UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
MANUELA CUNHA DE SOUZA
“ENTRE TANTAS MARIAS”: NUANCES DA IDENTIDADE FEMININA
NO ROMANCE A PROSTITUTA, DE HERBERTO SALES
Salvador
2011
MANUELA CUNHA DE SOUZA
“ENTRE TANTAS MARIAS”: NUANCES DA IDENTIDADE FEMININA
NO ROMANCE A PROSTITUTA, DE HERBERTO SALES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de
Linguagens, no âmbito da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades,
do Departamento de Ciências Humanas, campus I, da Universidade do
Estado da Bahia, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de
Mestre em Estudo de Linguagens.
Orientadora: Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro
Salvador
2011
FICHA CATALOGRÁFICA – Sistema de Bibliotecas da UNEB
Souza, Manuela Cunha de
“Entre tantas Marias”: nuances da identidade feminina no romance A prostituta, de
Herberto Sales / Manuela Cunha de Souza. – Salvador, 2011.
114f.
Orientadora: Profª. Drª. Verbena Maria Rocha Cordeiro.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas. Campus I. 2011.
Contém referências, apêndices e anexos.
1. Sales, Herberto. 2. Mulheres na literatura. 3. Romance. I. Cordeiro, Verbena Maria
Rocha. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.
CDD: B869.8
MANUELA CUNHA DE SOUZA
“ENTRE TANTAS MARIAS”: NUANCES DA IDENTIDADE FEMININA
NO ROMANCE A PROSTITUTA, DE HERBERTO SALES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de
Linguagens, no âmbito da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades,
do Departamento de Ciências Humanas, campus I, da Universidade do
Estado da Bahia, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de
Mestre em Estudo de Linguagens.
Dissertação aprovada, com indicação para publicação, em 30 de março de 2011.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro (Orientadora)
Universidade do Estado da Bahia
____________________________________________
Profa. Dra. Edil Silva Costa
Universidade do Estado da Bahia
____________________________________________
Profa. Dra. Jerzuí Mendes Torres Tomaz
Universidade Federal de Alagoas
Dedico este trabalho às “três Marias”, que formam a
minha constelação de Orin, as quais me guiam, com
seus singulares brilhos, na aventura de viver: minha
mãe, Idalamar, minha irmã, Isabel, e minha
orientadora, Verbena.
AGRADECIMENTOS
Uma ideia é como uma semente que só com o apoio da natureza consegue vingar. Hoje, este
trabalho é um fruto da árvore que outrora fora semeada ainda em forma de gérmen. É por isso
que, mesmo não cabendo nesta folha o nome de todos aqueles que no meu caminho estiveram,
agradeço:
A Deus pela dádiva dessa segunda vida que Ele me proporcionou;
À minha mãe, Idalamar Cunha, por ser sempre a minha primeira leitora, confiando em mim
mais do que qualquer pessoa desde meus primeiros passos na vida e nas Letras. Sendo assim,
só poderia ser essa mulher a minha maior inspiração;
À minha irmã, Isabel, pela confiança, contagiante alegria, amor incondicional e,
especialmente, por ter encontrado comigo a semente deste fruto em nossas longas conversas;
À meu pai, Expedito Souza, pelo incentivo de sempre e por ter me transmitido o legado de ser
uma devoradora de livros;
À meu irmão, Lucas, pelo carinho e suporte nos momentos mais decisivos;
À Ígor Peixinho, pelos ouvidos nas minhas horas de angústia, pelo olhar compreensivo
quando não pude estar presente, pela palavra sempre incentivadora e, acima de tudo, por ser
meu porto seguro;
À minha eterna orientadora, Verbena Rocha, exemplo de paciência, humildade e sabedoria.
Durante nossa trajetória, sempre me orientou para a academia e para o mundo, pois foi com
ela que aprendi que não basta estudar, é preciso amar;
À Profa. Dra. Edil Costa e à Profa. Dra. Jerzuí Tomaz pelas valiosas contribuições durante e
depois da qualificação;
À Profa. Dra. Nancy Vieira pela leitura atenciosa e colaborativa de meu texto;
Aos professores do mestrado da UNEB, que fizeram parte desta etapa de minha trajetória,
aguçando a minha inquietude de conhecer;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Ensino Superior – CAPES – por ter me
proporcionado as condições para realizar este trabalho;
Ao Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – PROCAD-PUCRS-UNEB – pela
experiência proporcionada durante o mestrado-sanduíche na Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul – PUCRS;
Aos docentes da PUCRS, em especial, a coordenadora do Programa de Pós-graduação em
Letras Profa. Dra. Ana Mello, Prof. Dr. Ricardo Barberena e Profa. Dra. Noelci Rocha, além
das colegas Anna, Joseane e Paloma, pelo acolhimento durante o mestrado-sanduíche e,
principalmente, por ampliar meu olhar sobre a literatura;
Aos outros familiares, amigos e colegas que compreenderam minha ausência. Uns souberam
transformá-la em mais amizade, como Tayse e o eterno G5 (Edna, Francis, Ionara e Maria
Eugênia); outros ajudaram a suavizar minhas inquietações e anseios, como Anaxssuel, Liz,
Cristian e Quezia. Não poderia esquecer-me do apoio providencial das mes amies Margarete
Santos e Geisa Freitas.
Laudas e laudas não seriam capazes de expressar minha gratidão e a satisfação de ver nas
próximas páginas o fruto tão esperado já amadurecido...
“Mulher é desdobrável. Eu sou”.
Com Licença Poética – Adélia Prado
RESUMO
Este estudo traz uma discussão sobre as nuances da identidade feminina a partir da análise da
trajetória de Maria, protagonista do romance A prostituta do baiano Herberto Sales. Tomando
como ponto de partida a concepção de identidade fragmentada, proposta pelos Estudos
Culturais, destacam-se os múltiplos lugares sociais ocupados por essa personagem,
focalizando como se dá o agenciamento de suas variadas facetas. Para tanto, são necessárias
reflexões acerca da condição da meretriz dentro e fora de seu espaço de trabalho, além disso,
é importante destacar que as representações atribuídas às prostitutas é uma construção social e
que sua figura nem sempre foi depreciada. A família, o emprego e a Igreja são algumas das
instâncias sociais que possuem um importante papel (trans)formador de identidades, seja ao
ditar as suas regras, as quais devem ser seguidas, seja ao permitir o intercâmbio cultural entre
seus membros. Com Maria não seria diferente. A cada descaminho atravessado pela
protagonista, seus valores são reavaliados e negociados com o novo contexto que se irrompe,
demarcando o quão fluidas são as relações humanas. Sendo assim, ao longo deste trabalho,
observa-se que não cabe mais a dicotomização feminina – ou a santa ou a puta – ideia muito
comum ao olhar categorizante da sociedade, especialmente até meados do século passado.
Palavras-chave: Identidade. Mulher. Prostituta. Herberto Sales.
RÉSUMÉ
Cette étude fournit une discussion sur les nuances de l'identité féminine depuis l'analyse de la
trajectoire de Maria, la protagoniste du roman A prostituta de Herberto Sales. En prenant
comme point de départ la notion d'identité fragmentée, proposé par les Études Culturelles, on
met en évidence les multiples positions sociaux occupés par ce personnage, en mettant
l'accent sur la façon dont elle est agencée dans ses différentes facettes. À cette fin, des
discussions sur l'état de la prostituée dedans et dehors de son espace de travail sont
nécessaires, en plus, il est important de noter que les représentations attribués aux prostituées
est une construction sociale et que sa figure n'a pas toujours été déprecié. La famille, l'emploi
et l'église sont quelques-unes des institutions sociales qui ont un rôle important (trans)
formateur d‟identités, soit en dictant ses règles, qui doivent être respectées, soit en permettant
des échanges culturels entre ses membres. Avec Maria ne serait pas différente. À chaque
détournement traversé par la protagoniste, ses valeurs sont réévaluée et négociée avec le
nouveau contexte qui éclate, en précisant à quel point sont fluides les relations humaines.
Ainsi, tout au long de ce travail, on observe qu'il n‟est plus possible la dichotomie des femmes
- soit la sainte soit la pute – une idée très courante au regard catégoriel de la société, en
particulier jusqu‟au milieu du siècle dernier.
Mots-clés: Identité. Femme. Prostituée. Herberto Sales.
SUMÁRIO
1 PRIMEIRAS LINHAS .......................................................................................................10
2 DA FÁBRICA AO BORDEL: UMA MULHER, VÁRIAS MARIAS...........................18
2.1 MARIA, O ROMANCE E O AUTOR: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES.......................18
2.2 MARIA SOB A MIRA DO MASCULINO .......................................................................32
2.3 MARIA E OS CORUMBAS: (DES)CONSTRUINDO IDENTIDADES ........................41
3 ENTRE AS CARTAS E O VESTIDO DE SOIRÉE VERMELHO: IDENTIDADES
FLUTUANTES DA PROSTITUTA .....................................................................................51
3.1 PRIMEIROS PASSOS DE UMA “NOVA” VIDA............................................................51
3.2 ENTRADA E ASCENSÃO NO MUNDO DO PRAZER: NAS TRILHAS DA
PROSTITUIÇÃO................................................................................................................. .....56
3.3 ENTRE VÍTIMA E ALGOZ: CAMINHOS IMBRICADOS.............................................68
4 REDES DE SOCIABILIDADES NO JOGO DO PRAZER ...........................................77
4.1 “ALEGRES CASAS TRISTES” E SUAS MORADORAS...............................................77
4.2 A TRÍADE: CLIENTES, PERFORMANCE E PAGAMENTO................................... .....81
4.3 DO MERETRÍCIO AO MATRIMÔNIO: HAPPY END OU REDENÇÃO?...................86
5 ENTRE TANTAS LEITURAS, UM DESFECHO............................................................90
REFERÊNCIAS......................................................................................................................94
APÊNDICES............................................................................................. .............................102
ANEXOS................................................................................................................................107
10
1 PRIMEIRAS LINHAS
“Heroína” para seu autor, “fornicadora instintiva” para o sargento Marinho, “cadela”
para seu pai Izidro, esta, e outras tantas, é Maria – protagonista de A prostituta1 do escritor
baiano Herberto Sales2. Um mosaico de papéis esculpe a identidade dessa personagem e, no
seu percurso, ela se constrói e se reconstrói mulher para além de representações dicotômicas.
Sujeito fragmentado, móvel, que vive em constante agenciamento de suas identidades e se
(trans)forma a partir dos caminhos e descaminhos pelos quais atravessa, essa é a mulher que
abordo neste estudo, similar a outras tantas Marias3 que vivem para além romance.
É nessa perspectiva que analiso, tomando a trajetória dessa personagem, os lugares
identitários, sociais e simbólicos que ela ocupa. Surge, então, a questão: quais as nuances da
identidade feminina negociadas na trajetória da protagonista? A partir desse questionamento,
discuto sobre o “entre-lugar”, que Maria transita, aqui tomado na perspectiva de Homi
Bhabha (1998), enquanto espaço de intercâmbio de culturas, desfazendo-se de
homogeneizações (identidades fixas) e (pre)conceito. Dessa forma, instaura-se um diálogo,
por vezes uma tensão, entre os lugares sociais ocupados por cada indivíduo.
Abordo, então, em A prostituta, como Maria se revela enquanto mulher, para além de
uma dicotomia entre a mulher pura, “de família”, e a prostituta. Discuto ainda como ela se
relaciona com clientes de diversos tipos (diferentes sujeitos), negociando o seu “valor” e o
que irá incluir na “performance” no programa. Dessa forma, este trabalho configura-se como
um espaço para analisar como se constrói a identidade da protagonista considerando as
representações de seus clientes, seus familiares, sua cafetina, bem como de outras pessoas que
participam do seu círculo social, como os outros clientes do bordel e os amigos que encontra
fora do ambiente de meretrício. Além disso, trago as imagens que a própria Maria tem de si,
afinal, a identidade se constitui, segundo Cecil Zinani (2006, p. 51), a partir das práticas
sociais, enquanto um sistema de representações simbólicas. Sendo assim, tanto a cultura
1 Doravante, ao referir-me sobre a obra A prostituta, edição de 1996, da Civilização Brasileira (Cf. referência
completa ao final do trabalho), designarei o nome da obra, não do autor, a fim de demarcar as citações do
romance. Cf. anexo A – Capa de A prostituta. 2 Peço licença ao leitor em chamar, por vezes, o autor estudado pelo seu primeiro nome, Herberto. Afinal, muitos
são os autores conhecidos pelo homônimo de seu último nome, Sales. Por outro lado, que atenda ao nome de Herberto só me vem à cabeça o autor que aqui trabalho. 3 O uso da expressão “Entre tantas Marias”, que dá título a este estudo, é retirado da crônica homônima, de
autoria de Verbena Maria Rocha Cordeiro, publicada no jornal A Tarde, Caderno 2, em 1985. Devido a busca
nos arquivos do referido periódico tanto no Instituto Histórico da Bahia, quanto na Biblioteca Pública do Estado
da Bahia, não haver localizado a fonte, recorri ao original concedido pela autora. O referido texto aborda as
tensões geradas pelos múltiplos papéis assumidos pela mulher.
11
dominante como a dominada sofrem influência da comunidade de contato, porquanto todos os
espaços individuais e coletivos frequentados por cada indivíduo (trans)formam sua identidade.
Parece apropriado definir este estudo como uma leitura possível da obra de Herberto
Sales, já que não definitiva, afinal, como afirma Júlio Pinto (2004, p. 54), “o leitor „reescreve‟
o texto lido, atualizando-o cronologicamente e associa-o a um novo contexto”. Além disso, o
leitor decodifica o texto e o reconstrói a partir de seus conhecimentos de mundo, horizonte de
expectativa e lugar social; ele compreende a obra na interação das representações de
elementos simbólicos dos textos com a sua realidade. Considero, portanto, que não há um
caráter “autocêntrico” da obra, como se ela contivesse uma mensagem pronta, fechada,
definida.
Como já diria Umberto Eco (2009, p. 9): “todo texto é uma máquina preguiçosa
pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho”. A leitura de A prostituta, neste estudo,
marca, de certa forma, meu lugar de mulher e de pesquisadora. Quantas vezes senti vontade
de adentrar na obra em solidariedade a Maria em seus delírios ingênuos de amor no início da
obra? Quantas vezes premeditei o futuro incerto da protagonista, torcendo para que ela
conseguisse o melhor para si?
Segundo Gaston Bachelard (1996, p. 64), “os símbolos da experiência objetiva se
traduzem imediatamente em símbolos da cultura subjetiva”, logo, apesar de me debruçar
sobre a referida obra em uma perspectiva científica, não posso desconsiderar que na minha
leitura estarão imbricadas minhas concepções de mundo e de vida. Sendo assim, para análise
da identidade feminina na protagonista, desfiz-me o quanto pude de preconceitos e parti para
uma leitura com um olhar mais focado nas complexas relações que recobrem o tema deste
estudo. Nesse sentido, mantenho o pensamento em alerta e não me contento com a “certeza”
de conhecimentos prévios, pois, ainda que sejam importantes, outras possibilidades de
sentidos podem ainda me surpreender e me interrogar. Já diria Pedro Demo (2006, p. 13):
“quem não sabe pensar, acredita no que pensa. Mas, quem sabe pensar, questiona o que
pensa”. E é a partir do signo do questionamento que busco analisar, nas próximas páginas, a
composição da identidade feminina da protagonista a partir das imagens criadas pelo outro e
por ela mesma.
Mulher da vida, garota de programa, meretriz, mulher-pública, puta, profissional do
sexo, rapariga, cocote são apenas alguns nomes que designam essas mulheres, e cada
expressão traz consigo uma carga imagética, portanto sociocultural, de sua figura. Quando
falo em “profissional do sexo”, por exemplo, diminuo a carga depreciativa que, por outro
lado, “mulher de vida fácil” traz. Na primeira, há um foco em sua atividade como uma
12
profissão, um trabalho, enquanto a segunda expressão, paradoxalmente, carrega a ideia de que
essas mulheres têm (ou no mínimo querem) “vida fácil”. Entretanto, é importante ressaltar
que utilizo neste estudo esses vários termos designando indistintamente a prostituta, apenas
para não haver excesso de repetição de palavras.
A identidade, na perspectiva de Stuart Hall (2009, p. 104), “[...] é um desses conceitos
que operam „sob rasura‟”. Sendo assim, para verificar as nuances identitárias na protagonista
de A prostituta, considero, como afirma Zygmunt Bauman (2005), que a identidade é uma
categoria socialmente necessária e é constituída pelo reconhecimento, referindo-se aos grupos
de segmentos diversos, como raça, etnia, gênero e religião, que se unem. Identidade, segundo
o dicionário Aurélio, é “os caracteres próprios e exclusivos duma pessoa: nome, idade, estado,
profissão, sexo etc” (FERREIRA, 1993, p. 291). Essa definição enrijece o conceito, como se
alguém pudesse ter características próprias, como se estas fossem inatas e imutáveis, o que
resgata crenças antigas de que as características de cada sujeito eram definidas divinamente e
que nada poderia alterá-las.
Muitas foram as ideias relacionadas a essa temática. Hall (2009) resume o percurso
diverso deste conceito pontuando três tipos de sujeitos relacionados à questão da identidade: o
sujeito iluminista, criado no fim do século XVIII, que é o indivíduo que tem autenticidade,
uma identidade individualizada, pessoal; o sujeito sociológico, que concebe sua identidade a
partir do dialogismo entre culturas e povos, buscando se reconhecer neles – nesse ponto,
destaco que essa relação se estabelece na interação, dessa forma, o sujeito seria influenciado e
influenciador das culturas de contato; e o sujeito pós-moderno que é fragmentado, assumindo
diversas identidades a depender do momento. Assim, tomo, neste trabalho, por identidade a
perspectiva dos estudos culturais, em que se critica a ideia de unidade identitária e se ratifica
que a identidade é construída a partir da diferença.
A relação entre identidade e diferença é de suma importância para a discussão sobre o
conceito da primeira. Para Tomaz Silva (2009, p. 74), a “identidade é simplesmente aquilo
que se é”, logo, se há algo para ser, consequentemente há algo que não se é, senão tudo seria a
mesma coisa. Assim, a identidade só existe por haver o diferente, algo para se contrapor, ou
simplesmente não ser igual. O diferente, entretanto, não é visto, na maioria das vezes, como
algo simplesmente diverso. Há uma cadeia hierárquica que rege o social e o cultural.
Nesse sentido, Kathryn Woodward (2009, p. 50) considera que a “diferença pode ser
construída negativamente – por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que
são definidas como „outros‟ ou forasteiros”. A depreciação do diferente é uma maneira de
afirmar-se como superior. Considerar que a identidade demarca fronteiras significa fazer
13
distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade, então, está ligada a uma
forte separação ente “nós” e “eles”. Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção,
supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder (SILVA, 2009, p. 82).
Essa relação é visível na dicotomia4 entre a mulher “santa”, pura, a mãe de família e
as profissionais do sexo. A depreciação das meretrizes serve de contenção à liberdade sexual
feminina, pois, subjugá-la é uma forma de reprimi-la e segregá-la. O processo de associação
da prostituição ao submundo pode ser traçado pela História. Nancy Qualls-Cobertt (2005)
descreve que, durante a Grécia Antiga, por exemplo, as prostitutas eram as únicas mulheres
que podiam participar das rodas literárias, elas eram consideradas divindade, sendo
valorizadas enquanto intelectual e mulher. No entanto, com a moral cristã da Idade Média, as
meretrizes foram representadas pela escória, relacionadas quase sempre às doenças. Foi
preciso a criação de leis para regularem e reprimirem as prostitutas, separando-as das moças
“direitas”. Assim, ratifico que o diferente não é tido apenas como distinto, ele é também
depreciado.
Ainda sobre a polarização feminina, lembro de duas figuras mitológicas, Lilith e Eva,
presentes na cultura ocidental desde seus primórdios. A primeira, criada por Deus, nasceu do
mesmo barro de Adão. A despeito dessa origem visceral, eles se desentendiam tanto, a ponto
dela criar asas e fugir do Éden. Recuperada, mais tarde, por três anjos, Deus a expulsa
definitivamente do paraíso e, em seu lugar, cria Eva não mais do mesmo pó que concebeu o
homem, mas de sua costela. Recorro, neste estudo, a essas duas figuras, originalmente
diferentes, por se constituírem expressão da dicotomia feminina: a “sagrada” e a profana.
A primeira mulher, Lilith, originada na velha Babilônia, aspirava igualdade em relação
ao homem, embora, seu destino, fora do jardim celestial, fosse marcado pela prostituição e
pela morte. Segundo o mito, ela alia-se à Grande Deusa Mãe, tendo como função conquistar
os homens nas ruas, prostituindo-se, e levá-los ao encontro de sua superiora a fim de
realizarem o ritual sagrado da fecundidade. Se, para a mulher, a maternidade é parte de sua
essência, Lilith é retratada como o seu oposto: a “devoradora de filhos”5. Na perspectiva de
Pierre Brunel (2005g, p. 584-5), esse mito tem por função:
4 Essa dicotomia da mulher “anjo” e da mulher “demônio” é frequentemente utilizada, em especial, nos textos
literários e letras do cancioneiro popular. Suas marcas são postas como binárias: enquanto a mãe, símbolo da
sacralização feminina, é “a companheira ideal, comparada à virgem Maria”, segundo Pierre Brunel (2005c, p. 147); a “Outra” vive para si e não para outrem, comumente associada à tentação e ao pecado. 5 Segundo Roque Laraia (1997), Lilith tinha o poder de seduzir também as crianças objetivando matá-las, assim,
seu mito justificava as mortes prematuras e até mesmo o riso involuntário de um recém-nascido. Para proteger os
bebês de sua presença, a crença afirmava ser preciso escrever o nome dos três anjos, Sanvi, Sansanvi e
Samangelaf, que a buscaram quando fugira do Paraíso. Diferentemente da tão feminina maternidade, a primeira
mulher matava crianças; longe da submissão aos homens, ela os dominava – sem contato emotivo, suas relações
14
[...] afastar dela os homens, alertando-os do perigo que representa para eles. Sua
função principal, contudo, é alertar as mulheres: aquela que não segue a lei de Adão
será rejeitada, eternamente insatisfeita e fonte de infelicidade.
Assim, Lilith representa a mulher fatal, contraponto de Eva, mulher idealizada,
submissa, criada da costela do homem, com a finalidade de complementá-lo. Essa polarização
ainda é muito comum nas reflexões acerca das mulheres, o que desconsidera que uma mesma
pessoa pode adquirir marcas de ambas e suas nuances, a depender da circunstância. Tanto no
mito, quanto na História humana, homens e mulheres foram criados de formas distintas, em
consonância com o que a sociedade considerava como traços femininos e masculinos,
segundo Maria Lúcia Rocha-Coutinho (1994, p. 58). Nesse sentido, desconsidera-se que o
homem pode possuir determinadas marcas ditas femininas e vice-versa. Além disso, ao
categorizar as características por sexo, obscurece-se os outros lugares sociais assumidos pelo
indivíduo que, por sua vez, moldam-se e dialogam com as outras identidades, criando, então,
uma espécie de negociação identitária.
Eurídice Figueiredo e Jovita Noronha (2005, p. 202) concluem que as “identidades,
complexas e múltiplas, nascem de oposições a outras identidades”, havendo um “intercâmbio
permanente” entre as culturas. Assim, de um lado, as mulheres assemelham-se por serem do
mesmo sexo – biologicamente – contudo, distanciam-se nos valores socioculturais. A
identidade humana se define a partir do lugar social que o indivíduo ocupa em determinado
momento histórico, logo, não há uma única identidade, e sim, várias. Em outras palavras, os
indivíduos de um grupo, mesmo se aproximando pelas afinidades de sua “confraria”, são
heterogêneos, já que o sujeito é constituído de múltiplas identidades. Fausto Colombo (1991,
p. 118, grifo do autor) afirma, então, que a “identidade transforma-se em mera etiqueta
externa para o reconhecimento de um grupo, que se define com base nas relações com o
mundo exterior e por conseguinte com base na própria diferença”.
Assim, considero que a categoria gênero é questionável. Para Simone de Beauvoir
(2009, p. 14, grifo da autora):
[...] as ciências biológicas e sociais não acreditam mais na existência de entidades
imutáveis, fixadas, que definiram determinadas características como as da mulher,
do judeu, do negro; consideram o comportamento como uma reação secundária a
uma situação.
O gênero é, portanto, uma construção, não apenas biológica, mas envolve todo um
contexto social e cultural. Além disso, não posso generalizar todos os indivíduos de um
baseavam-se no prazer carnal. É notório, então, que a construção da figura mitológica de Lilith seja sustentada
em oposição ao comportamento esperado para as mulheres, assim a primeira seria o exemplo do que deveria ser
evitado.
15
grupo, como se eles se portassem igualmente. Ser mulher não é assumir um único papel, mas
ser protagonista de uma grande peça, em que cada uma deve transvestir-se com diferentes
roupagens. E essa pluralidade é silenciada, muitas vezes, nos entraves da moralidade e da
generalização dos traços femininos.
Recorrendo à dicotomia entre a Amélia, que dá nome à música6 de Ataulfo Alves e
Mário Lago (1941) e a Outra de Sandra Azerêdo (2007), trago algumas reflexões sobre a
dupla representação da mulher na sociedade. Para abordar a imagem das profissionais do
sexo, é importante lembrar o óbvio: antes de qualquer lugar social que elas ocupem, são
mulheres. Todavia, não há uma categoria mulher, a heterogeneidade é sua característica.
Destaco que há, durante toda a História, a necessidade de conceituar o “ser mulher” –
qual seu papel e como deveria se comportar. Mesmo hoje, tempo em que muitas mulheres
disputam com os homens no mercado de trabalho e buscam realização pessoal, social e
sexual, percebo que, por mais que elas tentem e lutem, a estrutura social (e/ou talvez até algo
nelas) não permite que sejam tratadas iguais e tenham anseios parecidos com os dos homens.
Cabe agora à mulher não apenas assumir o novo papel de trabalhadora, mas também continuar
desempenhando o ofício de mãe zelosa, dona de casa, por vezes, servil, contribuindo com a
renda da família, mas ainda sendo a “rainha do lar”. Beauvoir (2009) afirma que a mulher, a
partir do século XX, por um lado, liberta-se economicamente da figura masculina, contudo,
nem por isso, alcança uma situação moral, social e psicológica igual ao homem.
Se há uma grande diferença existente entre os sexos, maior ainda é a segregação que
existe dentro da categoria mulher. Mesmo com as mudanças sociais, em especial as ocorridas
em meados do século XX, com queima de sutiãs, direito ao voto e todas as conquistas que as
mulheres galgaram, elas se hierarquizam, seja por classe social, seja pela moral, em especial a
sexual. Margareth Rago (2008, p. 19) conclui que “a preocupação com o sexo está no
universo cultural e moral de muitos, senão de todos. É uma moral imperativa [...] por
problematizar a sexualidade feminina, como sexualidade dominada” que deve seguir aos
preceitos difundidos pela sociedade patriarcal7.
6 Ai que saudades da Amélia (1942) de autoria de Ataulfo Alves e Mário Lago. Essa canção fez tanto sucesso
que até hoje, em pleno século XXI, o termo “Amélia” é sinônimo de mulher submissa. Vários artistas
regravaram este samba: Carolina Cardoso de Menezes (1954) tocou ao piano; Roberto Carlos, em Sanremo
(1968); Zeca Pagodinho, em Casa de samba (vol. 2) (1997); Simone, em Simone Brasil – O show (1997); Grupo Fundo de quintal e Gabriel O Pensador no álbum Samba de todos os tempos (2010), dentre muitos outros
cantores. 7 Quando falo em sociedade patriarcal e androcêntrica, refiro-me a uma grande comunidade que segue regras
pré-estabelecidas a partir da divisão sexista do comportamento humano. Nessa visão, cabe ao homem ser o
mantenedor da família e protegê-la; e cabe à mulher ser a mãe zelosa (boa cozinheira, arrumadeira, cuidar da
educação dos filhos) e esposa servil (deve obedecer ao seu cônjuge sem questionamentos). Apesar da sociedade
16
Por vezes, parece que esses (pre)conceitos desconsideram que as meretrizes também
possuem “atributos das mulheres de família”, bem como, essas podem ter alguma
característica do estereótipo da meretriz. Exemplo claro é Maria – protagonista do romance A
prostituta de Herberto de Sales, objeto deste estudo. A tentativa de categorizar as mulheres de
família como se elas fossem homogêneas em um polo e as prostitutas como seu oposto, a
partir de valores morais, é uma forma de criar preconceitos, obscurecer a pluralidade
silenciada nas categorizações e a singularidade de cada indivíduo.
E é com base nessas discussões de identidade e gênero que sustento a leitura deste
estudo. Para efeito de sua organização, optei por dividi-lo em três partes. Na primeira,
intitulada Da fábrica ao bordel: uma mulher, várias Marias, discuto sobre as múltiplas
imagens do mundo e de si da protagonista antes de ingressar no território da prostituição. Para
tanto, este capítulo de desdobra em Maria, o romance e o autor: algumas considerações, em
que destaco aspectos relativos à ficção estudada, dados sobre o autor, a obra e os personagens;
Maria sob a mira do masculino, em que abordo como os lugares identitários da protagonista
eram negociados no seu relacionamento com o universo masculino; e Maria e os Corumbas:
(des)construindo identidades, em que discuto o papel da família na construção da sua
identidade.
Em Entre as cartas e o vestido de soirée vermelho: identidades flutuantes da
prostituta, tracejo e analiso o percurso que a protagonista do romance atravessou durante o
seu ingresso no mundo da prostituição. Este capítulo é subdividido em: Primeiros passos para
uma “nova” vida, em que aponto a mudança de comportamento de Maria ao morar com a
madrinha; Entrada e ascensão no mundo do prazer: nas trilhas da prostituição, em que
discorro sobre a transição do ofício de costureira à cortesã; e Entre vítima e algoz: caminhos
imbricados, em que discuto como ela se representa (vítima e/ou algoz de sua situação, ou
nuance entre eles), analisando o entre-lugar, enquanto espaço possível de se reinscrever e
reescrever enquanto indivíduo, para além de estereótipos, a partir dos movimentos de
fronteiras em que a meretriz transita.
Por fim, no último capítulo, intitulado Redes de sociabilidades no jogo do prazer,
analiso a relação de Maria com outras personagens que circulam no mundo da prostituição.
Destaco a tênue fronteira entre o bordel e a “sociedade”, percebendo como essas novas
relações sociais modificaram seu comportamento, sua visão de si e do mundo. Para tanto, este
capítulo se desdobra em “Alegres casas tristes” e suas moradoras, em que abordo o bordel
atual está reavaliando e alterando gradativamente sua concepção dos papéis de cada sexo, ainda há a herança de
anos de dominação masculina.
17
enquanto espaço simbólico e a relação da protagonista com sua cafetina e companheiras de
meretrício; A tríade: clientes, performance e pagamento, em que discuto sobre o
agenciamento das identidades da meretriz durante os programas; e, por fim, em Do meretrício
ao matrimônio: happy end ou redenção?, analiso o final da obra de Herberto, em que se dá a
saída de Maria da prostituição.
Esclareço que, ao longo desses dois anos de estudo, foram levantados vários
documentos em periódicos, parcialmente inseridos nessa dissertação. Considerando que esse
material é uma importante fonte de pesquisa, optei por publicá-los como anexos e apêndices
para que eventualmente possam ser consultados por outros pesquisadores. Trata-se dos anexos
C, D, E, F e dos apêndices B, C, e D. Quanto aos demais anexos A, B e G e o apêndice A,
relacionam-se mais diretamente a Herberto Sales e a temática em estudo.
As nuances do feminino, portanto, são silenciadas em categorizações e dicotomias,
logo, trazer à tona este tipo de trabalho com sujeitos desprestigiados socialmente, faz emergir
suas histórias e representações. Ampliar o olhar para além dos objetos “prestigiados” é buscar
diminuir essa diferença, é não admitir uma razão indolente – sem questionamentos – aos
sujeitos não visibilizados (ou ofuscados) por estereótipos. Por fim, destaco que a pluralidade
identitária é uma condição da natureza humana, ainda que, por questões de delimitação e
aprofundamento do tema, focalizo, neste estudo, a identidade feminina na figura da prostituta.
18
2 DA FÁBRICA AO BORDEL: UMA MULHER, VÁRIAS MARIAS
2.1 MARIA, O ROMANCE E O AUTOR: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Mesmo este não sendo um trabalho biográfico sobre o autor de A prostituta, considero
interessante tecer algumas reflexões sobre quem escreveu a obra em estudo, afinal, para a
significação de um texto, deve haver um diálogo entre:
Autor, texto, leitor. O pensamento mais difundido atualmente é que nenhuma dessas
três esferas é autônoma. [...] Todo o texto pressupõe o gesto de escrita e o de leitura.
O sentido não está em um único lugar – não está na intenção autoral, nos dados imanentes da linguagem, nem no olhar puramente subjetivo do leitor. Os sentidos
estão sempre em circulação, em trânsito nos três espaços (SANTOS & OLIVEIRA,
2001, p. 17).
Herberto de Azevedo Sales, baiano de Andaraí, região da Chapada Diamantina, nasceu
em 21 de setembro de 1917. Estudou o ginásio (atual ensino fundamental II) em Salvador até
abandonar o 5º ano e voltou à cidade natal onde morou até 1948. Nesse período, foi
funcionário de cartório e comerciante de madeira, aparentemente longe do mundo da
literatura. Todavia, ele era um leitor assíduo de textos literários, como os de Eça de Queiroz,
os quais influenciaram em sua escrita, como ele mesmo revela numa entrevista a Marilise
Ambrogi (1983, p. 5): “Pretendo continuar criticando a sociedade humana, seus erros, seus
males; afinal, é um dever que sinto como escritor. Foi o que fez Eça sua vida inteira”.
Herberto, portanto, sempre esteve em contato, seja como leitor ou autor, com a literatura. Ele
mesmo afirma que:
Embora reconhecendo a importância da escola e universidade na formação literária,
no meu caso pessoal essa formação começou a partir do momento em que descobri a
literatura e me encontrei com minha formação literária, numa cidade do interior, na
solidão da biblioteca de meu pai (SALES, 1981, p. 182).
O escritor de Andaraí lia também autores do nordeste brasileiro, os quais marcaram
tanto suas obras. Os garimpos e a pobreza nordestina caracterizam o tom regionalista de
muitos de seus livros, às vezes como temática central, outras tantas como cenário para a trama
das histórias. Ainda na pequena Andaraí, ele publica seu primeiro e afamado romance
Cascalho (1944), adaptado posteriormente para história em quadrinhos8 e para o cinema
9,
8 Com 167 páginas, a história de Herberto Sales foi adaptada por André Le Blanc e publicada originalmente em
outubro de 1957 pela Editora Brasil América Latina – Ebal, edição Maravilhosa nº 158. Cf. anexo B - Imagens
da revista em quadrinho Cascalho, bem como, ficha técnica e cartaz do filme. 9 O filme baseado no romance de Herberto tem roteiro adaptado e direção de Tuna Espinheira. Lançado em 31
de outubro de 2008, foi todo gravado em Andaraí e Mucugê na Bahia. O elenco contou com atores como Harildo
Déda, Othon Bastos e Irving São Paulo.
19
além de ser traduzido para mais de dez idiomas. Como a primeira versão tinha mais de 600
páginas, Herberto escreveu uma segunda versão, na década de 50, revisada e diminuída. A
partir daí, vem uma sucessão de obras10
dos mais variados gêneros.
Herberto foi convidado para ocupar a Cadeira nº 3 da Academia Brasileira de Letras,
sucedendo Aníbal Freire da Fonseca em 6 de abril de 1971. Nesse período, morando no Rio
de Janeiro, foi jornalista nos Diários Associados, de Assis Chateubriand, até 1973, na revista
O Cruzeiro. Em 1974, passou a ocupar o cargo de diretor do Instituto Nacional do Livro, além
de, por um ano, ser assessor da Presidência da República, no governo de José Sarney,
residindo na capital brasileira. Entre 1986 e 1990, viveu em Paris, trabalhando como Adido
Cultural na Embaixada brasileira.
Ao retornar ao Brasil, Herberto optou por viver de forma “exilada” em São Pedro da
Aldeia, no Rio de Janeiro. Sobre essa sua última morada, ele afirma que “serve-me de refúgio
na tarde da vida, e, no meio das contrariedades e desenganos, foi para mim o rochedo do
náufrago” (A prostituta, p. 368). De obras infantis às de denúncia social, o autor mostra-se,
como ele próprio define na contracapa de seu último livro, “o mesmo romancista (a mesma
alma) em cada um dos entre si tão diferentes romances que escrevi”. Por suas obras, recebeu
diversos prêmios, como o Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras, Paula Brito da
Biblioteca Municipal do Rio, Luísa Cláudio de Souza (1966), Jabuti (1977), além de ter sido
laureado com a Medalha do Mérito do Estado da Bahia (1977), a Medalha Euclides da Cunha
(1980) e o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (1996).
Por outro lado, apesar de ter sido tão premiado por suas obras, ratificando seu prestígio
na Academia, Herberto não se tornou um escritor tão popular fora desse circuito intelectual.
Isso significa que não é só de prêmios e prestígios que se faz um escritor, que atinge um
público leitor diversificado. Nesse sentido, Márcia Abreu (2006, p. 99) considera que é
“ingenuidade acreditar que críticos e intelectuais, por sua sólida formação, deveriam estar
aptos a perceber a literariedade de um texto, considerando apenas suas características formais
e de elaboração”. Muitos são os casos em que a crítica desvaloriza um autor, como Paulo
Coelho, tido como um escritor “menor”. Diversos são os estudos, ora depreciando sua escrita,
ora vangloriando sua popularidade. A crítica, a depender das circunstâncias históricas e
políticas, resvala para a exaltação de um autor, como é o caso de Herberto Sales, que
necessariamente não coincide com o gosto do grande público.
10
Cf. apêndice A – Relação de obras escritas por Herberto Sales.
20
Exemplo da diferença entre a fortuna crítica desses dois autores citados, Paulo Coelho
e Herberto Sales, pode ser percebido na quantidade de estudos sobre os autores na plataforma
CNPQ11
. O primeiro possui 160 autores que tratam de suas obras ou de sua figura, contra
apenas 23 estudiosos de Herberto Sales. Deste último, 19 pesquisadores são da região
nordeste, sendo dois da Universidade Federal de Pernambuco e o restante de instituições
baianas12
, um de Minas Gerais e três do sudeste brasileiro. Os trabalhos, por sua vez, referem-
se, em sua maioria, à primeira obra do autor, Cascalho: uma pesquisadora estuda sobre a voz
da mulher nessa narrativa e outros quatro abordam a temática regionalista; quatro
pesquisadores discutem a figura de Herberto Sales enquanto escritor; outros três estudiosos
sobre as crônicas e contos; outros dois autores abordam a religiosidade em sua obra; um autor
discute sobre a obra Pareceres do tempo; outros estudiosos focalizam a cidade, a relação entre
literatura e documento e o modernismo; e há ainda quatro produções em jornal: uma sobre o
humor em Herberto e três sobre a sua morte, em 13 de agosto de 1999, no Rio de Janeiro.
Esse panorama indica o caráter inovador deste estudo, por se debruçar sobre A
prostituta13, obra pouco estudada, nessa perspectiva, além de manter o diálogo com os estudos
de Elisabeth Silva de Almeida Amorim14
sobre a voz feminina em Cascalho, contribuindo,
assim, com a fortuna crítica do autor.
Como entrevendo sua morte, Herberto anuncia na orelha do seu último livro que este
será seu romance de despedida. Sem dar muitas justificativas, ele afirma que “estava mesmo
na hora de fazer isso”. Em uma espécie de título da orelha do livro ele diz: “O romancista,
para as despedidas”. Essas são duas: o adeus às publicações e ao seu amigo e editor Ênio
Silveira que havia falecido, não podendo, obviamente, escrever a orelha do seu último
romance, deixando o ofício para o próprio Herberto, que achou melhor não escrever
impressões sobre a obra, “não cabem aqui os louvores inerentes à natureza mesma das orelhas
de livro, visto que em boca própria eles não soariam bem”, mas sim despedir-se e descrever o
que o título do romance anuncia e as páginas a seguir revelariam:
Já o título tudo diz, o tema está no título. Enfim, o romance A prostituta conta uma
história velha como o mundo, que nas diferentes circunstâncias que a cercam e em
11
Pesquisa feita em 16 de novembro de 2010. 12
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e Universidade
do Estado da Bahia (UNEB). 13
Publicada pela Civilização Brasileira, em 1996, essa obra terminou de ser escrita em 31 de outubro de 1995 (A
prostituta, p. 368), não havendo reedição. 14
“Cascalho: estudos identitários na ficção de Herberto Sales” (2010); “Cascalho:(re)visão da presença feminina
na ficção de Herberto Sales” (2009); “Cascalho: vozes de mulher na ficção de Herberto Sales” (2009); e
“Cascalho: imagens de mulher na ficção de Herberto Sales” (2009) são suas produções científicas referentes às
obras de Herberto Sales.
21
trama humana a repetem, incessantemente se atualiza. De modo absoluto, é a
história do bem e do mal, relativamente aos passos do homem e da mulher no
mundo e na sociedade humana.
É comum a máxima de que a prostituição é a mais velha profissão do mundo, tão
reiterativas também são histórias de garotas, mulheres e até senhoras prostituindo-se para
conseguir sobreviver, ou para custear um padrão de vida melhor do que o que conseguiriam
em outra modalidade de trabalho. Quantas histórias circulam, em especial antes do meado do
século XX, sobre casos em que as famílias deserdavam a moça que se deitasse com um
homem antes do casamento, casos em que a família limpava a desonra do defloramento das
garotas com vingança, chegando ao ponto de expulsá-las de casa, obrigá-las a casar com
qualquer pretendente que os pais impusessem ou até mesmo cercear sua vida ou a do
deflorador? Para os rapazes, era diferente. Ao badalar da adolescência, os pais se
responsabilizavam em levar os mais jovens às “casas de luz vermelha”, hoje mais conhecidas
como bordéis.
A prostituta, para Guido Fonseca (1982), tinha um papel fundamental para manter a
engrenagem social funcionando. A prostituição era, nesse sentido, segundo Roberto
Chateaubriand (1997, p. 4), considerada pela sociedade como um “mal necessário que precisa
existir para garantir a vazão do animal masculino, que não pode controlar o seu desejo [...]
garantindo um determinado controle para que [...] não ameace os bons costumes”. De um
lado, a meretriz supria as necessidades de sexo dos rapazes, enquanto isso, as “meninas de
família” mantinham-se castas à espera do casamento, sendo que, para elas, não haveria um
desejo sexual latente e a cópula serviria apenas para a procriação após as núpcias. Logo,
caberia a todas as moças “honestas” se ocupar com os afazeres domésticos, manterem-se
virgens até o casamento, lembrando que, mesmo depois do matrimônio, não era bem visto a
lascividade na relação com seu marido. Por algum tempo, acreditou-se que as mulheres
possuíam menos libido que o homem, justificando, de certa forma, a infidelidade masculina e
sua busca pela realização sexual através de profissionais (RAGO, 2008, p. 144).
A imagem polarizada da mulher serviu para dividi-la: umas para casar, outras para
fornicar. Até hoje, há casos em que os homens justificam a busca pelas profissionais do sexo
por ter uma maior liberdade em realizar seus fetiches15
, enquanto, segundo Aurélio Schommer
15
Segundo Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998, p. 235-238), o termo fetiche, criado em 1750, originalmente, refere-se à utilização de objetos exclusivos para excitação no ato sexual, porém, em 1905, com
Sigmund Freud, a expressão tomou novos contornos designando uma perversão sexual, sendo o substituto do
falo na mulher. Para Umberto Galimbert (2010, p. 502), Freud emprega o termo pênis para designar o órgão
sexual masculino e “o termo falo para descrever a fase fálica [...], segunda a qual, na fase fálica, o falo é o termo
de referência e orientação pulsional para ambos os sexos”. Sendo assim, o desejo masculino por lingerie, por
exemplo, seria uma espécie de recusa ou adiamento da percepção da ausência do pênis na parceira; outro
22
(2008a, p. 7)16
, “objeto físico que se presta ao culto, atribuindo-lhe poderes sobrenaturais ou
mágicos; objeto gerador de atração ou excitação sexual”. A representação do objeto desejoso
é simbólica, não meramente física. Por sua vez, os fetiches são, na perspectiva de Roland
Chemama (2002, p. 74), uma “organização particular do desejo sexual, ou libido, na qual a
satisfação completa só pode ser alcançada em presença e uso de determinado objeto [...]”, o
qual poderia “constranger” sua parceira habitual. Nesse sentido, Gabriela Leite (1992, p. 15),
prostituta17
, fundadora da ONG David18
e da grife Daspu19
, revela em sua autobiografia que:
Os homens vão à zona em busca da sua fantasia sexual. Quando perguntados por
que não realizam essa fantasia com a mulher, muitos dizem que é por respeito a ela.
Não querem se arriscar a ouvir da mulher um esporro do tipo “me respeite, que sou a mãe dos seus filhos”. É uma repressão só; o casal fica em rodízio nessa camisa-de-
força: ora é um que veste e o outro aperta, ora é o outro, e vivem isso pelo resto das
suas vidas.
As prostitutas também são procuradas para a iniciação sexual do jovem. Essa é ainda
uma prática comum, em especial em cidades do interior do país. Nasce assim um paradoxo,
uma relação de “amor” e “ódio” da sociedade com as prostitutas. Atualizando a “velha
história” da entrada na prostituição, justificada pela expulsão de casa pela família que não
aceitava uma filha grávida abandonada pouco antes de casar, Herberto retoma, em sua última
obra, a mulher que transcende essa dicotomia na figura da protagonista. Do primeiro beijo à
prostituição, a obra narra os caminhos e “descaminhos” (A prostituta, p. 40), de uma mulher
em constante negociação de suas identidades, buscando adequar-se aos percalços que
irrompem sua trajetória.
Em A prostituta, Sales busca dar continuidade a uma personagem retirada de Os
Corumbas20, romance de estreia do paulista Amando Fontes, publicado em 1933, “pungente
exemplo é o fetiche por pés, sendo este uma projeção imaginária do falo feminino. Nos seus estudos, Freud não
considerou que o fetichismo poderia acontecer em ambos os sexos, porém, suas análises foram retomadas e
complementadas por especialistas como Robert Stoller, o qual considera que o homem (heterossexual ou
homossexual) fetichiza um objeto ou órgão, ao passo que a mulher fetichiza a relação em si. 16
O Dicionário de Fetiches, de Aurélio Schommer, retoma o conceito original de fetiche, simples objeto de
adoração, como nos ritos religiosos das civilizações africanas, descobertos no século XV, ampliando suas
discussões sob o víeis da psicologia, com Sigmund Freud, e da sociologia, com Karl Marx. O dicionário conta
com diversos verbetes e suas interpretações a luz do fetichismo sexual. Cf. referência completa ao final do
trabalho. 17
Apesar de não estar mais na prostituição, Gabriela Leite afirma que não há ex-prostituta, “assim como um
médico nunca deixa de ser um médico, mesmo trabalhando em outra atividade sempre vou ser uma prostituta”
(LEITE, 1992, p. 19). 18
Organização não-governamental, fundada no Rio de Janeiro, voltada para a defesa dos diretos e cidadania das
prostitutas. 19
Grife de roupas destinadas às profissionais do sexo. A maior polêmica da grife foi referente ao seu nome, que
faz alusão à grife de luxo Daslu. 20
Durante este estudo, foi utilizada a 25ª edição de Os Corumbas (2003). Cf. referência completa ao final do
trabalho.
23
história de uma família nordestina cujas moças a miséria social leva à prostituição” (A
prostituta, p. 5)21
. Essa obra deu a Fontes o Prêmio Felipe de Oliveira de Literatura. Nesta
estratégia de escrita, “uma personagem de uma determinada obra ficcional pode aparecer em
outra obra ficcional e, assim, atua como um sinal de veracidade” (ECO, 2009, p. 132). Dessa
forma, em Herberto, dos Corumbas só sobreviveram Izidro, a mãe e Maria. Saliento que
nenhum desses três personagens é mencionado na obra primeira.
O enredo de Fontes e o da obra aqui estudada se aproximam e, muitas vezes, fundem-
se, especialmente quando se relaciona o início de A prostituta com a trajetória de Caçulinha –
uma das Corumbas. Ambas buscavam proteger sua honra, porém, através dos galanteios de
militares, respectivamente sargento Marinho e sargento Zeca, elas cedem, após promessas de
casamento, sua virgindade. Em ambos, a prostituição foi o caminho para esconder ou redimir
sua “falha”. Contudo, em Herberto, a gravidez e o desdouro familiar levaram a protagonista
ao meretrício, enquanto, na narrativa de Fontes, apenas a desonra de não ser mais “pura” a
levou para a prostituição.
Izidro – o patriarca da família – é um homem que buscava preservar a honra da filha a
rédeas curtas, desconfiado de tudo e todos. O pai era um homem simples e rústico, marcado
pela pobreza e calejado pela vida. A matriarca Corumba, figura coadjuvante na história de
Maria, age conforme o pensamento do seu esposo, afinal, para ela, antes de mãe, considerava-
se esposa. Enfim, apesar de serem personagens inspirados em uma obra já existente, Herberto
lhes atribui características próprias. Nesse sentido, Eco (2009, p. 132) diz que: “quando se
põem a migrar de um texto para outro, as personagens ficcionais já adquiriram cidadania no
mundo real e se libertaram da história que as criou”.
Herberto Sales ainda justifica a “continuidade” da narrativa de Fontes afirmando que:
“Na impressão sensível que me deixou no espírito dessa família [Corumba], criei a fantasia
romanesca dela, a jovem sergipana que se tornou a heroína deste meu último romance” (A
21
A obra de Amando Fontes é dividida em três partes: a primeira em que os personagens viviam no sertão de
Sergipe sem perspectivas de um futuro próspero; a segunda em que os Corumbas estão alocados em Aracaju
buscando uma vida melhor; por fim, a terceira parte em que há o desfecho, com a entrada das moças na
prostituição e o retorno dos pais à vida sertaneja sem nenhuma de suas filhas. A família constituída do patriarca
– Geraldo; da mãe – Sá Josefa; e de seus filhos: um rapaz – Pedro, e quatro moças (Rosenda, a mais velha;
Albertina, a segunda; Bela, a tuberculosa; e Caçulinha). Cada filho teve seu destino traçado: a primogênita fugiu
com o cabo Inácio dos Santos e, após alguns anos, abandonada, entra, assim, na zona. Albertina, operária
exemplar, apesar de repudiar os homens, apaixona-se e entrega-se para o médico Dr. Fontoura, seguindo o
destino de sua irmã. Bela, que vivia sempre adoentada, lutou o quanto pode pela vida, porém, em vão. Por fim, Caçulinha esboçava um final menos determinista: ficou noiva do sargento Zeca, estavam envolvidos
emocionalmente, até o dia em que ele a deflora. Se sua intenção era o casamento, a fim de que não houvessem
desconfianças, a dele passou a ser a de receio ao matrimônio, desistindo, assim, do relacionamento. A Corumba
foi, então, morar em casa alugada por Dr. Gustavo, homem casado, em troca de favores sexuais. Restou aos pais
voltar ao sertão, sem nenhum de seus filhos. Como se os destinos das moças pobres, trabalhadoras das fábricas,
já estivessem traçados, a obra mostra como a miséria, a moral e a prostituição se entrelaçam.
24
prostituta, p. 5). Destaco dessa citação a forma como Herberto trata a personagem Maria
Corumba, não só como a protagonista, mas também como uma heroína, desfazendo-se de
preconceitos do senso comum, que estigmatiza a prostituta. Ressalto também que, segundo
Boris Tomachevski (1973, p. 195), “o herói é o personagem seguido pelo leitor com a maior
atenção. Provoca a compaixão, a simpatia, a alegria e a tristeza do leitor”. E todas essas
emoções afloram e se imbricam na leitura desta obra.
O romance A prostituta de Herberto Sales narra a trajetória de Maria Corumba, moça
recatada, sergipana, trabalhadora de uma fábrica que cede aos encantos do sargento Marinho
e, dessa relação, ela se torna mãe solteira renegada pelos pais, sendo obrigada a mudar-se para
casa da madrinha na Paraíba. Sem perspectivas, ela decide ir a Salvador prostituir-se para
juntar dinheiro e descobre, nessa sua caminhada, os códigos que regem a prostituição, em
especial, como portar-se para ser uma “profissional” de sucesso. Mas esse é um caminho
tortuoso, ela cai em algumas armadilhas desse “novo mundo”, mas também conta com o
apoio de alguns amigos da Pensão Andaraí, local de trabalho e morada da protagonista em
Salvador. Apesar dos obstáculos superados por Maria, o romance torna-se uma história com
“final feliz”: o casamento dela com Estêvão – rapaz que a galanteava desde que se mudara
para casa da madrinha. Assim, o último romance do autor revela a trajetória, as buscas e os
obstáculos de uma mulher da(na) vida.
Não se pode esquecer que o nome dado aos personagens, muitas vezes aludindo
marcas de seus destinos, é de escolha do autor. Por outro lado, segundo Abel Baptista (1991,
p. 235), o “nome próprio dispõe do poder de dar acesso a uma vida, a vida de seu portador,
sem se confundir com ela, preservando relativa autonomia com que o foi acompanhando”.
Assim, não necessariamente, o comportamento do usuário do nome será determinado pela sua
significação, entretanto, fica claro que a designação usada para identificar uma pessoa
compõe também sua identidade.
A denominação dos personagens pode funcionar como indício do desdobramento do
enredo. Para José Alves (2007, p. 189), ao “criar um mundo, por meio da ficção, o autor tem a
possibilidade de escolher o nome com o qual designará as criaturas que comporão aquele
universo [...] e a criatura imediatamente toma forma [...]”. Assim, os escritores possuem cinco
estratégias de nomeação de suas personagens: usa o primeiro nome, demarcando uma maior
proximidade do narrador ou buscando uma com o leitor; opta por utilizar o sobrenome
demarcando assim uma menor intimidade com o personagem; explicita tanto o nome quanto o
sobrenome, normalmente, situando e/ou focalizando a criatura com o berço familiar; o
apelido, recurso que marca a simpatia e familiaridade de quem o usa para designar outrem; e,
25
por fim, a não nomeação de uma figura dramática, enquanto recurso de ou criar uma
curiosidade no leitor, ou de demarcar que ela pode ser qualquer pessoa, e seu nome (que lhe
daria identificação) “pouco importa”. Ao longo da narrativa, podem ser usados o nome, o
sobrenome ou ambos, destacando o que se quer salientar naquele instante do enredo.
Em A prostituta, são utilizadas estas cinco estratégias na designação das personagens.
O sargento Marinho, durante quase toda a obra, atende apenas ao seu sobrenome, atrelado,
quase sempre, a sua patente de policial, demarcando sua autoridade e posição social adquirida
por sua ocupação – além disso, fica claro o afastamento entre o narrador e Delfino Marinho.
Já o apelido Dina, filha de Maria, por exemplo, não apenas distingue seu nome do da sua
madrinha, como também reflete o carinho em que é tratada, tanto pelos personagens, quanto
pelo narrador. De outra forma, a mãe de Maria não é nominada, o que pode ser considerada
uma estratégia de destacar a pouca representatividade desta mulher na narrativa. Já a Izidro,
pai da protagonista, o uso recorrente é do seu prenome acompanhado da abreviação coloquial
do pronome de tratamento senhor, “seu”, designando tanto aproximação como respeito ao
personagem. Por fim, ora chamada apenas pelo seu primeiro nome, Maria, ora por ele atrelado
ao sobrenome, Maria Corumba, a nomeação da protagonista possui um papel simbólico
importante no corpo da narrativa.
O nome Maria, de uso tão recorrente no mundo ocidental, vem de uma tradição do
cristianismo, que remete à mãe de Jesus22
. Da bíblia cristã, destaco duas Marias: uma é a
Virgem, a matriarca da família de Cristo; a “outra” é a prostituta Maria Madalena, que fora
recriminada pela sociedade por infringir os códigos morais. Não comungando com esse olhar
de censura, o “profeta esqueceu dos tabus que existiam em seu tempo contra as mulheres e as
tratou como seres humanos[...]. Se estava proibido falar com uma mulher na rua ou tocá-la,
Jesus se deixava abraçar inclusive pelas prostitutas”, segundo Juan Arias (2004, p. 70). Ao
abordar o nome Maria, é inevitável não resgatar os textos bíblicos e essas duas figuras
femininas, tão distintas em conduta, mas que juntas são tão similares às mulheres comuns.
Desse modo, o próprio nome da protagonista de Herberto carrega a dualidade do arquétipo23
e
dos conflitos dessa dicotomia entre as duas Marias bíblicas.
22
A exaltação da imagem de Maria, mãe do profeta, segundo Jacques Le Goff (2010), gera, de um lado, a
promoção da mulher e seu “inerente” instinto materno, por outro, ela se afasta do ser feminino ao passo que se
aproxima do divino. Dessa forma, a sacralização da mulher é alicerçada na relação entre a Virgem Maria e todas as outras mulheres, agregando-lhes traços sublimes e angelicais. 23
Segundo o Dicionário Crítico de Análise Junguiana (2010), “Viver arquetipicamente é viver sem limitações.
Entretanto, dar expressão arquetípica a alguma coisa pode ser interagir conscientemente com a imagem coletiva,
histórica, de forma tal a permitir oportunidade para o jogo de polaridades intrínsecas”. Em 1919, Carl Jung
utiliza pela primeira vez o termo Arquétipo enquanto conceito que se relaciona com a união entre corpo e psique,
instinto e imagem, afinal, a psicologia e as imagens não são simplesmente reflexos de impulsos biológicos.
26
A questão do nome também presente na composição “Maria, Maria”24
de Milton
Nascimento e Fernando Brant traz essa ambivalência: “Quem traz no corpo a marca Maria,
mistura dor e alegria”. Ser Maria, então, é, para além de um nome, uma “categoria”. E é nessa
mistura entre a dor e a alegria, a pureza da Virgem e a sedução da prostituta que se constituem
muitas “Marias”, entre as quais a protagonista do romance. Da religiosidade ao meretrício, as
duas Marias bíblicas (con)fundem-se numa só personagem, com todas as contradições que
isso implica. Dessa forma, então, são construídas, desconstruídas e agenciadas as identidades
desta mulher, ratificando que ela não precisa ser apenas a “santa” ou a “puta”. Há momentos
em que Maria pode ser uma coisa ou a outra, tendo também situações em que ela assume uma
das nuances entre essa polarização, demarcando que há um “„desaparecimento‟ da identidade
forte [como se fosse única e imutável] em favor de um sistema reticular de coordenadas
[múltiplas identidades]” (COLOMBO, 1991, p. 108).
Inspirado na crônica homônima, Entre tantas Marias (CORDEIRO, 1985), o título
deste trabalho retoma as variações deste nome, personificado na figura central de A prostituta.
“Maria” pode representar qualquer mulher, por se tratar de um prenome de uso comum no
mundo ocidental; isso demarca o legado histórico-religioso que ele preserva. Ao usar o plural
deste nome, anuncia-se uma polissemia: ou se trata de mais uma mulher-Maria entre outras
semelhantes; ou se refere aos múltiplos eus que uma mesma pessoa assume ao longo de suas
vivências; ou ainda pode amarrar essas duas interpretações, considerando se tratar de
mulheres plurais e diversas.
Maria-mãe, Maria-mulher, Maria-amiga, Maria-santa, Maria-puta: essas são algumas
Marias que compõe uma única mulher, carregada de valores herdados e ressignificados,
desejos contidos e outros tantos realizados. E, através dos conflitos e contradições que sua
trajetória resguarda, constrói-se e reconstrói-se a cada entrave, a cada circunstância e a cada
contexto em que se insere. Ser muitas e ainda ser uma é o que caracteriza a identidade da
mulher, questão hoje amplamente estudada e discutida pelos Estudos Culturais.
Para analisar, então, o percurso de Maria, do romance, vale ressaltar que a identidade
feminina e o pertencimento em um grupo podem ser negociados e revogados, não são, por
24 Segundo o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira (2010), “Maria, Maria” foi originalmente
gravada no álbum "Clube da Esquina 2" em 1978, pelo movimento musical integrado por Milton Nascimento,
Lô Borges, Toninho Horta, Beto Guedes, Marcio Borges, Túlio Mourão, Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Wagner Tiso entre outros. Essa canção foi regravada por vários artistas: em 1980, por Elis Regina, no disco
Saudades do Brasil, em 1993, o conjunto carioca Roupa Nova no álbum De volta ao começo e o grupo MPB4 no
álbum Encontro marcado – MPB4 canta Milton Nascimento.
27
tanto, imutáveis. Isso pode ser observado na trajetória da protagonista, já que ela, no início da
obra, vê-se inserida no universo fabril, representando, em casa, o papel de jovem submissa
aos mandos familiares, em especial o paterno. Após a dupla decepção com “os homens de sua
vida” – primeiro o noivo sargento Marinho que a engravida, promete casamento e foge, e
posteriormente o pai que a expulsa de casa ao saber de sua gravidez – seus valores são
reavaliados, negociados com o novo contexto que se constrói. Decide prostituir-se, mas, essa
atitude não mudou “seu caráter”. Essa ideia de manter-se íntegra no caráter mesmo sendo
meretriz é reafirmada por Claudius, único cliente que ela frequentou a casa, ao ter a “certeza
indubitável de que estava tratando com uma mulher de qualidades morais e humanas
incomuns, reveladoras de altiva nobre conduta pessoal” (A prostituta, p. 244-5). Em suma,
nas palavras de Jorge Araujo (2008, p. 148), esse romance “representa uma espécie de
réquiem à cortesã e resgate aos seus valores humanos e afetivos”.
A obra em estudo permite investigar os caminhos atravessados pela protagonista antes
mesmo da sua decisão de tornar-se meretriz, destacando como suas vivências a fizeram
modificar-se enquanto sujeito e, principalmente, enquanto mulher, afinal, como afirma
Richard Johnson (2010, p. 30), as práticas sociais “podem ser examinadas de um ponto de
vista cultural, podem ser examinadas pelo trabalho que elas fazem – subjetivamente”. Assim,
toda prática social modifica o sujeito enquanto integrante da sociedade e também enquanto
indivíduo. O papel de mãe, por exemplo, influencia na representação que se tem sobre o seu
ofício, bem como o lugar ocupado profissionalmente modela o comportamento que se deve
ter nos variados ambientes que circula e, assim, esses múltiplos lugares sociais se relacionam
e, muitas vezes, conflituam-se na construção da identidade.
Essa obra conta uma história, que mesmo não deixando explícito o ano em que as
personagens “viveram”, aconteceu no início do século XX, visto que o comportamento das
personagens e alguns lugares que ambientaram a história remetem a esse período. A cidade de
Salvador – parte do cenário do romance – indica os lugares da moda da época, destacando os
cassinos, as ruas e os cinemas. Elementos como bondes, carro de praça (os precursores dos
atuais táxis), filmes, como Noites Vienenses25, locais e estabelecimentos da capital baiana,
como o cassino Tabaris, o cineteatro Guarani situado na Praça Castro Alves, o Clube Baiano
de Tênis, o jornal A tarde são citados ao longo do texto indiciando o tempo e o espaço.
Hoje, nas primeiras décadas do século XXI, a paisagem da capital baiana modificou-
se. O cassino Tabaris, posteriormente chamado Tabaris Night Club, abriga o Teatro Gregório
25
Cf. anexo C – Imagem publicitária do filme Noites Vienenses, no jornal A Tarde.
28
de Mattos. Já o cineteatro Guarani26
, segundo Clara Albuquerque (2010), fundado em 1919,
após 63 anos passa a ser o cinema Glauber Rocha, em homenagem ao cineasta baiano falecido
um ano antes. Em 1998, com a chegada dos cinemas dos novos shoppings da cidade, fecham-
se as portas desse espaço. Com o apoio governamental, desde 2008, o antigo cineteatro
tornou-se o Espaço Unibanco de Cinema Glauber Rocha. O Clube Bahiano de Tênis, local de
diversas festas da boemia da capital baiana nas primeiras décadas do século passado, por sua
vez, foi vendido para a rede Perine27
, restando apenas a quadra de tênis para uso dos
associados. Por fim, o jornal A tarde, citado no romance, originado em 191228
, ainda se
encontra em circulação, sendo um dos periódicos impressos mais lidos na Bahia.
Ao descrever os cabarés da época, o narrador explicita alguns cantores “da moda” e
músicas que realmente existiram. A canção preferida de Maria e seu parceiro de dança,
Mululo, por exemplo, é o tango La cumparsita29 de autoria de Gerardo Matos Rodriguez no
ano de 1917, sendo considerado o hino do tango no Uruguai. Esse gênero musical também fez
bastante sucesso no Brasil do início do século XX. O romance também faz menção a Gus
Brown, sapateador que se apresentava no Brasil nas primeiras décadas do século passado com
frequência, visto que, segundo Eduardo Sucena (1989), a musicalidade americana estava em
voga na década de 20, sendo ele também um renomado coreografo de canções como À La
garçonne em 1924. O pianista da Pensão Andaraí, a qual Maria trabalhou, Lauro Paiva,
nasceu em 1913, sendo um conhecido intérprete e autor de sambas e chorinho. Segundo o
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira (2010), Paiva teve “[...] intensa atuação
artística nas décadas de 1950 e 1960, além da (sic) apresentações em Rádios e shows em
clubes e boates, gravou LPs nas gravadoras Copacabana, Caravelle e Continenta”.
Enfim, a obra de Herberto pode ser considerada também uma espécie de documento
histórico da cidade baiana nas primeiras décadas do século anterior, apesar de não ser esta a
finalidade de seu romance. Mesmo com o esforço em representar o passado, percebo algumas
incongruências entre o cenário descrito pelo narrador e o panorama cultural da época, como
por exemplo, quando é dito que a música Flor do inverno foi escrita por Joubert Carvalho,
enquanto ela é de autoria de Ary Barroso, em 1933, e inicialmente cantada por Silvio Caldas
26
Cf. anexo D – Chamada publicitária do cineteatro Guarani e fotografias das mudanças do local. 27
Fundada em 1964, em Salvador, sendo inicialmente uma padaria criada por Delmiro Carballo Alfaya e seu
sobrinho José Faro Rua, a Perini hoje é uma rede de gênero alimentício e gastronômico com serviços especializados, produtos nacionais e importados. 28
Cf. anexo E – Imagem da primeira edição do jornal A tarde em 1912. 29
Escrita quando Geraldo Rodriguez tinha 17 anos, esse tango tornou-se um dos mais famosos do mundo. Em
1924, o compositor descobriu que, em Paris, os letristas Enrique Maroni e Pascual Contursi reformularam a letra
do seu tango, copiando sua musicalidade, sendo um sucesso na capital francesa. Cf. anexo F – Cartaz do tango
original La Cumparsita.
29
sob a regência de Harry Ruby, segundo o Dicionário Cravo Albin da Música Popular
Brasileira (2010).
Além dos elementos que compõem o cenário, a linguagem, em especial as gírias,
demarca também o tempo: “[...] ancorado numa garrafa de cerveja, que na gíria chamavam
vela, e que, por extensão da gíria, ainda estava (a vela) de pavio aceso” (A prostituta, p. 167).
Há também a gíria do que viria a ser os atuais motéis: “O castelo (como se chamavam na
gíria) era uma das poucas casas do ramo ainda incipiente em Salvador de hotéis suspeitos” (A
prostituta, p. 222). O uso do linguajar da época transporta o leitor para uma atmosfera mais
realística, todavia, o autor tem o cuidado de sempre explicar os termos que caíram em desuso.
A obra, publicada em 1996, retrata um tempo passado. Estão marcadas, então,
implícita ou explicitamente no texto, as representações de mundo do autor, enquanto
indivíduo do sexo masculino, situado histórico e socialmente. Essa premissa pode ser
constatada ao analisar a perspectiva adotada pelo autor ao lançar um olhar romantizado sobre
a prostituição, em especial, sobre a protagonista da obra. Ao narrar a trajetória de Maria
durante o meretrício, é omitido casos de violência, muito comuns ao ofício. Por outro lado,
ao dar destaque às músicas, às danças e às vestes, ele idealiza e celebra a vida boêmia, em
detrimento de um olhar crítico sobre o mundo da prostituição, com seus desejos, contradições
e conflitos.
Um recurso usado pelo narrador para romantizar as vivências de Maria é o uso de
cadência desigual nas passagens do enredo. Ora determinada situação é excessivamente
descritiva, como nas minúcias do funcionamento da Pensão Andaraí, destacando o quão
agradáveis são o ambiente e as pessoas; ora a passagem é condensada, suprimindo, assim, os
momentos em que o narrador não quer focalizar os percalços do ofício, por exemplo, quando
Maria está com algum cliente que não a agrada.
Outra estratégia de romantização da meretriz é através das características que lhes são
conferidas. Os traços atribuídos à protagonista a fim de ratificar sua idoneidade, por exemplo,
referem-se à pureza de alma, mesmo em meio à lascividade de sua ocupação, ao caráter
íntegro e coeso. Tais atributos demarcam a necessidade de a mulher se manter pura, de
alguma forma, para que sejam redimidos seus comportamentos subversivos às normas que
regem o feminino de acordo com a sociedade androcêntrica e patriarcal.
A escolha de escrever sobre um tempo passado não é nova para Herberto. Outras obras
se passam em épocas remotas, como em Os pareceres do tempo (1984) que ele recua ao
século XVIII ou em Dados biográficos do finado Marcelino (1965), ambientado na Salvador
da década de 30 do século passado. Por outro lado, Herberto já escreveu também uma
30
narrativa futurista, passada no ano de 2352 intitulada A porta de chifre (1986). Sendo assim,
marco a recorrência em brincar com o tempo e suas perspectivas históricas nas obras de
Herberto.
Apesar de não ser o meu objetivo focar sobre a relação entre ficção e autobiografia, até
porque a linha entre elas é tênue e, por vezes, mesclam-se, posso inferir que o grau de
verossimilhança entre a obra e as vivências de seu autor é grande, visto que o próprio
Herberto anuncia ao final da orelha de seu último livro que: “Para o autor, e também de modo
absoluto, [essa obra] é a libertação de lembranças obscuras de sua vida, nas saudades
machadeanas de si mesmo se recolhe, invocando a misericórdia de Deus”. Enfim, de certa
forma, o romance A prostituta “representaria também um registro memorial do escritor
quando estudante na antiga Bahia notívaga, suas pensões e cordialidades em tempos de
saudável esbórnia e descompromissos” (ARAUJO, 2008, p. 148).
Paul Ricoeur (2007) considera que o romance é um espaço privilegiado por operar sob
contratos de veracidade, em que o leitor debruça um olhar para a obra como se lá contivessem
verdades, mesmos sabendo que se trata de um texto ficcional. Assim, ao se entrelaçar
realidade e ficção, o romance e o relato se aproximam, em tênues diferenciações. Logo, o
espaço biográfico, na perspectiva de Leonor Arfuch (2010), é o lugar em que se conta uma
história, caracteriza-se por conter elementos da narração. Nas histórias de si, há uma seleção
do que contar, de como contar, há também um processo de recriação do vivido a partir dos
olhos do hoje e da intencionalidade narrativa, criando assim uma espécie de “invenção do
real”. No texto dito ficcional, por sua vez, há também uma invenção de um enredo a partir do
conhecimento de mundo do autor, elaborando uma “verdade inventada”. Há, então, estreitos
distanciamentos entre o romance e o relato de vida.
Nesse sentido, considero que dizer que a obra escrita traz reflexos da vivência do autor
é um recurso por vezes utilizado para aproximar o leitor do escrito, despertando uma
curiosidade sobre o enredo. Logo, não farei uma análise na perspectiva do biografismo, o qual
entende a obra pela vida de seu autor, como se só pudesse escrever com base nas suas
vivências. Entendo, pois, que o texto só se concretiza na sua recepção. Como escreve, em tom
de humor, Mário Quintana (1973), “Mas por que datar um poema? Os poetas que põem datas
nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos...”30
, sendo que, assim
30
Texto intitulado Poema. Apesar de Quintana falar somente do poema, estendo a reflexão para todos os textos
literários, em que é o leitor que produz diferentes sentidos a depender de seu momento. Cf. referência completa
ao final do trabalho.
31
como os ovos carimbados não serão das galinhas, os poemas datados são ressignificados a
cada leitura, configurando, assim, nova data para cada interpretação, dando-lhe nova “vida”.
Não perco de vista também que a “voz do narrador não é a voz do autor” (grifo dos
autores) (SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 3). O primeiro é fruto criativo do segundo, com
características e “personalidade” próprias. Entretanto, há um imbricamento de vozes na obra
literária, visto que se relaciona a fala do narrador com a dos outros personagens; sendo que
essas vozes se originam e, normalmente, se articulam na voz agregadora do autor. Por vezes,
não se sabe se determinada fala é do narrador ou dos personagens, como, por exemplo,
quando Maria – a protagonista – estava com seu então noivo no cinema: “No escurinho, o
sargento Marinho foi introduzindo ao de leve e em pinça os dedos no decote da noiva, rumo
ao bico do seio. Ela repeliu com dignidade a bolina, tenha modos Marinho” (A prostituta, p.
17). Ao final dessa citação, não se sabe quem solicita que o sargento “tenha modos”, se é
Maria ou o próprio narrador. A ausência de aspas faz crer que seja o segundo, porém, pelo
contexto, posso esperar que essa seja uma fala típica da protagonista no afã de mostrar o seu
recato, como aprendera.
Este recurso do narrador mesclar a sua voz com a da protagonista ratifica a
proximidade de ambos. É a voz do narrador, que tudo observa, a mais presente na obra, em
especial ao usar o discurso indireto livre, o qual permite saber o como pensa e age os
personagens, deixando para Maria e as outras figuras da trama algumas passagens de diálogo,
via discurso direto. Destaco que, para Dominique Maingueneau (2002, p.153):
O discurso indireto livre (DIL) é o tipo mais clássico de hibridismo, já repertoriado
há muito tempo pelas gramáticas. [...] A polifonia do DIL não é a de duas vozes
claramente distintas (Discurso Direto), nem a absorção de uma voz por outra
(Discurso Indireto), mas a mistura perfeita de duas vozes: em um fragmento no DIL
não se pode dizer exatamente que palavras pertencem ao enunciador citado e que
palavras pertencem ao enunciador citante.
Sendo assim, o narrador não apenas conta uma história que observa, mas envolve-se
na trama a ponto de sua voz se imbricar à da personagem central. Logo, nesses casos, a
caracterização dos personagens é limitada pela visão que a protagonista tem deles. Há uma
espécie de maniqueísmo na construção das figuras dramáticas do romance de Herberto, ou são
más do início ao fim da obra, como é o caso do sargento Marinho, ou boas, como Maria.
É notório também certo esforço em não demarcar o tempo explicitamente, visto que,
como ele mesmo afirma, também na orelha do livro, “[...] o romance A prostituta conta uma
história velha como o mundo, que nas diferentes circunstâncias que a cercam e em trama
humana a repetem, incessantemente se atualiza”, logo, independe o ano em que ocorreu a
32
história, já que ela se repete nos diversos tempos. Essa ideia fica explícita quando o narrador
“encontra” um calendário na casa dos Corumbas: “Ao lado da porta havia uma folhinha
pendurada: o tempo, em qualquer tempo” (A prostituta, p. 35).
Os lugares em que Maria passa são bem demarcados, como os estados em que mora
(inicia a história em Sergipe, muda-se para a Paraíba, posteriormente vai à Bahia onde passa
cinco anos como prostituta na capital e, finalmente, embarca para Recife afim de casar-se com
Estêvão); as ruas por várias vezes explicitadas, como na primeira linha do romance, em que
ele anuncia o cenário ao informar o endereço da fábrica a qual a protagonista trabalhava, a rua
das Acácias. Mais detalhado ainda é quando o narrador revela onde fica localizada a Pensão
Andaraí, local que Maria viveu e trabalhou em Salvador. Ele anuncia o nome da pensão, da
rua (rua da Oração) e seu número (nº 10), não obstante, ainda indica um ponto de referência
(atrás do cinema Liceu). Essa estratégia, se é que posso assim chamar, de detalhar
minuciosamente o cenário destacando nomes de ruas que realmente existem, por exemplo,
envolve o leitor da crença de que aquela história poderia mesmo ter acontecido para além do
romance. Por vezes, questionei-me até que ponto o enredo retrata uma história que realmente
existiu e, mais ainda, questionei-me qual personagem seria o Herberto se essa trama fosse
baseada em fatos de sua vida.
Enfim, não entrarei em especulações sobre a veracidade do enredo, tampouco me
delongarei na trajetória do autor, por não serem esses os fins deste trabalho. Passo, então, a
analisar a construção das nuances identitárias da protagonista Maria a partir da perspectiva
masculina.
2.2 MARIA SOB A MIRA DO MASCULINO
“Pedaço de morena” (A prostituta, p. 11), esta é a primeira aparição da heroína da
obra de Herberto. Tratava-se de um “pedaço” específico de Maria que chamava a atenção dos
rapazes da fábrica: suas nádegas. Eles identificaram Maria Corumba apenas ao olhar o
contorno de seu quadril. Assim, uma parte específica daquela mulher representava seu todo
para aqueles homens. Foram advertidos, entretanto, por outro operário, que Maria era noiva
de um militar, transferindo a metonímia de uma parte de seu corpo, para a metonímia de ser
noiva do sargento Delfino Marinho. Quem seria, então, realmente aquela mulher?
As amigas a consideravam uma mulher de sorte por Maria se relacionar com uma
autoridade, que além de todos os atributos advindos do status de sua profissão, era bonito. A
beleza física não tem o mesmo valor para os dois sexos, como afirma Gilles Lipovetsky
33
(2000). A mulher, considerada o “belo sexo”, deveria se moldar aos padrões culturais da
época, para ser “apreciada” como um “objeto”. Já para os homens, os traços mais marcantes
seriam seu status, sua virilidade e sua honradez. De certa forma, então, segundo Juan Arias
(2004), enquanto o homem tem o poder social adquirido pela sua representatividade em uma
sociedade androcêntrica, à mulher é reservado o poder de sedução, intimamente atrelado aos
traços ditos femininos, como a preocupação excessiva com a beleza, em especial, a fim de ser
(ou estar) sempre sedutora para o sexo oposto.
Sobre essa dicotomia entre o feminino e o masculino, Pierre Bourdieu (2010, p. 19)
cria um esquema sinóptico das oposições entre os gêneros, demonstrando as múltiplas
polaridades em que são inscritas a relação entre os sexos31
. O homem e a mulher tornam-se,
então, uma espécie de duplo um do outro. Sobre isso, o mito andrógino32
conta a história do
homem que, inicialmente, era uno e, por causa de suas transgressões, foi punido pelos deuses
com o desdobramento de si em dois gêneros, sendo assim condenado à busca incessante da
metade perdida ao longo de sua vida (LAMAS, 2004). Na mitologia, havia três espécies
ancestrais da humanidade: uma representada pela posse das propriedades masculinas, filho do
Sol; outra das marcas femininas, filha da Terra; e, por fim, uma andrógina, em que se unem
traços masculinos e femininos, filhos da Lua – astro entre o sol e a Terra (BRUNEL, 2005a, p.
26-39). Sendo assim, para haver o híbrido, é necessária a união dos dois gêneros, é preciso
que eles se encontrem.
Assim como no mito de Platão (2009), as mulheres, muitas vezes, ainda buscam
romanticamente sua “outra metade” para se sentirem completas. Logo, encontrar um bom
partido é o desejo da mulher, sobretudo daquela ainda presa às regras da família patriarcal. A
idealização de um homem que a salve dos perigos e seja um bom provedor mantendo ou
melhorando a sua posição social. Nesse sentido, Bourdieu (2010, p. 83), afirma que:
Se as mulheres se mostram particularmente inclinadas ao amor romântico ou
romanesco, é, sem dúvida, por um lado, porque elas têm nele particular interesse:
além do fato de prometer liberá-las da dominação masculina [ao menos a paterna],
eles lhe oferece, tanto em sua forma mais comum, como o casamento, pelo qual, nas
sociedades masculinas, elas circulam em todos os lugares, [...] uma via, às vezes a
única, de ascensão social.
31
Cf. anexo G – Esquema sinóptico das oposições entre os gêneros. 32
Mito abordado no Banquete de Platão (2009), que revela, em seis discursos diversos, as origens do duplo na
natureza de Eros, deus do amor. Basicamente existem três perspectivas: uma que considera que só existe um
Eros que se vê novo e velho; outra em que Eros está ligado à Afrodite Pandêmia, logo, ao amor heterossexual e
físico, e também à Afrodite Urânia, atrelada ao amor masculino e à alma; por fim, a terceira duplicidade refere-
se ao mito “que representa o instinto que permite aos homens reencontrar momentaneamente sua unidade
primordial, a felicidade” (BRUNEL, 2005e, p. 322).
34
Maria é uma figura caricatural no início da obra, antes de conhecer o sargento
Marinho, “não sabia o que era amor”. Os personagens, ao adjetivarem a protagonista,
relacionam sua imagem a elementos simbólicos que representam a sua pureza, como pássaros
e anjos, ambos seres virtuosos que circulam pelos céus. Entretanto, após conhecer o seu futuro
noivo, suas virtudes entram em conflito, como ter mentido sobre Marinho para a sua mãe,
tendo ela sido uma moça sempre sincera. Fica claro, então, que as qualidades de Maria, no
início da obra, dão vazão a outros traços não tão honrados a partir do momento em que ela se
envolve com seu primeiro namorado.
Já o sargento Marinho era um manipulador nato. Ele seduzia seu interlocutor a ponto
de sempre concordarem com suas ideias. Com muitos artifícios, ele envolve a inocente Maria
Corumba, primeiramente para se aproximar dela, depois para namorá-la, noivar, para, por fim,
possuí-la sexualmente. Artimanhas essas que vão do sobrenatural: “[...] Marinho incutira já
em Maria, na fantasia da premonição sobrenatural, a certeza de resto natural de que haviam
nascido um para o outro” (A prostituta, p. 31), à sedução física.
As máximas são a filosofia do primeiro amor de Maria, a principal delas é “quem
espera sempre alcança”. A paciência com que a aguardou aceitar o cravo vermelho depois de
algumas tentativas é um exemplo:
Dessa mesma conversa (ou tapeação) ele havia valido em suas conquistas anteriores:
a flor, uma flor, de resto o caminho mais curto para o coração de uma mulher. Ele assim achava, sem saber ao certo se lera isso em alguma parte, ou se a florida
descoberta era mesmo de sua desflorida cabeça. Das outras vezes dera logo certo.
Mas, com Maria Corumba, somente na segunda tentativa ele conseguiu entregar-lhe
a flor, e com a flor abrir caminho até o coração dela. Também havia sido, como das
outras vezes, um cravo vermelho, que ele achava que dava sorte. E dava. (A
prostituta, p. 26).
Apesar da resistência em aceitar o cravo vermelho “da sorte” do então estranho
sargento Marinho, ao receber o presente, Maria agiu como o galanteador desejava, abriu
caminho para o seu coração. O ato de não aceitar o cravo vermelho nas tentativas inicias pode
ser considerado parte do jogo da sedução: primeiramente o homem tenta cortejar a dama, a
moça rejeita para que, com a insistência do rapaz, ele sinta-se cada vez mais envolvido e
motivado pela dificuldade a fim de conquistá-la. As manhas e artimanhas do jogo da sedução
demarcam, hoje não tão fixamente, os papéis de cada “jogador”. As armas de sedução são
diferentes também para cada sexo. O feminino se apoia essencialmente na “aparência e nas
estratégias de valorização estética. No masculino, a paleta dos meios é muito mais ampla: “a
posição social, o poder, o dinheiro, o prestígio [...]” (LIPOVETSKY, 2000, p. 63-4). Logo,
35
para os homens, cabe a iniciativa, já para as mulheres, cabe ceder gradativamente aos
encantos masculinos, a fim de delongar o prazer da conquista.
O narrador, por sua vez, marca que o cravo vermelho e os galanteios não são, ou não
foram, exclusivos para a protagonista. O sargento já havia reincidência na “arte da conquista e
do defloramento” com outras três ex-noivas. Maria, então, para o sargento, era apenas mais
uma de suas conquistas e o prêmio era a virgindade da donzela. Mas, como o próprio Marinho
acredita: um passo de cada vez.
Com o beijo de estreia do casal, e o primeiro da vida de Maria, a filosofia de que
“quem espera sempre alcança” também funcionou. O narrador permite que o leitor tenha
conhecimento dos pensamentos de Marinho ao saber que aquele tinha sido o primeiro beijo de
sua namorada. Ele só pensava no dia em que desse o primeiro “chupão” em Maria. Situação
essa que não tardou em acontecer depois das idas dos enamorados ao cinema. Na citação a
seguir, o interessante é observar como ele a seduz e ela, ingênua, deixa-se levar:
Um dia, aliás uma noite, eis que, nada mais que de repente, como um inesperado
trovão abalasse o céu do manso idílio deles em desenvolvimento da rotina, o
sargento Marinho segurou com as mãos em concha o rosto de Maria, e deu-lhe na boca, como se bebesse água numa moringa, um longo e voraz (a palavra é essa)
beijo. No primeiro instante ela se apavorou, na impressão arfante de que com o beijo
o sargento lhe estava sorvendo pela boca a vida [...] Mas o soldado não apenas de
polícia, mas sobretudo soldado de si mesmo, em suas bem-sucedidas conquistas,
sargento Marinho contra-atacou com sua (como ele dizia) arma secreta: o chupão.
Maria Corumba foi então irresistivelmente cedendo aos poucos, derreada nos braços.
(A prostituta, p. 49).
Após conquistar o coração feminino, o homem, para o sargento, já poderia apossar-se
do corpo da mulher conquistada dando o “tiro final”, segundo ele, “Bastava o homem correr-
lhe o “dedo na regada”, que ela ia logo abrindo as pernas [...] A mulher, à vista de um caralho,
desde que duro, logo a ele se agarra, e nele se deleita” (A prostituta, p. 53).
Essa ideia de presa fácil, instinto sexual exacerbado da mulher culmina na tentativa,
ou melhor, na conquista atual do sargento. O desvirginar é, para Beauvoir (2009, p. 483), “[...]
uma violência que a faz passar de moça para mulher [...]. Essa defloração não é o fim
harmônico de uma evolução contínua, é a ruptura ab-rupta com o passado, o início de um
novo ciclo”. Ainda mais quando se trata de Maria, moça protestante, que lutou, ou ao menos
resistiu o quanto pode, aos encantos de seu noivo.
Considero pertinente uma breve reflexão sobre o início da citação acima de Beauvoir.
O homem já é “homem”, quando criança é um “rapazinho”, uma miniatura do que será em
alguns anos, paradoxalmente, a menina vira moça (mocinha) quando ocorre a menarca, e esta,
por sua vez, para virar mulher precisa que o homem lhe tire algo, no caso, a virgindade. Nessa
36
concepção, a mulher precisa do homem para tornar-se mulher! O próprio léxico, segundo
Maria Emília Silva (2006a), dessas expressões marca o valor androcêntrico e misógino do
social. Enfim, minha proposta neste estudo não é argumentar a relação desigual entre o
homem e a mulher, mas considero interessante ponderar acerca deste assunto, afinal, a
identidade se constrói também no social, que até hoje, fora exceções, é androcêntrico,
patriarcal e excludente.
Sobre essa ideia de que a mulher virgem não conhece o desejo sexual, Beauvoir (2009,
p. 486) acredita que “essa lenda evidencia mais uma vez a vontade de domínio do homem que
deseja que sua companheira nada tenha de autônomo, nem sequer o desejo que ela tem dele”.
Em oposição, o sargento Marinho crê que:
[...] a mulher é sobretudo uma fornicadora instintiva, a pretexto de aparentemente se
juntar ao homem para biblicamente procriar. [...] sua noiva, de certo como qualquer
outra mulher, era também um ser de fácil e pronta entrega, dependendo apenas do
homem que, como pastor à sua ovelha, soubesse convenientemente apascentá-la. Ou
torná-la dócil à vontade dele (A prostituta, p. 51).
Essa animalização feminina feita pelo sargento Marinho é ratificada ao afirmar que a
mulher é a fêmea mais sem-vergonha, comparada a animais que só cruzam no cio, com a
finalidade de procriar. Essa hiper-sexualização é o oposto da dessexualização da mulher,
importante argumento que contribuiu para o mito de sua inferioridade, a qual acredita que ela
seria menos sensível fisicamente que o sexo masculino, comprovando assim seu caráter
primitivo. Os positivistas diminuíam a mulher, a partir dessas lendas, até anulá-la (RAGO,
2008).
É comum que a primeira experiência sexual feminina seja como uma violação de si e
que o parceiro seja ríspido e brutal no coito. Simone de Beauvoir (2009, p. 495) afirma que
“[...] é extremamente freqüente [...] que a virgem seja tratada com aspereza por um amante
egoísta que procura sofregamente seu próprio prazer [...] chegando até a enfurecer-se se o
defloramento é difícil”. E essas palavras descrevem mimeticamente a primeira relação sexual
de Maria.
Considero pertinente reiterar que a protagonista vivenciou as primeiras décadas do
século passado, logo, na atualidade, a relação das mulheres com a virgindade vem se
modificando, bem como, em relação a sua sexualidade de uma forma geral. Antes, o hímen
era uma espécie de símbolo da pureza física e moral da mulher, sendo requisito essencial para
o matrimônio, enquanto no século XXI, o celibato pré-casamento não predomina no mundo
ocidental. A intensidade e fluidez das relações atuais favorecem a entrega sexual dos amantes,
sem culpa posterior e sem promessas de união civil ou religiosa (BAUMAN, 2004).
37
Na primeira relação sexual da protagonista com Marinho, sua dor (tanto física quanto
moral) é silenciada pela ideia de que o que eles estavam fazendo era de direito do seu noivo,
portanto, ela deveria permitir o coito sem pestanejar, nem queixar-se. Ocorre que, muitas
vezes, “[...] é o homem, principalmente quando a mulher é noviça, que escolhe as posições
amorosas, que decide a duração do coito e sua frequência. Ela sente-se instrumento: toda a
liberdade pertence ao outro” (BEAUVOIR, 2009, p. 498). E, dessa forma, no romance, é o
deflorador quem domina o ato sexual:
Foi penetrando-a aos poucos, numa plenitude de domínio e pose. Ela sentia doer,
mas reprimia como poderia os gemidos da dor que sentia, e que calava; preferia
submeter-se com determinação e coragem àquilo que lhe parecia um sacrifício de amor, a interrompê-lo por fraqueza ou medo (A prostituta, p. 57-8).
Assim como a protagonista, “[...] muitas jovens não conhecem nenhuma defesa contra
as ameaças da gravidez e sentem de maneira angustiada que sua sorte depende da boa vontade
do homem a quem se entregam” (BEAUVOIR, 2009, p. 501). Como Maria estava na entrega
de algo novo, em que seu “pastor” dava as direções, essa não era a sua preocupação naquele
momento, mas sim, suportar ao máximo aquele sacrifício. Para demarcar a sua posse, sargento
Marinho possui Maria duas vezes seguidas.
Arrependimento. Essa é a palavra-chave das páginas seguintes do romance.
Arrependimento de ter se entregado “tão facilmente”, arrependimento de ter “pecado”.
Afinal, Maria era uma moça religiosa que frequentava o culto e vivia sobre os preceitos da
palavra de Deus. A Igreja exerce um papel tão marcante na constituição da identidade quanto
qualquer instituição, a exemplo da família. A religião é, assim, marcada por “uma moral
familiarista, completamente dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma
da inata inferioridade das mulheres” (BOURDIEU, 2010, p. 103). Logo, era reservado à
mulher um papel de coadjuvante no lar.
A Igreja regulou o comportamento feminino negando-lhe “o acesso ao sacerdócio, [...]
obrigou outra vez a mulher a cobrir a cabeça como símbolo de submissão e fez da virgindade
e da pureza da mulher o grande estandarte da santidade” (ARIAS, 2004, p. 74). Assim, o
defloramento, fora dos limites estipulados pela sociedade, era considerado um pecado grave e
irremediável. Dessa forma, a religião, segundo François Houtart (1994), é um instrumento de
controle da sexualidade, logo, um dos pontos nodais nessa discussão é a castidade. Esta é
posta como qualidade essencial por diferentes crenças e, aos seus fiéis, o ato sexual é apenas
permitido no interesse da regulação e da legitimação do casamento com fins de procriar.
Assim, para Neuma Aguiar (1997, p. 176), a Igreja:
38
procura eliminar, vetando socialmente, tudo o que considera como sendo orgia
sexual, ao enfatizar a abstinência como uma forma mística de alcançar a salvação.
Propõe, também, a evitação da emotividade que caracteriza o ato sexual, ao
recomendar sua substituição pelo ascetismo vigilante, autocontrole e planejamento
metódico da vida.
Para Maria, a sua entrega foi um deslize imperdoável. E essa aflição era como um
castigo para o seu pecado de consumar o ato sexual sem estar casada, como manda os
preceitos cristãos. A punição como forma de expurgar os pecados é uma crença comum em
muitas religiões. Então, de certa forma, a protagonista via a necessidade de sentir-se
arrependida por ter sido “fraca” e ter cometido o voluptuoso pecado carnal.
Beauvoir (2009, p. 490) referenda os sentimentos ambivalentes de Maria, quando
adverte: “A virgindade é tão valorizada em muitos meios que perdê-la fora do casamento
legítimo parece um verdadeiro desastre. A jovem que cede por fraqueza ou surpresa pensa que
se acha desonrada”. Destaco, mais uma vez, que esses valores referem-se, de forma
abrangente, até meados do século passado, visto que no século XXI, as jovens têm uma
relação diferente com seu corpo e sua sexualidade, permitindo-se, muitas vezes, viver fora do
celibato pré-nupcial. O narrador, por sua vez, ao descrever os sentimentos confusos de Maria,
também reafirma que ela deixava-se dominar por uma autorrecriminação a fim de punir-se
pelo seu delito.
Por um tempo, a protagonista se manteve a certa distância do noivo, cedendo apenas
quando o deixava acompanhá-la à missa. O sargento, aos poucos, reaproximou-se de Maria,
rompendo o mal-estar instaurado pelo defloramento. Então, ele dizia para si mesmo, como
uma forma de ratificar suas ideias e vangloriar seus atos: “ela me deu, eu comi ela, não tem
mais jeito, não adianta essa pose de merda dela, porque eu furei ela, ela „tá furada e furada
como „tá vai ter que entregar os pontos, mais dia menos dia. Já „tá com saudade de meu pau”
(A prostituta, p. 67).
É interessante destacar o esforço que o narrador tem em demarcar que as palavras de
baixo calão emitidas sobre a relação com Maria são do próprio sargento Marinho. Para isso, é
constantemente usada, ao lado das falas com conteúdo grosseiro do noivo, a expressão “foi a
palavra que usou” (A prostituta, p. 59) ou “em suas palavras” (A prostituta, p. 67) a fim de
distanciar o narrador delas. Wellington Santos (2003, p. 202) afirma que muitos narradores
“mascaram o interdito sexual, ora pelo ocultamento de cenas mais fortes, ora pelo velamento
do discurso [...]”. Logo, mesmo a obra tendo como título e enfoque tratar da vida de uma
mulher que decide se prostituir, o narrador, na maior parte do romance, usa a estratégia de
omitir as partes mais picantes das relações da protagonista ou usa o artifício de colocar as
39
palavras mais “obscenas” na fala dos personagens. Esse trabalho com a linguagem faz com
que a obra de Herberto não transpareça um cunho erótico.
Há uma diferença tênue entre o pornográfico, o erótico e o sensual. Os dois primeiros
estão relacionados ao explícito, enquanto o último aborda a sexualidade de forma velada,
deixando apenas marcas implícitas. A grande questão está na dificuldade de separar o erótico
do pornográfico. Em termos gerais, o erótico tem um teor “mais nobre”, enquanto o
pornográfico aproxima-se do vulgar, visando a excitação de uma terceira pessoa, como afirma
María Díaz-Benítez (2010) em sua obra sobre os bastidores do pornô brasileiro. Além disso,
para Luisa Coelho (2005), na apresentação de sua coletânea de contos, o erotismo não
necessariamente precisa estar ligado ao sexo, enquanto a pornografia sim. Entretanto, esses
conceitos se imbricam e se confundem na prática, visto que é a subjetividade de cada um que
dirá o que lhe é sensual, erótico ou pornográfico. Dessa forma, considero que os atos sexuais
relatados em A prostituta relacionam-se mais ao sensual, sobretudo, na fala do narrador, com
uma pitada de erótico, especialmente, na crueza de algumas expressões do sargento Marinho.
Octavio Paz (1994) acrescenta, nesta discussão, a relação entre o erotismo e o sexo.
Este último é considerado o primordial, parte da essência do ser humano, necessário para a
continuidade da espécie; o outro seria uma forma derivada do instinto sexual, todavia, não é
tão somente sexualidade animal. O erotismo é, então, uma forma de invenção e sua finalidade
é o prazer. Entretanto, ambos são regidos por regras sociais e morais que protegem a
sociedade de seus impulsos e excessos, demarcando a abstinência e a permissão de seus
desejos.
A relação sexual dos personagens de A prostituta não tem a finalidade de procriação,
mas do prazer masculino. Porém, Maria engravidou. A promessa de casamento pré-
defloração, ou após confirmação de uma gravidez indesejada, era uma tática muito comum até
o meio do século passado. O casamento como “solução” da gravidez servia para encobrir a
“infração social” de manter relações sexuais fora dos padrões estabelecidos.
Algumas regras sociais são veladas. Aprende-se como se deve portar e quem não
seguir os códigos morais é posto à margem da sociedade, apontado como diferente e
depreciado. Uma dessas normas, para a mulher, é que ela só se completará ao casar-se e ao
experimentar a maternidade. Essa visão, polêmica e questionável na contemporaneidade,
ainda persiste com novos contornos. A mulher que assume não querer ser mãe ou relaciona-se
sem desejar o casamento, subverte a lei implícita de que é necessário um homem para que ela
se legitime na sociedade e se “realize”.
40
Alguns estudiosos de gênero, mais otimistas, creem que a mulher alcançou uma
harmonia entre o trabalho, o lar e o prazer, como Lucia Santaella (2009, p. 167):
Embora eleja como meta essencial a emancipação e satisfação profissional,
intelectual e cultural, essa mulher híbrida não abre mão do amor, do
companheirismo, da busca de complementaridade, dos filhos e do conforto
doméstico e pessoal, equilibrando-se entre essas figurações, sem submeter-se às
tiranias do papel da senhora do lar.
Considero que há, neste pensamento, certa romantização do feminino, pois, quando é
colocada em tensões suas identidades profissional e maternal, por exemplo, possivelmente a
segunda se sobreporá à primeira, diferentemente do que, comumente, ocorre com o sexo
masculino. Portanto, entendo que essa tão almejada harmonia entre os múltiplos papéis
assumidos pela mulher ainda está por acontecer, uma vez que o legado dos ancestrais ainda
recobre, de forma consciente ou inconsciente, o imaginário feminino e as práticas culturais da
sociedade.
No romance, os papéis de cada sexo podem ser percebidos também na escolha dos
afazeres dos noivos Maria e Marinho. A divisão de “tarefas” pré-casamento mostra,
claramente, a visão patriarcal em que o homem é quem sustenta sua família. Era o futuro
marido quem reformaria o quarto dos fundos, cedido por Izidro, para a morada dos noivos,
deixando para Maria a escolha do enxoval. Os papéis são novamente marcados a partir da
concepção patriarcal de casal, cabendo ao homem o trabalho “braçal”, enquanto a mulher se
concentraria na compra da beleza das peças de um enxoval.
É muito comum, a partir do século XVIII, a associação da mulher ao belo
(LIPOVETSKY, 2000). Já diria Charles Baudelaire (1996, p. 54): “Tudo o que a mulher
adorna, tudo que serve para realçar sua beleza, faz parte dela própria”. Levando em
consideração que essa escrita foi realizada sob a ótica de mais de dois séculos atrás, destaco
como a beleza feminina é naturalizada e exaltada, impondo-a a seguir os padrões do belo de
cada época. De certa forma, até hoje, veem-se reflexos dessa postura, quando, por exemplo,
diversas mulheres usam saltos altíssimos, machucando-se, muitas vezes, em prol de estarem
mais vistosas. Não se pode desconsiderar, todavia, que a partir do final do século passado, a
sociedade está cobrando também que os homens se enquadrem em estereótipos da beleza
masculina.
No romance, a gravidez não era um “peso” para Maria se junto com ela viesse o
casamento. Afinal, por muito tempo, e, de certa forma, até hoje, a sociedade tem uma certa
resistência às mães solteiras, ainda que de forma dissimulada em certos segmentos da
sociedade. Com as mudanças sociais ocorridas desde meados do século passado, a
41
maternidade vem tomando novos contornos: casais de mulheres têm filhos por inseminação
artificial; há a “produção independente”, quando a mulher decide ter um filho, mas não um
marido; diversos relatos de gravidez em que o pai não reconhece a criança, por exemplo.
Alguns desses casos ainda sofrem preconceito por parte da sociedade que, apesar dos avanços,
mantém-se em uma ordem androcêntrica e patriarcal.
Maria, por fim, busca não ser mais coadjuvante de sua própria história, fato este
perceptível nas 90 páginas inicias do romance, em que a vida da protagonista se resume
basicamente à sua experiência com o sargento da polícia. A supressão ou o apagamento da
personalidade e das ações do protagonista, em favor de maior destaque no antagonista, ou
uma personagem secundária, é um recurso comum no romance, antes deste entrar no seu
clímax, quando, comumente, nessa situação, o personagem principal torna-se o centro da
obra. Do relacionamento com o sargento, destaco como ela acreditava que para ser feliz era
necessário um bom casamento, ou seja, sair dos mandos paternos para os de seu futuro
marido, passando por cima de suas vontades, fazendo o sacrifício de sempre satisfazê-lo. Essa
passividade é aprendida. E, assim como seus relacionamentos, a família tem um papel
importante na constituição de sua identidade, como abordo na próxima seção.
2.3 MARIA E OS CORUMBAS: (DES)CONSTRUINDO IDENTIDADES
Sendo a família uma das instâncias que mais influenciam na infância, ela tem um
papel formativo importante na constituição da identidade. Com a protagonista de A prostituta
não seria diferente. “Toda prática social é simbolicamente marcada. As identidades são
diversas e cambiantes, tanto nos contextos sociais nos quais elas são vividas quanto nos
sistemas simbólicos [...]” (WOODWARD, 2009, p. 33). Vindo de uma família rústica, com
valores morais bem demarcados, Maria aprendeu a portar-se como uma “moça de família”,
trabalhadora, mas com tempo de conhecer as prendas domésticas para que, quem sabe, um
futuro esposo possa lhe resgatar da casa paterna e levá-la para a sua, transferindo assim a
função de “protetor” do pai para o marido.
Nossa visão de mundo é, pois, parcial e limitada por nós mesmos, por nossos conhecimentos e por nossos dogmas. Agimos e movemo-nos não de acordo com a
realidade, mas de acordo com nossa imagem do mundo. Cada pessoa não constrói
esta imagem por si mesma, a partir da observação de alguns fatos concretos e reais, e
sim na maioria dos casos, a partir do que os outros lhe dizem a respeito desses fatos,
ou seja, a partir dos julgamentos que os demais emitem sobre a realidade
(MORENO, 1999, p. 13).
42
Assim, descobre-se quem se é, de certa forma, pelos olhos dos outros. Maria aprendeu
a ser operária, a se comportar como tal, aprendeu depois como ser noiva, com suas
atribuições, descobriu como ser prostituta, mãe etc. A vida é uma sucessão de descobertas,
mas essas não são inéditas, são novas para cada um que está vivenciando aquele momento,
mas alguém, ou algum grupo, antes já ditou quais os pré-requisitos para ser, por exemplo,
operária, noiva, prostituta e mãe. Maria apenas mesclou suas vivências ao que se esperava
dela em cada lugar social. Dessa forma, abordo, nas próximas linhas, a relação entre a família
e a construção identitária de Maria.
Na criação da trajetória da família da protagonista, Herberto se baseou em Os
Corumbas de Amando Fontes, entretanto, ele transcende as características expressas na obra
de Fontes. A família retratada em A prostituta, ou o que restou dela, é uma mescla de
elementos que Herberto buscou no romance de Fontes e o que ele imaginou que poderia
acontecer com os integrantes daquela família. No romance em estudo, da família Corumba, só
restava Izidro e a Maria. Do lado materno da protagonista, restava sua mãe e Ricardina, sua
madrinha que morava na Paraíba, e vem a ser uma figura muito importante na reconstrução de
sua vida.
De certo modo, a criação de A prostituta é a continuação da leitura do romance de
Amando Fontes pelo autor. Ele resume quem era aquela família na voz de um dos operários
que conversavam no início da obra, afirmando que seus primeiros integrantes trabalharam
naquela fábrica e que todas as moças acabaram “se perdendo” e entrando na prostituição. A
protagonista vinha a ser “prima longe” dessas jovens que foram dispensadas do ambiente
fabril e partiram para os bordéis. Em todos os casos das Corumbas, foi o defloramento fora do
matrimônio que as afastou do ambiente familiar e do ofício na indústria têxtil. A saída das
mulheres do lar para as fábricas, a fim de complementar a renda familiar, causou um grande
frisson na sociedade, em meados do século passado, a qual, para conter o abandono delas dos
limites da casa, agregou à figura das operárias a perdição sexual e a inferioridade moral
(LIPOVETSKY, 2000).
No Brasil, poucos são os registros das próprias operárias sobre a sua condição,
todavia, especialmente de 1890 até 193033
, período da grande concentração de mulheres no
33
Com a lei do ventre livre, no final do século XIX, e, posterior, desenvolvimento industrial, especialmente na
tecelagem, cresce a demanda por mão-de-obra a baixo custo, concentrada, preferencialmente, em crianças e
mulheres estrangeiras ou não. Por outro lado, a metalúrgica, a fábrica de calçados e o ramo mobiliário
privilegiam os homens da classe proletária. A desumana carga horária de aproximadamente 12 horas de trabalho,
o constante assédio dos patrões e contramestres e o preconceito da sociedade para com as operárias eram
entraves diários em suas vidas (RAGO, 2006). Esclareço que, embora a personagem Maria tenha sido também
43
universo fabril, inúmeros são os olhares para a sua figura: “Frágeis e infelizes para os
jornalistas, perigosas e „indesejáveis‟ para os patrões, passivas e inconscientes para os
militantes políticos, perdidas e „degeneradas‟ para os médicos e juristas” (RAGO, 2006, p.
579). Na maioria destes discursos, a mulher, quando já inserida no mercado de trabalho, é
vista ora subvertendo o “papel feminino”, ora sendo vitimizada por sua condição. Essas visões
servem para contê-las nos limites do ambiente privado.
O traço de autobiografia merece consideração na minha análise. Mesmo não sendo
este o enfoque, busco indagar sobre a veracidade que o autor agrega à história, tornando-a
mais viva aos olhos do leitor. Como já chamei atenção à orelha do livro, em que Herberto
afirma que essa obra “é uma liberação de lembranças obscuras de sua vida”, ele ainda deixa
marcas expressas pelo narrador de que aquela história realmente aconteceu. Seja na
necessidade de sempre demarcar os lugares onde os personagens andam com nome de ruas,
filmes e costumes que existiram, Herberto envolve seu último livro num contexto real. A
narração constrói um espetáculo com efeito de veracidade, em que o uso de detalhes
“irrelevantes” para a trama opera como marcadores de realidade (ARFUCH, 2010).
Os lapsos que as narrativas de vivências deixam são simulados (ou ocorreram), como
por exemplo, em: “O primeiro escurinho que em verdade conheceram foi, porém, o do
cinema, quatro, cinco dias (talvez três) depois do pedido de casamento” (A prostituta, p. 46).
O uso do “talvez” faz-me crer que o narrador tenta se aproximar do dia exato em que o casal
foi ao cinema, porém, não tinha certeza da data por uma lacuna de sua memória.
O narrador, por fim, ao buscar dissociar-se das prerrogativas do sargento Marinho
afirma: “Afinal há nesta história uma verdade a ser respeitada (ou preservada) em sua
informação objetiva. O que disse o sargento será dito aqui. Sempre a verdade, no interesse da
verdade. A verdade é o que é” (A prostituta, p. 53). Essa é uma forma dele se eximir do que
reproduz sobre as falas e os pensamentos do sargento, mas também uma forma de legitimar
seu discurso como a mais pura verdade. Ao menos, uma “verdade” ficcional.
Como quem tenta fugir do “destino” da prostituição, como seus parentes, Maria é
apresentada, nas páginas iniciais, como uma moça com honra e moral rígida, sob o olhar de
rapina de seu pai, Izidro. Ainda sobre o determinismo da obra, é afirmado que “[...] toda
operária está sujeita a virar puta, por necessidade [...] como puta ela pode aliás ganhar mais do
que na fábrica” (A prostituta, p. 12). O fator econômico é ressaltado pelos operários sobre a
uma operária, enfrentando, certamente, problemas similares, não me detenho nessa questão por não se
constituir o foco central do meu estudo.
44
entrada de uma mulher na prostituição, porém, para a saída da protagonista da tecelagem para
o mercado do prazer, o caminho foi muito mais complexo e a família teve um papel decisivo.
“A família constitui a sociedade primordial. É na interação que ocorre nas relações
familiares que se estrutura, desde a primeira infância, o arcabouço da personalidade”
(ZINANI, 2006, p. 85). Os papéis sociais dos Corumbas eram bem definidos: a filha, Maria,
era a moça esforçada, uma das melhores tecelãs da fábrica, inteligente, contudo, ingênua no
que tange à vida sentimental e sexual. Não buscava um marido, mas, em seu íntimo, ao
conhecer o sargento Marinho, sua felicidade estava sempre associada à ideia de um
casamento. Aprendera a ser uma “rainha do lar”, seguindo a cartilha patriarcal. Mesmo
fazendo parte da engrenagem econômica fabril, Maria se encontra ideologicamente
dependente e submissa do sexo masculino – seja pelo pai, seja pelo amante. Essa visão
conservadora do papel da mulher:
[...] faz da família patriarcal o princípio e modelo da ordem social como ordem
moral, fundamentada na preeminência absoluta dos homens em relação às mulheres,
dos adultos sobre as crianças e na identificação da moralidade com a força, da
coragem com o domínio do corpo, lugar de tentações e de desejos (BOURDIEU,
2010, p. 105).
À mãe da protagonista, por sua vez, não foi dado nome. Ela é uma das figuras que
complementam a obra, mas não tem um papel marcante, exceto pelo fato de Maria se
espelhar, de certa forma, nela para construir seu modelo de feminino. Durante a infância,
aprende-se com os pais, a partir de suas regras e permissões, como lidar nas mais diversas
situações cotidianas. A mãe, então, surge, normalmente, como a matriz do ser mulher para a
filha. Todavia, durante o percurso de vida, a criança conhece novas pessoas e passa por
instituições (Igreja, escola etc), que influenciam sua ideia sobre o feminino.
Em A prostituta, a mãe da protagonista era uma mulher singela que queria que sua
filha casasse e lhe desse netos, como manda a Bíblia. Era católica praticante e esperava que
Maria seguisse a “ordem da vida”, casando e procriando. Mas, apesar de almejar que ela
casasse, buscava “protegê-la” de um mau relacionamento, de forma tímida, quando, por
exemplo, Marinho veio lhe pedir para namorar sua filha e ela, a mãe, lembrou-lhe que ele era
o primeiro namorado. Essa era uma maneira de ratificar a sua pureza e também uma forma de
aviso de que se relacionar com Maria era “coisa séria”. Com certa astúcia que só a experiência
dá, aconselhou a filha a dissociar amor e confiança. Mal sabia a ingênua protagonista que
aquelas palavras iriam ecoar em sua vida, modificando-a. As palavras da mãe de Maria
45
comungam com os versos de Adélia Prado34
(1991, p. 181): “O amor usa o correio/ o correio
trapaceia/ a carta não chega,/ o amor fica sem saber se é ou não é”. Assim, a falta de
confiança atrelada ao amor dava origem a outro sentimento: o temor.
Destaco que o papel da mãe na construção da identidade da menina é uma condição
histórica que possuiu diversas nuances. Na civilização grega, era a mãe que ensinava o
caminho para a menina se tornar adulta: aprender os afazeres de ser mãe e esposa (LUZ,
2007). Na civilização romana, embora o patriarcalismo e a superioridade masculina se
sobrepusessem ao matriarcado, era valorizado o trabalho doméstico como uma forma de
mantê-las nas grades do lar e longe dos espaços públicos. Na Idade Média, outros contornos
surgem, as mulheres já figuravam na esfera pública, mesmo que timidamente, e assumiam as
rédeas da família em caso de viuvez. Assim, pouco a pouco, o papel feminino no lar vai
tomando outras formas, ainda que a figura principal continue sendo a do pai.
Além disso, “a relação com a mãe e a relação com o pai são construções imaginárias.
Mas elas produzem todos os efeitos que levam uma mulher a situar-se sexualmente [e
socialmente] de forma tão diversa dos homens”, segundo Eliana Calligaris (2006, p. 18).
Dessa forma, a família cria expectativas diferentes para membros de cada sexo. Para as
mulheres, é esperado que elas casem, tenham filhos e sejam femininas, no sentido de possuir
características estereotipadas do sexo feminino: sensíveis e obedientes. Para os homens, a
expectativa gira em torno de que eles sejam bons provedores do lar a partir de um emprego e
que adquiram as qualidades dita do sexo masculino: racionais e dominantes.
A função reprodutora da mulher agregou-lhe traços de fragilidade, justificando
também sua permanência no espaço privado durante muitos séculos. Todavia, com o
desenvolvimento econômico mundial, as mulheres passaram a entrar no mercado de trabalho
e a ingressar na educação formal, assumindo diferentes funções e ratificando que poderia
gerar um filho e também ter uma vida para além do espaço familiar. É óbvio que ainda restam
muitos vestígios das primeiras percepções sobre a mulher, em especial, o papel que a mãe
deve desempenhar na criação de suas filhas.
Freud (2006)35
abordou essa questão apontando uma diferenciação na formação de
ambos os sexos. Assim, ele retoma a ideia de que a mulher, por não possuir um falo36
34
Poema intitulado Corridinho. Cf. referência completa ao final do trabalho. 35
Este artigo é um esboço de alguns pensamentos de Freud referente ao comportamento da menina, tendo em
vista a ausência de análises do feminino até então pelos seus estudos. Cf. referência completa ao final do
trabalho. 36
Segundo Gary Vandenbos (2010, p. 408), o falo é o “pênis ou um objeto que lembra a forma do pênis. Como
um objeto simbólico, ele frequentemente representa fertilidade ou potência”. Na infância, a criança acredita que
todos os seres humanos são dotados do falo, todavia, ao se deparar com a realidade biológica, a menina encara a
46
(representante simbólico da “superioridade” masculina), recorre a três possíveis saídas para a
construção da sua feminilidade: busca preencher essa ausência ora masculinizando-se, ora
expressando ciúmes por outras crianças, sentindo-se inferior; ora, por fim, no afastamento da
mãe, que seria a responsável desta castração feminina e a aproximação com a figura paterna.
Neste último caso, a mulher substitui o desejo de possuir o falo por ter um filho, feminizando-
se. Assim, as crianças se identificariam com o genitor do mesmo sexo, mas elegeriam o
representante do sexo oposto como objeto amoroso.
A sociologia, por sua vez, aponta, segundo Fernanda Costa e Adriane Antoniazzi
(1999), que a identificação da menina com a mãe se dá por meio da imitação de gestos e
gostos. Os comportamentos são moldados através de gratificações materiais e emocionais
quando a criança assume uma posição ensinada como correta; e também através de retaliações
quando são refutados ou ignorados os ensinamentos. Assim, a família, bem como a sociedade
de uma forma geral, cria expectativas para o comportamento das crianças e as ensina como
devem agir e pensar a partir destas idealizações.
Cabe à família “o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas;
é na família que se impõem a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da
representação legítima dessa divisão [...]” (BOURDIEU, 2010, p. 103). Logo, para a mãe da
protagonista, fazia parte do seu ofício materno transmitir os recados do noivo à filha,
encaminhá-la para um bom casamento, ensiná-la a comportar-se como uma esposa dedicada e
submissa, seguindo seu caminho, afinal, a moça que demorasse muito no noivado poderia
ficar “falada” – o casamento era, então, a finalidade, não um meio de ser feliz. Antes de mãe,
se considerava esposa, e este era o papel que prevalecia mesmo quando os dois locais sociais
entraram em conflito.
Segundo Josênia Vieira (2010), essa divisão dos papéis assumidos pelos pais na
criação dos filhos reflete os valores que regem aquela instituição familiar. Na família
tradicional, cabe à mãe educar os filhos, enquanto o pai é o responsável principal pelo
sustento financeiro do lar. Referindo-se às famílias de até os anos 50 do século XX,
Lipovetsky (2000, p. 245) afirma que: “A distribuição dos papéis é nítida e exclusiva: apenas
a mulher se dedica às tarefas domésticas, a tal ponto é desonroso para o marido cuidar do
sua ausência como uma castração. Ela passa então a culpar a figura materna por essa falta, visto que a mãe
também seria um ser castrado. Para suprir essa ausência, a filha, por sua vez, aproxima-se do pai, “de quem
deseja obter um pênis sob a forma de filho. O Complexo de castração anuncia-se [...], na menina, como inveja do
pênis (Penisneid), provocando sua entrada na dialética edipiana”, segundo Alejandro Viviani (2011, p. 2).
47
bebê ou ocupar-se da casa”. Dessa forma, caberia à mãe da protagonista ensiná-la a ser uma
trabalhadora exemplar, uma filha obediente e uma mulher recatada, à espera de um marido.
O pai da protagonista, Izidro, por sua vez, era um homem rústico, com sua rispidez de
sertanejo latente, mas que, em relação a sua filha, esperava encontrar-lhe um “sucessor”,
alguém que a guiasse como manda os preceitos religiosos da família. A figura de oficial do
sargento Marinho, para o pai, demarcava não apenas uma profissão, mas uma posição social.
Exemplo disso, num tom cômico, é quando, ao ver um homem fardado em casa, Izidro
pergunta o que fez de errado, já que o policial era uma autoridade. Todavia, o sargento queria
“apenas” pedir para namorar a sua filha. Uma honra para ele, porém, o pai não demora em
demonstrar que aquela era uma família “de respeito”, demarcando, logo em seguida, que o
namoro é o primeiro passo para o casamento. O diálogo entre Izidro e Marinho ilustra uma
característica marcante nas famílias patriarcais: a passagem dos cuidados paternos para os do
(futuro) marido.
Faz parte dos valores patriarcais a dominação masculina em relação às mulheres. A
elas são incutidas a ciência vitoriana em que acredita que seu espaço “natural” se limita às
paredes do lar; sua vocação é a maternidade; e que sua sexualidade não deve ser desenvolvida
(RAGO, 2008). A identidade feminina, nesse sentido, se resume pelas funções de mãe e de
esposa. Qualquer transgressão deveria ser punida com a depreciação e marginalização, a fim
de dar “o exemplo” para as outras. Por muitos séculos, perdurou esse modelo familiar. Hoje, a
sociedade está no “olho do furacão” das mudanças sociais, em que as matrizes passam a ser
questionadas e não há mais uma cartilha de como ser mulher, quais os papéis deve assumir ou
quais escolhas devem ser feitas. Na obra em estudo, entretanto, os lugares femininos são
fortemente demarcados tanto pelas regras paternas, quanto ratificadas pelos ensinamentos
maternos.
O pai buscava manter o controle da família, uma forma de assegurar o bem-estar de
seus integrantes. Para tanto, proibiu a ida dos enamorados ao cinema: “Cinema só depois do
noivado” (A prostituta, p. 41). Marinho bem sabia que o noivado possibilitava gradações na
intimidade do casal, visto que estaria à porta do casamento, facilitando, assim, a iniciação da
jovem. O escuro do cinema e as histórias de amor poderiam suscitar sentimentos e desejos na
donzela. Marinho aceitou a exigência de Izidro. Todos agiram com muita felicidade, era a
última Corumba “fugindo” do destino lascivo da prostituição.
Após certo período, depois de comunicar o futuro casamento, Maria descobre a fuga
do noivo e conta para a sua mãe. Calligaris (2006, p. 23) afirma que parece “que as mães,
sabedoras do que significa ser mulher, tentam diminuir as perdas de suas filhas mulheres”.
48
Assim, é comum a matriarca destacar que faz parte das vivências femininas sofrer certas
desilusões, ultrapassar obstáculos e resistir tentações a fim de conseguir, ou manter, o que a
legitimará socialmente: o casamento.
A concepção do papel social da mulher para a mãe de Maria reflete em suas práticas:
Mas, de qualquer modo, o papel do pai e da mãe ou de outros membros da família
na construção social da identidade do sujeito pode provocar impactos profundos não
só na programação mental, como também na desconstrução de conceitos e de
práticas sociais de comportamento. [...] os pais são os primeiros responsáveis pela
definição de modelos identitários, assim como pela reprodução cultural de valores e
de princípios morais e éticos e também sexuais de cada sujeito (VIEIRA, 2010).
Dessa forma, o comportamento dos genitores, enquanto casal, afeta e orienta a
expectativa de relacionamentos futuros de seus filhos, ora com a finalidade de imitá-lo, ora na
busca de não cometer os mesmos “erros”. Assim, como a mãe da protagonista aceitava viver
sobre os mandos de seu marido, Maria aprendera que precisava de um homem para que se
realize enquanto mulher.
Para o pai, a fuga do noivo era um desdouro, uma falta de hombridade. Marinho lhe
devia satisfações, por isso, buscou até na delegacia apoio para encontrar o rapaz, entretanto,
em vão. Nem imaginava Izidro o tamanho das consequências que Marinho deixara. Instaura-
se, então, uma grande frustração na protagonista, visto que aprendeu que precisava casar para
realizar-se. Ela estava à beira da sua realização enquanto mulher que vive sob a ordem
patriarcal e seu sonho foi cerceado pela fuga do seu amante. Seu desejo ilustra como é
necessária a comunhão com um homem para que a mulher possa ser aceita socialmente.
Afinal, é só depois do matrimônio que é benquista a realização do ato sexual pelas mulheres,
com fins de procriação. Além disso, carregar um filho de noivo fugido traria para si e para a
criança grandes problemas dentro e fora da sua própria família. Maria sabia que seus pais não
aprovariam seus atos passados. O defloramento, então, era razão de desonra e, agora,
carregava o troféu de sua fraqueza: o filho.
A civilização patriarcal destinou a mulher à castidade; reconhece-se mais ou menos
abertamente ao homem o direito de satisfazer seus desejos sexuais ao passo que a
mulher é confinada no casamento: para ela, o ato carnal, não sendo santificada pelo
código, pelo sacramento, é falta, queda, derrota, fraqueza; ela tem o dever de
defender sua virtude, sua honra; se “cede”, se “cai”, suscita o desprezo [...]
(BEAUVOIR, 2009, p. 484).
Apesar de passado mais de meio século desta escrita de Simone de Beauvoir, este
fragmento ecoa nos tempos atuais a partir dos valores sócio-culturais herdados. Por um lado,
tem-se uma moral permissiva para cenas de sexo nos mais variados tipos de mídia e a
virgindade, muitas vezes, é motivo de chacota entre os adolescentes. Por outro lado, para a
49
mulher, a relação sexual é motivo de retaliação, ou, ao menos, discriminação, quando feito
com múltiplos parceiros, por exemplo, fato que, quando acontecido com um homem, é motivo
de orgulho e virilidade, não de fraqueza.
Maria acreditava não poder mais frequentar os mesmos ambientes de antes. O que
pensariam dela? A preocupação inicial da protagonista, assim, é com as aparências que aquele
trauma lhe deixaria. É notório que na convivência social há uma necessidade de cada membro
ser aceito por sua confraria, por isso, muitas vezes, encobrem-se e mascaram-se as atitudes
tomadas fora do padrão ditado por cada comunidade, a fim de continuar identificando-se e
sendo identificado por ela.
Além disso, a protagonista se reconfortou na Igreja, “Já que não há homem de palavra,
vou buscar na igreja o consolo da palavra de Cristo” (A prostituta, p. 89). A substituição do
amor carnal pelo amor divino é recorrente em casos de desilusão do primeiro. “O amor foi
apontado à mulher como sua suprema vocação [...] se as circunstâncias lhe proíbem o amor
humano, se é desiludida ou exigente, é em Deus que ela escolherá adorar a divindade”
(BEAUVOR, 2009, p. 867). Assim, na religião, em seu novo emprego e nos crochês que fazia
para passar o tempo, a protagonista encontra consolo de parte de seus problemas, o que havia
de mais grave ainda não havia sido resolvido, não havia solução, ou melhor, só havia uma:
contar sobre sua gravidez. Sendo assim, ela revela para a mãe:
Quero que meu filho nasça e viva, com a graça de Deus. Sei que outras moças, na
minha situação, recorrem ao aborto para se salvarem. Fazem isso por medo, levadas
ao desespero pelo medo. Medo dos pais, medo dos conhecidos, medo do que possam
dizer delas, da vergonha delas. Mas isso eu não vou fazer, doa a quem doer. Não vou
esconder com o aborto o filho do meu erro (A prostituta, p. 105).
O aborto não era cogitado pela protagonista, ainda mais com as ideias religiosas que a
guiavam, na maioria das vezes. Entretanto, a indignação da mãe converte-se ao pensar que
aquele que Maria carregava em seu vente era seu neto.
Assim como é preciso ser compreendido, é também necessário compreender,
estabelecendo as trocas necessárias para que se construa um bom relacionamento na
família, ainda que haja profundas diferenças individuais. A comunicação adquire,
assim, status de ferramenta básica para a organização do universo familiar (ZINANI,
2006, p. 88).
A comunicação, entretanto, não é o forte da família Corumba. O que realmente valia
era a decisão do patriarca, fato perceptível na expulsão da protagonista do seio familiar.
Destaco, assim, que “[...] cabe à família, portanto, grande parte da tarefa de construir a
identidade feminina. [...]. A sua identidade reflete as cores da sociedade contemporânea com
suas qualidades, erros, falhas e fragilidades” (VIEIRA, 2010). Para a mãe da protagonista,
50
quando seus lugares sociais entravam em conflito, ela enquanto mãe e ela enquanto esposa,
prevaleceria seu papel de mulher submissa aos mandos do esposo.
O conflito existente no imaginário da mulher se articula, em especial, pela contradição
entre os ensinamentos fraterno-social e o desejo íntimo-pessoal. Ela, então, aprende, como
afirma Cordeiro (1985), na crônica homônima a este estudo, que:
[...] ser mulher é expressar-se com recato. Que o pudor e a continência a um homem
de suas emoções é o que prevalece. Que a dignidade se inscreve pela obediência a
um homem que a sustentará [...] que seu desejo é o desejo daqueles que a tornaram mãe e mulher.
Tensões entre identidades diversas são constantes na vida do ser humano. Dessa
forma, prioridades são designadas e posturas são assumidas a partir de negociações entre os
sentimentos internos e a situação externa que se instala. Assim, com uma maleta de roupas na
mão, suas parcas economias e uma grande bagagem de contradições com mágoas, Maria parte
de trem em busca de uma nova vida.
51
3 ENTRE AS CARTAS E O VESTIDO DE SOIRÉE VERMELHO: IDENTIDADES
FLUTUANTES DA PROSTITUTA
3.1 PRIMEIROS PASSOS DE UMA “NOVA” VIDA
Ricardina, madrinha, similar às de conto de fadas, de Maria, seja por abrigá-la quando
ela fora expulsa de sua casa em Estância, no estado de Sergipe, seja por dar-lhe um ofício, ou
por cuidar da sua filha enquanto ela prostituiu-se em Salvador, aparece na obra como uma
personagem chave no momento de transição da “cinderela da fábrica de tecidos” (A
prostituta, p. 200). A estadia na sua casa em Campina Grande na Paraíba, inicialmente um
porto para a última Corumba, posteriormente, foi o lugar em que criou uma pequena, mas
importante rede social, crucial para o destino da protagonista.
A mudança de ares foi o primeiro passo para a modificação na forma de repensar os
conceitos e práticas sociais e morais da protagonista. A viagem em si tem disso. Ela causa
uma excitação de encontrar o novo e, no caso de uma viagem de mudança, essa sensação se
potencializa. Ainda mais quando não se é mais bem-vinda na casa familiar e sua terra natal a
faz lembrar os infortúnios vivenciados graças a uma desilusão amorosa e a sua “fraqueza”.
Durante a viagem de trem à casa da madrinha, prevalecia a sensação de renovação. Era como
se ela, sentada em sua poltrona, estivesse de costas para o passado e seus infortúnios, e de
frente para o futuro e sua esperança.
Considero oportuno fazer uma analogia entre o enredo da obra aqui estudada com
outras manifestações literárias e cinematográficas protagonizadas por prostitutas. Capitu,
nome inspirado na personagem de Machado de Assis, mas que deu vida à prostituta,
interpretada por Giovanna Antonelli, na telenovela Laços de Família (2000) da Rede Globo,
assemelha-se com a Maria de A prostituta. Assim como no romance, ambas se tornaram mães
solteiras e viam na prostituição uma forma passageira de ganhar e economizar dinheiro a fim
de dar uma vida melhor para seus filhos, frutos de relacionamentos anteriores fracassados, em
que os homens (pais de seus filhos) as abandonam durante a gravidez, sendo os antagonistas.
Assim como nessas narrativas, no longa-metragem hollywoodiano “Uma linda
mulher” (1990)37
, protagonizado pela atriz Júlia Robert, o homem funciona como um
37
Os elementos simbólicos da imagem do pôster do filme americano demarcam como são representados os dois
personagens: a protagonista e prostituta, Vivian Ward, e o cliente que muda sua trajetória, Edward Lewis. No
cartaz, ele está vestido formalmente, indicando seu status, de terno e gravata, a qual está sendo puxada por ela,
como se o guiasse e Edward, por sua vez, permite-se (as mãos dele no bolso indicam pouca resistência). O
figurino da protagonista é provocante, curto, justo e apelativo. A bota de salto alto e cano longo preta brilhante
52
“salvador moral” das personagens, tirando-as do “submundo” da prostituição e dando-lhes
visibilidade social a partir do casamento legitimador, formando uma família “tradicional”;
exceto no caso do filme, em que eles se unem apenas por amor. Esses homens se modelam
com diferentes contornos: seja como amigo no livro de Herberto (no caso, Estêvão), seja
como cliente, no filme (Edward Lewis, interpretado por Richard Gere), seja como um ex-
namorado na novela (o personagem Fred, interpretado por Luigi Baricelli).
Há também uma aproximação da narrativa de Herberto com os contos de fadas. Em
ambos, as protagonistas ultrapassam diversos obstáculos que são recompensados pelo
casamento com o príncipe ao final das histórias. Ao longo da narrativa, são as princesas, ou as
pretendentes a princesa, as personagens mais fortes, capazes de superar as adversidades, como
Maria que reconstruiu sua vida só com o apoio da madrinha na Paraíba e com os amigos da
Pensão Andaraí em Salvador. Essa estrutura se aproxima a dos contos de fadas, como em
“Cinderela” (PERRAULT, 1994), em que a protagonista, a despeito dos maus-tratos da
madrasta e da tentativa de impedi-la de ir à festa, realiza seu desejo de ir ao baile no reino,
com a ajuda do elemento fantástico, simbolizado pela fada madrinha.
Apesar de conseguirem ultrapassar os percalços, algo falta para o desfecho de suas
histórias. A narrativa de Cinderela não acaba ao ter realizado seu desejo de ir ao baile, nem a
de Maria encerra ao ter conseguido economizar dinheiro, afinal, esse era seu objetivo ao ir à
capital baiana. É preciso a entrada do homem em suas histórias e a celebração do casamento
para que haja um final feliz. Isso é o que Colette Dowling (1981, p. 35) chama de complexo
de cinderela: “uma rede de atitudes e temores profundamente reprimidos que retém as
mulheres numa espécie de penumbra e as impede de utilizar plenamente seu intelecto e sua
criatividade”. Dessa forma, é preciso a aparição de outra pessoa para que o sexo feminino se
complete.
Este complexo se revela na aceitação, em muitos casos, das mulheres em serem
submissas. A posição de esposa cuidada pelo marido e segura pelos laços matrimoniais é mais
tranquila que a de mãe solteira, por exemplo. As expectativas sociais incutem na menina que
elas são frágeis e doces, merecendo a proteção masculina contra os percalços da vida e o
sustento emocional e financeiro.
Refletindo sobre a relação financeira da mulher solteira, casada e a viúva até meados
do século passado, observo que a grande diferença entre elas é a relação com a renda familiar.
dá a ideia de que ela tem o poder, bem como sua posição corporal. Verifico, então, que essa imagem reflete uma
concepção romantizada e estereotipada da prostituta. Na versão brasileira, a imagem é editada, focalizando mais
o rosto do que os corpos dos personagens. Cf. apêndice B - Ficha técnica, cartaz original e cartaz versão em
português do filme.
53
A solteira era, normalmente, sustentada pelo patriarca, quando ela trabalhava, essa era uma
atividade considerada secundária; a casada deveria manter-se na administração da casa e
educação dos filhos, sendo assim, sustentada pelo esposo. A viúva, por sua vez, tinha a
possibilidade de custear seus gastos ou mesmo trabalhar fora do lar se assim o desejasse.
Nesse sentido, “só a viúva goza então de uma autonomia econômica” (BEAUVOIR, 2009, p.
549). A renda de Ricardina vinha de seu trabalho como costureira e do dinheiro do aluguel de
duas casas deixadas como herança de seu finado marido.
Assumindo o mesmo ofício da madrinha, Maria costura, durante seu período na
Paraíba, roupas por encomenda, tecendo também um novo percurso de vida. Lembra a
fiandeira, figura recorrente na mitologia literária (BRUNEL, 2005f), que representa o
desenrolar da existência, com suas tramas e pontos. Ela possui o poder de começar e de
interromper seu trabalho, criando mundos e desfazendo-os ao seu bel prazer, como em A
moça tecelã de Marina Colassanti (2010)38
. Sendo assim, a protagonista costura os retalhos de
si, dando forma a uma outra Maria, em especial, com as mudanças originadas pela sua
gravidez.
A maternidade só é respeitada pela sociedade quando a mulher é casada, enquanto a
mãe solteira é renegada e depreciada. Assim, a reclusão da protagonista fora ocasionada seja
pela vergonha de carregar visivelmente a prova de seu pecado, seja por não precisar responder
perguntas que ocorreriam como quem era o pai e onde ele estava, já que não se via homem na
casa de Ricardina.
Com mais uma integrante, os ares da casa mudou:
A casa antes e por anos e anos silenciosa, em que se movia como uma sombra
solitária e costureira, no pequeno mundo de suas operosas costuras, onde de cada
canto espreitava como de um espelho pálido a saudade do marido morto, a casa,
antes e por anos impregnada de uma névoa de tristeza, mudou completamente com a
nova e pequena moradora (A prostituta, p. 124).
As mudanças físicas também ocorreram na protagonista. O corpo se arredondou,
tomando forma de mulher, os olhos negros tornaram-se mais brilhantes, os cabelos cheios que
caíam sobre os ombros realçavam o moreno-mate de sua pele. Uma mulher linda, essa é a
descrição de Maria desde o início da obra, mas agora ela tinha um ar menos juvenil. “O corpo
feminino, ou a roupagem desse buraco, é erotizado pedaço a pedaço, fatia a fatia, formando
38
O conto de Marina Colasanti recorre à metáfora da fiandeira enquanto criadora de seu próprio mundo através
do tear. Um dia, ao sentir-se solitária, resolve tecer a imagem de um marido, este quando aparece, sufoca-a com
exigências ambiciosas, obrigando-lhe a tecer dias e noites. Ao final da história, a moça desfaz o desenho de seu
companheiro e continua a tecer o que lhe convém: o amanhecer.
54
um conjunto em que todo ele é erótico e erotizável” (CALLIGARIS, 2006, p. 24), fato este
observado nas mudanças corporais de Maria.
O corpo da mulher é tido como um “corpo-para-o-outro”, em que há uma excessiva
preocupação em seu esculpir com a finalidade de serem vistas. Nessa perspectiva, por haver
“a necessidade do olhar para se constituírem, elas estão continuamente orientadas em sua
prática pela avaliação antecipada do apreço que sua aparência corporal e sua maneira de
portar o corpo e exibi-lo poderão receber” (BOURDIEU, 2010, p. 83). Sendo assim, a feição
feminina adquire um valor simbólico nas relações sociais. Ao traçar o percurso histórico da
relação entre mulher e beleza, Lipovetsky (2000) revela que a aproximação entre essas duas
categorias é uma construção social, demarcando suas nuances: a mulher-mãe, a mulher-
sacralizada, a mulher-erotizada, a multi-mulher.
A aparição de Estêvão Mendes se dá de maneira inesperada e de difícil credibilidade.
Sem mais nem menos, bate a porta de Ricardina um rapaz desconhecido, oferecendo-lhes
amizade por mera simpatia sentida ao ver Maria Corumba na janela com a pequena Dina.
Situação essa difícil da protagonista (e o leitor também) aceitar passivamente, especialmente
por ela sentir-se magoada por todos os homens, generalizando sua frustração com o ex-noivo
para o sexo masculino como um todo.
Sem querer se envolver com ninguém, Maria manteve-se na rotina entre cuidar de um
roseiral, trabalhar nas costuras e cuidar de sua filha. Mas em seu silêncio, ela guardava um
sonho, viajar para a capital baiana que conhecia apenas de fotografias e pelas músicas tocadas
no rádio. Desejo que vem a se concretizar com objetivos específicos de entrar no meretrício e
em momento planejado, logo ao terminar de amamentar sua filha. É omitido esse seu desejo
durante quase metade da obra, aparecendo, assim, momentos antes de sua decisão de mudar-
se para Salvador. O autor de um romance dá, ao longo de sua escrita, pistas para que o leitor
compreenda o presente e preveja o futuro das personagens (TACCA, 1983). Ao demarcar o
anseio em conhecer a Bahia, o narrador intriga o leitor que especula a razão daquela
informação ter-lhe sido passada.
Após um tempo, Estêvão bate à porta da casa de Ricardina a fim de presentear Dina,
mesmo com a resistência de Maria. Destaco mais uma vez, a estratégia do autor de convencer
o leitor de que as histórias no livro retratadas poderiam, ao menos, ter acontecido, ao buscar
detalhar, não a data, mas o dia da semana (uma terça-feira) deste reencontro. Para Antonio
Candido (2009, p. 79), a “[...] noção de realidade se reforça pela descrição de pormenores, e
nós sabemos que, de fato, o detalhe sensível é um elemento poderoso de convicção”. Sua
recusa inicial para posterior aceitação do agrado pode ser analisada como parte de um jogo
55
entre a dama e o cavalheiro, em que a primeira deve permitir-se criar intimidade com outrem
gradativamente. No caso do romance em estudo, aceitar o presente era sinal de que a
protagonista estava cedendo a sua amargura com o sexo masculino.
Como Maria só queria namorar para casar, Estêvão conteve-se com sua amizade.
Logo, foi o rapaz o primeiro a saber dos planos dela: “Estêvão, vou ser mulher da vida, ou
prostituta, como muitos preferem dizer” (A prostituta, p. 154). De um polo para o outro, a
vida de Maria inverte-se como um jogo. De moça recatada que, apesar do anseio de manter-se
virginal até o casamento, cedera ao charme de seu noivo, ela torna-se uma mulher, uma mãe,
decidida em “fazer a vida” prostituindo-se, usando do antes temido sexo como fonte de renda.
Para justificar que essa decisão foi tomada racionalmente, Maria descreve seu plano: deixará a
Dina para Ricardina, que também é sua madrinha, cuidar; mandará todo mês uma quantia para
os gastos de sua filha por Artur Neves e manter-se-iam sempre em contato através de cartas.
É comum, quando uma mulher decide prostituir-se, deixar seus filhos com pessoas de
sua confiança, normalmente de sua família. Assim,
Uma vez nascido o filho, a [no caso de Maria, futura] prostituta confia sua guarda a
um parente [...]. De maneira geral, tenta criá-lo da melhor forma possível e procura
dar-lhe uma vida bem diferente da sua, procura dar-lhe tudo o que não teve. E é no
amor materno que muitas vezes está o caminho para sua libertação da
marginalidade: a projeção (RIBEIRO, 1980, p. 45).
Suas justificativas são bem claras: “De agora em diante [...] vou eu mesma cuidar de
minha vida. Sua amiga vai ganhar para si só o dinheiro dela, fazer o pé-de-meia dela, ser uma
mulher independente, que homem nenhum vai mais humilhar” (A prostituta, p. 153-4).
Assim, para Maria, tanto o fator financeiro, quanto o emocional (não querer ser humilhada)
influenciaram em sua decisão. “Autoreferir-se prostituta ou michê39
implica, por parte da
pessoa, a adoção de uma atitude identitária que estigmatizada e discriminada pela sociedade,
considera a pessoa do ângulo da atividade prostituindo [...]” (FÁBREGAS-MARTÍNEZ,
2000, p. 16), desconsiderando suas outras identidades.
Uma das justificativas em relação a sua entrada no meretrício é que na prostituição os
homens não poderiam humilhá-la. Tal posição pode ser pensada através de dois vieses. Um
pode ser creditado a certa ingenuidade de Maria em inferir que, ao manter relações sexuais
com estranhos, não haveria situações em que o cliente, por pagar pelo serviço, usa da
humilhação como fonte de prazer e de poder. Outro, um tanto mais romantizado, considera
39
A palavra michê na obra estudada refere-se ao pagamento por programa. Entretanto, essa expressão carrega
três sentidos, um que refere sobre o ato de prostituir-se (fazer michê), o pagamento (receber o michê) e outro que
define o profissional do sexo masculino (ele é michê).
56
que Maria realmente não seria humilhada, pois já estaria ciente de que seu papel no
relacionamento com cliente começava e terminava na cama, não criando esperanças de ilusões
românticas.
Independente de qual viés considerar o mais relevante para dar conta desse
sentimento, a necessidade ou a afã da personagem em manter o controle da situação, de seu
corpo e de seu sentimento é evidente. Maria adentra, então, em um espaço diferente dos
habituais, com seus códigos e ritos, em que a negociação de suas identidades e a reavaliação
de seus conceitos serão decisivas para essa nova fase de sua vida.
3.2 ENTRADA E ASCENSÃO NO MUNDO DO PRAZER: NAS TRILHAS DA
PROSTITUIÇÃO
A Bahia, desde os primeiros momentos de Maria na capital, é uma personificação de
seu estado paradoxal, entre o sagrado e o profano. Segundo o narrador, este estado brasileiro
era “um mundo à parte: no mistério lascivo de suas ruas e na religiosidade pagã e lírica de seu
povo” (A prostituta, p. 158). E assim também se mostrava Maria. Ela tinha um mistério em
sua aura, possivelmente pelas suas escolhas frente ao esperado, ela rompe com a expectativa
do leitor ao decidir de forma um tanto abrupta ser prostituta, deixar a filha com a madrinha, ir
à outra cidade. Maria emanava também um mistério lascivo, afinal, a ocupação que decidiu
ter em Salvador possui por si só a sexualidade latente. Por outro lado, a protagonista também
é representada de uma forma santificada, em especial ao olhar de Estêvão, ao declará-la quase
uma santa.
Mais uma vez, retomo a dicotomia da mulher, prefigurada ou de santa ou de puta,
como se não comportasse múltiplas possibilidades de ser. Se de um lado, as prostitutas são
demonizadas, consideradas impuras, pecadoras na sociedade a partir da Idade Média com a
propagação dos ideiais cristãos; por outro lado, há, por vezes, o olhar romantizado para a sua
figura, como é o caso de Estêvão, Claudius e até do narrador para com Maria. Para eles, a
honra dela é intocada, visto que suas atitudes têm sempre justificativas “puras”, como entrar
no meretrício para ter condições financeiras de sustentar a filha e não namorar com Estêvão
por não haver condições de casamento entre eles.
Ainda sobre a relação entre a Bahia e Maria Corumba, percebo que este enlace é
também marcado quando a protagonista se aborrecera com um de seus melhores clientes, na
manhã seguinte, a meteorologia acompanha seu humor: a Bahia marcada pelo seu calor e sol
57
irradiante amanheceu nublada. Coincidência? Bem, não existe coincidência na ficção. Tudo o
que o autor desvela ao leitor possui alguma razão. Caso não fosse necessário ou interessante
destacar o clima da cidade de Salvador no dia em que a protagonista amanheceu chateada, o
autor suprimiria essa informação. Entretanto, a metereologia corrobora com o estado
espiritual de Maria. O enredo comumente é mais econômico que a vida real, há a supressão do
que não convém, dos atos considerados naturais, como alimentar-se diariamente, nascimentos
e mortes, exceto quando imprescindível para a história (FORSTER, 2004). Assim, pude
perceber que a paisagem baiana acompanha o espírito de Maria.
Na escrita de um romance, o autor cria o cenário, o narrador, os personagens e o
enredo, desvelando e “lacunando” determinados aspectos da história. Herberto seleciona o
momento oportuno em revelar cada trecho da obra, é ele quem decide quando e quem deve se
manifestar: se é o narrador ou algum dos personagens, seja através do discurso direto ou
indireto. “A verdade „oral‟ de um personagem é uma verdade peneirada pelo narrador”
(TACCA, 1983, p. 126), pois, é ele quem abre espaço para o diálogo. E é desse conjunto de
escolhas do autor que nasce o texto do romance. Esse, por sua vez, é ressignificado a cada
leitura feita através do preenchimento das lacunas deixadas na obra, bem como, da
compreensão pessoal da linguagem da narrativa.
Em A prostituta, há um jogo entre os discursos direto, indireto e indireto-livre,
demarcando as aproximações e os afastamentos do narrador. O discurso direto, apesar de não
ser o predominante na obra, funciona como uma forma do narrador se afastar abrindo espaço
para a fala integral dos personagens. Dessa forma, destaca a presença do dialogismo e
proporciona credibilidade àquilo que foi dito, por ser inserida a voz da própria personagem. Já
no discurso indireto, o narrador conta, com suas palavras, o que fora dito pela personagem,
assim ele se aproxima do enredo e, consequentemente, do leitor, para tê-lo como cúmplice.
No discurso indireto-livre, tem-se um imbricamento de vozes narrativas. Confunde-se
a fala e/ou os pensamentos das personagens com os do narrador. É este último quem tem a
voz na narrativa, porém, contém palavras e expressões que só poderiam ser ditas pelo
personagem. Esse recurso demonstra que se trata de um narrador interessado na trajetória do
protagonista. Nesse sentido, Valéria Chiavegatto (1999, p. 111) conclui que as vozes são
utilizadas como “„instrumentos‟ de manipulação pelos sujeitos dos enunciados pois,
dependendo da finalidade com que forem empregadas, podem „instaurar realidades‟ que as
„vozes‟ incorporadas sequer imaginaram”.
A entrada nesse novo mundo era quase um paradoxo da pureza e timidez sexual da
protagonista descritas nas páginas iniciais do romance e sua nova ocupação: de costureira à
58
cortesã. Porém, estas duas imagens, a moça recatada e a meretriz, já passaram por diversas
representações na sociedade. Para se compreender as imagens atreladas à prostituta hoje, é
imprescindível voltar um pouco no tempo e analisar como ela era vista, observando os
processos socioculturais e históricos pelos quais a sociedade passou. Não pretendo aqui trazer
um mapeamento das representações da prostituição, mas sim, mostrar que as características
que se atribui à prostituta hoje é uma construção social e nem sempre foi assim.
No Egito antigo, na região da Mesopotâmia e na Grécia, a prostituição era um rito
comum entre as jovens na puberdade. As prostitutas, consideradas grandes sacerdotisas,
recebiam presentes em troca de favores sexuais. Na Grécia, entre 490-480 a.C., existia um
grupo de cortesãs, chamadas de hetairas, ou heteras, que exerciam grande poder político,
frequentavam reuniões com os intelectuais e eram extremamente respeitadas. Durante a Idade
Média, houve a tentativa de eliminar a prostituição, impulsionada principalmente por dois
fatores: um surto de doenças sexualmente transmissíveis e a moral cristã. Essa tentativa foi
intensificada com o puritanismo no século XVI que influenciava a política e os costumes da
sociedade (BASSERMANN, 1968).
Paris, na França, era considerada a capital da modernidade, especialmente entre o
século XVIII e início do XX. Assim, suas tradições e suas práticas eram copiadas por quem
gostaria de adquirir o status de moderno. Dessa forma, as imigrantes oriundas da França não
vinham para o Brasil apenas para trabalhar nas fábricas. As cortesãs francesas eram a
representação do mundo civilizado. Sobre isso, Margareth Rago (2008, p. 197) conclui que no
“momento histórico em que a burguesia e as camadas médias se deslumbravam com as
conquistas do progresso, o mundo da prostituição era vivenciado, no plano simbólico em sua
dimensão modernizante”. Elas, muito mais do que a realização sexual, eram procuradas pelos
“homens cultos” para aprender os costumes parisienses. Isso demonstra que a procura pelas
profissionais do sexo não se dá exclusivamente para a realização carnal, mas também a fim de
trocas culturais.
Nesse período, algumas mulheres deixavam de ser “apenas” donas de casa e passaram
a contribuir para a renda familiar através do trabalho. “O ideal igualitário, o descrédito dos
comportamentos machistas e a emancipação econômica da mulher tendem a construir um
novo modelo marcado pela autonomia feminina [...]” (LIPOVETSKY, 2000, p. 247). Não se
pode dizer, entretanto, que foi uma ruptura com o papel tradicional feminino. Sua principal
função ainda continuava a ser cuidar da casa, filhos e marido, porém, ela agregava também
uma atividade profissional, considerada secundária.
59
No caso de Maria Corumba, suas atribuições eram, no início da obra, ser a operária e a
filha obediente. A última palavra, porém, continuava a ser a do homem, seu pai – Izidro – por
ser o provedor principal no orçamento familiar. Sua atividade na fábrica era tida como um
complemento na renda. Entretanto, não se pode esquecer que a obra retrata o início do século
XX, em que “a entrada da mulher de várias classes sociais nas fábricas [...] ameaçava
subverter os códigos cristalizados de sociabilidade e de participação na vida social” (RAGO,
2008, p. 42). Todavia, como a maioria das mudanças na estrutura social, as operárias foram
revertidas de estereótipos morais e vistas depreciadamente pelo olhar implacável da
sociedade. Essa era uma forma de manter as mulheres longe do mercado de trabalho e dentro
do lar. Nessa perspectiva, o “trabalho das mulheres na fábrica é associado à licença sexual e à
degenerescência da família, é considerado degradante, contrário à vocação natural da mulher”
(LIPOVESTSKY, 2000, p. 205).
Atualizando a questão da operária, o longa-metragem Garotas do ABC – Aurélia
Schwarzenega (2003)40
ratifica alguns mitos que circulam sobre sua imagem. Além de
focalizar a representação das trabalhadoras enquanto susceptíveis à entrega sexual, o filme
acrescenta também a questão racial na figura de Aurélia, interpretada por Michelle Valle,
mulher, negra e pobre, portanto, triplamente marginalizada. Nas cenas finais, numa festa no
Clube Democrático, frequentado pelas operárias, fica clara a divisão simbólica dos grupos lá
reunidos: de um lado as moças direitas e do outro a “Ala Lilás”. Apesar de se separarem em
duas categorias, as jovens para casar e as meretrizes, segundo o personagem André, vivido
por Dionisio Neto, a maior distinção é que as primeiras não cobram para deitar-se e as outras
sim. Dessa forma, ele implicitamente afirma que todas elas estão predispostas ao sexo sem
compromisso.
A prostituta “foi recoberta com múltiplas imagens que lhe atribuíram características de
independência, liberdade e poder: figura de modernidade” (RAGO, 2008, p. 41, grifo da
autora). Ela seria a representação da realização feminina, da sua liberdade. Inserindo-se, nesse
mundo, a meretriz ganharia dinheiro comercializando seu corpo da forma que desejasse,
separando prazer de amor, o que não era cabível até meados do século XX e que, até hoje, em
algumas instituições ainda causa polêmica. Há, então, uma dicotomia na prostituição: ora
40
Tendo como cenário a zona operária de São Paulo, em São Bernardo, o filme narra a vida de algumas
operárias com suas singularidades: uma acaba de entrar na Fábrica Mazini; outra é apaixonada pelo patrão e se machuca facilmente para ter uma justificativa de vê-lo; outra é de menor, mas mesmo assim trabalha na
tecelagem; e a protagonista namora com Fábio, rapaz branco, integrante de um grupo neonazista, liderado por
Salesiano, interpretado por Selton Mello, dependente químico. A história gira em torno do dia-a-dia dessas
mulheres. O longa-metragem recebeu Prêmios por melhor ator coadjuvante (Ênio Gonçalves), atriz coadjuvante
(Vera Mancini) e Prêmio especial do júri para o argumento de Garotas do ABC, no 36º Festival de Brasília do
Cinema Brasileiro, 2003. Cf. apêndice C - Ficha técnica e o cartaz do filme.
60
vista como independência feminina e poder, ora encarada como aprisionamento de vítimas de
uma sociedade androcêntrica e determinista.
Não se pode perder de vista que a prostituta não precisa ser ou uma coisa ou outra. A
meretriz carrega, certamente, sua “parte” mulher, com seus anseios e seus percalços, sua
“parte” profissional, sua “parte” mãe, religiosa, dona de casa, dentre outros papéis sociais, a
depender do que a vida lhe acene. Essas tantas “porções” de uma mesma pessoa não são
imutáveis ao longo das vivências, mas, com o desenrolar de suas experiências, o indivíduo
ressignifica a compreensão dos papéis que deve seguir. Logo, desconsiderar esses variados
lugares sociais e culturais assumidos por quem trabalha na prostituição é uma forma de buscar
equivocadamente uma unidade em suas múltiplas identidades.
Há um duplo41
de si quando Maria decide ser prostituta. De um lado, existe ela
enquanto mãe solteira renegada pelo noivo e pela família, refugiada em outro estado na casa
da madrinha. Do outro lado, existe Maria Corumba, a prostituta que se “vingará” do que a
vida e, em especial os homens, fizeram da primeira. Saliento, então, que, segundo Beauvoir
(2009, p. 735), “a proximidade da família, a preocupação com a reputação impediram a
mulher de abraçar uma profissão geralmente desconsiderada; mas, perdida na cidade grande
[...] a idéia abstrata de „moralidade‟ não lhe opõe nenhum obstáculo”. Assim, fora do seu
estado natal, Maria decide prostituir-se, longe do olhar familiar.
A protagonista afirma que: “[...] a partir de então, e como se eu me desse a mim
mesma à luz, vai nascer em mim uma prostituta. Uma prostituta chamada Maria Corumba,
xará e vingadora minha” (A prostituta, p. 156). E nesse jogo do duplo de si, o narrador a
define como nascida da contradição. Mas, apesar desse conflito de quem realmente seria a
protagonista (ou quais as suas possíveis identidades), o narrador demonstra uma compaixão,
uma compreensão de suas decisões acima de qualquer questionamento. O “narrador fictício
[...] passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por vezes (ou sempre) com uma
ou outra das personagens, tornando-se onisciente etc” (ROSENFELD, 2009, p. 26). Desse
41
O mito do duplo se manifesta de diversas formas, seja no maniqueísmo das figuras-símbolos de muitas
religiões (Deus x diabo); seja no mito do Andrógino, de Platão (2009), com a cisão do ser híbrido e a busca
incessante por sua metade; seja no Gênesis, em que o homem, antes um, torna-se dois, a partir da retirada de sua
costela para criar Eva. O duplo, na literatura, pode surgir com a projeção de si em um outro, com o sósia, com o tempo (o velho e o novo), com o transformismo, com a relação entre vida e morte, realidade e idílio, dentre
outros. Até o século XVI, a unidade do ser humano era enfatizada, todavia, a partir do “término do século XVI, o
duplo começa a representar o heterogêneo, com a divisão do eu chegando à quebra da unidade (século XIX) e
permitindo até mesmo um fracionamento infinito (século XX)” (BRUNEL, 2005d, 264). Assim, para além do
binarismo, a identidade se constitui na pluralidade de identificações e papéis assumidos por um mesmo
indivíduo.
61
modo, a lógica para as escolhas de Maria é posta como honrosa, justificável, com toda
contradição que comporta.
Para o narrador de A prostituta os fins justificam os meios. Assim, Maria poderia
“pecar” durante toda a sua trajetória e, considerando suas justificativas, ser “absolvida” no
final da história. Ao ser, por fim, “gratificada” com o casamento, o qual a legitima enquanto
mãe e enquanto mulher, a ela é “permitido” usar a sua sexualidade, no limite dos valores
sociais da época. Mesmo subvertendo o papel feminino esperado, a honra de Maria
proclamada pelo narrador é alicerçada em valores androcêntricos e patriarcais.
Apesar de, na obra em estudo, a protagonista usar seu próprio nome para trabalhar no
meretrício, essa é uma situação incomum. Em sua autobiografia, Gabriela Leite (1992) revela
que, na prostituição, a meretriz é uma personagem e não cabe ser chamada pelo seu próprio
nome42
. Outro exemplo é Hermila, do premiado filme O céu de Suely43 (2006), que encontrou
no codinome Suely a duplicação de si para prostituir-se. Usar outro nome, ou um apelido, é
também uma forma de proteger e/ou omitir o passado agregado ao seu nome de batismo.
Relacionando essas três personagens, percebo que, apesar de serem de períodos
diferentes (Gabriela escreve em 1992, a história de Suely se passa em meados da primeira
década de 2000 e Maria “vive” no início do século passado), há certas aproximações em suas
trajetórias. Todas se tornam mães solteiras antes de entrar no meretrício e deixam sua prole
com algum parente em busca de uma nova vida. O que distancia essas três mulheres, todavia,
é o que cada uma vê na prostituição. Suely queria, ao prostituir-se por apenas uma noite, ter
dinheiro suficiente a fim de mudar-se para o mais longe de sua cidade natal; Gabriela, por sua
vez, afirma que entrou “na prostituição por rebeldia e desobediência à regra geral das coisas”
(LEITE, 1992, p. 18); enquanto Maria visava, na sua nova ocupação, guardar o máximo de
dinheiro para poder viver melhor (ao menos financeiramente), além disso, para ela, um
determinismo e um fatalismo44
justificavam sua decisão.
42
Ela conta que seu nome de batismo é Otília e que retirou dos escritos do baiano Jorge Amado o prenome
Gabriela, pois, como afirmou a dona da primeira pensão na qual trabalhou, há nomes reais e há nomes para
“batalhar”. 43
O filme retrata a estória de Hermila – moça pobre que volta de São Paulo para Iguatu, cidade natal no interior
do Ceará, com um filho pequeno. Descobre, em seu percurso, que o pai da criança fugiu e, sem perspectivas,
resolve rifar-se. Como qualquer cidade de pequeno porte, a notícia se espalhou, causando espanto e
recriminações. A película discorre, então, sobre os múltiplos papéis assumidos pela protagonista em busca do
sonho de ir o mais longe possível do lugar onde nascera. Este longa-metragem ganhou, dentre outros prêmios, como melhor filme pela Federação Internacional de Críticos de Cinema e pelo Festival Internacional de Cinema
de Salônica, na Grécia, ambos em 2006. Cf. apêndice D - Ficha técnica e cartaz do filme. 44
Segundo José Mora (2010), o determinismo refere-se à ideia de que todo o comportamento humano está
associado às leis naturais, para tanto, baseia-se no princípio da causalidade: todo ato (causa) gera uma
consequência (efeito). No romance, Maria acreditava que, por ser pobre, seu “carma” era a prostituição. Já o
fatalismo alicerça-se na crença de predeterminação de vida, destino. Essa ideia é dividida, na filosofia, em
62
O duplo de si ainda revela Maria como:
duas mulheres, tão desiguais entre si quanto parecidas (iguais) [...] Maria disse que
antes de partir para a Bahia deixara a filha entregue aos cuidados de sua madrinha,
simplesmente porque (ela dizia, palavra a palavra) “não se pode ser ao mesmo
tempo prostituta e mãe” (A prostituta, p. 251).
A citação assinalada pelas aspas anuncia não somente que essa é uma fala da
protagonista, mas também que já fora dita antes, mais precisamente no período do último
império romano, o de Nero Claudius Caesar Augustus Germanicus. Essa frase foi dita por
Calpúrnia, filha de uma das cortesãs do imperador, que coincidentemente, ou não, também
havia se tornado prostituta. Herberto põe uma nota de rodapé explicando como o passado (a
história de Calpúrnia) e o presente (o enredo) se repetem e a mesma frase de outrora ecoa e
soa tão atual para Maria. A tentativa de separar seu lugar de mãe e o de profissional do sexo é
um esforço, muitas vezes, em vão, afinal, ela era as duas (entre outras) coisas, e seus papéis
eram negociados a partir do contexto em que estava. Não se pode perder de vista que a
pequena Dina era a principal razão, segundo Maria, de ir trabalhar na pensão. Os fins, dessa
forma, justificavam os meios.
O duplo pode se caracterizar de três formas segundo Lamas (2004). A primeira é a
cisão, como, por exemplo, no mito andrógino (PLATÃO, 2009), o que era uno passa a ser
dois seres autônomos. A fusão também marca um duplo quando ocorre o reconhecimento de
dois seres em busca de uma unidade. Por fim, a metamorfose marca a formação do duplo a
partir de uma transformação relevante. Em Maria, a manifestação do duplo se dá,
especialmente, na cisão de si, multiplicando-se, a fim de poder se adequar a cada nova
situação de vida. Não caberiam apenas as duas identidades aprendidas no seio da família
patriarcal: a esposa e a mãe.
Essa fragmentação na identidade da personagem principal de A prostituta representa o
mosaico identitário que forma e constitui os indivíduos. Maria, assim como os personagens na
perspectiva dos Estudos Culturais, representa “[...] identidades plurais, oscilantes, a partir de
seus processos identitários em constante modificação nas situações narrativas em que se
encontra e nas interações de identificação que realiza” (BORDINI, 2006, p. 141). No
fatalismo maometano, considera que mesmo que as causas sejam evitadas as consequências acontecerão;
fatalismo estóico, refere-se à aceitação do homem a sua sina, por não haver escapatória; e fatalismo cristão, crê que todos os atos humanos são regulados e presididos por Deus. Em A prostituta, Maria considerava que não
poderia fugir ao seu destino de entrar no meretrício, mesmo o evitando, enquanto ainda morava com os pais, o
contato emotivo e libidinal com o sexo masculino. Nessa perspectiva, as vivências, então, nada mais são do que
um fado. O que distingue o conceito dessas duas expressões é que, diferentemente do fatalismo, o determinismo
não considera haver uma predeterminação, mas sim, uma “resposta” a cada ato humano.
63
romance, o narrador conta com uma coesão (a despeito dos conflitos) das atitudes de Maria.
Apesar de entrar na prostituição, negar o relacionamento afetivo com Estêvão, ela mantém-se
fiel aos seus princípios, em especial, o de não se entregar emocionalmente a nenhum homem,
ao menos, não sem realizar seu sonho de casar por amor. Dessa forma, já que o caixeiro-
viajante prometeu à sua mãe não se casar até comprar-lhe uma casa, Maria recusou o seu
pedido de namoro.
Para que se possa verificar a linha que amarra as identidades da personagem, é preciso
que o autor simplifique, seja “[...] numa escolha de gesto, frases, de objetos significativos,
marcando a personagem para a identificação do leitor, sem com isso diminuir a impressão de
complexidade e riqueza” (CANDIDO, 2009, p. 58). Logo, no romance, o narrador pincela a
personalidade dos personagens de acordo com sua conveniência, suprimindo e enfatizando os
traços que mais lhe convém.
Muito similar ao enredo de A prostituta, Beauvoir (2009, p. 737, grifo da autora)
afirma que:
[...] raramente [a mulher] se decide a “fazer o trottoir” logo depois do defloramento.
Em certos casos, continua apegada ao primeiro amante e a viver com ele; arranja um
ofício “honesto”; quando o amante a abandona, outro a consola; como não pertence
mais a um homem só, acha que pode dar-se a todos.
Na estreia no meretrício, Maria segue a cartilha aprendida por Edite Cavalão, dona do
local. Nessa noite, a mais nova profissional da Pensão Andaraí instala-se num lugar
estratégico, na porta de entrada. Ser vista é a regra número um na prostituição, afinal, a maior
propaganda de seus serviços é a exposição, ainda que velada, do seu próprio corpo. O
narrador a compara com uma rainha. Nessa metáfora, o texto traz à tona a sensação de poder
que a protagonista estava vivendo, uma rainha tem seus súditos, e Maria teria seus clientes.
É tão enraizada, desde a Idade Média, a ideia de que a prostituição está relacionada à
escória social, que até mesmo quem busca iniciar-se nessa ocupação constrói uma imagem
dos prostíbulos e das funções que irão realizar carregadas das representações estereotipadas
da sociedade. Isso pode ser verificado ao perceber a surpresa de Maria ao viver em um bordel
com a organização da Pensão Andaraí:
– Como é, está gostando? – Estêvão perguntou a Maria.
E ela, entre a distração e o enlevo:
–Da música?
–Da música, da pensão, de tudo – tornou Estêvão.
–Ah sim... estou gostando muito. Só tem uma coisa: estou achando isto aqui sério
demais para uma pensão de prostitutas. Sei lá... Fala-se tão mal das prostitutas, que
imaginei que fosse morrer de vergonha aqui dentro (A prostituta, p.167).
64
A partir daquele momento, Maria começa a compreender que o bordel era um espaço
com suas regras e códigos, não um ambiente caótico de onde transitavam apenas sexo e
dinheiro. A protagonista segue para o quarto com seu amigo e primeiro cliente Estêvão. Ele
confunde-se, não sabe se quem o estava seduzindo era Maria – sua amiga, ou Maria – a mais
nova prostituta de Salvador. Suas identidades negociavam-se e imbricavam-se num
envolvente strip-tease, o qual alucinava o apaixonado amigo.
Por um lado, Maria se comportava como uma meretriz, seduzindo-o; por outro, ela
queria fazer o programa a fim de pagar a Estêvão a viagem que ele lhe deu enquanto sua
amiga. Essa representação dos desdobramentos da identidade da protagonista mostra como os
limites entre os múltiplos “eus” são tênues e fluídos (BAUMAN, 2005). Não se pode dizer ao
certo qual identidade Maria estava travestida, logo, a confusão de emoções de Estêvão é
fundamentada, afinal, ele acabara de deitar-se com a mulher que amava, mas que o tratava
como um cliente.
No ritual de despir-se, Maria resguarda seu corpo apenas com uma camisola. Ressalto
que para a época da história, a prostituta não se desnudava por completo, usar a camisola era
comum. Aurélio Schommer, no Dicionário de Fetiches (2008b, p. 42), considera que o “apelo
erótico é análogo ao do vestido [referindo-se à camisola], com a adição de ser listada como
lingerie, de uso reservado”. Esconder o corpo com uma vestimenta, no caso a camisola, cria
uma atmosfera sensual, velando o que poderia ser considerado erótico, tornando-o, assim,
mais atrativo. No momento em que não se mostra tudo, a imaginação do cliente funciona
como um potencializador da excitação masculina.
Ainda como manda o figurino, Maria recusou-se beijar Estêvão na boca. Para ela, este
ato lembrava seu antigo noivo. O não beijar é comum nos livros e filmes que falam a este
respeito. Para Rogério Silva (2006b, p. 107), o “[...] beijo na boca torna-se um divisor
simbólico entre sexo e sentimento. Há uma espécie de consenso entre as mulheres que se
prostituem em não beijarem e nem se deixarem beijar [...]”. O beijo é mais um ato de carinho
e carícia, comumente evitado com os clientes, por outro lado, a meretriz permite-se beijar
somente quem a desperta algum sentimento para além do profissional. Assim, ela guarda “[...]
para o amante do coração o beijo na boca, expressão de uma livre ternura e que não estabelece
nenhuma comparação entre as carícias amorosas e as profissionais” (BEAUVOIR, 2009, p.
743). O único cliente que a protagonista beija na boca é Claudius – justamente o personagem
que transita entre mais um cliente e um possível amor. Diferentemente de Maria, Gabriela
Leite (1992, p. 14) afirma que na “prostituição tem tabela para tudo [referente às
65
performances], menos para beijo na boca, que não tem preço. E não é por preconceito, é por
ética profissional”.
Enfim, para Maria, o que havia acontecido entre ela e Estêvão foi uma relação comum
entre prostituta e cliente. Ele, por sua vez, sentia-se confuso, mas lhe convinha ser seu cliente,
realizando-se, ao menos, sexualmente. Na manhã seguinte, deixa um montante para que ela
pudesse comprar roupas para seu novo ofício. Além disso, ele reitera que se algum dia ela
precisar, era só enviar-lhe uma carta.
O meio epistolar tem um papel significativo nas relações de Maria com quem ela
gostava, seja nas poucas cartas trocadas com Estêvão, seja nas conversas sobre a pequena
Dina escritas por Ricardina. Este último remetente das cartas de Maria recebia, além de
poucas palavras, para não aumentar a saudade, solicitação de notícias de sua filha e
embolsava também, como prometido, uma quantia enviada para Artur Neves a fim de ajudar
nas despesas. Assim, o recurso usado como ponte entre seu mundo de prostituta e o outro de
mãe, ausente fisicamente, mas presente emocionalmente, é a carta. Após recebê-las, rasgava-
as, pois, acreditava que o conteúdo deveria ser guardado na memória, não em caixas.
No caso dela e de Estêvão, na maioria das vezes, as notícias não eram partilhadas
diretamente, mas mediadas pela madrinha Ricardina. As cartas, então, marcavam o suporte de
intercâmbio entre alguns locais sociais da protagonista: a mãe que escrevia na pensão que se
prostituía para saber de sua filha; a amiga que recebia cartas de seu amigo e cliente Estêvão,
por exemplo. Sendo assim, a carta simboliza o contato entre as identidades de Maria. De um
lado, a prostituta que escrevia em sua cama, local de sexo e suor, de outro lado, a mãe e a
afilhada que, em suas palavras, enviavam junto com a carta o que havia de mais singelo e
puro. Interessante destacar que o dinheiro “sujo” de sua ocupação é “lavado” ao ser posto no
envelope destinado a sua filha. A carta conta apenas o que se quer revelar. Em nenhum
momento durante os cinco anos de meretrício relatados na obra, Maria propôs visitar a filha e
a madrinha, recorrendo a esse expediente para manter relação com a família.
No meretrício, o figurino é um elemento bastante representativo. Os adornos, por
exemplo, recobrem a prostituta, enquanto elemento simbólico de hierarquia na prostituição.
Na zona de baixo meretrício, as prostitutas se vestem de forma mais erótica do que sensual.
No verbete prostituição, Schommer (2008c, p. 181) considera que o visual da prostituta no
ocidente “[...] (saia curta, calcinha e o resto do traje mínimo, além de, eventualmente, cinta
liga ou algum acessório em seda ou renda) é indiscutível como fetiche, tendo servido à
conquista da clientela com sucesso”. Em busca de ser um objeto desejoso, roupas curtas,
justas e coloridas, meia arrastão, sapatos altos, brincos compridos fazem parte do seu guarda-
66
roupa. Para elas, quanto mais mostrar seu corpo, melhor, pois assim, poderiam incitar em
algum possível cliente o desejo sexual.
Já no alto meretrício, é comum o uso de roupas mais discretas, mas que acentuam e
revelam as partes do corpo que mais lhes convêm. Esse corpo velado é uma estratégia de
sedução, por instigar o desejo masculino, que fantasia o que ele esconde. Na perspectiva da
psicanálise, o prazer da não total nudez feminina para o homem está na crença inconsciente de
que aquela mulher possui o falo – objeto central na análise da sexualidade (FREUD, 2006) –
mas este está escondido sob a veste. Dessa forma, delongar a espera pelo ato sexual
potencializa a excitação a partir das expectativas criadas pelo jogo entre o velar e revelar o
corpo.
No romance, Maria, de certa forma, segue o padrão do alto meretrício, veste-se
provocante, mas não vulgar, para atrair os melhores clientes: “[...] o vestido vermelho de
soirée pondo-lhe em acolchoado relevo o busto saliente, a ex-operária de Estância Maria
Corumba parecia mesmo uma rainha” (A prostituta, p. 166-7). Esse tipo de vestido estava na
moda no início do século XX, visto que era inicialmente usado pelas francesas, consideradas
modelos de bom gosto e sofisticação. Sapatos de salto e muitos vestidos são descritos na obra,
sempre que a protagonista saía da pensão.
“A beleza não é indispensável à prostituta, mas é fator importante em sua carreira. É
[também] o físico que classifica uma mulher na hierarquia da prostituição [...]” (RIBEIRO,
1980, p. 41). Com beleza natural, ajudada pelos ornamentos de seu vestuário e as dicas de
Edite Cavalão, Maria se tornou uma das meretrizes mais procuradas da Pensão Andaraí.
Entretanto, as mudanças da protagonista não se dão apenas na sua forma de portar-se, mas
também nos gostos, como indica o narrador: “Maria não era chegada a bebida. Todavia, com
o tempo, evoluiria da gasosa para o champanhe, passando pelo vinho tinto também francês.
Assim é a vida” (A prostituta, p. 167), uma espécie de gradação.
Diferente do que muitos pensam, no programa, não conta apenas o ato sexual, ao
menos não nas “alegres casas tristes”. A música, a bebida, a conversa e a dança embalavam a
primeira parte da noite, e a meretriz que soubesse dançar contava com um diferencial das
outras. De um lado, divertia-se; de outro, chamava a atenção de possíveis clientes. Maria era
uma moça esperta e logo percebeu que seria interessante aprender a dançar tango, que, na
época, era moda nos cassinos e cabarés. Ela troca aulas de dança com Mululu – um dos
grandes frequentadores da Pensão Andaraí – por favores íntimos. O importante agora é
mostrar que assim como qualquer ocupação, a prostituição também exige, de certa forma,
qualificações diversas para melhorar seu “atendimento”.
67
Danças, lanches, conversas, passeios são algumas das razões pelas quais pagavam o
programa para Maria. Há um jogo estabelecido entre os integrantes do “mundo do prazer”. A
prostituta transveste-se na personagem que o cliente espera, encena diversos papéis. Algumas
vezes, o que o cliente quer é apenas alguém para conversar, nesse sentido, “a prostituta tem
muito de psicanalista de homem” (LEITE, 1992, p. 71). Outras tantas querem realizar
fantasias sexuais inenarráveis para suas esposas ou parceiras fixas. “Explorada sexualmente, a
prostituta explora por sua vez o explorador, num jogo circular de dominação” (RAGO, 2008,
p. 221), em que o cliente é uma peça de fácil substituição.
Comumente, a prática da prostituição é inicialmente, assim como para Maria, um meio
temporário de sobreviver ou guardar dinheiro. O meretrício tem um tempo útil relativamente
pequeno, afinal, o corpo é sua principal ferramenta de trabalho e o tempo se encarrega de,
como qualquer máquina, desgastá-lo. O “limite de idade para uma prostituta depende muito
do lugar onde ela trabalha. Em Copacabana, por exemplo, com 30 anos já não dá mais para
trabalhar, enquanto no Mangue45
você encontra mulheres de 60 anos” (LEITE, 1992, p. 76).
Essa diferença se dá, pois, na zona de alto meretrício, há uma concorrência maior em relação
às qualidades físicas da meretriz. Pensando nessas questões, Maria revela que busca na
prostituição uma ocupação provisória até firmar-se de alguma forma na vida, a fim de criar
sua filha. Seu anseio, então, era economizar e juntar o máximo de dinheiro possível.
Apesar da mudança de ocupação, de comportamento e até de gosto, Maria “no íntimo,
continuava a mesma moça de Estância, operária da fábrica de tecidos” (A prostituta, p. 283).
A vaidade não lhe subia a cabeça, apesar de ser elogiada pelas companheiras de trabalho, por
Edite e por seus cada vez mais numerosos clientes.
Sem ligações amorosas definitivas, o espaço feminino se amplia, inclusive em
relação a sua sexualidade: ela [a prostituta] passa a descobrir o próprio corpo, a
amar-se porque amada por muitos homens e invejada por muitas mulheres, redefine
positivamente sua auto-imagem, considerando-se atraente e capaz de enfrentar o
mundo com suas próprias forças (RAGO, 2008, p. 251).
Essa floração do amor-próprio e essa descoberta da sexualidade recobrem a
experiência de Maria na Pensão Andaraí. Sempre admirada por todos, em nenhum momento
do enredo, os olhares voltados para a protagonista emanavam inveja, seja quando dançava,
seja quando chamava a atenção com um de seus vestidos novos. Outro ponto interessante é
que não se pode negar que os elogios recebidos davam-lhe a força necessária para saber que
sempre poderia cobrar mais do que o que recebia pelo programa, ao ponto de tornar-se um dos
45
Expressão popular referente à zona de baixo meretrício.
68
“michês mais caros da Bahia”. Ela aproveitou o quanto pode, ou melhor, enquanto quis, todas
as oportunidades que surgiram.
Mesmo com toda essa “popularidade”, Maria sentia-se encabulada com tantos
lisonjeiros comentários. “Fosse como fosse, ainda havia nela uns restos de pudor. Do pudor
que como uma saudade não abandona de toda a prostituta. Enfim, em toda a prostituta há no
fundo uma mulher pudica” (A prostituta, p. 295). Assim, não posso falar em uma dicotomia
em relação ao pudor entre Maria – a prostituta e Maria – a mãe, ou Maria – a mulher. Suas
identidades se imbricam e, desse cruzamento, algumas marcas transitam de uma para a outra,
não cabendo polaridades e sim multiplicidades.
A protagonista ganhou uma casa para morar e trabalhar de seu cliente Claudius. A
residência alugada seria então um lugar discreto para receber casais e realizar alguns
programas, tendo a autonomia de selecionar seus clientes e de receber o pagamento dos
quartos. Para além da ficção, havia no início do século XX algumas “prostitutas que residiam
em casas alugadas ou próprias, onde recebiam seus fregueses e amigos” (RAGO, 2008, p.
102) e, no caso da protagonista, hospedar casais.
Por cobrar uma quantia alta para os frequentadores, seu empreendimento se tornou
uma casa de luxo do gênero. Era uma espécie de precursor dos atuais motéis, antes chamados
de “castelos”, entretanto, a maioria não tinha a qualidade, segundo o narrador, vista na
hospedaria da protagonista. A razão do sucesso de sua casa era sacrificar a quantidade em
prevalência da qualidade dos clientes. Fazê-los sentir-se em casa era o objetivo de Maria, a
fim de que eles voltassem sempre. Seus clientes (ou melhor, clientela da casa) eram pessoas
abastadas da capital baiana.
Assim, com um michê caro, segundo o narrador, e com o aluguel dos quartos de sua
nova morada, Maria passa a ter uma renda cada vez mais alta, consequentemente, ampliando
suas economias, fruto de seu trabalho na prostituição e seu mais novo empreendimento. Dessa
forma, Maria entrou na zona do alto meretrício, estabelecendo-se.
3.3 ENTRE VÍTIMA E ALGOZ: CAMINHOS IMBRICADOS
Quando dizia: “Vós que minha alma perseguiu em vosso inferno,/ Pobres irmãs, eu
vos renego e vos aceito,/ Por vossa triste dor, vosso desejo eterno, / Pelas urnas de amor que
69
inundam vosso peito!”, Charles Baudelaire46
(1985, p. 399) já esboçava no poema Flores do
Mal uma situação muito frequente ao se falar na prostituição. O paradoxo é a palavra de
ordem dessa discussão para muitos. Entre o renegar as prostitutas e as aceitar; entre a sua
tristeza e seu desejo, suas representações vão cambiando. Quando se fala na meretriz,
normalmente, a sociedade se divide em duas posições quase sempre dicotômicas sobre sua
imagem.
Quando a profissional do sexo reproduz um “[...] discurso vitimista, ela não se implica
em sua história e coloca o outro sempre como responsável, criando uma dicotomia: vítima
versus algoz” (AZERÊDO, 2007, p. 97). Assim, alguns veem a prostituta como sujeito
passivo de sua história, no caso do romance, veem Maria como vítima de seu destino, de seu
ex-noivo sargento Marinho que a desvirginara, engravidou-a e fugiu. Esses descaminhos a
levaram a “não encontrar outra solução” a não ser entrar para o meretrício, afinal, para a
época, a virgindade tinha um papel importante para a moça ser “levada a sério” e alguém
firmar-lhe compromisso. Por outro lado, há quem possa dizer que, para Maria, esse era o
caminho mais “fácil”, afinal, como já fora dito, ela ganharia mais do que recebia na fábrica,
usaria os homens a seu bel prazer e não se machucaria sentimentalmente, já que sendo de
vários homens, não seria realmente de nenhum.
Ao deitar-se com diversos clientes, com fins financeiros específicos, a meretriz
partilha parte de si com cada um deles durante sua performance. Dessa forma, ela não se
entrega por completo a nenhum homem. A prostituição exige uma separação entre o “amor” e
o “sexo” (CALLIGARIS, 2006) a partir da fragmentação de si que, por muito tempo, foi
considerada impossível para o dito “sexo frágil”. “Amor é amor. Freguês é freguês”, já dizia
Gabriela Leite (1992, p. 14), demarcando que na zona de meretrício se assume um papel
diferente do casal que se ama. A meretriz pode até atuar em sua performance dizendo palavras
de carinho, se o cliente solicitar, permitindo que ele a corteje em um jogo de sedução.
Todavia, é marcado o limite entre o prazer e o sentimento amoroso. Algumas vezes, por outro
lado, essa linha se torna fluida, confundindo o cliente ou até a própria meretriz, como
acontece com Maria e seu cliente Claudius, fato que abordarei mais adiante.
A rotina de uma meretriz não é tão fácil como consideram alguns. Clientes dos mais
variados, calmos, violentos, que muitas vezes não respeitam a prostituta como mulher,
considerando que ela deve fazer tudo que eles querem já que estão pagando; clientes que não
46
A prostituição a que se refere Baudelaire é a do final do século XIX, já sob os efeitos do processo de
industrialização no universo capitalista. É importante pensar que, passado quase dois séculos, ainda persiste o
olhar paradoxal sobre essa mulher, mesmo que sob novos contornos.
70
pagam o programa e ainda a ameaça com violência; cafetões que exploram são situações
constantes na vida das profissionais do sexo. Esse conjunto de entraves na vivência no
meretrício corrobora com o olhar vitimizado sob a meretriz. Nesse sentido, Maria Encarna
Sanahuja YII (2009) afirma que:
Ainda que os nossos reformistas não queiram admitir, a inferioridade social e
econômica da mulher é a única responsável pela prostituição. [...] Muitas mulheres
que estão sem trabalho, sem meios econômicos, são vítimas da Máfia se estão
obrigadas a prostituírem-se.
Nessa visão, há a vitimização das meretrizes, como se elas não tivessem tido
alternativa senão comercializar seu corpo. Acredita-se, então, que a prostituta mesmo não
possuindo “[...] antecedentes hereditários e fisiológicos [acabam] desempenhando um papel
importante em sua „vocação‟ de prostituta. A sociedade com suas distorções educativas e
agressões é que produz essa „vocação‟” (RIBEIRO, 1980, p. 37). Entretanto, a representação
das garotas de programa, ora figura de liberdade, ora de escravidão, não escapa
equivocadamente à polarização, desconsiderando-se as nuances da identidade feminina.
Assim, elas podem possuir diversos matizes entre o sagrado e o profano (QUALLS-
CORBETT, 2005). Fragmentar a prostituta é não considerar a totalidade de que ela é ao
mesmo tempo vítima e algoz de sua condição, exceto quando forçada a prostituir-se47
. Tentar
uniformizá-la é uma forma de desconsiderar a diversidade de sua situação.
Homogeneizar as mulheres em categorias estanques é uma atitude historicamente
construída. As mudanças na visão do feminino passam basicamente por três modelos
históricos, segundo Lipovetsky (2000). A primeira mulher é associada às potências do mal e
do caos, representada por Eva – que, através da sedução e transgressão, comeu o fruto
proibido causando a expulsão de Adão do Paraíso. Na segunda Idade Média, surge o modelo
da segunda mulher, paradoxalmente à anterior, ela é sacralizada e suas perfeições físicas e
morais são cultuadas.
Sobre o que Lipovestsky chama de primeira e segunda mulher, destaco que o dito
“eterno feminino” se encontra atrelado a imagens de suas figuras: a musa e a mulher fatal. A
primeira, um culto à dama, criada, desde o século XII, é uma exaltação aos traços femininos, e
são relacionadas, comumente, ao amor espiritual e puro, sendo consideradas mediadoras entre
o divino e o humano. Já a femme fatale é seu oposto: perversa e depravada; cria-se, por sua
vez, uma imagem mítica da mulher também inacessível, como uma vampira. Sobre essa
47
Refiro-me aos casos em que há a prostituição infantil, a exploração sexual por terceiros, com os cafetões ou
com o tráfico internacional de mulheres, por exemplo.
71
polarização do feminino, Laure Adler e Élisa Lécosse (2009, p. 139) afirmam que “Reste à
savoir si cet <<éternel féminin>> n‟est plus aujourd‟hui qu‟un stéréotype périmé ou s‟il
n‟entre pas encore en résonance avec notre imaginaire, et avec la réalité”48
. Nesse sentido,
considero importante salientar que essas visões da mulher, ao longo dos séculos, nada mais
são do que representações homogeneizadoras e dicotomizadas.
Por fim, ainda sobre os estudos de Lipovetsky (2000), após a concepção da mulher
idealizada e a da mulher fatal, nasce a terceira mulher, originada sobre o signo do
questionamento, da dúvida. Nem exaltada, nem execrada; nem divina, nem profana. Sua
imagem não comporta dicotomias, nem categorizações, por não haver traços específicos que
devam ser obedecidos. Não há, então, mais um lugar imperativo dela na ordem social. Nesse
sentido, múltiplas e fluidas são as suas representações identitárias.
Para a protagonista de A prostituta, a entrada no meretrício não se deu claramente por
um anseio de liberdade. Além dos objetivos financeiros, ela tem a crença de um fado
relacionado à sua classe social. Para Maria:
Quando uma moça se por azar se perde, „tá perdida mesmo, tem de ir embora do
lugar, e o caminho natural dela é a prostituição. Não há outro meio de vida para
ela, mesmo porque os homens ficam dando em cima dela, todo mundo querendo
tirar sua casquinha. Mas „tou falando de moça pobre, de operária que eu era (A
prostituta, p. 161, grifos meus).
Nessa fala de Maria para Estêvão, percebo um determinismo exacerbado no que se
refere ao futuro das moças “desonradas” da classe menos favorecida, reafirmando a conversa
das páginas iniciais da obra em que operários divagavam sobre o caminho seguido por todas
as moças da família Corumba: a prostituição. A protagonista é muito enfática ao afirmar que
“não há outro meio” e sim que a prostituição é “o caminho natural” para as solteiras que não
fossem mais virgens. Maria não considera nesta fala o valor financeiro desta ocupação, mas o
comportamento que os homens teriam: desejariam “tirar sua casquinha”. Essa última
expressão demonstra que se a mulher não se prostituir, e tornar-se, de certa forma, autônoma
do seu corpo, deitando-se com um cliente por opção, ela irá servir de “petisco” que todo
homem buscará “tirar sua casquinha”, sendo a vítima da situação. Mesmo Maria assumindo,
no começo da obra, o lugar de operária, participando efetivamente do mercado de trabalho, os
traços de submissão aos homens são marcantes. Logo, ao prostituir-se, ela teria ao menos a
escolha de quem “tiraria uma casquinha” e por quanto.
48
Resta agora saber se este <<eterno feminino>> não é nada mais, hoje, que um estereótipo primeiro ou se ele
não entra novamente em ressonância com nosso imaginário, e com a realidade (tradução minha).
72
A meretriz tem o livre arbítrio de escolher o seu cliente, podendo, quando lhe convir,
recusar o programa. Nesse sentido, a prostituta é relativamente autônoma de seu corpo, pois, é
ela quem decide com quem irá deitar-se. “De uma forma ou de outra, você gosta da pessoa ou
não, vai [realizar o programa] com ela ou não. Se você não quer, não há nada no mundo que
te convença do contrário” (LEITE, 1992, p. 73). Destaco, todavia, que, especialmente na zona
de baixo meretrício, o cliente, muitas vezes, não aceita a negativa de uma profissional do
sexo, podendo reagir com violência a essa recusa. No romance, a agressão física não é
registrada, entretanto, por estar nessa ocupação por uma necessidade financeira, muitas vezes,
ela se obriga a aceitar um cliente que não a agrada, tão somente pelo michê.
Rago (2008, p. 240) acredita que, para grande parte das prostitutas, a entrada nesse
labirinto, ora “[...] é meramente uma maneira de conseguir dinheiro [...] ora decorre do desejo
de vingança contra a opressão masculina”. Para Maria, é uma mescla de ambos. A sua
vontade e necessidade de juntar dinheiro, afinal, agora dependia dela também a pequena Dina,
unem-se a sua raiva do seu ex-noivo, projetada para todos do sexo masculino. Assim, sendo
meretriz, ela não seria toda de nenhum homem, e sim “alugaria” fragmentos de si para todos,
sendo explorada e exploradora ao mesmo tempo.
A classe social que a mulher ocupa relaciona-se diretamente com o caminho que deve
seguir. Na obra, as “moças” mais pobres teriam o destino traçado apontando para a
prostituição, enquanto as mais ricas teriam a possibilidade do pai “comprar-lhe” um marido.
Falar na prostituição como originada apenas pela pobreza, “é passar ao largo da sexualidade.
Essas pessoas que se dizem progressistas gostam de tratar as prostitutas como vítimas, e desta
maneira elas perdem suas identidades e cidadanias para a „maldade intrínseca do sistema‟”
(LEITE, 1992, p. 168). Abrindo o leque de possibilidades da entrada da mulher no meretrício,
alguns acreditam que a menos abastada “entregava-se à prostituição porque desejava o luxo e
a riqueza; [e a] rica, porque desejava dar vazão às fantasias menos nobres que o excesso de
tempo permitia florescer” (RAGO, 2008, p. 49).
Nesse ponto, destaco o paradoxo da ideia de que apenas a meretriz seria esse sujeito
fragmentado, que separa o sexo do amor. Durante muito tempo, os casamentos foram
“arranjados”. A família escolhia, por questões políticas e econômicas, com quem sua filha
deveria casar. Sendo assim, uma das obrigações do matrimônio para a mulher era a
procriação, logo, era necessário que mantivesse relações sexuais com seu marido, mesmo que
ela não o amasse, mas o jogo matrimonial impunha certas regras. Dessa forma, o marido
relacionava-se com sua esposa visando a procriação e buscava nos bordéis, prostíbulos,
73
“pensões alegres” sua satisfação sexual com as prostitutas. Assim, percebo que tanto a esposa
prometida, quanto o marido sabiam, também, separar o sentimento do prazer.
O sargento Marinho, por exemplo, considerava que havia “um tempo de amar, e um
tempo para fornicar. No entanto a mulher confundia esses dois tempos, em si tão diferentes
em essência” (A prostituta, p. 52), comungando com a crença androcêntrica da relação
indissociável entre a mulher e o amor. Essa visão reduz as mulheres, agregando-as a uma
categoria com características homogêneas, em contraposição às qualidades do masculino.
Enquanto o homem é representado pela força, racionalidade; a mulher emana fragilidade e
subjetividade. Elas amam amar. Nesse sentido, as representantes do sexo feminino estariam
em uma constante busca de uma realização amorosa. Todavia, com o passar do tempo, “as
mulheres dissociam cada vez mais o amor do casamento, preferindo com freqüência o
concubinato ao anel no dedo” (LIPOVETSKY, 2000, p. 33). Para Maria, na obra em estudo,
separar o amor e sexo era o melhor caminho para sua nova ocupação. O amor trazia-lhe
problemas, o sexo dinheiro.
Não se pode perder de vista, que a escolha, assim considero, em tornar-se meretriz não
apaga os outros lugares sociais que a protagonista assume nas diversas instâncias de sua vida.
Esse é um ponto polêmico quando se discute a prostituição. O limiar entre a vitimização e a
representação de mulher fatal é a questão da escolha. Há, na prostituição, segundo Susana
Rostagnol (2000, p. 99), um “intercâmbio livre entre a prostituta e o cliente, portanto equipara
o contrato da prostituição a um contrato empregatício”. Sendo assim, a degradação moral
agregada à imagem da meretriz é uma construção social.
Há uma dificuldade de se “escolher” ou assumir uma identidade definida, já que,
dentro de cada uma delas, podem-se encontrar grupos identitários menores. Dentro da
categoria mulher, por exemplo, existem os grupos das mães, religiosas, professoras, taxistas,
divorciadas, mas apesar de todas as diferenças, elas possuem em comum serem do sexo
feminino. Não se pode ter consciência de sua identidade se não considera que há outras
identidades que a diferem. Aproveitando-se disso, muitos buscam legitimar-se, abafando ou
depreciando a identidade do outro. O mundo líquido atual está cheio de possibilidades, fluidez
e mudança – o sujeito pós-moderno deve apropriar-se de várias identidades ao tecer suas
redes de conexões (BAUMAN, 2005). E é isso que Maria faz – negocia suas novas e suas
antigas identidades.
A leitura das cartas da madrinha de Maria é um claro exemplo de como as identidades
se imbricam. Nas cartas, havia o:
74
[...] trazer e receber notícias de uma criança inocente, de uma filhinha longe, em
leitura rodeada de sombras de mulheres da vida (invisível ciranda, ali e agora), numa
pensão de mulheres. Mas que diabo, meu Deus, elas também eram gente, e de mais a
mais ela, Maria, estava ali como em sua casa (nova casa) [...] E, ah, dizia a carta tão
boas coisas, lidas ali, no quarto do pecado, mas como se ali outro lugar fosse, bem
diferente daquele, outro lugar mesmo, próprio, porque ali se achava menos o corpo
dela (o seu tocado corpo) que o seu coração intocado (A prostituta, p. 213).
Destaco que esse expediente cria uma expectativa tanto em quem escreve quanto em
quem recebe, pois, o correio demanda um tempo entre o envio e o recebimento, causando
ansiedade no aguardo do texto e de sua possível resposta. A carta revela o que a remetente
gostaria de destacar, como conta o narrador, Maria lia e escrevia coisas boas. Era partilhada
apenas o mais “puro” de si, enquanto omitia seu lado “menos nobre”, por não condizer com
seu perfil de mãe e afilhada.
A dicotomia entre a mulher “santa” e a “puta” tem sido alterada gradativamente na
sociedade. É desconsiderado, muitas vezes, que o que difere essas duas categorias e as torna
polarizadas é um contrato social e moral que recai sobre as mulheres, baseado em ideais
androcêntricos e patriarcais. Na verdade, o que distingue o ser humano dos animais em
relação à sexualidade é que, para além do instinto, o homem vive a partir de leis que regulam
o convívio em sociedade. Com a luta pela liberdade, direito de trabalhar, busca por uma
equiparação intelectual com o masculino, a mulher vem tentando ampliar seu espaço para
além dos limites do lar. Contudo, muito preconceito ainda é visto na figura da prostituta,
diferentemente de como era representada a sua imagem há séculos, referindo-se a união entre
prazer e inteligência.
A imagem de poder que a prostituição exerce, para alguns, é uma visão romantizada,
como se a meretriz fosse a famme fatale, que fazia o instinto prevalecer a razão. Essa
representação mobiliza o imaginário tanto feminino, quanto masculino. Para não fomentar e
reprimir a prática da prostituição em busca de uma liberdade financeira e sexual da mulher,
foi necessário que a sociedade atrelasse a imagem da prostituta à escória social. Então, ela era
(e ainda é) vista como mais uma mercadoria comercializada pelo capitalismo, representante
da degradação humana, sua relação com o freguês era de objeto-cliente.
Essa visão desconsidera que um mesmo sujeito pode participar de diversos grupos
dependendo da situação. Os fenômenos culturais são multideterminados pelos agentes
tradicionais e modernos. Assim, o indivíduo adquire diferentes identidades dependendo do
seu momento. Observa-se, então, o sentimento de ambiguidade entre repulsa e atração que os
homens sentem por essas mulheres, já cantado por Baudelaire. Elas faziam, e ainda fazem,
parte da engrenagem social, ao passo que eram repudiadas pela mesma sociedade.
75
A mulher pública era visualizada como a que vendia o corpo como mercadoria:
como vendedora e mercadoria simultaneamente. E também a mulher que era capaz
de sentir prazer, que era lugar de prazer, mesmo sem amar, ou sem ser amada. Ela
simbolizava, assim, a fragmentação do sujeito pós-moderno e a separação radical
entre o erótico e o amor (RAGO, 2008, p. 43).
Assim, para conter o afã da liberdade feminina espelhada nas imagens das meretrizes,
diversos setores sociais uniram-se para propagar os perigos que o território do prazer trazia
(QUALLS-COBERTT, 2005). Para moralizar os costumes, “[...] médicos, juristas e
criminologistas tentaram unificar seus esforços para definir a melhor forma de intervenção
dos poderes públicos na organização do mundo do prazer [...]” (RAGO, 2008, p. 127). Assim,
criaram regulamentos da Polícia de Costumes em 1896, com regras comportamentais para as
meretrizes: horários definidos que poderiam aparecer à janela, definindo as vestimentas que
deveriam usar etc. Quem era pega, no início do século XX, descumprindo alguma lei, era
presa, recebia banhos de água fria e tinham a cabeça raspada (RAGO, 2008).
A violência contra as prostitutas era (e ainda é) uma prática comum de repressão. A
ONU, em 1949, incentivava a instrução de medidas profiláticas às DSTs (doenças
sexualmente transmissíveis), por outro lado, a imprensa e a sociedade em geral compreendiam
a sua figura como disseminadora de doenças venéreas. Na década de 80, com a proliferação
da AIDS, essa profissão tornou-se fatal para a garota de programa e seus clientes, e, mais uma
vez, sua imagem se reduziu ao limbo. Mesmo com a distribuição de preservativos,
propagandas educacionais, muitas mulheres não se preveniam, principalmente porque nas
regiões mais interioranas, com pouco acesso à informação, precária rede de saúde, há um
grande número de prostitutas. Além disso, há casos em que o cliente paga a mais para
consumar o ato sem preservativo.
No imaginário social ainda é vigente a associação da mulher prostituta com uma
pessoa que se presta aos serviços sexuais nas suas mais variadas formas, sendo
criada uma dualidade de papéis femininos que se encontram em pólos bem opostos:
de um lado, a figura imaculada da mulher da casa, esposa, mãe e, no outro extremo,
a mulher da rua, permissiva, promíscua, que se presta às práticas sociais que jamais
poderiam ser reproduzidas com as esposas (SILVA, 2006b, p. 88).
A sociedade de hoje resulta de um movimento histórico, com marcas de seus
diferentes contextos socioculturais. “As prostitutas têm sido consideradas demônios, às vezes
redimidas, em outras ocasiões consideradas um mal necessário para manter a ordem moral da
sociedade” (ROSTAGNOL, 2000, p. 101). Até hoje, a imagem da meretriz está associada às
doenças e ao caótico. Contudo, apesar de na obra não haver especificidades quanto à proteção
usada pela protagonista para prevenir uma gravidez indesejada ou uma doença, percebo que
76
há uma organização própria nos bordéis, ao menos, na Pensão Andaraí, como analiso no
próximo capítulo.
77
4 REDES DE SOCIABILIDADES NO JOGO DO PRAZER
4.1 “ALEGRES CASAS TRISTES” E SUAS MORADORAS
“Essa casa está uma zona”, “aquele político se prostituiu”, ou simplesmente ao querer
magoar uma mulher a chama (a xinga) de “puta”: essas são frases correntes no cotidiano que
marcam e ratificam a depreciação do mundo da prostituição. Quando digo “mundo da
prostituição” não me refiro a um mundo paralelo, muito pelo contrário, ele está inserido no
espaço social. É uma espécie de micromundo (não sub) em que se encontram além dos
“protagonistas”; seus companheiros de trabalho, seu chefe, se é que podemos chamar assim os
cafetões e cafetinas; os clientes, que normalmente são esquecidos nos comentários
preconceituosos destacando apenas a figura da meretriz; e outros tantos atores que circulam
nesses espaços enquanto coadjuvantes.
Ao afirmar que o político se prostituiu, traz uma ideia de que a pessoa trocou por
dinheiro alguma coisa que não poderia ser vendida, algo que o desonra. Usar a palavra “puta”
e seus sinônimos para “xingar” alguém, a fim de magoar ou expressar indignação, mostra,
mais uma vez, o quanto a sociedade deprecia essa mulher, afinal, ninguém quer ser chamada
de “puta”. É uma ofensa! Mas as coisas se invertem, ao menos na linguagem popular, quando
falamos do gênero masculino. Puto, prostituto, putão são expressões usadas para o rapaz
conquistador, que se relaciona com várias mulheres sem cobrar – muito diferente de sua
versão feminina, chamá-lo assim é motivo, tantas vezes, de orgulho.
Não se pode desconsiderar a ambiguidade que os preconceitos contra a prostituta
emanam. Enfim, quando dizem que algum lugar está uma zona, sinônimo de ambiente de
meretrício, entende-se que este espaço está bagunçado, desorganizado, caótico. Esse olhar
“implica a construção imaginária do mundo do prazer como campo noturno da desordem das
paixões e da erupção de forças animais e satânicas, contrárias aos princípios da civilização”
(RAGO, 2008, p. 196). Pouco se considera que o bordel possui suas próprias regras de
convívio, uma organização especial a qual todos os integrantes devem seguir. Dessa forma,
discuto, nesta seção, sobre três aspectos importantes desse mundo dito marginal, os quais
interferem nas representações identitárias de Maria: o bordel, enquanto espaço simbólico, a
cafetina e as outras prostitutas da Pensão Andaraí.
Nas décadas inicias do século XX, havia uma sutil diferença entre as pensões alegres,
casas de rendez-vous, hospedarias e casas de tolerância. As casas de rendez-vous não possuem
“inquilina”, eram frequentadas por diversos tipos de casais, os quais alugavam quartos de luxo
78
por hora. As pensões alegres tinham as “inquilinas”, como na obra estudada, e as
proprietárias, as quais gostavam de serem chamadas de madame, o que “indica sua
preocupação em cultivar uma certa distinção social, diferenciando seus estabelecimentos das
„hospedarias‟ e das „casas de tolerância‟” (SCHETTINI, 2006, p. 71). Tanto as pensões
alegres quanto as casas de rendez-vous ficaram conhecidas “muito mais pelo seu lado
„bonachão‟ e aconchegante do que pela exploração econômica que [as cafetinas] exerciam
sobre suas subordinadas” (RAGO, 2008, p. 205). Nas hospedarias, entretanto, não havia
moradoras fixas e se concentravam na região dos centros das cidades. Nas casas de
tolerâncias, havia em média cinco a seis moradoras, com alta rotatividade, que ficavam
expostas na janela, o que chamava atenção da polícia de costume. Junto com esse tipo de
estabelecimento, as casas de rendez-vous foram perseguidas pela repressão policial e a
política de costume, passando a chamar-se “casa de cômodos” (SCHETTINI, 2006),
precursores do motel.
A Pensão Andaraí49
é representada como um lugar onde eram cantadas as modinhas
que não se ouvia em casas de família, por estarem relacionada à boemia. Lauro Paiva assumia
a trilha sonora das noites do local. Música, clientes, meretrizes, danças, bebida constituíam o
ambiente, sendo este um espaço privilegiado para diversos tipos de relações sociais:
Ao agrupar os indivíduos por meio de redes subterrâneas de convivência e
solidariedade, apresentava-se como um território que viabilizava a experiência de relacionamentos multifacetados e plurais, num contexto de distensão. Práticas
silenciosas que contrariavam a exclusividade sexual imposta pela ordem, tanto
quanto encontros, brincadeiras e jogos que corriam nos cabarés e “pensões alegres”
da cidade, conformavam um espaço importante de interação social (RAGO, 2008, p.
196).
O narrador comunga com esta visão de Rago ao descrever a organização nos horários
e nas atividades do estabelecimento o qual Maria trabalhava. Conclui ele, então, que “[...]
puteiro em Salvador era uma espécie de casa de família” (A prostituta, p. 165), por ter suas
regras e estas serem precisamente obedecidas.
Nos bordéis, havia várias formas de entretenimento “que se cruzavam nas noites
boêmias, em meio a ceias prolongadas e ao som de músicas animadas, obedeciam a todo um
jogo codificado de trocas simbólicas e a um ritual de civilidade” (RAGO, 2008, p. 196).
Havia um rito velado nas noites da pensão na rua da oração nº 10: o salão era o lugar dos
encontros, das conversas, das “velas” (gíria da época, significa cerveja) cheias; e os quartos
eram o lugar da relação mais lasciva. Outro rito que marcava o horário de encerramento das
49
Destaco que o nome da pensão que a protagonista trabalha é homônimo à cidade a qual nasceu Herberto Sales.
79
atividades no salão era quando o pianista da casa Lauro Paiva tocava o samba “Até amanhã”
de Noel Rosa, demarcando, consequentemente, o horário em que se iniciavam as atividades
nos quartos.
O narrador “relembra” outras “alegres casas tristes” (A prostituta, p. 164-5) da capital
baiana:
Outras [pensões] havia, nos arredores do seu mundo à parte, a Pensão de Célia, de
todas a maior, com o luxo sonoro d‟um conjunto musical de metais e cordas,
enquanto as subconcorrentes suas tinham de se contentar com o resignado piano
solitário em cada uma; e, ainda, a Pensão Zazá, cujo dono (e não dona, como o nome podia frustradamente sugerir), um pobre tetraplégico, que da sua cadeira de rodas
comandava em pessoa o funcionamento da disponível diversão da casa; e ainda
outras e mais outras. Das quais não nos lembram porém os nomes, que no entanto
fácil, facilmente poderíamos inventar, se para isso estivéssemos dispostos a mentir.
Destaco dessa passagem, que mais uma vez o narrador demonstra uma vontade em
contar os fatos e não criá-los, ou permitir que os lapsos de suas memórias recriem lugares.
Enfim, do bordel, focalizo um dos cômodos mais importantes para o meretrício. O quarto é
um espaço que merece atenção na obra de Herberto. Mas que um mero ambiente da casa, ou,
no caso, da pensão, ele tem uma representatividade de independência, pertencimento. O
narrador faz questão de entrecruzar as imagens simbólicas dos quartos os quais a protagonista
ocupou.
No seu quarto na Pensão Andaraí (o melhor, depois do de Edite Cavalão) esta à
vontade, punha e dispunha, mais que no seu próprio quarto de moça (agora era apenas uma lembrança), antes de ser traída pelo canalha do noivo. E, também, mais
que no quarto generosamente acolhedor que ocupara na casa de sua madrinha [...].
Nada se igualava ao seu quarto na Pensão Andaraí [...] (A prostituta, p. 221).
O quarto da pensão não era somente o lugar de gozo alheio e suor, mas também o seu
refúgio para ler as cartas de sua madrinha, ter notícias sua filha Dina, ou saber de seu amigo
Estêvão. Aquele era o espaço dela, em que ela dividia, em determinado momento, com os
seus clientes.
Para organizar e administrar uma pensão alegre, é necessário alguém que saiba lidar
com todos os tipos de pessoas, clientes variados, meretrizes, vendedores de bebidas, músicos
etc. Na Pensão Andaraí, essa pessoa é Edite Cavalão. Ela foi apelidada assim por ser uma
mulher “enorme”, de risos largos. A sua coragem e de sua família foi destacada pelo narrador
ao resgatar a história de cangaço de seu pai e sua proximidade com Lampião. E com a mesma
coragem, ela mantinha a sua pensão.
Edite Cavalão não é chamada na obra de cafetina, mas, neste estudo, uso esse termo
por entender que se ela estabelece um papel de mediadora entre a meretriz e o cliente com fins
80
financeiros age como uma cafetina50
. Sabiamente, usava a “diplomacia no relacionamento
com os fregueses, sutileza, absoluta discrição, informações sobre os homens e suas
preferências, jogo de cintura no relacionamento com as „pensionistas‟.” (RAGO, 2008, p.
204). Sem essas qualidades, o estabelecimento não funcionaria.
A dona da pensão assume o papel de protetora e amiga de suas “pensionistas”, ao
invés de exploradora, fato perceptível por Maria desde o primeiro contato pessoalmente com
ela: “você agora, com essa carta que trouxe de D. Edna, é como se fosse minha filha” (A
prostituta, p. 164). Esse carinho se expressava também no vocativo que a protagonista usava
para a cafetina: mãezinha. A relação maternal entre ambas sela-se em amizade, apesar de
reconhecer que havia o lado profissional envolvido.
Fica a cargo da cafetina dar as regras sobre o programa para as novatas. Ela “ensinava
como agradar ao freguês, como se vestir atraentemente, como ter gestos e atitudes charmosos
[...]” (RAGO, 2008, p. 205). Edite logo percebeu que Maria era uma excelente aluna nas
artimanhas do ofício. E com tantos cuidados e gracejos, a protagonista sentia-se inserida em
uma família, especialmente próxima à cafetina. Ambas transcendiam o espaço da pensão e
frequentavam juntas às missas na igreja de São Francisco, desmitificando, mais uma vez, os
estereótipos que engessam as prostitutas na escória social, moral e espiritual.
Edite é parceira nas confissões e conflitos da protagonista, dando-lhe sustento na
fluidez do mundo do prazer. Enfim, a cafetina é uma “figura importante na vida da prostituta:
conselheira em momentos difíceis, confidente, criava fortes vínculos de dependência afetiva
para com ela, instruía-a nos códigos do submundo [...]” (RAGO, 2008, p. 266). Dessa forma,
a dona do bordel cria um vínculo profissional e afetivo com a prostituta, atando, ainda mais, o
laço que as une.
Na Pensão Andaraí, não havia, ao menos não é retratado, disputa entre as
“pensionistas” ou inveja ou qualquer sentimento de competitividade destrutiva. Muito pelo
contrário, a solidariedade entre elas é a palavra de ordem. Carmen e Zilda sempre elogiavam a
colega Maria pelas suas vestimentas e seu jeito. E, mesmo com tantos elogios rasgados por
Edite, as “pensionistas” só ratificavam a veracidade de suas palavras. Segundo o narrador, a
boa índole, a simpatia e a firmeza de caráter da protagonista conquistaram todas as colegas.
50
O termo cafetina refere-se à mulher, comumente uma senhora, que mediatiza o contato entre o freguês e a
prostituta. Segundo Rago (2008), sua função é administrar seu empreendimento (o bordel) e, para melhor atender às expectativas de seus clientes, mantém uma relação estreita com as meretrizes, sendo, muitas vezes,
confidente, conselheira e mentora; uma projeção da figura materna. Apesar desse ideal de amabilidade, as donas
dos bordéis sabem também impor a ordem e o funcionamento de seu estabelecimento. Dessa forma, considero
que há uma dupla relação entre a cafetina e a prostituta, afinal, a primeira precisa da segunda para sobreviver e a
meretriz precisa dos cuidados e da mediação da outra, configurando-se, assim, a engrenagem simbólica-social da
prostituição.
81
Pelo fato de suas relações com metade da humanidade serem de natureza comercial
[...] as prostitutas têm entre si uma solidariedade estreita; [...] têm profunda
necessidade umas das outras para construírem um “contrauniverso” em que
encontrem dignidade humana; a companheira é a confidente e a testemunha
privilegiada [...] (BEAUVOIR, 2009, p. 743).
A cordialidade entre as moradoras da pensão é marcada desde o primeiro dia de
meretrício de Maria, afinal, foram as colegas que a pentearam e emprestaram um belo vestido.
Ressalto, mais uma vez, que diferentemente da imagem estigmatizadora que se constrói da
prostituta, como uma mulher que tem de se vestir de forma provocativa e sensual, quase (ou)
apontando para o erótico, a protagonista é adjetivada pelo narrador como uma rainha. A
sensualidade não deixou de fazer parte do figurino, mas o ponto enfocado era sua altivez.
Enfim, enquanto a cafetina organiza o mundo do prazer, as prostitutas trabalham nele,
mas nada disso faria sentido se não houvesse um dos principais atores sociais desse espaço: o
cliente. E é sobre ele que abordo na próxima seção.
4.2 A TRÍADE: CLIENTES, PERFORMANCE E PAGAMENTO
O que seria da prostituição se não houvesse clientes? Ela simplesmente não existiria.
Sem demanda não existe oferta. Logo, posso presumir que a clientela das prostitutas é uma
das principais razões que fomentam a prática da prostituição. Entretanto, na maioria das
vezes, eles são esquecidos quando se criticam a meretriz ou os bordéis, afinal, os fregueses
são, em grande parte, homens que transitam entre o mundo do prazer e o do “social”, se assim
alguns dividem. Policiais, médicos, juízes, advogados, políticos, todos, comumente, enquanto
estão assumindo seus lugares de profissionais discriminam e repudiam as prostitutas,
paradoxalmente, outras tantas vezes, camuflados pelas noites, encontram nesse espaço que
execram a realização de seus desejos sexuais ou emocionais.
Não posso desconsiderar, porém, que a prostituição não se relaciona exclusivamente
com a prática do sexo. Conversas, passeios para outros espaços, demarcação de poder estão
envolvidos no pagamento de um programa. Enfim, algumas dessas performances foram
vivenciadas por Maria.
Relações tensas e multifacetadas estabeleciam-se entre fregueses e prostitutas,
incluindo desde os momentos em que estas odiavam aqueles, desejando que o ato
sexual acabasse rapidamente, até as que se sentiam como meras profissionais executando seu trabalho, ou ainda as que desejavam gozar e fixar uma freguesia. O
jogo em que a prostituta calcula as intenções e fantasias do homem e avalia as
extorsões que pode realizar é trabalho [...] (RAGO, 2008, p. 263).
82
E com a protagonista de A prostituta não seria diferente. Múltiplos eram os tipos de
relações que ela mantinha com seus clientes, enfrentando diversas situações conflituosas,
apesar do pouco enfoque dado pelo narrador aos percalços. De um lado, clientes carinhosos,
outros que desejavam apenas realizar seus fetiches ou performances, muitas vezes satisfeitos a
contragosto de Maria; de outro lado, a remuneração por tais serviços a fazia suportar esse
mal-estar. Esse conflito normalmente acaba no ceder da prostituta com a finalidade de receber
o quanto antes o michê.
Entretanto, observo que não há a obrigatoriedade da prática de todas as performances
por parte da prostituta. Assim como qualquer bem de serviço, a meretriz poderia negar-se a
realizar alguma prática, sendo que ficaria a critério do cliente procurar outra profissional que
possa realizar seu fetiche, ou adequar-se às limitações impostas. Neste estudo, falo em
clientes apenas do sexo masculino, visto que, na obra, não são retratadas as relações entre
mulheres ou com mais de um parceiro, embora se constituam práticas comuns nesse ambiente.
Não são todos os clientes da protagonista que são retratados, mas só alguns que tinham
sua devida importância. O primeiro, descrito com alguns pormenores, foi Estêvão. A
diferença entre ele e os outros clientes é que não foi ele quem a escolheu e sim o inverso, a
fim de pagar-lhe a viagem à Bahia. Entretanto, no amanhecer, ele deixa-lhe um montante ao
lado da cama. Normalmente, os pagamentos feitos pelos “clientes especiais” eram realizados
dessa forma, enquanto a meretriz fazia algo, como dormir ou se arrumar no banheiro, ele
discretamente põe junto às coisas dela a remuneração do programa. Quando falo em “clientes
especiais”, refiro-me aos que ela tinha um envolvimento emocional, como a amizade.
A obra ainda relata a relação entre Maria e os fregueses de suas colegas de profissão
da pensão, em especial dois personagens: Arigof e Barletta. Ao longo da narrativa, eles
frenquentam outros ambientes além da pensão com as meretrizes, como o Cassino Tabaris.
Nem todos os clientes de Maria, dos cinco anos de meretrício, são abordados, afinal, no
romance, há a economia do tempo através da seleção das passagens a serem contadas pelo
narrador. Sendo assim, destaco, além de Estêvão, cinco clientes que, de alguma forma,
interferiram na negociação de suas identidades: Mululo; o “chuparino”; o “cavalo”; o velho; e
Claudius.
Mululu, exímio dançarino de tango, troca aulas de dança por favores sexuais. “A
prostituta que aspira um valor singular não se limita mais a mostrar passivamente a carne;
esforça-se por mostrar talentos particulares” (BEAUVOIR, 2009, p. 747) – no caso da
protagonista, dançar tango seria o seu diferencial. Como as pensões alegres eram espaços não
83
apenas para a realização sexual, mas também um ambiente de descontração e entretenimento,
dançar, cantar e tocar instrumentos complementavam a alegria do bordel. Os louros de suas
escolhas são logo vistos. Ao apresentar-se dançando tango no Cassino Tabaris com Mululo,
ela constrói um círculo social maior, com possíveis clientes e garantida diversão. Ele, por sua
vez, reconhecia que dançar com Maria, e sua esplêndida beleza, era também uma propaganda
para sua academia de dança.
No cassino, mais do que jogatina, havia música, dança e bebidas. Esse espaço era
frequentado basicamente por homens e mulheres da noite, “Afinal, senhoras não iam ao
cassino. E o jogo no cassino era uma boa justificativa para os maridos e os noivos irem até lá
sozinhos” (A prostituta, p. 194). E foi nesse ambiente que Maria dançou o tango La
cumparsita, chamando a atenção de diversos frequentadores do local. Apesar de estar em seu
horário de trabalho, a pretexto de se distrair na dança, ela ampliava, assim, o círculo de
possíveis clientes.
Porém, a prostituição não é só boemia e alegria. Durante o meretrício, há situações em
que o cliente tem uma fantasia que não agrada a meretriz, porém, cabe a ela decidir se segue
com o programa ou não. Aconteceu com Maria. Com expressão de asco e repulsa, confessa a
Edite que, certa vez, “o homem caiu de boca em cima de minhas coxas, enfiou a cara pelo
meu entrepernas, e começou a me lamber, a me chupar. Foi horrível. Eu até me assustei” (A
prostituta, p. 203). Como o cliente, apelidado pela protagonista de chuparino, pagaria a mais
pela realização de seu desejo, Maria achou melhor deixar que ele fizesse o que queria e que
logo fosse embora. Para a protagonista, um homem realizar sexo oral era uma forma de se
rebaixar. Enfim, a prostituição não tem a ver com o prazer da meretriz, e sim de seu cliente. A
postura de Maria aproxima-se do argumento de Silva (2006b, p.107), ao considerar que:
[...] há uma intencionalidade em dissociar o corpo do prazer. Essa dissociação se dá
no processo de aprendizado do ofício. As profissionais dizem que, na maioria das vezes, quando estão com o cliente, seu único objetivo é proporcionar-lhe prazer
mecanicamente. Entretanto, algumas mulheres confessaram que, eventualmente, se o
cliente for carinhoso, ou se elas sentirem alguma atração por ele, o prazer pode
ocorrer, mas que isso é algo bastante raro.
Como a intenção de Maria no meretrício fora sempre juntar o máximo possível de
dinheiro, ela se submetia a algumas situações fora de sua zona de conforto. Sendo assim,
tornou-se um dos michês mais caros da região. Para que isso acontecesse, foi preciso que ela,
além de aprender a dançar e a se comportar como uma meretriz, sem ser vulgar, atravessasse
caminhos tortuosos, realizando performances desconhecidas e até constrangedoras para ela.
84
Edite Cavalão, enquanto cafetina, também indicava clientes. Um deles, um ricaço, era
tido como um dos melhores clientes da pensão. Para atendê-lo, foi preciso que Maria
realizasse uma performance, que repudiava e a constrangia, tão somente pelo michê. A
questão, nesse caso, era o descomunal tamanho de sua genitália, segundo o narrador. Agora
mais experiente, Maria confessa como se saiu desse embaraço: “[...] deixei ele meter um
pedaço daquele pau de cavalo. Ele chiou mas teve que se conformar. A estrovenga dele ficou
quase toda do lado de fora” (A prostituta, p. 212). E mesmo com as limitações de sua
performance, o cliente pagou uma quantia maior que a esperada. Essa negociação das práticas
sexuais a serem realizadas no programa é uma constante no ofício da prostituição.
Outro episódio em que Maria entrou em conflito entre o que queria e o que devia fazer
para ganhar mais dinheiro foi com “o velho” Dr. Fonseca. Ele, enquanto um grande
frequentador de bordéis, sabia como “conquistar” uma meretriz: prometendo-lhe muito
dinheiro. Esse era um convite tentador para os propósitos de Maria, porém, deveria realizar
algumas modalidades sexuais repulsivas no período, até mesmo para uma profissional do
sexo:
E, embora nunca tenha feito antes [a felação], ela o fez [...] Mas o recurso não surtia
efeito. E o Dr. Fonseca, afobado, nervoso, todavia sem perder a esperança, pedia-
lhe, suplicava-lhe, insista na glande, princesa, insista na glande. Sim, na glande, na
cabeça da rola. Assim... assim... E, de repente, numa animação (animação senil), pediu que ela abrisse as pernas [...] tentou introduzir como pôde na vulva de Maria
[...] Sobreveio-lhe porém um orgasmo antecipado, que não atingindo a meta
desertou para o lençol (A prostituta, p. 308).
Realizar uma performance, mesmo que repulsiva, significava que Maria cumpriu sua
parte no contrato com o cliente. “Entre as fantasias que [a prostituta] aceita, muitas –
principalmente no início de carreira – a humilham” (BEAUVOIR, 2009, p. 750). Enfim,
“Maria acabou cedendo. Era a única maneira (convinha) de se livrar do indesejado, incômodo
cliente” (A prostituta, p. 307). Fica claro que, para o narrador, o fato de a protagonista fazer
algo que não era de seu agrado era conveniente por, assim, receber um michê mais alto.
Apropriando-me da expressão do narrador, a palavra-chave para a razão de Maria aceitar e
ceder aos desencantos do Dr. Fonseca e dos outros clientes é a conveniência de realizar as
fantasias sexuais deles e, em contrapartida, ganhar mais dinheiro.
Para finalizar, mas não esgotar, essa discussão da postura da prostituta quanto às certas
práticas desagradáveis, considero que não se tem o absoluto controle sobre os caminhos
(profissionais e sociais) que a vida reserva a essas mulheres. No entanto, em grande parte das
profissões, o indivíduo depara-se com situações, as mais inesperadas, e cada um tem de
enfrentá-las dentro de suas prioridades e possibilidades. Maria poderia, por exemplo, ter
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recusado o programa com Dr. Fonseca, entretanto, para ela, a perspectiva de ter o seu dinheiro
superou esse obstáculo.
Poucas foram as vezes em que Maria precisou sair da pensão para atender um cliente,
a única exceção havia sido com Mululo e um dos clientes mais importantes na trajetória da
protagonista, Claudius, frequentemente comparado às qualidades de Estêvão. Diferente dos
outros clientes, fazia parte da atitude de Claudius não apenas a prática sexual, mas todo um
ritual enamorado. Em uma espécie de jogo de sensualidade, Maria cede e mistura trabalho e
prazer:
E introduzindo sob a seda da camisola dela as mãos ávidas do seu corpo,
protagonizou-lhe como uma messe de afetos desabrochados em todo o frescor, um
contato ondulante e trêmulo, para afinal se pôr nela, no êxtase de uma posse que
Maria Corumba, para sua própria surpresa, pela primeira vez correspondeu em
intensidade de prazer, como com nenhum homem antes (A prostituta, p. 228).
Esse prazer sentido por Maria era motivo de vergonha. Primeiro porque ela estava
“trabalhando” e acabou permitindo que a emoção a tomasse. O constrangimento provinha
também do seu espanto, afinal, era a primeira vez que tinha aquela sensação. No meretrício,
ela experimentou diversas formas de sexo, alguns, porém, não de seu agrado, mas que sua
função solicitava, e, pensando na remuneração, ela acatava. Práticas animalescas, para ela,
suja, clientes feios, velhos, indesejosos eram uma constante em sua vida. Mas algo diferente
aconteceu dessa vez.
Maria, ao receber a quantia do programa, considerou-a mais do que o combinado. “Em
certos casos a mulher recusa receber dinheiro de um freguês que lhe agradou” (BEAUVOIR,
2009, p. 743), no caso de Maria, ela não queria “extorqui-lo”, aceitando mais do que era
esperado. Considero, de certa forma, contraditória a sua atitude, visto que se a protagonista se
sujeitava a situações que repudiava em troca financeira, ela não deveria negar receber uma
quantia maior que a esperada.
Outro conflito se instaura na vida de Maria, quando Claudius propõe que ela vá a sua
casa no mesmo período em que acontece o culto de sua Igreja. Esta tensão está carregada de
significados. De um lado está seu costume de ir ao culto, marcado desde as páginas iniciais do
romance; de outro, seu programa com um cliente. A resolução desse impasse de Maria se dá
substituindo o horário do culto, sua prioridade foi o profissional.
Com o passar do tempo, Claudius e Maria se tornam amigos. Ele tem a “certeza
indubitável de que estava tratando com uma mulher de qualidades morais e humanas
incomuns, reveladoras de altiva e nobre conduta pessoal” (A prostituta, p. 245). Entre lanches
e carícias no quarto de visita, Claudius se abriu para a protagonista, revelando parte de sua
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história, a relação com seus pais, suas vivências da infância. Para Maria, aquilo era uma prova
de confiança. Esse é um exemplo de que a prostituição não se resume à prática sexual, as
conversas têm um papel importante no trabalho das meretrizes.
Todavia, a relação entre eles estreitam-se. Enfim, a protagonista resolve declarar seu
(incerto) amor para seu cliente, Claudius, que confessa que não poderia retribuir o sentimento,
porque ainda estava preso à lembrança de sua finada noiva Luciana. Em contrapartida, Maria
procura negar seus sentimentos, afinal, entendia que não era correspondida. “Românticas,
essas mulheres querem maridos que exprimam sua „afeição‟, que estejam prontos para
estabelecerem trocas simétricas ao nível dos „sentimentos íntimos‟” (SCHPUN, 1997, p. 188)
e Claudius não poderia corresponder da mesma forma ao sentimento de Maria. Ligados por
laços afetivos, eles continuaram a se encontrar, mantendo o “contrato financeiro”.
Sendo assim, entre tantos clientes, situações adversas, negociação entre sua ocupação
e suas limitações e consequente agenciamento de suas identidades, Maria passou cinco anos
na prostituição. Entretanto, esse caminho não só teve percalços. Ela construiu laços de
amizade, aprendeu a dançar, a se portar e especialmente como agir diante das adversidades.
4.3 DO MERETRÍCIO AO MATRIMÔNIO: HAPPY END OU REDENÇÃO?
Durante toda a obra, o narrador vale-se do recurso de ora condensar, ora detalhar as
passagens da protagonista, de acordo com sua intenção em focalizar alguns períodos de sua
vida. Nas páginas que antecedem as finais, parece, por vezes, que o narrador pretende
estender o quanto pode a narrativa, descrevendo as idas rotineiras de Maria à casa de Claudius
ou abordando algum “causo” de outro cliente. O leitor fica na expectativa do que acontecerá
com a protagonista, nesse sentido, o “processo de fazer previsões constitui um aspecto
emocional necessário da leitura que coloca em jogo as esperanças e medos, bem como a
tensão resultante de nossa identificação com o destino das personagens” (ECO, 2009, p. 58).
Sabe-se que Maria não se uniria ao seu melhor cliente por ele não amá-la, ela já não estava
mais morando na Pensão Andaraí, conseguira economizar uma grande quantia, enfim, qual
seria o desfecho dessa trajetória?
Assim como foi abrupta, para o leitor, a entrada da protagonista na prostituição, foi
também a sua saída. Para Maria, a justificativa é simples, ela iria casar e constituir, então, uma
família. O desfecho da obra ratifica a ideia de que o “destino que a sociedade propõe
tradicionalmente à mulher é o casamento” (BEAUVOIR, 2009, p. 547). É como se não
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houvesse outro modo de realização feminina. Logo, “a demora narrativa [...] visa produzir o
que eu chamaria de tempo de precipitação – ou seja, o que retarda um final dramático” (ECO,
2009, p. 70), no caso do romance em estudo, o casamento da, agora, ex-prostituta.
Algum tempo depois de Claudius negar amá-la, Maria soube, através das cartas, que a
mãe de Estêvão falecera e que antes demonstrou muito gosto com um possível casamento
entre eles. Edite, em sua franqueza quase rude, mas muito lúcida, pontuou que acreditava que
Maria o amou, “mas cuidou de esconder isso, por medo” (A prostituta, p. 359). O medo está
atrelado ao amor para a protagonista, desde sua decepção com o sargento Marinho. “O medo é
uma emoção associada à perspectiva de um mal iminente que pode trazer grandes dores ou
destruições” (ZINANI, 2006, p. 110). Assim, o receio de amar era a iminência de estar
amando.
Entretanto, apesar do amor (ou não), o narrador, em uma das poucas vezes que
mantém um olhar crítico sob a trajetória de Maria, trouxe algumas questões importantes.
Primeiramente, pode-se questionar se a mãe de Estêvão tinha ciência do passado de Maria.
Em segundo lugar, saberia ela de sua ocupação? Muito possivelmente a história fosse outra
caso ela soubesse dessas duas informações. O fato de ter vivenciado no meretrício estigmatiza
a mulher mesmo quando ela se encontra em outros ambientes, ou até quando não trabalha
mais na zona. Dessa forma, o passado de cada um marca e, muitas vezes, limita as
representações que os outros podem ter do indivíduo.
Maria vai então para Recife, ao encontro de Estêvão, com a pretensão de matrimônio.
“O casamento com ele, [era] a redenção de todas as suas frustrações [...]” (A prostituta, p.
367). Era como se a obra toda, todo seu percurso tivesse um finalidade: casar-se; no início não
deu certo com seu ex-noivo sargento Marinho, no final, consegue com Estêvão. O matrimônio
por amor possibilita “[...] às mulheres uma vida conjugal com menos violência, menos
opressão, menos medo. O „amor‟ pode então significar uma melhoria nas condições da vida
íntima [...]” (SCHPUN, 1997, p. 198). Além disso, casar-se era uma forma de legitimação
social, enquanto mulher e mãe, mesmo tendo uma filha de outro relacionamento.
Nas páginas finais da obra, tudo culmina para este desfecho: Maria consegue
economizar uma quantia considerável, Claudius nega amá-la, a mãe de Estêvão morre, o
contato entre a protagonista e alguns frequentadores da Pensão Andaraí se esgarça. A essa
altura, Maria já morando sozinha em casa alugada, fica cada vez mais distante da prostituição.
Tudo isso deixa o caminho fértil para a união entre a pobre operária, enganada pelo ex-noivo,
mãe de uma criança que vive na casa de sua madrinha, prostituta que se humilhou, divertiu-se,
fez amizades e agora precisava se resignar dos percalços vivenciados e o caixeiro-viajante que
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se apaixonou, ajudou sua amada da forma que podia, cuidou de sua mãe até o seu falecimento,
mantendo-se sempre na espera de algum contato de Maria e agora merecia receber seu
prêmio.
A prostituta, de certa forma, recobre-se de uma trajetória “cristã”: do pecado à
redenção através do castigo e posterior sacrifício. O pecado seria o de ter mantido relação
sexual fora do casamento com seu primeiro namorado. O “castigo” pode ser encarado como a
gravidez indesejada e sua expulsão da casa familiar. A contradição nessa estrutura é que o
sexo, antes visto como pecado, é o elemento de sacrifício que “lavaria” a sua alma. Por fim,
para ser redimida, Maria se “sacrifica” no meretrício, passando por situações indesejadas,
culminando na redenção de seus “pecados” através do casamento.
Destaco a contradição do narrador ao comungar com a fala de Claudius que encerra o
romance: “A prostituta é uma mulher como outra qualquer” (A prostituta, p. 368). Se de um
lado eles afirmam se tratar de uma pessoa comum, por outro, consideram que os traços mais
marcantes de Maria são a sua pureza e honra excepcionais. Além disso, essa fala suscita os
seguintes questionamentos: o que é ser uma mulher como outra qualquer? O que faz com que
se possa comparar a trajetória de Maria e considerá-la como qualquer outra? A meretriz é uma
mulher como outra qualquer ou é uma mulher qualquer ou nenhuma dessas possibilidades?
Mais uma vez, a tentativa de categorizar as mulheres traz equívocos dessa natureza. Sendo
assim, o romance tematiza o conflito entre a ideia de a protagonista ser uma mulher comum,
por um lado, e, por outro, ser dotada de características exaltadas e, por vezes, idealizadas.
O amor é, assim como no romance, uma das temáticas mais recorrentes na literatura,
por ser, segundo Forster (2008, p. 79), um “reflexo mental do próprio romancista” ou por ser
este um desfecho esperado, muitas vezes, numa obra, pois faz parte do desejo humano. A
prosperidade duradoura é um anseio recorrente no cotidiano da sociedade. Todos almejam
encontrar a felicidade eterna, seja em um bom casamento, seja em um emprego estável, seja
na construção de uma família, dentre outros “desejos” que prometem assegurar essa tal
felicidade. Entretanto, a trajetória humana não é linear, logo, há momentos venturosos, outros
não tanto; não existe a felicidade infindável. Dessa forma, como não se pode ser
permanentemente afortunado, a literatura projeta e reitera esse anseio no velho “felizes para
sempre” dos contos de fada.
O casamento de Maria com Estêvão prefigura uma redenção a todo o sofrimento
vivenciado por ela e também como um prêmio para ele que a “esperou” por tanto tempo.
Dessa forma, “amar o marido, ser feliz, é um dever para consigo mesma e para com a
sociedade” (BEAUVOIR, 2009, p. 611). Assim, muitas mulheres só se realizam após as
89
núpcias, dependendo do homem para serem felizes. Além disso, o amor é legitimado e
institucionalizado perante a sociedade com o casamento (TRIGO, 1989). O matrimônio,
então, regula o papel assumido pelos seus integrantes, garantindo, de certa maneira, a
perpetuação da família tradicional.
Outro ponto imprescindível para o recomeço de Maria era se afastar de seus antigos
clientes. Afinal, agora ela mudara. Sendo assim,
[...] a personagem vai se formando e refigurando, multiplicando seus eus,
mesclando-se com as alteridades e fraturando-se ante as exigências contraditórias
com que se depara, tanto de sua interioridade e psiquismo quanto da exterioridade e
das relações [...] (BORDINI, 2006, p. 141).
As situações vividas por Maria, ao longo da narrativa, marcaram as diferentes
identidades situacionais da protagonista, a contradição, o conflito e o agenciamento entre elas.
Já ao final da obra de Herberto Sales, Maria vive um novo momento e, para que pudesse
transpor-se para esse recomeço, ela precisava se desfazer de alguns rastros de sua história.
Dessa forma, “um grande pedaço do seu passado ficava em Salvador, amizades,
conhecimentos, prazeres, alegrias, sonhos, desenganos, angústias, à sombra da ex-operária de
tecelagem de Sergipe, sob as luzes dos cabarés da Bahia” (A prostituta, p. 366).
90
5 ENTRE TANTAS LEITURAS, UM DESFECHO
Após atravessar pelas primeiras décadas do século passado, adentrar, enquanto leitora,
na zona de prostituição, tomando também os (des)caminhos da ex-operária de Estância,
chego, por fim, as últimas reflexões deste estudo. A fim de destacar e analisar as nuances da
identidade feminina, a partir das imagens de Maria – protagonista do último romance de
Herberto Sales, A prostituta, recorri à obra literária enquanto representação do real. Tanto na
ficção, quanto no dia-a-dia, as meretrizes são estigmatizadas, consequentemente
homogeneizadas, sendo, geralmente, associadas ao profano, à escória e à degradação física e
moral. Essa obra, por sua vez, ultrapassa a simples categorização da meretriz, desvelando uma
rede complexa de identidades que se tramam no desenrolar da trajetória de Maria.
Os versos de Cora Coralina (2010b)51
revelam a base primordial dessa discussão
quando o eu-lírico afirma que dentro de si vive uma cabocla e seus feitiços, a lavadeira e seu
trabalho, a cozinheira e seus quitutes, a mulher do povo, a da roça e a da vida. Cada uma com
suas características próprias, porém, juntas compõem essa mulher. “Todas as vidas dentro de
mim: Na minha vida – a vida mera das obscuras”. E esses versos ecoam na obra de Herberto e
esboça sua protagonista: uma mulher, várias Marias.
Todo o percurso trilhado, neste estudo, foi guiado por questionamentos acerca da
relação entre a identidade e o feminino. O que seria identidade dentro do contexto social
atual, em que a instabilidade é a palavra de ordem? Pode se falar em identidade feminina,
tendo em vista que os homens, e, em particular, as mulheres não cabem em uma
categorização? Como se comporta a meretriz nos variados espaços sociais que frequenta?
Essas perguntas inquietam o leitor de A prostituta e trazem a tona questões e conflitos atuais
sobre o agenciamento dos vários lugares ocupados por um mesmo sujeito, em especial, uma
mulher estigmatizada: a prostituta.
Dessa forma, não mais coadjuvantes das histórias dos grandes homens, nem
idealizadas como no poema Mulher da vida, Minha irmã (CORALINA, 2010a)52
, tampouco
demonizadas como no mito de Lilith (BRUNEL, 2005g), a prostituta reveste-se com
diferentes contornos que não mais a engessam em categorias. Não cabe, em pleno século XXI,
51
Refiro-me ao poema Todas as Vidas. Cf. referência completa ao final do trabalho. 52
Neste poema, o eu-lírico retrata a condição de submissão e de injustiça que a prostituta vive. Retomando a
história bíblica de Maria Madalena, prostituta condenada a morrer por apedrejamento, que se salvou graças à
intervenção de Jesus, refere-se à meretriz como uma sobrevivente, vítima de uma sociedade desigual, como se
observa nos seguintes versos: “Pisadas, espezinhadas, ameaçadas./ Desprotegidas e exploradas./ Ignoradas da
Lei, da Justiça e do Direito./ Necessárias fisiologicamente./ Indestrutíveis./ Sobreviventes./ Possuídas e
infamadas sempre por aqueles que um dia as lançaram na vida”.
91
com todo o avanço social alcançado pelas mulheres, a ideia de imutabilidade identitária. O ser
humano é inerentemente plural, sua identidade é fluida e se adequa aos contextos vivenciados,
logo, não se pode falar em unidade identitária, já que uma mesma pessoa assume diversos
papéis em sua trajetória.
A identidade é, nesse sentido, uma convenção socialmente necessária que serve para
identificar e agregar os indivíduos em grupos. Porém, a participação nessas comunidades
identitárias não é permanente, tampouco exclusiva. Quando um novo contexto surge, o sujeito
cria alianças diversas com outras confrarias. Assim, cada local social institui suas leis, as
quais devem ser obedecidas a fim de manter sua permanência nele. Todavia, muitas vezes, as
regras de um desses espaços conflituam-se, ou até mesmo contradizem, os de outros ocupados
por uma mesma pessoa.
Com a figura da prostituta não seria diferente. Sua ocupação é apenas uma parte de si.
Entretanto, a sociedade, especialmente depois da Idade Média e os ideais cristãos, a fim de
marcar as diferentes identidades a partir de hierarquias, estabeleceu que essa mulher não teria
dignidade por não se inserir nos moldes de sua ordem social. Essa depreciação do diverso não
se dá apenas com a meretriz, mas com qualquer pessoa que subverta e se inscreva fora dos
valores sociais e morais vigentes. O romance em estudo, então, marca os múltiplos papéis
sociais que uma prostituta assume para além de sua atividade, ilustrando como uma mesma
pessoa transveste-se com diferentes roupagens a cada contexto vivido. Com fins de organizar
este percurso, estabeleci três paradas nessa viagem sobre as nuances identitárias em A
prostituta: Maria sobre o olhar do outro; Maria e suas próprias representações; e Maria e o
meretrício.
Sendo assim, na primeira parada, observo como durante sua vivência em Sergipe, a
protagonista do romance é modelada e construída através de seu então namorado sargento
Marinho. Ele, posto como antagonista, é peça-chave na trama para a mudança (geográfica e
comportamental) de Maria ao engravidá-la e, logo, fugir. Essa obra, nessa perspectiva,
denuncia como os costumes da sociedade e as regras morais direcionam as ações humanas,
bem como ratifica a não linearidade da vida, a qual é uma sucessão de entraves e superações.
Neste capítulo ainda, discuti o papel primordial da família na construção da identidade
de seus filhos, afinal, é ela fonte primária do comportamento em sociedade. Além disso, é
dentro dessa instituição que se aprende conceitos subjetivos como o que é certo e o que é
errado. Todavia, com o passar do tempo e o contato da criança com outros grupos sociais,
como a escola e a Igreja, a conduta deste indivíduo é influenciada pelas leis implícitas e
explícitas vigentes em cada um destes espaços. Assim, as instâncias sociais criam
92
expectativas para seus membros e é através da mescla entre o que se espera e o que cada
indivíduo quer de si que se constrói e reconstrói a multiplicidade identitária do ser humano.
A segunda parada deste trabalho refere-se ao período em que a Maria viveu na Paraíba
e na Bahia, destacando as reflexões acerca de como ela se representa nas diferentes situações
de sua trajetória. É interessante destacar o agenciamento de identidades que, para grande parte
da sociedade, são imiscíveis, como o papel de mãe, geralmente relacionada à dádiva feminina,
e o de prostituta, por sua vez, atrelado à degradação da mulher. Entretanto, não se pode
desconsiderar que essa relação entre maternidade/divino e prostituição/profano é uma
construção social.
Sabe-se que a relação da sociedade, especialmente até o meado do século XX, com as
meretrizes oscila entre a repulsa, por elas alugarem seus corpos, e a necessidade, por ser um
escape para a vazão da libido masculina. Se, por um lado, as pessoas as execravam por
pecarem, ao manter relações sexuais fora do casamento, e as segregavam, a fim de separá-las
das moças de família; por outro lado, ao prestarem seus serviços, a meretriz fazia parte da
engrenagem social, ao saciar os impulsos lascivos dos rapazes, enquanto as moças “da
sociedade” mantinham-se virgens até o casamento, contendo seus desejos sexuais. Sendo
assim, a prostituta é, ao mesmo tempo, desejada e indesejada na sociedade.
Em contraponto a esta dicotomia da meretriz e da moça de família, o romance de
Herberto destaca que muitas prostitutas, antes de entrarem no meretrício, pertenciam a
famílias tradicionais, mas que, com o desdouro do defloramento e a fuga do deflorador, como
aconteceu com Maria, sentiam-se desonradas e sua perspectiva seria a entrada na prostituição.
Com as rígidas regras familiares e morais, em especial, até o século passado, a mulher, ou até
mesmo a família, considerava que o caminho que ela deveria seguir era o da prostituição,
afinal, sua pureza havia sido dissipada com a lascividade do prazer carnal.
Por fim, a terceira parada deste trabalho destaca a relação entre Maria e o meretrício,
em especial, a Pensão Andaraí. É muito comum ao se falar na “zona” usar a expressão mundo
ou universo da prostituição, como se este fosse um espaço paralelo à sociedade. Muito pelo
contrário, ele faz parte da engrenagem social, especialmente até o século passado. O ambiente
do meretrício é também estigmatizado como caótico e regido apenas pelo sexo, todavia, com
a análise do romance de Herberto, desmistifica-se essa representação, dando lugar aos códigos
internos do mundo da prostituição.
A zona, mais do que o espaço de relações sexuais, é também o lugar de descontração,
jogatinas, músicas, danças, enfim, é onde a boemia das primeiras décadas do século XX se
encontrava nas noites. A cafetina, por sua vez, tem um papel essencial para manter a
93
organização de seu estabelecimento, supervisionar a produtividade de suas profissionais e
atrair uma clientela cada vez maior. Para tanto, há um investimento material, no
entretenimento da “casa” (músicas, danças, serviço de bar), e emocional, em relação às
meretrizes, que veem na cafetina não uma exploradora, mas uma espécie de “mãe” no mundo
da prostituição.
Na Pensão Andaraí, Edite Cavalão – cafetina do estabelecimento – nos seus cuidados e
elogios destinados à protagonista do romance, confunde-se entre ser a amiga, que dá suporte
emocional, a mãe, que aconselha, e a superiora, que visa expandir seu negócio. Ela é uma das
responsáveis de Maria sentir-se parte daquele ambiente tido como profano, mas que a
acolheu, diferentemente de sua família em Sergipe que a expulsou ao saber da gravidez. O
pertencimento a um grupo, então, vai além das ligações sanguíneas, relacionando-se mais com
os laços afetivos que, por sua vez, podem ser temporários.
Além das donas dos bordéis e suas trabalhadoras, o cliente tem um papel importante
no funcionamento do mercado do prazer, afinal, sem eles não haveria prostituição. A
trajetória de Maria evidencia que os fregueses, muitas vezes, criam situações em que as
identidades da meretriz entram em conflito entre seu ofício e sua vontade. Ratifico, mais uma
vez, que há uma escolha entre aceitar ou não o cliente e sua fantasia, porém, comumente, ela
aceita realizar um fetiche com o incentivo financeiro do michê.
Sendo assim, na obra, apesar de haver uma romantização da prostituição quando o
narrador focaliza e delonga a descrição das passagens sobre a alegria da boemia, suas danças
e músicas, observo também que a relação com alguns clientes de Maria se deu de forma
conflituosa, em especial, quando solicitada alguma performance sexual que a constrangesse.
Nestes casos, a protagonista teve de optar, a partir de suas prioridades, se preferia realizar a
fantasia do freguês e receber um michê maior ou se negava o atendimento, consequentemente,
não recebendo pagamento algum.
Após viajar neste misterioso mundo, revestido de preconceitos e imaginações, pouso a
reflexão sobre as identidades da protagonista nestas últimas palavras. Apesar dos esforços do
autor, que cria o enredo, e do narrador, que o conta, é o leitor que dialoga com obra,
agregando-lhe diferentes significados. É quem lê o romance, então, quem decide o seu
caminho interpretativo, configurando, assim, múltiplos entendimentos de um mesmo escrito.
Dessa forma, este estudo não almeja esgotar esse tema, muito menos, a análise possível deste
livro, pelo contrário, pretendo que este sirva de porta de entrada para os tantos olhares acerca
do romance A prostituta e de seu autor, reconhecido pela academia, entretanto, pouco
lembrado nas pesquisas e quase “esquecido” pelo grande público.
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Manter, então, um olhar diferenciado para a análise da figura da prostituta, permite
romper certas dicotomias: romantizá-la ou vitimizá-la, como se não houvesse outro caminho,
ou como se o glamour da boemia obscurecesse os perigos e conflitos desta ocupação. O olhar
preconceituoso sobre uma meretriz exclui os outros possíveis lugares que ela ocupa na
sociedade (mãe, filha, amiga, religiosa, por exemplo), e a transveste com as malhas enraizadas
da estigmatização do diferente.
Dessa forma, fixar a prostituta no estereótipo da mulher fatal ou da vítima da
sociedade é uma forma de minimizar a complexidade que é o ser humano. Ao ampliar o olhar
para as outras identidades de Maria, por exemplo, além de sua ocupação, ratifica-se que ela
porta uma gama de representações de si e, a cada instante, essas imagens são remodeladas e
agenciadas a partir dos novos contextos vividos. Mais do que unidade ou duplos, a mulher é
múltipla, um ser sempre movediço que se esconde ou se revela entre tantas Marias.
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APÊNDICES
APÊNDICE A
– Relação de obras escritas por Herberto Sales
103
APÊNDICE B
– Ficha técnica e cartazes do filme Uma Linda Mulher
104
APÊNDICE C
– Ficha técnica e cartaz do filme Garotas do ABC:
Aurélia Schwarzenega
105
APÊNDICE D – Ficha técnica e cartaz do filme O Céu de Suely
106
103
APÊNDICE A – Relação de obras escritas por Herberto Sales
ROMANCES
OBRA ANO
Cascalho (1944) Além dos marimbus (1961) Dados biográficos do finado Marcelino (1965) Einstein, o minigênio (1983) Os pareceres do tempo (1984)
A porta de chifre (1986) Rio dos morcegos (1993) As boas más companhias (1995) Rebanho do ódio (1995) A prostituta (1996)
LIVRO DE CONTOS
OBRA ANO
Histórias ordinárias (1966) O lobisomem e outros contos folclóricos (1970) Uma telha de menos (1970) Armado cavaleiro o audaz motoqueiro (1980)
LIVROS INFANTO-JUVENIS
OBRA ANO
O sobradinho dos pardais (1969) A feiticeira da salina (1974) A vaquinha sabida (1974) O homenzinho dos patos (1975) O menino perdido (1984) A volta dos pardais do sobradinho (1985)
O urso caçador (1991)
LIVROS DE MEMÓRIAS
OBRA ANO
O Japão: experiências e observações de uma
viagem
(1971)
Subsidiário (1988)
Na relva da tua lembrança (1988) Andanças por umas lembranças
(Subsidiário 2)
(1990)
Eu de mim com cada um de mim
(Subsidiário 3)
(1992)
104
APÊNDICE B – Ficha técnica do filme Uma Linda Mulher
Ficha Técnica
Título original: Pretty Woman Título no Brasil: Uma linda mulher
Gênero: Romance Duração: 119 min Ano de lançamento: 1990 Estreia no Brasil: 23 de março de 1990 Estúdio: Touchstone Pictures Distribuidora: Buena Vista Pictures Direção: David M. Haber
Roteiro: J.F. Lawton Produção: Arnon Milchan e Steven Reuther Música: James Newton Howard Fotografia: Charles Minsky Direção de arte: David M. Haber Figurino: David M. Haber Edição: Raja Gosnell e Priscilla Nedd-Friendly
Cartaz veiculado originalmente (vesão em
língua inglesa).
Fonte:<http://filmesdownbr.blogspot.com/2008/10/uma-linda-mulher-dublado.html>
Cartaz veiculado na versão em português.
Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/linda-
mulher/trailers-e-imagens/#29003
105
APÊNDICE C – Ficha técnica do filme Garotas do ABC: Aurélia Schwarzenega
Ficha Técnica
Título original: Garotas do ABC: Aurélia Schwarzenega Gênero: Drama Duração: 124min Lançamento (Brasil): 2003 Distribuição: Riofilme Direção: Carlos Reichenbach Roteiro: Carlos Reichenbach
Colaboração no Roteiro: Fernando Bonassi Produção: Sara Silveira Produção executiva: Maria Ionescu Produtores Associados: Loc'all de Cinema e Televisão e Selton Mello Apoio: Tv Cultura, Fundação Padre Anchieta, Governo do Estado de São Paulo, Prefeitura do Rio de Janeiro, Prefeitura de São Bernardo do Campo
e Rio Filmes Direção de Produção: Eliane Bandeira e Rui Pires Trilha Sonora e Arranjos: Nelson Ayres Música: Nelson Ayres, Zé Ricardo, Macau, Marcos Levy, Carlos Reichenbach, Richard Wagner e Paulo Vanzolini Som Direto: Romeu Quinto Edição de Som: João Godoy e Eduardo Santos Mendes
Mixagem: José Luiz Sasso Fotografia: Jacob Sarmento Solitrenick Operadores de Câmara: Rodrigo Toledo e Jacob Sarmento Solitrenick Desenho de produção: Valdy Lopes Ferreira Direção de arte: Luis Rossi Figurino: Carolina Li Edição: Cristina Amaral
Produtora de Elenco: Vivian Golombek
Fonte do cartaz:
<http://www.adorocinema.com/filmes/garotas-do-
abc/>
106
APÊNDICE D – Ficha técnica do filme O Céu de Suely
Ficha Técnica
Título original: O Céu de Suely Gênero: Drama Duração: 88min Ano de lançamento: 2006 Site oficial: http://www.oceudesuely.com.br Estúdio: Videofilmes / Celluloid Dreams / Shotgun Pictures
Distribuidora: VideoFilmes Direção: Marcos Pedroso Roteiro: Maurício Zacharias, Felipe Bragança e Karim Aïnouz, baseado em argumento de Maurício Zacharias e Karim Aïnouz Produção: Walter Salles, Maurício Andrade Ramos, Hengameh Panahi, Thomas Habërle e Peter Rommel
Música: Berna Ceppas e Kamal Kassin Fotografia: Walter Carvalho Direção de arte: Marcos Pedroso Figurino: Marcos Pedroso Edição: Isabela Monteiro de Castro e Tina Baz Le Gal
Fonte do cartaz:
<http://www.adorocinema.com/filmes/ceu-de-suely/>
107
ANEXOS
ANEXO A
– Capa de A Prostituta 108
ANEXO B
– Cascalho na revista e no cinema
109
ANEXO C
– Imagem publicitária do filme Noites Vienenses
110
ANEXO D
– Chamada publicitária do Cineteatro Guarany e
fotografias das mudanças do local
111
ANEXO E
– Imagem da primeira edição do jornal A Tarde
112
ANEXO F
– Cartaz do tango La Cumparsita de Gerardo Matos
Rodriguez
113
ANEXO G
– Esquema sinóptico das oposições pertinentes 114
108
ANEXO A – Capa de A Prostituta
109
ANEXO B – Cascalho na revista e no cinema
REVISTA EM QUADRINHOS
Capa Folhas internas
FILME
Ficha Técnica
Título original: Cascalho Dênero: Dama Duração: 104 min Ano: 2008 Lançamento: 31 de outubro de 2008
Direção: Tuna Espinheira Roteiro: Herberto Sales, Tuna Espinheira Fotografia: Luís Abramo Produção executiva: Márcio Curi Montagem: Flávia Celestino, Flávio Zettel e Tuna Espinheira Som: Toninho Muricy Direção de arte: Moacyr Gramacho
Figurino: Moacyr Gramacho e Maurício Martins Trilha sonora: Aderbal Duarte Música original: Walter Queiroz Produção: Asa Cinema e Vídeo
Fonte do cartaz:
<http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3314950-EI6791,00.html>.
110
ANEXO C – Imagem publicitária do filme Noites Vienenses
Fonte: A tarde. Salvador, 30 mar 1932, p. 4.
111
ANEXO D – Chamada publicitária do Cineteatro Guarany e fotografias das mudanças
do local
Fonte: No mundo do cinema. A Tarde. 18 mai 1939, p.9.
Fotografia do Cine Glauber Rocha
Fotografia do Espaço Unibanco do Cinema Glauber Rocha
Fonte das fotografias: < http://correio24horas.globo.com/noticias/noticia.asp?codigo=11583&mdl=29>.
112
ANEXO E – Primeira edição do jornal A Tarde
Fonte: A tarde, Salvador, ano 1, nº 1, 15 de outubro de 1912, p.1.
113
ANEXO F – Cartaz do tango La Cumparsita de Gerardo Matos Rodriguez
Fonte:< http://www.tejastango.com/tango_music.html>.
114
ANEXO G – Esquema sinóptico das oposições pertinentes
Fonte: BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 8 ed. Rio de Janeiro, 2010, p.15.