neste contexto, verifica-se a funo compensatria das crises econmicas (reais ou potenciais) que o Estado realiza, induzindo investimentos ou compensando diretamente la-cunas de investimento, (abrangendo a influenciao da demanda, gastos com cincia e tecnologia, polticas de comrcio etc.). o papel da planificao eco-nmica indicativa ou subsidiria e da produo diretamente estatal;

    a problemtica das relaes externas (polticas, econmicas e militares), que hoje em dia assume a mesma relevncia que a problemtica econmica para a sobre-vivncia sistmica, incluindo aspectos como a poltica de armamento, as alianas militares, a ajuda ao desenvolvimento, a poltica cambial, as alianas econmicas etc.;

    a problemtica da certificao da lealdade das massas, funo que se realiza com o objetivo de disciplinar o potencial de conflitos atravs da distribuio de inde-nizaes sociais, da produo de smbolos e ideologias integrativas e da repres-so violenta em caso de divergncias incontrolveis. O que diferencia, segundo Offe, a certificao da lealdade das massas da legitimidade propriamente dita que a primeira no se baseia "em uma crena na validade de uma ordem", mas na prpria renncia s exigncias de legitimao (OFFE, 1989:133).

    Essas trs problemticas esto interligadas no sentido de que o desequilbrio em uma especfica pode expandir-se para as outras, assim como em determinadas circunstncias o desanuviamento da crise em uma rea problemtica pode compor-tar o perigo da crise dinamizar-se nas outras.

    Para tentar dar conta das trs problemticas, o Estado lana mo das mais complicadas tcnicas de administrao tecnocrtica, as quais instrumentalizam as duas estratgias bsicas dos sistemas polticos do capitalismo tardio, quais sejam a administrao da crise e a consecuo de uma estratgia de evaso a longo pra-zo ( O F F E , 1989:134).

    A administrao preventiva da crise obriga o Estado a reagir com flexibilidade aos riscos reais e potenciais que o sistema corre e a atuar prioritariamente naquelas reas-problemas, nas quais so previstas as maior


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