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Texto 5- Poincare. o Valor Da Ciencia

Date post: 07-Jul-2016
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valor da ciência
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Henri Poincaré o VALOR DA CIÊNCIA TRADUÇÃO Maria Helena Franco Martins REVISÃO T.£CNICA I1deu de Castro Moreira Instituto de Física da UFRJ 21/. reimpressão conTRAPonTO '.
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Page 1: Texto 5- Poincare. o Valor Da Ciencia

Henri Poincaré

o VALORDA CIÊNCIA

TRADUÇÃO

Maria Helena Franco Martins

REVISÃO T.£CNICA

I1deu de Castro MoreiraInstituto de Física da UFRJ

21/. reimpressão

conTRAPonTO

'.

Page 2: Texto 5- Poincare. o Valor Da Ciencia

TItulo original: La valeur de la soma

c desta edlçllo, Contraponto Editora, 1995e da tradução, Maria Helena Franco Martins, 1995

Vedada. nos termos da lei. a reprodução totalou parcial deste"livro 'em ~.utorizaçio da editora, I

:1

Sumário

CONTRAPONTO EDITORA LTDA,Caixa Poslal:56066 - CEpo 22292.970

Rio de Janeiro. RJ - Brasil

Tetira (021)"259-4957

Home page: hnp://www.contrapontoeditora.com.brl

I" t'diÇlo: julho de 1995

2" reimpreulo: fevereiro de 2000Tiragem: 2.000 exemplares

RMlIo de originaisCésar Benjamin

Revisllo tipográficaGil Queiroz

Projeto gráficoRegina Ferraz

CTP.BRASIL. CATALOGAÇÃ()"NA'FONTESINDICATO NACIONAL,DOS EDITORES 011 LIVROS, RI

PA.l2v Polncaré, Henri. 1854.1912O valor da cil!ncia I Henri Poinca~ : tradução Maria

Helena Franco Martins; revisão técnica Ildeu de CastroMoreira. - Rio de Janeiro: Contraponto. 1995.

180 p,

Traduçllo de: La valeur de la sciey,.ceISBN 8S.85910.02MX

1. Ci!ncla - Filõsofia: 2, Ciência - História. 1. Titulo.

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II

Cronologia de Hemi Poincaré

Introduçáó

Primeira parte - As ciêncIas matemátIcas

I. A intuição e a lógica na matemática

11.A medida do tempo

m. A noção de espaço

IV, O espaço e suas três dimensões

Segunda parte - As ciências flslcas

v, A análise e a físicaVI. A astronomiaVII. A história da física matemática

VIIl. A crise atual da física matémática

IX.O futuro da física matemática

Terceira parte - O valór objetivo da ciência

X. A ciência é artificial?

XI. A ciência e a realidade

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TERCEIRA PARTE

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CAPiTULO X

A ciência é artlflclalt

I. A filosofia do sr. Le Roy

Há muitas razões para sermos céticos; devemos levar esse ceticismoaté o fim) ou parar no meio do caminho? Ir até o fim é a solução maistentadora, mais cômoda e a que muitas pessoas. adotaram, sem espe-rança de salvar alguma coisa do naufrágio.

Entre os escritos que se inspiram nessa tendência, convém colocarentre os mais importantes os do sr. Le Roy. Esse pensador não é ape-nas um f.tlósofo e escritor do maior mérito, mas adquiriu um conhe-cimento profundo das ciências exatas e das ciências físicas, chegandoa dar prova de preciosas faculdades de invenção matemática.

Resumamos em algumas palavras sua doutrina, que deu ensejo anumerosas discussões.

A ciência é feita apenas de convenções, e é unicamente a essa cirRcunstância que deve sua aparente certezaj os fatos científicos e, a [or-tiori, as leis, são obra artificial do cientistai a ciência •.portanto, na-da pode nos ensinar sobre a verdade, 56 pode nos servir como regrade ação.

Reconhecemos ai a tem"ia fllúsóIil:a L:uuht:dua L:UIIlu nurn:t: ut: no-minalismo; nem tudo é falso nessa teoriaj é preciso reservar~lhe seulegítimo domínio, mas também não se deveria deixá-la sair dele.

Não é s6 isso; a doutrina do sr. Le Roy não é apenas nominalistajtem ainda uma outra característica, que sem ,dúvida deve"à influên-cia do sr. Bergson: é antiintelectualista. Para o sr. Le Roy, a inteli-gência deforma tudo o que toca, e isso é ainda mais verdadeiro paraseu instrumento necessário, "o discurso". Não há realidade senãoem nossas impressões fugidias "emutantes, e mesmo essa realidadese esvai assim que a tocamos.

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I J 8 o VALOR OBJETIVODA CI~NCIA

E contudo o Sr.Le Roy não é um céticoj se considera a inteligênciacomo irremediavelmente impotente, é apenas para reservar o papelmais importante a outras fontes de conhecimento) como por exem-plo o coração, o sentimento, o instinto ou a fé.

Qualquer que seja minha estima pelo talento do sr. Le Roy, qual-quer que seja a engenhosidade dessa tese, não posso aceitá-la intei-ramente. :É verdade que concordo em muitos pontos com o sr. LeRoy, e ele chegou a citar, em apoio a seu ponto de vista, diversaspassagens de meus escritos que de modo algum estou disposto a re-jeitar. Isso só me faz mais empenhado em explicar por que não pos-so segui~lo até o tim.

O sr. Le Roy queixa~se muitas vezes de ser acusado de ceticismo.Não podia deixar de sê-lo, embora essa acusação provavelmente sejainjusta. Não estão as aparências contra ele?Nominalista de"dolltrina,mas realista de coração, parece só escapar ao nominalismo absolutopor um ato desesperado de fé.

É que a filosofia antiintelectualista, recusando a análise e ('o dis-curso", condena-se por isso mesmo a ser intransmissível: é umafilosofia essencialmente interna, ou ao menos o que se pode delatransmitir são apenas as negaçõesj como então espantar-se como fat~ de que, para um observador exterior, ela tome a forma doceticismo?

Ai está o ponto fraco dessa filosofiaj se quer permanecer fiel a simesma, esgota seu poder numa negação e num grito de entusiasmo.Cada autor pode repetir essa negação e esse grito, variando sua for-ma, mas sem nada acrescentar.

Além' disso) não seria' mais conseqüente calar-se? Ora essa, ossenhores escreveram longos artigosj para isso nãO puderam .deixarde usar palavras. Assim, não foram muito mais «discursivos" e, porconseguinte, não ficaram muito mais longe da vida e da verdade doque o animal que vive pura e simplesmente sem filosofar? Não seriaesse animal o verdadeiro fil6sofo?

Contudo, só porque n~nhu:rii pintor conseguiu fazer um retratointeiramente igual ao modelo, devemos concluir que a melhor pin-tura é não pintar? Quando .um zoólogo disseca um animal, certa~mente ele «o altera". Sim, ao dissecá-lo, condena-se a nunca conhe-

A C'~NCIA ~ ARTIFICIAl! B.JP

cer tudo dele. Mas não o dissecando, iria condenar-se a nunca co-nhecer nada, e, por conseguinte, nunca dizer nada.. fi ,:,crdade que há no homem outras forças além de sua inteligên-

CIa:.mnguém Jamais foi suficientemente louco para negá-lo. O pri-meIro, que aparece faz agirem ou deixa agirem.essas forças cegasjo filósofo deve falm. delas; para falar, deve conhecer delas o poucoque se pode conhecer: deve, portanto, vê-las agir. Como? Com queolhos, senão com a inteligência? O coração e o instinto podem guiá-Ia, mas não torná-Ia inútil; podem dirigir o olhar, mas não substituiro olho. Que o coração seja o operário) e a inteligência seja apenaso instrumento, podemos aceitar. De qualquer modo, é um instru-mento que não podemos dispensar, senão para agir, ao menos pa-ra filosofar. :£ por isso que uma filosofia realmente antiintclec-tu:list~ é impo.ssfveL Talvez devamos concluir pelo «primado" daaçaOj amda aSSIm,é nossa inteligência que .irá tirar essa conclusão;ced~ndo a vez à ação, desse modo ela guardará a superioridade docanIço pensante de,Pascal. Eis ai.também um "primado') que não éde desprezar.

Que me perdoem essas curtas reflexões, e que me perdoem tam-bém fazê-las tão curtas, e mal ter aflorado a questão. O processo mo-vido contra ~tc1~etualismo não é o assunto de que quero tratar: que-ro falar da CIênCIae, quanto a ela, não há dúvida; por definição, poraSSImdizer,. ela será intelectualista ou não existirá. O que se trata desaber) precisamente, é se existirá.

1. A ciência, rellr'l de afão

~ar'il u sr. Le ROYia ciência não é mais que uma regra de ação. Somosrmpotentes para conhecer o que quer que seja, e .contudo est'amosenvolvid?s, precisamos agir e, por via das dúvidas, fixamos regras.£ ao conjunto dessas regras que chamamos ciência.

Foi assim que os homens, desejosos de se divertir, estabeleceramregras de jogos (como por exemplo as do gamão) que poderiam, me-lhor do que a própria ciência, .apoiar-se na prova do consenso uni-versal. ~ as~im também que, sem condição de escolher, mas forçadosa escolher, Joga~os para o alto uma moeda, para tirar cara ou coroa.

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140 o VALOR OBJETIVO DA CI~NCIA

A regra do gamão é.bem uma regra de ação, como CI_ ciência, maspode-se crer que a comparação seja justa, e não ver, a diferença?As regras do jogo são convenções arbitrárias, e poderíamos ter ado-tado a convenção contrária, que não teria sido menos boa.Ao contrá-riQ, a ciência é uma regra de,ação que funciona, pelo menos de ma-neira geral, e digo mais - ao passo-que a regra contrária não teriafuncionado.

Se digo que, para fazer hidrogênio, deve-se fazer agir um ácidosobre o zinco) formulo uma regra que funciona; poderia ter manda-do fazer agir água destilada sobre ouro; isso também teria sido umaregra, sÓque não teria funcionado.

Portanto) se essas "receitas" científicas têm um valor, como regrade ação, é porque sabemos que elas 'funcionam, ao menos em geraLMas saber isso é realmente saber alguma coisa, e então por que vêmos senhores dizer.nos que nada podemos conhecer?

A ciência prevê, e é porque prevê que pode ser útil, e servir deregra de ação. Sei bem que suas previsões são muitas vezes desmen.tidas pelo evento; isso prova que a ciência é imperfeita, e se acres-cento que continuará. sempre assim, estou certo de que esta é umaprevisão que, pelo menos ela, jamais será desmentida. De qualquermodo) o cientista se engana com menos freqüência do que wn pro-, feta que fizesse predições ao acaso. Por outro lado, o ',progresso é,'lento, mas contínuo, de modo que os cientistas, embora cada vezmais ousados, ficam cada vez menos decepcionados. F.pouco, masé o.bastante.

Sei bem que o sr. Le Roy disse, em algum lugar, que a ciência seengan~va com mais freqüência do que se imaginaI que os cometaspor vezes pregavam 'peças aos astrÔnomos, que os cientistas, que apa-rentemente são homens, não falavam de muito bom grado de seusinsucessos e que, se falassem, ~everiam contar mais derrotas do quevitórias. 01;,

Nesse dia o SI. Le Roy ,evidentemente'extrapolou seu pensamento.Se-a ciência não fosse bem-sucedida, não poderia-servir de,regra deaçãoj de onde tiraria ela seu valor? Do fato de ser "vivida", isto é, dofato de que a amamos e cremos nela? Os alquimistas tinham, parafazer ouro, receitas de que gostavam e nas quais tinh:un fé; contudo

A CI£:NCIA ~ ART1FICIAU 141

as boas receitas são as nossas) embora nossa fé seja menos viva, por-que elas são bem-sucedidas.

Não há meio de escapar a esse dilemai ou bem a ciência não per-mite prever, e então não tem valor como regra de ação, ou entãopermite prever de modo mais ou menos imperfeito, e então não dei-xa de ter valor como meio de conhecimento.

Não se pode sequer dizer que a ação seja o objetivo da ciência;devemos condenar os estudos feitos sobre a estrela Sirius, sob o pre~texto de que provavelmente jamais exerceremos qualquer ação sobreesse astro?

Ameu ver, ao contrário, o objetivo é o conhecimento, e a ação é omeio. Se me felicito pelo desenvolvimento industrial, não é s6 por-que ele fornece um argumento fácil. aos advogados da ciêÍlcia; é so~bretudo porque dá ao cientista a fé nele mesmo, e tambêm porquelhe oferece um notável campo de experimentação, onde ele ,esbarraem forças imensamente grandes. Sem esse lastro, quem sabe não sefaria ao largo, seduzido pela miragem de alguma nova escolástica, oudesesperaria, pensando que teve apenas wn sonho?

li. O f"to bruto e o f"toclentiflco

o que havia de mais paradoxal na tese do sr. Le Roy era a afirmaçãode que o cientista cria o fatoi era ao mesmo tempo -seu ponto essen-cial, e foi um dos que foram mais discutidos.

Talvez- diz ele - (tenho para mim que era uma concessão) nãoseja o cientista que cria o fato bruto; ao men'os, é ele que cria 'o fatocientítico. .;

Essa distinção entre o fato bruto e o fato científico não me'pare-ce ilegítima por si só. Mas antes de mais nada, incomoda-me-, que afronteira não tenha sido traçada nem de maneira exata, nem de ma~neira precisai em seguida, que o autor pareça ter'subentendido que ofato bruto, não sendo científico, está fora da ciência.

Enfim, não posso admitir que o cientista crie livremente o fatocientífico, já que é o falo bruto que o impõe a ele.

Os exemplos dados pelo sr. Le Roy muito me espantaram. O pri-meiro é tirado da noção de átomo. O á.tomo escolhido como exem-

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14.1 o VALOR OBJETIVO DA CI~NCIA

pIo de fato! Confesso que essa escolha me desconcertou de tal manei-ra, que prefiro nada dizer sobre isso. Certamente compreendi mal opensamento do autor, e não poderia discuti-lo proveitosamente.

O segundo caso tomado como exemplo é o de um eclipse em queo fenômeno bruto é um jogo de sombra e de luz, mas onde o as.Úõnomo não pode intervir sem introduzir dois elementos estranhos:um relógio e a lei de Newton_

Enfim, ô sr. Le Roy cita a rotação da Terraj responderam-lhe: masisso não é um fato. Ele replicou: era um fato, tanto para Galileu, queo afirmava, quanto para o inquisidor, que o negava. De qualquermodo, não é um fato como aqueles dos quais acabamos de falar, elhes dar o mesmo nome é se expor a muitas confusões.

~is aqui, pois, quatro graus:1° - Está escuro, diz o ignorante.20 _ O eclipse ocorreu às nove horas, diz o astrônomo.30 --O eclipse ocorreu na hora que se pode deduzir das tabelas

construídas segundo as leis de Newton, diz ele, também.40 _ Isso se deve ao fato clt::que a Terra gira em torno do Sol, diz,

enfim, Galileu.Onde está, então, a fronteira entre o fato bruto e o fato cientifico?

Ao ler o sr. Le Roy. pensaríamos que é entre o primeiro e o segundograus, mas quem não vê que há mais distância entre o segundo e oterceiro, e mais ainda enç:-eo terceiro e o quarto?

Permitam-me citar dois exemplos que talvez nos esclareçam umpouco.

Observo o desvio de um galvanômetro com o auxílio de um espe-lho móvel, que projeta uma imagem luminosa ou spot numa escaladividida.. O fato bruto é: vejo o spot se deslocar na escala, e o fflto

científico é: passa uma corrente no circuito.Ou ainda: quando faço uma experiência, devo fazer com que o

resUltado sofra certas correções, porque sei que devo ter cometidoerros. Esses erros sã'o de dois tipos: uns são acidentais, e eu os corri-girei tomando a médiat"os outros são sistemáticos, e s6 poderei cor-rigi-los mediante um estudo aprofundado de suas causas.

O primeiro resultauo obtido é então o fato bruto, enquanto °fatocientífico é o resultado final depois de .terminadas as correções.

A CI~NCIA t ARTlFICIAU 1.131

Refletindo sobre esse último exemplo, somos levados a subdividirnosso segundo grau e, ao invés de dizer: .

2° - O eclipse ocorreu às nove horasj diremos:2°(,1) - O eclipse ocorreu' quando meu relógio marcava nove

horas; e.. .

2°(b) - Como meu relógio atrasa dez minutos, o eclipse ocorreuàs nove e dez.

E não é só isso: o primeiro grau também deve ser subdividido, enão é entre essas duas subdivisões que.a distância será menor; ~ntre aimpressão de escuridão, que a testemunha de um eclipse experimen-ta, c o.ufirmnç:ão "está eSCUTO", '-{Ul;:.essa impressao lhe provoca, é ne-cessário. fazer a distinÇão. Num certo sentido, a primeira é o únicoverdadeiro fato bruto, e a segunda j~é umaespécie.-de fato científico.

Portanto, no~sa e>cala agora tem seis graus e, embora não hajanenhuma razão para que nos. detenhamos nesse número, é o quefaremos.

Antes de tudo, o q~e me impressiona é o seguinte: no primeirode nossus seis graus, o fato, ainda completamente bruto" é por assimdizer individual, é completamente distinto de todos os outros fatospossíveis. A partir do segundo grau, não acontece mais o mesmo.O enunciado do fato poderia convir a uma infmidadc de outros fa-tos. Assim que a linguagem intervém, disponho apenas de um nú-mero ~e termos para exp~imir as nuanças, em número infinito, deque mmhas impressões se poderiam revestir. Quando digo "es.tá es-curo", isso exprime bem as impressões que experimento ao assistira wn eclipse; mas na própria escuridão poderíamos imaginar. umaquantidade de nnanças e, se ao invés daquela, que efetivamente serealizou, se tivesse produzido uma nuanlfa poucu diferente, mesmoa~sim, contudo, eu to.,.:ria também enunciado esse outro fato dizendo"está escuro".

Segunda observação: mesmo no segundo grau. o enunciad.o de umfato s6 pode ser verd{4deiro ou falso. Não aconteceria O mesmo comuma proposição qualquer; se essa proposição é O enunciado de umaconvenção} não se pode dizer que esse enunciado seja verdadeiro, nosentido literal da palavra, já que el~não poderia ser verdadeiro contraa minha vontade, e é verdadeiro apenas por que ass'im o desejo.

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144 O'VALOR'OBJETIVO D,A CI£NCIA

Quando digo, por exemplo, que a unidade de comprimento é ometro, é um decreto que aceito, não é uma constatação que se impõea mim. Como creio ter mostrado alhures, é o mesmo quando se tra-ta, por exemplo, <\0 postulado de Euclides.Quando me perguntam, "Está escuro?", sei sempre se devo res-

ponder ((sim" ou ICnão". "Embora uma infinidade de fatos possíveis possam admitir este

mesmo enunciado, ((está escuro", saberei sempre se o fato realizadoestá ou não entre aqueles que respondem a esse enunciado. Os fatossão classificados em categorias, e se me perguntam :;e u fato queconstato entra ou não em determinada categoria, não hesitarei.Sem dúvida, essa classificação comporta arbitrariedade suficiente '

para conceder um .grande papel à liberdade ou ao capricbo do ho-mem. Em uma palavra, essa classificação é uma convenção. Sendodada essa convenção, se me perguntam 'Tal fato é verdadeiro?". sabe-rei sempre o que responder, e minha resposta me será imposta pelotestemunho de meus sentidos.Portanto, se durante um eclipse perguntam '(Está escuro?", todos

responderão que 'sim. Sem dúvida resporideriam que não aquelesqu~ falassem uma lingua em que "claro", significasse ':escuro", e ('es_curo" significasse Clclaro".Mas que importância pode ter isso?Assim também, em matemática, uma vez enunciadas as definições

e os postulados que sao convenções, um teorema só pode ser verdadei-ro ou falsó. Mas para responder à questão "Este teorema é 'verda-deiro?", não é mais ao testemunho de meus sentidos que recorrerei)mas sim ao.racioc1nio.Ó enunciado de um tato' é sempre verificável, e para a verifica-

ção recorremos quer ao testemunho de nossos sentidos, quer à lem-brança desse testemunho. :£ isso, propriamente, o que caracterizaum fato. Se me perguntam "Tal fato é verdadeiro?", começarei porlhes pedir, se for o caso, que precisem as cenvenções, e por lhes per-guntar, em outros terIll9s, em que língua falaramj depois, uma vezfixado'nesse ponto, inttrrogârei meus sentidos e.responderei l'sim"ou '~não". Mas a resposta me terá sido dada por meus sentidos, nãoserão os senhores que me dirão uFoi em inglês ou em francês quelhe falei".

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A CleNCIA ~ ARTIFICIAL! 145

Haverá alguma coisa a mudar em tudo isso, quando passamosaos graus seguintes? Quando observo um galvanômetro, como aca-bo de dizer, se pergunto a um visitante ignorante llA corrente estápassando?", ele vai olhar o fio, para tentar ver passar ali alguma coi-saj,mas se faço a mesma pergunta ao meu assistente. que compreen-de a minha lIrigua, ele saberá que isso quer dizer "O spot se deslo-ca?") e olhará para a escala.Qual a diferença, então, entre o enunciado de um fato bruto e o

enunciado de um fato científico? A mesma que entre o enunciado deum mesmo fato bruto na língua françesa e na l1ngua alemã. O cnuu-dado cientifico é a tradução do enunciado bruto para uma lingua-gem que se distingue sobretudo do alemão vulgar ou do francês vul-gar porque é falado por um número bem menor de pessoas.Contudo, não andemos rápido demais. Para medir uma corrente,

posso utilizar um enorme número de tipos de galvanômetros, ouainda um eletrodinamÔmetro. Então, quando disser que passa nocircuito uma corrente de tantos amperes, isso quererá dizer que, seadapto.a esse circuito determinado galvanômetro, verei o spotir paraa divisão aj mas isso quererá dizer igualmente. que, se adapto a essecircuito determinado eletrodinam6metro) verei o spotir para a divi-são b. E isso quererá dizer ainda muitas outras'coisas, pois a correntepO,dese manifestar não s6 por efeitos mecânicos, mas também porefeitos químicos, térmicos, luminosos etc.Aí está, portanto, um mesmo enunciado que convém a um enorme

número de fatos absolutamente diferentes. Por quê? Porque admitouma lei segundo a qual toda vez que um determinado efeito mecânicose -produzir, um dl;:tt:nI~.inauo efeito químico se produzirá por seu la-do. Experiências anteriores em grande número jamais me mostraramque essa lei falhassej então percebi que poderia exprimir pelo mesmoenunciado dois fatos tão invariavelmente ligados um ao ou~ro.Quando me- perguntarem CIA corrente está passan4o?", poderei

compreender que isso quer dizer "Tal efeito mecânico vai produzir-se?'),mas também poderei compreender ((Tal efeito químico vai pro-duzir-set'. Verificarei então, quer a existência do efeito mecânico,quer a do efeito químico; isso será indiferente, já que, tanto num casocomo no outro, a resposta deve ser a mesma.

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146 O VALOR OBJETIVO DA CI£NC1A

E se a lei um dia viesse a ser declarada falsa? Se percebêssemos 'quea concordância dos dois efeitos, o mecânico e o químico, não é cons-tante?,Nesse dia, seria preciso mudar a linguagem científica, para fa-zer desaparecer dela uma grave ambigüidade., E depois? Pode-se crer que a linguagem corrente, com a qual ex-

primimos os fatos da vida diária, sefá isenta de ambigüidade?Dal concluiremos que os fatos da vida diária são obra dos gra-

mdticos?Os senhores me perguntam "Há Urna corrente?". Procuro ver se o

efeito mecânico existe, constato-o e respondo "Sim, há uma corren-te". 015 .senhores compreendem ao lnt=~ll1U tempu y'ut:: isso quer dizerque o efeito mecânico existe e que o efeito químico, que não pes-quisei. também existe. Imaginemos agora, por mais impossível queseja, que a lei que acreditávamos verdadeira não o seja. e que o efeitoquímico não tenha existido nesse caso. Nessa hipótese, haverá doisfatos distintos: um diretamente observado - verdadeiro -, o outroinferido e falso. Poderemos até dizer que fomos nós que criamos osegundo. De modo que a parte de colaboração pessoal do homem nacriação do fato científico é o erro.. Mas se podemos dizer que o fato em questão é talso, não será jus-t(lmente porque ele não é uma criação livre e arbitrária de nosso es-pírito, uma convenção disfarçada, e nesse caso não seria verdadeiro. nem falso? E de fato ele era verificável: eu não havia feito a verifica-ção, mas poderia tê-la feito. Se dei uma resposta errada, foi porquequis-responder rápido demais, sem ter interrogado a Natureza, a úni-ca a saber o segredo.

Quando, após uma experiência, corrijo os'erros acidentais e sis-temá.ticos para dcstacar o fato científico, é ain'da a mcsma coisa; ofato científico jamais será outra coisa que-não o fato bruto traduzidopara uma outra linguagem. Quando eu disser "São tantas horas", issoserá um modo abreviado de dizer "Há tal relação entre a hora quemeu relógio marca e-a hÇlra que ele marcava no moménto da pas-sagem de um determinado astrô e de outro astro pelo meridiano".E uma vez essa convenção de lingUagem adotada por todos, quandome perguntarem "São tantas horas?", não dependerá de mim res-ponder "sim" ou "não".

II

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A CI~NCIA £ ARTIFICIAU 147

Passemos ao penúltimo grau: o eclipse ocorreu na hora dada pelastabelas deduzidas das leis de Newton. Esta é ainda uma'convenção delinguagem perfeitamente clara para aqueles que conhecem a mecâni-ca ce~este,ou sim~lesmente para aqueles que possuem as tabelas cal-culadas pelos a.strônomos. Perguntam-me ecOeclipse ocorre na ho-ra predita?". Consulto a Connaissance des Temps.,*vejo que o eclipseestava anunciado í?:lra as nove horas e compreendo que a pergwltaqueria dizer"O eclipse ocorreu às nove horas?". Também aí nada te-mos a mudar em nossas conclusões. O fato cientifico é apenas o fatobruto trad~zido para uma linguagem c6moda.E verdade que, no último grau, as coisas mudam. A Terra gira?

É este um fato verificável? Para chegar a um acordo, podiam Galileue o Grande Inquisidor apelar para o testemunho de seus sentidos?Ao contrário, estavam de acordo sobre as aparências, e quaisquer quetivessem sido as exPeriências acumuladas, éles teriam permanecidode acordo sobre as aparências, sem jamais concordar quanto à suainterpretação. Foi mesmo por isso que foram obrigados a recorrer aprocedimentos de discussão tão pouco,científicos .

.t: por isso que.esti~o que.não discordavam sobre um/ato; naotemos o direito de dar o mesmo nome. à rotação da Terra, que era oobjeto de sua discussã.o, e aos fatos brutos ou cientificos que passa-mos em revista até aqui .

Depois do que foi dito acima, par,ece supérfluo investigar se o fatobruto está fora da ciência, pois não pode haver nem ciência sem fa-to científico, nem fato científico sem fato bruto, já que o primeiro éapenas a tradução do segundo. .E então, temos o direito de dizer que o cientista-cria o fato cienti-

fico? Antes de tudo, ele não o cria ex nihilo, já que O faz com o fatobruto. Por conseguinte, não O faz livremente, e como quer..Por maishábil que seja o trabalhador, sua liberdade é sempre limitada pelaspropriedades da matéria-prima sobre a qual opera.Afinal de contas, o que querem dizer quando falam dessa criação

livre do fato científico, e quando tomam como exemplo o astrônomo

••Publicação equivalente às nossas Efemérides astron6micas, que contém informa-ções anuais sobre eventos astronômicos. (N. da T.)

~...

Page 10: Texto 5- Poincare. o Valor Da Ciencia

1-48 o VALOR OBJETIVO DA C!~NCIA

que intervém ativamente no. fenômeno do. eclipse, trazendo seu re-lógio? Querem dizer: "O eclipse ocorreu às nove horas?". Mas se oastrÔnomo tivesse desejado.que ele ocorre~se às dez horas, só depen-dia dele, s6 precisava adiantar seu relógio em uma hora.. Mas ao fazer essa brincadeira de mau gosto, o astrônomo evi-

dentemente teria sido culpado de um equivoco. Quando ele me dizque o eclipse ocorreu às nove .horas, entendo que nove horas é ahora deduzida da indicação bruta do relógio, pela série de correçõesusuais. Se ele me deu apenas essa indicação bruta, ou se fez corre-ções contrárias às regras habituais, mudou a linguagem convencio-nada sem me prevenir. Se, ao contrário, teve o cuidado de me preAvenir, não posso me queixar; mas então é sempre o mesmo fato,expresso em outra linguagem.

Em suma, tudo o que o cientista cria num fato é a linguagem naqual ele o enuncia. Se prediz um fato, empregará essa ling,!agem, epara todos aqueles que souberem falá-la e entendê-la, sua prediçãoestá isenta de ambigüidade. Além disso, uma vez lançada essa predi-ção, evidentemente não depende mais dele que ela se realize ou não.

O que resta então da tese do sr. Le Roy?Resta o segdnte: o cientis-ta ~tervém ativamente, escolhendo os fatos que merecem ser obser-vados. Um fato isolado não tem, por si mesmo, nenhum interessei.torna-se interessante se tivermos motivos para pensar que ele poderáajudar a predizer outrosj ou então, se, tendo sido preditol sua verifi-cação for a. confirmação de unia lei. Quem escolherá os fatos que,respondendo a essas condiçõesj merecem impor-se na ciência? É alivre atividade do cientista.

E não é só isso. Eu disse que o fato cientifico éa tradução de umfato bruto para um<;lcerta. linguagem; ,deveria ter acrescentado quetodo fato científico é formado de vários fatos brutos, Os exemploscitados acima o ilustram. bastante bem. Por ex-einplo, 110 que se re-.fere à hora do eclipse, meu- relógio marcavff a hora o:no instante doeclipsei marcava a hora _~ no momento da última passagem nomeridiano de UI~a certi" estrela que tomaremos C01110 origem dasascensões retas; marcava a hora yno momento da penúltima passa-gem dessa mesma estrela,' Ai estão três fatos' distintos (contüdo, ob-servarão que cada um deles resulta, ele mesmo, de dois fatos brutos

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A CIl:NCtA I: ARTIFICIAl! 149

simultâneosi mas deixemos de lado essa-observação). Ao invés disso,eu digo "O eclipse ocorreu na hora 24(a - ~)/(~ -y)", e os três fatosconcentram-se em um falO dentffico único. Julguei que as trts leitu-ras ,~, /3,y feitas no meu relógio em três momentos diferentes eramdesprovidas d;einteresse) e que a única coisa interessante era a com-binação (a - ~)/(~ - y) dessas três leituras. Neste julgamento reen-contra-se a livre atividade de meu espírito.

Mas esgotei assim meu poder; não posso fazer com-que a combi-nação: (a - ~)/(~ - y) tenha determinado valor e não outro, já quenão posso influir nem sobre o valor de ai n'em sobre o de p, nemsobre o de y, que me são impostos como fatos brutos.

Em suma, os-fatos são' fatos, e se acontece serem conformes a umapredição, não é por um efeito de nossa livre atividade: NãO há fronteiraprecisa entre o fato hruto e o fato científico; pode-se dizer apenas 'quedeterminado enunciado ,de um fato é mais bruto ou, ao' contrário,mais cientifico do que outro.

4. O "nominalismo" e o "Invarlant.e universal"

Se dos fatos passamos às leis, é claro queu'papel da livre atividade docientista se tornará muito maior; Mas o'sr. Le Roy não o torna aindademasiado grande? E o que iremos examinar.

Antes de mais nada, relembremos os exemplos 'que ele deu.Quando digo que o fósforo se funde a 44°, creio enunciar uma leii narealidade, é a própria definição do fósforo; se viéssemos a descobrirum corpo que, por outro lado, gozando de todas a propFiedades dofósforo, não se fundisse a 44°, iríamos dar-lhe outro no~e - s6 isso-, e a lei permaneceria verdadeira.

Do mesmo modo, quando digo que os corpos pesados em quedalivre percorrem espaços proporcionais aos quadrados dos tempos,estou apenas dando a definição de queda livre. Toda vez que a condi-ção não for satisfeita, direi que a queda não é livre, de modo que a leijamais poderá falhar.

E claro que, se todas as leis se reduzissem a.isso, elas não poderiamservir para predizeri portanto, não 'poderiam servir para nada -nem como meio de conhecimento, nem como principio de ação.

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110 O VALOR OBJETIVO DA CltNC1A

Quando digo que O fósforo se funde a 44°, quero dizer com issoque todo corpo que goza de tais e tais propriedades (isto é, todas aspropriedades do fósforo, salvo o ponto de fusão) funde-se a 44°.Assim ~ntendida, minha proposição é bem uma lei, e essa lei pode-rá ser-me útil, pois, se encontro um corpo que goze dessas proprie-dades, poderei predizer que ele se fundirá a 44°.Sem dúvida, poderemos descobrir que a lei é falsa. Leremos então

nos tratados de química: "existem dois corpos que os quimicos pormuito tempo confundiram sob o nome de fósforo'j esses dois corpossó diferem em seu. ponto de fusão". Evidentemente, não seria a pri-meira vez que os químicos conseguiriam separar dois corpos que ini-cialmente' não tinham sabido distinguir; é o caso, por exemplo, doneodímio e do praseodímio, por muito tempo conhecidos com onome de didímio.Não creio que os. químicos temam muito que semelhante des-

ventura aconteça algum dia ao fósforo. E se, supondo o impossí,vel,isso acontecesse, os dois corpos provavelmente não teriam identica-mente a mesma densidadeJ identicamente o mesmo ,calor específicoetc, de modo que, após ter determinado com cuidado a densidade,por ~xemplo} ainda poderemos prever o ponto de fusão.Aliás}pouco importai basta observar que há uma lei, e que essa lei,

verdadeira ou falsa, não se reduz a uma tautologia. 'Dir-se-á que, se não conhecemos na Terra um corpo que não se

funda a 44°; mesmo tendo as outras propriedades do fósforo, nãopodemos saber se não existe outro assim em outros planetas? Semdúvida isso pode ser afIrmado} e se concluiria" então que a lei emquestão, que pode servir de regra de ação para nós, que habitamosa Terra} não tem contudo qualqut:[ valor geral do ponto de vistado conhecimento, e não deve seu interesse senão ao' acaso que noscolocou neste globo. Isso é possível. mas se assim fosse, a lei nãoteria valor} não porque se reduziria a uma eonvenção, mas porqueseria falsa. ~.' __O mesmo ocorre no que diz respeito à queda dos corpos. De nada

me serviria ter dado o nome de queda livre às quedas que se realizamem conformidade com a lei de Galileu} se não soubesse, por outrolado, que, em tais circunstâncias, a queda será provavelmel1telivre, ou

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A CltNCIA ~ ARTifiCIAL! I :S I

mais ou menos livre. Isto, então, é uma lei que pode ser verdadeira oufalsa, mas que não se reduz mais a uma convenção.Suponho que os astrÔnomos acabam de descobrir que os astros

não obedecem exatamente à lei de Newton. Poderão escolher entredua"satitudesj poderão dizer que a gravitação não varia exatamentecom o inverso do quadrado das distâncias} ou então poderão dizerque a gravitação não é a única força que age sobre os astf05. e que aela vem acrescentar-se uma força de natureza diferentetNo segundo C"lSO, será considerada a lei de Newton como a defmi-

ção da gravitação. Esta será a 'atitude nominalista. A escolha entre (l,5

duas atitudes permanece livre, e se faz por considerações de comodi-dade) embora' essas considerações quase sempre sejam tão poderosas,que resta praticamente pouca <:;oisadessa liberdade.Podemos decompor esta proposição (1) "os astros seguem a lei de

Newton" em duas outras: (2) "a gravitação segue a lei de Newton",(3) (a gravitação é a única força que age sobre os.astros". Nesse caso)a proposição (2) não é mais que uma definição e e5capa ao controleda experiência; mas então será sobre a proposição (3) que esse con-trole poderá exercer-se. Isso é realmente necessário. já que a proposi-ção resultante (1) prediz fatos brutos verificáveis.

É,grà.ças a esses artifícios que, por um nominalismo inconsciente,os cientistas elevaram acima das leis o que chamam de principios.Quando uma lei recebeu uma confirmação suficiente da experiência.podemos adotar duas atitudes: ou deixar essa lei em meio à contenda(e nesse caso ela continuará submetida a uma incessante revisão que)sem dúvida alguma, acabará por demonstrar que é apenas'aproxima-tiva), ou então podemos erigi-Ia em principio} adotando convençõestais, que a proposição seja certamente verdadeira. Para isso, procede-mos sempre da mesma maneira. A lei primitiva enunciava uma rela,-ção entre dois fatos brutos A e Bj introduzimos entre esses dois fatosbrutos um 'intermediário abstrato C, mais ou menos acUcio (taÍ co-mo era 110 exemplo precedeIlte a entidade impalpável dagrávitação).Então, temos uma relação entre A e C) que podemos supor rigorosa}e que é o princ!pio; e uma outra. entre C e BJ que permanece uma leipassível de revisão.O principio, doravante cristalizado, por assim dizer) não está mais

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151 o VALOR OBJETIVODA CI£NeIA

submetido ao controle da experiência. Não é verdadeiro ou falso,é cômodo.

Encontraram-se- muitas vezes grandes vantagens em procederdesse modo, mas é claro que, se todas as leis tivessem sido transfor-madas em princípios, nada teria restado da ciência. Toda lei pode sedecompor em um princípio e uma lei, mas desse modo é bem claroque, por mais longe que se leve-essa decomposição, -sempre perma-necerã.o leis.

Portanto, o nominalismo tem limites, e é isso que se poderia ig.norar,. se fossem tomadas ao pé da letra as-asserções do sr. Le Roy.

Um rápido exame das ciências nos fará compreender melhorquais são esses limites. A atitude nominalista só é justificada quandoé cÔmoda; quando é que isso acontece?

A experiência nos revela relações entre os corpos; isso é o fatobruto; essas relações são extremamente complicadas. Ao invés deconsiderar diretamente a relação do corpo A e do corpo B, introdu-zimos entre eles um intermediário que é o espaço, e consideramostrês relações distintas: a do corpo A com a figura A' do espaço, a docorpo B com a figura B' do espaço, a das duas figuras A' e B' entreelas. Por que esse desvio é vantajosol Porque a relação entre A e B eracomplicada, mas diferia pouco da de A' e B', que é simples: de modo-que essa relação complicada pode ser substitulda pela relação sim-"pies entre A' e B', e por duas outras relações que nos revelam que asdiferenças entre A e A', por um lado, e entre B e B', por outro, são

.muito pequenas. Por exemplo, se A e B são dois corpos sólidos na-turais .que se deslocam deformando-se liReiramente. considerare-mos duas figuras invariáveis móveis A' e,B/. As leis dos deslocamen-tos relativos dessas figuras A' e B' serão"muito simples; serão as dageometria. E acrescentaremos em seguida que o corpo A, que di~eresempre muito pouco de A', dilata-se pelo efeito do calor, e se cur-va pelo efeito da elasticidade. Essas dilataÇÕes e essas flexões, jus-tamente porque são m~~o pequenas, serão, para nossa ~e~te, re-lativamente fáceis de estudar. Pode-se imaginar a que complicaçõesde linguagem ter"ia sido preciso resignar-se, se tivéssemos desejadocompreender num mesmo enunciado o deslocamento do sólido, suadilatação e sua flexão?

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A C!~NCrA t ARTlFlelAU ISJ

A relação entre A e B era uma lei bruta. e se decompôs; temosagora duas leis que exprimem as relações de A"e-A', de B e H', e umprincipio que exprime a de A' com D'. n ao conjunto desses princi-pias que chamamos geometria.

Mais duas observações. Temos uma relação entre dois corpos Ae RI que substituímos por uma relação entre duas figuras A' e B'; masessa mesma relação entre as duas mesmas figuras A' e B I poderia domesmo modo ter substituído vantajosamente uma relação entre doisoutros corpos Ali e B", inteiramente diferentes de A e B. E isso demuitas maneiras. Se não tivessem inventado os princípios e a geo-metria, após ter estudado a relação de A e B, seria preciso recomeçarab ovo* o estudo da relação de A" e Bn. ~ por isso que a geometriaé tão preciosa. Uma relação, geométrica pode substituir vantajosa~mente uma relação que, considerada no estado bruto, deveria ser vis-ta como mecânica; pode substituir outra' que deveria ser vista comoóptica etc.

Então não venham dizer: mas isso é a prova de que a geometria éuma ciência experimental; ao separar seus princípios e as leis de ondeestes foram extraídos. separam- artificialmente a própria geometria eas ciências que a originaram. As outras,ciências-têm igualmente prin-cípios, e isso não impede que se deva chamá-las de experimentais.

É preciso reconhecer que teria sido diflcil não fazer essa separaçãoque dizem ser artificial. Conhecemos o papel desempenhado pelacinemática dos corpos sólidos na gênese da geometriaj deveríamosdizer, então) que a geometria é apenas um ramo da cinemática expe-rimental? Mas as leis da propagação retil'ínea'"da luz contribuíramtambém para a formação de seus princípios. Deverá a geometria serconsiderada ao mesmo tempo com' um ramo da cinemática e umramo da óptica? Relembro, além disso, que nosso espaço euclidiano,que é o objeto próprio da geometria, foi escolhido, por razões de co~modidade, entre um certo número de modelos que preexistem emnossa mente, "eque chamamos de grupos.

Se passamos à mecânica) vemos ainda grandes princípios cuja ori-gem é análoga el como"seu «raio de açãd', por assim dizer, é menor,

""Desde o princípio. (N. da T.)

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1$4 O V,\lOR OSjETIVO DA C1t:NCIA

não temos mais motivo para separá-los da Mecanica propriamentedita, considerando essa ciência como dedutiva.Na física, enfim, o papel dos princípios é ainda mais reduzido.

E) de fato, s6 os in~roduzimos quando vemos neles uma vantagem_O~a, s6 são vantajosos justamente porque são pouco numerosos,porque cada um deles substitui mais ou menos um grande númerode leis. Portanto, não temos interesse em multiplicá':'los. Além disso)é necessário chegar a um fim, e para isso é preciso acabar por aban-donar a abstração. para tomar contato com a realidade.Esses são os limites do nominalismo, e são estreitos.Contudo, u :sr.LI:: Roy ins~stiu, e apresentou a questao sob uma

outra forma.Táque o enunciado de nossas leis pode variar com as convenções

que adotamos, e que essas convenções podem modificar até mefimnas relações naturais dessas leis, há no conjunto dessas leis alguma coi-sa que seja independente dessas convenções, e que ,possa) por assimdizer) desempenhar o papel de invariante universal?, Introduziu-se,por exemplo, a ficção de seres que, tendo sido educados num mundodiferente do nosso) teriam sido levados a criar uma geometria nãoeuclidiana. Se esses seres fossem depois bruscamente transportadospara. o nosso mundo, observariam as mesmas leis que nós) mas iriam. enunciá-las de um modo inteiramente diferente. Na verdade, haveria_ainda alguma coisa de co~um entre os dois enunciados) mas é' por-que esses seres ainda não diferem de nós o bastante. Podemos ima-ginar seres ainda mais esttanhos).e a parte comum entre os dois siste.mas de enunciados encolherá cada vez mais. Irá ela encolher assim,tendendo para zero, ou restará um resíduo irredutivel) que seria en-tão o invaI-iantc wllvcr"a! procurado?A questão demanda maior esclarecimento. Deseja-se que essa

parte comum dos enunciados seja exprimível por palavras? É claro,então, que não há palavras comuns a todas a~línguas •.e,não podemoster a pretensão de constru.ir não sei que invariante universal que fossecompreendido ao mesmõ"tempo por nós e pelos geÔmetras fictíciosnão euclidianos dos quais acabo de falarj assim também como nãopodemos construir uma frase que seja compreendida ao mesmotempo pelos alemães que não sabem francês e pelos franceses que

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A CI£NCIA £ ARTIFICIAL! ISS

não sabem alemão. Mas temos regras fixas que nos permitem tradu-zir os enunciados fi-ancesespara o alemão, e in.versamente. b por issoque se fazem gramáticas e dicionários. Há também regras flxas paratraduzir a linguagem euclidiana para a linguagem não euclidiana, ou,se n'ao há, poderiam ser elaboradas.E mesmo que não houvesse intérprete nem dicionário, se os ale~

mães e os franceses, depois de viver durante séculos em mundos se~parados. entrassem de repente em cO,ntato, acham que. não haverianada em comum entre a ciência dos livros alemães e a dos livrosfranceses? Os franceses e os alemães certamente acabariam por ."P. enMtender, assim como os indios da América acabaram por comprcen-der a língua de seus conquistadores, após a chegada dos espanhóis.Porém - dirão - sem dúvida os franceses seriam capazes de com-

preender os alemães, mesmo Sem ter aprendido o alemão, mas é por-que entre os franceses e os alemães permanece algwna coisa de co-mUlTI, já que uns e outros são homens. Conseguiríamos também nosentender com nossos não euclidianos hipotéticos) embora eles nãofossem mais homens) porque conservariam ainda alguma coisa de hu-mano. Mas em todo caso, um mínimo de humanidade é necessário.b possível, ma.••observarei de início que esse pouco de humanida~

de que restaria entre os não euclidianos bastaria não s6 para que sepudesse traduzir um pouco de sua linguagem, mas também para quese pudesse traduzir toda a sua linguagem.Então, aceito que seja necessário um mínimo; suponho que exi.sk

não sei que fluido que penetra entre as moléculas de nossa matériasem ter qualquer ação sobre ela) e sem sofrer qualquer açã'o que delavenha. Suponho que seres sejam sensíveis à influência des.sefluido einsensíveis à da nossa matéria. ~ claro que a ciência dessc's seres di-feriria inteiramente da nossa) e que seria supérfluo procurar um"invariante" comum a essas duas ciências. Ou ainda, se esses seresrejeitassem nossa lógica c não admitissem, por exemplo, o princípiode contradição.Mas creio, realmente. que não há interesse em examinar seme-

lhantes hipóteses.E então, se não levamos tão longe a extravagância, se s6 introdu~

llmos sercs fictícios com sentidos análogos aos nossos e sensíveis às

Page 14: Texto 5- Poincare. o Valor Da Ciencia

15a o VALOR 'OBJETlVO O'A'CI~NCIA

mesmas impressõesl e que, por outro lado, admitem os princípiosde nossa lógica) poderemos concluir então que sua linguagem, pormais diferente que possa ser da nossa) será sempre suscetível de sertraduzida ..Ora, a possibilidade da tradução implica a existência de um inva-

riante. Traduzir é precisamente dcsta"cnresse invariante. Assim, deci-frar um documento criptográfico é procurar.o que) nesse documen-to, permanece invariante'quando se permutam as letras.

É fácil então perceber qual é a natureza desse invariante, e umapalavra nos bastará. As leis invariantes 'são as relações entre os fatosbrutos, enquanto' as relações entre os lefatoscientíficosl>permanecemsempre dependentes de certas -convenções.

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CAPiTULO XI

A ciência e a realidade

5. Contingência e determinismo

Não tenho a intenção de abordar aqui a questão da contingência dasleis da natureza, que evidentemente é insolúvel, e sobre a qual tantacoisa já se escreveu.

Gostaria apenas de observar quantos sentidos diferentes'já foramdados à palavra "contingêncian] e como seria útil ,distingui-los.

Se consideramos uma lei particular qualquer, de antemão po-demos estar certos de que ela só pode ser aproximativa. De fato, édeduzida de verificações experimentais, e essas .verificações ,s6 erame s6-poderiam ser aproximaclas.,Devemos ~empre esperar que medi-das mais precisas nos obriguem a a~rescentar .novos termos a nossasfórmulas; foi o que aconteceu, por exemplo) com a'lei de Mariotte.

Além disso) o enunciado de uma.lei qualquer é forçosamente in-completo. Esse enunciado deveria compreender a enumeração de to~dos os antecedentes em virtude dos quais determinado conseqüentepoderá acontecer. Antes de mais nada) eu deveria "descrever todas ascondições da experiência a,fazer) e então a lei seria enuncjada assim:se todas as condições forem satisfeitasl tal f~nómeno ocorrerá.

Mas s6 estaremos certos de não. ter. esquecido nenhuma dessascondições quando tivermos descrito o estado' do universo ,inteiro noinstante t; todas as partes desse universo podem efetivamente exerceruma influência mais ou menos grande sobre.o fenômeno que deveocorrer no instante t + df.

Ora) é claro que uma tal descrição não poderia encontrar~se noenunciado da lei; além disso, se ela' fosse feita, a lei se tomaria inapli-cável; se exigíssemos ao mesmo tempo tantas condições, haveria bempouca chance de que fossem todas satisfeitas em.algum momento.

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IS8 o VALOR 08JETIVO DA CI~NCIA

Então, como jamais estaremos certos de não ter esquecido algumacondição essencial, não poderemos. dizer que, se tais condições fo-rem satisfeitas, tal fenômeno ocorreráj poderemos dizer apenas que,se tais e tais condições forem satisfeitas, é provável que tal fenômenoocorra de modo aproximado ..

Tomemos a lei da gravitação, que é'a menos imperfeita de todas asleis conhecidas. Ela nos permite prever os movimentos dos planetas.Quando. a utilizo, por exemplo, para calcular a órbita de Saturno, ne-gligencio a ação das estrelas e, agindo assim, estou certo de não meenganar, pois sei que essas estrelas estão distantes demais para quesua ação seja sensível.

Anuncio então, com uma quase-certeza, que as coordenadas deSaturno em tal hora estarão compreendidas entre tais e tais limites.Contudo, essa certeza é absoluta? .

Não poderia existir no Universo alguma massa gigantesca, muitomaior do que a de todos os astros conhecidos, e cuja ação se poderiafazer sentir a grandes distâncias? Essa massa seria animada por umavelocidade colossal e) depois de ter circulado em todos os temposa distâncias tais que .sua influência permanecesse até aqui insensivelpara nós, de repente viria passar perto de nós. Com toda certeza pro-duziria em nosso sistema solar enormes perturbações) que não pode-riamos ter previsto. Tudo o que podemos dizer é que uma tal even-tualidade é inteiramente inverossimil, e então, ao invés de dizer queSaturno estará perto de tal ponto do céu, deveremos limitar-nos ~dizer que Saturno estará provavelmente perto de tal ponto do céu.Embora essa probabilidade seja praticamente equivalente à certeza,não é mais que uma probabilidade.

Por todas essas razões, toda lei particular será sempre apenasaproximada e provável. Os cientistas jamais ignoraram essa verdade;s6 que crêem, com ou sem razão, que toda lei poderá ser substituídapor uma outra, mais aproximada e mais próvlvel, e que essa nova lei,também ela, será apenas pJovis<?ria,mas que o mesmo movimentopoderá continuar indefinidamente, de modo que a ciência, ao pro-gredir, possuirá leis cada vez mais prováveis, e que a aproximaçãoacabará por diferir tão pouco quanto quisermos da,exatidão e a pro-babilidade da certeza.

A CltNCIA E A REALIDADE I S~

Se tivessem razão os cientistas que assim pensam, deveríamos di-zer ainda que as leis da natureza são contingentes, embora cada lei,tomada em particu,lar, possa ser qualificada como contingente?

Ou deveríamo!i exigir, antes de concluir pela contingência dasleis naturais, que. esse progresso tenha um ftm, que o cientista acabeum dia por ser sustado, em sua busca de uma aproximáção cada vezmaior, e que, além de um certo limite, não mais encontre na nature-,zasenão o capricho?

Na concepção que acabo de mencionar (e que chamarei de con-cepção científica), toda lei é apen~s um enunciado imperfeito c pro~vis6rio, mas deve ser substituída um dia por uma outra lei superior,da qual é apenas uma imagem grosseira. Portanto, não resta lugarpara a intervenção de uma vontade livre.

Parece~me que a teoria cinética dos gases vai nos. fornecer umexemplo impressionante.

Sabe-se que) nessa t~oria) explicam-se todas as .propriedades dosgases por uma hipótese simples; supõe-se que todas as moléculas ga-sosas se movem e'm todos os sentidos com grandes velocidades, e queseguem trajet6rias. retilíneas, que sól são perturbadas quando umamolécula passa muito perto das paredes do recipiente) ou de umaoutra molécula. Os efeitos que nossos sentidos rudes nos permitemobservar são os efeitos m~dios,e nessas médias os.grandes desvios secompensam, ou ao menos é muito improvável que não se compen-semi de modo que os fenômeuos observáveis seguem leis simples,tais como a de Mariotte ou de Gay-Lussac. Mas essa compensaçãodos desvios é apenas provável. As moléculas mudam incessantemen-te de lugar, e nesses deslocamentos contínuO!>formam figuras quepassam sucessivamente por todas as combinaç~es possíveis. S6 queessas combinações são muito numerosas; quase todas são conformesà lei de Mariotte, e só algumas se desviam dela. Também estas se rea-lizarão, só que seria preciso esperá-las por muito tempoj se observás-semos um gás por um tempo bastante longo, certamente acabaria-mos por vê-lo desviar-se, durante um tempo muito curto, da lei deMariotte; Quanto tempo seria preciso esperar? Se desejássemos cal-cular o número provável de anos) vedamos que esse número é tãogrande que) para escrever apenas o número de seus algaristnos, seria

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100 O VALOR OBJETIVO DA CI~NCIA

precisÇ>mais uma dezena de algarismos. Pouco importa, basta-nosque ele seja finito.

Não quero discutir aqui o valor dessa teoria. É 'claro que, se aadotarmos, a lei de Mariotte só nos aparecerá como contingente, jáque chegará um dia em que,não será mais verdadeita. E contudo,acham que os partidários da teoria cinética são adversários do deter-minismo? Longe dissoj são os mais intransigentes mecanicistas. Suasmoléculas seguem trajetórias rígidas, das quais só se desviam sob ainfluência de forçRs que variam com a distância,' segundo uma leiperfeitamente determinada. Não resta em seu sistema o menor lu-gar, nem para a liberdade, nem para um fator evolutivo propria-mente dito, nem para o que quer que se possa chamar dI"contingên-cia. Acrescento, para evitar uma confusão, que também aí não háuma evoluçãO da própria lei de Mariotte; ela deixa de ser verdadeira,depois de não sei quantos séculos: mas ao cabo de unta fração desegundo, torna-se de novo verdadeira, e isso por um número incal-culável de séculos.

E já que pronunciei a palavra "evolução", ,desfaçamos mais ummal-entendido. Dizemos com freqüência "Quem sabe se as leis nãoevolllem, e se não descobriremos um dia que, no periodo carbonl-.fero, não eram o que são hoje?". O .que devemos entender com isso?Deduzimos o que cremos saber do estado passado de nosso globo do'seu estado presente. E essa dedução se faz por meio das leis suposta-mente conhecidas. Sertdo a lei uma relação entre o antecedente e O

'conseqüente, permite-nos, com a mesma facilidade, deduzir o conse-qüente, do antec:edente. isto é. prever o futuro, e deduzir o antece-dente do conseqüente, isto é, deduzir o passado do presente. Pelalei de Newton, o astrÔnomo que conhece a situação atual dos astrospode deduzir, a partir desta, sua situação futura, e é o que faz quandoconstrói efemérides; e pode igualmente deduzir, da situação atual,sua situaçãO passada. Os cálculos que assim"Poderá fazer não pode-rão lnformá-lo de que a lf.i de Newton deixará de ser verdadeira nofuturo, já que ess~ lei é precis~ente seu ponto de partida; tambémnão' poderão informá-lo de que ela n,ão era verdadeira no passado.Ainda no que concerne ao futuro, suas efemérides poderão ser umdia verificadas, e nossos descendentes talvez reconheçam que elas

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A CI£NCIA E A REALIDADE I a I

eram falsas. Mas no que concerne ao passado, o passado geológicoque não teve testemunhas, os resultados de seu cálculo, como aquelesde todas as especulações em que procuramos deduzir o passado dopresente, escapam, por sua própria natureza, a todo tipo de controle.De modo que, ~~as leis da natureza não fossem as mesmas na ida-de carbonífera e na época atual, jamais poderfamos sabê-lo, já quesó podemos saber dessa idade aquilo que deduzimos da hipótese dapermanência dessas leis.

Dirão talvez que essa hipótese poderia levar a resultados contradi-tórios, e que seremos obrigados a abandoná-la. Assim, nu ({UI;: l:UU-

cerne à origem da vida, podemos concluir que' sempre houve seresvivos, já que o mundo atual nos mostra sempre a vida brotando davida; e podemos concluir também que nem sempre ~ouve vida, jáque a aplicação das leis atuais da física no estado presente de nossoglobo nos informa que houve um tempo em que esse globo era tãoquente, que a vida nele era impossível. Mas as 'contradições desse ti-po sempre podem ser eliminadas de duas maneiras: podemos suporque as leis atuais da natureza não são exatamente aquelas -que admiti-mos; ou então, supor que as leis da natureza são atualmente aquelasque admitimos, mas que nem sempre foi assim.É claro que as leis atuais'jamais'serão suficientemente bem co-

nhecidas para que não'se possa adotar a primeira,dessas,duas solu-ções, e para que sejamos forçados a concluir pela evolução das leisnaturais.

Por outro lado, suponhamos u~a tal evolução: admitamos, sequiserem, que a humanidade dure o bastante para que essa evoluçãopossa ter testemunhas. O mesmo antecedente produzirá, p'ór exem-plo, conseqüentes diferentes no período carbonífero e no periodoquaternário. Evidentemente, isso quer dizer que os antecedentes sãomais ou menos iguais; se todas as circunstâncias fossem idênticas,o período carbonífero se tornaria indiscerníycl do 'período quater-nário. Evidentemente não é isso que 'se supõe. O'que permanece éque tal antecedente, acompanhado de tal circunstância acessória,produz tal conseqüente; e que o'mesmo antecedente, acompanhadode outra circunstância acessória, produz outro conseqüente. O tem-po não tem influência na questão.

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Page 17: Texto 5- Poincare. o Valor Da Ciencia

,6:z. o VALOR OBJETIVO DA CI~NCIA

A lei, tal como a teria enunciado a ciência mal informada) e quetivesse afirmado que determinado antecedente produz sempre de-terminado conseqüente) sem levar em consideração as circunstân-cias acess6riasj essa lei - digo -, quc era apenas aproximada t: pro-vável~ deve ser substituída por uma outra lei, mais aproximada emais provável, que faz intervirem -essas circunstâncias acessórias.Portanto, recaímos sempre no mesmo processo que analisamos aci-ma, e se a humanidade viesse a descobrir alguma coisa desse tipo,não diria que foram as leis que evoluíram, mas sim as circunstânciasque se modificaram.

Aí estão, portantol muitos ,st:lIliuo.sdiferentes da palavra "contin-gência". O sr. Le Roy conserva todos eles e não os distingue suficien-temente, mas introduz um novo. As leis experimentais são apenasaproximadas, e se algumas nos aparecem como exatas, é porque nósas transformamos artificialmente naquilo que anteriormente chameide princípio. Fizemos essa transformação livremente, e como o ca-pricho que nos levou a fazê-la é algo.de.eminentemente contingente,comunicamos essa contingência à própria lei. :s neste sentido que te-mos o direito de dizer,que o determinismo supõe a,liberdade,já que élivremente que nos tornamos deterministas. Talvez julguem que issosignIfica conceder um papel bem amplo ao nominalismo, c que a in-trodução desse novo sentido da palavra "contingência" não ajudará,muito a resolver todas essa~questões que se apresentam naturalmen-te, e sobre as quais acabamos de dizer algumas palavras.

De modo algum desejo aqui pesquisar os fundamentos do princi-pio de 'indução; sei muitíssimo bem que não o conseguirei; é tão difí-cil justificar esse princípio quanto dispensá-lo. Desejo apenas mos-trar como os cientistas o aplicam e são forlia.uos a aplicá-lo.

Quando o mesmo antecedente se reproduz, o mesmo conseqüen-te também deve reproduzir-sei este é o enunciado corrente. Mas, re-duzido a esses termos, esse princfpio não pt>deria s~rvir para na~a,Para que pudéssemos dizer que o mesmo antecedente se reproduziu,seria preciso que as circunstânCias todas se tivessem reprt?duzido, jáque nenhuma é absolutamente indiferente, e que se tivessem repro-duzido exatamente. E como isso jamais acontecerá, o princípio nãopoderá ter nenhuma aplicação.

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Devemos, portanto, modificar o enunciado e dizer que, se um an~tecedcnte A produziu uma vez um conseqüente B, um antecedenteA' pouco diferente de A-produzirá um conseqüente B' pouco dife-rente de B. Mas como perceberemos que os antecedentes' de A e A'são "pouco diferentes"? Se alguma das circunstâncias pode exprimir-se por um. número, e se esse número tiver) nos dois casos, valoresmuito próximos) o sentido da expre.ssão "pouco diferente" é relati-vamente claro; o princípio significa então que o conseqüente é umafunção contínua do antecedente. E como regra prática, chegamos àconclusão de que temos o direito de interpolar. De f~to. isso é o queos cientistas fazem todos os dias) e sem a interpolação qualquer ciên-cia seria impossível.

Contudo, observemos uma coisa. A lei procurada pode ser repre-sentada por uma ,"urva. A experiência nos revelou certos pontos des-sa curva. Em virtude do principio que acabamos_de enunciar, cremosque esses pontos podem ser ligados por um traço contínuo. Traça-mos esse traço a olho. Novas experiências nos fornecerão novos pon.tos da curva. Se esses pontos estão fora do traço traçado de antemão,teremos que modificar nossa curva) mas não abandonar nosso prin-cípio. Por pontos quaisquer, por mais numerosos que sejam, pode-mos sempre fazer passar wna curva continua ..Sem dúvida, se essacurva é demasiado caprichosa, ficaremos chocados Ceaté suspeitare-mos de erIOSde experiência), mas o princípio não será diretamenteposto em xeque.

Além disso, entre as circunstâncias de um fenômeno, há algu.mas que julgamos poder negligenciar; e consideraremos A e A'como pouco diferentes) se só diferem por. circunstâncias ~c:ess6l"ias.Por exemplo) constatei que o hidrogênio se unia ao oxigênio sob ainfluência da centelha, e estou certo de que ésses dois gases se uni-rão de novo, embora a longitude de Júpiter tenha mudado consi-deravc1mente no intervalo. Admitimos, por exemplo,.quc o estadodos corpos distantes não pode ter influência sensível sobre os fe~nômenos terrestres, e isso, efetivamente) parece impor-se, mas hácasos em que a escolha dessas cirClmstâncias praticamente indife-rentes comporta mais arbitrariedade ou) se quiserem) exige maisperspicácia.

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Page 18: Texto 5- Poincare. o Valor Da Ciencia

1&4 O VALOR OBJETIVO DA CIENCIA A CI~NCIA E A REALIDADE lOS

Chego à questão levantada pelo titulo deste artigo: Qual é o valor .objetivo da ciência? E, ant~s de 'tudo, o que devemo~ entender porobjetividade?O que nos garante a objetividade do mundo no qual vivemos é

que essemundo é comum a nós e a outros seres pensantes. Mediante

Mais uma observação: o principio de indução seria inaplicável senão existisse na natureza uma grande quantidade de corpos seme-lhantes entre si, ou mais ou menos semelhantes, e se não pudéssemosinferir, .por exemplo. de um fragmento de fósforo para outro frag-memo de fósforo.Se refletirmos sobre essas considetáçôes, o próblema do determi-

nismo e da contingência nos aparecerá sob um .novo enfoque.Suponhamos 'que podemos abarcar a série de todos os fenômenos

do universo f'm toda a seqüência dos tempos. Poderíamos consideraro que se poderia chamar de seqüências,: isto é, as relações entre an-tecedente e conseqüente. Não quero falar de relações constantes ouleis, considero separadamente (individualmente, por assim dizer) asdiversas seqüências realizadas.Perceberíamos então que, entre essas seqüências, não há duas que

sejam inteiramente iguais. Mas se o princípio de indução, tal como.acabamos de enunciá-lo, é verdadeiro) haverá algumas que serãomais ou menos iguais, e que 'poderemos classificar lado a lado. Emoutros termos, é possível fazer uma classificação das seqüências ..Afiná! de contas, o determinismo se reduz à possibilidade e à le-

gitimidade de uma tal classificação. Isso é tudo o que a análise pre-cedente deixa subsistir dele. Talvez sob essa forma modesta pareçamenos assustador ao moralista.,Sem dúvida, dirão que isso seria retornar, por um desvio, à con-

clusão do sr. 'te Roy, que anteriormente pareelamos rejeitar: é livre-mente que se é determinista'. ,E, de fato, toda classificn.ç:ãosupõe ainterver:ção ativ~ do classificador. Concordo em que isso possa ser.sustentado, mas me parece qúe esse desvio não terá, sido'inútil e terácontribuído para nos esclarecer um pouco.

6. Ottletlvldade da ciência'-

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as comunicações que estabelecemos com os outros homens, rece-bemos deles raciocínios prontosj sabemos que esses raciocínios nãov~m de nós e, ao mesmo tempo, reconhecemos neles a obra de seresracionais como nós. E como esses raciocínios parecem aplicar-se aomundo de nossas sensações, cremos poder concluir que esses seresracionais viram a mesma coisa que nós; é assim que sabemos que nãoestávamos .sonhando.Esta é, portanto, a primeira condição da objetividade: o que é ob-

jetivo deve ser comum a vários espiritos, e por conseguinte poderser transmitido de um a uutro; e como essa transmiGsfio s6 se.po-de fazer mediante o "discurso", que inspira tanta desconfiança aosr. Le Roy, somos mesmo forçados a concluir: s.em discurso, hão háobjetividade.As sensações de,outremserão para nós um mundo eternamente

fechado. A sensação a que chamo vermelho ,será a mesma 'que a,quelaque meu. vizinho chama de vermelho? Não temos nenhum meio deverificar.Suponhamos que uma cereja e uma papoula produzam em mim a

sensação A) e nele a sensação B, e que, ao contrário, uma folha'pro-duza em mim a sensação B- e nele a sensação A. £ claro que nuncasaberemos nada sobre isso; já que ,eu chamarei de vermelho a sensa-ção A e de verde a sensação B, enquanto ele chamará a primeira deverde e a segunda de vermelho. Em compensação) o .que poderemosconstatar é que),tanto para ele quanto para mim) a cereja:e a papoulaproduzem a mesma sensação, já que. ele .dá o mesmo nome às sen-sações que experimenta, e eu faço o mesmo.Portanto as sensações s:lo intransmissíveis, ou antes, tudo O que

nelas é qualidade pura é intransmissível) e para sempre impenetrável.Mas não ocorre o mesmo com as relações entre essas sensações.A partir desse ponto de vista, tudo o que é objetivo é desprovido

de qualquer qualidade, e é apenas relação pura. É verdade que nãochegarei ao ponto de dizer que a objetividade é apenas quantidadepura (seria particularizar demais a natureza das relações em ques-tão), mas se compreende que alguém (não sei mais quem). tenhasido levado a dizer que o mundo. não é mais que uma equação di-ferencial.

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166 o VALOR OB.JETIVO OA CI~NCIA

Com a devida reserva quanto a essa proposição paradoxal, deve-mos'contudo admitir que tudo o que é objetivo é transmissível, e porconseguinte que só as relações entre as sensações podem.ter um valorobjetiv9.

Dirão, talvez, .que a emoção estética, comum a todos os homens,é a prova de que as qualidades de nossas sensações são também asmesmas para todos os homens e, por conseguinte, objetivas. Mas serefletirmos sobre isso, veremos que a prova não satisfaz plenamente.O que é provado é que essa emoção é provocada tanto em Jean quan-to em Pierre pelas sensações às quais Jean e Pierre dão o mesmo no-me, ou pelas combinacrões correspondentes dcssas scnsações; sejaporque essa emoção, em Jean, é associada à sensação A) que Jean cha-ma de vermelho, enquanto paralelamente, em Pierre, ela é associadaà sensação B, que Pierre chama de vermelho; ou melhor, seja porqueessa emoção é provocada, não pelas próprias qualidades das sensa-ções, mas pela harmoniosa combinação de suas relações, das quaissofremos a impressão inconsciente. .

Uma sensação é bela) não porque possui determinada qualidade,mas porque ocupa. determinado lugar na trama de nossas associaçõesde idéias, de modo que não se pode incitá-la sem pÔr em 'movimentoo "r~ceptor)) que está do outro lado do fio, e que corresponde à emo-ção artística,. Quer nos coloquemos no ponto de vista moral) estético ou cientí-fico, é sempre a mesma coisa. Só é o.bjetivo aquilo que é idêntico paratodos; ora, só podemos falar de uma tal identidade se for possíveluma cqmparação que possa ser traduzida em uma "moeda comum",de modo a ser transmitida de um espírito a outro. Portanto, s6 terá

, i é d "d' "valor objetivo aquilo que for transmlssíve atrav s o lSCurSO, ouseja, inteligível.

Mas esse é apenas um iado da questão, Um conjunto absolu-tamente desordenado não poderia ter való'r objetivo, já que seriaininteligível, mas um conümto bem ordenado também pode não ternenhum valor, se não corresponder a sensações efetivamente experi-mentadas. Parece-me supérfluo relembrar essa condição, e não teriapensado nela.se ultimamente não se tivesse afirmado que a fisica nãoé uma ciência experimental. Embora essa opinião não tenha qualquer

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A CI£NCIA E A REALlDAOE 167

. possibilidade de ser adotada nem pelos flsicos nem pelos filósofos, ébom eslarmos advertidos, a.fim de não escorregarmos no declive quea ela levaria. Temos, pois, duas condições a satisfazer, e se a primeirasepara a realidade* e o sonho) a segunda a distingue do romance.

Então, o que é a ciência? Eu o expliquei no ~ precedente: é, antesde tudo, uma classificação, um modo de aproximar fatos que as apa-rências sep;lravam, embora estivessem ligados pur algum parentesconatural e oculto. A ciência, em outros termos, é um sistêma de rela-ções. Ora, como acabamos de dizer, é apenas nas relações que a obje-tividade deve ser buscada;. seria inútil procurá-la nos seres con~iclf>r;l-dos como isolados uns dos outros.

Dizer que a ciência não pode ter vaiar objetivo porque só nos fazconhecer relações é raciocinar às avessas, já que, precisamente, só asrelações podem ser consideradas como objetivas.

Por exemplo, os objetos exteriores, para os quais foi inventadaa palavra objeto, são justamente objetos, e.não aparências fugidias einapreensiveis, porque não são apenas grupos de sensações, mas,gru ..pos cimentados por um liame con~tante. É esse liame) e só esse liameque neles é o objeto) e esse liame é uma relação.

Portanto, quando nos perguntamos qual é o .valor objetivo daciência, isso não quer dizer "A ciência nos faz conhecer a verdadeiranatureza das coisas?", Quer antes dizer ((Elanos faz conhecer as ver-dadeiras relações entre as coisas?". .À primeira questão ninguém hesitaria em responder que não;

mas ,creio que podemos ir mais longe:.não só a ciência não pode nosfazer conhecer a natureza das coisas, como também nada é capaz denos fazer conhecê-la, e se algum deus a.conhecesse, não poderia en-contrar palavras. para exprimi-la. Não só não podemos adivinhar aresposta, como também, se ela nos fosse, dada, não poder1amos cn~tender nada; pergunto-me até se compreendemos bem a pergunta,

Quando, pois, 1Jmateoria científica pretende nos'ensÍnar o que éo caiar, a eletricidade ou a vida) está condenada de antemão; tudo o

,. Emprego f1qui a pf1lavra "real" corno sinônimo dt: ubjetivo; conformo-me assimao uso comum. Talvez esteja errado: nossos sonhos são reais, mas não são obje~tivos. (N. do A.)

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i68 O VALOR OBJETIVO DA CI£NCIA A CI£NCIA E A REALIDADE I dO

nos .ensinava que a .luz é um movimentoi hoje, a moda privilegia ateona eletromagnétIca, que nos ensina que a luz é uma corrente. Nãoinvestigamos se poderíamos conciliá-las, e dizer que a luz é uma Cor-rente, e que essa corrente é um movimento? Em todo caso, corno éprovável que esse movimento não fosse idêntico àquele que admi-tiam o~ partidários da antiga teoria. poderfamos crer que se justifi-casse dIzer que essa antiga teoria foi destronada.,Contudo ainda restaalguma coisa dela. já que entre as correntes hipotéticas que Maxwelladmite, há as mesmas relações que entre os movimentos hipotéti-cos que Fresllel admitia. Portanto, há alguma coisa que pennanccl::, t:'

essa alguma coisa é o essencial. b isso que explica como vemos osfísicos atuais passarem sem nenhum constrangimento da linguagemde Fresnel à de Maxwell. '

Sem dúvida, muitas aproximações que julgávamos bem estabeleci-das foram abandonadas. mas a maioria subsiste. e parece dever sub-sistir. E quanto a estas, então, qual é a medida de sua objetividade?. Pois be~, é precisamente a mesma que para nossa crença nos.ob-Jetos exterIores. Estes últimos são reais na medida em que as sensa-ções que nos fazem experimentar nos aparecem como ~nidas entre sipor'não sei que cimento indestrutível, e não por 'um. acaso de um dia.Assim também, a ciência nos revela entre os fenômenos outros lia-mes mais tênues, mas não menos sólidos; são fios tão 'delgados, quepermaneceram por muito tempo despercebidos, 'mas assim que osnotamos, não há mais meio de não os ver; portanto, não são menosreais do que aqueles que conferem realidade aos objetos exteriores;pouco importa que sejam mais recentemente conhecidos, já que unsnão devem perecer antes dos outros. ' .

Pode-se dizer, por exemplo, que o éter não tem menos realidadeque um corpo exterior 'qualquer; dizer que esse corpo existe é dizerque há entre a cor desse corpo, Seu'sabor e seu odor um liame fntimo.sólido e persistente; dizer que o éter existe é dizer que há um paren~tesco natural entre todos os fenômenos ópticos, e evidentemente ne-nhuma das duas proposições tem menos valor'que a outra.

E mesmo as sínteses científicas, num certo sentido, têm mais rea-lidade do que as do senso comum, já que abarcam mais termos e ten-dem a absorver nelas as sínteses parciais.

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que. pode nos dar é apenas wna imagem gro'sseira. Portanto, é'pro-vis'ória e caduca.

Sendo a primeira .pergunta fora de propósito, resta a segunua.A 'ciência pode nos fazer conhecer as verdadeiras relações entre ascoisas? O que ela aproxima deveria".~erseparado, e o que separa de-veria ser aprúximadà?

Para compreender o sentido dessa nova pergunta, é preciso re-portar~se ao que dissemos acima sobre as condições da objetividade.E!>.'UIS relações têm um valor objetivo? Isso quer dizer: Essas relaçõessão as mesmas para todos? Serão elas ainda as mesmas para aquelesque virão depois de nós?

Éclaro que não são as mesmas para o cientista e para o ignorante.Mas pouco importa, pois, se o ignorante não as vê imediatamente, ocientista pode chegar a fazer com que ele as veja mediante uma sériede experiências e raciocínios. O essencial é "que há pontos sobre osquais todos aqueles'que estão a par das experiências feitas podem en-trar em acordo. .

A questão é saber se esse acordo' será duráveL e se persistirá entrenossos sucessor~s. Podemos nos perguntar se as associações que aciência de hoje faz serão confirmadas pela ciência d~ ;:..manhã.Pa-ra afirmar que isso ocorrerá, não podemos invocar nenhuma razãoa priorí; mas é uma questão de fato, e a ciência já viveu O bastantepara que, i~tl::rrogando sua história. possamos saber se os edifíciosque ela ergue resistem à prova do tempo, ou se são apenas constru-ções efêmeras.

Ora, o que vemos? A primeira vista, parece-nos que as teorias sóduram um dia, e que se acumulam ruinas sobre rulnas. Um dia nas-cem, no dia seguinte estão na moda, no outro dia se tomam clássicas,no terceiro dia estão obsoletas e no quarto são esquecidas. Mas seprestarmos mais atenção, veremos que o ,\':lt assim sucumbe são asteorias propriamente ditas. aquelas que pretendem nos ensinar o quesão as .coisas. Mas há nelas algQque quase sempre sobtcvive. Se umadelas nos faz conhecer uma relação verdadeira, essa relação é defini-tivamente adquirida, e a encontraremos sob um novo disfarce nasoutras teorias que virão sucessivamente reinar em seu.!ugar.

Tomemos apenas um exemplo: a teoria das ondulações do éter. .}

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/'170 O VALOR, OBJETIVO DA CI~NCIA

Dirão que a ciência não é mais que uma classificação, e que umaclassificação não pode ser verdadeira, mas sim cômoda. Porém é ver-dade que ela é cômoda, é verdade que o é não s6 para mim, mas paratodos os homens; é verdac.le que pemlanecerá cômoda para nossosdescendentes; é verdade, enfim, que isso não pode ser por acaso.Em suma, a única realidade objetiva são as relações entre as.coi-

sas, de onde resulta a harmonia universal. Sem dúvida essas relaçõese essa harmonia não poderiam ser concebidas fora de um espíritoque as concebe ou que as sente. Porém são objetivas porque são, irãotornar-se ou permanecerão comuns a todos os seres pensantes.Isso vai nos permitir retornar à questão da rotaçào da Terra, o que

nos dará ao mesmo tempo a oportunidade de esclarecer o que acaba~mos de dizer com um exemplo.

7. A rotasão da terra

« ••• Portanto", escrevi em A ciência e a hipótese, (la afirmação 'a Terragira' não tem qualquer sentido ... ou melhor, as duas proposições-'a ,Terra gira' e 'é"mais cômodo supor que a Terra gi,ra' - têm umúnico ~mesmo sentido."Essas palavras deram origem às mais estranhas interpretações.

Julgou-se ver nelas a reabilitação do sistema de Ptolomeu, e talvez ajustificativa da condenação. de Galileu.

Contudo; aqueles que leram atentamente o volume inteiro nãopodiam enganar-se. Essa verdade - na Terra 'gira» - estava emigualdade de condições com o postulado de Euclides, por exemplo;isso significaria rejeitá-la? Porém, melhor ainda: na mesma lingua-gem, pode-se dizer muito bem que as duas proposiçüt:s - "u mundoexterior existe"}ou "é mais cômodo supor que ele existe" -têm umúnico e mesmo sentido. Assim, a hipótese da rotação da Terra con-serva~ia o mesmo grau de certeza que a própria existência dos ob-jetos exteriores. ". ,"Mas depois do que acabaz:nos de explicar na quarta parte} pode-

mos ir mais longe. Uma teoria física, como dissemos, é tanto maisverdadeira quanto mais relações verdadeiras evidencia. À luz dessenovo princípio, examinemos a questão que nos ocupa.

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A CI£NCIA E A "REALIDADE In"

Não, não há espaço absoluto; portanto, das duas proposiçõescontraditórias - cca Terra gira" e "a Terra não gira" -, uma não écinematicamente mais verdadeira do que a outra. Afirmar uma ne-gando a outra} no sentido cinemático, seria admitir a exist~ncia do es-paço absoluto.Mas ~ewna nos revela relações verdadeiras que a outra nos dis-

simula, poderemos} contudo, considerá-la como fisicamente maisverdadeira do que a outra, já que tem um conteúdo mais rico. Ora,quanto a isso não cabe nenhuma dúvida.. Consideremos o movimento diurno aparente das estrelas e o mo-

vimento diurno dos outro::! l-Ul}'US l:de::stt::::i t:, pur outro lado, o acha-tamento da Terra, a rotação do pêndulo de Foucault} a giração dosciclones, os ventos alísios, e <? que mais sei eu? Para o adepto, de Pto-lomeu, todos esses fenômenos não têm qualquer ligação entre si; pa-ra o de Copérnico, são engendrados por uma mesma causa. Ao dizerque a Terra gira•.afinno que'todos esses fenômenos têm uma relaçãoíntima, e isso é verdadeiro, e"issopermanec~ verdadeiro, embora nãohaja e não possa haver espaço absoluto.Isto quanto à rotação da Terra em torno de si mesma; o que dizer

de sua revolução em torno do Sol?Aqui ainda, temos três fenômenosque, P<lf::l O adepto de Ptolomeu, são-absolutamente independentes eque, para o de Copémico) são relacionados à mesma Oligem; são osdeslocamentos aparentes dos planetas na esfera celeste} a aberraçãodas estrelas fixas, a paralaxe dessas mesmas estrelas. Será por acasoque todos os planetas admitem uma desigualdade cujo perlodo é deum ano, e que esse período'é precisamente igual ao da ab,euaçâo, eainda precisamente igual ao da paralaxe? Adotar o sistema de Pto-lomeu é rC:3ponder que simj adotar o de Copérnico é resp~l1der quenãoj é afirmar que há uma "ligação entre os t'rês fenômenos} e-issotambém é verdadeiro, embora não haja espaço absoluto.No sistema de Ptolomeu, os movimentos dos corpos celestes não

se podem explicar pela ação-de forças centrais; a mecâiiica celesteé impossível. As ~dações intimas que a"mecânica celeste nos reve-la entre todos os fenômenos celestes são,relações verdadeiras; afir-mar a imobilidade da Terra "serianegar essas relações, portanto seriaenganar-se.

Page 22: Texto 5- Poincare. o Valor Da Ciencia

172 O VALOR OBJETIVO DA CI£NCIA

A verdade, pela qual Galileu sofreu, permanece portanto a ver-dade} embora não tenha exatamente o mesmo sentido que tem parao vulgo, e embora seu verdadeiro ssntido seja bem mais sutil, maisprofundo e mais rico.

8. A ciência pela cIência

NãO é contra o sr. Le Roy que desejo defender a ciência pela ciência;é talvez o que ele condena} mas é o que cultiva} já que ama, e buscaa.verdo.de

1e não poderia viver sem ela, Mas tenho ~lgl1rn(lS r~fl~xõe.c;

a fazer.Não podemos conhecer todos os fatos, e é preciso escolher aque-

les que são dignos de ser conhecidos. A se acreditar em Tolstoi} oscientistas fariam essa escolha ao acaso} ao invés de fazê~lo - o queseria razoável- tendo em vista aplicações práticas. Os cientistas, aocontrário, crêem que certos fatos são mais ,interessantes que outros,porque completam uma harmonia ina,c:abada,ou porqL1efazem pre-ver um grande número de outros fatos. Se estão errados, se essa hie-r~rquia dos fatos'que implicitamente postulam não é mais que umavã ilusão, não poderia haver ciência pela ciência, e pOl conseguintenão poderia haver ciência. Quanto a mim, creio que eles têm razão e,por exemplo, mostrei anteriormente qual é O alto valor dos fatos as-. tron6micos, não porque sejam suscetíveis de aplicações práticas, ma~porque são os mais instrutivos de todos.

S6 pela ciência e pela arte as civilizações têm valor. Alguns espan-taram~se com a fórmula: «-aciência pela ciência"; e contudo ela não émenos surpreendente do que (la vida pela ~da", se ~vid:.tnão P.m::ll!=;que miséria; c até mesmo do "que"a felicidade pela felicidade" I se nãojulgarmos que todos os prazeres são.da mesma qualidade, se não qui-sermos admitir que o objetivo da civilização é o de fe"lOcer álcoolaos que gostam de beber. 1:.:,

Toda ação deve ter ~ objetiv,? Devemos-sofrer, deyemos traba-lhar, devemos pagar noss~ lugaino espetáculo, mas é.para ver; ou aomenos para que ~ dia outros vejaI1L .

Tudo o que não é pensamento é o puro- nada, uma vez que nãopodemos pensar que o pensamento e todas as palavras de que dispo-

A CltNCIA E A REALIDADE 171

mos para falar das coisas s6 podem exprimir pensamentos; dizer quehá outra coisa que não o pensamento, portanto) é uma afirmaçãoque não pode ter sentido.E contudo - estranha contradição para aqueles que crêem no

tempo - a história geológica nos mostra que a vida não é mais queum curto episódio entre duas eternidades de morte e que} nesse pró-prio episódio} o pensamento consciente não durou e não durarámais que um momento. O pensamento' não é mais q4e um clarãoem meio a uma longa noite.Mas esse clarão é tudo.

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