+ All Categories
Home > Documents > UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE...

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE...

Date post: 11-Aug-2021
Category:
Upload: others
View: 1 times
Download: 0 times
Share this document with a friend
134
i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação. Área de Concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte. Grupo de Pesquisa: GEISH Orientador: Profº Dr. Joaquim Brasil Fontes Júnior brought to you by CORE View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk provided by Repositorio da Producao Cientifica e Intelectual da Unicamp
Transcript
Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao

i

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCACcedilAtildeO

DISSERTACcedilAtildeO DE MESTRADO

AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE

Vera Luacutecia Crepaldi Pereira

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em

Educaccedilatildeo da Universidade Estadual de Campinas como parte

dos requisitos para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em

Educaccedilatildeo

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Educaccedilatildeo Conhecimento

Linguagem e Arte

Grupo de Pesquisa GEISH

Orientador Profordm Dr Joaquim Brasil Fontes Juacutenior

brought to you by COREView metadata citation and similar papers at coreacuk

provided by Repositorio da Producao Cientifica e Intelectual da Unicamp

copy by Vera Luacutecia Crepaldi Pereira 2009

Ficha catalograacutefica elaborada pela Bibliotecada Faculdade de EducaccedilatildeoUNICAMP

Tiacutetulo em inglecircs The virgin Greek goddesses vis-agrave-vis Aphroditersquos powerKeywords Greek goddesses Aphrodite (Greek Deity) Desire Power Patriarchate CivilizationAacuterea de concentraccedilatildeo Educaccedilatildeo Conhecimento Linguagem e ArteTitulaccedilatildeo Mestre em EducaccedilatildeoBanca examinadora Prof Dr Joaquim Brasil Fontes Juacutenior (Orientador) Profordf Drordf Norma Sandra de Almeida Ferreira Profordf Drordf Maria Inecircs Ghilardi-Lucena Prof Dr Siacutelvio Donizetti de Oliveira Gallo Profordf Drordf Ana Helena Cizotto BellineData da defesa 30072009Programa de poacutes-graduaccedilatildeo Educaccedilatildeoe-mail veracrepaldigmailcom

Pereira Vera Luacutecia Crepaldi

P414d As deusas gregas virgens face ao poder de Afrodite Vera Luacutecia Crepaldi

Pereira -- Campinas SP [sn] 2009

Orientador Joaquim Brasil Fontes Juacutenior

Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Universidade Estadual de Campinas Faculdade

de Educaccedilatildeo

1 Deusas gregas 2 Afrodite (Divindade grega) 3 Desejo4 Poder

5 Patriarcado 6 Civilizaccedilatildeo I Fontes Juacutenior Joaquim Brasil II Universidade

Estadual de Campinas Faculdade de Educaccedilatildeo III Tiacutetulo

09-164BFE

ii

iii

ano 2009

v

Inspirada em Afrodite

dedico esterdquo ergonrdquo agrave minha genealogia

a meus pais Nair e Alfredo

que me colocaram na cena do mundo

e a meus filhos Fabiana e Marcelo

descendentes da linhagem familiar

vii

AGRADECIMENTOS

ldquoO meu gesto de agradecimento envolve mais do que os nomes citados revela os abraccedilos que me ampararamrdquo

Agradeccedilo

Ao professor Dr Joaquim Brasil Fontes meu orientador pela confianccedila que depositou em meu trabalho e pela partilha de seu conhecimento

Aos professores Drs Norma Sandra de Almeida Ferreira Siacutelvio Donizetti Gallo Maria

Inecircs Ghillardi-Lucena Ana Helena Cizotto Belline que contribuiacuteram com sua presenccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo da Banca e na leitura do texto

Agraves professoras Dras Elisa Angotti Kossovitch Liacutelian Martins da Silva e Letiacutecia Canedo

pelo incentivo e participaccedilatildeo na minha pesquisa Ao Dr Mauro Bilharinho Naves por seu apoio incansaacutevel e pelos diaacutelogos

esclarecedores sobre a mitologia grega Agrave amiga professora Linda Bishop da Silveira por suas leituras atentas do texto e das

traduccedilotildees em inglecircs Ao Pe Paulinho (Paulo Roberto Rodrigues) pelas suas orientaccedilotildees fundamentais no

campo da teologia A Michelle Risso por sua paciecircncia e alegria nos nossos ldquoencontros em gregordquo A ldquoFlavinha Felizrdquo por suas constantes formataccedilotildees no texto que eu sempre

ldquodesformatavardquo Aos funcionaacuterios da Secretaria Nadir Rita Antonio Carlos Gisleine Cleo pelo

atendimento soliacutecito e pelas indicaccedilotildees constantes e ao Ademiacutelson da Informaacutetica pela digitaccedilatildeo perfeita dos textos em grego

Ao grupo de pesquisa do GEPEDISC que me acolheu com simpatia Aos colegas de curso que direta ou indiretamente participaram do meu percurso

acadecircmico

ix

RESUMO

O objetivo deste estudo as deusas gregas virgens Aacutertemis Atena e Heacutestia eacute demarcar a

existecircncia e a significaccedilatildeo especial dessas deusas no mundo arcaico grego frente agrave posiccedilatildeo

ocupada por Afrodite como representaccedilatildeo do desejo O sistema miacutetico prevecirc a questatildeo do desejo

articulada ao lsquopoderrsquo conforme evidenciam as reflexotildees feitas a partir do corpus selecionado as

obras de Homero de Hesiacuteodo e os Hinos Homeacutericos referentes agraves deusas virgens e a Afrodite A

metodologia que orienta esta pesquisa segue uma linha antropoloacutegica comparativa incluindo

autores como Geertz e Detienne com enfoque no uso e na significaccedilatildeo da linguagem da

produccedilatildeo escrita dos rapsodos gregos O conceito de virgindade eacute direcionado pelo conceito de

desejo e parece necessaacuterio que se considerem as propriedades e os atributos de Afrodite para

definir as deusas gregas virgens que fruem ldquode um outro modo de desejo e de poderrdquo Esse

aspecto nos faz refletir sobre uma sociedade patriarcal e as formas de independecircncia feminina

como instacircncia de compromisso soacutecio-poliacutetico bem como sobre a manutenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

herdada da grande matildee (Magna Mater) e das Amazonas Uma possiacutevel indicaccedilatildeo a partir desses

dados eacute que o Cristianismo procurou dar continuidade a esse aspecto de gecircnero que promove a

civilizaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo da sociedade atraveacutes da figura da lsquomadrersquo como elemento de

significaccedilatildeo cultural

Palavras-chave Deusas gregas virgens Afrodite desejo poder sociedade patriarcal

civilizaccedilatildeo

xi

ABSTRACT

The aim of this study which focuses on the Virgin Greek goddesses Artemis Athene and

Hestia is to stress the existence and the special meaning of those goddesses in the archaic Greek

world compared with Aphroditersquos position as a representative of lsquodesirersquo The mythical system

comprises the matter of desire linked to the meaning of ldquopowerrdquo according to the evidence of

reflections made from the corpus selected Homerrsquos and Hesiodrsquos works and the Homeric Hymns

referring to the virgin goddesses and Aphrodite The methodology that orients this paper follows

authors such as Geertz and Detienne focusing on the use and meaning of the language in the

written production of the Greek rapsodes The concept of virginity is directed by the concept of

desire and it is necessary to consider Aphroditersquos properties and attributes to define the virgin

Greek goddesses who have another form of desire and power That aspect brings up

considerations on a patriarchal society and ways of feminine independence as a means of social-

political commitment as well as on the maintenance of a tradition inherited from the Great

Mother and the Amazons One possible direction arising from the above facts is that Christianity

tried to give sequence to this aspect of gender which promotes civilization and the organization

of society by way of the lsquomater figurersquo as an element of cultural significance

Key words Virgin Greek goddesses Aphrodite desire power patriarchal society civilization

xiii

SUMAacuteRIO

Dedicatoacuteria v

Agradecimentos vii

Resumo ix

Abstract xi

1- Introduccedilatildeo 1 2 - Encruzando Aspectos do Cosmo Natureza Deuses e Homens 5

21 - Fragmentos do Uno 5 22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees 10

3 - A questatildeo metodoloacutegica um olhar sobre a pesquisa bibliograacutefica 17 4 - O que eacute traduzir lsquoHomerorsquo e os rapsodos gregos Tentativas e riscos 43 5 - Que deusas satildeo essas 49

51 - Afrodite e a representaccedilatildeo do desejo 49 52 - Aacutertemis a liberdade e a virgindade 64 53 - Atena a deusa virgem da sabedoria e da guerra 71 54 - Heacutestia e a castidade 76

6 - A questatildeo da virgindade e as deusas virgens 85

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo 85 62 - O caraacuteter da virgindade no Cristianismo 96

7 - Conclusatildeo Ou indicaccedilatildeo de suposiccedilotildees 105 Referecircncias 115 Bibliografia 119 Anexos 121

Anexo A - Hinos Homeacutericos a Afrodite 121 Anexo B - Hinos Homeacutericos a Deusas virgens 125

1

1 ndash INTRODUCcedilAtildeO

ldquoOutros jaacute passaram por esta Senda por isso a novidade de tudo o que eu digo de novo estaacute na forccedila da repeticcedilatildeordquo1

Na condiccedilatildeo de professora de liacutenguas estamos sempre investigando o uso das palavras no

discurso como elas se articulam como elas se estabelecem como elas se traduzem como elas

ldquofingemrdquo ser contidas em supostas definiccedilotildees enfim estamos sempre atravessando o corredor

estreito das significaccedilotildees e das compreensotildees

Como se isso natildeo bastasse as palavras nos levam aos seus percursos ao longo dos

tempos agraves vezes revelando e agraves vezes ocultando estaacutegios de transformaccedilotildees por que passaram

Assim a palavra por si soacute jaacute nos coloca diante de uma rede que envolve sua histoacuteria sua

etimologia sua categoria sua funccedilatildeo E foi a palavra com todo esse contexto maacutegico que nos

cativou

Comeccedilamos perseguindo o conceito de virgindade na Greacutecia de Homero e de Hesiacuteodo e

nos deparamos com um entrelaccedilamento de fatos de conceitos de outras palavras de traduccedilotildees

de um mundo que todas as vezes que pensaacutevamos alcanccedilaacute-lo distanciava-se mais e fazia com

que tambeacutem a nossa pesquisa virasse uma lenda miacutetica em que os deuses superavam em muito o

trabalho humano que empreendiacuteamos

Mas nada ocorre por acaso A nossa iniciativa de trilhar a palavra nesse mundo numinoso

teve uma ponta de lembranccedila e de afeto no encontro com um grande mestre e amigo de tempos

tambeacutem passados Fizemos nosso o seu desafio e desta forma nasceu o nosso objeto de estudo

Fomos tomados pela curiosidade e pelo interesse quando o scholar o helenista professor Dr

Joaquim Brasil Fontes instigou-nos a pensar nas deusas gregas virgens carregadas de valores

de funccedilotildees de lendas que ainda fazem parte de nosso cotidiano e cujas raiacutezes estatildeo atreladas a

um tempo do qual natildeo se desvinculam apesar das transformaccedilotildees e dos ajustes por que vatildeo se

atualizando amoldando-se a novos perfis a novos modus vivendi transpondo espaccedilos

geograacuteficos e culturais atravessando filosofias e marcando a histoacuteria

1 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p 9

2

Tentamos diante do impacto da tarefa pensar como nesse grande eixo assinalado de

homens mortais a presenccedila de Deusdeuses afeta e determina a dimensatildeo humana Pensamos

tambeacutem na nossa experiecircncia de vida marcada por cultos e rituais apesar de todo o progresso da

ciecircncia e da tecnologia

Nossas salas de aulas - tambeacutem elas - se revestem de ritos como cenaacuterio para o estudo de

hipoacuteteses de buscas de discussotildees de valores de sustento do que se acredita ter a forccedila da

verdade E o que seria o entendimento de verdade em um momento teria feiccedilotildees e propostas

diferentes em outras culturas em outros tempos o que mostra que o estatuto de uma suposta

verdade se transfigura e tem um movimento flexiacutevel contiacutenuo propondo novas direccedilotildees e

determinando novos olhares

Nessa atmosfera de consideraccedilotildees foi colocada a questatildeo que encaminhou nossa busca

por princiacutepios que se prendem ao mundo grego - que tem sido objeto de tanto estudo - do qual

herdamos concepccedilotildees de vida e de arte de misteacuterio e de sagrado de sobrenatural e de mundano

se possiacutevel eacute destacar e separar esses princiacutepios norteadores do humano Por que teriam as deusas

gregas Heacutestia Palas Atena e Aacutertemis resistido ao casamento O que as teria movido para que se

mantivessem virgens Como seria entendida a eacutegide da virgindade naquela sociedade Que

mecanismo levaria a compreender os poderes dessas entidades marcadas por uma caracteriacutestica

que se opunha agraves grandes narrativas de relacionamentos de filhos gerados com uns e outros

deuses de traiccedilotildees de intrigas que envolviam deuses e deusas no grande cenaacuterio do mundo dos

homens gregos O que fundamenta a traduccedilatildeo e a compreensatildeo da palavra virgem na passagem

da liacutengua grega para a liacutenguacultura ocidental

Perguntas surgiam e determinavam outras perguntas Eram propostas investigaccedilotildees sobre

investigaccedilotildees leituras sobre leituras Hesiacuteodo e Homero foram se tornando familiares o alfabeto

grego foi se revelando real os questionamentos sobre a arte da traduccedilatildeo (seraacute uma arte) se

fizeram tambeacutem reais As deusas foram tomando forma e suas imagens se faziam presentes em

cada momento do dia atravessando a barreira do tempo e do espaccedilo Listaram-se conteuacutedos e

disciplinas que pudessem ajudar a nortear o trabalho Foram surgindo autores que comeccedilaram a

fornecer elementos para a investigaccedilatildeo Vernant Loraux Detienne Calame Parry Geertz

Freud Deleuze Lerner Buscava-se da mitologia agrave filosofia da cultura agrave psicanaacutelise do

discurso da oralidade agraves questotildees da traduccedilatildeo Natildeo que esse caminho tivesse sido inicialmente

3

planejado Ele foi surgindo como consequumlecircncia de necessidades em que uma busca conduz a

outra Foi se impondo como resultado de ldquoescavaccedilotildeesrdquo como dizia com humor o nosso

orientador Essa mesma procura ia fazendo que acontecessem ldquoexplosotildees de significadosrdquo e a

palavra o uso da linguagem foi se tornando cada vez mais o grande foco de nosso olhar

Dada a abrangecircncia de material e da temaacutetica do objeto que se propocircs examinar tivemos

que fazer escolhas e estabelecer limites como buacutessola indicadora de um caminho pois

correriacuteamos o risco de nos perdermos nas adjacecircncias e de natildeo chegarmos agrave estrada principal

Decidiu-se investigar o cenaacuterio que recebe os deusesdeusas gregos a mitologia (com

suas implicaccedilotildees culturais e histoacutericas) e a filosofia que os ampara Nesse estudo optou-se por

uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica que natildeo se concentrasse apenas nas estruturas caracteriacutesticas dos

fenocircmenos religiosos miacuteticos mas que buscasse a compreensatildeo do texto procurando entender a

partir do contexto histoacuterico-cultural o fenocircmeno de deusas que escolhem a virgindade como

expressatildeo de sua sexualidade (veja-se a ousadia e a impropriedade do termo na falta de outro

em relaccedilatildeo agraves deusas virgens) em um mundo arcaico Este fato provoca um discurso relevante e

significativo na histoacuteria da mitologia e atribui a Heacutestia Atena e Aacutertemis uma posiccedilatildeo especial no

cenaacuterio dos deuses e deusas

Alguns aspectos satildeo pertinentes nesse tipo de investigaccedilatildeo primeiro levar em conta a

inseparabilidade do que se atribui ao mito com os dados histoacutericos e geograacuteficos que fazem parte

da narrativa poeacutetica de Homero de Hesiacuteodo e de outros autores daquela eacutepoca e de eacutepocas

proacuteximas consequumlentemente a relevacircncia do contexto soacutecio-cultural com seus elementos

significativos Aleacutem disso natildeo se pode deixar de considerar que o conceito de mito prevecirc nas

tentativas de defini-lo consideraccedilotildees que hoje se colocam como religiatildeo justamente pelo fato de

representarem o contexto soacutecio-histoacuterico ao qual nos referimos Desta forma a natureza os

deuses os homens o sagrado o profano o mortal o imortal faziam parte de uma mesma

temaacutetica organizando-se e reorganizando-se de acordo com os valores e os niacuteveis sociais das

comunidades gregas

Reflexotildees sobre essas questotildees que compotildeem o objeto de nosso estudo satildeo feitas em um

capiacutetulo como forma de um esclarecimento do assunto e como direccedilatildeo para encaminhamento e

aprofundamento em outro momento que se fizer oportuno

4

Eacute preciso poreacutem que fique claro que o objetivo de uma pesquisa como esta natildeo eacute dar

respostas definitivas mas antes levantar hipoacuteteses Como jaacute bem colocou Sartre ldquoEacute proacuteprio de

uma pesquisa ser indefinida Nomear e defini-la eacute fechar o ciclo o que restardquo2

Assim seratildeo propostas questotildees investigativas em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees miacuteticas que

envolvem o feminino no mundo arcaico grego Enfocar as trecircs deusas virgens na sua

independecircncia e na sua recusa agrave submissatildeo masculina aos laccedilos do casamento agrave fecundaccedilatildeo e

principalmente agrave entrega do desejo agrave philia a eros ou seja a Aphrodite pressupotildee uma

compreensatildeo da virgindade grega em uma sociedade patriarcal

A posiccedilatildeo de Aacutertemis Atena e Heacutestia em relaccedilatildeo a Afrodite revela um emparelhamento e

prevecirc variaccedilotildees de traccedilos que determinam o feminino em um espaccedilo soacutecio-cultural em que se

movem deuses heroacuteis e homens mortais Estabelece-se aiacute a virgindade como uma forma de Ser

como um paradigma (embora o termo possa parecer estruturalista) representativo do domiacutenio

social

Estatildeo pois colocadas no mundo grego arcaico a valorizaccedilatildeo do feminino e as diferentes

formas de atuar frente ao Kosmo quer seja nas manifestaccedilotildees da astuacutecia e da inteligecircncia quer

seja nas questotildees do olhar e dos rituais quer seja no acircmbito do desejo e da interdiccedilatildeo

As deusas gregas virgens fazem parte da conjugaccedilatildeo do imenso tabuleiro que a epopeacuteia

grega fez conhecer contandocantando

2 SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967

5

2 - ENCRUZANDO ASPECTOS DO COSMO NATUREZA DEUSES E HOMENS

ldquo O divino que nos poemas homeacutericos se apresenta com tanta clareza eacute multiforme e contudo sempre idecircntico a si mesmo por toda a parte Exprime-se em todas as suas formas um espiacuterito excelso um destino elevado Natildeo querem os referidos poemas aportar uma revelaccedilatildeo religiosa ou propor uma doutrina sobre os deuses Soacute querem visualizar e formar no gozo da visatildeo assim em face deles se expotildee o reino inteiro do mundo terra e ceacuteu aacutegua e ar aacutervores bichos homens e deusesrdquo3

21 - Fragmentos do ldquoUnordquo

Apesar de o estudo que se empreendeu ter como foco a questatildeo da virgindade de trecircs

deusas Heacutestia Aacutertemis e Atena percebe-se que esse elo comum que as une em um mesmo

aspecto tambeacutem determina caracteriacutesticas individuais diferentes o que as coloca em posiccedilotildees

que destacam suas funccedilotildees e participaccedilatildeo na vida do homem grego Assim nessa trajetoacuteria que

se percorreu evidenciou-se que a virgindade pode estar relacionada a diferentes fatores quer

sejam eles sociais culturais histoacutericos poliacuteticos ou mesmo individuais Essa referecircncia jaacute

destaca a questatildeo do conceito a questatildeo do amor e do desejo a questatildeo do nefando e do

inefaacutevel a questatildeo do casamento e da ligaccedilatildeo sexual a questatildeo do masculino e do feminino

enfim a questatildeo do corpo do olhar e do poder

O primeiro aspecto que nos trouxe embaraccedilo foi quando se propocircs separar algumas

partes em capiacutetulos Notou-se que os conceitos se enredavam todos permeando a vida dos

deuses dos homens sem deixar de ter a natureza colocada lado a lado nesse complexo

organizacional aparentemente inseparaacutevel Confirmando essa revelaccedilatildeo a obra de autores como

Homero Hesiacuteodo e autorescantores (chamados homeacuteridas que se diziam descendentes de

Homero) que cantavam os poemas de seu suposto antepassado que se constituiu corpus do

trabalho entrecruzavam os imortais os mortais e a natureza no mesmo espaccedilo coacutesmico

Essa aparente unidade coacutesmica possibilitou para alguns filoacutesofos interpretaccedilotildees de uma

unidade do mito como a que apresenta Torrano (1996) quando se reporta agrave ldquodescriccedilatildeo geral

desta ontologia iacutensita no mito do mundordquo

3 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p 12

6

Em liacutengua grega nos versos de Homero e de Hesiacuteodo em que ldquoconsubstancia-se a

necessaacuteria unidade de ilatecircncia de mito de culto e de cantordquo4 Assim os mortais ldquotranseuntes

do mundordquo satildeo interpelados pelos deuses isto eacute pelo proacuteprio mundo

Essa colocaccedilatildeo de deuses com uma posiccedilatildeo fundada na imortalidade distingue-os dos

homens na sua mortalidade e os posiciona como formas eternas do mundo Isso jaacute reflete que de

algum modo deuses e homens situam-se ainda que no mesmo cosmo em planos diferentes Os

homens se vecircem interpelados no dizer de Torrano por algo que os ldquoultrapassardquo e eacute justamente

essa energia coacutesmica que daacute ao homem sua substacircncia e que o coloca em movimento para que

sua natureza no mundo ganhe significaccedilatildeo ao mesmo tempo em que o mundo tambeacutem adquire

sentido Nesse movimento de matildeo dupla o homem descobre a sua existecircncia no mundo e o

mundo eacute o princiacutepio constitutivo originaacuterio da forccedila vital infinita e inexauriacutevel Para melhor

entender citamos Torrano

O eterno eacute pensado nesse movimento em que se unem identidade e alteridade nessa unidade vive o ser dos Deuses eles satildeo os que vivem para sempre e de uma soacute vez essa infinitude inexauriacutevel de vezes5

Portanto mesmo em se ressaltando a ideacuteia de unidade o que implica uma visatildeo

estruturalista sobressai um aspecto essencial em nosso entendimento o significado do Cosmo soacute

pode adquirir sentido a partir de um cruzamento Eacute na convergecircncia de deuses e de homens de

imortais e de mortais de eternos e de transeuntes de planos pois diferenciados se natildeo na sua

origem pelo menos nas suas formas existenciais que reside o discernimento complexo do divino

e do humano

Mais ainda a palavra grega cosmo Ќόσmicroος remete agrave definiccedilatildeo de um orderly or

harmonious system6 isto quer dizer que cosmos eacute a antiacutetese de Caos por representar uma

organizaccedilatildeo ordenada harmoniosa Aleacutem desse significado a que se ateve nas deduccedilotildees

apresentadas ateacute aqui haacute ainda o registro de que Cosmo significa ldquoornamentosrdquo

4 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 p 11 5 TORRANO JAA idem p19 6 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008

7

A palavra Ќόσmicroον eacute usada por Homero com essa conotaccedilatildeo (ornamentos) no canto XIV

da Iliacuteada verso 187 O mesmo sistema que organiza ornamenta Entatildeo poderiacuteamos questionar

em um arroubo de ousadia se a virgindade dentro desse sistema organizado seria uma forma de

ornamento que qualifica as deusas virgens como um atributo especial Seria o epiacuteteto ldquovirgemrdquo

um efeito esteacutetico dessa revelaccedilatildeo que indica um modo de harmonia Ficam aiacute questionamentos

para tambeacutem eles se enredarem nesse complexo mundocosmo grego De qualquer modo esse

epiacuteteto direcionado a Heacutestia Aacutertemis e Atena revela o uso de uma teacutecnica mnemocircnica

relacionada a algum aspecto significativo da ordem coacutesmica no enfoque das atribuiccedilotildees dessas

deusas A repeticcedilatildeo das palavras parthenos e koreacute referentes a elas mereceu reflexotildees que estatildeo

encaminhadas ao longo deste trabalho

Repensando pois o assunto da virgindade viu-se que se estava diante de um conflito

deleuziano criar um conceito nesse espaccedilo ldquohabitadordquo por deuses e homens Ainda reportando-

se a Deleuze e Guattari7 descobriu-se que pelo menos por esse vieacutes (que segundo os autores

natildeo deve ser considerado metodoloacutegico) seguia-se a trilha certa pois que Deleuze e Gattari em

se tratando de definir o conceito ressaltam o fato de que cada um remete a outros conceitos e

que seus componentes por sua vez podem ser entendidos como outros conceitos Foi

exatamente essa inseparabilidade de vaacuterios aspectos relacionados a esse remeter histoacuterico de

outros conceitos que ocorreu enquanto se procurava realizar um exame da virgindade evocada

por Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena

Deleuze e Guattari apontam para um ponto primordial da investigaccedilatildeo no que diz

respeito a essas vibraccedilotildees e encruzamentos de conceitos (em onde nos inspiramos para o tiacutetulo

dessa primeira parte - se assim se pode considerar -) que eacute a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da

incompletude com que se depara frente a uma tarefa desse porte Como determinar com umas

poucas palavras juntadas formando uma proposiccedilatildeo - que faz parte das ciecircncias - como definir a

virgindade como um traccedilo uacutenico de deusas distintas Essa posiccedilatildeo deleuziana esteve presente em

todas as nossas consideraccedilotildees em momentos que apresentavam divergecircncias e que

encaminhavam para um discurso polissecircmico marcado por diferentes vozes Procurou-se ter

sempre presente a fala de Deleuze e Guattari

7 DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed341997

8

Os conceitos como totalidades fragmentaacuterias natildeo satildeo sequer os pedaccedilos de um quebra-cabeccedila pois seus contornos irregulares natildeo se correspondem Eles formam um muro mas eacute um muro de pedras secas e se tudo eacute tomado conjuntamente eacute por caminhos divergentes8

Chegou-se entatildeo a uma postura ora se se estaacute examinando a obra de poetas eacute a partir

de suas colocaccedilotildees que a arte tira perceptos e afectos o que exige dizer que se trabalhou com

criaccedilotildees com deduccedilotildees com interpretaccedilotildees baseadas em um contexto - rdquoponte moacutevelrdquo - e natildeo

com verdades loacutegicas e cientiacuteficas Deixamos as verdades conclusivas para o domiacutenio da ciecircncia

e da filosofia se for o caso Fica-se com as hipoacuteteses e com as conjeturas a partir do discurso

literaacuterio Fica-se com as narrativas miacuteticas que se prendem a questotildees histoacuterico-sociais

reveladoras de sentido fica-se com a manifestaccedilatildeo do poder social que direciona o discurso da

sociedade que tinha na sua Teogonia o relato das origens do mundo mas que eacute muito mais

revelador do que apresenta ser quando comparado aos relatos miacuteticos dos hititas e dos feniacutecios e

com as teogonias da Babilocircnia9

A questatildeo da verdade se entendida no domiacutenio do homem grego aleacutetheia diz Torrano

reportando-se a Heidegger e a Detienne seraacute ldquoilatecircnciardquo o que marca a presenccedila pois natildeo pode

ser ocultado Desta forma se assim entendido no movimento de serem virgens que as deusas

Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena se constituem como aquilo que aparece e marca uma verdade A

virgindade entendida pois como o traccedilo mais caracteriacutestico dessas deusas

No desvelar-se das formas divinas impera ilatecircncia como fundaccedilatildeo da presenccedila e dos vaacuterios modos de latecircncia e de aparecircncia10

Os deuses satildeo as formas miacuteticas que constituem os elementos que justificam a presenccedila

do homem no cosmo poreacutem estudar a mitologia grega eacute acima de tudo mexer na memoacuteria

social de um povo tentando captar a essecircncia das narrativas que apresentam o divino e o humano

lado a lado ora aproximando-os e fundindo-os ora distanciando-os e ressaltando uma paixatildeo ou

um sentimento que evidencie o sagrado pela marca desta ou daquela estranheza que chega a

tocar o fantaacutestico De qualquer forma caminham lado a lado homens e deuses o real e o

imaginaacuterio entrelaccedilando-se na vida ciacutevica e na vida religiosa

8 DELEUZE Gilles e GUATARI Feacutelix Idem p 35 9 A respeito das Teogonias verificar Marcel Detienne e JP Vernant 10 TORRANO JAA op cit p 18

9

Como bem definiu Vernant eacute impossiacutevel separar de qualquer estudo que examine

aspectos do mundo grego ldquoaquilo a que se chamaria de bom grado o estilo religioso gregordquo11

A referecircncia a essa posiccedilatildeo faz-se necessaacuteria para se entender o mundo grego com todas

as suas caracteriacutesticas filosoacutefico-culturais pois que direciona o olhar para uma eacutepoca em que o

politeiacutesmo natildeo implicava a onipotecircncia e a transcendecircncia como se entende no estatuto da

religiatildeo cristatilde Pelo contraacuterio os deuses gregos foram criados com o mundo e complementam-se

nas suas funccedilotildees e na sua multiplicidade Os deuses gregos fazem parte da gecircnese do mundo e

para Vernant satildeo antes considerados Potecircncias - natildeo apenas formas - e portanto tecircm aspectos

mundanos e divinos pois pertencem agrave organizaccedilatildeo do universo e agrave vida social dos homens

Acreditamos que essa posiccedilatildeo tambeacutem enfatiza a questatildeo do impulso da ilatecircncia a que se

atribui aos deuses na visatildeo fundamentalista A palavra potecircncia natildeo se refere simplesmente a

poder e a forccedila aplicada para a realizaccedilatildeo de um efeito mas tambeacutem um elemento gerador de um

impulso de uma energia organizando o espaccedilo (Kosmos) enquanto se define a presenccedila do

homem na terra

As ciecircncias humanas e a filosofia acabaram por criar uma ruptura com o pensamento

antigo na medida em que tentaram racionalizar e demonstrar a concepccedilatildeo de mundo da

Antiguidade Como esse natildeo eacute o foco de nosso objeto de estudo deu-se ecircnfase ao dizer

invocativo que a poesia de Homero de Hesiacuteodo e de outros rapsodos revela Como declara

Chacirctelet12 eacute essa concepccedilatildeo de mundo arcaico que marcaraacute uma tradiccedilatildeo essencialmente

diferente da tradiccedilatildeo que mais tarde as filosofias da Idade Medieval e da Idade Moderna teratildeo

de se haver no que diz respeito agrave organizaccedilatildeo religiosa ligada agrave revelaccedilatildeo cristatilde e agrave ordem

soacutecio-econocircmico-poliacutetica A natureza agrave qual os aedos se referem nada tem a ver com os siacutembolos

que a Idade Meacutedia se ldquoimporaacute decifrar nem com o sistema de equaccedilotildees e de maacutequinas que o

pensamento moderno iraacute proporrdquo 13

O que parece fundamental eacute tentar entender o pensamento da eacutepoca arcaica que expressa

a relaccedilatildeo do indiviacuteduo com tudo que o circunda

11 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p11 12 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 13 CHAcircTELET Franccedilois Idem p14

10

seu imaginaacuterio e seus deuses seus concidadatildeos e seus familiares as coisas que o fazem sofrer e as de que frui seu proacuteprio pensamento e os objetivos que lhe estabelecem14

Eacute exatamente com base nessa concepccedilatildeo de mundo que se eacute tentado a estabelecer o uno

como condiccedilatildeo essencial da Antiguidade Poreacutem como demonstram Deleuze e Guattari e como

questiona Chacirctelet a ideacuteia de aceitar uma concepccedilatildeo de mundo fechada sobre si mesmo eacute

tentadora poreacutem a Filosofia natildeo conseguiu elaborar uma linha uacutenica que possa conceituar ou

traccedilar um perfil fechado desse tempo Sobre isso diz Chacirctelet

Uns o tomaratildeo por ldquoperiacuteodo originaacuteriordquo inscrevendo sua marca indeleacutevel na ordem do espiacuterito outros progressistas agrave sua maneira veratildeo aiacute uma primeira etapa edificante na elaboraccedilatildeo do saber outros enfim ldquoregressistasrdquo a compreenderatildeo como marca de um passado que por natureza deve estar indefinidamente perdido15

Eacute nessa etapa da produccedilatildeo escrita ndash que podemos chamar de primeira ndash que nos detemos

nas aventuras de deuses e de heroacuteis na louvaccedilatildeo de entidades divinas na origem da organizaccedilatildeo

do cosmo Enfim no que se considera caracteriacutestico daquele periacuteodo a poesia eacutepica

Nesse campo que movimenta linguagem e cultura procuramos perseguir o conceito de

virgindade na representaccedilatildeo das deusas consideradas virgens sem fragmentaacute-las sem retiraacute-las

do panteatildeo grego mas concebendo-as como peccedilas do jogo de palavras que se vai compondo em

relaccedilatildeo aos outros deuses e deusas e em relaccedilatildeo ao desejo e agraves questotildees de gecircnero que perpassam

o humano desde o iniacutecio de sua origem escrita Portanto seraacute que desejo e poder se opotildeem agrave

virgindade ou fazem parte desse mesmo cosmo uno Fica aiacute mais uma pergunta

22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees

Eacute a partir da narrativa da criaccedilatildeo do mundo que se encontra a primeira referecircncia ao amor

e agrave fecundidade Assim sendo pode-se dizer que a virgindade estaacute subentendida nesse

mecanismo de misteacuterio e de forccedila que determina a procriaccedilatildeo Tanto em Homero quanto em

Hesiacuteodo encontram-se relatos narrativos da criaccedilatildeo do mundo Embora apresentem

interpretaccedilotildees diferentes a noccedilatildeo de fertilidade e de divindade feminina fecundada estaacute presente

nos conteuacutedos referentes a essas narrativas de tradiccedilatildeo mitoloacutegica dos deuses primordiais

14 CHAcircTELET Franccedilois Op cit p14 15 Idem

11

Na Iliacuteada XIV v 197 e seguintes no momento em que Hera estaacute dialogando com

Afrodite ela lhe fala de Oceano o pai de todos os deuses e da matildee primordial Teacutetis que a

acolheram e a nutriram e que naquele momento de discoacuterdia entre eles ela gostaria de ajudar

com o propoacutesito de que pusessem um fim nessa discoacuterdia reatando a afeiccedilatildeo e portanto

voltando a aproximarem-se do leito do matrimocircnio Reproduzimos a seguir um trecho da fala de

Hera a Afrodite no momento em que solicita sua ajuda Apresentamos a traduccedilatildeo de Murray

antes de examinarmos as palavras em grego de interesse para nosso estudo

ldquoGive me now love and desire wherewith thou 198 art wont to subdue all immortals and mortal men

E Hera continua referindo-se a Oceano e Teacutetishelliphelliphellip

Them am I faring to visit and will loose for them their endless strife 205 since now for a long timersquos space they hold aloof one from the other 206 from the marriage- bed and from love for that wrath hath come upon their heartshellip1617 207

Eacute interessante refletir sobre a escolha das palavras usadas por Homero nesses versos e a

significaccedilatildeo decorrente delas para nossas consideraccedilotildees sobre o universo feminino envolvendo

conceitos de virgindade de amor de desejo de fecundidade e ateacute mesmo de discoacuterdia entre os

sujeitos de gecircneros diferentes desde a narrativa da origem do mundo

Primeiramente o autor usa a palavra grega philotes (φιλότης) referindo-se ao amor

Segundo o dicionaacuterio Bailly (2000) essa palavra tem o significado de amor (amour) nesse

contexto (xiv v 198) Podemos pois inferir que eacute um tipo de amor que envolve laccedilos afetivos

ternura e amizade como seraacute posteriormente colocado pelos filoacutesofos No entanto a mesma

palavra philotes ou seja amor usada no verso 209 (ldquojoined together in loverdquo) acompanhada da

palavra όmicroωθήναι (omothenai) juntar e da palavra ευνής (euneacutes)isto eacute leito (XIV 206) tem

um significado de relaccedilatildeo iacutentima envolvendo pois uma noccedilatildeo de sexualidade

16 HOMER The Iliad v 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 17 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 ldquoDaacute-me o desejo e o feiticcedilo do amor com que sempre domaste (v 198) todos os deuses eternos e os homens de curta existecircncia (v199) vou visitaacute-los com o fim de compor-lhes antiga discoacuterdia (v 205) Haacute muito que ambos o leito apartaram desta arte se abstendo dos gratos elos do amor por se acharem inflados de coacutelerardquo (v 207)

12

Fica clara a relaccedilatildeo carnal como parte das atividades dos deuses e a questatildeo do leito

nupcial como local dos relacionamentos secretos Deuses e homens compartilhavam das mesmas

experiecircncias pois como jaacute fizemos referecircncia anteriormente viviam lado a lado O pensamento

poeacutetico tece o texto de forma tatildeo clara e objetiva que nos leva agrave investigaccedilatildeo do campo

semacircntico tais as palavras usadas para dizer de modo natildeo-velado de modo revelador e expliacutecito

o que Hera espera do compartilhamento que envolve o masculino e o feminino

Haacute vaacuterias outras passagens na Iliacuteada em que o autor se refere aos momentos de relaccedilotildees

iacutentimas entre os deuses mostrando que o desejo imeros [ιmicroερος] fazia parte do amor das

relaccedilotildees que se espera que aconteccedilam como atribuiccedilatildeo do universo de natureza divina Assim as

relaccedilotildees sexuais satildeo previsiacuteveis entre os deuses e eacute uma forma de manifestaccedilatildeo de amor entre os

gecircneros diferentes Haja vista que em sua fala Hera coloca que a discoacuterdia νειχεα entre esses

dois deuses primordiais Oceano e Teacutetis havia feito com que eles se afastassem do amor e

consequumlentemente do leito do casamento

Aleacutem disso parece que Homero como bom conhecedor da natureza humana coloca na

fala de Hera o pedido a Afrodite (deusa que subjuga os imortais e os mortais na questatildeo do amor)

de dar a Oceano e Teacutetis natildeo apenas amor mas amor e desejo pois que amor e desejo se

complementam e o desejo promove a manifestaccedilatildeo do amor quer atraveacutes dos sentimentos quer

atraveacutes dos contatos fiacutesicos como forma de expressatildeo e de representaccedilatildeo do sentimento

Eacute interessante observar que a forma Фιλοτήτος eacute usada nesses versos por Homero e que a

expressatildeo da presenccedila do desejo ou da representaccedilatildeo da sexualidade vem acompanhada de outras

palavras No entanto ainda no canto XIV Homero usa o termo ερος como no verso 315

significando entatildeo desejo

Essa variaccedilatildeo na escolha do leacutexico parece remeter a uma variaccedilatildeo semacircntica significativa

A expressatildeo ldquoamor e desejordquo ou seja philotes e imeros eacute entatildeo substituiacuteda por eros Para ερος

nesse contexto Il XIV315 Bailly apresenta a traduccedilatildeo para o francecircs passion amour [θεας

Ѓϋναιχος] correspondendo a ldquoamour pour une deacuteesse une femmerdquo18 Jaacute parece estar impliacutecita

em eros a questatildeo do desejo

18 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par SEacuteCHANT L et CHANTRAINE P Paris Hachette 2000 p 808

13

A presenccedila de Afrodite eacute evocada na combinaccedilatildeo de forccedilas que a deusa representa pois

sempre a acompanham Peithocirc a persuasatildeo alegre trapaceira e Apaacutete a ilusatildeo enganosa da

ternura O pensamento miacutetico eacute ambivalente na criaccedilatildeo de associaccedilotildees e se tece com diferentes

tons como ldquouma fita bordadardquo19

Fazemos nossas as palavras de Fontes quando ele se refere ao movimento das palavras agrave

multiplicidade de sentidos subjacentes a ela dentro do quadro cultural agrave mobilidade dos

conceitos que se enredam na tessitura do mundo miacutetico na composiccedilatildeo poeacutetica

O poema eacute com efeito como diraacute mais tarde Dioniacutesio de Halicarnasso um tecido precioso que nasce das matildeos do poeta quando ele reuacutene diversas liacutenguas numa soacute a nobre e a simples a elaborada e a natural a concisa e a extraordinaacuteria Mas o tecido de muitas cores onde os contraacuterios se misturam harmoniosamente eacute ele proacuteprio semelhante a Proteu o deus muacuteltiplo e inconstante que eacute aacutegua fogo aacutervoreleatildeo que reuacutene todas as formas numa soacute Da mesma maneira a seduccedilatildeo da palavra poeacutetica por meio dos prazeres do canto das medidas e dos ritmos eacute anaacuteloga agrave seduccedilatildeo exercida pela mulher por meio do lsquoencanto do olharrsquo (khaacuteris oacutepseoumls) pela lsquodoccedilura persuasiva da vozrsquo pela lsquoatraccedilatildeo da beleza do corpo20

Pois assim eacute que Homero e Hesiacuteodo misturaram em seus poemas deuses homens

paixotildees e desejos como pertencendo ao mesmo ceacuteu que os cobriam com voluacutepia agrave mesma aacutegua

que os inundava de espuma feacutertil agrave mesma terra que os acolhia com sua fecundidade criadora

As religiotildees de base cristatilde dessacralizaram a natureza e introduziram o modelo da

salvaccedilatildeo pessoal Em Homero ao contraacuterio a palavra tambeacutem fazia parte da phyacutesis mediando

deuses homens e natureza agrave qual tambeacutem pertencia

Assim em uma comparaccedilatildeo da postura e da feacute que move a religiatildeo grega em relaccedilatildeo agrave

religiatildeo cristatilde os gregos manifestavam uma atitude de respeito de preces de oferendas e de

sacrifiacutecios mas como parte de um empreendimento de trocas que experimentavam a partir da

adesatildeo de um costume jaacute estabelecido como suporte da proacutepria existecircncia e que por isso natildeo

precisava ser justificado Desde que havia cultos e rituais era porque eles se provaram

necessaacuterios Como seria possiacutevel conceber um deus transcendental se apenas mais tarde (por

volta do seacuteculo V aC) introduz-se o conceito de transcendecircncia com a filosofia platocircnica e o

mundo das Ideacuteias

19 Verificar sobre esse tema a obra de FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p247 20 FONTES Joaquim Brasil Idem p249

14

Para esclarecer essa questatildeo do movimento de pensamento ascensional nada melhor do

que reportar-se a Deleuze que discorrendo sobre imagens de filoacutesofos tece consideraccedilotildees sobre

o que se entende como princiacutepio filosoacutefico do meacutetodo ldquodas alturasrdquo como oposto ao sistema que

norteou o mundo fundamentalista grego Primeiro Deleuze questiona o que eacute orientar-se no

pensamento esclarecendo que cabe ao filoacutesofo efetuar uma operaccedilatildeo

Entatildeo determinada como ascensatildeo como conversatildeo isto eacute como o movimento de se voltar para o princiacutepio do alto do qual ele procede e de se determinar de se preencher e de se conhecer graccedilas a uma tal movimentaccedilatildeo21

Ora como poderiam os gregos que viveram antes de Platatildeo conseguir estabelecer um

pensamento que se vincula antes ao proacuteprio ato de pensar do que na experiecircncia da vida Essa

colocaccedilatildeo revela uma conclusatildeo baacutesica no entendimento da cultura grega politeiacutesta cuidava-se

dos estados da vida Ainda natildeo se colocava para os gregos o problema da orientaccedilatildeo do ato de

pensar Os deuses natildeo satildeo forccedilas naturais satildeo detentores de soberania exercendo poderes em

diferentes e diversos domiacutenios Para os gregos natildeo era preciso que houvesse uma revelaccedilatildeo para

fundamentar suas relaccedilotildees com o sobrenatural Elas eram representadas e perpetuadas na figura

dos deuses e nos cultos e rituais Fazia parte da vida como o uso do idioma como pertencente agrave

phyacutesis isto eacute agrave proacutepria natureza Acredita-se como Vernant que debruccedilar-se sobre o estudo de

um aspecto dos deuses leva a adentrar em um mundo em que

Entre o religioso e o social o domeacutestico e o ciacutevico portanto natildeo haacute oposiccedilatildeo nem corte niacutetido assim como entre sobrenatural e natural divino e mundano A religiatildeo grega natildeo constitui um setor agrave parte fechado em seus limites e superpondo-se agrave vida familiar profissional poliacutetica ou de lazer sem confundir-se com ela 22

Desta maneira viam os gregos em seus deuses valores e plenitudes que importam na

existecircncia terrestre Para que mais Todas as manifestaccedilotildees terrestres tinham seu lado sagrado

promovendo uma atitude dos cidadatildeos de se espelharem nos deuses natildeo de forma a reivindicar

favores individuais mas como exemplo de valores e do modo de ser que compotildeem a vida

Reforccedilando essa posiccedilatildeo da impossibilidade de uma separaccedilatildeo do que hoje se denomina

mitologia dos demais componentes culturais da sociedade grega podemos citar as palavras de

Berman DW no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo norte-americana do livro de Calame

21 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 p131 22 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p7

15

For the Greeks there is no ldquohistoryrdquo as distinct from the narrative (and until a relatively late date poetic) tradition and no ldquomythrdquo that is not implicated in the process of discourse production ldquoMythrdquo and ldquohistoryrdquo as defined in their modern senses cannot be separated 23

Esse enfoque reafirma o conceito de mito (mythos) usado por Aristoacuteteles em sua Poeacutetica

em que daacute especial relevacircncia ao mito ou seja agrave ldquohistoacuteriardquo Embora Aristoacuteteles esteja se

referindo especificamente aos componentes da trageacutedia podemos dilatar esse conceito no que se

refere agrave tradiccedilatildeo poeacutetica grega pois as narrativas de deuses e de heroacuteis tambeacutem continham

elementos que depois passaram a constituir partes integrantes da trageacutedia Estavam portanto

relacionados nos poemas eacutepicos o mito e a accedilatildeo o terror e a piedade o reconhecimento e a

questatildeo da verdade que seraacute examinada posteriormente tendo-se em vista os trabalhos de Veyne

e de Deleuze

O proacuteprio termo mito transforma-se pois o conceito eacute sempre acompanhado de um

constante processo de devir condiccedilatildeo de percepccedilatildeo da passagem de um mundo a outro

construindo-se e dissolvendo-se em outras coisas Assim natildeo podemos deixar de citar que no

tempo de Homero o conceito de mythos significava a palavra como se pode ver em um

pequeno trecho da Iliacuteada ldquoto be both a speaker of words and a doer of deedsrdquo (9443) 24 em

que mythos opotildee-se a ergon De acordo com Bailly somente apoacutes Homero o termo passa a ser

usado como faacutebula (ldquofablerdquo) particularmente com o sentido de lenda (leacutegende) em oposiccedilatildeo a

logos que ainda tendo como base Bailly25 a coloca como a palavra em geral (la parole)

Este cruzamento linguumliacutestico tenta revelar o ldquojogordquo de significados dos quais participavam

natureza deuses e homens formando o grande cenaacuterio do mundo grego Nesse mesmo cenaacuterio

trecircs personagens tinham uma atuaccedilatildeo que surpreendia pela caracteriacutestica que as diferenciava a

castidade e a forte determinaccedilatildeo de manterem-se virgens

23 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 p xvii ldquoPara os gregos natildeo haacute ldquohistoacuteriardquo como distinta da tradiccedilatildeo narrativa (e ateacute uma data relativamente recente poeacutetica) e nem mito que natildeo esteja enredado no processo de produccedilatildeo do discurso ldquoMitordquo e ldquohistoacuteriardquo como definidos em seus significados modernos natildeo podem ser separadosrdquo 24 HOMER Op cit p414 ldquohellip para ser tanto um orador de palavras quanto um realizador de accedilotildeesrdquo 25 BAILLY Anatole opcit

17

3 - A QUESTAtildeO METODOLOacuteGICA UM OLHAR SOBRE A PESQUISA BIBLIOGRAacuteFICA

Jaacute Aristoacuteteles tinha afastado a histoacuteria do mundo das ciecircncias precisamente porque ela se ocupa do particular que natildeo eacute um objeto da ciecircncia - cada fato histoacuterico soacute aconteceu e soacute aconteceraacute uma vez Esta singularidade constitui para muitos produtores ou consumidores de histoacuteria a sua principal atraccedilatildeo ldquoAmar o que nunca se veraacute duas vezesrdquo26

O objeto de estudo as deusas gregas virgens faz parte de um sistema do complexo

processo social e cultural de um povo Assim sendo o corpus selecionado como ponto de partida

remete a consideraccedilotildees explicaccedilotildees suposiccedilotildees e interpretaccedilotildees calcadas em uma posiccedilatildeo

teoacuterica

Como ler hinos e narrativas eacutepicas que falam das deusas das funccedilotildees e das caracteriacutesticas

que se pretendem conhecer e investigar sem optar por um caminho por uma demonstraccedilatildeo da

maneira como a histoacuteria coloca os modos de ser e de fazer dos homens em um dado tempo

Como o pensamento antropoloacutegico articula-se elaborando ldquoverdadesrdquo tradiccedilotildees inquestionaacuteveis

maneiras de agir coletivas que se aplicam a um povo delineando os traccedilos niacutetidos de seu perfil

independente de traccedilos iguais ou semelhantes em outros povos

As marcas que os nomeiam satildeo uacutenicas fazem-se peculiares distintas ldquofalamrdquo com

sotaque proacuteprio O homem se enraiacuteza ao solo funda-o e surge o nativo de um pedaccedilo geograacutefico

com uma identidade que lhe confere um nome localizado no espaccedilo vestiacutegios da sua construccedilatildeo

nesse cenaacuterio que se vai delimitando com contornos especiacuteficos Eacute nesse desenho do coraccedilatildeo

humano que a antropologia ausculta compara e prescreve Lanccedilou-se matildeo do estetoscoacutepio da

antropologia que examina o saber local que o investiga e como todo o envolvimento humano

tenta diagnosticar atraveacutes das pistas

O nosso olhar poreacutem natildeo se prende de modo exaustivo a uma uacutenica linha teoacuterica como

acircncora pretende ser sobretudo uma interpretaccedilatildeo uma contribuiccedilatildeo explicativa para o

fenocircmeno soacutecio-cultural da virgindade das deusas gregas com base em tudo o que jaacute foi dito e

revisto

26 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003

18

Quando se opta por uma linha epistemoloacutegica esse movimento jaacute determina que outras

teorias forneceratildeo posiccedilotildees antagocircnicas e outras ainda informaccedilotildees complementares A questatildeo

da verdade pertence pois ao seio da indagaccedilatildeo e nossa pesquisa natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilaacute-

la Propotildee-se apenas um pequeno vieacutes um ponto de vista a partir do acircngulo de nossa visatildeo jaacute por

si soacute especificada e direcionada pelo que a nossa individualidade eacute afetada pelo contexto cultural

que a determina

Nossa escolha por uma linha antropoloacutegica ou melhor pelo caraacuteter heterogecircneo dos

significados culturais justifica-se embora com propoacutesitos diferentes a partir das colocaccedilotildees

entatildeo feitas por Heroacutedoto (por volta de 450 a C) que acreditava que a vitoacuteria grega sobre os

persas natildeo se devia agrave bravura dos homens ou agrave vontade dos deuses mas ao resultado do conflito

entre culturas

Eacute pois com essa mesma interpretaccedilatildeo de levantar problemas e de descrever alguns

aspectos relevantes da diversidade cultural onde deusas gregas ditas virgens eram reverenciadas

ao lado de outras deusas e de deuses e de refletir sobre a evoluccedilatildeo do conceito da virgindade

atraveacutes dos tempos colocado em contextos diferentes que nossas indagaccedilotildees se apoacuteiam em uma

linha antropoloacutegica comparativa

Nesse percurso que se decidiu seguir verificou-se que muitas vezes dentro da busca pela

explicaccedilatildeo dos acontecimentos teorias divergem sobre os mesmos aspectos e alguns autores

criticam questionam levantam hipoacuteteses sobre outros autores e sobre os mesmos fatos

Descobrimos entatildeo que aleacutem do social as teorias encontram-se fatalmente ligadas a uma

posiccedilatildeo poliacutetica Assim sendo nosso trabalho como qualquer outro jaacute traz em si perigos pois

direciona a escolha dos acontecimentos e determina um estilo para representar as significaccedilotildees

culturais Como se isso natildeo bastasse os conceitos satildeo sempre ldquoprovisoacuteriosrdquo e movimentam-se

transfigurando-se para novas significaccedilotildees

Como diz Layton vamos procurar fazer uma ldquotraduccedilatildeo da culturardquo buscando o

entendimento dos ldquoaparentemente exoacuteticos costumesrdquo dos gregos da eacutepoca de Homero e de

Hesiacuteodo ldquocom os quais natildeo nos encontramos familiarizadosrdquo27

27 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 p11

19

De algum modo poreacutem nossa atenccedilatildeo se dirige para aspectos caracteriacutesticos do

comportamento social que o corpus selecionado revela sugerindo ligaccedilotildees entre aquilo que

lemos e aquilo que pode significar

Faz-se importante frisar que embora nossas propostas tragam em si preocupaccedilotildees de

caraacuteter social este estudo natildeo deve excluir consideraccedilotildees de enfoque do acircmbito da religiatildeo pois

que mito e religiatildeo se entrecruzam na dimensatildeo mitoloacutegica A religiatildeo como parte do estatuto

histoacuterico e das formas de pensar de agir de acreditar de um povo refletem um comportamento

obrigatoacuterio uma ldquoinfluecircncia coerciva sobre as consciecircncias individuais28rdquo

Em se priorizando preocupaccedilotildees culturais abrangentes verifica-se em um segundo

momento desta abordagem que o texto escrito eacute revelador de um significado soacutecio-histoacuterico-

cultural e parte-se dele como exemplo de um corpus usado na aacuterea da literatura que transcende o

aspecto linguumliacutestico nas suas significaccedilotildees muacuteltiplas na sua dinacircmica complexa nas suas tensotildees

geradoras de oposiccedilotildees nas suas metaacuteforas vigorosas nas suas narrativas extraordinaacuterias nas

descriccedilotildees ldquorepetitivasrdquo de dons e de atributos divinos e heroacuteicos

Aleacutem disso uma metodologia direcionada aos fazeres e agires humanos natildeo deve excluir

funccedilotildees pois satildeo elas que orientam o cumprimento das obrigaccedilotildees contratuais dos deveres

sociais e das crenccedilas morais previamente definidas e existentes no contexto cultural de forma

ampla exteriores ao individual

O estatuto impotildee-se aos sujeitos independentemente de seu desejo e para pertencer a um

grupo tem-se que seguir os mesmos ideais e as mesmas crenccedilas

Eacute com o pensamento voltado ao ato de criar de estabelecer normas e de verificar efeitos

de comportamentos que dirigem um povo que se deve tentar interpretar isto eacute entender do

exterior e agrave distacircncia grandes relatos da tradiccedilatildeo grega que datam do seacuteculo VIII-VII antes da

nossa era Toda a praacutetica narrada na escrita de Homero e de Hesiacuteodo constitui a representaccedilatildeo de

um sistema em accedilatildeo e natildeo pode pois ser surda e silenciosa aos sabores de uma eacutepoca Eacute nesse

trabalho que se percebe como a noccedilatildeo de mythos foi elaborada e se enraizou no solo grego Isso

conduz por seu turno agrave questatildeo do conceito

28 DURKHEIM apud LAYTON Op cit p 34

20

Como entender o mito e a mitologia Como ler esses relatos fantasiosos da tradiccedilatildeo

ldquodenunciada como inaceitaacutevel ou como natildeo sendo mais digna de credibilidade29rdquo como

questionava Tuciacutededes a partir de sua vertente histoacuterica

Recorremos agraves reflexotildees de Detienne30 sobre esse assunto Embora em um primeiro

momento (seacuteculo VII a C) a filosofia tenha atribuiacutedo ao mythos o sentido da narraccedilatildeo inventiva

e de relatos baacuterbaros a evoluccedilatildeo semacircntica do termo o conduz agrave conotaccedilatildeo de revoluccedilatildeo devido

agrave revelaccedilatildeo do partido dos sacircmios os mythiegravetai contra a tirania de Policrato

Com base no poema de Anacreonte de Samos no seacuteculo V aC a palavra mythos eacute usada

por Piacutendaro e por Heroacutedoto com restriccedilatildeo atribuindo-lhe o significado de ldquoo discurso dos outros

enquanto ilusoacuterio incriacutevel e estuacutepidordquo 31

Dessa forma os relatos histoacutericos procuram se apoiar nos logoi discursos

argumentativos enquanto os mythoi excluem a argumentaccedilatildeo raspando todo vestiacutegio de

observaccedilatildeo empiacuterica Assim nesse estado de coisas como coloca Detienne

Falar de mito eacute um modo de contar o escacircndalo de apontaacute-lo Mythos eacute uma palavra-gesto muito cocircmoda suficiente para denunciar a tolice a ficccedilatildeo ou o absurdo e confundi-los imediatamente32

Soacute no final do seacuteculo V eacute que o mythos deixa de ter sua conotaccedilatildeo de lugar-narrado (lieu-

dit) para se tornar discurso de uma forma de saber com base no que foi escrito pelos bioacutegrafos e

pelos poetas Eacute assim que o mito recortado da atividade histoacuterica designa um domiacutenio que

encerra a capacidade de narrar e de memorizar

Entramos pois no campo da memoacuteria fraacutegil e faliacutevel Quanto mais se distancia do

tempo menos criacutevel ela fica e mais e mais suas aacuteguas se engrossam tornando-se caudalosas

Natildeo eacute mais a verdade o que interessa o fato apontado desenhado em cima de si mesmo mas a

beleza do relato que envolve que narra o fabuloso que apresenta o inacreditaacutevel como prodiacutegio

Eacute com essa vestimenta leve e transparente que agora a chamada mitologia ndash os escritos

reunidos dos contemporacircneos ndash sofre a criacutetica de Platatildeo principalmente no que concerne aos

29 DETIENNE Marcel Os Gregos e Noacutes Uma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p39 30 DETIENNE Marcel Idem 31 DETIENNE Marcel Op cit 32 Idem p 41

21

aspectos formais e riacutetmicos para fins de memorizaccedilatildeo Para o filoacutesofo esse meio de expressatildeo

para estimular a memoacuteria e a comunicaccedilatildeo para privilegiar a audiccedilatildeo era

o sinal irrefutaacutevel de sua pertinecircncia ao mundo polimorfo e colorido de tudo que deleita a parte inferior da alma esse reino solitaacuterio onde as paixotildees e os desejos enlouquecem O discurso da mitologia natildeo somente eacute escandaloso ndash e o pesquisador da Repuacuteblica cataloga histoacuterias obscenas selvagens e absurdas - mas eacute perigoso pelos efeitos ilusoacuterios que acarreta a comunicaccedilatildeo da boca ao ouvido visto natildeo ser nem fiscalizada nem controlada33

Poreacutem como diz Detienne Platatildeo tentou inventar uma nova mitologia Pode-se pois

dizer que o filoacutesofo buscou trocar uma mentira por outra uma ldquobela mentira uacutetil capaz de

realizar para todos livremente tudo o que eacute justo34rdquo Assim nas suas Leis Platatildeo quer propor

uma nova tradiccedilatildeo substituindo o canto das musas e o murmuacuterio dos deuses narrados pelos

poetas dos seacuteculos anteriores

Ora eacute fundamental que se considere que eacute esse objeto que deve ser entendido na sua

riqueza humana na sua ambivalecircncia na sua multiplicidade de planos na variedade de niacuteveis de

sua significaccedilatildeo na diversidade dos contextos na singularidade de sua criaccedilatildeo Ou ainda como

diz Torrano acerca de sua anaacutelise sobre a Teogonia quando o corpus que se propotildee analisar

refere-se ao que chama de mitologia tambeacutem o estudo que se propotildee nada mais eacute do que um

ldquodiscurso sobre uma canccedilatildeo numinosa35rdquo veiacuteculo do saber de um tempo em um complexo

contexto cultural O que vale dizer pois que o mito eacute identificado por todos os leitores por seu

sentido relacional intriacutenseco pelas diferentes versotildees que ele pode conter e pelo contexto

etnograacutefico que subjaz aos seus planos significantes

Eacute com essa visatildeo que a anaacutelise se permite ser comparativa Nessa tentativa de comparar

conceitos e posiccedilotildees para alargar o entendimento do mito que nosso estudo evidencia a partir das

deusas gregas virgens que lanccedilamos matildeo de uma perspectiva social de linha antropoloacutegica geral

proposta por Durkheim

Para esse autor conceitos sociais gerais provocam o mesmo efeito da organizaccedilatildeo das

instituiccedilotildees isto eacute em determinados periacuteodos histoacutericos todas as sociedades estatildeo sujeitas a

condicionalismos que se apoderam das multidotildees e fazem-nas interagir e mover-se Assim ondas

33 Idem p 43 34 Idem p43 35 HESIgraveODO Teogonia A Origem dos deuses Estudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p13

22

de entusiasmo de paixatildeo de indignaccedilatildeo apoderam-se do povo de um paiacutes em um momento e o

impulsionam Acredita-se que essa posiccedilatildeo possa ser defendida na interpretaccedilatildeo de alguns

elementos significantes pois as narrativas miacuteticas e os rituais satildeo impelidos por uma forccedila ampla

que abrange todas as esferas A dinacircmica desse movimento perpassa a obra dos poetas em foco e

compotildee parte do conteuacutedo que acompanha o ritmo discursivo dos versos selecionados como

corpus

A chave fundamental de uma linha epistemoloacutegica calcada na antropologia eacute a de

compreender que cada sociedade delineia suas proacuteprias instituiccedilotildees que concebe seus padrotildees de

comportamento que desenha seus espaccedilos que considera as formas de sua organizaccedilatildeo social

que determina seus valores e impotildee sistemas Argumentando em favor de uma antropologia

comparada citamos uma posiccedilatildeo de Durkheim apud Layton

Uma vez que os fenocircmenos sociais natildeo podem ser controlados experimentalmente o uacutenico meacutetodo cientiacutefico apropriado para o trabalho do cientista eacute o comparativo36

ldquoA arte de construir comparaacuteveisrdquo como diz Detienne37 parece-nos pois um caminho

que permite colocar questotildees apontar direccedilotildees considerar diferenccedilas perceber as tensotildees e

acima de tudo dimensionar a necessidade de escolher uma categoria o que faz com que a

hipoacutetese levantada possa ganhar contornos de um desenho definido

Reproduzindo fielmente as palavras de Detienne38 inspirado no trabalho de Geertz tem-

se que

Se um historiador ou um etnoacutelogo debruccedilado sobre uma bem definida questatildeo local percebe que nossa representaccedilatildeo do que eacute uma ldquopessoardquo eacute uma ideacuteia bastante especial no conjunto das culturas do mundo ele comeccedila a antropologia Ao menos um primeiro passo O segundo poderia ser a descoberta do que ldquopara melhor analisar as formas simboacutelicas de uma cultura estrangeira eacute preciso bisbilhotar as peculiaridades de um outro povordquo

Portanto a centralidade da cultura enquanto conceito de base parece ser o ponto-chave

natildeo apenas dos estudos da antropologia americana mas tambeacutem de autores europeus como no

caso de Durkheim e de Detienne

No levantamento de hipoacuteteses da virgindade das deusas gregas deparamo-nos dentro

desse eixo diretivo cultural com o levantamento de algumas funccedilotildees peculiares a essas deusas

36 LAYTON Robert Opcit p37 37 DETIENNE Marcel Op cit p22-23 38 DETIENNE Marcel idem

23

que fazem parte dos atributos evocados pelos epiacutetetos Daiacute advecircm dois pontos que devem ser

considerados Primeiro em relaccedilatildeo ao uso de suas funccedilotildees como forma norteadora de propor

diferentes comportamentos Esse termo faz-se necessaacuterio esclarecer natildeo se vincula aos

conceitos propostos pela anaacutelise social funcionalista Natildeo se pretende agrave maneira de Radcliff

Brown descobrir leis classificatoacuterias do comportamento social propondo uma analogia orgacircnica

nem tampouco como Malinowski usar o termo ldquofunccedilatildeordquo em se considerando que a cultura se

alicerccedila nas necessidades bioloacutegicas primaacuterias do ser humano Em nossa perspectiva usamos

funccedilatildeo para indicar papeacuteis e posiccedilotildees destacados em relaccedilatildeo a essas deusas revelando atributos

que as distingam De fato como Ruth Benedict e Margaret Mead perceberam em suas pesquisas

e colocaram em suas obras aspectos da personalidade fazem parte do contexto cultural quando

se analisa a eacutetica e a moralidade bem como o impacto que esse aspecto determina na vida social

Achamos que a questatildeo relativa aos papeacuteis desempenhados pelas deusas virgens cria articulaccedilotildees

que favorecem o entendimento da virgindade como oposiccedilatildeo a uma outra circunstacircncia

resgatando e alargando a ideacuteia de ldquopoderrdquo que essa condiccedilatildeo pode oferecer no estudo das

relaccedilotildees sociais Essa tessitura convoca um acordo com um ldquocoacutedigo de eacuteticardquo se assim se pode

rotular das accedilotildees de uma comunidade que partilha valores comuns

As mudanccedilas que adviratildeo no conceito de virgindade prendem-se agraves criaccedilotildees da Igreja

cristatilde estabelecendo novas relaccedilotildees sociais mas mantendo e ressaltando um aspecto que seraacute

discutido no enfoque evolutivo da virgindade

O segundo ponto a ressaltar eacute a questatildeo dos epiacutetetos A pergunta que surge eacute quanto eacute de

fato revelado como atributo nos epiacutetetos Seraacute que o epiacuteteto acrescenta um conteuacutedo novo agraves

caracteriacutesticas das deusas ou eacute apenas um recurso ornamental repetitivo

A poesia de Homero eacute marcada pelo uso calculado dos pleonasmos isto eacute satildeo oacutebvios

mas natildeo inuacuteteis pois realizam uma completude riacutetmica um gesto sonoro aleacutem da comunicaccedilatildeo

do conteuacutedo Assim sendo o gecircnero eacutepico requer esse tipo de estrutura que se impotildee agrave vontade

do proacuteprio autor O epiacuteteto serve pois para preencher o verso hexacircmetro tendo uma funccedilatildeo

poeacutetica e provocando mesmo uma superposiccedilatildeo de tempos entre o tempo que estaacute sendo narrado

e o tempo39 que entra como anterior e posterior ao que se narra pois eacute o tempo que vale como

39 Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do tempo e dos epiacutetetos ver o artigo de RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

24

ornato Esse aspecto como se veraacute adiante cria dificuldades na traduccedilatildeo do grego para outras

liacutenguas pois apenas a natureza da liacutengua grega arcaica pode produzir esses epiacutetetos Eacute inerente agrave

disposiccedilatildeo gramatical da liacutengua do contexto que os accedilambarca A comparaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute

revela um impedimento e a traduccedilatildeo dessa cultura como diz Layton jaacute prevecirc um olhar distante e

uma voz indiziacutevel dos textos de Homero Por mais que se prenda ao conteuacutedo a qualidade do

ldquogeistrdquo 40 da forma nos escapa Como reproduzir a voz de Homero Fica aiacute o questionamento

Voltando agrave questatildeo dos epiacutetetos se eles revelam o que eacute sabido de antematildeo eles tambeacutem

oferecem uma conotaccedilatildeo conteudiacutestica de outro lado Como diz Rodrigues41 referindo-se a uma

das causas do uso de epiacutetetos

no fundo natildeo haacute repeticcedilotildees pois este mundo ndash todos sabem eacute progressista e heracliacutetico42 natildeo existiriam repeticcedilotildees absolutas pois repetir de qualquer forma eacute jaacute alterar43

O uso de epiacutetetos em Homero foi exaustivamente investigado por Milman Parry44 cuja

tese foi a de provar a excelecircncia da qualidade esteacutetica dos versos desse poeta comparando-o a

um escultor cujos traccedilos satildeo simples claros e quase impessoais na sua criaccedilatildeo espontacircnea O

que chamou a atenccedilatildeo de Parry na anaacutelise da obra homeacuterica quando comparou o poeta ao

escultor Fiacutedias foi justamente a habilidade de cruzar a tradiccedilatildeo com sua originalidade Dessa

forma repetindo as palavras de Parry

[The repeated words and phrases45] are like a rhythmic motif in the accompaniment of a musical composition strong and lovely regularly recurring while the theme may change to a tone of passion or quiet of discontent of gladness or grandeur

Para nosso trabalho o epiacuteteto propotildee uma quase que insistecircncia na descriccedilatildeo de uma

caracteriacutestica (parthenos) que parece ser imutaacutevel ou tatildeo recorrente se preferirmos quanto o

40 Usamos o termo geist como eacute usado em antropologia por Franz Boas o espiacuterito de um povo 41 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 42 Heracliacutetico referente a Heraacuteclito de Efeacuteso filoacutesofo preacute-socraacutetico que viveu provavelmente entre os seacuteculos VI e V a C Para esse filoacutesofo unidade regularidade e mudanccedila eterna satildeo qualidades fundamentais do que existe O fluir constante significa que ldquoningueacutem pode banhar-se duas vezes no mesmo riordquo porque esse muda assim como muda o homem In PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 pp 206-207 43 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 44 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 45 PARRY idib p xxv (As palavras e as frases repetidas) satildeo como um motivo riacutetmico no acompanhamento de uma composiccedilatildeo musical fortes e encantadoras regularmente recorrentes enquanto o tema pode mudar para um tom de paixatildeo ou quietude de descontentamento de alegria ou grandeza- traduccedilatildeo nossa

25

proacuteprio epiacuteteto Assim vemos uma dupla funccedilatildeo no epiacuteteto a de enfatizar um aspecto jaacute

conhecido de revelar sua natureza essencial e a de provocar uma compreensatildeo clara de sua

natureza esteacutetica

A questatildeo das consideraccedilotildees sobre o epiacuteteto traz em seu bojo uma outra dimensatildeo _ que

natildeo pode passar despercebida em uma anaacutelise cujo corpus eacute referente a poemas de autores

gregos da eacutepoca arcaica Eacute o caso da ecircnfase que se daacute agrave comunicaccedilatildeo nos poemas de Homero de

Hesiacuteodo e de outros poetas considerados ldquode segunda ordem porque foram tratados injustamente

pela tradiccedilatildeo humanista ocidental dos tempos modernosrdquo46 Sabemos que esse fato do uso dos

epiacutetetos tem sido discutido e alvo de polecircmicas Ainda assim vemos como positivo o fato de

que os mesmos epiacutetetos eram usados em diferentes situaccedilotildees por diferentes autores (em nosso

caso Homero e Hesiacuteodo) pois isso reforccedila o conceito de que havia um senso comum um

entendimento taacutecito um conhecimento abrangente em que a obra poeacutetica revela essa luz que

iluminava o mundo homeacuterico

Eacute por isso que natildeo podemos deixar de reforccedilar a colocaccedilatildeo de Torrano47 de que essas

metaacuteforas fixas criaram uma conotaccedilatildeo de encantamento maacutegico e do sagrado que o mundo dos

deuses evoca

Parry em seu estudo minucioso do epiacuteteto revelou os aspectos do estilo poeacutetico que

privilegiavam a oralidade ressaltando a significacircncia das foacutermulas para fins de comunicaccedilatildeo

Sobre isso Denys Page destacou as importantes descobertas de Parry48 comentando

It is not easy at first to grasp the full significance of Milman Parryrsquos discovery that the language of the Homeric poems is of a type unique in Greek literature ndash that it is to a very great extent a language of traditional formulas created in the course of a long period of time by poets who composed in the mind without the aid of writingThat the language of the Greek Epic is in this sense the creation of an oral poetry is a fact of proof in detail and the proofs offered by Milman Parry are of a quality not often to be found in literary studies49

46 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 p291 47 HESIacuteODO Opcit 48 PARRY Milman Op cit p xxvii 49 Natildeo eacute faacutecil em um primeiro momento perceber a significacircncia plena da descoberta de Milman Parry de que a linguagem dos poemas homeacutericos eacute de um tipo uacutenico na literatura grega ndash que eacute em grande parte uma linguagem de foacutermulas tradicionais criadas no curso de um longo periacuteodo de tempo por poetas que compunham na mente sem a ajuda da escritaQue a linguagem do eacutepico grego eacute neste sentido a criaccedilatildeo de uma poesia oral eacute um fato provado em detalhe e as provas oferecidas por Milman Parry satildeo de uma qualidade nem sempre encontrada nos estudos literaacuterios (traduccedilatildeo nossa)

26

A narrativa miacutetica como coloca Detienne50 comeccedila a fazer parte da tradiccedilatildeo oral no

momento em que ldquoexperimenta a prova da boca e do ouvidordquo Ela surge como produto da criaccedilatildeo

de um indiviacuteduo e pode se perpetuar Inspirado na distinccedilatildeo proposta por Leacutevi-Strauss Detienne

comenta a natureza da narrativa que pertence ao que se chama tradiccedilatildeo como tem sido nomeada

a poesia homeacuterica por Parry Os niacuteveis estruturados de memoralidade da histoacuteria podem ter

fundaccedilotildees comuns e dessa forma permaneceratildeo imutaacuteveis No entanto se os niacuteveis forem

probabilistas poderatildeo apresentar variaccedilotildees dependendo de como os narradores sucessivos vatildeo

acrescentando detalhes informaccedilotildees episoacutedios e portanto nesse continuum da transmissatildeo oral

uma histoacuteria enraizada na tradiccedilatildeo pode se tornar produtora de outras histoacuterias Como diz Leacutevi-

Strauss apud Detienne ldquoas obras individuais satildeo todas mitos em potencial mas eacute sua utilizaccedilatildeo

no modo coletivo que atualiza em cada caso seu mitismordquo51

Propotildee-se pois a partir daiacute uma abrangecircncia do aspecto cultural reconhecendo o miacutetico

nas culturas da palavra naquilo que ele enreda para construir seu esquema conceitual nas

diversidades de produccedilotildees que ele propotildee como expressatildeo de relatos de um tipo determinado

Dessa forma vecirc-se o mito como um gecircnero literaacuterio de manifestaccedilotildees da memoacuteria de uma

sociedade com suas crenccedilas e suas praacuteticas Eacute nesse cenaacuterio de riqueza cultural que os relatos

inesqueciacuteveis da sociedade grega de Hesiacuteodo e de Homero satildeo entendidos e revelam a

complexidade de uma religiatildeo politeiacutesta onde deuses imortais e outras potecircncias sobrenaturais

percorrem o mundo ao lado de indiviacuteduos mortais que convivem nesse mesmo mecanismo de

representaccedilotildees que o conhecimento miacutetico evoca

Mais uma vez verificamos que a anaacutelise da cultura enriquece os mitos e posiciona-os

possibilitando reconstruir e articular elementos dentro de uma visatildeo semacircntica sem reduzi-los

somente a algumas oposiccedilotildees ou apontar restriccedilotildees Oposiccedilotildees existem tambeacutem as diferenccedilas

mas elas satildeo consequumlecircncia de um conjunto mais amplo de um mecanismo complexo e quando

oposiccedilotildees e diferenccedilas forem evidenciadas no campo especiacutefico selecionado (das deusas

virgens) o propoacutesito eacute o de evidenciar aspectos que possam contribuir para situarem-se no

conjunto dessa anaacutelise combinatoacuteria apontando ou sugerindo novas relaccedilotildees interpretativas e

estabelecendo comparaccedilotildees ndash como parte da atitude investigatoacuteria que assumimos

50 DETIENNE Marcel Op cit 51 DETIENNE Marcel opcit p48

27

Nesse sentido a questatildeo do uso da oralidade e da escrita jaacute implica um aspecto

diferencial que tem sido amplamente investigado por antropoacutelogos que estudam e buscam o

entendimento dos nossos ldquoportos de origemrdquo como diz Detienne Assim sendo jaacute podemos

estabelecer uma primeira comparaccedilatildeo a mitologia surge a partir dos relatos escritos Antes o

que havia era o mito A mitologia eacute aquela que evoca a sociedade suas crenccedilas seu modus

faciendi traccedila enfim um mapa do tempo colocando o que se chama de ldquotradiccedilatildeo de uma eacutepocardquo

daquilo que se tem por verdadeiro

Embora seja do acircmbito da antropologia da sociologia e da linguumliacutestica pensar o fenocircmeno

da oralidade e da escrita foi Milman Parry segundo Ong52 o primeiro a dar um enfoque

decisivo nesse assunto

Foi ele quem apontou o contraste entre os modos de pensamento que subjazem a

expressatildeo oral e a produccedilatildeo escrita a partir de estudos literaacuterios tendo como corpus o texto da

Iliacuteada e o da Odisseacuteia A partir daiacute todos os autores de outras aacutereas tecircm sua obra como baacutesica

para o estudo que empreendem

Apesar de o nosso estudo natildeo privilegiar uma investigaccedilatildeo no que diz respeito aos

princiacutepios que norteiam o uso da escrita e o desenvolvimento da linguagem oral natildeo podemos

perder de vista que a forma de expressatildeo manifesta no corpus estaacute relacionada a essa

circunstacircncia Acabamos de verificar que o corpus selecionado por Milman Parry refere-se a

textos da eacutepoca arcaica grega e aponta a significacircncia desse fato Assim sendo o que se quer

ressaltar eacute que os textos escritos de alguma maneira direta ou indiretamente estatildeo relacionados

com os aspectos sonoros e com o contexto que a oralidade comprova para transmitir

significados

A fala como forma de expressatildeo e como maneira de manifestar o pensamento sempre

fascinou os estudos cientiacuteficos e provocou interesse nos pesquisadores de diversas aacutereas Por

isso como reflete Ong

En Ocidente entre los antiacuteguos griegos la fascinacioacuten se manifestoacute em la elaboracioacuten del arte minuciosamente elaborado y vasto de la retoacuterica la materia acadeacutemica mas completa de toda la cultura ocidental durante dos mil antildeos En el original griego techneacute rheacutetorikeacute ldquoarte de hablarrdquo (por lo comuacuten abreviado a solo rheacutetorikeacute) em esencia se referia al discurso oral aunque siendo un ldquoarterdquo o ciencia sistematizado o reflexivo ndash

52 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 p16

28

por ejemplo em el Arte Retoacuterica de Aristoacuteteles ndash la retoacuterica era y tuvo que ser un producto de la escritura53

Portanto a escritura jaacute veio como forma de representar a oralidade de se apoiar em seus

fundamentos e de organizar os componentes da linguagem calcados em princiacutepios do domiacutenio da

ciecircncia e da arte como no caso da retoacuterica Esse aspecto evidencia o uso dos relatos miacuteticos orais

que seguiam uma organizaccedilatildeo textual e a importacircncia do uso da linguagem oral nos estudos

sociais linguumliacutesticos e literaacuterios ou seja culturais

Ademais em se tratando da epopeacuteia podemos questionar como eacute possiacutevel mensurar

aquilo que ela traz em si dos textos que os rapsodos narravam pois conferindo o conceito em

grego Ong54 coloca que ldquorhapsoacuteidein lsquocantarrsquo en griego basicamente significa lsquocoser

cancionesrsquordquo Como reflete o autor citado o texto oral jaacute implica etimologicamente o conceito de

tecer Desta forma a base da poesia eacutepica eacute a oralidade

A poesia eacutepica evidencia pois um aspecto fundamental da construccedilatildeo e da fundaccedilatildeo do

que embasa o chatildeo grego pois eacute atraveacutes dela que os antropoacutelogos chegam a determinadas

constataccedilotildees que podem levar agrave compreensatildeo do ato de criar e do ato de viver na eacutepoca arcaica

A esse respeito diz Robert Aubreton

Eacute possiacutevel ainda ir mais longe e atraveacutes de Homero acompanhar toda a tradiccedilatildeo eacutepica Nascida durante o periacuteodo aqueu ndash o estudo histoacuterico no-lo provaraacute ndash e talvez filha da epopeacuteia cretense a epopeacuteia grega possuiacutea desde essa eacutepoca um jogo completo de foacutermulas que lhe eram proacuteprias que entraram na proacutepria tradiccedilatildeo do gecircnero

E mais

Atraveacutes de todas essas foacutermulas se revelava ao poeta todo um mundo antigo do qual ele conservaraacute a lembranccedila formas aqueacuteias eoacutelicas talvez se a tradiccedilatildeo eacutepica se tornara realmente essa com o correr dos tempos Mas o poeta Homero eacute um jocircnio puro e emprega as formas jocircnicas de seu tempo no meio dessa liacutengua herdada dum glorioso passado histoacuterico e literaacuterio55

Quanto a essa evidecircncia Ruigh56 eacute citado como um dos que acredita nos vestiacutegios de uma

traduccedilatildeo eacutepica micecircnica para depois se tornar eoacutelica e finalmente jocircnica

53 ONG WJ op citp 18-19 54 ONG WJ opcit p22 55 AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero 2ed Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1968 p90-91 56 RUIGHCJ apud AUBRETON opcit

29

Aubreton tambeacutem coloca que recuperando as caracteriacutesticas da poesia homeacuterica um fato

que deve ser levado em conta eacute a unidade real que a liacutengua homeacuterica manteacutem apesar de sua

formaccedilatildeo heterogecircnea

Os dados culturais satildeo pois de extrema relevacircncia no que diz respeito aos estudos

linguumliacutesticos e literaacuterios uma vez que interferem e direcionam o trabalho de traduccedilatildeo do corpus

selecionado

Outrossim os poemas homeacutericos e a Teogonia parecem ser um ponto de partida para o

entendimento do mundo dos deuses entre os gregos ou seja de sua religiatildeo Os deuses governam

o mundo subordinados a Zeus mas ao mesmo tempo conjuntamente com ele Cada um deles

tem atribuiccedilotildees determinadas Em relaccedilatildeo ao nosso objeto de estudo Afrodite eacute a deusa que

provoca o desejo conhecida hoje como a deusa do Amor Aacutertemis a deusa da caccedila deusa

virgem Atena deusa da astuacutecia ou seja deusa da guerra e da inteligecircncia tambeacutem virgem

Heacutestia a deusa do lar soliacutecita e virgem

Poreacutem embora essa possa ser uma classificaccedilatildeo geral o nosso enfoque metodoloacutegico

revela que natildeo pode haver uma rigidez nas funccedilotildees dos deuses Nos casos que nos interessam

por exemplo vecircem-se variaccedilotildees significativas quando se fazem analogias entre contextos

diferentes Assim embora Hera signifique a mulher de Zeus e por isso represente a fertilidade

em Eacutefeso Aacutertemis era reverenciada como deusa da fertilidade e ainda em outros lugares como

a deusa da lua misteriosa Atena a deusa guerreira dividia esse atributo com Ares tambeacutem deus

da guerra

Eacute justamente atraveacutes dos poetas que o mundo desses deuses ldquofala gregordquo isto eacute revela-se

com toda sua forccedila aos humanos revestindo-se mesmo na sua estranheza e na sua forma de

saber um jeito familiar conhecido que se cruza com as questotildees do mundo terrestre

Enfatizamos novamente a posiccedilatildeo de Vernant que privilegia o encruzamento soacutecio-religioso

nesse contexto entrelaccedilado

Se eacute cabiacutevel falar quanto agrave Greacutecia arcaica e claacutessica de ldquoreligiatildeo ciacutevicardquo eacute porque ali o religioso estaacute incluiacutedo no social e reciprocamente o social em todos os seus niacuteveis e na diversidade dos seus aspectos eacute penetrado de ponta a ponta pelo religioso57

57 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p7

30

Eacute a partir da constataccedilatildeo da integraccedilatildeo da religiatildeo com o social que os deuses comportam

diferentes dimensotildees Heacutestia tem o controle sobre a lareira de cada casa marca o centro fixo do

que se constitui como famiacutelia mas a mesma Heacutestia pode conjuntamente com Zeus exercer

controle sobre o que eacute considerada a Lareira comum da cidade

O que entatildeo nos perguntamos faz a originalidade das deusas virgens em relaccedilatildeo aos

outros deuses

Essa pergunta jaacute envolve pois um aspecto da especificidade que nossa investigaccedilatildeo

procura desvendar

Tem-se a impressatildeo a partir do que foi exposto de que os atributos dos deuses satildeo muito

menos precisos do que se pode supor e de que as funccedilotildees variam de acordo com os santuaacuterios

Haacute poreacutem uma marca comum invariaacutevel insistente em Aacutertemis Atena e Heacutestia a

virgindade

Embora alguns aspectos da concepccedilatildeo oliacutempica possam ser explicados agrave luz soacutecio-

histoacuterico-cultural como o caso de Zeus uma divindade masculina adaptado ao culto de um

povo guerreiro ideacuteia provavelmente introduzida pelos aqueus existe paralelamente a ideacuteia da

origem da criaccedilatildeo na Teogonia (v 117 e sgtes) onde a Terra (Gaia) parece ter ocupado lugar

privilegiado Assim a origem primeira daacute-se atraveacutes de uma divindade feminina relacionando

pois o conceito de vida e de fertilidade ao elemento feminino Do ponto de vista antropoloacutegico

essa posiccedilatildeo pertence agrave religiatildeo de povos sedentaacuterios de origem agriacutecola para quem sem

duacutevida a Terra eacute a fonte de toda a vida Parece pois uma atitude que fazia parte da Heacutelade da

eacutepoca dos egeus

Esse aspecto cultural eacute um dado que natildeo pode ser deixado de lado quando se reportam

aos epiacutetetos das deusas virgens e de outras naturalmente Alguns atributos podem estar

vinculados a vestiacutegios que a memoacuteria guardou e repetiu de eacutepocas anteriores e que refletem

aspectos de divindades zoomoacuterficas preacute-helecircnicas Exemplificamos com um epiacuteteto recorrente a

Atena glaucoacutepida ou de olhos glaucos

Em geral os dicionaacuterios definem esse termo relacionando-o ao brilho e agrave cor Em nossas

traduccedilotildees (verificamos que o mesmo se daacute em Torrano58) procuramos manter o uso de olhos

glaucos deixando a interpretaccedilatildeo final por conta do leitor porque o termo tambeacutem pode indicar

58 HESIacuteODO Op cit v888

31

ldquoolhos de corujardquo de acordo com alguns estudiosos do politeiacutesmo helecircnico estando dessa

forma referindo-se a uma divindade que teria um significado zoomoacuterfico

As interpretaccedilotildees revelam o movimento por que as culturas passam em um processo

contiacutenuo de construccedilatildeo de seu solo de seu saber de seu espaccedilo como naccedilatildeo constituiacuteda Assim

embora vinculadas agraves anteriores as concepccedilotildees vatildeo se transformando e quando os aqueus se

misturaram aos povos preacute-helecircnicos houve uma adaptaccedilatildeo no modus vivendi um consenso

reciacuteproco uma acomodaccedilatildeo que prevecirc concessotildees reciacuteprocas Essa adoccedilatildeo e recepccedilatildeo entre os

povos interferem tambeacutem no campo religioso e alguns deuses satildeo adotados outros confundidos

e outros ainda instalados Haacute tambeacutem aquelas divindades que perdem o caraacuteter sagrado Eacute assim

que algumas vezes surgem os heroacuteis Essa conjunccedilatildeo de tradiccedilotildees vai colocando camadas no

que se constitui o solo grego

Como jaacute anunciou a antropologia de linha estruturalista um fato que natildeo se pode ignorar

eacute que as culturas surgiram a partir de diversas comunidades que se acumularam no meio da

mesma espeacutecie por consentimento ou por alguma forma de negociaccedilatildeo produzindo conjuntos

distintos convencionais na organizaccedilatildeo do comportamento e na atribuiccedilatildeo de significados agraves

accedilotildees

Satildeo os traccedilos dessa evoluccedilatildeo cultural que a poesia eacutepica evidencia Por isso quando se

referem agraves deusas virgens os hinos homeacutericos ressaltam epiacutetetos das deusas que de alguma

forma estatildeo relacionados agrave conciliaccedilatildeo entre cultos e deuses Como jaacute se mencionou

anteriormente ao caso de Atena combinada com deuses zoomoacuterficos tambeacutem a mesma Atena

possui outros epiacutetetos que podem estar relacionados a outras divindades preacute-helecircnicas Como

explicar o epiacuteteto Tritogecircnia a ela atribuiacutedo e Atena Tritocircnia Levantam-se hipoacuteteses para esses

epiacutetetos relacionando-os a cultos e lugares onde a deusa era venerada mas os significados

podem ser interpretados de formas variadas

Essas suposiccedilotildees que vatildeo sendo levantadas fazem repensar a linha antropoloacutegica que

escolhemos para o nosso trabalho por isso eacute necessaacuterio apontar para uma consciecircncia sobre as

diferenccedilas humanas no mundo e como ela se articula jaacute que cada cultura eacute vista na sua

singularidade em uma determinada eacutepoca como ressaltamos no iniacutecio do capiacutetulo Poreacutem vale

lembrar que uma linha antropoloacutegica interpretativa volta-se para interpretaccedilotildees provisoacuterias e

parciais e mostra que seu principal objeto de estudo eacute a etnografia o que nos faz debruccedilar sobre

32

o homem e os textos culturais que ele produz Foi com esse pensamento que na nossa

Introduccedilatildeo tentamos apontar aspectos do mundo grego que nos fizessem entender a concepccedilatildeo

que tinham de seus deuses do cosmo a relaccedilatildeo dos homens com esses deuses e com o cosmo e

possivelmente procurar interpretar o atributo ou conceito ou valor eacutetico imposto pela

memorabilidade da virgindade De qualquer forma natildeo podemos deixar de concordar com

Crapanzano e Clifford59 que afirmam ldquoa parcialidade da verdade na antropologia e o caraacuteter de

ficccedilatildeo das etnografias construiacutedasrdquo

Eacute sobre a questatildeo do texto literaacuterio o corpus que escolhemos para investigaccedilatildeo que

queremos fazer alguns apontamentos

Quanto aos textos de Homero a Iliacuteada a Odisseacuteia e quanto aos textos de rapsodos que

compuseram os Hinos Homeacutericos haacute algumas interpretaccedilotildees pertinentes ndash de acordo com nosso

entendimento ndash sobre deles Uma dessas interpretaccedilotildees diz respeito a uma posiccedilatildeo eleita por

Homero isto eacute colocar uma divindade absoluta sobre as outras Zeus senhor do Olimpo sem

revelar tendecircncias sobre deuses ligados a esta ou agravequela cidade Isso denota uma imparcialidade

em Homero pois natildeo toma partido em relaccedilatildeo a um deus especiacutefico de uma cidade aleacutem de

mostrar vestiacutegios de deuses de outras raccedilas dos aqueus e dos egeus bem como de deuses

remanescentes de um periacuteodo preacute-helecircnico sem privilegiar apenas um ligado a uma poacutelis

Portanto os textos homeacutericos dissimulam a questatildeo do culto das divindades locais Seraacute que esse

aspecto revela uma tendecircncia ideoloacutegica Ateacute que ponto quer-se representar uma casta guerreira

fiel agrave organizaccedilatildeo aqueacuteia enaltecendo as estrateacutegias de combate e as narrativas de conflito

Um outro ponto aqui eacute que vale pensar um aspecto do corpus que ressaltamos a

virgindade das deusas pois em Homero eacute inegaacutevel os deuses imortais tambeacutem satildeo

humanizados em suas relaccedilotildees em suas funccedilotildees em seus sentimentos Os deuses participam

tanto das cenas militares quanto das familiares daquelas que fazem parte da vida de todos os

dias Assim a deusa guerreira que faz parte dos combates eacute virgem a deusa que estaacute presente

em cada lar zelando pela famiacutelia eacute virgem a deusa que cuida dos campos e dos animais e que

protege os partos e os adolescentes eacute virgem Pode-se questionar se Atena Heacutestia e Aacutertemis

possuem uma caracteriacutestica que faz parte apenas do feminino Parece-nos que as lendas natildeo

59 CRAPANZANO e CLIFFORD apud JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004 p47

33

mencionam guerreiros deuses e heroacuteis virgens Parece-nos que quando o teatro propocircs Hipoacutelito

dedicado agrave virgem Aacutertemis a deusa do Amor (Afrodite) vingou-se dele Assim estaria a

virgindade grega reservada e aceita soacute para o feminino A relaccedilatildeo pai-filha em Homero eacute dotada

de humanidade que fundamenta o coraccedilatildeo paterno A Iliacuteada mostra um Zeus (canto VIII)

cedendo agraves teimosias de Atena e mimando-a Caracteriacutesticas da fraqueza humana do pai Zeus

Afinal a mitologia narra essa filha nascida da proacutepria cabeccedila do pai armada e cheia do dom da

inteligecircncia e digna de um poder que faz parte de seu caraacuteter haja vista sua origem

Eis como Homero se aproveita da mitologia para que participe da sua saga guerreira

divina e humana

O texto de Homero faz suceder narrativas de cerimocircnias fuacutenebres tristes a episoacutedios

quase liacutericos Teraacute aiacute tambeacutem esse Homero eacutepico momentos de um lirismo cheio de frescor

pintando episoacutedios da vida entre o alegre e o triste Entre o cocircmico e o funesto

Mesmo nos Hinos sacros Homero lhes imprime um colorido humano Recupera os laccedilos

familiares e descreve cenas quase burlescas quando se reporta a Aacutertemis a irmatilde querida de

Apolo dando de beber aos cavalos Ele cita detalhes do cotidiano necessaacuterios que fazem parte

da vida humana

Descreve a mulher que atrai o erotismo exalando da espuma do mar da qual brota

Afrodite sempre desejaacutevel atraente que subjuga mortais e imortais ateacute o proacuteprio Zeus

Ningueacutem consegue domar essa forccedila desejante Soacute as deusas virgens

No canto a Atena destaca o seu poder que como jaacute foi dito eacute herdado do proacuteprio pai

Como guerreira estaacute envolvida em atos beacutelicos mas tambeacutem eacute protetora dos combatentes e zela

por eles

Os textos de Homero vatildeo pois aleacutem das lendas e dos testemunhos histoacutericos na sua

forma de tecer a poesia eacutepica Desse modo a sequumlecircncia temporal da sua narrativa natildeo importa

O que interessa eacute perceber que quando Homero tece a sua narraccedilatildeo ndash e aproveitamo-nos

aqui de um filatildeo da antropologia marxista ndash surgem vaacuterios sistemas cognitivos nesse mesmo

meio resultantes de reaccedilotildees agraves variadas condiccedilotildees materiais

Assim reforccedilamos a ideacuteia de que o mito narra as condiccedilotildees significativas das relaccedilotildees

sociais Essas relaccedilotildees podem sofrer transformaccedilotildees alterando todas as formas de significar de

um sistema social

34

Nesse aspecto as narrativas homeacutericas bem como os hinos homeacutericos reportam-se a

recursos naturais como quando apresentam caracteriacutesticas geograacuteficas relacionadas de algum

modo a uma forma de produccedilatildeo e a determinados tipos de atividades que revelam o

comportamento dos habitantes atraveacutes de seus deuses e de seus heroacuteis Mas ao mesmo tempo

em que essa constataccedilatildeo direciona para um conceito de produccedilatildeo ressaltado pela teoria marxista

quando Homero e outros autores teceram suas narrativas a transparecircncia de caracterizar um

discurso atraveacutes da escrita jaacute se perdeu Entatildeo como coloca Geertz60 tambeacutem quando o

observador interpreta significados quando a interpretaccedilatildeo se dirige a um povo construir

descriccedilotildees e significaccedilotildees sobre esse povo natildeo eacute muito diferente de construir uma obra de ficccedilatildeo

Como ele diz ldquonatildeo existe uma torre de marfimrdquo o que existe eacute a poliacutetica do escritor Dessa

forma uma anaacutelise etnograacutefica comparativa eacute constituiacuteda por quem a escreve

Assim de todo nosso percurso pelas deusas gregas virgens e pela virgindade enquanto

conceito atraveacutes do tempo pode-se dizer como Geertz natildeo eacute ldquomuito diferente de construir

romances sobre a vida na Franccedila rural do seacuteculo XIXrdquo61

De qualquer forma poreacutem os gregos da eacutepoca arcaica existiram independentemente do

que se conjeture sobre eles Do mesmo modo os textos de Homero e de Hesiacuteodo existem como

referecircncia ao nosso proacuteprio discurso sobre os gregos e sobre a Mitologia

Um ponto relevante de se considerar eacute a questatildeo levantada por Foucault62 de que um

estudo sobre o humano revela aspectos que se entrecruzam e se emaranham especificando o que

diz respeito aos homens agrave consciecircncia agrave origem e ao sujeito Isso como diz o mesmo Foucault

nos permite definir um espaccedilo para o qual se aponta apesar de o nosso discurso ser ldquoprecaacuterio e

incertordquo

Assim em se estabelecendo comparaccedilotildees no que diz respeito ao modo de narrar de

Homero e de Hesiacuteodo como jaacute foi dito Homero humaniza o divino Coloca lado a lado deuses

e homens emparelhando-os nos sentimentos e nas accedilotildees Hesiacuteodo ao contraacuterio propotildee uma

composiccedilatildeo que privilegia a experiecircncia sagrada como uma forma de narrar a concepccedilatildeo do

mundo arcaico O uso das foacutermulas e de expressotildees retornantes como marca da oralidade e da

linhagem dos deuses apresenta tambeacutem como a narrativa de Homero a justaposiccedilatildeo temporal 60 GEERTZ apud LAYTON Op cit p 277 61 GEERTZ apud LAYTONIdem p 277-278 62 FOUCAULT Michel A arqueologia do Saber 5ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977 p19

35

mostrando-se indiferente a uma cronologia estruturada O tempo se move como se move a Terra

em um fluir constante No entanto um aspecto determinante em sua obra eacute a forma como a

descriccedilatildeo da origem das linhagens se articula pelo

poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute conferido pela Memoacuteria (Musas)63

Tambeacutem em seus Hinos Homeacutericos Homero lanccedila matildeo do recurso de invocar o poder

das Musas e de ressaltar a importacircncia do canto que possibilita ao homem transcender suas

fronteiras geograacuteficas e terrenas e entrar em contato com o que o canto promove o mundo

audiacutevel dos sons que transporta e o mundo invisiacutevel das formas presentes Esse movimento de

entrar em contato com o mundo gera a experiecircncia divina

Hesiacuteodo aleacutem das concepccedilotildees da linguagem do tempo e do Ser enfatiza ndash e talvez

mesmo centralize ndash a concepccedilatildeo de Memoacuteria na descriccedilatildeo dos extensos cataacutelogos que como

coloca Torrano ldquose oferecem como um espetacular jogo mnemocircnicordquo64

Isso nos coloca frente a um conceito que para entendecirc-lo fez-nos procurar o lado oposto

a arte de esquecer Eacute assim que Weinrich65 inaugura sua discussatildeo sobre a memoacuteria reportando a

ceacutelebre histoacuteria de Simocircnides poeta grego que viveu por volta de 500 aC que ajudou a

identificar os mortos em uma sala cujo teto desabara apoacutes sua saiacuteda O recurso da memoacuteria

espacial teria sido o primeiro exemplo de uso de teacutecnica mnemocircnica Assim a morte suacutebita dos

ocupantes da sala estaria revelando ldquouma ameaccediladora cataacutestrofe do esquecimentordquo que

ldquotransforma o lembrar num problemardquo Portanto desde os poetas gregos ao ldquocantaremrdquo as

tradiccedilotildees a memoacuteria tem um lugar principal pois que o esquecimento apagaria os vestiacutegios de

uma histoacuteria Sem a arte das Musas e sem a voz poderosa da memoacuteria como poderia Hesiacuteodo

narrar a origem dos deuses que eacute a origem do proacuteprio cosmo Sem o poder da memoacuteria como

poderia Homero honrar os deuses reverenciando-os em suas caracteriacutesticas peculiares e narrar

assombrosas faccedilanhas que eram ditas da boca ao ouvido dos homens de seu tempo

O grande feito desses autoresndashaedos foi exatamente o de transformar a ldquomemoacuteriardquo em

fatos concretos no audiacutevel e no visiacutevel Aleacutem dos sons agora a imagem das cenas se

63 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos DeusesEstudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p16 64 HESIacuteODO Op cit p16 65 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 p30

36

representava nos caracteres escritos e tomava forma O que tentamos dizer de maneira trocircpega

Weinrich coloca de forma clara e concisa

O artista da memoacuteria que segue o exemplo de Simocircnides percebe em primeiro lugar para seus fins ndash no caso da retoacuterica isso eacute sempre a fala puacuteblica ndash uma constelaccedilatildeo fixa de ldquolugaresrdquo (em grego topoi latim loci) bem familiares sua residecircncia ou o foacuterum Nesses locais ele testemunha em sequecircncia ordenada os conteuacutedos isolados da memoacuteria depois de primeiro os ter transformado em ldquoimagensrdquo (grego phantasmata latim imaginatio)66

Mas ao lado da memoacuteria que promove imagens criadoras a criaccedilatildeo tambeacutem pode ser

aniquilada nas ldquoaacuteguas do esquecimentordquo Eacute assim que os gregos ndash e a Teogonia67 ndash apontam para

essa genealogia colocam Lete (ΛήӨην) filha da noite (Νүҳ) e de Eacuteris (Discoacuterdia em latim) como

o rio do Hades que permite que os mortos se esqueccedilam de suas lembranccedilas Esse campo de

significaccedilotildees do mundo grego parece conter comparaccedilotildees e contrastes para entender aspectos

inerentes ao humano Assim eles jaacute se baseavam em uma antropologia comparativa em suas

interpretaccedilotildees a arte de esquecer se emparelhava agrave arte de lembrar Em Weinrich68 encontramos

a menccedilatildeo de que Pausacircnias cita uma fonte do Lete na Boeacutecia ao lado da qual havia uma fonte de

Mnemosyne

Nos Hinos Homeacutericos69 o(s) autor(es) dirige-se (no caso de nossa pesquisa) agraves deusas

Aacutertemis Atena e Heacutestia comparando-as e colocando-as com outros deuses Assim quando se

reporta a Aacutertemis ldquoa que atira flechasrdquo menciona seu irmatildeo Apolo tambeacutem ele um ldquodeus que

atira flechasrdquo cujos atributos tecircm pontos semelhantes haja dada sua criaccedilatildeo Quando reverencia

Atena ldquoa deusa da inteligecircncia da astuacutecia (Meacutetis) aquela que participa dos atos beacutelicosrdquo coloca

ao seu lado Ares ldquoo deus que tambeacutem se ocupa da guerrardquo Em relaccedilatildeo a Heacutestia ldquoa deusa da

lareira dos lares e da pira das cidadesrdquo ldquoprotetora da famiacutelia e da polisrdquo une-a a Hermes no seu

movimento de ldquoajudar os homens doador de bens protetor dos caminhos e mensageiro dos

deusesrdquo

Nesse processo de contraste Homero e Hesiacuteodo ressaltaram o esquecimento (Lete filha

da noite escura) e a memoacuteria cujas filhas foram as musas inspiradoras Como coloca Torrano70

66 WEINRICH idem p31 67 HESIacuteODO Opcit p 117118 vs 225-232 68 WEINRICH Opcit p21 69 HESIOD THE HOMERIC HYMNS AND HOMERICA Translated by H G Evelyn-White LOEB Classical Librars 1982 70 HESIacuteODO Opcit p 70

37

a memoacuteria eacute ldquoa mais vigorosa negaccedilatildeo do Esquecimento em que se daacute o Natildeo-Serrdquo A memoacuteria

tem pois nesse sentido uma significaccedilatildeo de presentificar o Ser Isso revela um entendimento

inerente da memoacuteria que nomeia e situa o Ser que o coloca como sujeito da sua histoacuteria e da

Histoacuteria como parte de uma trajetoacuteria O proacuteprio tempo soacute teraacute significaccedilatildeo se fizer parte do

contexto da memoacuteria

Homero explicita claramente essa relaccedilatildeo entre o Ser e o Natildeo-Ser entre o Esquecimento

e a Memoacuteria na Odisseacuteia As drogas (os ρһаґmаkοn no Canto IX) e as artimanhas do amor

(Περικаλλέοs ευνές a cama esplecircndida referindo-se ao seu envolvimento com Circe no Canto X

e com Calipso v 450 451 por exemplo no canto XI quando narra ter sido recebido na cama e

ter tido os cuidados da ninfa em Ogiacutegia onde a deusa vive) interromperam por uns tempos o

propoacutesito de Odisseu retardando seu retorno agrave cidade e a casa uma vez que estivera sob o

comando do esquecimento Esse pertence ao paiacutes dos mortos e natildeo dos vivos como se entende

na narrativa homeacuterica Quando Odisseu volta a Ser quando chega a Iacutetaca sem reconhececirc-la

sentindo-se desolado clamando aos deuses eacute acolhido por Palas Atena que lhe descreve a terra

falando de seu solo feacutertil e de sua produccedilatildeo Entatildeo tendo sido recebido pela protetora de Atenas

Odisseu se recompotildee Estaacute pleno da memoacuteria As condiccedilotildees que levam Odisseu a esse estado de

ficar no esquecimento ou de fazer uso da memoacuteria indicam um estado representativo do Ser

quando o homem se coloca em um conflito entre mergulhar em um espiacuterito de aventura eliminar

o passado e atirar-se no mundo imaginaacuterio e manter-se preso agrave realidade ao mundo conhecido

do qual faz parte O personagem conhece pois um drama de foro iacutentimo que faz parte do

humano enquanto Ser mortal

Assim a epopeacuteia exprime alguns desejos inerentes ao humano no que concerne

sentimentos estados e fantasias Limites que ficam entre o real e o imaginaacuterio e revelam

essencialmente o ideal do homem comum de sua vida no campo no mar no poacutelis combinando

o maravilhoso o misterioso e o sagrado enfim tudo o que pode encantar e ser reconhecido por

esse mesmo homem Cabe ao cantor ao poeta reconstruir e relembrar os gestos que fazem parte

do mundo

Queremos dizer em outras palavras que a obra desses dois grandes gregos Homero e

Hesiacuteodo cobrem todos os aspectos da vida humana Jaacute nos referimos agraves recorrecircncias do Tempo e

do Ser jaacute mencionamos os recursos linguumliacutesticos referentes agrave escrita e agrave oralidade jaacute expusemos

38

o que o mytho pode revelar no contexto arcaico e como se enreda com a questatildeo da tradiccedilatildeo

miacutetica jaacute apontamos para o embrenhamento do social e do religioso jaacute falamos de algumas

caracteriacutesticas pertinentes das obras desses autores e jaacute indicamos nossa indagaccedilatildeo frente ao

objeto de estudo as deusas gregas virgens figuras recorrentes nessas obras citadas aleacutem de suas

representaccedilotildees em estaacutetuas e outras iconografias da eacutepoca bem como sua indicaccedilatildeo nas obras de

Heroacutedoto de Pausacircnias e de outros autores que se referiram agravequela eacutepoca E aiacute encontramos um

aspecto que foi colocado pelos poetas na sua acepccedilatildeo do humano a questatildeo de gecircnero

O feminino e o masculino envolvidos nos laccedilos dos desejos carnais a cama como

siacutembolo de amor uma forma de expressar a sexualidade A virgindade feminina representando

trecircs deusas que natildeo se subjugam agraves questotildees de Afrodite isto eacute ao hiacutemeros a forccedila desejante

que como vimos em Homero leva ao esquecimento e faz com que o homem perca seu rumo

desvie-se de sua rota retarde sua trajetoacuteria A virgindade colocada no feminino e no sagrado em

um mundo com tantos episoacutedios de relacionamentos desejantes com tantas lendas de traiccedilotildees ndash

se eacute que assim podemos chamaacute-las ndash e de procriaccedilatildeo revela uma particularidade a mais nesse

mundo grego a ser investigado e re-examinado Por que perguntamos Aacutertemis Atena e Heacutestia

se opunham de forma obstinada ao ldquoardor amorosordquo O que viam de incocircmodo na manifestaccedilatildeo

da sexualidade Ou melhor o que viam na virgindade

Do ponto de vista psicanaliacutetico (longe de noacutes a atitude de querermos colocar essas figuras

divinas no divatilde) o feminino sempre foi um ldquoembaraccedilordquo para os estudiosos da mente e do

comportamento humanos Conhece-se a famosa indagaccedilatildeo de Freud ldquowas will das weibrdquo71

Vaacuterios autores tentaram explicar justificar e mesmo responder essa indagaccedilatildeo freudiana Grant

em seu artigo sobre a feminilidade reporta-se ao fato de que a literatura analiacutetica ldquonatildeo paacutera de

mostrar que as consideraccedilotildees anatocircmicas natildeo satildeo iacutendices para falar da diferenccedila de identidade

sexual entre homens e mulheresrdquo72

De fato o que marca a sexualidade eacute algo que vai aleacutem da materialidade do corpo Por

isso colocou-se em paacuteginas anteriores a discussatildeo que propotildee a indicaccedilatildeo e a especificaccedilatildeo de

funccedilotildees em alguns momentos em que se reflete sobre aspectos sociais Reproduzindo as palavras

de Grant temos 71 O que quer uma mulher 72 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009

39

O fator preponderante que determinaraacute a questatildeo da diferenccedila sexual seraacute o resultado de uma leitura do corpo marcado por um oacutergatildeo sexual a que uma famiacutelia e um determinado sujeito em certas condiccedilotildees sociais podem proceder73

Grant indica pois que o oacutergatildeo sexual de um sujeito eacute representado pelo significante o

que vale dizer que a sociedade determina conceitos e valores ao masculino e ao feminino

Aleacutem dessa complexa problemaacutetica feminina Freud tambeacutem tentou enfocar e entender a

importacircncia das figuras materna e paterna no desenvolvimento da feminilidade e de alguma

forma a conclusatildeo eacute de que a figura predominante eacute a figura materna Entatildeo perguntamos como

pensar a feminilidade em Atena privada que foi da figura materna Ateacute seu nascimento deu-se

na representaccedilatildeo do masculino tendo ela nascido da cabeccedila do pai Como os antigos gregos

entendiam essa sua mitologia que colocava uma deusa cuja condiccedilatildeo de existecircncia cria um noacute

inarredaacutevel em relaccedilatildeo agrave figura da matildee

Aleacutem do mais Freud tentou responder o enigma da questatildeo que ele mesmo se havia

colocado e propocircs como soluccedilatildeo que ser mulher eacute ser matildee ou em outras palavras ter um filho

significa ter um falo

Apesar de as deusas virgens natildeo terem tido filhos natildeo podemos dizer que esse eacute um forte

argumento contra a feminilidade delas pois muitas outras mulheres inclusive em nosso mundo

contemporacircneo optam por natildeo terem filhos o que natildeo lhes nega a feminilidade

Aleacutem disso ainda um aspecto interessante apresentado por Riviegravere74 eacute que muitas

mulheres que preenchem caracteriacutesticas plenas ocupadas pelo feminino podem estar recorrendo a

maacutescaras de feminilidade revestindo-se apenas de suas aparecircncias As deusas virgens assumiram

sua virgindade sem constrangimento o que lhes confere o epiacuteteto de ldquoparthenosrdquo Portanto natildeo

foram mascaradas como diz Riviegravere a respeito das ldquomulheres-homensrdquo

Assim apesar de muitas especulaccedilotildees natildeo se esclarece muito o conflito que o feminino

pode evocar Ao lado de Freud que queria saber o que eacute uma mulher a nossa indagaccedilatildeo se volta

para o que eacute uma virgem

Talvez a resposta esteja dentro da proacutepria mitologia o que estaacute em jogo eacute a natureza de

todo e qualquer desejo (hiacutemeros) daiacute a importacircncia de Afrodite e de Eros ao longo da histoacuteria da

73 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 74 RIVIEgraveRE apud GRANT Op cit

40

humanidade Alem disso o amor e o desejo se inserem em um registro maior do Ser o da

propriedade privada o que vale dizer que haacute uma propriedade inviolaacutevel no espaccedilo social que eacute

o proacuteprio corpo Isso significa que apesar de as diferenccedilas anatocircmicas natildeo serem relevantes para

a constituiccedilatildeo do masculino e do feminino elas determinam uma significaccedilatildeo social e

ideoloacutegica uma vez que o corpo ao longo da Histoacuteria tem sido usado como mercadoria em um

sistema de trocas

As deusas virgens estavam cientes dessa inviolabilidade e sua privacidade subjetiva

inscrevia-se no discurso miacutetico

Frente a Afrodite ceder ao desejo e ser tomado por ele implicaria a Aacutertemis a Atena e a

Heacutestia ver transformado o valor de uso do seu gozo em valor de troca de desejo Por isso a

afirmaccedilatildeo da virgindade e o pedido ao pai (Zeus) para que pudessem manter esse caraacuteter de

castidade que caracteriza a intimidade subjetiva dessas deusas A autorizaccedilatildeo preacutevia ao outro (ao

pai) se imporia a elas para que pudessem usufruir do seu corpo sem o que esse corpo se

transformaria em valor de uso para o gozo de outro e portanto na posse interditada do que eacute

considerado ser intransferiacutevel Essa opccedilatildeo concretiza-se pois em um gesto com um sentido

simboacutelico evidente de registrar a subjetividade Poreacutem nossa proposta eacute de examinar cada uma

das deusas virgens comparando-as e interpretando caracteriacutesticas que julgamos amplas e que soacute

o contexto cultural nessa teia toda pode exprimir Aleacutem disso no processo de compreensatildeo da

virgindade ndash da mesma forma que memoacuteria e esquecimento se complementam ndash natildeo podemos

deixar de discutir o desejo enfocando a deusa do ldquoAmorrdquo e sua representaccedilatildeo para o

entendimento desse conceito no cosmo no que diz respeito a deuses e homens

Quando colocamos que essa posiccedilatildeo de destaque das deusas se daacute atraveacutes de um gesto

estamos interpretando o conteuacutedo ritualiacutestico que essa posiccedilatildeo comemora O rito de passagem

que se opera eacute singular e pleno de significaccedilatildeo As deusas em questatildeo romperam com uma

situaccedilatildeo codificada pelos valores culturais

Com efeito nas formas instituiacutedas do masculino ndash mortal ou imortal ndash e do feminino ndash

mortal ou imortal ndash na tradiccedilatildeo do Ocidente previam-se as relaccedilotildees de trocas entre os sexos

previam-se os rituais de iniciaccedilatildeo para o casamento previa-se a constituiccedilatildeo da famiacutelia previa-

se a procriaccedilatildeo previa-se a forccedila do desejo Nesse gesto de mudanccedila de posiccedilatildeo do feminino

condensa-se a virgindade Estaacute assim instituiacutedo o registro simboacutelico em que a palavra natildeo

41

consegue dar conta e torna-se insuficiente A abrangecircncia cultural e o aspecto do Ser

transcendem a substacircncia do conceito da virgindade A virgindade entre as mulheres (mortais)

passa a ser instaurada e aceita atraveacutes da atitude e da representaccedilatildeo simboacutelica das deusas

(sagradas) O ser humano comum espelha-se e exemplifica-se no divino Constituem-se

diferentes formas de significar

Discutiremos em outro capiacutetulo que como se isso natildeo bastasse ainda podemos descobrir

outros valores nesse gesto distinguindo cada uma dessas deusas na sua individualidade Isso

implica pois nuances e enfoques diferentes na forma de representaccedilatildeo que a virgindade assume

no sujeito E como o discurso freudiano atesta a sexualidade natildeo tem um sentido uniacutevoco mas

uma multiplicidade de significados Sobre essa situaccedilatildeo diz Birman

O sexual seria marcado pela polissemia natildeo podendo pois enquanto palavra e conceito ser reduzido a um campo restrito de referentes Assim a noccedilatildeo de complexidade perpassa o conceito de sexualidade estando entatildeo a dita polissemia inequivocamente articulada ao atributo da complexidade75

O caso da virgindade se a considerarmos como parte da sexualidade nos faz pensar que

ela eacute desalojada do plano comportamental e se aproxima mais da experiecircncia do senso comum

como pode ser compreendido nos registros do discurso do imaginaacuterio social Esse fato nos

permite concluir que natildeo podemos estabelecer normas e nos permite tambeacutem concordar com

Freud

Se bem que eacute oacutebvio o discurso poeacutetico natildeo seja exatamente o do senso comum pode-se dizer que aquele estaacute mais proacuteximo do imaginaacuterio popular do que o cientiacutefico76

Natildeo podemos deixar de reconhecer que os mitos e o discurso poeacutetico satildeo criaccedilotildees do

humano o que revela que foram as experiecircncias dos indiviacuteduos que forneceram elementos para

as epopeacuteias que falam de deusas e deusas de heroacuteis e de pessoas comuns de guerras e de

conflitos passionais

A complexidade a que se refere Birman (acima citado) encaminha a hipoacuteteses

inquietantes pois tambeacutem a representaccedilatildeo da virgindade pode estar vinculada a fatores que satildeo

indecifraacuteveis nesse campo elaacutestico da sexualidade Uma colocaccedilatildeo feita por Birman parece

oferecer um resumo sinteacutetico de uma questatildeo tatildeo ampla e profunda

75 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 p17 76 BIRMAN Joel idem p21

42

Com efeito a sexualidade se inscreve na fantasia antes de mais nada Esse eacute o campo por excelecircncia do erotismo Natildeo existiria pois sexualidade sem fantasia sendo essa sua mateacuteria-prima Seria entatildeo a partir da fantasia como fundamento que a sexualidade poderia assumir formas comportamentais diversificadas O comportamento seria pois o elo final de uma longa cadeia de relaccedilotildees que se inscreveriam primordialmente na fantasia do sujeito O sexo seria portanto um efeito distante do sexual por mais paradoxal que possa parecer essa afirmaccedilatildeo Em contrapartida se existe algo de enigmaacutetico e de obscuro no erotismo a fantasia seria o lugar crucial para o deciframento desse enigma e de iluminaccedilatildeo dessa obscuridade77

Esse enfoque na fantasia pode revelar que de algum modo a sexualidade se materializa

no registro do corpo Embora essa constataccedilatildeo pareccedila ser antagocircnica o que ocorre eacute que natildeo

existiria oposiccedilatildeo entre a fantasia e o corporal ou em outras palavras a sexualidade soacute pode ser

entendida se forem consideradas as forccedilas pulsionais

Eacute interessante pensar que na nossa constataccedilatildeo do mundo grego a incorporaccedilatildeo dos

valores existentes no imaginaacuterio da eacutepoca arcaica parecia identificar tanto o masculino quanto o

feminino com atributos de atividade no que diz respeito agraves deusas virgens Isso parece

evidenciar um consenso social entre os gregos Se Zeus era um deus ativo natildeo menos que ele era

Afrodite no terreno da sexualidade A seduccedilatildeo provocada por Afrodite foi positivamente

qualificada pois ela inscrevia no sujeito o desejo que eacute a marca insofismaacutevel do seu Ser

A questatildeo do desejo foi amplamente discutida por filoacutesofos e revela desde Platatildeo o que

Freud chamou de desamparo e Lacan de falta Em Platatildeo jaacute se encontra essa acepccedilatildeo de que o

desejo implica sempre a incompletude ou seja o sujeito desejante Por isso encontra-se em

Platatildeo como coloca Dumoulieacute78 que o ldquoo que anima o amor o que faz Eros viver eacute o desejo e o

desejo eacute carecircncia eacute faltardquo

O que interessa pois para entender o conceito de desejo eacute o que fundamenta o

pensamento grego E para os gregos da eacutepoca arcaica a relaccedilatildeo do homem com o Ser implicava

jaacute em si uma relaccedilatildeo de desejo Assim Afrodite se afirmava como eterna nesse movimento

coacutesmico de afirmar o desejo como princiacutepio fundador da eternidade do mundo Na Greacutecia cabia

aos mortais manter as tradiccedilotildees inauguradas pelos deuses e como ldquoguardiatildees da memoacuteriardquo

renovar as tradiccedilotildees atraveacutes dos ritos e dos relatos orais e escritos Por isso os aedos inspirados

pelo poder das musas podiam contar as faccedilanhas dos deuses e dos homens de forma que elas

passassem a pertencer ao visiacutevel e pudessem revelar a forccedila desejante do Ser

77 BIRMAN Joel opcit p62 78 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 p25

43

4 - O QUE Eacute TRADUZIR lsquoHOMEROrsquo TENTATIVAS E RISCOS

Assim eacute que a felicidade de um povo corta as asas a seu verso oferece escassa mateacuteria para admiraccedilatildeo e piedade E ainda que o prazer originado do gosto pelas espeacutecies sublimes de escrita possa fazer Vossa Senhoria lamentar o silecircncio das Musas estou persuadido de que vos ireis juntar a mim nos votos de que jamais possamos ser tema apropriado de um poema heroacuteico79

Como ldquoserrdquo um Homero grego em portuguecircs Ou um Hesiacuteodo Ou um rapsodo O

absurdo da indagaccedilatildeo jaacute leva a uma constataccedilatildeo oacutebvia da resposta

Citando um trecho das reflexotildees de Detienne temos que

a liacutengua veicula noccedilotildees o vocabulaacuterio eacute mais um sistema conceitual do que um leacutexico e as noccedilotildees linguumliacutesticas remetem agraves instituiccedilotildees isto eacute a esquemas diretores presentes nas teacutecnicas nos modos de vida nas relaccedilotildees sociais nos processos da palavra e do pensamento80

Se por um lado isso revela a impossibilidade da exatidatildeo em qualquer traduccedilatildeo por

mais teacutecnica e detalhada que ela seja por outro lado revela o desejo do pesquisador de se

aproximar de um estudo etnograacutefico bisbilhotando os textos no original descobrindo indicaccedilotildees

que o uso dos vocaacutebulos das colocaccedilotildees das alternacircncias das recorrecircncias possa significar

Jaacute vimos no capiacutetulo anterior que Milman Parry apontou para a importacircncia dos epiacutetetos

na poesia eacutepica grega Soacute quando se inteirou da profundidade da linguagem e da liacutengua esse

autor pocircde fazer descobertas significativas que introduziram por sua vez novos conceitos e um

novo olhar sobre os epiacutetetos na epopeacuteia e na forma de transmitir a tradiccedilatildeo Como coloca ainda

Detienne ldquoQuaisquer que sejam seus efeitos imediatos ou a longo prazo o escrever a lsquotradiccedilatildeorsquo

transforma virtualmente uma cultura baseada na oralidade na memoacuteria e no memoraacutevelrdquo81 Foi

desdobrando as dobras da epopeacuteia grega que Milman Parry pocircde verificar os desiacutegnios da

tradiccedilatildeo

Alguns aspectos da cultura satildeo dificilmente localizaacuteveis se natildeo houver investigaccedilatildeo do

campo linguumliacutestico e do semacircntico Eacute preciso ldquomaterializarrdquo a liacutengua alvo para conseguir perceber

ndash ainda que de longe e a distacircncia ndash o pensamento miacutetico

79 BLACKWELL apud LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 p 188 80 DETIENNE MarcelOs Gregos e Noacutes Uma Antropologia Comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p79 81 DETIENNE Marcel Opcit p63

44

O objetivo do tradutor eacute tentar entender o texto estrangeiro natildeo soacute na sua abrangecircncia

mas tambeacutem nos detalhes Aleacutem da visibilidade das imagens graacuteficas que compotildeem o texto ele

tem de captar os vatildeos invisiacuteveis Assim a dificuldade se faz dupla traduzir o diziacutevel e o

indiziacutevel

Venuti inaugura seu texto sobre traduccedilatildeo com a colocaccedilatildeo de que

o trabalho de traduccedilatildeo eacute governado por uma noccedilatildeo de equivalecircncia que evolui e varia equivalecircncia a uma interpretaccedilatildeo de uma forma e um conteuacutedo estrangeiros em geral realizada no processo de traduccedilatildeo e raras vezes articulada independentemente dele82

Daiacute jaacute se nota que natildeo haacute uma uacutenica forma de traduzir e que a traduccedilatildeo eacute atravessada pelo

conhecimento que o tradutor tem da liacutengua estrangeira da cultura alvo e de sua relaccedilatildeo com a

sua cultura de origem Esse referencial de valores culturais domeacutesticos indubitavelmente pode

afastar o tradutor do texto e o torna ldquomais estrangeirordquo Mas ao mesmo tempo tambeacutem a

traduccedilatildeo oferece uma domesticaccedilatildeo pois que o tradutor vai se familiarizando com a cultura

estrangeira no ato de traduzir Nesse sentido a traduccedilatildeo se presta para construir representaccedilotildees

de culturas estrangeiras

Esse movimento de se adequar a uma outra cultura construindo uma posiccedilatildeo de

inteligibilidade para o sujeito acaba tambeacutem criando uma postura ideoloacutegica A escolha de um

texto e de estrateacutegias de traduccedilatildeo pode direcionar o texto para diferentes visotildees e pode ateacute

mesmo mudar ou consolidar cacircnones e paradigmas conceituais aleacutem de influenciar metodologias

de pesquisa enfoques teacutecnicos e praacuteticas que satildeo parte da cultura domeacutestica

Na tentativa de traduzir o trabalho do tradutor reflete sua ideologia Por isso eacute

fundamental que se tenha em mente que o trabalho de traduccedilatildeo admite mais que uma abordagem

Assim por exemplo na tentativa de traduzir os Hinos Homeacutericos procuramos seguir as

pegadas do autor autores do texto original procurando palavras que recuperassem o uso dos

epiacutetetos empregando adjetivos e expressotildees que ressaltassem caracteriacutesticas dos deuses

selecionando verbos que retratassem accedilotildees referentes agrave eacutepoca arcaica ldquoinventandordquo termos que

dessem conta da representaccedilatildeo de imagens do cosmo

Ia surgindo assim uma aacuterea de trabalho inteiramente nova e foi nesse momento que

entendemos a acepccedilatildeo de Venuti a respeito dos ldquoefeitosrdquo da traduccedilatildeo mudamos o nosso modo de

82 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 p173

45

olhar o mundo grego As deusas virgens se presentificaram e a epopeacuteia tomou forma e ganhou

ritmo Parecia-nos impossiacutevel que em menos de um ano pudeacutessemos entender textos em grego

Seraacute que nos aproximamos de um processo de domesticaccedilatildeo

Poreacutem o que eacute fato conhecido eacute que haacute tambeacutem a ideologia do tradutor do tradutor

Dessa forma cada eacutepoca dita seus cacircnones e independentemente deles existe um

ldquocorporativismo acadecircmicordquo que determina estilos de traduccedilatildeo aceitaacuteveis e que se tornam

paradigmaacuteticos Essas avaliaccedilotildees institucionais nem sempre consideram todos os aspectos que

envolvem uma traduccedilatildeo Por exemplo a ediccedilatildeo chamada de LOEB eacute considerada ao lado da

traduccedilatildeo francesa de Jean Humbert des Belles Lettres um claacutessico_ como se chamam todas as

obras consagradas_ e no entanto o autor traduz os Hinos Homeacutericos sem a preocupaccedilatildeo de

manter a estrutura riacutetmica e a beleza poeacutetica dos versos Resume-se a traduzir o significado do

texto de forma ldquoconteudiacutesticardquo Nessa passagem de um idioma ao outro haacute tambeacutem uma

mudanccedila do gecircnero textual de poemas para uma narrativa factual Esse tipo de ocorrecircncia revela

a questatildeo da subjetividade do tradutor De qualquer forma as ediccedilotildees LOEB satildeo um cacircnone para

a traduccedilatildeo de textos gregos porque servem a certos interesses de um grupo especiacutefico Isso

explicita uma outra questatildeo ideoloacutegica qual seja a de que os cacircnones introduzidos pelos falantes

de liacutengua francesa e de liacutengua inglesa tecircm dominado o mundo ocidental Como dissemos as

escolas indicam a ldquopreferecircnciardquo de um momento de uma predominacircncia de poliacutetica linguumliacutestica e

hoje a obra de Caacutessola Inni Omerici eacute tida como um dos manuscritos mais apropriados dado o

seu embasamento de pesquisa e seleccedilatildeo cuidadosa do material

Essa constataccedilatildeo revela a dificuldade de um trabalho de traduccedilatildeo e demonstra que os

ldquoefeitosrdquo em geral refletem os interesses de um grupo cultural particular

De forma ousada quase um desafio na tentativa de correr riscos ao se traduzirem os

Hinos Homeacutericos para o portuguecircs procuramos fazer um trabalho em que acreditaacutevamos ndash e aiacute

entra a nossa individualidade ndash na investigaccedilatildeo do leacutexico no entendimento das funccedilotildees

sintaacuteticas na organizaccedilatildeo do texto e sobretudo na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees culturais

Fomos fazendo comentaacuterios tecendo consideraccedilotildees e propondo questionamentos de questotildees

natildeo resolvidas Aleacutem disso procurou-se manter uma preocupaccedilatildeo meacutetrica dos versos para tentar

conservar uma cadecircncia riacutetmica Mais uma vez a questatildeo da domesticaccedilatildeo e da equivalecircncia a

qual natildeo haacute como se evitar

46

Haacute ainda dois pontos a serem considerados por serem objeto de nosso interesse (1) que

desconhecemos qualquer traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos agraves deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia em

portuguecircs e dos Hinos V e VI referentes a Afrodite (2) que eacute preciso que se reconheccedila o caraacuteter

da poesia eacutepica

O estilo da poesia eacutepica eacute de inegaacutevel simplicidade conciliando a excelecircncia dos

costumes e a nobreza dos caracteres Eacute uma manifestaccedilatildeo do ldquomaravilhosordquo e do ldquoassombrosordquo

Tanto em Homero como nos rapsodos que o sucederam e que continuaram sua tradiccedilatildeo como

em Hesiacuteodo a histoacuteria dos deuses e dos heroacuteis eram colocadas para a representaccedilatildeo da

ocorrecircncia de fatos extraordinaacuterios e no caso dos Hinos Homeacutericos na exacerbaccedilatildeo de

verdadeiras louvaccedilotildees arrebatadoras dramaacuteticas enfatizando dons e atributos que movem as

paixotildees humanas que as engrandecem e que evocam clamam pela imitaccedilatildeo do que eacute grandioso

para o humano Como diz Lacerda referindo-se ao trabalho de Blackwell83 sobre a eacutepoca de

Homero

Blackwell como se acabou de verificar presumiu que o grego falado no tempo de Homero se encontrava em condiccedilotildees ideais para a composiccedilatildeo eacutepica O que o tornava tatildeo apropriado seria natildeo soacute a coloraccedilatildeo emotiva mas ainda a ausecircncia de artifiacutecios e sutilezas ldquoUma liacutengua totalmente polida no sentido modernordquo sentencia ldquonatildeo desceraacute agrave simplicidade de maneiras absolutamente necessaacuteria na poesia eacutepicardquo84

Esse aspecto ndash de uma simplicidade quase ingecircnua ndash que foi visto por muitos autores

como um lsquoprimitivismorsquo nos parece como coloca Lacerda ldquouma forma particular de poesia (e de

saber)rdquo85 E mais

Visto que o bom poeta imita a ldquonaturezardquo e natureza no caso quer dizer realidade circundante o poeta de uma eacutepoca polida soacute teraacute ecircxito em assuntos refinados86

Isso nos remete agrave questatildeo dos ldquoriscosrdquo que percebemos nas traduccedilotildees agraves vezes tatildeo

polidas apropriando-nos do termo de Blackwell que se tornam distantes da realidade da eacutepoca

dos deuses quando o efeito da poesia eacute muito mais feito pelo sublime do que pelo grandioso que

os tempos modernos inauguraram

83 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer( 1736) Reimpressatildeo reprograacutefica HildesheimNew York Georg Olms 1976 84 LACERDA Sonia Op cit p 186 85 LACERDA Sonia Idem p 186 86 LACERDA Sonia Idem p187

47

Eacute que Homero Hesiacuteodo e os rapsodos como bardos compositores participavam da

amaacutelgama de saberes miacuteticos (que perdemos atraveacutes dos tempos) e os esquemas linguumliacutesticos e os

motivos narrativos proporcionavam a esses poetas a substacircncia representativa e imageacutetica dos

poemas A forma de vida nesse mundo arcaico a religiatildeo ldquoacotoveladardquo com a realidade

cotidiana e a simplicidade da linguagem eram circunstacircncias essenciais para a elaboraccedilatildeo

ldquoliteraacuteriardquo de uma poesia eacutepicamiacutetica

Por isso querer traduzir os poemas desses bardos corre o risco de produzir uma forma

sincreacutetica ldquofalsardquo de poemas sem feiccedilatildeo na medida em que se afastam tanto da perspectiva da

faacutebula miacutetica quanto da linguagem metafoacuterica pois que a mitologia jaacute eacute intrinsecamente

metafoacuterica

Portanto optamos por traduzir os hinos homeacutericos na sua linearidade no entendimento

do movimento do leacutexico da multiplicidade das metaacuteforas na organizaccedilatildeo das faacutebulas sem

qualquer pretensatildeo ldquomimeacuteticardquo ou seja de imitar aquilo que faz parte da inerecircncia do mito

Pareceu-nos por isso saacutebia a posiccedilatildeo adotada por Faulkner87 quando em sua obra apresenta o

Hino Homeacuterico V a Afrodite em grego limitando-se a comentaacuterios linguumliacutesticos e semacircnticos do

texto a traduccedilotildees interpretativas de frases e expressotildees sem no entanto compor uma traduccedilatildeo

sua

Ainda no dizer de Lacerda reportando-se ao mesmo Blackwell

Da mesma maneira que lhe estatildeo vedados o surpreendente e o fabuloso ao poeta moderno eacute interdito descrever accedilotildees sublimes e caracteres heroacuteicos pois este satildeo estranhos aos costumes de seu tempo e agrave sua experiecircncia88

Seja como for parece-nos que a poesia eacutepica pode tambeacutem ser adaptada a tempos

modernos adquirindo um novo enfoque

87 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Oxford Oxford University Press 2008 88 LACERDA Sonia Opcit p188

49

5 - QUE DEUSAS SAtildeO ESSAS

ldquoLa fertilidad de la naturaleza y la fecundidad tanto de la tierra como de los seres humanos fueron consideradas como misterios sublimes y foram divinizadasrdquo89

51 - AFRODITE E A REPRESENTACcedilAtildeO DO DESEJO

Afrodite eacute consagrada como a deusa do amor a deusa Afrogeneacuteia (ΑФρογένεια) que

nasceu da espuma do mar

Como tudo se inicia A lenda mais conhecida nos conta que no princiacutepio Gaia a matildee

universal comeccedila criando a partir de si mesma quer dizer sem seu contraacuterio masculino o que

implica pois que natildeo houve uniatildeo sexual Esse tipo de reproduccedilatildeo nomeada de cissiparidade

deu origem a Urano o ceacuteu Entatildeo nesse momento comeccedilaram a unir-se Gaia e Urano dois

princiacutepios opostos para procriar filhos que tecircm uma individualidade que satildeo marcados por

atributos que tecircm uma funccedilatildeo como potecircncias coacutesmicas A uniatildeo do ceacuteu e da terra se faz sem

regras O ceacuteu acomoda-se sobre a terra cobrindo-a inteira e os filhos gerados natildeo podem sair da

matildee Gaia por falta de distacircncia entre esses dois pais coacutesmicos Inconformada a matildee (Gaia) pede

a um de seus filhos Crono que agrave noite enquanto o ceacuteu (Urano) se debruccedila sobre ela que ele

(Crono) o castre Assim Urano eacute castrado por um golpe de foice amaldiccediloa os filhos e deixa

Gaia liberta Ficam deste modo separados por um grande espaccedilo vazio apartados um do outro

onde os opostos mesmo quando se unem permanecem distintos

Isto posto jaacute se vecirc que natildeo se pode pensar em uniatildeo dos contraacuterios sem que essa ideacuteia

esteja relacionada a um conflito a uma luta de forccedila entre os dois sexos Eacute nessa tessitura de

ldquocorda esticadardquo entre o macho e a fecircmea que surge Afrodite o ldquoamorrdquo Vinda dos testiacuteculos

ensanguumlentados de Urano que caiacuteram na aacutegua ela chega inaugurando uma forma organizada de

engendrar por uniatildeo os contraacuterios presidindo o casamento em um espaccedilo (sociedade grega

patriarcal) em que a mulher tinha como finalidade a ldquoconstruccedilatildeordquo de seu lar (marido e filhos)

89 MAVROMATAKI Maria Mitologia GriegaAtenas Ediciones Xaitali 1997 p 5

50

Como dizem Vernant e Vidal-Naquet ldquonum mundo pautado pela lei de

complementaridade entre os opostos que ao mesmo tempo se afrontam e se harmonizamrdquo90

Outra lenda conta que Afrodite teria nascido da uniatildeo de Zeus91 com Dione uma das

deusas da primeira geraccedilatildeo divina cuja origem diverge segundo diferentes tradiccedilotildees Ora diz-se

que Dione era filha de Urano e Gaia ora de Teacutetis e Oceano como estaacute colocado na Teogonia de

Hesiacuteodo Essa lenda sobre o nascimento de Afrodite natildeo eacute amplamente conhecida e eacute menos

divulgada que a anterior jaacute tatildeo explorada pelos grandes artistas de todos os tempos quer sejam

eles pintores quer poetas

Entretanto verifica-se a alusatildeo a essa lenda na Iliacuteada V 312-374 quando Afrodite filha

de Zeus (v 312 ∆ιός θυγάτηρ ΆΦροδίτη) protege seu filho Eneacuteias (gerado com o mortal

Anquises) e eacute ferida pelo heroacutei Diomedes (por sua vez protegido de Atena) Afrodite entatildeo

corre para o colo de sua matildee Especificamente os versos 370-374 narram o encontro de matildee e

filha descrito com o lirismo da proteccedilatildeo materna e do consolo compreensivo que Dione oferece

a Afrodite

ή δ έν γούνασι πΐπτε ∆ιώνης δι΄ ΆΦροδίτη 370 microητρος έής ή δ αγκάς έλάζετο θυγατέρα ήν χειρί τέ microιν κατέρεξεν επος τ΄ έΦατ΄ έκ τ΄ όνόmicroαζε ldquoτίς νύ σε τοιάδ΄ έρεξε Φελόν τεκος Οΰρανιώνων microαψιδιως ώς ει τι κακόν ρέζουσαν ένωπήrdquo92 374 Mas Afrodite arremessa-se nos joelhos de Dione 370 sua matildee e ela tomou sua filha nos braccedilos com a matildeo acariciou-a e fez uso das palavras dizendo ldquoquem agora dos filhos de Urano querida crianccedila fez coisas a ti sem razatildeo como se vocecirc um mal tivesse praticado agrave frente de todosrdquo93 374

90 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 p 61 91 Zeus eacute considerado o deus mais importante do Panteatildeo grego Identifica-se com a luz tal como o raio e reina poderoso no Olimpo morada de todos os deuses Eacute filho de Crono e Reacuteia Crono devorava os filhos agrave medida que nasciam Quando Zeus nasceu Reacuteia deu uma pedra enrolada em um pano a Crono que pensando ser a crianccedila engoliu-a Desta forma Zeus foi salvo e mais tarde tomou o poder das matildeos do pai assim como Crono havia tirado o poder de Urano castrando-o 92 HOMER The Iliad v 1 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 93 Traduccedilatildeo nossa apenas para efeito de verificar o sentido do trecho que se refere agrave origem de Afrodite

51

Como se vecirc natildeo se pode deixar de considerar essa outra tradiccedilatildeo do nascimento de

Afrodite uma vez que a Iliacuteada que eacute uma das obras mais lidas aponta para esse fato que eacute

representativo de uma linhagem que privilegia o lugar do feminino na famiacutelia patriarcal dando

ecircnfase agrave figura materna

Um outro aspecto em Afrodite que merece ser destacado eacute a questatildeo do movimento

Afrodite eacute errante Diferentemente das deusas virgens que possuem um domiacutenio especifico

Afrodite perambula por diversos espaccedilos Ela chega mesmo a invadir a ldquoaacuterea delimitadardquo das

outras deusas

Melhor explicando essa ideacuteia podemos reportar-nos a trechos da Iliacuteada e da Odisseacuteia

bem como dos Hinos Homeacutericos reveladores de seu caraacuteter inquieto fugidio onipresente A

guerra estaacute pela sua natureza relacionada agraves atividades da deusa Palas Atena que herdou a

astuacutecia materna e o espiacuterito combatente do pai como eacute comentado adiante Poreacutem Afrodite entra

e move-se nesse espaccedilo envolvendo-se de forma que natildeo pode ser controlada Como jaacute vimos no

canto V da Iliacuteada (312-374) Afrodite vai ao campo de batalha e Diomedes lhe diz em altos

brados

Filha de Zeus94 poderoso conserva-te longe da luta 348 Ou seduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedila Se ainda sentires desejo de ver um combate de perto creio que soacute o nome ldquoguerrardquo haacute de grande pavor inspirar-te Atormentada Afrodite enquanto ele falava afastou-se95 352

As palavras de Diomedes deixam claro novamente essa tradiccedilatildeo da origem de Afrodite e

o fato de que a guerra natildeo eacute espaccedilo para seduccedilatildeo para o feminino que natildeo leva a seacuterio uma

atividade complementar que faz parte da organizaccedilatildeo poliacutetico-social do povo grego Atena ao

contraacuterio move-se dentro da batalha seu campo de domiacutenio como estrategista e essa eacute uma de

suas funccedilotildees

A propoacutesito a Iliacuteada relata um episoacutedio de guerra que se desenvolve a partir da

representaccedilatildeo do desejo Eacute vinculado agrave ideacuteia de uniatildeo e de conflito a que nos referimos

anteriormente que tem iniacutecio uma guerra que envolve deuses e deusas heroacuteis e homens O

conflito eacute gerado por Afrodite na sua proposta de manter o reinado da seduccedilatildeo Natildeo haacute homem

94 Grifo nosso 95 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 p 145

52

que resista agraves tentaccedilotildees de Afrodite ou melhor difiacutecil eacute resistir aos seus ardis femininos Como

diz Diomedes a ela ldquoseduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedilardquo96

Como se sabe e a tiacutetulo de recordaccedilatildeo a histoacuteria da Iliacuteada na verdade comeccedila no ldquoceacuteurdquo

Conta a lenda que em uma grande festa em que se celebrava o casamento a uniatildeo de Peleu e

Teacutetis todos os deuses haviam sido convidados exceto Discoacuterdia (Eacuteris) E por ser Discoacuterdia

insultada e indignada fez rolar uma maccedilatilde pelo chatildeo da entrada ndash chamada lsquopomo da discoacuterdiarsquo ndash

proacuteximo ao assento das deusas Hera Atena e Afrodite Quando Hera pegou a maccedilatilde leu o que

estava escrito ldquoPara a mais belardquo Como reaccedilatildeo feminina Hera imediatamente achou que a maccedilatilde

era para si proacutepria Atena reagiu e Afrodite enfaticamente disse que era para ela Nesse clima de

discoacuterdia foi chamado Zeus que cauteloso e conhecedor do perigo de apontar qualquer uma

delas como a mais bela pois as outras duas se vingariam decidiu nomear Paacuteris tambeacutem

conhecido como Alexandre um dos filhos de Priacuteamo para decidir a questatildeo Hermes o deus

mensageiro levou as trecircs ateacute o Monte Ida onde estava Paacuteris em Troacuteia Laacute cada uma delas

ofereceu uma forma de suborno a Paacuteris em troca do tiacutetulo

Atena propocircs conceder-lhe o dom de ser um guerreiro vitorioso Hera lhe ofereceu o

reinado sobre toda a Aacutesia e Afrodite ofereceu-lhe a mulher mais bela Helena de Esparta Paacuteris

entregou a maccedilatilde de ouro a Afrodite

Eacute interessante verificar que Afrodite gera um conflito tal que troianos e gregos lutam e

morrem pelo rapto de uma mulher pois Helena jaacute era casada com Menelau Aleacutem disso o

feminino revela-se nas outras duas deusas Hera e Atena em forma de vinganccedila Hera torna-se

inimiga de Troacuteia berccedilo de Paacuteris por quem ela e Atena foram preteridas Assim por ocasiatildeo do

rapto de Helena por Paacuteris Hera faz com que o navio em que estavam os dois se afaste do

caminho de Troacuteia e se dirija para Siacutedon na costa siacuteria

Afrodite torna-se protetora de Troacuteia durante a guerra

As deusas e suas reaccedilotildees revelam um caraacuteter humano em que as emoccedilotildees ocupam um

papel preponderante tornando a epopeacuteia homeacuterica real tocante e ateacute mesmo com um certo

ldquolirismordquo como jaacute rotulamos anteriormente em um momento de ousadia Mas os deuses ndash e

nesse caso as deusas ndash soacute fazem sentido se houver o ldquohumanordquo as paixotildees que determinam

concorrecircncias voluacutepias enganos oacutedios terriacuteveis desordens desmedidas lutas Em se

96 HOMERO Idem v 349

53

considerando esse aspecto fundamental do mito grego o certo e o errado o que pode e o que natildeo

pode o que deve e o que natildeo deve enfim valores morais que os homens estabeleceram ao

longo dos tempos eles natildeo existiam como valores eacuteticos entre os gregos da eacutepoca arcaica Desse

modo a moral de Afrodite eacute o desejo poder contra o qual os mortais nada podiam pois os

homens nada valiam sem seus deuses Em outras palavras as accedilotildees humanas (de Paacuteris e de

Helena) soacute existem por intervenccedilatildeo divina Cabe aos deuses a direccedilatildeo de suas intervenccedilotildees ainda

que possam parecer desleais mas que em geral tentam ajudar aquele ou aqueles que procuram

proteger Com a proteccedilatildeo dos deuses aos mortais nada eacute impossiacutevel e assim como Atena

protege Diomedes no combate Afrodite vela por Paacuteris o troiano contra Menelau que teve sua

mulher raptada

O canto III da Iliacuteada mostra um momento de grande forccedila e poder de Afrodite quando

Alexandre (Paacuteris) filho de Priacuteamo (de Troacuteia) luta com Menelau (marido ofendido) e embora

Menelau saia vencedor do embate (graccedilas agrave proteccedilatildeo de Atena) Afrodite salva Paacuteris da morte

(das investidas violentas das armas de Menelau) e o leva a salvo ateacute Helena A proacutepria Helena

reprova a atitude da deusa ante a vitoacuteria de Menelau poreacutem Afrodite chama-lhe a atenccedilatildeo para

seu poder dizendo

Natildeo me provoques criatura infeliz porque natildeo aconteccedila 414 que te abandone e te venha odiar quanto agora te prezo Se entre Acaios e Teucros97 fizesse surgir oacutedio infausto contra tu proacutepria haverias de ter um destino bem triste98 417

Ouvindo essas palavras Helena ficou cheia de medo (έδδεισεν v 418) e seguiu a deusa

que no texto homeacuterico eacute indicada com a palavra δαίmicroων v 420 com sentido de terriacutevel

poderosa de onde vem em portuguecircs o termo democircnio usado na traduccedilatildeo de Nunes

e sem dizer mais palavra se foi99 no veacuteu branco envolvida 419 sem que as troianas a vissem servia de guia o democircnio100 420

A influecircncia de Afrodite eacute decisiva na uniatildeo do casal Paacuteris-Helena e essa ligaccedilatildeo natildeo

dependeu do desejo dos mortais mas do ldquodestinordquo imposto pela deusa

97 Equivalente a gregos e troianos No texto Τρώων καί ∆αναών (v 417) sendo que ∆αναών significa descendente de Dacircnaos 98 HOMERO Op cit Canto III 414-417 p 115 99 Referindo-se a Helena 100 HOMERO Op cit Canto III 418-420 p 115

54

Afrodite tambeacutem protege na guerra de Troacuteia Eneacuteias seu filho com Anquises mas isso eacute

uma outra histoacuteria Aqui a lenda miacutetica enreda temas de conceitos que se sobrepotildeem primeiro a

questatildeo que existe entre a diferenccedila essencial da imortalidade dos deuses e da mortalidade

humana Eneacuteias eacute fruto de uma ligaccedilatildeo entre a deusa Afrodite e o mortal Anquises o que jaacute

revela que como descendente que tem traccedilos humanos natildeo goza do privileacutegio da imortalidade

Segundo apesar de Afrodite estar sempre tecendo a seduccedilatildeo e provocando a uniatildeo sexual entre

deuses e homens o Hino Homeacuterico V que faz parte de uma sequumlecircncia de trinta e trecircs hinos de

eacutepocas e autores diferentes posteriores agrave Iliacuteada e a Odisseacuteia mas que mantem tambeacutem uma

dicccedilatildeo eacutepico-narrativa narra a seduccedilatildeo da proacutepria Afrodite por Anquises e a concepccedilatildeo de

Eneacuteias Veja-se o trecho seguinte retirado do Hino Homeacuterico V 247-255 em que Afrodite

reconhece seu deslize por ter se deixado envolver por um homem mortal

∆ΰτάρ εmicroοί microέγ ονειδος έν αθαvάτοισι θεοΐσιν 247 Έσσεται ήmicroατα πάντα διαmicroπερές έίνεκασεΐο οί΄ πριυ ε΄microούς ο΄άρους και υητιας αΐς ποτε πάντας αθανάτους συνέmicroιξα καταθνητήσι γυναιξί 250 τάρβεσκον πάντας γάρ εmicroόν δάmicroνασκε νόηmicroα νΰν δέ δη ουκέτι microοι στοmicroα χείσετι έξονmicroήναι τούτο microετ΄ άθανάτοισν έπεί microαλα πολλόν α΄άο θην σχέτλιου οΰκ όνοταστόν άπεπλάγχθην δέ νόοιο παΐδα δ΄ ύπό ζώνη έθέmicroηv βροτώ εύνηθέΐοα101 255

E agora sobre mim uma grande censura entre os deuses imortais 247 haveraacute todos os dias continuamente por causa de vocecirc aqueles que se amedrontaram de minhas zombarias e ardis com os quais alguma vez fiz todos os imortais se envolverem com mulheres mortais 250 pois meu propoacutesito submeteu todos a mim Mas agora minha boca natildeo mais teraacute coragem de mencionar isso entre os imortais desde que fiquei grandemente atormentada infeliz sem palavras tendo perdido o juiacutezo trago uma crianccedila debaixo do cinto tendo colocado ao leito um mortal102 255

Algumas observaccedilotildees se fazem necessaacuterias (a) apesar de natildeo haver um conceito

estabelecido de eacutetica e moral entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos a ideacuteia que parece estar vinculada

com a palavra ŏνειδος (censura reprovaccedilatildeo) estaacute relacionada a um sentido de organizaccedilatildeo na

junccedilatildeo entre os opostos que a narrativa da histoacuteria da origem da separaccedilatildeo da terra e do ceacuteu trata

e agrave qual jaacute nos referimos Afrodite como deusa inquieta e errante voluptuosa e voluacutevel tinha a

101 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 p 67 102 Traduccedilatildeo nossa

55

intenccedilatildeo de desequilibrar de afetar a ordem entre os contraacuterios pois a contradiccedilatildeo estaacute associada

com a natureza primeira da condiccedilatildeo de procriaccedilatildeo Nesse jogo de ambivalecircncia tambeacutem os

imortais satildeo enredados pela mortalidade conhecendo a inseguranccedila a fraqueza a brevidade da

vida humana Assim a implicaccedilatildeo de censura daacute-se pelo fato de que os imortais atraveacutes dos

desiacutegnios do desejo reconhecem uma tensatildeo que estaacute colocada como uma realidade humana que

eles passam a identificar no seu relacionamento com os mortais E a presenccedila da morte natildeo podia

ser aceita pelos deuses que a viam como degradante e vil (b) Embora natildeo tenha sido citado no

trecho acima o mesmo Hino Homeacuterico V menciona que o proacuteprio Zeus o deus todo poderoso do

Olimpo que tambeacutem havia sido viacutetima das investidas de Afrodite para dar-lhe uma liccedilatildeo faz

com que ela proacutepria conheccedila um mortal em uma situaccedilatildeo que envolva a intimidade conjugal Eacute o

que revela o verso 255 com a palavra έύνηθεΐσα isto eacute colocar no leito nupcial onde se daacute a

uniatildeo dos opostos e onde se concretiza a concepccedilatildeo (c) Por isso Afrodite fala das consequumlecircncias

de seu ato pois entatildeo sabe que traz ldquouma crianccedila debaixo do seu cintordquo A palavra ζώνη ao

mesmo tempo que se refere a cinto refere-se agrave lsquocinturarsquo ao lsquoventrersquo

A partir daiacute temos pois uma outra consideraccedilatildeo a questatildeo da descendecircncia Essa tese eacute

amplamente discutida por Faulkner103 que comenta como essa temaacutetica (dos ldquoAineiadairdquo) eacute

delineada desde o proacutelogo do poema e estaacute presente nos jogos sedutores que Afrodite impotildee a

Anquises fazendo-se passar por filha de Otreu rei da Frigia Afrodite convence Anquises das

profecias do deus Hermes que previu a uniatildeo deles (Τέκνα Τεκεΐσθαι v 127) atraveacutes de

atividades conjugais e o nascimento de um filho Deste modo o que ela coloca ironicamente

como fraude vem a tornar-se verdade Nem Afrodite escapa de ldquosua bocardquo

As colocaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo a Eneacuteias filho de uma deusa com um mortal o destaque

sobre os atributos fiacutesicos favoraacuteveis de Afrodite e de Anquises a profecia de seu nascimento

parecem dar ecircnfase agrave famiacutelia descendente de Eneacuteias

O que Faulkner104 argumenta eacute que apesar de subtemas ligados ao poema como a ironia

de Afrodite suas zombarias a relaccedilatildeo deus imortal ndash homem mortal no Hino a Afrodite o poeta

pretendeu glorificar a linhagem de uma famiacutelia ldquoEneidanardquo (Aineiadai)

103 FAULKNER Andrew Op cit 104 FAULKNER Andrew Op cit

56

Ainda assim o que jaz como princiacutepio da linhagem eacute uma fraude o que natildeo deixa de ser

uma forma de violecircncia que vem sempre acompanhada do desejo talvez um sentimento de posse

(pois Afrodite queria apossar-se de Anquises dada a sua beleza) que emana do contexto do ser

amado Eacute Anquises que lhe provoca o desejo Retomando o que jaacute foi colocado no item 22 vecirc-

se claramente o jogo de forccedilas em Afrodite a seduccedilatildeo persuasiva (peithoacute) e a ilusatildeo enganosa

(Apaacuteteacute)

O que estaria sendo revelado nesse trecho dos Hinos Homeacutericos em que Afrodite natildeo

resiste aos encantos de Anquises Talvez que a questatildeo dos opostos ndash que envolve sempre uma

tensatildeo como jaacute vimos ndash se inicie pelo ldquoolharrdquo Assim toda genealogia humana passa pela

questatildeo de ldquoolharrdquo e do reconhecimento desse olhar ou seja pelo sexo que eacute uma forma de

apoderar-se isto eacute de poder Nesse sentido a condiccedilatildeo humana que resulta do contexto da

sexualidade pode vir a ser uma condiccedilatildeo traacutegica como foi demonstrado e explorado na trageacutedia

grega

Eneacuteias eacute gerado a partir da seduccedilatildeo e do erotismo A descendecircncia se daacute como

consequumlecircncia como resultado de um ldquofasciacuteniordquo105 como diratildeo os romanos Mas o que fica claro

na questatildeo genealoacutegica eacute que o resultado da ligaccedilatildeo entre os opostos eacute que levaraacute adiante esse ato

e que o proclamaraacute nas geraccedilotildees futuras Como coloca Quignard ldquonous sommes venus drsquoune

scegravene ougrave nous nrsquoeacutetions pasrdquo106

Assim o Hino Homeacuterico V a que estamos nos referindo enfatiza o olhar de Afrodite e

de Anquises A concepccedilatildeo de Eneacuteias deu-se pelo olhar A questatildeo do olhar natildeo poderia deixar de

ser considerada pelos saacutebios gregos

Quando Afrodite desejosa apresenta-se (vs 75 ndash 142) a Anquises como uma simples

mortal o que inaugura esse encontro eacute o olhar de Anquises pois ele percebe o objeto de amor agrave

sua frente Eacute o que diz o texto grego

Αγχίσης δ΄ δρόων107 έΦράξετο θαύmicroαιν΄εν τε 84 ει δός τε microέγεθός τε καί έίmicroατα σιγαλο΄εντα 85

105 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 p 11 O autor faz um estudo comparando a palavra romana ldquofascinusrdquo com a palavra grega ldquophallosrdquo Ele diz ldquoLe lsquofascinusrsquo arrecircte le regard au point qursquoil ne peut srsquoen deacutetacherrdquo ou seja que ldquoo fasciacutenio imobiliza o olhar a tal ponto que natildeo se pode desprender-se delerdquo 106 QUIGNARD Pascal Idem p 10 ldquoViemos de uma cena onde natildeo estaacutevamosrdquo 107 Grifo nosso para assinalar o verbo olhar que tambeacutem significa entender

57

Portanto Anquises quando a viu observou-a bem e admirou sua aparecircncia e suas

vestimentas

O autor descreve em poucas palavras o olhar de atraccedilatildeo de cobiccedila mesmo que faz parte

do jogo de seduccedilatildeo O olhar do mortal Anquises espelha a forma de exercer o olhar do masculino

e revela o entendimento da figura feminina no seu modo de Ser de portar-se de vestir-se de ser

mulher Isso indica o interesse do homem grego pelo belo e a descriccedilatildeo que se segue mostra o

olhar investigador e atento do poeta conhecedor do espaccedilo feminino de seu tempo

Apoacutes essa cena da descoberta pelo olhar Afrodite eacute conduzida de olhos ldquoabaixadosrdquo

(κατ΄ οmicromicroατα καλα βαλοΰσα v 156) ndash revelando modeacutestia ndash por Anquises Novamente o olhar

complementando o gesto decoro vergonha recato O que quer a deusa dizer com isso O texto

leva agrave accedilatildeo seguinte a uniatildeo de Anquises e Afrodite homem mortal e deusa imortal no mesmo

leito A respeito ocorre-nos um trecho das Eacuteleacutegies de Properce

Les yeux dans lrsquoamour sont les guides (oculi sunt in amore duces) Ocirc joie drsquoune nuit lumineuse Ocirc toi petit lit (lectule) heureux de mon plaisir Que de mots eacutechanges agrave la clarteacute des lampes Et la lumiegravere enleveacutee (sublato lumine) dans la nuit que de combats de lrsquoamour Une seule nuit peut faire de nrsquoimporte quel homme un dieu (nocte una quivis vel deus esse potest)108

O leito de Anquises que recebe Afrodite eacute cuidadosamente descrito no Hino Homeacuterico V

O cliacutemax do arrebatamento amoroso ocorre principalmente nos versos 155-167 Eacute quando o

leito que os acolhe revela a forccedila do heroacutei Anquises nas peles de ursos e de leotildees que jaacute se

submeteram a ele e agora jazem estendidos para receber Afrodite tambeacutem ela submissa a seu

poder e como aponta Faulkner para esse fato

By doing so109 the animal skins become more than just an abstract symbol of Anchisesrsquo power and underline Aphroditersquos own loss of power in the face of Anchisesrsquo momentary strenght she is now conquered on top of the very beasts she earlier controlled110

108 PROPERCE Eacuteleacutegies II 15 In QUIGNARD Pascal Op cit p 135 ldquoOs olhos no amor satildeo guias Oh alegria de uma noite luminosa Oh pequeno leito feliz de meu prazer Quantas palavras trocadas agrave claridade das lacircmpadas E a luz arrebatada na noite quantos combates do amor Uma uacutenica noite pode fazer de qualquer homem um deusrdquoTraduccedilatildeo nossa 109 ldquoBy doing sordquo estaacute relacionado agrave sentenccedila anterior referindo-se ao fato de que quando Afrodite estava atravessando o monte Ida para dirigir-se a casa de Anquises Afrodite submeteu os animais selvagens agrave doccedilura do seu desejo fazendo-os copular 110 FAULKNER op cit p 227 ldquoAo fazer isso as peles dos animais se tornam mais do que um siacutembolo abstrato do poder de Anquises e realccedilam a perda de poder da proacutepria Afrodite face agrave forccedila momentacircnea de Anquises agora ela eacute conquistada em cima dos proacuteprios animais que ela antes controlourdquo Traduccedilatildeo nossa

58

O mesmo autor chama a atenccedilatildeo para o fato de que quando Afrodite se despe sua perda

de forccedila pode ser comparada agraves cenas iniciais quando entatildeo sua aparecircncia estaacute recoberta pelas

roupas o que simbolizava antes seu poder enfraquece ao desnudar-se Segundo Quignard em

outros trechos de textos de Homero o mesmo verbo grego mignumi que eacute usado para referir-se

ao jugo de uma mulher eacute o que coloca agrave morte um adversaacuterio Afrodite foi vencida por um

mortal ou venceu-o o proacuteprio desejo

Em nosso ponto de vista natildeo pode ser deixado de lado o aspecto que favorece a posiccedilatildeo

de Anquises no intercurso propondo pois uma questatildeo de gecircnero na sociedade patriarcal Por

isso talvez Faulkner veja nessa atitude de forccedila de Anquises um poder transitoacuterio

Quando Anquises se aproxima de Afrodite a cena do ldquodespir-serdquo revela a fragilidade

feminina frente ao ldquophallosrdquo grego em uma sociedade que tinha a mulher como objeto de

submissatildeo ao homem e de procriaccedilatildeo Afrodite representa esse contexto feminino tanto na sua

submissatildeo agrave uniatildeo com Anquises quanto na profecia do filho que vai ser gerado pois eacute o que se

espera do leito nupcial

Especialmente os versos 162 163 164 165 revelam dois aspectos de grande importacircncia

Um deles eacute que a deusa Afrodite eacute descrita (e eacute tambeacutem representada na pintura e na escultura)

usando brincos e colares aleacutem de outras joacuteias A descriccedilatildeo do nome das joacuteias tem sido objeto de

estudo linguumliacutestico para a precisatildeo do significado delas e para entendimento da eacutepoca em que o

Hino V possa ter sido escrito Vaacuterios autores tecircm estudado o vocabulaacuterio diligentemente e em

Faulkner111 as palavras gregas έλικας e κάλυκάς tecircm um sentido incerto O consenso tem sido

optar pela traduccedilatildeo de brincos em forma de flor de botatildeo para κάλυκες enquanto tem-se suposto

que έλικας indique pulseira uma vez que o significado de έλικας estaacute relacionado com alguma

forma de espiral

Outro fato relacionado com esses versos eacute a forma como a accedilatildeo eacute descrita remetendo agrave

retirada das peccedilas de roupa criando um contexto eroacutetico e um prenuacutencio do ato sexual Daacute-se o

desvendamento de Afrodite no momento em que Anquises (λΰσε δέ οί ζώνην) desata o cinto dela

Afrodite foi subjugada A cena evoca um clima de misteacuterio enquanto Anquises e Afrodite estatildeo

ligados pela atraccedilatildeo do olhar Quando Afrodite eacute ldquodesnudadardquo no ato de ter seu cinto retirado o

olhar cede lugar para a concretizaccedilatildeo da accedilatildeo Agora o que interessa eacute a sombra da mortalidade

111 FAULKNER op cit p 168-169 230

59

que paira sobre eles ele um transgressor que se apropria da deusa ela atormentada pelo seu

gesto de fraqueza

Apoacutes o coito Afrodite recompotildee-se sozinha assume sua forma divina acorda Anquises

que ela havia feito adormecer Esse trecho (versos 168 ndash 183) revelam o terror que o sexo pode

provocar apoacutes a constataccedilatildeo do ato e evocam as reaccedilotildees sugeridas pelo olhar

Afrodite conclama Levante-se filho de Daacuterdano por que vocecirc adormeceu pesadamente

Considere se eu tenho a mesma aparecircncia de quando vocecirc me viu com seus olhos pela primeira

vez

No Hino Homeacuterico

Ορσεο ∆αρδανίδη τι νυ νηγρετον υπνον ίανεις 177 καί Φράσαι ει τοι όmicroοίη έγών ίνδάλλοmicroαι είναι οίην δη microε το πρωτον έν οΦθαλmicroοίσι νόησας 179

Quando Anquises acorda novamente revela-se a questatildeo do olhar pois ao ver o pescoccedilo

e os olhos adoraacuteveis de Afrodite (οmicromicroατα κάλ΄ ΆΦροδίτης v 181) ele se amedronta e dirige seu

olhar para outro lado (τάρβησέν τε καί οσσε παρακλιδόν ετραπευ αλλη v 182)

A presenccedila da deusa impotildee reverecircncia respeito e a atitude de Anquises desviar o olhar eacute

o que se espera diante do divino

A seguir as palavras que Anquises profere configuram-se como uma oraccedilatildeo Ele repete

que seu olhar (όΦθαλmicroοΐσιν v 185) havia captado o divino na aparecircncia de Afrodite embora ela

natildeo tenha dito a verdade Pede entatildeo que ela se apiede dele

Eacute interessante relacionar pois esses versos (188-190) em que Anquises se preocupa com

seu vigor e pede proteccedilatildeo agrave deusa para natildeo ser deixado paraliacutetico entre os homens castigado por

ter transgredido o sagrado com os versos 153-154 em que Anquises exclama que iria de boa

vontade para a casa de Hades (i eacute agrave morte) desde que ele tivesse ldquosubidordquo agrave cama da mulher

bela como as deusas (palavras que ele pronunciou a Afrodite antes do acasalamento julgando

ser ela uma jovem mortal)

Essas cenas refletem o poder do sexo masculino face ao desejo que o coito remete

Agrave cena de forccedila e domiacutenio do homem frente agrave submissatildeo feminina sucede o retorno agraves

origens e ele coloca-se diante da deusa agora vista como mater cheia de poder divino

implorando-lhe a vida ndash garantida pelo acolhimento do ventre feminino Vecirc-se pois nesse gesto

o eterno conflito de forccedila entre os gecircneros O poder do ldquophallosrdquo grego soberano no ato sexual

60

curva-se ao poder da mulher o feminino como princiacutepio das origens A esse respeito fazemos

nossas as beliacutessimas palavras de Quignard

La premiegravere domus est le ventre de la femme La deuxiegraveme domus est la domus dans laquelle lrsquohomme rapte les femmes pour se reproduire et reproduire la domus La troisiegraveme domus est la tombe112

Sabiamente o autor usa a palavra domus (grego δόmicroος) em seu texto o que fornece um

enredamento de sentidos contidos todos no mesmo contexto Pode-se pois entender como

ldquocasa habitaccedilatildeo quarto templo morada dos deuses famiacuteliardquo113

Como diz Quignard o homem cria raiacutezes com seu desejo vincula-se a ele da mesma

forma que o lactente com sua matildee Isso faz parte da cena histoacuterica em que a ontogecircnese do

homem estaacute enraizada na filogecircnese pois como mostraram os gregos atraveacutes do nascimento de

Afrodite a vida estaacute enraizada no universo quer seja atraveacutes da umidade do oceano no ritmo de

suas ondas quer seja atraveacutes do misteacuterio do ceacuteu na trilha de seus astros incandescentes quer

seja atraveacutes da terra que floresce que nutre que acolhe que se transforma e que frutifica

Dessa forma o desejo estaacute enraizado na histoacuteria da origem da terra e a chegada de

Afrodite estaacute vinculada natildeo apenas ao desejo mas tambeacutem agrave reproduccedilatildeo

Mas a histoacuteria do desejo apresenta outras variantes Assim de acordo com a tradiccedilatildeo

miacutetica Afrodite era casada com Hefesto (filho de Zeus e de Hera) deus protetor do fogo e um

haacutebil criador Diz tambeacutem a lenda que Hefesto era coxo e que o casamento de Afrodite e de

Hefesto foi imposto por Hera Era uma maneira de ldquounir el fuego de Hefesto con la fuerza

fecundadora de Afrodita la belleza del arte con la belleza de la naturalezardquo114

No canto VIII (versos 266-367) da Odisseacuteia Odisseu acompanha na voz de um aedo a

saga dos amores de Ares com a formosa Afrodite (Άρεος Φιλότητος εύστεΦάνου τ΄ΆΦροδίτης)

Apesar de o texto apresentar uma narrativa eroacutetica em que o casal de amantes eacute visto na

sua intimidade a palavra usada para representar a uniatildeo desse amor (seria uma forma de

significar a ligaccedilatildeo carnal atraveacutes da qual o desejo se concretiza) eacute Φιλότητος que em periacuteodo

posterior como jaacute se ressaltou anteriormente seraacute usado como amor que revela amizade 112 QUIGNARD op cit p 224 ldquoO primeiro domus eacute o ventre da mulher O segundo domus eacute o domus no qual o homem se apossa das mulheres para se reproduzir e reproduzir o domus O terceiro domus eacute a tumbardquo Traduccedilatildeo nossa Mantivemos o uso de domus como no original Diferentemente do autor consideramos a forma masculina do grego δόmicroος 113 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 p 151 114 MAUROMATAKI Maria Op cit p 87

61

Dando sequumlecircncia agrave histoacuteria de Hefesto e Afrodite Heacutelio o Sol contou a Hefesto sobre os

encontros secretos de Afrodite e Ares o deus da guerra Hefesto enraivecido planejou pegaacute-los

em uma armadilha (δόλον) e por isso teceu com seu engenho admiraacutevel uma rede de metal que

se assemelhava a uma teia de aranha tal o seu ardil em executaacute-la de forma que natildeo pudesse ser

vista Ares e Afrodite foram ao leito (λέχος δ΄ ήσχυνε και εύνην)115 na proacutepria casa de Hefesto

(ΗΦαιστοιο δόmicroοισι) pois Hefesto havia dito que ia se ausentar Ares ardia em desejo

(Φελότητος) e depois que os amantes adormeceram abraccedilados acordaram e viram-se envoltos na

rede fina impossibilitados de sair dali Para ridicularizaacute-los Hefesto chamou todos os deuses

para assistir a esse espetaacuteculo e dizia que Afrodite comprazia-se com Ares (novamente o verbo

Φιλεω) e natildeo com ele por ser coxo Apoacutes a intervenccedilatildeo de alguns deuses Hefesto finalmente

decidiu libertar os amantes

Alguns aspectos relacionados agrave questatildeo do desejo podem ser brevemente observados (a)

relacionado ao desejo estaacute a problemaacutetica da traiccedilatildeo Assim se entendermos o conceito de poder

subjacente agrave uniatildeo sexual verificamos que a situaccedilatildeo realmente pode ser equiparada a um

campo de batalha isto eacute haacute o(s) vencedor(es) e o(s) perdedor(es) (b) Em se tratando de uma

lenda simboacutelica constata-se que o deus envolvido eacute Ares que significa o deus da guerra

responsaacutevel pela violecircncia e pelos enfrentamentos entre os homens Ares eacute realmente descrito

como tendo um caraacuteter agressivo e explosivo e alguns autores explicam que esses atributos

estavam relacionados ao seu lugar de origem pois os antigos habitantes da Traacutecia tinham

costumes violentos e faziam uso da forccedila bruta Assim representa-se a uniatildeo sexual de forma

simboacutelica em que o ato de desejo (Afrodite) eacute subjugado pela forccedila violenta (Ares) (c) Eacute

interessante considerar como o marido traiacutedo procura uma estrateacutegia de vinganccedila calculada Sua

intenccedilatildeo eacute realmente o dano Daiacute a palavra lsquoδολοςrsquo (dolo) usada no texto (d) Todo ato de

traiccedilatildeo pressupotildee uma atitude de reparo Assim quando Afrodite eacute libertada vai a Ilha de Pafos

em Chipre onde eacute recebida pelas Caacuterites que a banham e a ungem com oacuteleo sagrado Isso

parece-nos uma forma de renovar a lsquovirgindadersquo o que equivaleria a um rito de purificaccedilatildeo como

o de Hera que durante os rituais em sua honra tinha sua virgindade renovada Tambeacutem depois o

cristianismo introduziraacute o batismo como ato de purificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo (e) O termo 115 A palavra λέχος tem o significado de ldquoleitordquo mas em alguns contextos tambeacutem pode significar ldquouniatildeo clandestinardquo Neste caso junto da palavra εύνην quer dizer ldquoleito nupcialrdquo o que proclama as atividades sexuais cf BAILLY op cit p 1185 Em PEREIRA opcit p 346 encontra-se aleacutem de lsquoleitorsquo a traduccedilatildeo lsquoninhorsquo e lsquotumbarsquo

62

empregado por Hefesto ao referir-se a Afrodite ao reclamar da situaccedilatildeo para Zeus eacute sugestivo

da propriedade de descontrole do desejo que escapa do domiacutenio do indiviacuteduo O aspecto de

irracionalidade que une animais humanos e deuses aproximando-os pela sua filogecircnese ndash como

jaacute se colocou antes ndash estaacute expresso na palavra κυνώπιδος que tem o sentido de expressar o lsquoolhar

de uma cadelarsquo revelando uma imprudecircncia e um atrevimento (f) A questatildeo do olhar nessa cena

eacute relevante pois haacute os olhares dos deuses sobre os amantes e sobre o trabalho astucioso de

Hefesto haacute o olhar de anguacutestia do marido traiacutedo haacute o olhar de Afrodite (g) Finalmente o que jaacute

se anunciou variadas vezes o conflito que o desejo pode gerar entre os sujeitos

Vejamos como Afrodite eacute descrita em Hesiacuteodo em se considerando seus atributos apoacutes

seu nascimento na espuma do mar vinda do ceacuteu isto eacute de Urano castrado Diz Hesiacuteodo sobre

essa deusa

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha 203 coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice116 206

Assim um uacutenico dever foi determinado a Afrodite as questotildees de Φιλότητά (amor) que

envolvem homens e deuses e portanto tambeacutem o gozo e os enganos Hesiacuteodo usa pois a

palavra philia referindo-se ao amor

Muitas outras lendas satildeo narradas sobre Afrodite tal a importacircncia da grande deusa do

Mediterracircneo Uma das histoacuterias fala dos filhos que Afrodite teve com Ares (Harmonia Deimo

Fobo e Eros) Eros acompanhava sempre a matildee com suas flechas provocando alegria e dor Em

um estaacutegio posterior quando a filosofia passou a indicar conceitos a palavra ερος (Eros)

comeccedilou a ser usada para indicar envolvimentos amorosos tendo-se mantido ateacute hoje em nossa

sociedade ao lado do adjetivo lsquoafrodisiacuteacorsquo reminiscecircncia de Afrodite

Quanto a Fobo embora natildeo haja lenda sobre ele passou a designar lsquofobiarsquo medo e

vincula-se de alguma forma agraves questotildees afetivas unindo ldquodesejordquo e ldquomedordquo o eterno conflito do

macho e da fecircmea

Em algumas representaccedilotildees iconograacuteficas Afrodite aparece com o epiacuteteto Panopla

Los griegos conferiacutean a su figura la idea de la ldquoguerrardquo en el terreno del amor y al mismo tiempo la vinculaban con el mundo de los muertos pues el amor y la muerte son elementos y condiciones indispensables para la renovacioacuten de los ciclos de la vida y de

116 Traduccedilatildeo de TORRANO J A A op cit p 117

63

los seres Asi fue adorada junto a Hermes como Subterracircnea y en algunos cementerios como Afrodita Escotia (de skotos = oscuridad)117

Afrodite recebeu outros epiacutetetos que remetem ao seu aspecto enigmaacutetico como Escoacutecia

(a lsquoescurarsquo) Androacutefonos (lsquoassassina de homensrsquo) Epitiacutembria (lsquodas tumbasrsquo) Quanto ao seu

epiacuteteto Melecircnis (lsquoa negrarsquo) Pausacircnias explica como causa o fato de que a maior parte dos atos

sexuais se daacute agrave noite Essa explicaccedilatildeo eacute considerada ingecircnua pelos autores comtemporacircneos pois

tambeacutem esse epiacuteteto parece estar relacionado agraves caracteriacutesticas de vida e morte que fazem parte

dos ciclos de fertilidade

Afrodite tambeacutem era conhecida como Afrodite Pandecircmica representando o aspecto

carnal e vulgar do amor Assim era vinculada com a prostituiccedilatildeo e vaacuterias prostitutas trabalhavam

em seu santuaacuterio em Acrocorinto Considerava-se que essas prostitutas tinham um caraacuteter

sagrado e uma delas imortalizou-se como modelo desnudo para que Praxiteles pudesse realizar

uma estaacutetua de Afrodite

Assim como o amor as histoacuterias de Afrodite satildeo interminaacuteveis

O domiacutenio de seu impeacuterio natildeo tem fronteiras e Eros seu filho igualmente herdou o

caraacuteter de peregrinaccedilatildeo de sua matildee Ambos matildee e filho aparecem na trageacutedia grega tendo sido

destacado o aspecto de perambulaccedilatildeodeliacuterio

Tomemos como exemplo um trecho da Antiacutegona de Soacutefocles (versos 785-790)

Vagas sobre as ondas 785 e penetras em rebanhos campestres De ti nenhum dos deuses escapa nenhum dos efecircmeros homens Quem tocas delira118 790

Quanto agrave Afrodite Euriacutepides (vs 447-450) destaca seu domiacutenio abrangente e revela

como essa propriedade inerente agrave deusa perpassa pelos mortais Natildeo haacute como resistir a ela que

estaacute em todas as partes no ceacuteu na terra e no mar fazendo florescer a vida Vejamos

Ela percorre o eacuteter ela estaacute nas ondas 447 do mar a Ciacutepria eacute dela que tudo floresce eacute ela a que semeia e a que daacute amor a quem devemos o nascimento da terra119 450

117 MAVROMATAKI Maria Op cit p 89 118 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 p 61 119 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 135

64

52 ndash AacuteRTEMIS A LIBERDADE E A VIRGINDADE

Poderiacuteamos introduzir os comentaacuterios sobre Aacutertemis iniciando-os com um

questionamento por que ndash apesar da nudez e dos olhares ndash desejou Aacutertemis manter-se virgem

Antes de explicarmos melhor nossa colocaccedilatildeo inicial vejamos quem eacute Aacutertemis

Filha de Leto e de Zeus nasceu junto com seu irmatildeo Apolo o que os colocou lado a lado

no panteatildeo grego e o que fez que tivessem muitos elementos em comum constituindo-se

Aacutertemis de acordo com a tradiccedilatildeo sua versatildeo feminina

Vaacuterias satildeo as lendas sobre Aacutertemis Em Hesiacuteodo os versos 918-920 dizem somente que

Leto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechas 918 prole admiraacutevel acima de toda a raccedila do Ceacuteu gerou unida em amor a Zeus porta-eacutegide120 920

Alguns comentaacuterios sobre esses trecircs versos parecem-nos dignos de consideraccedilatildeo Um

deles eacute o fato de que Hesiacuteodo jaacute coloca emparelhados Apolo e Aacutertemis considerando-os como

ldquoprole admiraacutevelrdquo sobre ldquotoda a raccedila do Ceacuteurdquo o que seraacute repetido no Hino Homeacuterico a Aacutertemis

(Hino XXVII ndash veja anexo B) O outro eacute a questatildeo da fecundidade como ato de amor (no texto

grego encontra-se novamente a palavra Φιλότητι)

De acordo com uma das lendas que Graves narra Leto pariu os filhos em Ortiacutegia perto

de Delos Assim que acabou de nascer Aacutertemis ajudou a matildee em seu outro parto pois o

nascimento de Apolo levou nove dias de trabalho121 Por isso foi adorada pelos deuses tambeacutem

como deusa do parto chegando mais tarde a ser confundida com Iliacutetia a deusa do parto

Recebeu o epiacuteteto de Aacutertemis Brauronia em Brauron onde havia um santuaacuterio dedicado a ela

As mulheres que tinham um parto normal faziam sacrifiacutecios em honra agrave deusa Outros fieacuteis

levavam agrave deusa como oferenda roupa de mulheres que haviam morrido no parto

Em Eacutefeso Aacutertemis tinha um outro epiacuteteto Era conhecida como Kuroacutetrofos pois se

encarregava de cuidar das crianccedilas Como Heacutestia tambeacutem era uma deusa da iniciaccedilatildeo que

ajudava os jovens no periacuteodo de transiccedilatildeo entre a adolescecircncia e a idade adulta Havia rituais

especiais invocando seu apoio Como parte da iniciaccedilatildeo algumas jovens deviam servir em seu

120 HESIacuteODO Op cit p 157 121 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 p 68

65

templo especialmente em Brauron para aprender como se dava a passagem para um outro

estaacutegio da vida No periacuteodo em que permaneciam nessa iniciaccedilatildeo as jovens eram chamadas de

akti do grego άrκτοι ou seja ldquoursasrdquo Um mito explicando esse periacuteodo de servidatildeo conta que

um urso das redondezas costumava visitar a cidade de Brauron regularmente As pessoas o

alimentavam e com isso o urso foi domesticado e ficou trataacutevel Poreacutem uma jovem o provocou

e ele enraivecido matou-a Segundo outra versatildeo ele arrancou os olhos dela O irmatildeo da garota

matou o urso o que fez com que Aacutertemis ficasse furiosa Daiacute para a frente ela ordenou que as

jovens agissem como urso domesticado em atitude de reparaccedilatildeo por sua morte

Isso parece deixar claro a ldquodomesticaccedilatildeordquo por que deveriam passar as jovens antes do

casamento favorecendo um comportamento doacutecil e submisso face ao esposo pois uma reaccedilatildeo de

insubordinaccedilatildeo deixaria enfurecido natildeo soacute o esposo como tambeacutem a divindade

Aacutertemis era conhecida ainda como Aacutertemis Ortia em Esparta laacute tambeacutem como iniciadora

de jovens que se encaminhavam para a idade adulta e portanto como cidadatildeos

Os gregos a consideravam uma deusa virgem afastada dos jogos enganosos da seduccedilatildeo

Talvez esse devesse ser um dos atributos das deusas (Aacutertemis e Heacutestia) para que pudessem servir

de guia agraves jovens ndash tambeacutem virgens ndash para uma etapa da vida de mudanccedila pessoal e social

considerando-se aiacute um movimento da vida de liberdade da jovem para as ldquoamarrasrdquo e a

dependecircncia de um esposo e de filhos

Aacutertemis ao contraacuterio continuava como deusa virgem livre e independente caccedilando nos

bosques e nas montanhas banhando-se nos rios bailando e soltando gritos de clamor vinculada

agraves suas origens ancestrais

Graves reporta-se a uma lenda narrada por Pausacircnias em que enquanto se banhava em

um rio Aacutertemis foi vista pelo priacutencipe caccedilador Acteacuteon filho de Aristeu Indignada transformou-

o em um cervo que foi perseguido e morto por sua proacutepria matilha122

Nessa lenda Acteacuteon eacute punido pelo seu olhar por ter devassado a nudez divina A reaccedilatildeo

de Aacutertemis diante desse gesto calado foi violenta evocando o conflito que o desejo cria entre os

contraacuterios O que o olhar de Acteacuteon significava Para Aacutertemis estava impliacutecito que ldquoO olhar

122 GRAVES Robert Op cit p 103

66

deseja sempre mais do que o que lhe eacute dado verrdquo123 Aacutertemis rejeita a seduccedilatildeo jogo enganador

que vem da caccedilada silenciosa do olhar Aacutertemis sai vencedora da cena em que Acteacuteon eacute

decomposto e desaparece como perdedor

Afrodite quando deseja conquistar Anquises estaacute cocircnscia de que a seduccedilatildeo eacute uma farsa e

que o seduzido (no caso Anquises) eacute o que deixa a marca de sua experiecircncia Por isso Anquises

suplica a salvaccedilatildeo a Afrodite

Acteacuteon poreacutem como sedutor perde seu rumo Na origem da liberdade Aacutertemis coloca a

sua virgindade Diferentemente do poder libertaacuterio o poder do desejo eacute ilusoacuterio e errante

Todas as tentativas de vida afetiva (philoacutetes) de que Aacutertemis participa satildeo enfrentadas

com violecircncia Temos pois a ambivalecircncia do desejo de independecircncia que se opotildee ao desejo da

persuasatildeo e do engano que eacute sempre sedutor doce mas tambeacutem enganador (verificar item 2)

Haacute particularmente dois epiacutetetos de Aacutertemis amplamente conhecidos

Um deles eacute Potnia Theron a deusa dos animais selvagens como refere-se Homero a ela

considerando seu aspecto poderoso e veneraacutevel O maior prazer de Aacutertemis era correr nos

bosques e caccedilar com seu arco de ouro (veja anexo Hino a Agravertemis) O veado era um de seus

animais prediletos aacutegil e veloz Estaacute relacionado agrave deusa na iconografia e em algumas lendas

como a que se viu sobre Aacutecteon A proacutepria deusa transformou-se em corccedila durante o caso com os

gecircmeos Aloiacutedas que na pressa de a atingirem mataram-se um ao outro Como deusa caccediladora

era tambeacutem adorada como senhora da natureza a que vivia no campo Dessa forma recebia

ainda o epiacuteteto de Agroacutetera protetora das plantas selvagens e das aacutervores Aleacutem disso era

conhecida por seu envolvimento com rios e lagos onde se banhava e em cujas margens

descansava danccedilava e cantava com as ninfas com as caacuterites e com as musas

Embora aacutegil e liberta em seu espaccedilo a floresta as montanhas o campo os rios e os lagos

a natureza acolhedora Aacutertemis se limita a esse contexto como soberana das feras e caccediladora

indomaacutevel Opotildee-se a Afrodite que na sua eterna mobilidade do desejo natildeo tem limites Como

coloca Fontes em seu estudo ldquoO territoacuterio das castitas eacute fechado e secreto enquanto o universal

domiacutenio de Afrodite expande-se do Ponto Euxino aos limites de Atlasrdquo124

123 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 p 9 124 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 34

67

Como defensora da virgindade tinha companheiras virgens de caccedila e de danccedila nas

margens dos rios e guardava sua castidade com o emblema protetor do arco e da flecha

Diferentemente de Eros cujas flechas tinham como alvo colocar o desejo em algueacutem Aacutertemis

usava suas flechas como proteccedilatildeo de sua virgindade e de sua selvageria pois a morte fazia parte

do ambiente da natureza (phyacutesei)

Nesse sentido Aacutertemis parece ser uma deusa de origem distante remontando agraves mulheres

ambiacuteguas conhecidas como Amazonas e que representavam um modelo miacutetico da mulher que se

privava do contato com os homens situando-se ldquono imaginaacuterio dos antigos natildeo apenas na

fronteira em que barbaacuterie e cultura se enfrentam e se contestam ela eacute radicalmente a outra

assombrada por uma dupla alteridaderdquo125

A questatildeo da dupla alteridade foi apontada por Lissarrague quando se reporta agraves

Amazonas como indica Fontes Esse eacute um aspecto interessante que revela como Aacutertemis mulher

e assassina feminina e baacuterbara caccediladora que habita as florestas densas e as montanhas ermas

natildeo tem cidade e que seria por isso ldquouma ameaccedila permanente para o mundo civilizadordquo126

imagem combatida pelo homem ateniense e civilizador representado nas figuras dos heroacuteis

Heacutercules e Teseu nas cenas iconograacuteficas em que atacam as Amazonas

Esse fato remete agrave questatildeo da tradiccedilatildeo revelando-se Aacutertemis um modelo miacutetico ldquodos

primoacuterdios de Atenas quando as mulheres eram autocircnomas facto monstruoso aos olhos dos

ateniensesrdquo127 De fato os homens atenienses valorizavam a sua posiccedilatildeo de forccedila e de ldquocidadatildeos

hoplitasrdquo considerando-se os defensores da cidade e Aacutertemis pode ter traccedilos semelhantes a essas

Amazonas de quem decerto reparte viacutenculos dessa autonomia recusando contato com os

homens o que a manteacutem uma deusa virgem com vaacuterias lendas em que mata homens jovens quer

seja para evitar o asseacutedio despertado pelo olhar quer seja por uma forma de vinganccedila violenta

Como jaacute mencionamos antes Aacutertemis era amplamente conhecida como Potnia Theron

Aleacutem disso como a Senhora de Eacutefeso

Em Eacutefeso seu templo tornou-se uma das sete maravilhas do mundo Laacute ela era venerada

como uma matildee deusa e de acordo com Graves ldquoela era adorada em sua segunda pessoa ou seja

125 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 22 126 LISSARRAGUE Franccedilois Afiguraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 p266 127 LISSARRAGUE Franccedilois Idem p267

68

como ninfa uma Afrodite orgiaacutestica com um consorte masculino sendo seus emblemas pessoais

a tamareira128 o cervo e a abelha129rdquo130

Isso reforccedila a dualidade de Aacutertemis ora como caccediladora-virgem de instinto selvagem e

primitivo agrave maneira das amazonas ora como suprema ninfa-deusa agrave maneira das antigas

sociedades totecircmicas

Outro aspecto jaacute destacado por noacutes eacute que muitas histoacuterias miacuteticas que envolvem Aacutertemis

ressaltam a questatildeo do olhar como preluacutedio de uma atitude libidinosa Aleacutem da famosa lenda de

Acteacuteon e a dos gecircmeos Aloiacutedas haacute um outro relato que mostra como a mulher era observada

pelo homem na Greacutecia antiga Falando da representaccedilatildeo feminina diz Lissarrague

Tratando-se da imagem das mulheres vimos jaacute a sua diversidade para concluir reiteramos que matildee ou esposa hetera ou muacutesica Amazona ou meacutenade a mulher eacute sempre dada em espetaacuteculo como um objecto aos olhos do homem grego o sujeito que olha131

Voltando ao nosso relato que destaca a importacircncia do olhar na cultura grega temos que

Alfeu um deus fluvial filho de Teacutetis apaixonou-se por Aacutertemis e ocultou-se perto de onde a

deusa se banhava com suas amigas as caacuterites e as ninfas para conseguir se unir a ela Aacutertemis

percebendo as intenccedilotildees de Alfeu cobriu com lodo branco seu rosto e das companheiras de

forma que Alfeu natildeo pudesse reconhececirc-la Na regiatildeo da Eacutelida Aacutertemis passou a ser chamada e

venerada como Aacutertemis Alfeacuteia132

Aleacutem de proteger a si proacutepria nessas histoacuterias em que preserva sua virgindade haacute outras

lendas que contam que Aacutertemis exigia de suas companheiras recato e preservaccedilatildeo de sua

condiccedilatildeo de castidade (autonomia) Assim uma lenda bastante conhecida eacute a que narra que

Calisto que fazia parte de seu grupo fora seduzida por Zeus e engravidara Zangada Aacutertemis

transformou-a em uma ursa e chamou a matilha para persegui-la e devoraacute-la Poreacutem Zeus

interveio pegando-a e levando-a para o ceacuteu onde a colocou entre as estrelas

128 De acordo com a lenda Leto deu a luz a Apolo ajudada pela receacutem-nascida Aacutertemis entre uma oliveira e uma tamareira no Monte Cinto em Delos 129 O siacutembolo da abelha estaacute relacionado a Afrodite Uracircnia (rainha da montanha) e nesse caso por comparaccedilatildeo a Aacutertemis Como deusa-ninfa Afrodite destruiu o rei sagrado com quem havia copulado no cume de uma montanha agrave maneira da abelha-mestra que aniquila o zangatildeo arrancando-lhe os oacutergatildeos sexuais 130 GRAVES Op cit p 87 131 LISSARRAGUE Franccedilois Op cit p268 132 GRAVES Op cit p 104 Refere-se a Pausacircnias (I 264) mencionando o fato de que a estaacutetua mais famosa de Aacutertemis em Atenas se chamava ldquoa do rosto brancordquo As sacerdotisas nos rituais em Letrini e Ortiacutegia cobriam seus rostos com argila branca

69

A lenda possui outras variantes e em todas a figura de Aacutertemis estaacute presente

Parece-nos que a imagem de Aacutertemis que figura na trageacutedia de Euriacutepides (Hipoacutelito) eacute

uma imagem renovada conciliando traccedilos da autonomia da virgindade com a jovem feminina

recatada sem os traccedilos de violecircncia daquela que pune as que natildeo a seguem como virgem e de

errante das florestas que a marcaram na eacutepoca arcaica

Teria havido talvez uma fusatildeo das duas alteridades prevalecendo a metaacutefora do feminino

no que concerne o afeto silencioso a atenccedilatildeo a ajuda

Assim na trageacutedia Euripidiana o Coro das mulheres de Trezena proclama

E costuma estar sujeito o equiliacutebrio instaacutevel do ser feminino a terriacuteveis embaraccedilos nos deliacuterios e nas dores do parto Este sopro dardejou um dia no meu ventre 165 mas gritei pela uracircnia sagitaacuteria propiacutecia aos partos Aacutertemis e muito venerada sempre com a graccedila divina ela me tem visitado133

A virgindade de Aacutertemis eacute exaltada em um relacionamento estreito com a natureza

(phyacutesei) nos seus aspectos intocaacuteveis Por isso Hipoacutelito oferece a Aacutertemis na peccedila do mesmo

nome flores colhidas em um campo imaculado

133 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 115

70

Diz Hipoacutelito agrave deusa Aacutertemis

Para ti oacute Soberana de um campo sem maacutecula eu trago esta grinalda que eu mesmo teci ali pastor natildeo ousa levar seu rebanho 75 nem o ferro jamais passou imaculado na primavera somente a abelha134 o percorre135

Poreacutem a deusa inviolaacutevel o seu lado casto e feminino pertence ao sagrado agravequele

espaccedilo em que os deuses tecircm um poder de determinar e direcionar o caminho dos mortais Isto

posto jaacute mostra que o excesso de admiraccedilatildeo ao tributo de castidade natildeo estaacute de acordo com a

natureza humana O que eacute adequado aos deuses estaacute muitas vezes distante do poder do homem

A trageacutedia de Euriacutepedes mostra que haacute duas forccedilas divinas entrelaccediladas no ldquoduelordquo da

trama Aacutertemis representando a castidade e Afrodite representando o desejo Tendo perdido a

proporccedilatildeo desse espaccedilo reservado aos deuses Hipoacutelito eacute punido por sua transgressatildeo pois a ira

dos deuses natildeo pode ser controlada

Esse paradoxo entre o desejo e a castidade faz parte de toda a histoacuteria da humanidade e

no Cristianismo a Histoacuteria vai registrar muitos fatos de envolvimento amoroso punidos como

ldquocrimesrdquo e muitas outras histoacuterias de supliacutecios de ldquosantosrdquo para atingir a castidade no intuito de

querer livrar-se do desejo que eacute biologicamente constituinte do humano

A deusa Aacutertemis faz parte do enredo de outra trageacutedia de Euriacutepides Ifigecircnia em Tauris

baseada em uma lenda que conta o sacrifiacutecio de Ifigecircnia filha de Agamenon

Segundo uma versatildeo agrave deusa comprazia a oferenda de sacrifiacutecio humano e tendo-se

zangado pelo fato de Agamenon gabar-se apoacutes atirar em um cervo de que ela natildeo poderia tecirc-lo

feito melhor ordenou como puniccedilatildeo que a filha dele Ifigecircnia fosse sacrificada em Aulis sem o

que natildeo haveria vento para que a frota dos barcos pudesse partir para a guerra de Troacuteia

Outra versatildeo que eacute a que Euriacutepedes usa em sua peccedila narra que quando Ifigecircnia ia ser

sacrificada Aacutertemis compadeceu-se dela e colocou em seu lugar um gamo Quanto agrave Ifigecircnia

transportou-a a Tauris em seu famoso santuaacuterio onde a jovem se tornou uma sacerdotisa A

lenda diz ainda que Ifigecircnia enviava os estrangeiros ao altar de Aacutertemis onde eram assassinados

durante os rituais como oferenda para honrar a deusa

134 Como jaacute comentamos anteriormente haacute a menccedilatildeo a um dos siacutembolos de Aacutertemis a abelha (ao lado da corccedila e da tamareira) destacando seu aspecto de feminilidade 135 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 109

71

Em sua trageacutedia Euriacutepides redime a imagem de Aacutertemis colocando na boca de Ifigecircnia

as seguintes palavras ldquoMen of this country being murderers impute their sordid practice to

divine command That any god is evil I do not believerdquo136

53 ndash ATENA A DEUSA VIRGEM DA SABEDORIA E DA GUERR A

Comeccedilamos sobre Atena ndash a grande deusa dos atenienses ndash indagando para os gregos de

Homero que sentido teria ela Por que ela teve uma forma de concepccedilatildeo e de nascimento que a

trouxe sob a forma de virgem Ao lado de sua imortalidade ndash comum a todos os deuses ndash ela foi

a uacutenica que manifestou desde o nascimento em sua natureza divina a ldquoimaculabilidaderdquo Por

que a sociedade grega ateniense voltava o seu olhar para a deusa mais sublime e mais reverente

ao lado de Zeus

Atena nasce jovem (que para os gregos a velhice era um estado de depauperamento)

imortal (jamais teria sua natureza obscurecida) bela (junto com o frescor da juventude pertence

aos deuses tambeacutem o dom da beleza) guerreira (saiu da cabeccedila do pai armada e ecoando gritos

beacutelicos) e virgem (o que a distancia mais do que os outros deusesda natureza humana)

Quando se confrontam homens e deuses o que os separa eacute justamente a expressatildeo

simboacutelica da corporalidade dos seres divinos Dessa forma a divindade grega afastava-se do

natural da realidade do humano elevando-se a um tipo de existecircncia superior

A ligaccedilatildeo de Atena com a forma de existecircncia terrena desfaz-se desde antes do seu

nascimento quando o parto podia simbolizar ldquogravidaderdquo do fundamento materno O misteacuterio de

seu nascimento a torna sublime pois ela chega com forma ritualiacutestica que celebra a vida Ela traz

uma forma de reconhecimento que pode ter um aspecto cultural profundo gerada nas entranhas

da matildee (Meacutetis uma entidade feminina) vem ao mundo pelo acolhimento do pai que a recebe

reconhecendo-lhe a sabedoria superior (ele aceita essa nova deusa renovaccedilatildeo de uma deusa

antiga de outro periacuteodo)

Se Zeus reconhece a verdade em Atena os cidadatildeos de Atenas recebem a filha de Zeus

como uma manifestaccedilatildeo advinda da profundeza maternal da terra imaculada na sua origem

136 EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt ldquoHomens deste paiacutes sendo assassinos imputam sua soacuterdida praacutetica agrave ordem divina Que algum deus seja malfazejo eu natildeo acreditordquo (traduccedilatildeo nossa)

72

Entretanto presente e passado fundem-se nessa nova forma de olhar o mundo e a forccedila viril

coloca-se como parte da elaboraccedilatildeo feminina o que produz a figura maacutescula saacutebia

determinada poderosa da filha de Zeus Portanto de acordo com a concepccedilatildeo do vasto universo

grego Atena era uma entidade de caraacuteter singular embora esse caraacuteter fizesse parte de um

mundo em si completo Um mundo bem diversificado mas completo eacute o que reflete a virgem

filha de Zeus Atena

Enquanto Afrodite emana o encanto que excita e arrebata a que com seu sorriso doce

cativa os sentidos Atena faz despertar a sabedoria as ldquoestrateacutegiasrdquo que direcionam para resolver

necessidades vitais Entatildeo os traccedilos que os deuses ostentam seja Afrodite com sua sedutora

doccedilura seja Aacutertemis com sua meiguice brincalhona seja Atena com sua astuacutecia complexa satildeo

traccedilos humanos o que significa que tecircm em si todo o sentido de domiacutenio da existecircncia humana

Atena pois remete ao seu olhar sobre os cidadatildeos de Atenas o olhar destes sobre ela

essa deusa armada cujo peito ostenta um escudo apavorante objeto de tantas reflexotildees

Referente a esse assunto coloca Otto

ldquoVemos uma deusa que coberta por seu escudo estaacute disposta a lutar e proteger Mas isso seria tudo que se pensava a seu respeito quando a crenccedila nela era viva Podemos chamaacute-la de Virgem do Escudo Virgem da Batalha Para essas perguntas natildeo temos resposta alguma Seja como for uma tal designaccedilatildeo natildeo convivia com Atena homeacuterica por muito que ela se mostre combativa e poderosa na luta ela eacute muito mais que uma deusa da batalha e eacute inimiga declarada dos espiacuteritos selvagens cujo ser se consuma na fruiccedilatildeo do tumulto de guerrardquo137

Essa uacuteltima colocaccedilatildeo de Otto nos faz pensar em uma provaacutevel diferenccedila entre a

virgindade de Atena e a de Aacutertemis A virgindade de Aacutertemis eacute ldquoindomaacutevelrdquo primitiva natildeo

ldquoexploradardquo mais ligada aos elementos terrestres e agrave natureza como sua representaccedilatildeo simboacutelica

enquanto que a virgindade de Atena eacute ontoloacutegica pois faz parte da elevaccedilatildeo e excelecircncia do ser

como forma de um aprimoramento da sabedoria quase que vinculada a uma postura espiritual

Poreacutem ambas no que concerne o aspecto da virgindade devem manter o viacutenculo com

deusesdeusas de eacutepocas anteriores

Desde a sua apariccedilatildeo vinda da cabeccedila do pai Atena aleacutem de revelar sua virgindade e sua

identidade guerreira apresenta o destaque de seus ldquoolhos glaucosrdquo (γλαυκώπιδα) o que segundo

alguns autores estaacute relacionado com olhos de coruja na sua sagacidade abrangente do olhar

137 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p36

73

Para outros autores refletiria a cor esverdeada do mar (veja anexo Hino Homeacuterico a Atena)

pois Atena eacute de natureza aquaacutetica quando ela nasceu diz o Hino Homeacuterico XXVIII ldquoo mar

furioso elevou-se no alvoroccedilo de ondas de escuro esplendorrdquo

Como guerreira ela incita os guerreiros antes da batalha e lhes daacute acircnimo138 Com sua

eacutegide agita os homens ao ardor beacutelico Mas natildeo soacute os incita ajuda-os tambeacutem na forccedila e no

poder do combate com sua presenccedila saacutebia para que os humanos (os gregos) natildeo fraquejem

Na Odisseacuteia quando Odisseu seu filho e seus poucos guerreiros fieacuteis que o acompanham

vecircem-se diante do inimigo nos momentos finais de disputa Atena ergue sua eacutegide e o inimigo

tomado de terror dissipa-se

A sua presenccedila miraculosa proclama o sublime e eacute suficiente para causar

estremecimentos para serenar combates para por fim a situaccedilotildees angustiantes

Seraacute que mais tarde tambeacutem os judeus cristatildeos vatildeo se inspirar nessa deusa mediterracircnea

para conferir a Maria tal poder

O seu olhar cruza-se com seu poder A sua eacutegide ao mesmo tempo que amedronta impotildee

respeito Atena tambeacutem eacute detentora de uma alteridade nessa forma de Poder ldquofeito maacutescarardquo

Nesse ponto o olhar de Atena cruza-se com o olhar de Gorgoacute139 e como diz Vernant

suscita

ldquoo medo em estado puro o Terror como dimensatildeo do sobrenatural Este medo com efeito natildeo eacute uma decorrecircncia nem algo motivado como o que provocaria a consciecircncia de um perigo Eacute um medo primeiro logo de entrada e por si mesma Gorgoacute suscita o pavor porque se apresenta no campo de batalha como um prodiacutegio (teacuteras) um monstro (peacutelōr) em forma de cabeccedila (kephaleacute) terriacutevel e assustadora (de ver e ouvir) (deineacute te smerdneacute) com um rosto de olho terriacutevel (blousurocircpis) lanccedilando um olhar de pavor (deinograven derkeacutenē)rdquo140

A lenda da Medusa se transfigurava em vaacuterias situaccedilotildees ligadas a Atena Uma delas dizia

que ela tinha sido viacutetima de uma metamorfose provocada pela ira de Atena Conta-se que Gorgoacute

138 A este respeito ver HOMERO Iliacuteada op cit canto 2 v446 e seguintes 139 Gorgoacute como eacute citado por VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 Refere-se a Goacutergona (τοργω) a Medusa mortal e filha de duas entidades mariacutetimas A cabeccedila da Goacutergona era rodeada de serpentes e seus olhos brilhantes e o olhar tatildeo penetrante que causava terror e petrificava Atena colocou a cabeccedila da Medusa morta por Perseu em sua eacutegide a fim de que os inimigos fossem petrificados 140 VERNANT Jean-Pierre ndash Idem p50

74

era uma bela jovem que ousara rivalizar sua beleza com a deusa Atena Como ela tinha muito

orgulho de seus cabelos longos Atena transformou-os em serpentes

Na tradiccedilatildeo grega os guerreiros espartanos manifestavam a sua selvageria atraveacutes dos

cabelos longos como crina de cavalo Por ocasiatildeo dos casamentos esses guerreiros mantinham

uma tradiccedilatildeo ritual de simular um rapto da moccedila com quem iam se casar A moccedila (koacuterai as

jovens virgens) raptada era entregue a uma mulher que lhe raspava o cabelo A selvageria da

cabeleira longa da mocinha que se assemelhava a ldquouma potranca em liberdaderdquo no dizer de

Vernant era cortada Continuando diz ele

Para a jovem noiva o ritual da cabeccedila raspada joga com estes dois simbolismos contraacuterios e que se reforccedilam em sua oposiccedilatildeo pois a esposa se deve distinguir-se da patheacuternos para entrar no estado conjugal teraacute tambeacutem no mesmo sentido de diferenciar-se nitidamente de seu marido141

O cortar o cabelo eacute uma forma de domesticaccedilatildeo como vimos em Aacutertemis de transformar

a selvageria da jovem virgem ndash excluiacuteda do casamento ndash para uma vida de submissatildeo a um

esposo e a uma vida de reproduccedilatildeo Da virgem agrave mulher casada e matildee

Aacutertemis manteacutem-se virgem na sua representatividade selvagem da natureza Atena

manteacutem-se virgem na representativa selvagem dos combates

Mas apesar de ser uma deusa guerreira Atena distingue-se radicalmente de Ares pois

enquanto o deus da guerra eacute sanguinolento furioso e desatinado Atena goza de um caraacuteter justo

equilibrado sereno Atenas eacute mais que uma guerreira eacute uma pacificadora Atena eacute prudente e

digna enquanto Ares eacute odioso e coleacuterico

Homero tanto na Iliacuteada quando Atena chama Aquiles agrave razatildeo como na Odisseacuteia

quando Atena encaminha Odisseu agrave sua razatildeo e ao seu destino parece revelar uma consideraccedilatildeo

pela moralidade antes um espiacuterito elevado pela prudecircncia e pela ponderaccedilatildeo do que uma atitude

triunfante frente a uma tensatildeo

Esses sentimentos nobres de Atena a unem aos heroacuteis Aquiles e Odisseu Natildeo eacute soacute a

arguacutecia beacutelica que conta mas a ponderaccedilatildeo refletida A prudecircncia tambeacutem ela eacute uma forma de

sagacidade

Assim o olhar de Terror ao qual Vernant se refere eacute tambeacutem um olhar de prudecircncia de

cautela que faz parar e refletir que natildeo pode ser visto em uma impetuosidade impensada

141 VERNANT Jean-Pierre op cit p59

75

Como coloca Otto em seu estudo sobre os deuses gregos

O que Atena mostra ao homem o que dele quer e lhe inspira eacute por certo audaacutecia vontade de vencer e valentia Mas tudo isso natildeo quer dizer nada sem prudecircncia e luacutecida clareza Daiacute eacute que emana sua atividade com a plenitude da essecircncia da deusa da vitoacuteria Procedendo dessa origem sua luz natildeo ilumina apenas o guerreiro em combate onde quer que feitos notaacuteveis se realizem e se crie o acircnimo heroacuteico ela estaacute presente

Sempre procurando pista e mexendo na questatildeo da virgindade pareceu-nos que em se

enfileirando as deusas virgens no ldquofrontatildeordquo de nosso ldquotemplordquo verifica-se que a virgindade de

Atena coloca-se em um plano diferente do da virgindade atribuiacuteda a Aacutertemis e a Heacutestia

Aacutertemis eacute um ser selvagem pertence a um poacutelo que vai da natureza inexplorada

primitiva a um mundo civilizado maculado por um novo agir Sua virgindade daacute-se nessa tensatildeo

de equiliacutebrio entre o velho e o novo entre o passado e o presente entre o selvagem e o

civilizado entre dois poacutelos sempre numa dupla alteridade

Heacutestia eacute um ser contemplativo Assim como Aacutertemis relaciona-se a um elemento da

terra ao fogo que a natureza acolhe em todos os seus muacuteltiplos sentidos (veja 54) pois o fogo

tambeacutem eacute constitutivo da terra Nesse sentido Heacutestia eacute uma figura ldquoabstratardquo e incorpoacuterea

Atena ao contraacuterio natildeo eacute nem selvagem nem contemplativa Ela eacute a representaccedilatildeo de

uma consciecircncia luacutecida em estado de justiccedila e de pureza Ela eacute nesse sentido mais proacutexima agrave

ideacuteia do que a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde iraacute colocarem seus deuses e santos Atena jaacute tem um

ldquoespiacuteritordquo refinado

Por isso em Atenas ela tambeacutem era chamada de Niacuteke e na sua estaacutetua Partheacutenos de

maacutermore e ouro esculpida por Fiacutedias ela carrega em sua matildeo a imagem de Niacuteke a que distribui

daacutedivas e a que decide sobre faccedilanhas

O Paacuterthenon como ficou sendo chamado o templo que acolhia a estaacutetua de Atena tinha

um compartimento onde habitavam as sacerdotisas da deusa Daiacute o questionamento se

Paacuterthenon referia-se simplesmente ao templo de Atena (lsquoRoom of de Maidenrsquo) ou incluiacutea esse

espaccedilo habitado pelas sacerdotisas virgens (lsquoRoom of tue Maindensrsquo)142

Mas Atena natildeo tem apenas o lado viril guerreiro dos projetos das estrateacutegias da accedilatildeo

Atena natildeo eacute esposa nem matildee mas eacute uma deusa criativa e revela seu aspecto feminino na periacutecia

e na arte

142 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004

76

Dizem os autores que eacute apenas em um periacuteodo tardio que Atena se torna patrona da arte e

das ciecircncias Surgem nessa eacutepoca outras lendas como a de Aracne quando Atena teria

transformado a princesa Coacutelofon na Liacutedia em aranha invejosa que ficara da habilidade de tecer

da princesa

Segundo algumas fontes isso revelaria uma antiga rivalidade comercial entre os

atenienses e os liacutedio-cariates indicando pois uma versatildeo mais tardia da lenda que natildeo tem nada

em comum com as caracteriacutesticas de Atena

Outra lenda que se refere a Atena eacute sobre a sua denominaccedilatildeo de Palas Atena Conta essa

lenda revelando a nobreza de caraacuteter de Atena que ela estava brincando de artes marciais com a

filha de Triton Palas Em um dado momento preocupado com essa brincadeira das meninas

Zeus colocou sua eacutegide e Palas olhando para cima para ver o que era distraiu-se e foi ferida por

Atena vindo a falecer Em homenagem agrave amiga e querendo recuperar sua memoacuteria Atena fez

uma imagem de madeira da figura de Palas e enrolou-a com a eacutegide colocando-a perto de Zeus

Daiacute a origem de seu epiacuteteto Palas que enaltece a dignidade de seus traccedilos

Em nossa leitura e pesquisa Atena pareceu-nos revelar mais especificamente a

caracteriacutestica de virgindade dos gregos da eacutepoca de Homero

54 - HEacuteSTIA E A CASTIDADE

Para entender a deusa Heacutestia pareceu-nos importante retomar as funccedilotildees de Afrodite

Enquanto Afrodite eacute toda corpoacuterea linda sedutora doce Heacutestia eacute pouco representada

fisicamente silenciosa meiga

Dissemos que em Afrodite seu poder eacute determinado pelo olhar da seduccedilatildeo (απάτη) e da

uniatildeo amorosa (Φιλότης) e que implica movimento constante provocar um desejo contiacutenuo entre

os homens e ateacute entre os deuses - que eacute quando atraveacutes do desejo aproximam-se dos mortais

conhecendo-os melhor

Heacutestia ao contraacuterio tem seu poder emanado pelo desejo da fixidez da constacircncia da

manutenccedilatildeo da ordem da famiacutelia do equiliacutebrio das relaccedilotildees familiares da preservaccedilatildeo da

harmonia e da paz do controle Silenciosa sempre presente colocada no espaccedilo central da casa

no umbigo da casa (οικω) como diziam os gregos seu olhar eacute atento e vigilante promovendo o

77

recato das virgens (παρθένος) antes do casamento ela tambeacutem uma virgem que cuida do espaccedilo

da famiacutelia impondo respeito e interditando o incesto

Heacutestia tem uma importacircncia primordial mas era pouco representada pois fazia de tal

forma parte do espaccedilo domeacutestico que a lareira da famiacutelia era chamada de heacutestia onde ardia o

fogo intermitente o altar sagrado em que se ofereciam os sacrifiacutecios

Sobre essa presenccedila na casa dos homens que habitam a superfiacutecie terrestre diz o Hino

Homeacuterico a Heacutestia (XXIX veja anexo B) que ela constitui natildeo soacute o centro do espaccedilo familiar

mas tambeacutem eacute uma presenccedila constante em todos os templos dos deuses (honra concedida a ela

por Zeus) Como Zeus tambeacutem ela era filha de Reacuteia e de Crono e era venerada como a deusa

mais antiga do panteatildeo grego Nas casas diz o mesmo hino os sacrifiacutecios eram sempre

oferecidos a ela Como vivia no meio dos mortais todas as festividades familiares comeccedilavam e

terminavam com rituais laudatoacuterios agrave deusa o que criava uma solidariedade entre os

participantes unindo-os pela identidade comum

Heacutestia natildeo significava o fogo propriamente dito mas a lareira da casa o altar dos

sacrifiacutecios O fogo que queima no altar mobiliza o olhar e estaacute presente como elemento de

purificaccedilatildeo como siacutembolo de marca civilizatoacuteria como chama do desejo da sexualidade

Como elemento de purificaccedilatildeo o fogo arde em homenagem aos deuses em um gesto de

honra e de respeito em uma atitude em que o olhar capta o crepitar da presenccedila do divino nas

chamas

O fogo tambeacutem eacute usado como um elemento de civilizaccedilatildeo pois a presenccedila da deusa

Heacutestia se estendia agraves cidades gregas como continuaccedilatildeo da famiacutelia Nessas piras do espaccedilo

puacuteblico ardia a chama eterna Considerava-se aiacute um lugar de altar sagrado onde os estrangeiros

eram recebidos e os lsquoembaixadoresrsquo prestavam juramentos Os guerreiros antes de irem agrave guerra

pegavam fogo do altar de Heacutestia para levar com eles e os colonizadores o levavam quando iam

fundar uma nova colocircnia A importacircncia de Heacutestia eacute pois ldquohumanizadorardquo uma vez ela se

integra e participa da condiccedilatildeo humana quer como conhecedora do espaccedilo familiar quer como

impulsionadora de um estaacutegio civilizatoacuterio A pira estaacute sempre recebendo o fogo que arde para a

renovaccedilatildeo do velho e para uma ldquoressurreiccedilatildeordquo perioacutedica

A lareira (a heacutestia) que mantinha o fogo tambeacutem tinha uma accedilatildeo relacionada com a

transmissatildeo dos ritos de iniciaccedilatildeo dos jovens (παρθένος) que passariam de um estaacutegio a outro

78

tanto do ponto de vista pessoal como no aspecto social A jovem virgem saiacutea do espaccedilo da casa

do pai para o seu novo espaccedilo familiar com o esposo onde se esperava que se desse a uniatildeo dos

sexos para fins de que a fertilidade na terra tivesse continuidade Nesse sentido Heacutestia era a

deusa que olhava atenta as chamas da accedilatildeo fecundante do desejo

Portanto o olhar que o fogo simboliza pode ser purificador iluminador fecundante Eacute o

olhar vigilante que daacute seguranccedila Comparando-se pois a purificaccedilatildeo pelo fogo relativo agraves

atividades da lareiraheacutestia e a purificaccedilatildeo pelas aacuteguas como vimos em Afrodite no seu

ldquobatismordquo na sua renovaccedilatildeo apoacutes a traiccedilatildeo ao marido poderiacuteamos deduzir que o fogo de que

Heacutestia cuidava era uma forma de purificaccedilatildeo que simbolizava a tradiccedilatildeo dos costumes

relacionada a importantes aspectos sociais dos quais a famiacutelia e as cidades faziam parte Nesse

sentido o fogo que Heacutestia cuida revela uma forma de compreender os estaacutegios por que passa o

feminino diante do masculino na sua histoacuteria terrestre A renovaccedilatildeo a transformaccedilatildeo a uniatildeo

sexual o interdito fazem parte da civilizaccedilatildeo

Quanto agrave aacutegua parece-nos que associada a Afrodite que representa o ceacuteu a terra e o

mar seu simbolismo eacute a purificaccedilatildeo do desejo Afrodite emerge das aacuteguas e esse processo a

remete agraves fontes de origem reconciliada com uma nascente divina de vida nova

Em eacutepocas seguintes agrave antiguidade grega o cristianismo se apropriaraacute da renovaccedilatildeo do

banho nas aacuteguas como forma de purificaccedilatildeo Assim diz o apoacutestolo Mateus (3 5-6) referindo-se

ao batismo que Joatildeo Batista fazia no deserto ldquoE eram por ele batizados no rio Jordatildeo

confessando seus pecadosrdquo O batismo tem pois como finalidade retirar o pecado assegurando

uma regeneraccedilatildeo Essa concepccedilatildeo portanto foi apropriada pelo Cristianismo dos povos de

civilizaccedilotildees anteriores

Heacutestia como significante da lareira da casa ocupava um espaccedilo feminino pois cabia agrave

mulher ocupar-se das atividades domeacutesticas e a casa (οικος) era seu lugar Era ali que a mulher

estava protegida dos perigos que a vida exterior poderia representar

A jovem ao casar-se ia para a casa do marido o que exigia a ela uma mudanccedila natildeo soacute

de casa como tambeacutem de estado de virgem a esposa e matildee Portanto isso implica uma

mobilidade Heacutestia ao contraacuterio continuava fixa e virgem na casa paterna Para a jovem essa

questatildeo espacial era tambeacutem social e pessoal

79

Vejamos o que diz Vernant sobre isso

Essa permanecircncia de Heacutestia natildeo eacute de natureza apenas espacial Como ela confere agrave casa o centro que a fixa no espaccedilo Heacutestia assegura ao grupo domeacutestico a sua perenidade no tempo eacute pela Heacutestia que a linhagem familiar se perpetua e se manteacutem semelhante a si mesma como se em cada geraccedilatildeo nova nascessem diretamente ldquoda lareirardquo os filhos legiacutetimos da casa143

Como aspecto de uma sociedade patriarcal os casamentos eram endogacircmicos mantendo

uma tradiccedilatildeo de hereditariedade puramente paterna Deste modo Heacutestia cuidava da questatildeo da

fecundidade dissociada portanto da questatildeo do desejo Ela cuidava para que houvesse atraveacutes

da filha a prolongaccedilatildeo da ldquolinhagem paternardquo sem a necessidade ldquode uma mulher lsquoestrangeirarsquo

para a procriaccedilatildeordquo 144

Esse tipo de lugar ocupado pela mulher revela um aspecto de passividade e uma

caracteriacutestica de dominaccedilatildeo do homem cujo poder eacute o de garantir a fecundaccedilatildeo

A mulher eacute a estranha na casa do marido agrave qual ele pertence e quer dar continuidade

pois eacute o pai que firma as raiacutezes nessa casa que deve ser cuidada pela mulher Nesse sentido vecirc-

se a mulher como um ldquodomusrdquo (como jaacute nos referimos anteriormente) do masculino no sentido

de receber e dar continuidade agrave linhagem participando como cuacutemplice do desejo do macho de

manter sua genealogia desconsiderando os seus proacuteprios desejos de mulher Agrave mulher cabe

submeter-se ao homem que preocupado com a sua linhagem vai conduzi-la como virgem ao

altar de Heacutestia vai unir-se a ela sexualmente e vai ser o progenitor dos filhos que viratildeo

Ora como jaacute foi comentado antes as relaccedilotildees do gecircnero envolvem conflitos e portanto eacute

natural que as donzelas (moccedilas solteiras) e as mulheres casadas enfrentassem tensotildees dentro da

estrutura familiar e que reagissem a determinadas imposiccedilotildees

Eacute o que mais tarde a trageacutedia vai mostrar as contradiccedilotildees da cena familiar gerando

oposiccedilotildees sofrimentos afetando relacionamentos alimentando oacutedios

Talvez por ser uma observadora constante da cena domeacutestica Heacutestia tenha se fixado na

sua condiccedilatildeo de παρθένος a deusa que remete a uma condiccedilatildeo do feminino ideal inacessiacutevel e

por isso sem sujeitar-se agrave submissatildeo do desejo carnal A ldquopurezardquo natildeo pode ser alcanccedilada pelo

humano pois ela eacute do espaccedilo divino No catolicismo as freiras e as santas manteratildeo a tradiccedilatildeo

do recato fazendo votos de castidade e remetendo-se ao enclausuramento de conventos Uma

143 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 199 144 VERNANT Jean-Pierre Idem p 199

80

forma de manter a ldquopurezardquo era abolindo as relaccedilotildees carnais O catolicismo pois teve suas

virgens que se encarregavam de vigiar o ldquopecadordquo

Mas natildeo eacute soacute a submissatildeo ao marido que a mulher deve aceitar Ela eacute considerada parte

de um comeacutercio de trocas dependente do acordo entre os homens pai e esposo Essa questatildeo eacute

de ampla complexidade pois envolve aspectos poliacutetico-econocircmicos aleacutem dos sociais

o termo οίκος tendo ao mesmo tempo um significado familiar e territorial podem-se compreender as reticecircncias que constituem obstaacuteculo em plena economia mercantil agraves operaccedilotildees de venda e de compra quando se trata de bens familiares (κληρος) compreende-se tambeacutem a recusa em conceder a um estrangeiro o direito de possuir uma terra dita ldquoda cidaderdquo porque ela deve permanecer como o privileacutegio e a marca do cidadatildeo ldquoautoacutectonerdquo145

Ou seja como mercadoria de troca de comeacutercio ou seja como um campo feacutertil em uma

sociedade agriacutecola a mulher era vista para fins de procriaccedilatildeo Como objeto de troca pertencia ao

marido como campo a ele lhe cabia frutificar o solo e fazer a colheita delimitando seu territoacuterio

em um clima de seguranccedila e de amizade domeacutestica

Portanto nesse tipo de sociedade a esterilidade ia contra os princiacutepios de continuaccedilatildeo

genealoacutegica Por isso era punida Natildeo se pode renunciar agrave deusa da fertilidade Afrodite zela

pela vida A uniatildeo entre os opostos faz parte da continuidade do mundo Renunciando ao coito o

homem estaacute impedindo a procriaccedilatildeo Euriacutepedes mostra em sua trageacutedia como Hipoacutelito foi

castigado por querer manter-se fiel a Aacutertemis isto eacute agrave virgindade

A abertura da peccedila daacute-se com as palavras de Afrodite sobre a abstinecircncia sexual

masculina na figura de Hipoacutelito Ser humano eacute sujeitar-se ao desejo Aleacutem disso Afrodite

determina o destino (como jaacute foi apontado no item sobre essa deusa) independentemente da

vontade do homem Faz parte do humano o enredamento o conflito a tensatildeo entre os opostos

pois assim foi determinado desde o iniacutecio dos tempos

Vejamos o que diz Afrodite em suas beliacutessimas palavras na traduccedilatildeo para a liacutengua

portuguesa de J B Fontes

Grande entre os seres mortais e natildeo sem renome 1 de deusa Ciacutepris eu sou chamada no ceacuteu Aqueles que do Ponto aos limites de Atlas habitam e contemplam o lume do sol eu favoreccedilo se veneram meu poder 5 enquanto abato quem pensa em mim com soberba

145 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 208

81

pois eacute inerente tambeacutem a raccedila dos deuses agradar-se com honras prestadas por homens Mostrarei logo a verdade destas palavras O filho de Teseu nascido da Amazona 10 Hipoacutelito que o casto Piteu instruiu eacute o uacutenico entre os cidadatildeos desta Trezena a dizer que dos Numes eu sou o pior o leito ele recusa evita o casamentordquo146 mas pela falta contra mim vou me vingar 147 21 de Hipoacutelito ainda hoje Muito avancei neste projeto resta-me pouco a fazer Vindo ele uma vez da casa de Piteu ver misteacuterios sagrados e neles sagrar-se 25 na terra de Pandiacuteon a bem nascida esposa de seu pai Fedra o viu e um violento amor tomou-lhe coraccedilatildeo segundo o meu desejo148

Reconhecemos em Heacutestia uma polaridade pois ao mesmo tempo que se opotildee a Afrodite

como virgem inicia e supervisiona com o olhar de seu altar as jovens que se preparam para o

casamento Assim como Afrodite Heacutestia se inscreve na natureza humana Tambeacutem ela conhece

o posicionamento do ldquoparrdquo ao lado do masculino no panteatildeo grego onde eacute colocada ao lado de

Hermes divindade que cuida da solidariedade do acolhimento entre os homens nas suas

andanccedilas ldquoexterioresrdquo

O Hino Homeacuterico a Heacutestia coloca-a lado a lado com Hermes complementando funccedilotildees

Assim como Heacutestia figura como virgem e protetora das jovens em uma posiccedilatildeo semelhante agrave da

matildee Hermes eacute o mensageiro que ajuda aqueles que necessitam Hermes eacute pois o ldquoαγγελεrdquo o

anjo que como Heacutestia conhece as accedilotildees humanas e procura ser favoraacutevel aos mortais

A questatildeo do gecircnero eacute altamente significativa na sociedade arcaica e ateacute hoje no mundo

contemporacircneo alguns pais anseiam pela vinda de um filho do sexo masculino Assim sendo o

pai em cujo lar soacute havia filhas esperava que a filha lhe desse um neto como herdeiro do ldquoκλεροςrdquo

paterno Nesse caso o filho seguiria a linhagem do avocirc e era ao mesmo tempo filho e irmatildeo de

sua proacutepria matildee Ainda assim a mulher via-se sujeita agraves condiccedilotildees de submeter-se se natildeo agrave casa

do marido agrave casa paterna Em seu estudo sobre Heacutestia Vernant faz uma consideraccedilatildeo que nos

parece importante em relaccedilatildeo a um outro aspecto da polaridade da deusa Diz ele

146 Grifo nosso 147 Grifo nosso 148 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 105

82

Assim se delineia no pensamento social dos gregos em face agrave imagem do homem agente exclusivo da obra geradora a imagem natildeo menos poderosa da mulher verdadeira fonte de vida em que se alimenta a fecundidade das ldquocasasrdquo A deusa do lar segundo os casos eacute suscetiacutevel de justificar tanto uma quanto outra dessas duas imagens opostas Com efeito Heacutestia nos parece ter a funccedilatildeo especiacutefica de marcar a ldquoincomunicabilidaderdquo dos diversos lares enraizados em um ponto definido do solo eles natildeo poderiam nunca se misturar mas permanecem ldquopurosrdquo ateacute na uniatildeo dos sexos e na alianccedila das famiacutelias149

Como coloca Vernant em seu texto a virgindade de Heacutestia eacute a que assegura agrave jovem

virgem antes do casamento o seu proacuteprio lar Apoacutes o casamento ela passaraacute a representar a casa

do marido submetendo-se a ele como senhor do οίκος

Como organizadora dos bens do lar no que diz respeito agrave concentraccedilatildeo de riqueza e a

delimitaccedilatildeo dos patrimocircnios familiares Heacutestia era conhecida com o epiacuteteto de Heacutestia Tamia

Enquanto cabia a Heacutestia cuidar dos tesouros que ficavam guardados dentro da casa nos cofres

(bronze ouro ferro tecidos) a Hermes cabia o cuidado na aacuterea externa dos rebanhos com seu

bastatildeo maacutegico Considerando-se a funccedilatildeo dessas divindades enquanto Heacutestia se ocupava da

conservaccedilatildeo dos bens Hermes encarregava-se do movimento da riqueza isto eacute da aquisiccedilatildeo ou

da perda de bens

Um outro epiacuteteto de Heacutestia eacute Heacutestia Koineacute Ela era assim denominada quando havia a

cerimocircnia da lavragem que periodicamente renovava o viacutenculo do povo ateniense ldquoautoacutectonerdquo

com a sua terra

Heacutestia tambeacutem era a divindade de um ritual divinatoacuterio na Acaia ao lado de Hermes

O Hino XXIV tambeacutem dedicado a Heacutestia (verificar anexo B) ressalta o poder

adiivinhatoacuterio da deusa prestando serviccedilos no templo de Apolo A ideacuteia de purificaccedilatildeo da deusa

eacute destacada no uso de oacuteleos que pendem das mechas de cabelo Em seu banho regenerador apoacutes

ser pega com Ares Afrodite tambeacutem eacute ungida com oacuteleo elemento de purificaccedilatildeo

Assim como Afrodite traz em si a ligaccedilatildeo com o ceacuteu (pai Urano) com a terra (matildee Gaia)

e com a aacutegua (tendo nascido na espuma do mar) Heacutestia manifesta em si o contato do ceacuteu da

terra e do mundo subterracircneo A lareira fixa na casa enraiacuteza-a na terra Por meio dela a famiacutelia

faz uma aproximaccedilatildeo com o mundo subterracircneo Aleacutem disso a lareira assim como se comunica

com o mundo infernal faz subir ateacute a morada dos deuses oliacutempicos a chama que vem do

149 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 216

83

cozimento dos alimentos Quanto ao οικος cujo centro eacute fixado por Heacutestia representa a

estabilidade no espaccedilo terrestre

Em Homero nada pudemos destacar sobre Heacutestia No entanto no Hino Homeacuterico V (veja

anexo A) dedicado a Afrodite encontra-se uma citaccedilatildeo de grande forccedila quando Heacutestia faz um

juramento sagrado a Zeus de manter-se virgem A cena descrita destaca Heacutestia colocando sua

matildeo na cabeccedila de Zeus como um modo solene de se fazer um juramento Desta maneira Heacutestia

estava resolutamente decidida a manter-se virgem Narra o hino que a deusa implorou a

virgindade a Zeus apoacutes ter sido cortejada por Poseidon e por Apolo

Heacutestia opotildee-se pois a Afrodite natildeo se submetendo a ela na questatildeo do envolvimento

amoroso (carnal) Poderiacuteamos finalizar essas consideraccedilotildees sobre Heacutestia levantando uma

pergunta seria uma forma de independecircncia para Heacutestia natildeo se deixar dominar por algueacutem (seja

deus ou mortal) do sexo masculino mas precisar da aprovaccedilatildeo de Zeus como autoridade

masculina maacutexima do panteatildeo oliacutempico Por que essa decisatildeo natildeo foi individual e teve que

passar pela ldquofigura paterna de Zeusrdquo Por que Zeus em vez de casamento passou a oferecer-lhe

a melhor porccedilatildeo (a primeira viacutetima) de todo sacrifiacutecio puacuteblico

85

6 - A QUESTAtildeO DA VIRGINDADE E AS DEUSAS VIRGENS

ldquoOne popular private offering consisted in dedicating to the deity the symbols of a phase of onersquos life that had ended such as the locks of children now adults or their toys or a bridersquos virginal clothesrdquo150

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo

Para se chegar agrave questatildeo da virgindade parece-nos que eacute preciso descobrir dentro do mito

as significaccedilotildees e as vozes que ficam agrave margem durante a Antiguidade pois satildeo subordinadas a

uma voz maior dominante

Desde o iniacutecio colocam-se as trecircs deusas virgens (Aacutertemis Atena e Heacutestia) distintas das

demais deusas formando pois um grupo agrave parte o que jaacute implica sua feiccedilatildeo diferencial

Isso revela que a ldquoliberdaderdquo individual feminina natildeo eacute compatiacutevel com a dominaccedilatildeo de

um valor de ldquomaioriardquo Portanto eacute preciso uma leitura plural do texto miacutetico para entender como

essa histoacuteria alternativa das deusas foi se constituindo atraveacutes dos tempos como enfatizamos em

nossa proposta metodoloacutegica

Trata-se pois de uma relevacircncia do tema haja vista sua pertinecircncia na questatildeo

mitoloacutegica que destaca de alguma forma quer seja atraveacutes do uso de um vocaacutebulo quer seja

atraveacutes do contexto miacutetico apesar do seu caraacuteter fantasioso a ideologia de uma eacutepoca em que

sobressai um traccedilo da virgindade de uma ldquoteologiardquo feminina

De fato a virgindade das deusas gregas permite-nos captar repercussotildees em diferentes

acircmbitos da sociedade pois o mito estaacute ldquoembrenhadordquo nela revelando justificando explicando

moldando os valores adaptando-os de modo a destacar experiecircncias que se tornam crenccedilas do

coletivo Satildeo vozes que perpassam e ultrapassam as fronteiras das poacutelis e satildeo acolhidas na

representaccedilatildeo simboacutelica dos princiacutepios sociais que a sociedade grega elabora

Portanto a virgindade de Aacutertemis Atena e Heacutestia ldquomexemrdquo com o eixo da memoacuteria

histoacuterica situam-se no eixo da realidade social e permeiam a questatildeo de gecircnero

150 RATTO Stefania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 p 152 ldquoUma oferenda privada popular consistia em dedicar agrave divindade os siacutembolos de uma fase da vida que jaacute tinha acabado tais como mechas de cabelo de crianccedilas agora adultas ou seus brinquedos ou roupas virginais de uma noivardquo (traduccedilatildeo nossa)

86

Certamente muito se tem dito sobre a Greacutecia sobre os deuses gregos sobre o homem

grego sobre as mulheres de Atenas sobre o patriarcalismo sobre o mito Poreacutem que

discussotildees podem dar conta de encaminhar a posiccedilatildeo dessas deusas no Olimpo grego

Vamos partir de um pressuposto de que o mito foi sendo construiacutedo e se adaptando de

acordo com as transformaccedilotildees por que a sociedade ia passando

Primeiro a sociedade marcadamente agriacutecola era uma sociedade que destacava a figura

da mulher Parece-nos pois que a grande deusa era privilegiada nesse espaccedilo Enfatizavam-se os

ritos de fertilidade e de procriaccedilatildeo

Dessa forma as deusas consideradas ldquoantigasrdquo vindas de outras culturas como Heacutestia

Demeacuteter Aacutertemis Atena tinham histoacuterias paralelas em outros lugares e caracteriacutesticas comuns agraves

deusas de outros povos bem como de deusas importantes quer seja nos ritos de fertilidade quer

nos ritos sagrados do fogo quer como grandes deusas ou ainda como Amazonas independentes

Poreacutem na Greacutecia os textos escritos de Homero e de Hesiacuteodo inauguram histoacuterias da

origem do mundo de todas as forccedilas da natureza de deuses e de heroacuteis Aiacute jaacute se coloca a

fertilidade da natureza e a fecundidade da terra como dos seres humanos como misteacuterios

sublimes e por isso divinizados Embora a primeira divindade que surja responsaacutevel pela

fecundaccedilatildeo seja a Terra uma forma de divindade feminina que implica uma retomada a um

primeiro padratildeo que resgata o feminino como procriando independentemente do masculino

ainda assim seu periacuteodo de independecircncia eacute limitado Logo que a matildee terra (Gaia) daacute agrave luz o

mito grego jaacute propotildee a origem dos opostos e a chegada do macho ao mundo gerando conflitos

na figura de Urano o ceacuteu

Parece-nos que a partir desse momento a Grande Matildee comeccedila a ocupar um lugar

secundaacuterio em uma sociedade que sucede agrave eacutepoca eminentemente agriacutecola em que as invasotildees

colocam toda ecircnfase nos guerreiros e o patriarcalismo inicia o seu domiacutenio

A partir dessas consideraccedilotildees trecircs aspectos podem ser destacados nesse poacutelo complexo

da sociedade grega primeiro como foi reorganizado o cenaacuterio dos deuses acomodando-se a uma

nova situaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico-econocircmica com aspectos diferenciados da fase anterior Segundo

como a mulher se posiciona nesse panorama e como suas funccedilotildees eram atribuiacutedas e

determinadas incluindo a questatildeo dos casamentos

87

Terceiro como a flexibilidade das palavras parthenos e koreacute referindo-se agraves moccedilas

solteiras e virgens em um contexto em transformaccedilatildeo pode ser significada face ao poder de

Afrodite

Enfocando o primeiro item das questotildees levantadas verificamos que a ldquoacomodaccedilatildeordquo dos

deuses oliacutempicos colocou como entidade suprema Zeus cuja forccedila e poder estavam relacionados

com o raio e com a sabedoria Estava instalado o masculino no centro do universo (kosmos)

grego A matildee que havia procriado Urano e Crono afastou-se para que eles pudessem presidir

colocando-se ela proacutepria em um plano diferenciado a que ofereceu o ventre feacutertil para que essa

prole pudesse existir e a que participou nas escolhas Ela entretanto posicionou-se aleacutem das

funccedilotildees oliacutempicas pois estas eram mais especiacuteficas para a vida do cotidiano do periacuteodo dito

arcaico Gaia a matildee primeira ficou conhecida como entidade primordial a base da fecundaccedilatildeo e

da criaccedilatildeo a que organizou o mundo e que jaacute estabelecida em um contexto amplo inaugurou o

princiacutepio de uma genealogia que se define com o nascimento de Zeus impondo-se sobre o pai

(Crono) Isso revela claramente que uma outra era tem iniacutecio agora eacute a vez em que o filho vai

reinar libertando antecedentes dessa aacutervore genealoacutegica e devolvendo agrave Terra a luz do

Relacircmpago o som do Trovatildeo e a forccedila da violecircncia A matildee Terra fica pois como base

ldquolongiacutenquardquo e Zeus fica como o centro do Olimpo

Desde o iniacutecio constata-se que a matildee reconhece os filhos e os privilegia Gaia a partir do

momento que copula com Urano passa a reconhececirc-lo como esposo e protege o filho Crono

incitando-o contra o pai que natildeo lhe ldquodava espaccedilordquo A mesma questatildeo se repete entre Crono e

sua irmatilde Reacuteia Quando comeccedilam a copular Reacuteia reconhece Crono como pai de seus filhos e

porque a lenda jaacute previa a ira dos filhos contra o pai tentando arrebatar-lhe o lugar Crono

zeloso de seu domiacutenio passa a devoraacute-los A matildee agora Reacuteia salva o filho Zeus de Crono

dando a este uacuteltimo uma pedra para engolir e escondendo Zeus em uma gruta onde eacute alimentado

por uma cabra

Esses aspectos justificam algumas constataccedilotildees (a) a matildee parece ter um viacutenculo de

afetividade com os filhos desde o nascimento reconhecendo-os como parte de sua prole gerados

em seu ventre (b) o pai considerado apenas pai bioloacutegico ainda natildeo assume os filhos Natildeo

existe pois nesses pais miacuteticos primordiais a ldquoadoccedilatildeordquo dos filhos que seraacute posteriormente

88

introduzida no direito romano151 (c) a lenda miacutetica destaca para um fato natural da vida com o

tempo os filhos assumem o lugar do pai ndash o cetro passa do mais velho ao mais novo ndash (d) a

cabra como participante na amamentaccedilatildeo das crianccedilas na falta do leite materno eacute tida como um

animal reverenciado entre os gregos na figura de Zeus que como infante necessitou da

alimentaccedilatildeo vinda de Amalteacuteia a cabra-ama tida em outras versotildees como ninfa

Essa linhagem a partir daiacute centrada em Zeus parece-nos revelar um periacuteodo de transiccedilatildeo

cedendo a fecundidade criativa lugar para o masculino dominante ocupar o governo do mundo

atraveacutes das armas que lhe satildeo atribuiacutedas o raio o trovatildeo e a violecircncia o poder de ldquofulminarrdquo

Passa-se da fecundidade feminina agrave dominaccedilatildeo masculina

Assim reorganizado o Olimpo instala a figura do pai todo-poderoso o masculino

predominante refletindo uma sociedade em que os cidadatildeos (pais e esposos) negociavam e

decidiam sobre as mulheres (filhas e esposas) protegiam as muralhas da cidade (os hoplitas) e

cuidavam da descendecircncia genealoacutegica atraveacutes da procriaccedilatildeo com as jovens mulheres porque a

continuaccedilatildeo da linhagem familiar era de grande importacircncia na sociedade grega

Isso posto mostra-nos a relevacircncia da deusa Afrodite para a reproduccedilatildeo da espeacutecie o

papel representativo da deusa Heacutestia como guardiatilde da casa e da famiacutelia com sua presenccedila fixa

constante atenta a significacircncia de Aacutertemis lsquoSenhora das Ferasrsquo responsaacutevel pela

lsquodomesticaccedilatildeo dos jovensrsquo as meninas de onze doze anos (as ursas) para enfrentamento do

casamento e dos partos e os rapazes para o preparo civilizatoacuterio que a cidadania impotildee e

finalmente Atena como orientadora das questotildees que precisam de uma direccedilatildeo saacutebia e astuta de

um rumo certeiro de estrateacutegias inteligentes da elaboraccedilatildeo paciente no trabalho manual no

cuidado com os cavalos no cultivo da oliveira Enfim uma deusa multifacetada para atender

necessidades em tempo de guerra e de paz de mulheres e de homens

De certa forma os deuses oliacutempicos refletiam todos os estados de coisas dos homens em

sua vida cotidiana

Uma forma de honrar os deuses e de implorar favores a eles era atraveacutes dos cultos e dos

rituais de sacrifiacutecio Assim o homem grego da eacutepoca arcaica mantinha um viacutenculo com o divino

com seus deuses e deusas atraveacutes da praacutetica de ritos fossem eles puacuteblicos ou privados Os 151 Discutimos sobre esse aspecto em um artigo de nossa autoria O olhar e a voz na construccedilatildeo do masculino ndash A questatildeo da paternidade in GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Masculino Campinas Editora Aliacutenea 2008

89

sacrifiacutecios coletivos oferecidos durante festivais sacros em geral incluiacuteam instrumentos

adequados e animais como viacutetimas Esse fato eacute revelador da continuidade de uma tradiccedilatildeo que se

mantinha dos tempos ancestrais Portanto mesclavam-se o antigo e o novo incorporando ritos a

deuses que tinham um ldquonovo formatordquo adaptados a uma sociedade guerreira cuja voz que se

fazia ouvir era a do masculino Da grande deusa passou-se ao deus supremo

Essa incorporaccedilatildeo da figura de deusas que mantinham sua autonomia vinculada ao

passado de grandes deusas sentadas no Olimpo venerando a figura de um reinado governado por

um deus coloca a mulher e o homem no bojo da historicidade de suas inter-relaccedilotildees

As deusas virgens do Olimpo parecem sugerir pistas de uma sociedade matriarcal anterior

e buscando rastrear seus atributos e funccedilotildees parece-nos que seus testemunhos da Antiguidade

Grega fazem-nos desvendar a ldquoinvisibilidade femininardquo

De fato eacute atraveacutes das deusas que se tem notiacutecia do papel das mulheres na sociedade As

meninas se preparavam para o casamento sob a ldquodomesticaccedilatildeordquo e orientaccedilatildeo de Aacutertemis e lhe

ofertavam seus brinquedos de infacircncia siacutembolos de uma fase que deixavam para traacutes No dia do

casamento em geral a noiva tomava banhos de purificaccedilatildeo indicadores de uma eacutepoca de

transformaccedilotildees pois os rituais de libaccedilatildeo faziam parte dos preparativos de fases muacuteltiplas dos

casamentos da Greacutecia antiga Um banquete era oferecido a Heacutestia na casa da noiva do qual ela

podia participar de rosto coberto por um veacuteu A menina tornava-se entatildeo ldquoinvisiacutevelrdquo escondida

atraveacutes do veacuteu uma presenccedila velada diante do noivo e da famiacutelia Heacutestia tambeacutem ldquoguiavardquo a

procissatildeo para a casa do noivo onde a jovem iria morar pois a matildee da noiva acompanhava o

trajeto carregando tochas acesas

Esses pedaccedilos de descriccedilotildees datildeo pistas a algumas reflexotildees importantes sobre o que hoje

se denomina estudo de gecircneros152 indicador de uma visatildeo da posiccedilatildeo ocupada pela mulher

naquela sociedade dominada por um pai Zeus que se configura como o soberano que representa

o poder diante de todos os outros deuses

152 Natildeo pretendemos explorar a questatildeo vinculada aos estudos de gecircnero cuja trajetoacuteria emerge da constataccedilatildeo de um conflito social na reinvidicaccedilatildeo de direitos tendo sido colocado nas ciecircncias sociais a partir de 1955 quando John Money propocircs o termo ldquopapel de gecircnerordquo atribuindo o conjunto de condutas referentes aos homens e agraves mulheres

90

A nossa leitura dessa categoria de gecircnero dentro de uma anaacutelise antropoloacutegica

comparativa parece superar um olhar que vecirc a mulher fortemente ldquovitimizadardquo dentro da

sociedade sem espaccedilo para a participaccedilatildeo e atuaccedilatildeo legiacutetima

De fato embora a praacutetica discursiva dominante fosse a voz de um pai supremo no

Olimpo outros deuses e deusas enredavam-se em um amplo sistema com diferentes funccedilotildees de

forma que ambos o feminino e o masculino colocavam-se em um mesmo patamar Entatildeo

questionamos o lsquopoderrsquo estaacute acima da questatildeo do gecircnero Zeus era pois o soberano acima de

todos os outros deuses e deusas e unido a deusas e a mulheres (humanas) simboliza o princiacutepio

masculino O princiacutepio era organizador tambeacutem pois representava a constituiccedilatildeo da famiacutelia em

que ambos os sexos satildeo contemplados De algum modo a Greacutecia arcaica preservava a funccedilatildeo

fecundadora da mulher pois ateacute mesmo as Amazonas mulheres independentes que se diziam

descendentes do deus da Guerra e da ninfa Harmonia mulheres que se governavam a si proacuteprias

sem recorrerem a homens usavam-nos no entanto para perpetuar a raccedila Diz a lenda que

conservavam os filhos do sexo feminino mutilando-lhes um seio para o manejo do arco e da

lanccedila Daiacute alguns autores fornecem o termo ά-microαξων (amazonas) como ldquoas que natildeo tecircm seiordquo

Nesse contexto a situaccedilatildeo de poder dentro da categoria de gecircnero eacute oposta tendo o

domiacutenio da situaccedilatildeo essas mulheres guerreiras cegavam os filhos do sexo masculino ou

deixavam-nos coxos

Aqui tambeacutem a questatildeo do olhar se coloca quer seja na mutilaccedilatildeo dos seios oacutergatildeos

femininos por excelecircncia quer seja na retirada dos olhos dos meninos

A deusa virgem Aacutertemis no seu repuacutedio ao olhar masculino e no seu firme propoacutesito de

manter-se virgem era a deusa cultuada por essas mulheres guerreiras e caccediladoras vinculadas agrave

divindade por um traccedilo que senatildeo por uma cultura no bioloacutegico pelo menos por uma biologia na

cultura Logo a questatildeo de gecircnero eacute ldquouma construccedilatildeo social e cultural um lsquomodo de ser no

mundorsquordquo153

153 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p17

91

Quando os textos falam sobre a posiccedilatildeo do as mulheres frente agraves divindades ainda assim

temos que destacar que elas tinham uma participaccedilatildeo ativa nas celebraccedilotildees apesar de natildeo serem

permitidas em lugares onde se realizavam sacrifiacutecios violentos e onde se comia carne de animais

sacrificados Esses espaccedilos eram reservados aos cidadatildeos adultos do sexo masculino dada a

ldquoferocidaderdquo e ldquoatrocidaderdquo dos atos Preservava-se a mulher por sua constituiccedilatildeo bioloacutegica ou

pela constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses rituais

Por outro lado alguns rituais que se realizavam no templo dedicado a Aacutertemis em

Brauron eram reservados apenas agraves jovens meninas de onze a quatorze anos as virgens que se

colocavam como ldquoursasrdquo antes do casamento

Seriam essas funccedilotildees marginais como coloca Ratto154 por uma questatildeo de gecircnero

significando aqui o contexto soacutecio-poliacutetico ou por uma questatildeo que envolve o bioloacutegico

Um outro aspecto que levanta uma discussatildeo quanto ao gecircnero com a carga semacircntica

que lhe eacute atribuiacuteda hoje eacute a situaccedilatildeo dos casamentos na Greacutecia antiga

Zeus unido a deusas simbolizava o princiacutepio masculino como jaacute se enfatizou e o esposo

legiacutetimo no casamento

A sociedade dos homens reproduzia esse estado de coisas atraveacutes de dois momentos que

ressaltavam a mudanccedila de posiccedilatildeo da mulher virgem um contrato formal entre o pai da noiva e o

noivo selado com a entrega do dote e a transferecircncia da jovem da casa do pai para a casa da

famiacutelia do noivo onde deveria perpetuar esse tipo de tradiccedilatildeo

Embora essa troca nos pareccedila altamente comercial (e natildeo deixa de ser um negoacutecio)

revela a preocupaccedilatildeo com as funccedilotildees femininas de procriaccedilatildeo de continuidade a uma genealogia

e do cuidado com a casa que era espaccedilo da alccedilada da mulher pois assim como Heacutestia as esposas

deviam zelar pelo lar e pela famiacutelia

154 RATTO Stefania Opcit ldquoIn Greece women took an active part in the celebration of the leading religious festivals though in marginal rolesrdquo p 140 [Na Greacutecia as mulheres tinham uma obrigaccedilatildeo ativa na celebraccedilatildeo dos festivais religiosos principais embora em funccedilotildees perifeacutericas (traduccedilatildeo nossa)] A autora menciona que em alguns festivais cabia agraves garotas lavar e vestir as estaacutetuas para o culto em outros festivais como as Pan-Ateneacuteias as jovens teciam os saiotes que eram carregados como oferendas agrave deusa Portanto parece que a autora quer dar ecircnfase natildeo ao tipo de funccedilatildeo em si executada pelas jovens mas ao fato de serem excluiacutedas da vida poliacutetica na participaccedilatildeo dos cultos de sacrifiacutecio e dos banquetes coletivos Vemos aiacute uma discussatildeo do ponto de vista de gecircnero como exposto nas ciecircncias sociais

92

Aleacutem disso a sociedade transitoacuteria na posiccedilatildeo que assumimos de um periacuteodo dominado

pela Grande Deusa a um patriarcalismo onde se impotildee a figura de um deus de um pai

dominante explicita a necessidade de preparar as jovens para uma nova etapa cuidando de sua

orientaccedilatildeo e favorecendo os aspectos transformadores que preparam para a aceitaccedilatildeo de papeacuteis

diferentes dos que tinham na casa do pai

Essa preocupaccedilatildeo que a famiacutelia grega manifesta embora um tanto condicionadora e

imposta por padrotildees sociais parecia revelar uma preocupaccedilatildeo com periacuteodos de iniciaccedilatildeo para

outras etapas da vida tanto puacuteblica quanto particular Acreditamos que essa forma de

sistematizar regras e normas sociais possa ter contribuiacutedo grandemente para a formaccedilatildeo do

pensamento filosoacutefico grego que inaugura uma outra etapa

Quanto agrave teologia das deusas virgens ela eacute integradora de vaacuterias dimensotildees da vida

humana no que concerne homens e mulheres ela eacute predominantemente comunitaacuteria e relacional

ela se coloca como contextual e concreta marcada pelo cotidiano da vida grega como lugar de

manifestaccedilatildeo do divino e ela eacute acima de tudo atuante no sentido de participar da vida dos

mortais de favorecer homens e mulheres de zelar no momento em que o feminino precisa da

presenccedila e da forccedila dessas potecircncias nas experiecircncias coletivas e isoladas como expressatildeo de

apoio e de solidariedade

A teologia das deusas virgens direciona para a teologia em que se coloca lado a lado o

masculino e o feminino em que deusas privilegiam a uniatildeo dos opostos a submissatildeo ao esposo

a experiecircncia da vida familiar As deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia rompem o silecircncio da

dependecircncia do feminino impondo a consciecircncia de uma postura autocircnoma de uma perspectiva

feminina que eacute capaz de significar por si soacute sem o viacutenculo de outras presenccedilas quer seja de um

esposo quer seja de um filho quer seja de um amante

Nessa perspectiva poderiacuteamos ousar propor que a teologia feminista das deusas virgens

situa na Antiguidade as origens de um movimento que iraacute se constituir seacuteculos depois

refletindo a questatildeo de gecircnero que se vai delineando em cada movimento histoacuterico

A primeira tensatildeo instala-se com os mitos de criaccedilatildeo das lendas gregas que a partir daiacute

colocam como figura central um deus conferindo-lhe o direito e o poder do pai ou seja a

introduccedilatildeo de um conceito de patriarcado

93

Nas palavras e na visatildeo de Freitas o patriarcado na eacutepoca arcaica deve ser entendido

como uma condiccedilatildeo de inter-relaccedilotildees sociais e de imposiccedilotildees

Mas essa compreensatildeo do termo deixa na sombra o fato de que o pai como chefe de famiacutelia na Antiguidade era tambeacutem senhor amo e esposo Portanto o patriarcado conota um complexo sistema de subordinaccedilatildeo e dominaccedilatildeo 155

As deusas virgens revelam pois um conflito que eacute constitutivo do dualismo simboacutelico de

gecircnero uma vez que estaacute enraizado na convicccedilatildeo de que a experiecircncia humana estaacute imersa em

experiecircncias sustentadas por organizaccedilotildees sociais e poliacuteticas e por instituiccedilotildees e organismos

religiosos permeando todas as relaccedilotildees com seus aspectos contraditoacuterios e ambiacuteguumlos

O problema da linguagem os epiacutetetos referentes agraves deusas e o leacutexico que se impocircs como

caracteriacutestica de algumas expressotildees e atributos peculiares eacute outra questatildeo que nos fez observar

algumas colocaccedilotildees levantadas no estudo dessa teologia feminina

Quando discutimos a metodologia de nossa pesquisa fizemos algumas consideraccedilotildees

sobre os epiacutetetos das deusas e apoiamo-nos na obra de Parry156 um estudioso dos versos homeacutericos

No entanto pretendemos retomar um aspecto que enfatiza o caraacuteter da virgindade e

discuti-lo de uma posiccedilatildeo comparativa (interpretativista)

Narrando sobre a genealogia oliacutempica Hesiacuteodo coloca que

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia157 mais saacutebia que os Deuses e os homens mortais Mas quando ia partir a Deusa de olhos glaucos158 Atena ele enganou suas entranhas com ardil com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo 890 por conselhos da Terra e do Ceacuteu159 constelado Estes lho indicaram para que a honra de rei natildeo tivesse em vez de Zeus outro dos Deuses perenes era destino que ela gerasse filhos prudentes primeiro a virgem160 de olhos glaucos161 Tritogecircnia162 igual ao pai no furor e na prudente vontade163

155 FREITAS Maria Carmelita de Op cit p 28-29 156 PARRY Millman Op cit 157 Em grego encontramos a palavra Μητιν (Meacutetis) uma divindade da primeira geraccedilatildeo eacute a personificaccedilatildeo da sabedoria e da Astuacutecia 158 Jaacute nos referimos ao epiacuteteto de Atena glaucoacutepida (γλαυκωπιν) 159 Referindo-se a Gaia (Γαίης forma poeacutetica) e Urano (Ούρανοΰ) 160 A palavra usada em grego eacute κούρην 161 Haacute repeticcedilatildeo na mesma estrofe do epiacuteteto γλαυκώπιdα 162 Tambeacutem haacute referecircncia ao epiacuteteto Τριτογένειαν Tritogecircnia ou Tritogeneacuteia que se refere ao lugar de seu nascimento Uma das versotildees eacute que teria sido agraves margens do lago Tritatildeo na Liacutebia 163 HESIacuteODO Op cit p 155

94

Veja-se que em seu primeiro casamento a esposa (Meacutetis) eacute literalmente engolida natildeo

deixando Zeus espaccedilo para uma situaccedilatildeo baacutesica do feminino de a mulher parir o filho que

espera

Assim nasce Atena da cabeccedila do pai (vs 924-926) virgem de olhos glaucos Tritogecircnia

guerreira infatigaacutevel semelhante ao pai no furor e na vontade Portanto essa deusa coloca-se jaacute

no iniciacuteo entre o masculino e o feminino uma deidade cujo aspectos bioloacutegicos natildeo satildeo

relevantes uma vez que

Para los griegos antiguos Atenea una de las diosas oliacutempicas maacutes importantes era la representacioacuten de la sabiduriacutea y la destreza En la manera en que se presenta su nacimiento que claros estos aspectos de su caraacuteter164

Aleacutem disso seu nascimento sem a figura materna indica um plano diferencial entre os

deuses entre o comportamento das deidades ancestrais e dos deuses oliacutempicos que iam surgindo

revelando provavelmente uma unificaccedilatildeo entre a cultura matriarcal e uma forma de

pratriarcalismo querendo apossar-se dos atributos da mulher Mas isso natildeo era uma forma de

desprezar o feminino na sua origem e na sua concepccedilatildeo pois Zeus engole Meacutetis para que

tambeacutem ele pudesse usufruir de sua sabedoria e tecirc-la dentro dele De certa forma ele assume a

individualizaccedilatildeo de Meacutetis e assumindo-a assume a paternidadematernidade de Atena em seu

nascimento ele estaacute reiterando que a figura da matildee existe e que tudo proveacutem dela

Diz Loraux a respeito do domiacutenio da matildee

[] a matildee eacute designada pela metoniacutemia da sua matriz ela proacutepria inteira numa parte de si mesma Fazer recuar ao maacuteximo os limites do tempo ou do espaccedilo para melhor encerrar a Deusa na sua lsquometrarsquo (local do materno no corpo das mulheres) tal eacute a operaccedilatildeo que natildeo nos parece possiacutevel escapar Mas como a Deusa eacute o todo porque como pensam os colaboradores os seus filhos natildeo tecircm necessidade de um Urano ciumento para ficarem para sempre presos nas profundezas do corpo materno tudo (Tudo) estaacute neste esconderijo no interior do grande continente feminino165

Atena nasce com a sabedoria materna da mulher pois e com a determinaccedilatildeo e forccedila do

pai mesclando qualidades femininas e masculinas De um lado a jovem virgem (κούρη) de

outro Atena terriacutevel (δειην) a guerreira infatigaacutevel

164 MAUROMATAKI Maria Op cit p 38 165 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 p 52

95

Na origem dos deuses Hesiacuteodo coloca a virgindade como atributo fixo ao lado de outros

que destacam Atena Usa em seu texto a palavra κούρη

O dicionaacuterio do autor francecircs Bailly apresenta para esse leacutexico a definiccedilatildeo ldquojeune fille c

a d jeune viergerdquo portanto uma jovem virgem oposto a έζευγmίνη ou seja ldquofemme marieeacuterdquo

(mulher casada)166

Este mesmo substantivo em Homero no plural Νύmicroφαι καυραι ∆ιός (Il 6 420)167 estaacute

se referindo agraves ninfas e tem um duplo sentido as ninfas filhas de Zeus isto eacute as ninfas virgens e

filhas de Zeus Nesse caso o termo Νύmicroφαι jaacute estaacute relacionado agrave ideacuteia de virgindade pois as

ninfas e as musas eram virgens (κουραι) Compara-se com Μοΰcαι Όλυmicroπιάδεα κοΰραι ∆ιδε

αιγιόχοιο168 traduzido por Torrano169 como ldquoMusas olimpiacuteades virgens170 de Zeus porta-eacutegiderdquo

Encontramos na Teogonia diversas vezes a referecircncia κούρη sempre traduzida por

virgem

No entanto o substantivo κoacuteρη tambeacutem toma a forma de nome proacuteprio referindo-se agrave

jovem filha de Demeacuteter Perseacutefone Nesse sentido a lenda enfatiza a matildee (Demeacuteter) e filha

(Perseacutefone) e o significado eacute o de filha tendo se estratificado como substantivo proacuteprio ( relativo

a Perseacutefone somente)

Em nossa leitura das obras e dos aspectos referentes agraves deusas virgens percebemos que

tambeacutem a palavra παρθένος eacute usada com o sentido de jovem e de virgem171 o adjetivo refere-se

agrave jovem pura e intacta ou a alguma coisa sem maacutecula como por exemplo παρθένιον φρέαρ ou

seja os poccedilos da Virgem perto de Elecircusis por isso capitalizado (senatildeo a leitura de παρθένιον

φρέαρ seria poccedilos de aacutegua liacutempida pura)

166 BAILLY Op cit p121 e 880 167 HOMERO Op cit p 292 (Em inglecircs daughters of Zeus) 168 HESIacuteODO Op cit p 162 v 1022 169 HESIacuteODO Op cit 170 Grifo nosso 171 Verificar entrada do leacutexico em BAILLY Op cit p 1489

96

Em Hesiacuteodo encontramos o uso de παρθένος referindo-se a jovens (provavelmente antes

do casamento) sem qualquer conexatildeo com as deusas de nossa investigaccedilatildeo Dizem os versos

204-205

Coube-lhe172 entre homens e deuses imortais As conversas de moccedilas (παρθένiacuteοvς) os sorrisos os enganos173 205

Aleacutem disso a estaacutetua de Atena em Atenas ldquocunhourdquo o termo partheacutenos como indicativo

de virgem bem como a constelaccedilatildeo de virgem conhecida em grego como PARTHEacuteNOS

Quais seriam os criteacuterios para a escolha de um ou de outro vocaacutebulo Fica aiacute a pergunta

que merece ter uma investigaccedilatildeo profunda dessa ocorrecircncia linguumliacutestica

Hipotetizamos que talvez a escolha do vocaacutebulo possa ter uma variaccedilatildeo devido agrave eacutepoca

oue agrave regiatildeo em que eacute usado

Percebemos que nos Hinos Homeacutericos compostos em periacuteodos posteriores e por

rapsodos diferentes a preferecircncia de emprego eacute a da palavra παρθένος referindo-se a qualquer

das trecircs deusas virgens

62 ndash O caraacuteter da virgindade no Cristianismo

Eacute interessante estabelecer um paralelo entre a mitologia grega e a religiatildeo cristatilde Se para

os gregos os mitos satildeo tidos como lendas que relacionam aos valores de uma eacutepoca o

Cristianismo emerge do pensamento judaico Os textos do Gecircnesis que satildeo tambeacutem simboacutelicos

e representativos de uma cultura tornaram-se poderosos documentos ldquoautecircnticosrdquo detentores de

ldquoverdadesrdquo emblemaacuteticas

Essas supostas verdades retratam ndash assim como os mitos gregos ndash visotildees da existecircncia

humana Elas contecircm como as lendas relaccedilotildees de gecircnero histoacuterias de terror e de piedade e

histoacuterias de amor e de poder

Aleacutem do contexto soacutecio-poliacutetico que orienta tanto o texto grego como o hebraico haacute a

questatildeo linguumliacutestica pois as traduccedilotildees requerem decisotildees interpretativas que como jaacute observamos

em capiacutetulo anterior satildeo motivadas de alguma forma pelas circunstacircncias e pela visatildeo de

172 Referindo-se agrave deusa Afrodite 173 HESIacuteODO Op cit p 117

97

mundo do tradutor Assim muitas vezes uma interpretaccedilatildeo direciona um texto a uma outra

cultura

Inuacutemeras vezes lendo textos em outras liacutenguas dizemos que gostariacuteamos de ldquopensarrdquo

como o falante nativo dessas liacutenguas ou seja de ter introjetada a sua cultura o que jaacute encaminha

para outros entendimentos

Portanto tanto a histoacuteria da ldquovirgindade das deusas gregasrdquo como a histoacuteria da

ldquovirgindade no Cristianismordquo jaacute estatildeo multifacetadas distorcidas e fragmentadas (como diria

Deleuze)

Continuando nosso paralelo proposto no iniacutecio temos dois relatos absolutamente

diferentes da criaccedilatildeo do mundo e dos seres humanos Enquanto os gregos divinizam o espaccedilo e

os homens surgem dentro desse espaccedilo sagrado na sua configuraccedilatildeo a tradiccedilatildeo hebraica coloca

Deus fora do mundo criando-o como espaccedilo para os mortais homens e mulheres Vecirc-se jaacute que

os deuses e os homens gregos habitam o mesmo cosmo em planos diferentes Para os hebreus

Deus estava aleacutem do cosmo o que implica que a humanidade habita outro espaccedilo e estaacute em outro

plano

No Olimpo circulam deuses e deusas e natildeo haacute questotildees motivadas por aspectos de

moralidade O mito eacute moldado atraveacutes de ritos iniciaacuteticos que prevecircem mudanccedilas de etapas e a

aquisiccedilatildeo de novos conhecimentos Haacute diferenccedilas que satildeo determinadas por funccedilotildees bioloacutegicas e

portanto por funccedilotildees sociais e uma das consequumlecircncias eacute o conflito natural as tensotildees que fazem

com que de alguma forma tambeacutem o mito apresente um enfoque binaacuterio

O Cristianismo poreacutem surge com um pensamento miacutetico binaacuterio O homem eacute criado por

Deus mas a etapa da ldquoquedardquo ndash atribuiacuteda agrave mulher ndash eacute inevitaacutevel

Esse pensamento hebraico inicial jaacute confere aos homens que eles sejam privados de

ingenuidade e de acesso a Deus o que lhes daacute consciecircncia discernimento e noccedilatildeo dessa

bipolaridade sexual

Eacute nesse contexto que surge a figura de Cristo tatildeo representativa que em nossos estudos

determinamos a eacutepoca arcaica grega em que se situam os textos de Homero por volta do seacuteculo

VIII antes da era Cristatilde tendo-o como referecircncia

Em Homero a menccedilatildeo da virgindade eacute pouco citada apenas para Atena e para Aacutertemis

sendo posteriormente ressaltada a virgindade de Aacutertemis e de Heacutestia aleacutem da de Atena nos

98

Hinos Homeacutericos Heacutestia era uma deusa silenciosa quase amorfa uma vez que provavelmente

vinculava-se agrave Grande Deusa dos ancestrais o que a fazia perder seus traccedilos definidos

Aleacutem disso dada a flexibilidade dos termos koreacute e partheacutenospodemos ateacute pensar em

uma possibilidade de eles estarem significando as ldquofilhasrdquo de Zeus antes do casamento sem uma

ecircnfase agrave questatildeo da virgindade em si mas do lsquoolharrsquo que conspurga a divindade Aacutertemis vinga-

se do olhar dos mortais Atena protege-se do olhar dos humanos

A proacutepria Afrodite enreda-se na questatildeo do olhar embora em seu caso a mortalidade de

Anquises seja superada pelo ato de procriaccedilatildeo e da descendecircncia dando continuidade ao

nascimento do heroacutei que eacute uma provaacutevel temaacutetica do Hino Homeacuterico a Afrodite V

A virgindade grega passa pois a ser conclamada a partir de Homero e de Hesiacuteodo (que

menciona Atena como κορή em seu nascimento) Os Hinos Homeacutericos jaacute de um periacuteodo

posterior ldquorecuperamrdquo esse aspecto e reorganizam os atributos dessas deusas virgens

enfatizando o epiacuteteto da virgindade e criando a lenda de um juramento de Heacutestia a Zeus para

manter-se virgem sempre Aiacute podemos supor que o mito passava por um periacuteodo de

transformaccedilatildeo acomodando-se a novos tempos fundindo aspectos de outras eacutepocas agrave era

arcaica

Em Homero na Iliacuteada e na Odisseacuteia do ponto de vista conceitual nota-se que o autor

apresenta uma teologia caracteriacutestica de seu tempo e como isso jaacute foi inuacutemeras vezes destacado

por diferentes autores os deuses movem-se ao lado dos humanos e repartem as mesmas

caracteriacutesticas

Dentro da Odisseacuteia e a Iliacuteada vatildeo sendo compostas narrativas dos deuses enredados em

situaccedilotildees que explicitam que assim como os homens eles estatildeo sujeitos a fatos que envolvem a

ldquosexualidaderdquo Eacute o que ouve Odisseu (Ulisses) sobre as aventuras de Afrodite com Ares a que jaacute

nos referimos

Hesiacuteodo remete-se na Teogonia agrave virgem Atena a Tritogecircnia filha de Zeus e de Meacutetis

(vs 886-896) Essa indicaccedilatildeo sobre o nascimento de Atena pode estar vinculada a uma deusa

Liacutebia (Neith) de uma eacutepoca em que as sacerdotisas-virgens (semelhante agraves Amazonas na sua

99

independecircncia e no seu caraacuteter guerreiro) entregavam-se todos os anos a um combate beacutelico Isso

justificaria os atributos de ldquovirgemrdquo ldquoTritogecircniardquo e ldquoguerreirardquo para Atena174

Fizemos essas regressotildees para chegar a uma observaccedilatildeo que consideramos importante

parece que a virgindade das deusas ancestrais estaacute bastante relacionada ao fato de natildeo

dependerem de um homem para terem sua identidade garantida embora pudessem mesmo ter

filhos da mesma forma que as Amazonas que mantinham sua ldquoprole femininardquo como forma de

dar continuidade agravequela ldquoespeacutecierdquo

Esse ponto tambeacutem supomos eacute resgatado pelo Cristianismo quando aponta para o fato

de que a matildee Maria eacute virgem O pai Joseacute teve sua figura obscurecida no Evangelho de Lucas e

tornou-se apenas um ldquosuporterdquo um pai fiacutesico provedor e silencioso na trajetoacuteria do filho na

superfiacutecie terrestre

Em Mateus o auto do nascimento de Jesus eacute significativamente mais curto que em Lucas

contando a histoacuteria da natividade com 31 versiacuteculos enquanto o de Lucas conta com 132

Falando da concepccedilatildeo de Jesus o evangelista refere-se ao dilema de Joseacute que eacute o personagem

principal

Diz Mateus (118-25) que Maria estava desposada com Joseacute e

Antes de coabitarem aconteceu que ela concebeu por virtude do Espiacuterito Santos Joseacute seu esposo que era homem de bem natildeo querendo difama-la rejeitaacute-la secretamente

Em seguida um anjo do senhor lhe diz

ldquoJoseacute filho de Davi natildeo temas receber Maria por esposa pois o que nela foi concebido vem do Espiacuterito Santordquo Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o senhor falou pelo profeta

174 Sobre essa referecircncia verificar a obra de PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) p 1157 Criacutetias no Timeu conta uma histoacuteria narrada a ele por um homem de aproximadamente noventa anos de idade comentando sobre o poeta Soacutelon e sobre sua narrativa (lsquoa veritable traditionrsquo) que ele havia trazido do Egito ldquoIn the Egyptian Delta at the head of which the rive nile divides thereis a certain district which is Called the district of Sais and the great city of the district is also called Sais and is the city from which king Amasis came The citizens have a deity for their foundress she is called in the Egyptian tongue Neith and is asserted by them to be the same whom the Hellenes call Athena They are great lovers of the Athenians and say that they are in some way related to themrdquo ldquoNo delta egiacutepcio do distrito eacute tambeacutem chamada de Sais e eacute a cidade na cabeceira do qual o rio Nilo se divide haacute um certo distrito chamado de distrito de Sais e a grande cidade de onde o Rei Amasis veio Os cidadotildees tecircm uma deidade para sua fundadora ela eacute chamada na liacutengua egiacutepcia de Neith e eacute afirmado por eles que ela eacute a mesma que os helenos chamam de Atena Eles satildeo grandes admiradores dos atenienses e dizem que eles satildeo de alguma forma relacionado a elesrdquo (traduccedilatildeo nossa)

100

Eis que a Virgem conceberaacute e daraacute aacute luz a um filho que se chamaraacute Emanuel (Isaiacuteas 714) que significa Deus conosco

Joseacute acatou as ordens quando acordou

Nessa fala de Mateus a revelaccedilatildeo se daacute atraveacutes de Joseacute

Finalmente Mateus acrescenta

E sem que ele a tivesse conhecido175 ela deu agrave luz o seu filho que recebeu o nome de Jesus176

O tributo ldquovirgemrdquo soacute eacute mencionado atraveacutes das palavras profeacuteticas de Isaiacuteas

O auto do nascimento em Lucas ao contraacuterio enfatiza Maria e coloca-a como receptora

da revelaccedilatildeo da virgindade

Diz o evangelho (Lucas 126-27)

o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiteacuteia Chamada Nazareacute a uma virgem177 com um homem que se chamava Joseacute da casa de Davi e o nome da virgem178 era Maria

Percebe-se a ecircnfase dada agrave Maria e a questatildeo da virgindade colocando Joseacute em segundo

plano

Apoacutes o anjo anunciar-lhe a concepccedilatildeo Maria pergunta ao anjo (134)

ldquoComo se faraacute isso pois natildeo conheccedilo homem179rdquo180

Portanto a questatildeo da virgindade tem um enfoque significativo e diferente em Mateus e

em Lucas para o primeiro evangelista Maria jaacute estava graacutevida ao desposar Joseacute Para o segundo

apesar de ser casada ela natildeo tinha relaccedilotildees maritais com Joseacute A revelaccedilatildeo do primeiro caso

para ser convincente ao marido daacute-se a ele atraveacutes de um sonho No segundo caso a moccedila

casada que se manteacutem ainda em estado de virgindade recebe a noticia do anjo estando desperta

175 Alguns autores colocam ldquonatildeo a conheceu maritalmenterdquo o que remete provavelmente agrave conotaccedilatildeo do texto original 176 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 177 Grifo nosso 178 Grifo nosso 179 Em BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 p 25 encontramos a traduccedilatildeo (de Vera Ribeiro) ldquoComo seraacute isso possiacutevel se sou virgemrdquo 180 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982

101

Em Mateus Maria eacute colocada como uma jovem graacutevida antes do matrimocircnio com a

justificativa de ter sido obra do Espiacuterito Santo Ora segundo dados histoacutericos da eacutepoca muitas

jovens judias eram estupradas por soldados romanos e este poderia ter sido o caso de Maria

Joseacute pertence agrave mesma tribo de Davi acolhe-a e ao filho para que o infante pudesse ser

reconhecido como cidadatildeo judeu filho que era de matildee judia

Parece-nos aqui tambeacutem que a questatildeo da gravidez de Maria deva ter enfoque poliacutetico-

social uma vez que a Igreja Catoacutelica em 649 no Conciacutelio Ecumecircnico do Latratildeo colocou a

virgindade de Maria antes durante e depois do parto de Jesus como dogma

Tentando pensar o conceito de dogma encontramos uma definiccedilatildeo bastante ampla e que

contempla vaacuterios aspectos inclusive o da inquestionabilidade por ter conexatildeo com revelaccedilatildeo

divina Temos pois que

Na Igreja Catoacutelica um dogma eacute uma verdade absoluta definitiva imutaacutevel infaliacutevel inquestionaacutevel e ldquoabsolutamente segura sobre a qual natildeo pode pairar nenhuma duacutevidardquo Uma vez proclamado solenemente ldquonenhum dogma pode serrdquo revogado ou ldquonegado nem mesmo pelo Papa ou por decisatildeo conciliarrdquo Por isso os dogmas constituem a base inalteraacutevel de toda a Doutrina Catoacutelica e qualquer catoacutelico eacute obrigado a aderir aceitar e acreditar nos dogmas de uma maneira irrevogaacutevel181

A virgindade de Maria atesta que Jesus eacute filho do Senhor e o dogma de sua virgindade

reafirma o fato que Jesus eacute o filho primogecircnito e uacutenico de Maria natildeo tendo tido irmatildeos carnais

Quando os textos biacuteblicos se referem aos ldquoirmatildeosrdquo de Jesus podem indicar qualquer parentesco

ou ateacute mesmo ldquoamigordquo em hebraico

Do ponto de vista teoloacutegico a virgindade de Maria revela um comportamento que vai

aleacutem de um dado bioloacutegico e fiacutesico pois ressalta uma decisatildeo pessoal consciente de se dedicar

a servir uma missatildeo Dizendo que aceitava a sua virgindade Maria estava se consagrando agrave

missatildeo que Deus lhe dava

Vemos este aspecto inteiramente semelhante ao das deusas virgens no que concerne

abdicar conscientemente de relaccedilotildees amorosas assumindo o celibato consagrado a uma missatildeo

quer seja como a Grande Deusa como a Grande protetora ou como a grande Amazona todas

tendo em comum o estigma de ldquomatildeesrdquo ldquovirgensrdquo dada a dimensatildeo da funccedilatildeo que ocupam

Inspiradas na missatildeo de Maria as freiras catoacutelicas vatildeo procurar seguir a trilha da

virgindade e da consagraccedilatildeo da vida a Deus

181 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009

102

Quando na enciacuteclica Redemptoris Mater de 1987 o Papa Joatildeo Paulo II refere-se ao dom

da maternidade de Maria podemos remeter-nos ao texto de Loraux182 jaacute por noacutes citado sobre o

poder do domiacutenio da matildee ldquoesse grande continente femininordquo que abarca tudo

Diz parte do item n39 da enciacuteclica Redemptoris Mater

As palavras lsquoEis a serva do Senhorrsquo comprovam o fato de ela desde o principio ter aceitado e entendido a proacutepria maternidade como dom total de si da sua pessoa a serviccedilo dos desiacutegnios salviacuteficos do Altiacutessimo E toda a participaccedilatildeo materna na vida de Jesus Cristo seu filho ela viveu-a ateacute o fim de um modo correspondente agrave sua vocaccedilatildeo para a virgindade183

Eacute interessante observar que a lsquovirgindadersquo eacute vista como vocaccedilatildeo uma vez que implica

reprimir o desejo negando os lsquotrabalhosrsquo da ldquoAacuteurea Afroditerdquo assumindo uma independecircncia

pessoal por um lado e uma dedicaccedilatildeo ilimitada a uma missatildeo por outro lado

No entanto essas consideraccedilotildees que foram colocadas ateacute aqui refletem uma crenccedila

corrente entre os cristatildeos catoacutelicos Mas a questatildeo da virgindade eacute questionada por estudiosos da

aacuterea da religiatildeo e da cultura Assim os professores Borg e Crossan184 investigam a virgindade da

Maria sob diferentes acircngulos

Uma delas eacute a suspeita que Mateus coloca no iniacutecio de sua paraacutebola sobre um presumido

adulteacuterio de Maria Qual teria sido a intenccedilatildeo do evangelista ao fazer tal colocaccedilatildeo se

questionam os autores Em Lucas natildeo haacute nada que diga como Joseacute descobriu ou reagiu diante da

gravidez de Maria e nem mesmo que ele tivesse tido algum problema com esse fato

Dizem os autores

Ainda que Mateus quisesse contar a histoacuteria inteiramente do ponto de vista de Joseacute ndash ao contraacuterio de Lucas que o fez do ponto de vista de Maria ndash ele poderia ter feito o anjo revelar tudo a Joseacute lsquoantesrsquo da concepccedilatildeo de Maria E se quisesse manter-se patriarcal poderia ter feito Joseacute dizer a Maria o que aconteceria com ela Portanto a pergunta persiste Na matriz contextual da tradiccedilatildeo grega romana e judaica de mulheres virginais esteacutereis ou idosas por que apenas Mateus levantou o espectro de uma aduacuteltera e natildeo de uma concepccedilatildeo divina

182 LORAUX Nicole Op cit 183 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 184 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p 123-155

103

Logo haacute uma acusaccedilatildeo anticristatilde de adulteacuterio e a concepccedilatildeo divina parece ser um modo

de encobrir esse adulteacuterio185 Para os autores Mateus baseou-se de maneira deliberada na

concepccedilatildeo de Moiseacutes dentro das versotildees midraacutesticas que eram correntes no seacuteculo I

Estabelecendo um paralelismo com a concepccedilatildeo de Jesus seguindo o esquema ldquodivoacuterciordquo (Joseacute

intenciona deixar Maria) ldquorevelaccedilatildeordquo (o anjo revela a Joseacute a concepccedilatildeo como obra do Espiacuterito

Santo) ldquorecasamentordquo (Joseacute assume Maria e o filho) Seria essa a causa de sua ecircnfase no

controle divino por meio de sonhos e profecias bem como no foco do ponto de vista masculino e

paterno e principalmente para defender o tema que Mateus acreditava ldquoJesus eacute o novo Moiseacutesrdquo

Segundo autores citados Lucas ao contraacuterio natildeo propotildee a virgindade de Maria como

revelaccedilatildeo profeacutetica mas antes como atributo divino estabelecendo mesmo um paralelo entre a

histoacuteria da concepccedilatildeo de Jesus (por uma virgem) e a histoacuteria da concepccedilatildeo de Joatildeo Batista (por

uma esteacuteril) (Lucas 1-2)186 Assim Lucas parece ressaltar o fato de que Jesus natildeo eacute simplesmente

um novo Joatildeo siacutembolo e siacutentese de um Antigo Testamento filho de matildee esteacuteril e idosa Jesus

vem de matildee casta e daacute iniacutecio a uma nova fase da Histoacuteria com ele comeccedila o Novo Testamento

A conclusatildeo desses fatos eacute que parece que havia uma preocupaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica no texto

desses evangelistas Mateus desejava resgatar a figura de Moiseacutes em Cristo e para isso

necessitava colocar o cumprimento das profecias Lucas desejava como se viu colocar Maria e

Cristo como modelos de uma nova era e sua ecircnfase natildeo eacute na profecia que ele nem menciona

mas na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo onde satildeo construiacutedas as figuras de Maria e do filho

Maria eacute pois rsquoabenccediloadarsquo e lsquoobediente agrave becircnccedilatildeo divinardquo e como a primeira cristatilde

perfeita ela eacute tambeacutem lsquovirgemrsquo quer dizer divina de acordo com a tradiccedilatildeo judaica e biacuteblica

(referindo-se aos casos de pais idosos e esteacutereis no Antigo Testamento e por analogia

introduzindo uma outra forma no Novo Testamento)

Comparando-se com Afrodite mesmo em sendo deusa sua concepccedilatildeo com Anquises ou

com Ares natildeo tem a tradiccedilatildeo da virgindade Apesar de ser matildee de heroacutei Eneacuteias considerado o

fundador de Roma ou de outros deuses como Eros um deus que se funde com as caracteriacutesticas

185 Borg e Crossan inspiraram-se em um texto de Oriacutegenes do seacuteculo III polemizando a obra do anticristatildeo Celsus do final do seacuteculo II relatando sobre o nascimento de Jesus e spbre a ldquofalsardquo virgindade de Maria a fim de aplacar os rumores sobre as circunstacircncias verdadeiras da presenccedila de soldados romanos que haviam vindo para sufocar uma revolta em Seacuteforis perto de Nazareacute proacuteximo da eacutepoca em que Jesus nasceu Haacute ateacute mesmo a menccedilatildeo do soldado como Panthera como trocadilho sarcaacutestico do termo grego patheacuternos a lsquovirgemrsquo 186 Biacuteblia Sagrada Op cit p 1345-1348

104

da matildee o intercurso sexual divino se dava de forma fiacutesica a tal ponto que Afrodite precisou

ldquopurificar-serdquo apoacutes sua relaccedilatildeo com Ares

Poreacutem o Cristianismo introduziu a virgindade nas relaccedilotildees humanas para que pudesse ser

exaltada a concepccedilatildeo divina e virginal de Jesus acima de todas as demais ndash especialmente sobre a

de Ceacutesar Augusto considerado ldquofilho de Apolordquo

Citando ainda Borg e Crossan eles dizem

Seja como for a virgindade a esterilidade a longevidade ou qualquer outra coisa que possamos imaginar satildeo simples maneiras de enfatizar sublinhar e ldquoprovarrdquo que a concepccedilatildeo foi divina Eacute essa concepccedilatildeo divina que importa Eacute a teologia do filho e natildeo a biologia da matildee que estaacute em jogo187

187 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p151

105

CONCLUSAtildeO OU INDICACcedilAtildeO DE SUPOSICcedilOtildeES

Uma primeira conclusatildeo a que se chega eacute que a genealogia parece ser um dado

importante e relevante entre os povos da Antiguidade Por isso o Evangelho de Mateus antes de

citar a concepccedilatildeo e o nascimento de Cristo coloca catorze geraccedilotildees que o precederam sem que

se saiba como possa ter sido essa informaccedilatildeo dos protocolos dada a Mateus A ecircnfase da

genealogia tambeacutem era comum entre os gregos todos os deuses incluindo as deusas virgens

tecircm sua genealogia nomeada Atena nasce da cabeccedila do pai supremo (Zeus) e foi gerada por uma

matildee com caracteriacutesticas astutas (Meacutetis) mas como protetora de Atenas haacute indiacutecios de que se

vinculava a uma deusa da Liacutebia e foi a filha de Zeus o que jaacute mostra sua ancestralidade

Aacutertemis tinha como pais Zeus e Leto e como Afrodite era de natureza uracircnica Aacutertemis

nasce com o seu duplo o irmatildeo Apolo tendo atributos comuns a ele Portanto Atena e Aacutertemis

ficam entre o masculino e o feminino distinguindo-se entre aspectos de estrateacutegia e de

belicosidade proacuteprios do masculino na conquista na independecircncia e no poder Por outro lado

caracterizam-se pela proteccedilatildeo e o acompanhamento ldquomaternosrdquo zelando para a soluccedilatildeo de

dificuldades e para os encaminhamentos de etapas da vida

Diferentemente de Aacutertemis e Atena Heacutestia eacute irmatilde de Zeus filha de Reacuteia e de Crono e foi

libertada do ventre de Crono por quem tinha sido engolida a partir do momento em que Zeus

com ldquoseu furor agarra as armas o trovatildeo o relacircmpago e o raio flamante e fere-o188 saltando do

Olimpordquo189

Todas as deidades quer sejam elas miacuteticas ou cristatildes tecircm o relato de um elenco

protocolar da genealogia como forma de apresentar a ligaccedilatildeo com um sistema simboacutelico que

garanta a coerecircncia interna com um princiacutepio organizador no sistema miacutetico ou com um

principio criador (o Verbo) no sistema cristatildeo

Tanto o sistema miacutetico como o sistema cristatildeo reproduzem o plano de uma vontade

divina O Cosmo vem do Caos (entidade primordial) mas soacute se organiza a partir da vitoacuteria de

Zeus que eacute colocado no centro do universo como deus supremo rodeado dos outros deuses que

188 Refere-se a Crono 189 HESIacuteODO Op cit p 153 vs 853-855

106

representam diferentes aspectos desse cosmo Com a morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo reorganiza-

se um novo sistema religioso tendo iniacutecio o Novo Testamento

Assim a genealogia das deusas virgens se constitui a partir da organizaccedilatildeo do cosmo

com Zeus e a genealogia cristatilde do Novo Testamento se organiza com Cristo Com ambos

comeccedila uma nova era

A genealogia dos deuses eacute importante para que seja resgatado nas narrativas feitas um

sentido histoacuterico que se ajuste agraves eacutepocas e agraves influecircncias soacutecio-poliacuteticas Nesse contexto

ldquoperambulamrdquo as divindades dominantes

Mas atraacutes da ldquogenealogia aparenterdquo existe uma genealogia anterior a que se apoacuteia em

diferentes raccedilas em diferentes tribos em diferentes periacuteodos histoacutericos em diferentes ideologias

Essas concepccedilotildees foram expressas nos mitos que misturavam temas e eacutepocas que tinham

versotildees de acordo com ldquoresquiacuteciosrdquo de diferentes vozes e que por isso alguns autores

denominaram de ldquosincreacuteticasrdquo

Isso acontece com muitos deuses e deusas e nosso objeto de estudo as deusas virgens

tambeacutem tem um viacutenculo com lendas e histoacuterias da Greacutecia marcadas por uma fertilidade agriacutecola

e por atividades guerreiras

Essa preocupaccedilatildeo de estabelecer ligaccedilotildees com um passado como base de evoluccedilotildees

sucessivas jaacute estava presente em alguns autores da eacutepoca arcaica e de acordo com Lovejoy e

Boas190 Hesiacuteodo foi considerado ldquoo primeiro testemunho do que chamaram de lsquoprimitivismo

cronoloacutegicorsquordquo

Por isso decifrar ldquoos mitosrdquo das deusas virgens e reconhecer o estatuto dessa virgindade

a elas atribuiacuteda parece ser possiacutevel apenas atraveacutes de suposiccedilotildees Interligando pois a figura de

Heacutestia a outras narrativas que compotildeem um mesmo perfil semacircntico percebemos que sua

presenccedila estaacute sempre vinculada ao fogo sagrado e portanto a um elemento da natureza Sua

representaccedilatildeo eacute tatildeo ldquoabstratardquo e incorpoacuterea que eacute difiacutecil determinar-lhe atributos Teria Heacutestia

pertencido a uma eacutepoca mais como principio abstrato do que como divindade com traccedilos

femininos distintos Teria Heacutestia alguma ligaccedilatildeo com Agni deus do fogo na Iacutendia Por que

190 Cf LE GOFF Jacques Op cit p 294

107

Em estreita conivecircncia com Heacutestia Zeus tem o controle tanto sobre a lareira privada de cada casa ndash no centro fixo que constitui como que o umbigo no qual se enraiacuteza a morada familiar ndash quando sobre a lareira comum da cidade no seio da aglomeraccedilatildeo na Heacutetia Koineacute onde velam os magistrados priacutetanes191

Teria sua virgindade sido ldquocriadardquo a partir da falta de histoacuterias que envolvessem Heacutestia

em questotildees amorosas

Por que soacute a partir dos Hinos Homeacuterico ndash em especial o Hino Homeacuterico V a Afrodite ndash

Heacutestia eacute colocada explicitamente como virgem (parthenos) fazendo um pedido ao pai para que

pudesse manter-se virgem e natildeo se casar

Ainda cavando pistas de genealogias anteriores das deusas virgens antes de levantarmos

nossas hipoacuteteses sobre a virgindade e o epiacuteteto lsquovirgemrsquo das deusas e de Maria procuramos

levantar questotildees sobre Atena Seu surgimento no mundo eacute diferente do das outras deusas

virgens pois nasce da cabeccedila do pai o que lhe garante um jeito diferente de Ser Duas outras

consideraccedilotildees sobre Atena que jaacute foram exploradas ao decorrer de nossas reflexotildees satildeo

colocadas aqui a tiacutetulo de recordaccedilatildeo primeiro Atena eacute a uacutenica deusa considerada

ontologicamente virgem pois ao nascer (veja-se v 895 em Hesiacuteodo) jaacute tem sua virgindade

garantida segundo a identificaccedilatildeo feita por Platatildeo bem como por Apolocircnio de Rodes de que

Atena seria procedente da Liacutebia Platatildeo a coloca como sendo a deusa Neith de eacutepoca anterior agrave

arcaica em que a paternidade natildeo era reconhecida um periacuteodo matriarcal em que Neith tinha

suas sacerdotisas-virgens que se entregavam todos os anos a um combate armado para fins de

conquistar a posiccedilatildeo de sacerdotisa-superior Portanto a virgindade de Atena a κoύρη de

nascimento parece ser colocada desde a sua origem quer se considere a Teogonia grega quer se

considere a versatildeo de sua genealogia Liacutebia

Quanto a Aacutertemis podemos hipotetizaacute-la como sendo ldquoderivadardquo da histoacuteria indo-

europeacuteia uma deusa a quem se vinculam as Amazonas demarcando o espaccedilo entre o mundo

primitivo e a civilizaccedilatildeo192

Da perspectiva genealoacutegica tanto em Mateus como em Lucas a virgindade de Maria eacute

preservada Diz Lucas 323193

191 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 192 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 24 193 BIBLIA SAGRADA p 1350

108

ldquoQuando Jesus comeccedilou o seu ministeacuterio tinha cerca de trinta anos e era tido como filho de Joseacute filho de Helirdquo

Em Mateus 116194 temos sobre a genealogia de Jesus

ldquoJacoacute gerou Joseacute esposo de Maria da qual nasceu Jesus que eacute chamado Cristordquo

Embora as genealogias sejam divergentes em relaccedilatildeo a Joseacute (o que atesta um problema de

reconhecimento de paternidade) haacute uma forma de representaccedilatildeo linguumliacutestica que preserva a

virgindade de Maria pois as descriccedilotildees natildeo permitem a suposiccedilatildeo de que Joseacute possa ser o pai

bioloacutegico de Jesus Em Lucas ldquoera tido comordquo portanto o que equivale a dizer que natildeo era em

Mateus ldquoda qual nasceu Jesusrdquo referindo-se a Maria e natildeo a Joseacute

Chegamos pois ao momento de ldquoenfrentarmosrdquo a virgindade definindo-a por traccedilos se

natildeo por conceitos

A primeira constataccedilatildeo que se chegou eacute que a ideacuteia de ldquocastidaderdquo eacute mais tardia e que a

virgindade no iniacutecio dos tempos vincula-se a uma forma de poder

Resgatando uma definiccedilatildeo relacionada ao poder quando jaacute se estava por volta da eacutepoca

217 aC narra a lenda que Claacuteudia Quinta sacerdotisa de Vesta ia sofrer processo que

terminaria com uma morte ritual o que significava que ia ser sepultada viva Claacuteudia ia ser

punida por ter infringido seu voto de virgindade ndash o que significava a missatildeo para a qual tinha

sido designada No entanto nessa mesma eacutepoca Aniacutebal devastava a Itaacutelia e como narra Cacircmara

Cascudo

A sibila de Cumes aconselhou a vinda da pedra negra de Pessinonte na Aacutesia menor tombada do ceacuteu e considerada como a viva encarnaccedilatildeo de Cibele O barco que trouxe a pedra negra encalhou no Rio Tibre e os auguacuterios anunciaram que uma virgem arrastaria a embarcaccedilatildeo da lama e a poria a nado195

Eacute ai que entra Claacuteudia Quinta que diante de todo o povo romano invoca a deusa Cibele

e amarrando o rostro do navio com o seu cinto de Vestal consegue puxaacute-lo facilmente Tendo

cumprido essa missatildeo de ldquocaraacuteter puacuteblicordquo Claacuteudia daacute a prova de sua virgindade

Assim Cacircmara Cascudo inicia seu capiacutetulo sobre virgindade dizendo

A virgindade explica as estoacuterias populares e na tradiccedilatildeo maacutegica a forccedila irresistiacutevel e os atos sobre-humanos de valentia196

194 Idem p 1285 195 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Supersticcedilatildeo no Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia 1985 p 286 196 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 286

109

Cacircmara Cascudo narra vaacuterias supersticcedilotildees e crenccedilas em que o poder da virgem cura

regenera recupera

Como Heacutestia soacute uma virgem podia ter a obrigaccedilatildeo de acender e guardar o fogo sagrado

da vestais em Roma

Cacircmara Cascudo cita vaacuterias caracteriacutesticas das deusas virgens que vimos ao longo de

nosso trabalho a forccedila fiacutesica a resistecircncia ao combate a ausecircncia de medo a solicitude o

cumprimento de obrigaccedilotildees a valentia inexpugnaacutevel a alegria expressa em cantos danccedilas e

urros como ldquoemanaccedilotildees da virgindaderdquo

Ora nesse sentido coloca-se a deusa Afrodite que se posicionou frente a frente com as

deusas ditas virgens nos Hinos Homeacutericos Para nossa surpresa tambeacutem Cacircmara Cascudo

apresenta uma lista reveladora de deusas virgens e laacute se encontra a uracircnia natildeo Aacutertemis mas

Afrodite Vejamos o que diz Cacircmara Cascudo pois esse aspecto relaciona-se com a hipoacutetese que

tentamos levantar

As virgens criadoras tiveram o culto mais profundo e natural Era o poder para a Vida e sempre o potencial mais puro Nari dos indus Muta-Iacutesis dos egiacutepcios Atar dos aacuterabes Astoret dos feniacutecios Afrodite-Anadiocircmene dos gregos Vesta dos romanos Luonatar dos finlandenses Herta dos germanos Dea dos gauleses Iza dos japoneses Ira dos oceacircnicos foram reverenciadas nessa invocaccedilatildeo espontacircnea e poderosa197

Dessa forma estavam relacionadas a pureza ndash que podia ser conseguida atraveacutes de ritos

de purificaccedilatildeo ndash e a ldquoenergiardquo A tradiccedilatildeo das virgens prevecirc uma forccedila e um poder a tal ponto

que ldquoa Virgo Potens irresistiacutevel teraacute a maior aacuterea de influencia religiosa que qualquer elemento

temaacutetico no mundo do passado histoacutericordquo198

A virgindade assim concebida eacute dom eacute poder e eacute forccedila sobrenatural

Na Greacutecia antiga isso nos faz pensar que o celibato era uma forma de preservar a

autonomia e portanto a forccedila e o poder das divindades para a missatildeo que deviam desempenhar

no cosmo Assim sendo nesse universo grego apenas Hera comparada agraves deusas Aacutertemis

Atena Heacutestia e Afrodite natildeo possuiacutea autonomia ldquoDesgastava-serdquo com os afazeres familiares

pois submissa ao marido Zeus estava sempre vigilante sobre suas conquistas amorosas e todas

as suas lendas de uma forma ou de outra vinculam-na ao masculino isto eacute a Zeus

197 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287 198 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287

110

Afrodite apesar de ser a deusa que promove a ldquophiliardquo e portanto natildeo ser virgem

tambeacutem tem autonomia move-se entre deuses e homens promovendo sua forccedila criadora

Mesmo seu casamento natildeo tem caraacuteter de submissatildeo ao masculino pois foi um casamento

arranjado por Hera ndash aquela que se dedica aos arranjos familiares ndash e aleacutem do mais aquele que eacute

tido como esposo eacute coxo e ldquosem importacircnciardquo dada a ausecircncia de valentia e brilho nas histoacuterias

em que Hefesto participa Ao contraacuterio seus atos satildeo secundaacuterios e pouco relevantes

Diferentemente de Hera Afrodite ndash virgem ou natildeo ndash tem uma importacircncia em si mesma

aos moldes de Aacutertemis Atena e Heacutestia

Aleacutem disso tanto as deusas virgens como Afrodite tecircm uma missatildeo no cosmo fora do

espaccedilo da casa Como diz Hesiacuteodo ldquoAtena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevelrdquo199

Referindo-se a Afrodite

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice200

Aacutertemis eacute tida como a ldquoverte-flechasrdquo ldquoLeto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechasrdquo201

O que queremos destacar eacute que aleacutem de uma missatildeo que exige uma certa autonomia das

deusas parece tambeacutem que o poder da virgindade eacute uma forma de preservar divindades de um

periacuteodo matriarcal quando ainda natildeo se destacava e natildeo se nomeava o masculino

Assim o celibato preserva a autonomia a liberdade de movimentos e incorpora

caracteriacutesticas de uma eacutepoca das grandes deusas

Nesse sentido a virgindade no Cristianismo pode ter um propoacutesito semelhante pois parte

da valorizaccedilatildeo do feminino e do celibato e como consequumlecircncia o sexo passa a ter uma

conotaccedilatildeo negativa no mundo judaico-cristatildeo o que natildeo havia ateacute entatildeo na tradiccedilatildeo judaica

Sobre esse assunto haacute uma beliacutessima discussatildeo encaminhada por Spong Diz ele entre

outros trechos sobre o aspecto da sexualidade

The Bible in general and the birth narratives in particular became a subtle unconscious source for the continued oppression of women The cultural assumption was made that the only proper way for a moral woman to conduct herself was to remain safely inside

199 HESIacuteODO Op cit p 157 v 925 200 HESIacuteODO Op cit p 117 vs 203-206 201 HESIacuteODO Op cit p 157 v 918

111

the sexually profective barriers provided first by her father and second by her husband202

Um aspecto positivo no Cristianismo ao proclamar a virgindade de Maria foi o fato de

nomear a matildee de colocaacute-la dentro da importacircncia da histoacuteria de nascimento da histoacuteria da

humanidade

A partir do retrato elaborado de Maria como matildee virgem tambeacutem hipotetizamos um

outro ponto de que o sofrimento eacute de alguma forma inerente ao aspecto da virgindade Se por

uma lado daacute autonomia em relaccedilatildeo agrave presenccedila de domiacutenio de um esposo de outro prevecirc uma

renuacutencia pessoal aos envolvimentos domeacutesticos frente a uma missatildeo mais ampla quase sempre

de ordem puacuteblica e que requer uma doaccedilatildeo Entatildeo perguntamos isso natildeo equivalia a ldquotrocarrdquo a

submissatildeo do marido pela submissatildeo a uma divindade Natildeo seria deixar de assumir o

compromisso terreno para assumir o sagrado

No Hino Homeacuterico a Afrodite Heacutestia submete-se ao pai Zeus solicitando-lhe permissatildeo

para natildeo se casar e manter-se virgem

Na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo em Lucas Maria submete-se aos desiacutegnios de Deus usando o termo

ldquoservardquo na sua fala de concordacircncia

Eacute preciso uma resignaccedilatildeo um poder e forccedila para manter o equiliacutebrio do Ser com o

desempenho de uma missatildeo Por isso vimos Aacutertemis sofrendo com o parto difiacutecil da matildee o que

coloca uma temeridade em um aspecto do feminino aiacute embora seja uma funccedilatildeo criadora

semelhante agrave da natureza Por isso reza a lenda ela passa a se dedicar agrave causa da mulher como

orientadora nos casamentos e protetora nos partos A mesma Aacutertemis afugenta os pretendentes

deuses e mortais para natildeo deixar que a seduccedilatildeo possa interferir em sua natureza de mulherdeusa

liberta ndash entre dois mundos entre duas culturas ndash no cumprimento da funccedilatildeo que lhe foi

atribuiacuteda a de ldquoverte-flechasrdquo

Atena eacute marcada pelo sofrimento de sua chegada sem matildee mas inaugura uma ldquogeraccedilatildeordquo

nova em que o pai recebe os filhos e os aceita Atena nasce virgem pois sua virgindade eacute

predeterminada bem como sua funccedilatildeo que requer poder e renuacutencia do aspecto feminino

202 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 A Biacuteblia em geral e as narrativas de nascimento em particular se tornaram uma fonte sutil inconsciente de opressatildeo contiacutenua das mulheres Foi feita a conjetura cultural de que o uacutenico meio adequado para uma mulher de moral se conduzir era permanecer segura dentro das barreiras protetoras da sexualidade fornecidas primeiro pelo pai e segundo pelo marido (traduccedilatildeo nossa)

112

particular Ela eacute assumida como virgem e guerreira Sua virgindade eacute colocada como fato seja

como representante de Atenas descendente de Zeus seja como descendente da deusa virgem

Neith da Liacutebia

Heacutestia tem uma missatildeo civilizatoacuteria de grande espectro cuida de cada casa conhece os

dramas da convivecircncia domeacutestica das relaccedilotildees de gecircneros da sociedade grega da poliacutetica que

circunda a pira puacuteblica Como poderia ao mesmo tempo essa grande deusa incorpoacuterea

matriarcal cuidar de esposo de filhos e de sua proacutepria casa

Afrodite tem uma missatildeo que tambeacutem transcende o particular o que nos fez pensar que

talvez dentro da histoacuteria da sociedade patriarcal apenas tenham autonomia e independecircncia em

sua missatildeo as virgens (as deusas gregas com funccedilotildees diferenciadas as vestais na sua funccedilatildeo de

guardiatildes do fogo sagrado agrave maneira de Heacutestia Maria na sua missatildeo Cristatilde as freiras em sua

missatildeo teoloacutegica) e as mulheres que se dedicaram ao amor sem deixar se submeter pelo

domiacutenio do masculino (Afrodite livre no seu agir independente na sua conduta (embora tivesse

um marido) as vestais prostitutas sagradas as concubinas as prostitutas profissionais)

Apesar de a virgindade conter especificidades e a tributos positivos Spong argumenta

que na histoacuteria do Cristianismo ela pode ser vista como um constructo ldquomachistardquo originaacuterio do

patriarcalismo Segundo o argumento que defende a mulher que aparecia de forma marcante ao

lado de Jesus era Maria Madalena

No entanto a tradiccedilatildeo apagou sua figura atuante e colocou-a com um caraacuteter

ldquoameaccediladorrdquo de prostituta dado o seu caraacuteter liberto condenada pelo pecado Essa mesma

tradiccedilatildeo recuperou a imagem de Maria que aparecia palidamente nos primeiros evangelhos Sua

expressatildeo de poder comeccedilou a ganhar impulso a partir do segundo seacuteculo da era cristatilde

Teria sido a categoria de virgindade moldada a partir dos gregos pagatildeos Teria o

Cristianismo se apossado dessa ideacuteia colocando a lsquovirgemrsquo como a lsquomulher idealrsquo para servir aos

propoacutesitos de um Pai divino

Parece que a maternidade foi tida como uma forma de puniccedilatildeo desde o iniacutecio da criaccedilatildeo

do mundo (veja o que se colocou em relaccedilatildeo a Aacutertemis) pelas tensotildees que subjazem ao ato de

reproduccedilatildeo atraveacutes do ldquoconhecimentordquo que Adatildeo tem de Eva Vejamos como coloca Spong

113

At the time of the fall when according to the literal text sin entered Godrsquos good creation Eve too was a virgin Adam did not ldquoKnowrdquo203 her until they were both banished form the Garden of Eden (Gen41) Childbirth the result of Adamrsquos ldquoknowingrdquo was part of Eversquos punishment

(Gen316) 204

Parece-nos pois que a ideacuteia de virgindade foi elaborada como um constructo social do

mundo pagatildeo procurando preservar o poder feminino frente a uma missatildeo ampla e de domiacutenio

do coletivo A proacutepria Afrodite em seu envolvimento sexual com Anquises exprimiu seu

sentimento de culpa e de vulnerabilidade diante das questotildees amorosas explicitando a

consequumlecircncia desse ato na produccedilatildeo de um filho

A forma que a Igreja encontrou para redimir os pecados foi o batismo inspirado tambeacutem

nos rituais gregos de purificaccedilatildeo como jaacute foi referido anteriormente

Finalmente antes de colocarmos um elenco de questotildees investigativas sobre a virgindade

ocorreu-nos refletir sobre um extremo da virgindade feminina que passa a ser significada na sua

lsquoabstraccedilatildeorsquo Assim em se estabelecendo um paralelo entre Heacutestia e Maria percebe-se que antes

dos Hinos Homeacutericos que satildeo produccedilotildees posteriores a Homero e a Hesiacuteodo bem como na

iconografia da eacutepoca a deusa Heacutestia eacute silenciosa e incorpoacuterea quase irreal como Maria

Poucos dados textuais existem a respeito de Heacutestia Entretanto muito se tem investigado

e muitas suposiccedilotildees tecircm sido escritas a seu respeito

Maria tambeacutem parece natildeo ter sido uma mulher real sendo a histoacuteria de sua vida

encoberta de silecircncio Como coloca Spong bispo de Newmark

ldquoA view of history however reveals that the price of Maryrsquos bodily assumption was the sacrifice of her sexual identity She entered the realm of the gods as one deprived of her humanity She was a virgin bride a virgin mother a perpetual virgin and a post partum virgin She was immaculately conceived at birth and bodily assumed at the moment of death Clearly she was not a real woman rdquo205

A palavra grega lsquopathernosrsquo que indica em um primeiro sentido lsquomoccedila antes do

casamentorsquo jaacute deixa evidente o significado de natildeo-comprometimento com um homem Assim a 203 O verbo ldquoconhecerrdquo em hebraico pode significar lsquopenetrarrsquo penetrar no outro para conhecer 204 SPONG John Shelby op cit p 210 ldquoNo tempo da queda quando de acordo com o texto literal o pecado entrou na admiraacutevel criaccedilatildeo de Deus Eva tambeacutem era uma virgem Adatildeo nada ldquoconheciardquo ateacute ambos serem banidos do Jardim do Eacuteden (Gen41) O parto resultado do ldquoconhecimentordquo de Adatildeo foi parte da puniccedilatildeo de Eva (Gen316)rdquo (traduccedilatildeo nossa) 205 SPONG John Shelby op cit p 218 ldquoUma visatildeo da histoacuteria entretanto revela que o preccedilo da assunccedilatildeo do corpo de Maria foi o sacrifiacutecio de sua identidade sexual Ela entrou para o reino dos deuses como algueacutem privado de sua humanidade Ela foi um noiva virgem uma matildee virgem uma virgem perpeacutetua e uma virgem poacutes-parto Ela foi concebida se maacutecula pelo nascimento e corporeamente elevada na hora da morte Claramente ela natildeo era uma mulher realrdquo

114

virgindade deve por extensatildeo garantir o sentido de natildeo-ligaccedilatildeo a um indiviacuteduo por viacutenculos

contratuais como era tido o casamento na Greacutecia arcaica Daiacute a moccedila antes do casamento

virgem

Segue abaixo o protocolo de nossas perguntas

bull Representa a virgindade uma forma de preservar a figura da deusamulher autocircnoma

como continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo matriarcal da cultura baseada nos mitos da

fecundidade

bull Esse aspecto de virgindade confere agrave deusamulher um poder de dedicaccedilatildeo a uma missatildeo

que tem um caraacuteter civilizador

bull Por que o Cristianismo preservou a figura da Virgem na figura da matildee

bull Qual o apelo agrave afetividade lsquophiliarsquo que as deusasmulheres virgens podem manifestar em

seu discurso pela histoacuteria Que tipo de imagem de si mesmo o homem grego pode ter a

partir do olhar das deusas virgens

E aqui entra a nossa conclusatildeo maior a questatildeo amorosa conduz a Afrodite e ao poder do

desejo Sem ela a virgindade natildeo teria expressatildeo

A questatildeo da virgindade e das deusas virgens soacute eacute impactante frente agrave forccedila de recusa a

Afrodite bem como ao compromisso com o masculino

Ficam aiacute propostas para novas discussotildees Embora o misteacuterio das deusas virgens deva

persistir porque faz parte da maneira de se conceber o divino

115

REFEREcircNCIAS

AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro (Ed USP) 2 ed 1968 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par Seacutechant L et Chantraine P Paris Hachette 2000 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer (1736) Reimpressatildeo reprograacutefica Hildesheim Georg Olms 1976 BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed34 1997 DETIENNE Marcel Os Gregos e NoacutesUma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007

116

EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 disponiacutevel em lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt Acesso em 29jun2009 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 FOUCAULT M A arqueologia do Saber Rio de Janeiro forense Universitaacuteria 5 ed 1977 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 FREUD Sigmund (1931) Sexualidade Feminina In Obras completas Estandart brasileira Trad Sob a direccedilatildeo de Jayme Salomatildeo Rio de Janeiro imago 1996 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004 GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Feminino Campinas Editora Aliacutenea 2008 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 HOMER The Iliad v 1 e 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 HOMER The Odyssey Translated by E V Rieu London Penguin Books 2003 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004

117

LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 LISSARRAGUE Franccedilois A figuraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 MAVROMATAKI Maria Mitologia Griega Atenas Ediciones Xaitali 1997 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 RATTO Stephania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

118

SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001

119

BIBLIOGRAFIA

APOLLODORUS The library v 1 e 2 Cambridge Harvard University Press 1990 ARISTOacuteTELES Poeacutetica 2ed Traduccedilatildeo de Eudoro de Souza Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1993 BACHOFEN Johann Jakob Mitologiacutea Arcaica y Derecho materno Edicioacuten de Andreacutes Ortiz-Oseacutes Barcelona Editorial Anthropos 1988 BEN VENISTE Eacutemile Se vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes vol 1 et 2 Paris Les Eacuteditions de Minuit 1969 DETIENNE Marcel Comparar o incomparaacutevel Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2004 DETIENNE Marcel VERNANT Jean-Pierre Les ruses de lrsquointelligence La Megravetis des Grecs France Flammarion 1974 DUMEacuteZIL Georges Lrsquooubli de lrsquohomme et lrsquohonneur des dieux Paris Eacuteditions Gallimard 1985 DUMEacuteZIL Georges Mito y epopeya v III ndash Historias Romanas Meacutexico Fondo de Cultura econoacutemica 1996 GRANT Robert M Augustus to Constantine The emergence of Christianity in the Roman World New York Barnes amp Noble 1996 ROSE H J A Handbook of Greek Mythology London Methuen amp Co Ltd 1985 SISSA Giulia Greek Virginity Translated by Arthur Goldhammer Cambridge Harvard University Press 1990 THOMAS Rosalind Letramento e oralidade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 VEYNE Paul Acreditaram os gregos nos mitos Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

121

ANEXO A ndash Hinos Homeacutericos ndash Afrodite

V

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗ

Μοΰσά microοι έννέπε εργα πολυχρύσσυ Άφροδίτης Κύπριδος ήτε θεοΐσιν έπί γλυκύν ϊmicroερον ώρσε καί τrsquo έδαmicroάσ σ ατο φΰλα καταθνητων άνθρφπων οίωνούς τε διιπετέας καί θηρία πάντα ήγέν οσ΄ήπειροσ πολλά τρέΦει ήδ΄ οσα πόντος 5 πασιν δrsquo έργα microέmicroηλεν έυστεφάνου Κυθερείης

Τρισσάς δrsquo ού δύναται πεπιθεΐν φρένας ούδrsquo άπατησαι΄

κούρην τrsquo αίγιόχοιο ∆ιός γλαυκώπιν Άθήνην΄ ού γάρ οί εϋαδεν έργα πολυχρύσου Άφροδίτης άλλrsquo αρα οί πόλεmicroοί τε άδον και εργον ΄΄Αρηος 10 ύσmicroΐναί τε microάχαι τε καί άγλαά έργrsquo άλεγύνειν πρώτη τέκτονας ανδρας έπιχθονίους έδίδαξε ποιησαι σατίνας τε και αρmicroατα ποικίλα χαλκω η δέ τε παρδενικας άπαλόχροας έν microεγάροισιν άγλαά εργrsquoέδίδαξεν έπι φρεσι θεΐσα έκάστη 15 ούδέ ποτrsquo Άρτέmicroιδα χρυσηλάκατον κελαδεινην δάmicroναται έν φιλότητι φιλοmicromicroειδης Άφροδίτη και γαρ τη αδε τόξα καί οΰρεσι θηρας έναίρειν φόρmicroιγγες τε χοροί τε διαπρύσιοί τrsquo όλολυγαί αλσεά τε σκιόεντα δικαίων τε πτόλις άνδρων 20 ούδε microεν αίδοίη κούρη αδε εργrsquo Άφροδίτης Ίστίη ην πρώτην τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης αΰτις δrsquo όπλοτάτην βουλη ∆ιός αίγιόχοιο πότνιαν ην έmicroνωντο Ποσειδάων καί Άπόλλων΄ η δε microαγrsquo ούκ εθελεν άλλά στερεως άπέειπεν΄ 25 ωmicroοσε δέ microέγαν ο δη τετελεσmicroένος έστίν

PARA AFRODITE206

Musa fale-me dos trabalhos da aacuteurea Afrodite a Ceacutepria que incita o doce desejo nos deuses e que subjuga as raccedilas dos homens mortais e os paacutessaros que voam no ceacuteu e todas as feras e tantas quantas a terra nutre e quantas tambeacutem o

[mar 5 a todos concernem os trabalhos da bem-coroada

[Citereacuteia Mas ela natildeo pode persuadir nem seduzir trecircs

[coraccedilotildees Primeiro a filha de Zeus que segura a eacutegide a

[glaucoacutepi da Atena pois ela natildeo se compraz nos trabalhos da aacuteurea

[Afrodite mas ama as guerra e os trabalhos de Ares 10 os combates e as batalhas e preparar esplecircndidos

[trabalhos beacutelicos Primeiramente ela ensina os artesatildeos da terra a fazer carros de guerra e vaacuterios carros ornados

[com bronze ela tambeacutem ensina as jovens virgens delicadas nas

[casas os esplecircndidos trabalhos e inspira cada uma delas15 e nem a clamorosa Aacutertemis das flecha de ouro a maacutevel Afrodite subjuga no amor pois a ela compraz arcos e flechas e matar feras nos

[montes as liras e os coros e os gritos agudos penetrantes os bosques ensombreados e as cidades dos homens

[civilizados 20 e nem agrave pura virgem Heacutestia compraz os trabalhos de Afrodite a qual foi a primeira nascida de Crono

206 Os hinos a Afrodite V e VI foram traduzidos com um enfoque diferente dos Hinos Homeacutericos dedicados a Aacutertemis Atena e Heacutestia as deusas virgens e nosso objeto de estudo Nestes hinos tivemos preocupaccedilatildeo com a mensagem do rapsodo explicitando caracteriacutesticas da Deusa no que diz respeito agrave sua chegada sobre o mar aos ornamentos que as horas lhe colocaram agrave beleza que encantou os imortais ao dom cativante que a deusa Afrodite emana subjugando deuses imortais e homens mortais Poreacutem resistem a esse poder de desejo ofuscante e opotildee-se a ele um outro tipo de poder o da virgindade As descriccedilotildees nesses hinos satildeo elaboradas como uma tela pintada com detalhes lsquofiletados a ourorsquo como as joacuteias que Afrodite porta e o explendor das violetas e o doce sorriso da deusa esparrama-se em cada linha do hino Assim nossa preocupaccedilatildeo foi antes com o ldquoconteuacutedordquo do que com a esteacutetica e com a meacutetrica pois natildeo poderiacuteamos ldquodistorcerrdquo o poema trazendo-o para o contexto de nosso seacuteculo Fizemos pois uma traduccedilatildeo livre de quaisquer amarras teoacutericas Ficam ai apenas ldquoideacuteiasrdquo sobre o que o rapsodo tentou colocar dentro da cultura de seu tempo

122

άψαmicroένη κεφαλης πατρός ∆ιος αίγιόχοιο παρθένος εσσεσθαι πάντrsquo ηmicroατα δΐα θεάων τη δε πατηρ Ζεύς δωκε καλόν γέρας άντι γάmicroοιο καί τε microέσω οΐκω κατrsquo αρrsquo εζετο πΐαρ έλοΰσα 30 πασιν δrsquo έν νηοΐσι θεων τιmicroάοχός έστι καί παρα πασι βροτοΐσι θεων πρέσβειρα τέτυκται

Τάων ού δύναται πεπιθειν φρένας ούδrsquo άπατησα των δrsquo αλλων οϋ πέρ τι πεφυγmicroένον εστrsquo Άφροδίτην οϋτε θεων microακάρων οϋτε θνητων άνθρώπων 35 καί τε παρεκ Ζηνος νόον ηγαγε τερπικεραύνου οστε microέγστός τrsquo έστί microεγίστης τrsquo εmicromicroορε τιmicroης καί τε τοΰ εϋτrsquo έθέλοι πυκιναλ φρένας έξαπαφαΰσα ρηιδίως συνέmicroιξε καταθνητησι γυναιξίν Ήρης έκλελαθοΰσα κασιγνήτης άλόχου τε 40 η microέγα είδος άρίστη έν άθανάτησι θεησι κυδίστην δrsquo αρα microιν τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης microήτηρ τε ΄Ρείη Ζεύς δrsquo αφθιτα microήδεα είδώς αίδοίην αλοχον ποιήσατο κέδνrsquo είδυΐαν Τη δε καί αύτη Ζεύς γλυκύν ΐmicroερον εmicroβαλε θυmicroω 45 άνδρι καταθνητω microιχθήmicroεναι οφρα τάχιστα microηδrsquo αύτη βροτέης εύνης άποεργmicroένη εϊη καί ποτrsquo έπευξαmicroένη εϊπη microετά πασι θεοΐσιν ήδύ γελοιήσασα φιλοmicromicroειδής Άφροδίτη ως ρα θεούς συνέmicroιξε καταθνητησι γυϖαιξί 50 καί τε καταθνητούλ υίεΐς τέκον άθανάτοισιν ως τε θεάς άνέmicroιξε καταθνητοΐς άνθπώποις

[de espiacuterito astuto e tambeacutem mais jovem pela vontade de Zeus que

[segura a eacutegide a soberana que Poseidon e Apolo procuraram para o

[casamento Mas ela de forma alguma natildeo consentindo

[firmemente recusou 25 E fez um grande juramento o qual foi cumprido ateacute

[o fim tocando a cabeccedila do pai Zeus que segura a eacutegide que seraacute virgem para sempre divina entre as deusas agrave qual o pai Zeus deu grande honra em lugar de

[casamento e ela assentou-se no centro da casa e recebe a melhor

[oferenda 30 em todos os templos ela eacute honrada e entre todos os mortais ela eacute colocada como

[veneraacutevel Deusas ela natildeo pode persuadir nem iludir coraccedilotildees mas dos outros natildeo haacute nenhum que tenha escapado

[de Afrodite Nem os deuses bem aventurados nem os homens

[mortais 35 e sem que Zeus que ama o raio desse conta ela

[conduziu o que eacute o maior e tem a maior diginidade e quando lhe apraz ela ilude facilmente o coraccedilatildeo

[saacutebio dele e o coloca junto de mulheres mortais tendo ocultado de sua irmatilde e esposa Hera 40 a qual eacute a maior em beleza entre os deuses imortais a mais gloriosa eacute ela nascida do astuto Crono e de Reacuteia sua matildee que a geraram e Zeus de

[sabedoria impecaacutevel feacute-la sua doce e cuidadosa esposa

123

VI

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗΝ

Α ίδοίην χρυσοστέφανον καλήν Άφροδίτην ασαmicroαι η πασης Κύπρου κρήδεmicroνα λέλογχεν είναλίης οθι microιν Ζεφύρου microένος ύγρόν άέντος ηνεικεν κατα κΰmicroα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης άφρώ ενι microαλακω την δε χρυσάmicroπυκες Ώραι 5 δέξαντrsquo άσπασίως περί δrsquoαmicroβροτα ειmicroατα εσσαν κρατί δrsquo έπrsquo άθανάτω στεφάνην εϋτυκτοϖ εθηκαν καλήν χρυσείην έν δε τρητοΐσι λοβοΐσιν ανθεmicrorsquo όρειχάλκου χρσοΐό τε τιmicroήεντος δειρη δrsquo άmicroφrsquo άπαλη καί στήθεσιν άργυφέοισιν 10 ορmicroοισι χρυσέοισιν έκόσmicroεον οίσι περ αύταί Ώραι κοσmicroείσθην χρυσάmicroπυκες όππότrsquo ϊοιεν ές χορόν ιmicroερόεντα θεων καί δώmicroατα πατρός αύτάρ έπειδη πάντα περί χροΐ κόσmicroον εθηκαν ηγον ές άθανάτους οΐ δrsquo ήσπάζοντο ίδόντεσ 15 χερσί τrsquo έδεξιόωντο καί ήρήσαντο εκαστος είναι κουριδίην άλοχον καί οϊκαδrsquo αγεσθαι είδος θαυmicroάζοντες ίοστεφάνου Κυθερείης

Χαΐρrsquo έλικοβλέφαρε γλυκυmicroείλιχε δος δrsquo έν άγωνι

νίκην τωδε φέρεσθαι έmicroην δrsquo εντυνον άοιδήν 20 αύτάρ έγώ καί σεΐο καί αλλης microνήσοmicrorsquo άοιδης

PARA AFRODITE

Cantarei veneraacutevel coroada de ouro bela Afrodite 1 a qual de toda Chipre Marinha rodeada de muralhas laacute onde o uacutemido vento Zeacutefiro207 ergueu-a sobre a onda do mar barulhento na espuma suave e as Horas208 adornadas de ouro 5 receberam-na com alegria vestiram-na com [vestimentas divinas e sobre a cabeccedila imortal colocaram a bela coroa de ouro bem feita e nas orelhas furadas ornamentos de oricalco209 e de ouro precioso e em volta do pescoccedilo macio e do peito resplandecente [de brancura 10 colares de ouro os quais filetados de ouro satildeo usados pelas proacuteprias Horas quando quer elas vatildeo para a casa do pai para o coro charmoso dos deuses e depois que a vestiram conduziram-na para os imortais os quais a acolheram15 e saudaram com as matildeos e cada um suplicou para ser o esposo unido a ela210 e levaacute-la para casa admirados pela beleza da Citereacuteia coroada de violetas Salve a de olhos vivazes suavemente cativante na assembleacuteia [dos deuses Decirc-me a vitoacuteria e conduze meu canto honrado 20 E depois eu me lembrarei de ti e de outra canccedilatildeo

207 microένος tem o sentido de forccedilas da natureza como a aacutegua o fogo o vento neste caso refere-se ao vento Zeacutefiro eacute um vento do oeste daiacute ter um significado de vento agradaacutevel Zeacutefiro era personificado como filho de Eoacutelico 208 As Horas representavam as divindades das Estaccedilotildees Eram as filhas de Zeus e de Teacutemis e irmatildes das Moiras (os destinos) Agraves Horas designa-se um duplo sentido de divindade da natureza presidindo o ciclo da vegetaccedilatildeo e de divindades da ordem promovendo estabilidade Soacute tardiamente elas passaram a significar as horas do dia 209 Oricalco eacute um tipo de metal semelhante ao cobre 210 ldquounido em casamento com uma esposardquo daiacute o ldquoesposo legiacutetimordquo Esse termo envolve por extensatildeo a noccedilatildeo de laccedilos conjugais e de leito conjugal

124

X

ΕΙΣ ΑΦΡ0∆1ΤΗΝ

Κν προ γενη Κνθέρειαν αείσοmicroαι ητε βροτοΐσι microεί λιχα δώρα δί δωσιν εφ ίmicroερτω δε προσώπφ αίεί microει διάεί καί εφ ιmicroερτograveν θέεί άνθος Χαicircρε θεά Σα λαmicroicircνος ευκτιmicroένης microε δέουσα είνα λίης τε Κύπρον δός δ ίmicroερόεσσαν άοι δήν5 αύτάρ εγω καί σείο καί αλ λης microνήσοmicro άοι δης

PARA AFRODITE

Canto a Citereacuteia211 de Chipre que aos homens daacute doces dons sobre sua face desejante212 estaacute sempre o sorriso e desejaacutevel213 eacute o brilho Oh deusa dama214 da bem-feita Salamina e da Chipre marinha215 daacute o canto atraente216 5 Entatildeo me lembrarei de ti e de outro canto

211 Como se verifica ao longo das consideraccedilotildees sobre alguns pontos do aspecto metodoloacutegico o uso de palavras pleonaacutesticas em Homero ocorre na posiccedilatildeo que assumimos como um ornato decorrente do proacuteprio gecircnero eacutepico e inerente ao contexto Assim ritmicamente colocam-se lado a lado

Kuπρογενη Kuθέρειαν ou seja a Citereacuteia nascida em Chipre Como acreditava-se que Afrodite havia surgido das ondas (aphros) fecundadas pelo secircmen de Urano

quando foi castrado por seu filho Cronos ela a Afrogeneacuteia nascida da espuma sai do mar em uma praia na ilha de Chipre 212 Encontram-se nos versos 2 3 e 5 do original grego respectivamente as palavras Ίmicroερτώ ίmicroερτόν ίmicroερόεσσαν nos versos indicados 213 Assim a repeticcedilatildeo na traduccedilatildeo procurou manter o sentido original Embora no verso 5 tenha-se usado o adjetivo atraente ele estaacute indicado como um equivalente do verbete significando o que faz aparecer o desejo Todas essas palavras possuem uma base comum ίmicroερός e se referem ao sentido de desejo que estaacute relacionado a Afrodite e portanto ao que se chama de Amor Encontra-se uma personificaccedilatildeo de microερος na Teogonia de Hesiacuteodo verso 64 p 108 na obra de TORRANO JAA Teogonia A Origem dos Deuses HESIacuteODO Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Em GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 haacute o seguinte comentaacuterio sobre HiacutemeroO gecircnio Hiacutemero eacute a personificaccedilatildeo do Desejo amoroso Acompanha Eros no cortejo de Afrodite e no cimo do Olimpo vive ao lado das Caacuteritas e das Musas Eacute uma simples abstraccedilatildeo e natildeo figura em nenhuma lenda p 229 Embora Grimal coloque como sendo uma abstraccedilatildeo acreditamos que ele natildeo esteja se referindo ao desejo como forma de amor platocircnico Na eacutepoca arcaica ίmicroερος em Homero e em Hesiacuteodo estaacute relacionado ao amor libidinoso o que provoca a atraccedilatildeo 214 O texto grego traz a palavra microεδέουσα que significa a que reina sobre Esse termo junto com a palavra Σαλαmicroίνος refere-se a Afrodite (verificar BAILLY Anatole Dictionnaire Grec FranccedilaisParis Hachette2000 p1236) Para a traduccedilatildeo pensou-se no aspecto semacircntico rainha ou dama da cidade e optou-se por motivo de versificaccedilatildeo pela palavra dama 215 A palavra referente a Chipre eacute είναλίης que significa marinha cercada de mar Optou-se pela traduccedilatildeo marinha por ter um significado abrangente daquilo que se relaciona com o mar e por uma questatildeo econocircmica sabendo-se que Chipre eacute uma ilha estaacute cercada de mar 216 Ver notas 212 e 213 acima

125

ANEXO B ndash Hinos Homeacuterico ndash Deusas virgens

IX

ΕΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ

Αρτεmicroιν υmicroνεί Μούσα κασιγνήτην Έκάτοιο παρθενον ιοχεα ιραν όmicroότρο φον Άπόλλωνος ηθιππονς αρσασα βαθυσχοίνοιο Μέ λητος ρίmicro φα δια Σmicroύρνης πα γχρυσεον άρmicroα διώκει έ ς Κ λάρον άmicro πε λόεσσαν otilde θ άργυρότοξος Απόλλων ήσται microιmicroνάζων έκατηβoacute λον ίοχέαιραν 6

Καigrave συ microεν ουτω χαicircρε θεαί θ άmicroα πάσαι άοι δη αύταρ έγώ σε πρώτα και έκ σέθεν άρχοmicro άείδειν σευ δ έγω άρ ξάmicroενο ς microεταβησοmicroαι α λλον έ ς ΰmicroνον

PARA AacuteRTEMIS Musa cante Aacutertemis irmatilde do Atirador217 virgem218

que lanccedila flechas criada com Apolo daacute aacutegua aos cavalos de Meles junto aos juncos219 veloz por Esmirna guia a charrete220

dourada a Klaros com vinhas221 onde o arqueiro Apolo estaacute agrave espera da deusa que atira flechas222 6 E assim salve tu e todas as deusas no canto Entatildeo primeiro a ti e de ti passo a cantar tendo comeccedilado de ti vou a outro hino

217 Εκάτοιο Εκάτος eacute um epiacuteteto de Apolo e eacute inclusive no texto grego grafado com maiuacutescula tambeacutem pois eacute uma outra forma de nomeaacute-lo Significa o que atira ao longe 218 παρθένον παρθένος Em BAILLY (idib p 1489) I vierge particul 1 jeune fille 2 fille non marrieacutee 3jeune femme non marrieacutee 4 qui est comme une jeune fille vierge pur intact II La statue drsquoAthegravena agrave Athegravenes Neste caso παρθένον refer-se a Aacutertemis 219 A palavra βαθυσχοίνοιο significa um lugar coberto de juncos caniccedilos por isso em geral estaacute situado perto de lugares uacutemidos e alagados podendo estar pero de rios ou do mar BAILLY (id Ib p 2041) apresenta como ldquoaux joncs eacutepais aux hautes herbesrdquo 220 άρmicroα tem o sentido de attelage drsquoougrave char char de guerre ( BAILLY ib p 270) Portanto indica que Aacutertemis conduzia seu carro sua carruage ou sua charrete que era toda dourada (παγχρύσεον) Escolhemos a traduccedilatildeo charrete por nos parecer mais adequada ao contexto 221 Αmicroπελόεις όεσσα όεο em BAILLY (ib p 102) couvert de vignes Isso nos daacute uma indicaccedilatildeo de uma regiatildeo agriacutecola em que predominava a cultura de vinhas 222 Εκατηβολον significa o que atira flechas ao longe e eacute um epiacuteteto usado tanto para Apolo como para Aacutertemis Nesse caso como vem junto da palavra ιοχέαιραν refere-se a Aacutertemis e eacute pleonaacutestico pois significa a deusa que atira flechas e eacute usado com o verbo citado que tambeacutem significa atirar flechas ao longe mas estaacute se referindo agrave deusa A palavra ιοχέαιραν tambeacutem aparece no verso 2 relacionada a Aacutertemis ao lado de outro atributo virgem Eacute uma forma recorrente em Homero

126

XXVII

ΣΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ Αρτεmicroιν άεί δω χρυση λάκατον κε λα δεινήν παρθένον αiacute δοίην έ λα φηβό λον ίοχέαιραν αύτοκασιγνήτην χρνσαόρου Άπό λλωνος η κατ δρη σκιoacuteεντα καigrave άκριας ηνεmicroοέσσας άγρη τερποmicroενη παγχρύσεα τόξα τιταίνει 5 πέmicroπουσα στονόεντα βε ληmiddot τροmicroέει δε κάρηνα ύψη λων ορέων ίάχει δ επι δάσκιος υ λη δεινograveν υπograve κ λαγγης θηρων φρίσσει δέ τε ηαicircα πόντος τ ιχθυόεις ή δ α λκιmicroον ήτορ έχουσα πάντη επιστρέ φεται θηρων ό λεκουσα γενέθ λην 10 αύταρ επην τερ φθη θηροσκόπος ίοχέαιρα εύ φρήνη δε νόον χα λάσασ εύκαmicroπέα τόξα έρχεται ες microεηα δωmicroα κασνγνητοια φί λοιο Φοίβου Από λλωνος ∆ε λφων ες πίονα δηmicroον Μουσων και Χαρίτων κα λograveν χορograveν άρτυνέουσα 15 ένθα κατακρεmicroάσασα πα λίντονα τόξα καigrave igraveούς ηγεicircται χαρίεντα περigrave χροigrave κόσmicroον έχουσα εξάρχουσα χορούς αicirc δ άmicroβροσίην οπ ίεicircσαι ύmicroνευσιν Λητω κα λλίσ φυρον ως τέκε παicircδας αθανάτων βου λη τε καigrave εργmicroασιν εξοχ αρίστους 20 Χαίρετε τέκνα ∆ιograveς καigrave Λητους ηυκόmicroοιο αύταρ έηων ύmicroέων τε καigrave α λλης microνήσοmicro άοι δης

PARA AacuteRTEMIS Canto Aacutertemis das flechas de ouro a rumorosa223 digna224 virgem que caccedila225 os cervos e lanccedila o arco a proacutepria irmatilde de Apolo da espada dourada das montanhas sombrias e dos picos ventosos alegrando-se na caccedila estende o arco aacuteureo226 5 enviando flechas atrozes227 Tremem os cumes dos montes altos e a floresta densa ecoa forte com o grito das feras abala a terra e o mar com peixes Mas ela coraccedilatildeo forte228 volta-se a todos os lados destruindo feras229 10 Depois a caccediladora230 e arqueira231 se alegra satizfaz a mente e afrouxa o arco flexiacutevel e vai para a grande casa do irmatildeo amado Febo232 Apolo para a rica terra de Delfos para alinhar a danccedila233 das Musas e Graccedilas 15 Entatildeo pendura para traacutes o arco e as flechas conduz a danccedila e a organiza graciosamente234 e dirige os coros Elas lanccedilam a voz divina cantam como Leto de belo peacute pariu235 os melhores filhos (entre os imortais)236 na vontade e na accedilatildeo 20 Oh filhos de Zeus e Leto de fartos cabelos Eu237 me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

223 A palavra κελαδεινην significa ldquobarulhenta sonora rumorosardquo referindo-se a Aacutertemis devido agrave caccedila 224 De acordo com BAILLY ib p41 aleacutem de veneraacutevel digna de respeito αιδοίην tambeacutem significa envergonhada o que faz pensar em uma caracteriacutestica relacionada agrave virgindade 225 ελαφηβόλον (acusativo) tambeacutem eacute um epiacuteteto de Aacutertemis significando ldquoperseguidora de cervosrdquo Na falta de um termo equivalente em portuguecircs traduzimos por ldquoque caccedila os cervosrdquo usando uma oraccedilatildeo adjetiva para qualificar Aacutertemis 226 Arco aacuteureo ou arco dourado literalmente encontramos em grego παγχρυσεα ou seja com a conotaccedilatildeo de que o arco eacute ldquotodo douradordquo 227 A palavra grega στονόεντα eacute usada com o sentido de ldquoque faz gemer funestasrdquo daiacute termos escolhido em portuguecircs o termos ldquoatrozesrdquo 228 No original grego encontra-se έχουσα que significa ldquotendordquo ou ldquoaquelea que temrdquo (particiacutepio presente do verbo έχω)Usou-se um aposto explicativo com o mesmo sentido para fins de metrificaccedilatildeo 229 O verso 10 se traduzido literalmente fica ldquo volta-se para todos os lados destruindo a raccedila dos animais ferozesrdquo Na traduccedilatildeo eliminou-se a palavra γενέθλην isto eacute raccedila famiacutelia Achamos que a palavra ldquoferasrdquo em portuguecircs jaacute tem uma abrangecircncia de substantivo no plural referindo-se agrave espeacutecie como um todo 230 έηροσκόπος significa ldquoaquela que espreita os animaisrdquo Traduzimos pois com o sentido de ldquoaquela que caccedila os animaisrdquo portanto ldquoa caccediladorardquo 231 ίοχέαιρα epiacuteyeyo de Aacutertemis ldquoa que lanccedila flechasrdquo ou seja ldquoa arqueirardquo 232 Φοίβον traduzido geralmente como Febo que significa ldquoo brilhanterdquo e eacute um epiacuteteto de Apolo Funciona muitas vezes como nome proacuteprio (Ver GRIMAL ib p 167) 233 Quando o autor se refere agrave danccedila das Musas e das Graccedilas ele especifica καλόν χορόν o que quer dizer ldquobela danccedilardquo Por economia meacutetrica suprimimos a palavra ldquobelardquo pressupondo que a danccedila das Musas e das Graccedilas jaacute confere agrave danccedila um sentido de beleza 234 Em uma traduccedilatildeo literal o verso 17 apresenta-se como ldquoela conduziu proporcionando a ordem graciosa em torno da danccedilardquo Traduzimos ldquodirigir a ordem com graccedilardquo como ldquoorganizar com graccedilardquo 235 No texto grego estaacute especificado que Leto ldquopariu filhosrdquo Encontra-se a forma τέκε παίδας Como no verso seguinte (v20) encontra-se a forma αρίστους referindo-se ldquoaos melhore os mais excelentesrdquo transferiu-se a palavra ldquofilhosrdquo (παίδας) do verso 19 para o verso 20 236 O superlativo implica sempre que haacute uma comparaccedilatildeo Por razotildees meacutetricas colocou-se entre parecircnteses significando que natildeo faz parte da estrutura do verso 237 έγων achamos interessante manter na traduccedilatildeo o nominativo eacutepico ldquoeurdquo

127

XI

ΣΙΣ ΑΘΗΝΑΝ Παλλάδ Aθηναίην ερυσίπτολιν αρχomicro αεί δειν δεινήν η συν Aρηι microέλει πολεmicroήια έργα περθόmicroεναί τε πόληες αυτή τε πτόλεmicroοί τε και τ ερρνσατο λαograveν igraveόντα τε νισσόmicroενόν τε Xαicirc ρε θεά δός δ άmicromicroι τύχην ευδαιmicroονίην τε 5

PARA ATENA

A Palas Atena guardiatilde da polis238 canto terriacutevel239 que com Ares faz atos guerreiros de saques das polis de urros e de batalhas e salva as pessoas que na guerra combatem240 Oh deusa conceda-nos uma sorte boa 5

238 O termo grego ερυσίπτολιν eacute usado como epiacuteteto a Atena significando a protetora da cidade a guardiatilde 239 A palavra δεινήν nom δεινός quando se refere a Atena como eacute citado em BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilaised Hachette 2000 p 439 significa fort puissantterrible Daiacute o termo ser traduzido em portuguecircs em alguns contextos como terriacutevel a que tem poder e eacute extraordinaacuteria pois eacute uma divindade que possui tambeacutem um grito de guerra terriacutevel como se encontra no referido verbete e como confirma o verso 3 do Hino em questatildeo Em inglecircs equivalente a terriacutevel poderosa a traduccedilatildeo usada por EVELYN-WHITE HG in Hesiod The Homeric Hymns and Homerica London Loeb Classical Library 1982 eacute dread 240 ίόντα ( verbo είmicroί ) juntamente com a palvra λαόν significa ir agrave guerra e participar da luta Assim coloca BAILLY (id ib) agrave p 593 srsquoavancer au milieu de lrsquoarmeacutee ou de la foule (des guerriers)

128

XXVIII ΕΙΣ ΑΘΗΝΑΝ

Παλλάδ Aθηναίην κυδρην θβόν άρχοmicro άεί δειν γλανκώπιν πολυmicroητ ιν άmicroβίλίχον ητορ εχρυσαν παρθενον αίδοίην ερνσί πτολιν άλκηεσσαν Tριτογενή την αντος εγείνατο microητίετα Ζενς σεmicroνής εκ κε φαλής πολεmicroήια τενχε εχονσαν 5 χρύσεα παmicro φανοωντα σέβας δ εχε πάνταςορώντας αθανάτουςmiddot ή δε πρόσθεν ∆iograveς αίγιόχοιο εσσνmicroένως ώρουσεν ά π άθανάτοιο καρήνου σεiacuteσασ ograveξυν άκονταmiddot microέγας δ ελελiacuteζετ Όλυmicro πος δεινograveν υ πograve βρίmicroης γλανκώ πι δος άmicro φigrave δε γαicircα 10 σmicroερδαλέον iάχησεν εκινηθη δ άρα πόντος κύmicroασι πορ φυρέοισι κνκώmicroενος εκχντο δ άλmicroη εξα πίνης στήσεν δ Y περίονος άγλαograveς υιος iacuteππους ωκύποδας δηρograveν χρόνον είσότε κούρη εΐλετ απ αθανάτων ωmicroων θεοεiacuteκελα τεύχη 15 Παλλagraveς Άθηναίηγήθησε δε microητίετα Ζεύς Καigrave συ microεν οΰτω χαicircρε ∆iograveς τέκος αίηιoacuteχοιο αυτάρ εγώ καigrave σεicircο καigrave άλλης microνήσοmicro άοιδής

A ATENA

A Palas Atena canto a gloriosa241 deusa242 glaucoacutepida243 astuta com coraccedilatildeo indoacutecil virgem244 digna guardiatilde das cidades ousada Tritogecircnia245 o proacuteprio Zeus saacutebio a fez nascer de sua cabeccedila veneraacutevel portando armas246 5 aacuteureas toda brilhantes que impotildeem respeito247 aos imortais E ela frente a Zeus porta-eacutegide com iacutempeto saltou da cabeccedila imortal agitando a lanccedila aguda Ecoai Olimpo com espanto agrave forccedila da glaucoacutepida E a terra 10 gritou assustada O oceano se abalou agitou as ondas negras248 A aacutegua249 transbordou suacutebito O brilhante filho de Hipeacuterion250 parou os cavalos de peacutes aacutegeis ateacute que251 a virgem252 Palas Atena253 tirasse dos imortais 15 ombros as armas E Zeus saacutebio se alegrou Assim salve tu filha de Zeus que tem a eacutegide Depois me lembrarei de ti e de outro canto

241 O termo κυδρην eacute geralmente usado quando se refere a certas deusas como Atena e Leto Tem o sentido de ldquogloriosa ilustrerdquo ( A esse respeito ver BAILLY p1147) 242 A palavra θεόν estaacute no acusativo e possui a mesma forma para o masculino e para o femininoO que identifica o uso eacute o contexto ou o artigo definido Haacute um importante texto escrito por LORAUX Nicole em que ela comente sobre a questatildeo deusdeusa apontando para a generalidade indicando apenas um ser divino Eacute pois um problema de gecircnero como diz Loraux (In PANTEL Pauline S histoacuteria das Mulheres A Antiguidade Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 243 Depois de apelar Palas Atena o autor se remete a ela nomeando-a atraveacutes de uma seacuterie de epiacutetetos ldquoglaucoacutepida astuta virgem guardiatilde das cidade corajosa Tritogecircniardquo 244 O epiacuteteto παρθένον vem enfatizado pelo adjetivo αίδοίην o que como coloca Loraux em seu artigo supra-citado faz remeter agrave ideacuteia do divino do veneraacutevel em relaccedilatildeo agrave castidade de deuses como caracteriacutestica dos imortais 245 relaccedilatildeo ao epiacuteteto Τριτογενή haacute diversas interpretaccedilotildees quanto ao significado Uma das hipoacuteteses do epiacuteteto eacute de que ela nascera perto do lago Tritocircnis Poreacutem uma outra possibilidade eacute de se remeter ao termo eoacutelico que significaria ldquoa verdadeira filha de Zeusrdquo (BAILLY p 1964) 246 Atena nasceu carregando armas Como explicita o texto grego πολεmicroήια τεύχέ ou seja ldquoarmas beacutelicasrdquo 247 O que o autor diz literalmente nos versos 5 6 e 7 eacute que ldquoAtena estava portando armas de guerra douradas e toda brilhantes que impotildeem respeito quando os deuses (imortais) as vecircemrdquo 248 Traduzimos a palavra πορφυρέοωσι por ldquonegrasrdquo Literalmente essa palavra significa ldquoescuras da cor das sombrasrdquo 249 A palavra άλmicroη pode significar tanto a aacutegua do mar como a espuma das aacuteguas do mar Na ediccedilatildeo do Loeb Classical Library foi traduzida por foam (espuma) 250 ldquoO brilhante filho de Hipeacuterionrdquo significa pois o ldquoSolrdquo (Heacutelio) 251 ldquoAteacute querdquo indica um termo relacionado ao tempo que o precede e ao qual daacute continuidade No texto grego o autor enfatiza a accedilatildeo precedente colocando δρόν χρόνο είσότε ou seja ldquode longa duraccedilatildeo ateacute querdquo 252 Aqui a palavra usada referindo-se a Atena e designando a moccedila a virgem eacute a palavra ϊούρη e natildeo αρθένον Isso encaminha para uma reflexatildeo em relaccedilatildeo agrave escolha dos vocaacutebulos 253 No original grego o termo Palas Atena estaacute no verso 16 Na traduccedilatildeo transferimo-lo para o verso 15 por motivo de coerecircncia textual

129

XXIV ΣΙΣ ΕΣΤΙΑΝ

Έστiacuteη ητε ανακτος Άπό λλωνος εκάτοιο Πυθοicirc εν ήγαθέ η ίερograveν δόmicroον άmicro φι πο λεύεις αigraveεigrave σων πλοκάmicroων ά ποίλείβεται ύγρograveν ε λαιον ερχεο τόνδ άνα οίκον εν ερχεο θυmicroograveν εχουσα συν ∆ιigrave microητιόεντί χάριν δ άmicro ο πασσον άοιδ η 5

PARA HEacuteSTIA Heacutestia que ao deus254 Apolo que atira ao longe no divino Piacuteton serve na casa sacra255 sempre das mechas256 puras cai257 o oacuteleo uacutemido vem para esta casa vem tendo um coraccedilatildeo258 com Zeus que eacute saacutebio E concede graccedila ao canto2595

254 αυακτος significa ldquomestre cheferdquo principalmente em se tratando de Apolo Junto de εκάτοιο no mesmo verso ldquoo deus que atira ao longerdquo reforccedila o epiacuteteto que se usa para designar Apolo 255 ίερόν refere-se a δόmicroον Daiacute significar casa sagrada forte poderosa Usamos a traduccedilatildeo sacra por razotildees meacutetricas sem qualquer conotaccedilatildeo com que a palavra santa possa vir a ter dentro de uma visatildeo cristatilde 256 A palavra πλοκάmicroων quer dizer lsquomechasrsquo referindo-se a lsquomechas de cabelorsquo 257 O verbo άπολείβεται significa ldquodeixar cair gota a gotardquo quando se faz uma libaccedilatildeo Assim o verso 3 significa exatamente ldquosempre das mechas de cabelo intactas deixa cair gota a gota o oacuteleo uacutemidordquo 258 O vocaacutebulo θυmicroόν em uma significaccedilatildeo bem ampla ldquocoraccedilatildeo mente princiacutepio de vidardquo enfim relaciona-se ao que diz respeito agrave inteligecircncia e agrave vontade ao poder e ao desejo 259 Nesse verso (v 5) haacute tambeacutem ao palavra αmicroα que omitimos na traduccedilatildeo Essa palavra daacute a ideacuteia de simultaneidade Seria como se dissesse ldquoE ao mesmo tempo concede graccedila ao cantordquo Nesse caso estaria se referindo agraves accedilotildeesrsquo vir para casa unida a Zeus e dar graccedila ao cantorsquo

130

XXIX ΕΙΣ ΕΧΤΙΑΝ

Έστίη ή πάντων εν δώmicroασιν ύψηλοicircσιν αθανάτων τε θέων χαmicroαigrave ερχοmicroένων τ άνθρώττων εδρην άίδιον έλαχες πρεσβηίδα τιmicroήν καλograveν έχουσα γέρας καigrave τίmicroιον ου γαρ άτερ σου ειλαπίναι θνητοicircσιν iacuteν ου πρώτη πυmicroάτη τε 5 Έιστίη αρχόmicroενος σπενδει microελιηδέα οίνον καigrave συ microοι Άργει φόντα ∆ιος καigrave Μαιάδος υiέ αγγελε των microακάρων χρυσoacuteρραπι δωτορ εάων λαος ων επάρηγε συν αίδοίη τε φίλη τε ναίετε δώmicroατα καλά φίλα φρεσigraveν άλληλοισιν εiacuteδότες άmicro φότεροι γαρ επiχθονίων ανθρώπων 11 εiacuteδότες ερηmicroατα καλα νόω θ εσπεσθε καigrave ήβη Χαicircρε Κρόνου θύηατερ συ τε καigrave χρυσόρραπiς Έρmicroής αύτάρ εγών υmicroεων τε καigrave αλλης microνήσοmicro άοιδής

PARA HEacuteSTIA

Heacutestia que nas casas elevadas de todos 1 de deuses imortais e homens que vecircm agrave Terra260 recebeste um lugar eterno e honra digna tens bom privileacutegio e estima261 Pois sem ti natildeo haacute festim262 para os mortais se em primeiro e em uacuteltimo 5 quem vem natildeo263 oferece264 a Heacutestia o vinho doce Tu matador de Argo265 filho de Zeus e Maia266 nuacutencio dos deuses267 com bastatildeo268 doador de bens sendo do povo269 ajude-o com a nobre e querida Habitem a gloriosa casa cara a ambos270 10 que conheceis bem Pois ambos entre os terrestres sabeis as obras nobres da271 mente e da forccedila Oh filha de Cronos e tu Hermes do bastatildeo Pois me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

260 Eacute interessante perceber a construccedilatildeo desse verso O autor estabelece o contraste entre ldquodeuses imortaisrdquo ( άθανάτων θεών ) e os ldquohomens mortaisrdquo referindo-se a eles como ldquoos homens que vecircm agrave Terrardquo ( χαmicroαί έρχοmicroένων άνθρώπων ) mostrando a ideacuteia de transitoriedade no ato de vir e natildeo de qualificaacute-los como terrestres 261 A palavra grega τίmicroιον significa que a deusa tinha uma consideraccedilatildeo uma estima puacuteblica De fato Heacutestia se fazia representar em todas as casas na ldquolareira sagradardquo 262 ειλιπίναι significa banquetear celebrar um festim apoacutes um sacrifiacutecio Para fins de traduccedilatildeo usamos a expressatildeo ldquohaver um festimrdquo que corresponde a ldquobanquetearrdquo 263 A negativa ού (natildeo) encontra-se no verso 5 antes de πρώτη Poreacutem por motivo sintaacutetico transferiu-se a negativa para o verso 6 antes do verbo 264 O verbo σπενδει significa ldquooferecer fazendo uma libaccedilatildeordquo Portanto em um ritual a Heacutestia devia-se fazer em primeiro lugar e em uacuteltimo uma libaccedilatildeo de vinho agrave deusa Se isso natildeo fosse feito a pessoa natildeo podia participar da oferenda de sacrifiacutecio 265 Segundo o dicionaacuterio BAILLY p 259 o epiacuteteto ργειφόντα refere-se a Hermes ldquoo matador de Argosrdquo e eacute de origem desconhecida Haacute uma lenda que atribui a Hermes o fato de ter matado Argo (conhecido como Argos na forma latinizada) possuidor de uma forccedila espantosa e que tinha soacute um olho Em outras lendas ele possui uma multiplicidade de olhos Hermes matou Argo a pedido de Zeus segundo a lenda Haacute tambeacutem variaccedilotildees sobre como ele o matou 266 Natildeo se traduziram todas as palavras do verso 7 Foram suprimidos a conjunccedilatildeo e (καί ) iniciando o verso bem como a expressatildeo para mim (microοι) o que jaacute implica uma alteraccedilatildeo morfoloacutegica sintaacutetica e cultural na interpretaccedilatildeo de nossa traduccedilatildeo 267 No texto grego encontra-se a palavra microακάρων que significa honradosdaiacute sagrados Por isso refer-se aos deuses em oposiccedilatildeo aos homens 268 A palavra χρυσόρραπι tem o sentido de ldquobastatildeo de ourordquo e eacute usado referindo-se ao bastatildeo que Hermes carregava Diz a lenda que Hermes inventou a flauta e Apolo ficou tatildeo encantado com o instrumento musical que ofereceu seu cajado de ouro a Hermes em troca da flauta Daiacute para a frente Herme sempre carregou o bastatildeo de ouro 269 Decidimos traduzir λαος ών como lsquosendo do povordquo isto eacute junto com Heacutestia faziam parte de todas as casas e da cidade e eacute como se fizessem parte desse contexto humano Vimos outra traduccedilotildees como a de uma traduccedilatildeo de Vernant para o inglecircs em que se encontra ldquobe goodrdquo e Evelyn-White da Loeb Classical Library traduz por ldquobe favourablerdquo No entanto em nosso entendimento o verbo ών estaacute no particiacutepio presente daiacute ldquosendordquo Tambeacutem natildeo encontramos palavra que pudesse significar ou ldquobomrdquo ou ldquofavoraacutevelrdquo Tem-se pois nossa interpretaccedilatildeo na traduccedilatildeo desse verso 270 A palavra φρεσίν coraccedilotildees estaacute relacionada a ambos αλλήλοιειν referindo-se a Heacutestia e a Hermes Portanto a ldquoambos unidos no coraccedilatildeo na amizaderdquo 271 Em grego eacute usado o dativo nas palavras mante νόω e forccedila ήβη significando que eles Heacutestia e Hermes conhecem os trabalhos dos homens atraveacutes da inteligecircncia deles e atraveacutes da forccedila deles Eacute pois um instrumental Portanto a traduccedilatildeo para o portuguecircs natildeo implica que em grego eacute usado o caso genitivo

Page 2: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao

copy by Vera Luacutecia Crepaldi Pereira 2009

Ficha catalograacutefica elaborada pela Bibliotecada Faculdade de EducaccedilatildeoUNICAMP

Tiacutetulo em inglecircs The virgin Greek goddesses vis-agrave-vis Aphroditersquos powerKeywords Greek goddesses Aphrodite (Greek Deity) Desire Power Patriarchate CivilizationAacuterea de concentraccedilatildeo Educaccedilatildeo Conhecimento Linguagem e ArteTitulaccedilatildeo Mestre em EducaccedilatildeoBanca examinadora Prof Dr Joaquim Brasil Fontes Juacutenior (Orientador) Profordf Drordf Norma Sandra de Almeida Ferreira Profordf Drordf Maria Inecircs Ghilardi-Lucena Prof Dr Siacutelvio Donizetti de Oliveira Gallo Profordf Drordf Ana Helena Cizotto BellineData da defesa 30072009Programa de poacutes-graduaccedilatildeo Educaccedilatildeoe-mail veracrepaldigmailcom

Pereira Vera Luacutecia Crepaldi

P414d As deusas gregas virgens face ao poder de Afrodite Vera Luacutecia Crepaldi

Pereira -- Campinas SP [sn] 2009

Orientador Joaquim Brasil Fontes Juacutenior

Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Universidade Estadual de Campinas Faculdade

de Educaccedilatildeo

1 Deusas gregas 2 Afrodite (Divindade grega) 3 Desejo4 Poder

5 Patriarcado 6 Civilizaccedilatildeo I Fontes Juacutenior Joaquim Brasil II Universidade

Estadual de Campinas Faculdade de Educaccedilatildeo III Tiacutetulo

09-164BFE

ii

iii

ano 2009

v

Inspirada em Afrodite

dedico esterdquo ergonrdquo agrave minha genealogia

a meus pais Nair e Alfredo

que me colocaram na cena do mundo

e a meus filhos Fabiana e Marcelo

descendentes da linhagem familiar

vii

AGRADECIMENTOS

ldquoO meu gesto de agradecimento envolve mais do que os nomes citados revela os abraccedilos que me ampararamrdquo

Agradeccedilo

Ao professor Dr Joaquim Brasil Fontes meu orientador pela confianccedila que depositou em meu trabalho e pela partilha de seu conhecimento

Aos professores Drs Norma Sandra de Almeida Ferreira Siacutelvio Donizetti Gallo Maria

Inecircs Ghillardi-Lucena Ana Helena Cizotto Belline que contribuiacuteram com sua presenccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo da Banca e na leitura do texto

Agraves professoras Dras Elisa Angotti Kossovitch Liacutelian Martins da Silva e Letiacutecia Canedo

pelo incentivo e participaccedilatildeo na minha pesquisa Ao Dr Mauro Bilharinho Naves por seu apoio incansaacutevel e pelos diaacutelogos

esclarecedores sobre a mitologia grega Agrave amiga professora Linda Bishop da Silveira por suas leituras atentas do texto e das

traduccedilotildees em inglecircs Ao Pe Paulinho (Paulo Roberto Rodrigues) pelas suas orientaccedilotildees fundamentais no

campo da teologia A Michelle Risso por sua paciecircncia e alegria nos nossos ldquoencontros em gregordquo A ldquoFlavinha Felizrdquo por suas constantes formataccedilotildees no texto que eu sempre

ldquodesformatavardquo Aos funcionaacuterios da Secretaria Nadir Rita Antonio Carlos Gisleine Cleo pelo

atendimento soliacutecito e pelas indicaccedilotildees constantes e ao Ademiacutelson da Informaacutetica pela digitaccedilatildeo perfeita dos textos em grego

Ao grupo de pesquisa do GEPEDISC que me acolheu com simpatia Aos colegas de curso que direta ou indiretamente participaram do meu percurso

acadecircmico

ix

RESUMO

O objetivo deste estudo as deusas gregas virgens Aacutertemis Atena e Heacutestia eacute demarcar a

existecircncia e a significaccedilatildeo especial dessas deusas no mundo arcaico grego frente agrave posiccedilatildeo

ocupada por Afrodite como representaccedilatildeo do desejo O sistema miacutetico prevecirc a questatildeo do desejo

articulada ao lsquopoderrsquo conforme evidenciam as reflexotildees feitas a partir do corpus selecionado as

obras de Homero de Hesiacuteodo e os Hinos Homeacutericos referentes agraves deusas virgens e a Afrodite A

metodologia que orienta esta pesquisa segue uma linha antropoloacutegica comparativa incluindo

autores como Geertz e Detienne com enfoque no uso e na significaccedilatildeo da linguagem da

produccedilatildeo escrita dos rapsodos gregos O conceito de virgindade eacute direcionado pelo conceito de

desejo e parece necessaacuterio que se considerem as propriedades e os atributos de Afrodite para

definir as deusas gregas virgens que fruem ldquode um outro modo de desejo e de poderrdquo Esse

aspecto nos faz refletir sobre uma sociedade patriarcal e as formas de independecircncia feminina

como instacircncia de compromisso soacutecio-poliacutetico bem como sobre a manutenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

herdada da grande matildee (Magna Mater) e das Amazonas Uma possiacutevel indicaccedilatildeo a partir desses

dados eacute que o Cristianismo procurou dar continuidade a esse aspecto de gecircnero que promove a

civilizaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo da sociedade atraveacutes da figura da lsquomadrersquo como elemento de

significaccedilatildeo cultural

Palavras-chave Deusas gregas virgens Afrodite desejo poder sociedade patriarcal

civilizaccedilatildeo

xi

ABSTRACT

The aim of this study which focuses on the Virgin Greek goddesses Artemis Athene and

Hestia is to stress the existence and the special meaning of those goddesses in the archaic Greek

world compared with Aphroditersquos position as a representative of lsquodesirersquo The mythical system

comprises the matter of desire linked to the meaning of ldquopowerrdquo according to the evidence of

reflections made from the corpus selected Homerrsquos and Hesiodrsquos works and the Homeric Hymns

referring to the virgin goddesses and Aphrodite The methodology that orients this paper follows

authors such as Geertz and Detienne focusing on the use and meaning of the language in the

written production of the Greek rapsodes The concept of virginity is directed by the concept of

desire and it is necessary to consider Aphroditersquos properties and attributes to define the virgin

Greek goddesses who have another form of desire and power That aspect brings up

considerations on a patriarchal society and ways of feminine independence as a means of social-

political commitment as well as on the maintenance of a tradition inherited from the Great

Mother and the Amazons One possible direction arising from the above facts is that Christianity

tried to give sequence to this aspect of gender which promotes civilization and the organization

of society by way of the lsquomater figurersquo as an element of cultural significance

Key words Virgin Greek goddesses Aphrodite desire power patriarchal society civilization

xiii

SUMAacuteRIO

Dedicatoacuteria v

Agradecimentos vii

Resumo ix

Abstract xi

1- Introduccedilatildeo 1 2 - Encruzando Aspectos do Cosmo Natureza Deuses e Homens 5

21 - Fragmentos do Uno 5 22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees 10

3 - A questatildeo metodoloacutegica um olhar sobre a pesquisa bibliograacutefica 17 4 - O que eacute traduzir lsquoHomerorsquo e os rapsodos gregos Tentativas e riscos 43 5 - Que deusas satildeo essas 49

51 - Afrodite e a representaccedilatildeo do desejo 49 52 - Aacutertemis a liberdade e a virgindade 64 53 - Atena a deusa virgem da sabedoria e da guerra 71 54 - Heacutestia e a castidade 76

6 - A questatildeo da virgindade e as deusas virgens 85

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo 85 62 - O caraacuteter da virgindade no Cristianismo 96

7 - Conclusatildeo Ou indicaccedilatildeo de suposiccedilotildees 105 Referecircncias 115 Bibliografia 119 Anexos 121

Anexo A - Hinos Homeacutericos a Afrodite 121 Anexo B - Hinos Homeacutericos a Deusas virgens 125

1

1 ndash INTRODUCcedilAtildeO

ldquoOutros jaacute passaram por esta Senda por isso a novidade de tudo o que eu digo de novo estaacute na forccedila da repeticcedilatildeordquo1

Na condiccedilatildeo de professora de liacutenguas estamos sempre investigando o uso das palavras no

discurso como elas se articulam como elas se estabelecem como elas se traduzem como elas

ldquofingemrdquo ser contidas em supostas definiccedilotildees enfim estamos sempre atravessando o corredor

estreito das significaccedilotildees e das compreensotildees

Como se isso natildeo bastasse as palavras nos levam aos seus percursos ao longo dos

tempos agraves vezes revelando e agraves vezes ocultando estaacutegios de transformaccedilotildees por que passaram

Assim a palavra por si soacute jaacute nos coloca diante de uma rede que envolve sua histoacuteria sua

etimologia sua categoria sua funccedilatildeo E foi a palavra com todo esse contexto maacutegico que nos

cativou

Comeccedilamos perseguindo o conceito de virgindade na Greacutecia de Homero e de Hesiacuteodo e

nos deparamos com um entrelaccedilamento de fatos de conceitos de outras palavras de traduccedilotildees

de um mundo que todas as vezes que pensaacutevamos alcanccedilaacute-lo distanciava-se mais e fazia com

que tambeacutem a nossa pesquisa virasse uma lenda miacutetica em que os deuses superavam em muito o

trabalho humano que empreendiacuteamos

Mas nada ocorre por acaso A nossa iniciativa de trilhar a palavra nesse mundo numinoso

teve uma ponta de lembranccedila e de afeto no encontro com um grande mestre e amigo de tempos

tambeacutem passados Fizemos nosso o seu desafio e desta forma nasceu o nosso objeto de estudo

Fomos tomados pela curiosidade e pelo interesse quando o scholar o helenista professor Dr

Joaquim Brasil Fontes instigou-nos a pensar nas deusas gregas virgens carregadas de valores

de funccedilotildees de lendas que ainda fazem parte de nosso cotidiano e cujas raiacutezes estatildeo atreladas a

um tempo do qual natildeo se desvinculam apesar das transformaccedilotildees e dos ajustes por que vatildeo se

atualizando amoldando-se a novos perfis a novos modus vivendi transpondo espaccedilos

geograacuteficos e culturais atravessando filosofias e marcando a histoacuteria

1 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p 9

2

Tentamos diante do impacto da tarefa pensar como nesse grande eixo assinalado de

homens mortais a presenccedila de Deusdeuses afeta e determina a dimensatildeo humana Pensamos

tambeacutem na nossa experiecircncia de vida marcada por cultos e rituais apesar de todo o progresso da

ciecircncia e da tecnologia

Nossas salas de aulas - tambeacutem elas - se revestem de ritos como cenaacuterio para o estudo de

hipoacuteteses de buscas de discussotildees de valores de sustento do que se acredita ter a forccedila da

verdade E o que seria o entendimento de verdade em um momento teria feiccedilotildees e propostas

diferentes em outras culturas em outros tempos o que mostra que o estatuto de uma suposta

verdade se transfigura e tem um movimento flexiacutevel contiacutenuo propondo novas direccedilotildees e

determinando novos olhares

Nessa atmosfera de consideraccedilotildees foi colocada a questatildeo que encaminhou nossa busca

por princiacutepios que se prendem ao mundo grego - que tem sido objeto de tanto estudo - do qual

herdamos concepccedilotildees de vida e de arte de misteacuterio e de sagrado de sobrenatural e de mundano

se possiacutevel eacute destacar e separar esses princiacutepios norteadores do humano Por que teriam as deusas

gregas Heacutestia Palas Atena e Aacutertemis resistido ao casamento O que as teria movido para que se

mantivessem virgens Como seria entendida a eacutegide da virgindade naquela sociedade Que

mecanismo levaria a compreender os poderes dessas entidades marcadas por uma caracteriacutestica

que se opunha agraves grandes narrativas de relacionamentos de filhos gerados com uns e outros

deuses de traiccedilotildees de intrigas que envolviam deuses e deusas no grande cenaacuterio do mundo dos

homens gregos O que fundamenta a traduccedilatildeo e a compreensatildeo da palavra virgem na passagem

da liacutengua grega para a liacutenguacultura ocidental

Perguntas surgiam e determinavam outras perguntas Eram propostas investigaccedilotildees sobre

investigaccedilotildees leituras sobre leituras Hesiacuteodo e Homero foram se tornando familiares o alfabeto

grego foi se revelando real os questionamentos sobre a arte da traduccedilatildeo (seraacute uma arte) se

fizeram tambeacutem reais As deusas foram tomando forma e suas imagens se faziam presentes em

cada momento do dia atravessando a barreira do tempo e do espaccedilo Listaram-se conteuacutedos e

disciplinas que pudessem ajudar a nortear o trabalho Foram surgindo autores que comeccedilaram a

fornecer elementos para a investigaccedilatildeo Vernant Loraux Detienne Calame Parry Geertz

Freud Deleuze Lerner Buscava-se da mitologia agrave filosofia da cultura agrave psicanaacutelise do

discurso da oralidade agraves questotildees da traduccedilatildeo Natildeo que esse caminho tivesse sido inicialmente

3

planejado Ele foi surgindo como consequumlecircncia de necessidades em que uma busca conduz a

outra Foi se impondo como resultado de ldquoescavaccedilotildeesrdquo como dizia com humor o nosso

orientador Essa mesma procura ia fazendo que acontecessem ldquoexplosotildees de significadosrdquo e a

palavra o uso da linguagem foi se tornando cada vez mais o grande foco de nosso olhar

Dada a abrangecircncia de material e da temaacutetica do objeto que se propocircs examinar tivemos

que fazer escolhas e estabelecer limites como buacutessola indicadora de um caminho pois

correriacuteamos o risco de nos perdermos nas adjacecircncias e de natildeo chegarmos agrave estrada principal

Decidiu-se investigar o cenaacuterio que recebe os deusesdeusas gregos a mitologia (com

suas implicaccedilotildees culturais e histoacutericas) e a filosofia que os ampara Nesse estudo optou-se por

uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica que natildeo se concentrasse apenas nas estruturas caracteriacutesticas dos

fenocircmenos religiosos miacuteticos mas que buscasse a compreensatildeo do texto procurando entender a

partir do contexto histoacuterico-cultural o fenocircmeno de deusas que escolhem a virgindade como

expressatildeo de sua sexualidade (veja-se a ousadia e a impropriedade do termo na falta de outro

em relaccedilatildeo agraves deusas virgens) em um mundo arcaico Este fato provoca um discurso relevante e

significativo na histoacuteria da mitologia e atribui a Heacutestia Atena e Aacutertemis uma posiccedilatildeo especial no

cenaacuterio dos deuses e deusas

Alguns aspectos satildeo pertinentes nesse tipo de investigaccedilatildeo primeiro levar em conta a

inseparabilidade do que se atribui ao mito com os dados histoacutericos e geograacuteficos que fazem parte

da narrativa poeacutetica de Homero de Hesiacuteodo e de outros autores daquela eacutepoca e de eacutepocas

proacuteximas consequumlentemente a relevacircncia do contexto soacutecio-cultural com seus elementos

significativos Aleacutem disso natildeo se pode deixar de considerar que o conceito de mito prevecirc nas

tentativas de defini-lo consideraccedilotildees que hoje se colocam como religiatildeo justamente pelo fato de

representarem o contexto soacutecio-histoacuterico ao qual nos referimos Desta forma a natureza os

deuses os homens o sagrado o profano o mortal o imortal faziam parte de uma mesma

temaacutetica organizando-se e reorganizando-se de acordo com os valores e os niacuteveis sociais das

comunidades gregas

Reflexotildees sobre essas questotildees que compotildeem o objeto de nosso estudo satildeo feitas em um

capiacutetulo como forma de um esclarecimento do assunto e como direccedilatildeo para encaminhamento e

aprofundamento em outro momento que se fizer oportuno

4

Eacute preciso poreacutem que fique claro que o objetivo de uma pesquisa como esta natildeo eacute dar

respostas definitivas mas antes levantar hipoacuteteses Como jaacute bem colocou Sartre ldquoEacute proacuteprio de

uma pesquisa ser indefinida Nomear e defini-la eacute fechar o ciclo o que restardquo2

Assim seratildeo propostas questotildees investigativas em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees miacuteticas que

envolvem o feminino no mundo arcaico grego Enfocar as trecircs deusas virgens na sua

independecircncia e na sua recusa agrave submissatildeo masculina aos laccedilos do casamento agrave fecundaccedilatildeo e

principalmente agrave entrega do desejo agrave philia a eros ou seja a Aphrodite pressupotildee uma

compreensatildeo da virgindade grega em uma sociedade patriarcal

A posiccedilatildeo de Aacutertemis Atena e Heacutestia em relaccedilatildeo a Afrodite revela um emparelhamento e

prevecirc variaccedilotildees de traccedilos que determinam o feminino em um espaccedilo soacutecio-cultural em que se

movem deuses heroacuteis e homens mortais Estabelece-se aiacute a virgindade como uma forma de Ser

como um paradigma (embora o termo possa parecer estruturalista) representativo do domiacutenio

social

Estatildeo pois colocadas no mundo grego arcaico a valorizaccedilatildeo do feminino e as diferentes

formas de atuar frente ao Kosmo quer seja nas manifestaccedilotildees da astuacutecia e da inteligecircncia quer

seja nas questotildees do olhar e dos rituais quer seja no acircmbito do desejo e da interdiccedilatildeo

As deusas gregas virgens fazem parte da conjugaccedilatildeo do imenso tabuleiro que a epopeacuteia

grega fez conhecer contandocantando

2 SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967

5

2 - ENCRUZANDO ASPECTOS DO COSMO NATUREZA DEUSES E HOMENS

ldquo O divino que nos poemas homeacutericos se apresenta com tanta clareza eacute multiforme e contudo sempre idecircntico a si mesmo por toda a parte Exprime-se em todas as suas formas um espiacuterito excelso um destino elevado Natildeo querem os referidos poemas aportar uma revelaccedilatildeo religiosa ou propor uma doutrina sobre os deuses Soacute querem visualizar e formar no gozo da visatildeo assim em face deles se expotildee o reino inteiro do mundo terra e ceacuteu aacutegua e ar aacutervores bichos homens e deusesrdquo3

21 - Fragmentos do ldquoUnordquo

Apesar de o estudo que se empreendeu ter como foco a questatildeo da virgindade de trecircs

deusas Heacutestia Aacutertemis e Atena percebe-se que esse elo comum que as une em um mesmo

aspecto tambeacutem determina caracteriacutesticas individuais diferentes o que as coloca em posiccedilotildees

que destacam suas funccedilotildees e participaccedilatildeo na vida do homem grego Assim nessa trajetoacuteria que

se percorreu evidenciou-se que a virgindade pode estar relacionada a diferentes fatores quer

sejam eles sociais culturais histoacutericos poliacuteticos ou mesmo individuais Essa referecircncia jaacute

destaca a questatildeo do conceito a questatildeo do amor e do desejo a questatildeo do nefando e do

inefaacutevel a questatildeo do casamento e da ligaccedilatildeo sexual a questatildeo do masculino e do feminino

enfim a questatildeo do corpo do olhar e do poder

O primeiro aspecto que nos trouxe embaraccedilo foi quando se propocircs separar algumas

partes em capiacutetulos Notou-se que os conceitos se enredavam todos permeando a vida dos

deuses dos homens sem deixar de ter a natureza colocada lado a lado nesse complexo

organizacional aparentemente inseparaacutevel Confirmando essa revelaccedilatildeo a obra de autores como

Homero Hesiacuteodo e autorescantores (chamados homeacuteridas que se diziam descendentes de

Homero) que cantavam os poemas de seu suposto antepassado que se constituiu corpus do

trabalho entrecruzavam os imortais os mortais e a natureza no mesmo espaccedilo coacutesmico

Essa aparente unidade coacutesmica possibilitou para alguns filoacutesofos interpretaccedilotildees de uma

unidade do mito como a que apresenta Torrano (1996) quando se reporta agrave ldquodescriccedilatildeo geral

desta ontologia iacutensita no mito do mundordquo

3 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p 12

6

Em liacutengua grega nos versos de Homero e de Hesiacuteodo em que ldquoconsubstancia-se a

necessaacuteria unidade de ilatecircncia de mito de culto e de cantordquo4 Assim os mortais ldquotranseuntes

do mundordquo satildeo interpelados pelos deuses isto eacute pelo proacuteprio mundo

Essa colocaccedilatildeo de deuses com uma posiccedilatildeo fundada na imortalidade distingue-os dos

homens na sua mortalidade e os posiciona como formas eternas do mundo Isso jaacute reflete que de

algum modo deuses e homens situam-se ainda que no mesmo cosmo em planos diferentes Os

homens se vecircem interpelados no dizer de Torrano por algo que os ldquoultrapassardquo e eacute justamente

essa energia coacutesmica que daacute ao homem sua substacircncia e que o coloca em movimento para que

sua natureza no mundo ganhe significaccedilatildeo ao mesmo tempo em que o mundo tambeacutem adquire

sentido Nesse movimento de matildeo dupla o homem descobre a sua existecircncia no mundo e o

mundo eacute o princiacutepio constitutivo originaacuterio da forccedila vital infinita e inexauriacutevel Para melhor

entender citamos Torrano

O eterno eacute pensado nesse movimento em que se unem identidade e alteridade nessa unidade vive o ser dos Deuses eles satildeo os que vivem para sempre e de uma soacute vez essa infinitude inexauriacutevel de vezes5

Portanto mesmo em se ressaltando a ideacuteia de unidade o que implica uma visatildeo

estruturalista sobressai um aspecto essencial em nosso entendimento o significado do Cosmo soacute

pode adquirir sentido a partir de um cruzamento Eacute na convergecircncia de deuses e de homens de

imortais e de mortais de eternos e de transeuntes de planos pois diferenciados se natildeo na sua

origem pelo menos nas suas formas existenciais que reside o discernimento complexo do divino

e do humano

Mais ainda a palavra grega cosmo Ќόσmicroος remete agrave definiccedilatildeo de um orderly or

harmonious system6 isto quer dizer que cosmos eacute a antiacutetese de Caos por representar uma

organizaccedilatildeo ordenada harmoniosa Aleacutem desse significado a que se ateve nas deduccedilotildees

apresentadas ateacute aqui haacute ainda o registro de que Cosmo significa ldquoornamentosrdquo

4 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 p 11 5 TORRANO JAA idem p19 6 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008

7

A palavra Ќόσmicroον eacute usada por Homero com essa conotaccedilatildeo (ornamentos) no canto XIV

da Iliacuteada verso 187 O mesmo sistema que organiza ornamenta Entatildeo poderiacuteamos questionar

em um arroubo de ousadia se a virgindade dentro desse sistema organizado seria uma forma de

ornamento que qualifica as deusas virgens como um atributo especial Seria o epiacuteteto ldquovirgemrdquo

um efeito esteacutetico dessa revelaccedilatildeo que indica um modo de harmonia Ficam aiacute questionamentos

para tambeacutem eles se enredarem nesse complexo mundocosmo grego De qualquer modo esse

epiacuteteto direcionado a Heacutestia Aacutertemis e Atena revela o uso de uma teacutecnica mnemocircnica

relacionada a algum aspecto significativo da ordem coacutesmica no enfoque das atribuiccedilotildees dessas

deusas A repeticcedilatildeo das palavras parthenos e koreacute referentes a elas mereceu reflexotildees que estatildeo

encaminhadas ao longo deste trabalho

Repensando pois o assunto da virgindade viu-se que se estava diante de um conflito

deleuziano criar um conceito nesse espaccedilo ldquohabitadordquo por deuses e homens Ainda reportando-

se a Deleuze e Guattari7 descobriu-se que pelo menos por esse vieacutes (que segundo os autores

natildeo deve ser considerado metodoloacutegico) seguia-se a trilha certa pois que Deleuze e Gattari em

se tratando de definir o conceito ressaltam o fato de que cada um remete a outros conceitos e

que seus componentes por sua vez podem ser entendidos como outros conceitos Foi

exatamente essa inseparabilidade de vaacuterios aspectos relacionados a esse remeter histoacuterico de

outros conceitos que ocorreu enquanto se procurava realizar um exame da virgindade evocada

por Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena

Deleuze e Guattari apontam para um ponto primordial da investigaccedilatildeo no que diz

respeito a essas vibraccedilotildees e encruzamentos de conceitos (em onde nos inspiramos para o tiacutetulo

dessa primeira parte - se assim se pode considerar -) que eacute a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da

incompletude com que se depara frente a uma tarefa desse porte Como determinar com umas

poucas palavras juntadas formando uma proposiccedilatildeo - que faz parte das ciecircncias - como definir a

virgindade como um traccedilo uacutenico de deusas distintas Essa posiccedilatildeo deleuziana esteve presente em

todas as nossas consideraccedilotildees em momentos que apresentavam divergecircncias e que

encaminhavam para um discurso polissecircmico marcado por diferentes vozes Procurou-se ter

sempre presente a fala de Deleuze e Guattari

7 DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed341997

8

Os conceitos como totalidades fragmentaacuterias natildeo satildeo sequer os pedaccedilos de um quebra-cabeccedila pois seus contornos irregulares natildeo se correspondem Eles formam um muro mas eacute um muro de pedras secas e se tudo eacute tomado conjuntamente eacute por caminhos divergentes8

Chegou-se entatildeo a uma postura ora se se estaacute examinando a obra de poetas eacute a partir

de suas colocaccedilotildees que a arte tira perceptos e afectos o que exige dizer que se trabalhou com

criaccedilotildees com deduccedilotildees com interpretaccedilotildees baseadas em um contexto - rdquoponte moacutevelrdquo - e natildeo

com verdades loacutegicas e cientiacuteficas Deixamos as verdades conclusivas para o domiacutenio da ciecircncia

e da filosofia se for o caso Fica-se com as hipoacuteteses e com as conjeturas a partir do discurso

literaacuterio Fica-se com as narrativas miacuteticas que se prendem a questotildees histoacuterico-sociais

reveladoras de sentido fica-se com a manifestaccedilatildeo do poder social que direciona o discurso da

sociedade que tinha na sua Teogonia o relato das origens do mundo mas que eacute muito mais

revelador do que apresenta ser quando comparado aos relatos miacuteticos dos hititas e dos feniacutecios e

com as teogonias da Babilocircnia9

A questatildeo da verdade se entendida no domiacutenio do homem grego aleacutetheia diz Torrano

reportando-se a Heidegger e a Detienne seraacute ldquoilatecircnciardquo o que marca a presenccedila pois natildeo pode

ser ocultado Desta forma se assim entendido no movimento de serem virgens que as deusas

Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena se constituem como aquilo que aparece e marca uma verdade A

virgindade entendida pois como o traccedilo mais caracteriacutestico dessas deusas

No desvelar-se das formas divinas impera ilatecircncia como fundaccedilatildeo da presenccedila e dos vaacuterios modos de latecircncia e de aparecircncia10

Os deuses satildeo as formas miacuteticas que constituem os elementos que justificam a presenccedila

do homem no cosmo poreacutem estudar a mitologia grega eacute acima de tudo mexer na memoacuteria

social de um povo tentando captar a essecircncia das narrativas que apresentam o divino e o humano

lado a lado ora aproximando-os e fundindo-os ora distanciando-os e ressaltando uma paixatildeo ou

um sentimento que evidencie o sagrado pela marca desta ou daquela estranheza que chega a

tocar o fantaacutestico De qualquer forma caminham lado a lado homens e deuses o real e o

imaginaacuterio entrelaccedilando-se na vida ciacutevica e na vida religiosa

8 DELEUZE Gilles e GUATARI Feacutelix Idem p 35 9 A respeito das Teogonias verificar Marcel Detienne e JP Vernant 10 TORRANO JAA op cit p 18

9

Como bem definiu Vernant eacute impossiacutevel separar de qualquer estudo que examine

aspectos do mundo grego ldquoaquilo a que se chamaria de bom grado o estilo religioso gregordquo11

A referecircncia a essa posiccedilatildeo faz-se necessaacuteria para se entender o mundo grego com todas

as suas caracteriacutesticas filosoacutefico-culturais pois que direciona o olhar para uma eacutepoca em que o

politeiacutesmo natildeo implicava a onipotecircncia e a transcendecircncia como se entende no estatuto da

religiatildeo cristatilde Pelo contraacuterio os deuses gregos foram criados com o mundo e complementam-se

nas suas funccedilotildees e na sua multiplicidade Os deuses gregos fazem parte da gecircnese do mundo e

para Vernant satildeo antes considerados Potecircncias - natildeo apenas formas - e portanto tecircm aspectos

mundanos e divinos pois pertencem agrave organizaccedilatildeo do universo e agrave vida social dos homens

Acreditamos que essa posiccedilatildeo tambeacutem enfatiza a questatildeo do impulso da ilatecircncia a que se

atribui aos deuses na visatildeo fundamentalista A palavra potecircncia natildeo se refere simplesmente a

poder e a forccedila aplicada para a realizaccedilatildeo de um efeito mas tambeacutem um elemento gerador de um

impulso de uma energia organizando o espaccedilo (Kosmos) enquanto se define a presenccedila do

homem na terra

As ciecircncias humanas e a filosofia acabaram por criar uma ruptura com o pensamento

antigo na medida em que tentaram racionalizar e demonstrar a concepccedilatildeo de mundo da

Antiguidade Como esse natildeo eacute o foco de nosso objeto de estudo deu-se ecircnfase ao dizer

invocativo que a poesia de Homero de Hesiacuteodo e de outros rapsodos revela Como declara

Chacirctelet12 eacute essa concepccedilatildeo de mundo arcaico que marcaraacute uma tradiccedilatildeo essencialmente

diferente da tradiccedilatildeo que mais tarde as filosofias da Idade Medieval e da Idade Moderna teratildeo

de se haver no que diz respeito agrave organizaccedilatildeo religiosa ligada agrave revelaccedilatildeo cristatilde e agrave ordem

soacutecio-econocircmico-poliacutetica A natureza agrave qual os aedos se referem nada tem a ver com os siacutembolos

que a Idade Meacutedia se ldquoimporaacute decifrar nem com o sistema de equaccedilotildees e de maacutequinas que o

pensamento moderno iraacute proporrdquo 13

O que parece fundamental eacute tentar entender o pensamento da eacutepoca arcaica que expressa

a relaccedilatildeo do indiviacuteduo com tudo que o circunda

11 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p11 12 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 13 CHAcircTELET Franccedilois Idem p14

10

seu imaginaacuterio e seus deuses seus concidadatildeos e seus familiares as coisas que o fazem sofrer e as de que frui seu proacuteprio pensamento e os objetivos que lhe estabelecem14

Eacute exatamente com base nessa concepccedilatildeo de mundo que se eacute tentado a estabelecer o uno

como condiccedilatildeo essencial da Antiguidade Poreacutem como demonstram Deleuze e Guattari e como

questiona Chacirctelet a ideacuteia de aceitar uma concepccedilatildeo de mundo fechada sobre si mesmo eacute

tentadora poreacutem a Filosofia natildeo conseguiu elaborar uma linha uacutenica que possa conceituar ou

traccedilar um perfil fechado desse tempo Sobre isso diz Chacirctelet

Uns o tomaratildeo por ldquoperiacuteodo originaacuteriordquo inscrevendo sua marca indeleacutevel na ordem do espiacuterito outros progressistas agrave sua maneira veratildeo aiacute uma primeira etapa edificante na elaboraccedilatildeo do saber outros enfim ldquoregressistasrdquo a compreenderatildeo como marca de um passado que por natureza deve estar indefinidamente perdido15

Eacute nessa etapa da produccedilatildeo escrita ndash que podemos chamar de primeira ndash que nos detemos

nas aventuras de deuses e de heroacuteis na louvaccedilatildeo de entidades divinas na origem da organizaccedilatildeo

do cosmo Enfim no que se considera caracteriacutestico daquele periacuteodo a poesia eacutepica

Nesse campo que movimenta linguagem e cultura procuramos perseguir o conceito de

virgindade na representaccedilatildeo das deusas consideradas virgens sem fragmentaacute-las sem retiraacute-las

do panteatildeo grego mas concebendo-as como peccedilas do jogo de palavras que se vai compondo em

relaccedilatildeo aos outros deuses e deusas e em relaccedilatildeo ao desejo e agraves questotildees de gecircnero que perpassam

o humano desde o iniacutecio de sua origem escrita Portanto seraacute que desejo e poder se opotildeem agrave

virgindade ou fazem parte desse mesmo cosmo uno Fica aiacute mais uma pergunta

22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees

Eacute a partir da narrativa da criaccedilatildeo do mundo que se encontra a primeira referecircncia ao amor

e agrave fecundidade Assim sendo pode-se dizer que a virgindade estaacute subentendida nesse

mecanismo de misteacuterio e de forccedila que determina a procriaccedilatildeo Tanto em Homero quanto em

Hesiacuteodo encontram-se relatos narrativos da criaccedilatildeo do mundo Embora apresentem

interpretaccedilotildees diferentes a noccedilatildeo de fertilidade e de divindade feminina fecundada estaacute presente

nos conteuacutedos referentes a essas narrativas de tradiccedilatildeo mitoloacutegica dos deuses primordiais

14 CHAcircTELET Franccedilois Op cit p14 15 Idem

11

Na Iliacuteada XIV v 197 e seguintes no momento em que Hera estaacute dialogando com

Afrodite ela lhe fala de Oceano o pai de todos os deuses e da matildee primordial Teacutetis que a

acolheram e a nutriram e que naquele momento de discoacuterdia entre eles ela gostaria de ajudar

com o propoacutesito de que pusessem um fim nessa discoacuterdia reatando a afeiccedilatildeo e portanto

voltando a aproximarem-se do leito do matrimocircnio Reproduzimos a seguir um trecho da fala de

Hera a Afrodite no momento em que solicita sua ajuda Apresentamos a traduccedilatildeo de Murray

antes de examinarmos as palavras em grego de interesse para nosso estudo

ldquoGive me now love and desire wherewith thou 198 art wont to subdue all immortals and mortal men

E Hera continua referindo-se a Oceano e Teacutetishelliphelliphellip

Them am I faring to visit and will loose for them their endless strife 205 since now for a long timersquos space they hold aloof one from the other 206 from the marriage- bed and from love for that wrath hath come upon their heartshellip1617 207

Eacute interessante refletir sobre a escolha das palavras usadas por Homero nesses versos e a

significaccedilatildeo decorrente delas para nossas consideraccedilotildees sobre o universo feminino envolvendo

conceitos de virgindade de amor de desejo de fecundidade e ateacute mesmo de discoacuterdia entre os

sujeitos de gecircneros diferentes desde a narrativa da origem do mundo

Primeiramente o autor usa a palavra grega philotes (φιλότης) referindo-se ao amor

Segundo o dicionaacuterio Bailly (2000) essa palavra tem o significado de amor (amour) nesse

contexto (xiv v 198) Podemos pois inferir que eacute um tipo de amor que envolve laccedilos afetivos

ternura e amizade como seraacute posteriormente colocado pelos filoacutesofos No entanto a mesma

palavra philotes ou seja amor usada no verso 209 (ldquojoined together in loverdquo) acompanhada da

palavra όmicroωθήναι (omothenai) juntar e da palavra ευνής (euneacutes)isto eacute leito (XIV 206) tem

um significado de relaccedilatildeo iacutentima envolvendo pois uma noccedilatildeo de sexualidade

16 HOMER The Iliad v 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 17 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 ldquoDaacute-me o desejo e o feiticcedilo do amor com que sempre domaste (v 198) todos os deuses eternos e os homens de curta existecircncia (v199) vou visitaacute-los com o fim de compor-lhes antiga discoacuterdia (v 205) Haacute muito que ambos o leito apartaram desta arte se abstendo dos gratos elos do amor por se acharem inflados de coacutelerardquo (v 207)

12

Fica clara a relaccedilatildeo carnal como parte das atividades dos deuses e a questatildeo do leito

nupcial como local dos relacionamentos secretos Deuses e homens compartilhavam das mesmas

experiecircncias pois como jaacute fizemos referecircncia anteriormente viviam lado a lado O pensamento

poeacutetico tece o texto de forma tatildeo clara e objetiva que nos leva agrave investigaccedilatildeo do campo

semacircntico tais as palavras usadas para dizer de modo natildeo-velado de modo revelador e expliacutecito

o que Hera espera do compartilhamento que envolve o masculino e o feminino

Haacute vaacuterias outras passagens na Iliacuteada em que o autor se refere aos momentos de relaccedilotildees

iacutentimas entre os deuses mostrando que o desejo imeros [ιmicroερος] fazia parte do amor das

relaccedilotildees que se espera que aconteccedilam como atribuiccedilatildeo do universo de natureza divina Assim as

relaccedilotildees sexuais satildeo previsiacuteveis entre os deuses e eacute uma forma de manifestaccedilatildeo de amor entre os

gecircneros diferentes Haja vista que em sua fala Hera coloca que a discoacuterdia νειχεα entre esses

dois deuses primordiais Oceano e Teacutetis havia feito com que eles se afastassem do amor e

consequumlentemente do leito do casamento

Aleacutem disso parece que Homero como bom conhecedor da natureza humana coloca na

fala de Hera o pedido a Afrodite (deusa que subjuga os imortais e os mortais na questatildeo do amor)

de dar a Oceano e Teacutetis natildeo apenas amor mas amor e desejo pois que amor e desejo se

complementam e o desejo promove a manifestaccedilatildeo do amor quer atraveacutes dos sentimentos quer

atraveacutes dos contatos fiacutesicos como forma de expressatildeo e de representaccedilatildeo do sentimento

Eacute interessante observar que a forma Фιλοτήτος eacute usada nesses versos por Homero e que a

expressatildeo da presenccedila do desejo ou da representaccedilatildeo da sexualidade vem acompanhada de outras

palavras No entanto ainda no canto XIV Homero usa o termo ερος como no verso 315

significando entatildeo desejo

Essa variaccedilatildeo na escolha do leacutexico parece remeter a uma variaccedilatildeo semacircntica significativa

A expressatildeo ldquoamor e desejordquo ou seja philotes e imeros eacute entatildeo substituiacuteda por eros Para ερος

nesse contexto Il XIV315 Bailly apresenta a traduccedilatildeo para o francecircs passion amour [θεας

Ѓϋναιχος] correspondendo a ldquoamour pour une deacuteesse une femmerdquo18 Jaacute parece estar impliacutecita

em eros a questatildeo do desejo

18 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par SEacuteCHANT L et CHANTRAINE P Paris Hachette 2000 p 808

13

A presenccedila de Afrodite eacute evocada na combinaccedilatildeo de forccedilas que a deusa representa pois

sempre a acompanham Peithocirc a persuasatildeo alegre trapaceira e Apaacutete a ilusatildeo enganosa da

ternura O pensamento miacutetico eacute ambivalente na criaccedilatildeo de associaccedilotildees e se tece com diferentes

tons como ldquouma fita bordadardquo19

Fazemos nossas as palavras de Fontes quando ele se refere ao movimento das palavras agrave

multiplicidade de sentidos subjacentes a ela dentro do quadro cultural agrave mobilidade dos

conceitos que se enredam na tessitura do mundo miacutetico na composiccedilatildeo poeacutetica

O poema eacute com efeito como diraacute mais tarde Dioniacutesio de Halicarnasso um tecido precioso que nasce das matildeos do poeta quando ele reuacutene diversas liacutenguas numa soacute a nobre e a simples a elaborada e a natural a concisa e a extraordinaacuteria Mas o tecido de muitas cores onde os contraacuterios se misturam harmoniosamente eacute ele proacuteprio semelhante a Proteu o deus muacuteltiplo e inconstante que eacute aacutegua fogo aacutervoreleatildeo que reuacutene todas as formas numa soacute Da mesma maneira a seduccedilatildeo da palavra poeacutetica por meio dos prazeres do canto das medidas e dos ritmos eacute anaacuteloga agrave seduccedilatildeo exercida pela mulher por meio do lsquoencanto do olharrsquo (khaacuteris oacutepseoumls) pela lsquodoccedilura persuasiva da vozrsquo pela lsquoatraccedilatildeo da beleza do corpo20

Pois assim eacute que Homero e Hesiacuteodo misturaram em seus poemas deuses homens

paixotildees e desejos como pertencendo ao mesmo ceacuteu que os cobriam com voluacutepia agrave mesma aacutegua

que os inundava de espuma feacutertil agrave mesma terra que os acolhia com sua fecundidade criadora

As religiotildees de base cristatilde dessacralizaram a natureza e introduziram o modelo da

salvaccedilatildeo pessoal Em Homero ao contraacuterio a palavra tambeacutem fazia parte da phyacutesis mediando

deuses homens e natureza agrave qual tambeacutem pertencia

Assim em uma comparaccedilatildeo da postura e da feacute que move a religiatildeo grega em relaccedilatildeo agrave

religiatildeo cristatilde os gregos manifestavam uma atitude de respeito de preces de oferendas e de

sacrifiacutecios mas como parte de um empreendimento de trocas que experimentavam a partir da

adesatildeo de um costume jaacute estabelecido como suporte da proacutepria existecircncia e que por isso natildeo

precisava ser justificado Desde que havia cultos e rituais era porque eles se provaram

necessaacuterios Como seria possiacutevel conceber um deus transcendental se apenas mais tarde (por

volta do seacuteculo V aC) introduz-se o conceito de transcendecircncia com a filosofia platocircnica e o

mundo das Ideacuteias

19 Verificar sobre esse tema a obra de FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p247 20 FONTES Joaquim Brasil Idem p249

14

Para esclarecer essa questatildeo do movimento de pensamento ascensional nada melhor do

que reportar-se a Deleuze que discorrendo sobre imagens de filoacutesofos tece consideraccedilotildees sobre

o que se entende como princiacutepio filosoacutefico do meacutetodo ldquodas alturasrdquo como oposto ao sistema que

norteou o mundo fundamentalista grego Primeiro Deleuze questiona o que eacute orientar-se no

pensamento esclarecendo que cabe ao filoacutesofo efetuar uma operaccedilatildeo

Entatildeo determinada como ascensatildeo como conversatildeo isto eacute como o movimento de se voltar para o princiacutepio do alto do qual ele procede e de se determinar de se preencher e de se conhecer graccedilas a uma tal movimentaccedilatildeo21

Ora como poderiam os gregos que viveram antes de Platatildeo conseguir estabelecer um

pensamento que se vincula antes ao proacuteprio ato de pensar do que na experiecircncia da vida Essa

colocaccedilatildeo revela uma conclusatildeo baacutesica no entendimento da cultura grega politeiacutesta cuidava-se

dos estados da vida Ainda natildeo se colocava para os gregos o problema da orientaccedilatildeo do ato de

pensar Os deuses natildeo satildeo forccedilas naturais satildeo detentores de soberania exercendo poderes em

diferentes e diversos domiacutenios Para os gregos natildeo era preciso que houvesse uma revelaccedilatildeo para

fundamentar suas relaccedilotildees com o sobrenatural Elas eram representadas e perpetuadas na figura

dos deuses e nos cultos e rituais Fazia parte da vida como o uso do idioma como pertencente agrave

phyacutesis isto eacute agrave proacutepria natureza Acredita-se como Vernant que debruccedilar-se sobre o estudo de

um aspecto dos deuses leva a adentrar em um mundo em que

Entre o religioso e o social o domeacutestico e o ciacutevico portanto natildeo haacute oposiccedilatildeo nem corte niacutetido assim como entre sobrenatural e natural divino e mundano A religiatildeo grega natildeo constitui um setor agrave parte fechado em seus limites e superpondo-se agrave vida familiar profissional poliacutetica ou de lazer sem confundir-se com ela 22

Desta maneira viam os gregos em seus deuses valores e plenitudes que importam na

existecircncia terrestre Para que mais Todas as manifestaccedilotildees terrestres tinham seu lado sagrado

promovendo uma atitude dos cidadatildeos de se espelharem nos deuses natildeo de forma a reivindicar

favores individuais mas como exemplo de valores e do modo de ser que compotildeem a vida

Reforccedilando essa posiccedilatildeo da impossibilidade de uma separaccedilatildeo do que hoje se denomina

mitologia dos demais componentes culturais da sociedade grega podemos citar as palavras de

Berman DW no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo norte-americana do livro de Calame

21 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 p131 22 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p7

15

For the Greeks there is no ldquohistoryrdquo as distinct from the narrative (and until a relatively late date poetic) tradition and no ldquomythrdquo that is not implicated in the process of discourse production ldquoMythrdquo and ldquohistoryrdquo as defined in their modern senses cannot be separated 23

Esse enfoque reafirma o conceito de mito (mythos) usado por Aristoacuteteles em sua Poeacutetica

em que daacute especial relevacircncia ao mito ou seja agrave ldquohistoacuteriardquo Embora Aristoacuteteles esteja se

referindo especificamente aos componentes da trageacutedia podemos dilatar esse conceito no que se

refere agrave tradiccedilatildeo poeacutetica grega pois as narrativas de deuses e de heroacuteis tambeacutem continham

elementos que depois passaram a constituir partes integrantes da trageacutedia Estavam portanto

relacionados nos poemas eacutepicos o mito e a accedilatildeo o terror e a piedade o reconhecimento e a

questatildeo da verdade que seraacute examinada posteriormente tendo-se em vista os trabalhos de Veyne

e de Deleuze

O proacuteprio termo mito transforma-se pois o conceito eacute sempre acompanhado de um

constante processo de devir condiccedilatildeo de percepccedilatildeo da passagem de um mundo a outro

construindo-se e dissolvendo-se em outras coisas Assim natildeo podemos deixar de citar que no

tempo de Homero o conceito de mythos significava a palavra como se pode ver em um

pequeno trecho da Iliacuteada ldquoto be both a speaker of words and a doer of deedsrdquo (9443) 24 em

que mythos opotildee-se a ergon De acordo com Bailly somente apoacutes Homero o termo passa a ser

usado como faacutebula (ldquofablerdquo) particularmente com o sentido de lenda (leacutegende) em oposiccedilatildeo a

logos que ainda tendo como base Bailly25 a coloca como a palavra em geral (la parole)

Este cruzamento linguumliacutestico tenta revelar o ldquojogordquo de significados dos quais participavam

natureza deuses e homens formando o grande cenaacuterio do mundo grego Nesse mesmo cenaacuterio

trecircs personagens tinham uma atuaccedilatildeo que surpreendia pela caracteriacutestica que as diferenciava a

castidade e a forte determinaccedilatildeo de manterem-se virgens

23 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 p xvii ldquoPara os gregos natildeo haacute ldquohistoacuteriardquo como distinta da tradiccedilatildeo narrativa (e ateacute uma data relativamente recente poeacutetica) e nem mito que natildeo esteja enredado no processo de produccedilatildeo do discurso ldquoMitordquo e ldquohistoacuteriardquo como definidos em seus significados modernos natildeo podem ser separadosrdquo 24 HOMER Op cit p414 ldquohellip para ser tanto um orador de palavras quanto um realizador de accedilotildeesrdquo 25 BAILLY Anatole opcit

17

3 - A QUESTAtildeO METODOLOacuteGICA UM OLHAR SOBRE A PESQUISA BIBLIOGRAacuteFICA

Jaacute Aristoacuteteles tinha afastado a histoacuteria do mundo das ciecircncias precisamente porque ela se ocupa do particular que natildeo eacute um objeto da ciecircncia - cada fato histoacuterico soacute aconteceu e soacute aconteceraacute uma vez Esta singularidade constitui para muitos produtores ou consumidores de histoacuteria a sua principal atraccedilatildeo ldquoAmar o que nunca se veraacute duas vezesrdquo26

O objeto de estudo as deusas gregas virgens faz parte de um sistema do complexo

processo social e cultural de um povo Assim sendo o corpus selecionado como ponto de partida

remete a consideraccedilotildees explicaccedilotildees suposiccedilotildees e interpretaccedilotildees calcadas em uma posiccedilatildeo

teoacuterica

Como ler hinos e narrativas eacutepicas que falam das deusas das funccedilotildees e das caracteriacutesticas

que se pretendem conhecer e investigar sem optar por um caminho por uma demonstraccedilatildeo da

maneira como a histoacuteria coloca os modos de ser e de fazer dos homens em um dado tempo

Como o pensamento antropoloacutegico articula-se elaborando ldquoverdadesrdquo tradiccedilotildees inquestionaacuteveis

maneiras de agir coletivas que se aplicam a um povo delineando os traccedilos niacutetidos de seu perfil

independente de traccedilos iguais ou semelhantes em outros povos

As marcas que os nomeiam satildeo uacutenicas fazem-se peculiares distintas ldquofalamrdquo com

sotaque proacuteprio O homem se enraiacuteza ao solo funda-o e surge o nativo de um pedaccedilo geograacutefico

com uma identidade que lhe confere um nome localizado no espaccedilo vestiacutegios da sua construccedilatildeo

nesse cenaacuterio que se vai delimitando com contornos especiacuteficos Eacute nesse desenho do coraccedilatildeo

humano que a antropologia ausculta compara e prescreve Lanccedilou-se matildeo do estetoscoacutepio da

antropologia que examina o saber local que o investiga e como todo o envolvimento humano

tenta diagnosticar atraveacutes das pistas

O nosso olhar poreacutem natildeo se prende de modo exaustivo a uma uacutenica linha teoacuterica como

acircncora pretende ser sobretudo uma interpretaccedilatildeo uma contribuiccedilatildeo explicativa para o

fenocircmeno soacutecio-cultural da virgindade das deusas gregas com base em tudo o que jaacute foi dito e

revisto

26 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003

18

Quando se opta por uma linha epistemoloacutegica esse movimento jaacute determina que outras

teorias forneceratildeo posiccedilotildees antagocircnicas e outras ainda informaccedilotildees complementares A questatildeo

da verdade pertence pois ao seio da indagaccedilatildeo e nossa pesquisa natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilaacute-

la Propotildee-se apenas um pequeno vieacutes um ponto de vista a partir do acircngulo de nossa visatildeo jaacute por

si soacute especificada e direcionada pelo que a nossa individualidade eacute afetada pelo contexto cultural

que a determina

Nossa escolha por uma linha antropoloacutegica ou melhor pelo caraacuteter heterogecircneo dos

significados culturais justifica-se embora com propoacutesitos diferentes a partir das colocaccedilotildees

entatildeo feitas por Heroacutedoto (por volta de 450 a C) que acreditava que a vitoacuteria grega sobre os

persas natildeo se devia agrave bravura dos homens ou agrave vontade dos deuses mas ao resultado do conflito

entre culturas

Eacute pois com essa mesma interpretaccedilatildeo de levantar problemas e de descrever alguns

aspectos relevantes da diversidade cultural onde deusas gregas ditas virgens eram reverenciadas

ao lado de outras deusas e de deuses e de refletir sobre a evoluccedilatildeo do conceito da virgindade

atraveacutes dos tempos colocado em contextos diferentes que nossas indagaccedilotildees se apoacuteiam em uma

linha antropoloacutegica comparativa

Nesse percurso que se decidiu seguir verificou-se que muitas vezes dentro da busca pela

explicaccedilatildeo dos acontecimentos teorias divergem sobre os mesmos aspectos e alguns autores

criticam questionam levantam hipoacuteteses sobre outros autores e sobre os mesmos fatos

Descobrimos entatildeo que aleacutem do social as teorias encontram-se fatalmente ligadas a uma

posiccedilatildeo poliacutetica Assim sendo nosso trabalho como qualquer outro jaacute traz em si perigos pois

direciona a escolha dos acontecimentos e determina um estilo para representar as significaccedilotildees

culturais Como se isso natildeo bastasse os conceitos satildeo sempre ldquoprovisoacuteriosrdquo e movimentam-se

transfigurando-se para novas significaccedilotildees

Como diz Layton vamos procurar fazer uma ldquotraduccedilatildeo da culturardquo buscando o

entendimento dos ldquoaparentemente exoacuteticos costumesrdquo dos gregos da eacutepoca de Homero e de

Hesiacuteodo ldquocom os quais natildeo nos encontramos familiarizadosrdquo27

27 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 p11

19

De algum modo poreacutem nossa atenccedilatildeo se dirige para aspectos caracteriacutesticos do

comportamento social que o corpus selecionado revela sugerindo ligaccedilotildees entre aquilo que

lemos e aquilo que pode significar

Faz-se importante frisar que embora nossas propostas tragam em si preocupaccedilotildees de

caraacuteter social este estudo natildeo deve excluir consideraccedilotildees de enfoque do acircmbito da religiatildeo pois

que mito e religiatildeo se entrecruzam na dimensatildeo mitoloacutegica A religiatildeo como parte do estatuto

histoacuterico e das formas de pensar de agir de acreditar de um povo refletem um comportamento

obrigatoacuterio uma ldquoinfluecircncia coerciva sobre as consciecircncias individuais28rdquo

Em se priorizando preocupaccedilotildees culturais abrangentes verifica-se em um segundo

momento desta abordagem que o texto escrito eacute revelador de um significado soacutecio-histoacuterico-

cultural e parte-se dele como exemplo de um corpus usado na aacuterea da literatura que transcende o

aspecto linguumliacutestico nas suas significaccedilotildees muacuteltiplas na sua dinacircmica complexa nas suas tensotildees

geradoras de oposiccedilotildees nas suas metaacuteforas vigorosas nas suas narrativas extraordinaacuterias nas

descriccedilotildees ldquorepetitivasrdquo de dons e de atributos divinos e heroacuteicos

Aleacutem disso uma metodologia direcionada aos fazeres e agires humanos natildeo deve excluir

funccedilotildees pois satildeo elas que orientam o cumprimento das obrigaccedilotildees contratuais dos deveres

sociais e das crenccedilas morais previamente definidas e existentes no contexto cultural de forma

ampla exteriores ao individual

O estatuto impotildee-se aos sujeitos independentemente de seu desejo e para pertencer a um

grupo tem-se que seguir os mesmos ideais e as mesmas crenccedilas

Eacute com o pensamento voltado ao ato de criar de estabelecer normas e de verificar efeitos

de comportamentos que dirigem um povo que se deve tentar interpretar isto eacute entender do

exterior e agrave distacircncia grandes relatos da tradiccedilatildeo grega que datam do seacuteculo VIII-VII antes da

nossa era Toda a praacutetica narrada na escrita de Homero e de Hesiacuteodo constitui a representaccedilatildeo de

um sistema em accedilatildeo e natildeo pode pois ser surda e silenciosa aos sabores de uma eacutepoca Eacute nesse

trabalho que se percebe como a noccedilatildeo de mythos foi elaborada e se enraizou no solo grego Isso

conduz por seu turno agrave questatildeo do conceito

28 DURKHEIM apud LAYTON Op cit p 34

20

Como entender o mito e a mitologia Como ler esses relatos fantasiosos da tradiccedilatildeo

ldquodenunciada como inaceitaacutevel ou como natildeo sendo mais digna de credibilidade29rdquo como

questionava Tuciacutededes a partir de sua vertente histoacuterica

Recorremos agraves reflexotildees de Detienne30 sobre esse assunto Embora em um primeiro

momento (seacuteculo VII a C) a filosofia tenha atribuiacutedo ao mythos o sentido da narraccedilatildeo inventiva

e de relatos baacuterbaros a evoluccedilatildeo semacircntica do termo o conduz agrave conotaccedilatildeo de revoluccedilatildeo devido

agrave revelaccedilatildeo do partido dos sacircmios os mythiegravetai contra a tirania de Policrato

Com base no poema de Anacreonte de Samos no seacuteculo V aC a palavra mythos eacute usada

por Piacutendaro e por Heroacutedoto com restriccedilatildeo atribuindo-lhe o significado de ldquoo discurso dos outros

enquanto ilusoacuterio incriacutevel e estuacutepidordquo 31

Dessa forma os relatos histoacutericos procuram se apoiar nos logoi discursos

argumentativos enquanto os mythoi excluem a argumentaccedilatildeo raspando todo vestiacutegio de

observaccedilatildeo empiacuterica Assim nesse estado de coisas como coloca Detienne

Falar de mito eacute um modo de contar o escacircndalo de apontaacute-lo Mythos eacute uma palavra-gesto muito cocircmoda suficiente para denunciar a tolice a ficccedilatildeo ou o absurdo e confundi-los imediatamente32

Soacute no final do seacuteculo V eacute que o mythos deixa de ter sua conotaccedilatildeo de lugar-narrado (lieu-

dit) para se tornar discurso de uma forma de saber com base no que foi escrito pelos bioacutegrafos e

pelos poetas Eacute assim que o mito recortado da atividade histoacuterica designa um domiacutenio que

encerra a capacidade de narrar e de memorizar

Entramos pois no campo da memoacuteria fraacutegil e faliacutevel Quanto mais se distancia do

tempo menos criacutevel ela fica e mais e mais suas aacuteguas se engrossam tornando-se caudalosas

Natildeo eacute mais a verdade o que interessa o fato apontado desenhado em cima de si mesmo mas a

beleza do relato que envolve que narra o fabuloso que apresenta o inacreditaacutevel como prodiacutegio

Eacute com essa vestimenta leve e transparente que agora a chamada mitologia ndash os escritos

reunidos dos contemporacircneos ndash sofre a criacutetica de Platatildeo principalmente no que concerne aos

29 DETIENNE Marcel Os Gregos e Noacutes Uma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p39 30 DETIENNE Marcel Idem 31 DETIENNE Marcel Op cit 32 Idem p 41

21

aspectos formais e riacutetmicos para fins de memorizaccedilatildeo Para o filoacutesofo esse meio de expressatildeo

para estimular a memoacuteria e a comunicaccedilatildeo para privilegiar a audiccedilatildeo era

o sinal irrefutaacutevel de sua pertinecircncia ao mundo polimorfo e colorido de tudo que deleita a parte inferior da alma esse reino solitaacuterio onde as paixotildees e os desejos enlouquecem O discurso da mitologia natildeo somente eacute escandaloso ndash e o pesquisador da Repuacuteblica cataloga histoacuterias obscenas selvagens e absurdas - mas eacute perigoso pelos efeitos ilusoacuterios que acarreta a comunicaccedilatildeo da boca ao ouvido visto natildeo ser nem fiscalizada nem controlada33

Poreacutem como diz Detienne Platatildeo tentou inventar uma nova mitologia Pode-se pois

dizer que o filoacutesofo buscou trocar uma mentira por outra uma ldquobela mentira uacutetil capaz de

realizar para todos livremente tudo o que eacute justo34rdquo Assim nas suas Leis Platatildeo quer propor

uma nova tradiccedilatildeo substituindo o canto das musas e o murmuacuterio dos deuses narrados pelos

poetas dos seacuteculos anteriores

Ora eacute fundamental que se considere que eacute esse objeto que deve ser entendido na sua

riqueza humana na sua ambivalecircncia na sua multiplicidade de planos na variedade de niacuteveis de

sua significaccedilatildeo na diversidade dos contextos na singularidade de sua criaccedilatildeo Ou ainda como

diz Torrano acerca de sua anaacutelise sobre a Teogonia quando o corpus que se propotildee analisar

refere-se ao que chama de mitologia tambeacutem o estudo que se propotildee nada mais eacute do que um

ldquodiscurso sobre uma canccedilatildeo numinosa35rdquo veiacuteculo do saber de um tempo em um complexo

contexto cultural O que vale dizer pois que o mito eacute identificado por todos os leitores por seu

sentido relacional intriacutenseco pelas diferentes versotildees que ele pode conter e pelo contexto

etnograacutefico que subjaz aos seus planos significantes

Eacute com essa visatildeo que a anaacutelise se permite ser comparativa Nessa tentativa de comparar

conceitos e posiccedilotildees para alargar o entendimento do mito que nosso estudo evidencia a partir das

deusas gregas virgens que lanccedilamos matildeo de uma perspectiva social de linha antropoloacutegica geral

proposta por Durkheim

Para esse autor conceitos sociais gerais provocam o mesmo efeito da organizaccedilatildeo das

instituiccedilotildees isto eacute em determinados periacuteodos histoacutericos todas as sociedades estatildeo sujeitas a

condicionalismos que se apoderam das multidotildees e fazem-nas interagir e mover-se Assim ondas

33 Idem p 43 34 Idem p43 35 HESIgraveODO Teogonia A Origem dos deuses Estudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p13

22

de entusiasmo de paixatildeo de indignaccedilatildeo apoderam-se do povo de um paiacutes em um momento e o

impulsionam Acredita-se que essa posiccedilatildeo possa ser defendida na interpretaccedilatildeo de alguns

elementos significantes pois as narrativas miacuteticas e os rituais satildeo impelidos por uma forccedila ampla

que abrange todas as esferas A dinacircmica desse movimento perpassa a obra dos poetas em foco e

compotildee parte do conteuacutedo que acompanha o ritmo discursivo dos versos selecionados como

corpus

A chave fundamental de uma linha epistemoloacutegica calcada na antropologia eacute a de

compreender que cada sociedade delineia suas proacuteprias instituiccedilotildees que concebe seus padrotildees de

comportamento que desenha seus espaccedilos que considera as formas de sua organizaccedilatildeo social

que determina seus valores e impotildee sistemas Argumentando em favor de uma antropologia

comparada citamos uma posiccedilatildeo de Durkheim apud Layton

Uma vez que os fenocircmenos sociais natildeo podem ser controlados experimentalmente o uacutenico meacutetodo cientiacutefico apropriado para o trabalho do cientista eacute o comparativo36

ldquoA arte de construir comparaacuteveisrdquo como diz Detienne37 parece-nos pois um caminho

que permite colocar questotildees apontar direccedilotildees considerar diferenccedilas perceber as tensotildees e

acima de tudo dimensionar a necessidade de escolher uma categoria o que faz com que a

hipoacutetese levantada possa ganhar contornos de um desenho definido

Reproduzindo fielmente as palavras de Detienne38 inspirado no trabalho de Geertz tem-

se que

Se um historiador ou um etnoacutelogo debruccedilado sobre uma bem definida questatildeo local percebe que nossa representaccedilatildeo do que eacute uma ldquopessoardquo eacute uma ideacuteia bastante especial no conjunto das culturas do mundo ele comeccedila a antropologia Ao menos um primeiro passo O segundo poderia ser a descoberta do que ldquopara melhor analisar as formas simboacutelicas de uma cultura estrangeira eacute preciso bisbilhotar as peculiaridades de um outro povordquo

Portanto a centralidade da cultura enquanto conceito de base parece ser o ponto-chave

natildeo apenas dos estudos da antropologia americana mas tambeacutem de autores europeus como no

caso de Durkheim e de Detienne

No levantamento de hipoacuteteses da virgindade das deusas gregas deparamo-nos dentro

desse eixo diretivo cultural com o levantamento de algumas funccedilotildees peculiares a essas deusas

36 LAYTON Robert Opcit p37 37 DETIENNE Marcel Op cit p22-23 38 DETIENNE Marcel idem

23

que fazem parte dos atributos evocados pelos epiacutetetos Daiacute advecircm dois pontos que devem ser

considerados Primeiro em relaccedilatildeo ao uso de suas funccedilotildees como forma norteadora de propor

diferentes comportamentos Esse termo faz-se necessaacuterio esclarecer natildeo se vincula aos

conceitos propostos pela anaacutelise social funcionalista Natildeo se pretende agrave maneira de Radcliff

Brown descobrir leis classificatoacuterias do comportamento social propondo uma analogia orgacircnica

nem tampouco como Malinowski usar o termo ldquofunccedilatildeordquo em se considerando que a cultura se

alicerccedila nas necessidades bioloacutegicas primaacuterias do ser humano Em nossa perspectiva usamos

funccedilatildeo para indicar papeacuteis e posiccedilotildees destacados em relaccedilatildeo a essas deusas revelando atributos

que as distingam De fato como Ruth Benedict e Margaret Mead perceberam em suas pesquisas

e colocaram em suas obras aspectos da personalidade fazem parte do contexto cultural quando

se analisa a eacutetica e a moralidade bem como o impacto que esse aspecto determina na vida social

Achamos que a questatildeo relativa aos papeacuteis desempenhados pelas deusas virgens cria articulaccedilotildees

que favorecem o entendimento da virgindade como oposiccedilatildeo a uma outra circunstacircncia

resgatando e alargando a ideacuteia de ldquopoderrdquo que essa condiccedilatildeo pode oferecer no estudo das

relaccedilotildees sociais Essa tessitura convoca um acordo com um ldquocoacutedigo de eacuteticardquo se assim se pode

rotular das accedilotildees de uma comunidade que partilha valores comuns

As mudanccedilas que adviratildeo no conceito de virgindade prendem-se agraves criaccedilotildees da Igreja

cristatilde estabelecendo novas relaccedilotildees sociais mas mantendo e ressaltando um aspecto que seraacute

discutido no enfoque evolutivo da virgindade

O segundo ponto a ressaltar eacute a questatildeo dos epiacutetetos A pergunta que surge eacute quanto eacute de

fato revelado como atributo nos epiacutetetos Seraacute que o epiacuteteto acrescenta um conteuacutedo novo agraves

caracteriacutesticas das deusas ou eacute apenas um recurso ornamental repetitivo

A poesia de Homero eacute marcada pelo uso calculado dos pleonasmos isto eacute satildeo oacutebvios

mas natildeo inuacuteteis pois realizam uma completude riacutetmica um gesto sonoro aleacutem da comunicaccedilatildeo

do conteuacutedo Assim sendo o gecircnero eacutepico requer esse tipo de estrutura que se impotildee agrave vontade

do proacuteprio autor O epiacuteteto serve pois para preencher o verso hexacircmetro tendo uma funccedilatildeo

poeacutetica e provocando mesmo uma superposiccedilatildeo de tempos entre o tempo que estaacute sendo narrado

e o tempo39 que entra como anterior e posterior ao que se narra pois eacute o tempo que vale como

39 Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do tempo e dos epiacutetetos ver o artigo de RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

24

ornato Esse aspecto como se veraacute adiante cria dificuldades na traduccedilatildeo do grego para outras

liacutenguas pois apenas a natureza da liacutengua grega arcaica pode produzir esses epiacutetetos Eacute inerente agrave

disposiccedilatildeo gramatical da liacutengua do contexto que os accedilambarca A comparaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute

revela um impedimento e a traduccedilatildeo dessa cultura como diz Layton jaacute prevecirc um olhar distante e

uma voz indiziacutevel dos textos de Homero Por mais que se prenda ao conteuacutedo a qualidade do

ldquogeistrdquo 40 da forma nos escapa Como reproduzir a voz de Homero Fica aiacute o questionamento

Voltando agrave questatildeo dos epiacutetetos se eles revelam o que eacute sabido de antematildeo eles tambeacutem

oferecem uma conotaccedilatildeo conteudiacutestica de outro lado Como diz Rodrigues41 referindo-se a uma

das causas do uso de epiacutetetos

no fundo natildeo haacute repeticcedilotildees pois este mundo ndash todos sabem eacute progressista e heracliacutetico42 natildeo existiriam repeticcedilotildees absolutas pois repetir de qualquer forma eacute jaacute alterar43

O uso de epiacutetetos em Homero foi exaustivamente investigado por Milman Parry44 cuja

tese foi a de provar a excelecircncia da qualidade esteacutetica dos versos desse poeta comparando-o a

um escultor cujos traccedilos satildeo simples claros e quase impessoais na sua criaccedilatildeo espontacircnea O

que chamou a atenccedilatildeo de Parry na anaacutelise da obra homeacuterica quando comparou o poeta ao

escultor Fiacutedias foi justamente a habilidade de cruzar a tradiccedilatildeo com sua originalidade Dessa

forma repetindo as palavras de Parry

[The repeated words and phrases45] are like a rhythmic motif in the accompaniment of a musical composition strong and lovely regularly recurring while the theme may change to a tone of passion or quiet of discontent of gladness or grandeur

Para nosso trabalho o epiacuteteto propotildee uma quase que insistecircncia na descriccedilatildeo de uma

caracteriacutestica (parthenos) que parece ser imutaacutevel ou tatildeo recorrente se preferirmos quanto o

40 Usamos o termo geist como eacute usado em antropologia por Franz Boas o espiacuterito de um povo 41 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 42 Heracliacutetico referente a Heraacuteclito de Efeacuteso filoacutesofo preacute-socraacutetico que viveu provavelmente entre os seacuteculos VI e V a C Para esse filoacutesofo unidade regularidade e mudanccedila eterna satildeo qualidades fundamentais do que existe O fluir constante significa que ldquoningueacutem pode banhar-se duas vezes no mesmo riordquo porque esse muda assim como muda o homem In PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 pp 206-207 43 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 44 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 45 PARRY idib p xxv (As palavras e as frases repetidas) satildeo como um motivo riacutetmico no acompanhamento de uma composiccedilatildeo musical fortes e encantadoras regularmente recorrentes enquanto o tema pode mudar para um tom de paixatildeo ou quietude de descontentamento de alegria ou grandeza- traduccedilatildeo nossa

25

proacuteprio epiacuteteto Assim vemos uma dupla funccedilatildeo no epiacuteteto a de enfatizar um aspecto jaacute

conhecido de revelar sua natureza essencial e a de provocar uma compreensatildeo clara de sua

natureza esteacutetica

A questatildeo das consideraccedilotildees sobre o epiacuteteto traz em seu bojo uma outra dimensatildeo _ que

natildeo pode passar despercebida em uma anaacutelise cujo corpus eacute referente a poemas de autores

gregos da eacutepoca arcaica Eacute o caso da ecircnfase que se daacute agrave comunicaccedilatildeo nos poemas de Homero de

Hesiacuteodo e de outros poetas considerados ldquode segunda ordem porque foram tratados injustamente

pela tradiccedilatildeo humanista ocidental dos tempos modernosrdquo46 Sabemos que esse fato do uso dos

epiacutetetos tem sido discutido e alvo de polecircmicas Ainda assim vemos como positivo o fato de

que os mesmos epiacutetetos eram usados em diferentes situaccedilotildees por diferentes autores (em nosso

caso Homero e Hesiacuteodo) pois isso reforccedila o conceito de que havia um senso comum um

entendimento taacutecito um conhecimento abrangente em que a obra poeacutetica revela essa luz que

iluminava o mundo homeacuterico

Eacute por isso que natildeo podemos deixar de reforccedilar a colocaccedilatildeo de Torrano47 de que essas

metaacuteforas fixas criaram uma conotaccedilatildeo de encantamento maacutegico e do sagrado que o mundo dos

deuses evoca

Parry em seu estudo minucioso do epiacuteteto revelou os aspectos do estilo poeacutetico que

privilegiavam a oralidade ressaltando a significacircncia das foacutermulas para fins de comunicaccedilatildeo

Sobre isso Denys Page destacou as importantes descobertas de Parry48 comentando

It is not easy at first to grasp the full significance of Milman Parryrsquos discovery that the language of the Homeric poems is of a type unique in Greek literature ndash that it is to a very great extent a language of traditional formulas created in the course of a long period of time by poets who composed in the mind without the aid of writingThat the language of the Greek Epic is in this sense the creation of an oral poetry is a fact of proof in detail and the proofs offered by Milman Parry are of a quality not often to be found in literary studies49

46 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 p291 47 HESIacuteODO Opcit 48 PARRY Milman Op cit p xxvii 49 Natildeo eacute faacutecil em um primeiro momento perceber a significacircncia plena da descoberta de Milman Parry de que a linguagem dos poemas homeacutericos eacute de um tipo uacutenico na literatura grega ndash que eacute em grande parte uma linguagem de foacutermulas tradicionais criadas no curso de um longo periacuteodo de tempo por poetas que compunham na mente sem a ajuda da escritaQue a linguagem do eacutepico grego eacute neste sentido a criaccedilatildeo de uma poesia oral eacute um fato provado em detalhe e as provas oferecidas por Milman Parry satildeo de uma qualidade nem sempre encontrada nos estudos literaacuterios (traduccedilatildeo nossa)

26

A narrativa miacutetica como coloca Detienne50 comeccedila a fazer parte da tradiccedilatildeo oral no

momento em que ldquoexperimenta a prova da boca e do ouvidordquo Ela surge como produto da criaccedilatildeo

de um indiviacuteduo e pode se perpetuar Inspirado na distinccedilatildeo proposta por Leacutevi-Strauss Detienne

comenta a natureza da narrativa que pertence ao que se chama tradiccedilatildeo como tem sido nomeada

a poesia homeacuterica por Parry Os niacuteveis estruturados de memoralidade da histoacuteria podem ter

fundaccedilotildees comuns e dessa forma permaneceratildeo imutaacuteveis No entanto se os niacuteveis forem

probabilistas poderatildeo apresentar variaccedilotildees dependendo de como os narradores sucessivos vatildeo

acrescentando detalhes informaccedilotildees episoacutedios e portanto nesse continuum da transmissatildeo oral

uma histoacuteria enraizada na tradiccedilatildeo pode se tornar produtora de outras histoacuterias Como diz Leacutevi-

Strauss apud Detienne ldquoas obras individuais satildeo todas mitos em potencial mas eacute sua utilizaccedilatildeo

no modo coletivo que atualiza em cada caso seu mitismordquo51

Propotildee-se pois a partir daiacute uma abrangecircncia do aspecto cultural reconhecendo o miacutetico

nas culturas da palavra naquilo que ele enreda para construir seu esquema conceitual nas

diversidades de produccedilotildees que ele propotildee como expressatildeo de relatos de um tipo determinado

Dessa forma vecirc-se o mito como um gecircnero literaacuterio de manifestaccedilotildees da memoacuteria de uma

sociedade com suas crenccedilas e suas praacuteticas Eacute nesse cenaacuterio de riqueza cultural que os relatos

inesqueciacuteveis da sociedade grega de Hesiacuteodo e de Homero satildeo entendidos e revelam a

complexidade de uma religiatildeo politeiacutesta onde deuses imortais e outras potecircncias sobrenaturais

percorrem o mundo ao lado de indiviacuteduos mortais que convivem nesse mesmo mecanismo de

representaccedilotildees que o conhecimento miacutetico evoca

Mais uma vez verificamos que a anaacutelise da cultura enriquece os mitos e posiciona-os

possibilitando reconstruir e articular elementos dentro de uma visatildeo semacircntica sem reduzi-los

somente a algumas oposiccedilotildees ou apontar restriccedilotildees Oposiccedilotildees existem tambeacutem as diferenccedilas

mas elas satildeo consequumlecircncia de um conjunto mais amplo de um mecanismo complexo e quando

oposiccedilotildees e diferenccedilas forem evidenciadas no campo especiacutefico selecionado (das deusas

virgens) o propoacutesito eacute o de evidenciar aspectos que possam contribuir para situarem-se no

conjunto dessa anaacutelise combinatoacuteria apontando ou sugerindo novas relaccedilotildees interpretativas e

estabelecendo comparaccedilotildees ndash como parte da atitude investigatoacuteria que assumimos

50 DETIENNE Marcel Op cit 51 DETIENNE Marcel opcit p48

27

Nesse sentido a questatildeo do uso da oralidade e da escrita jaacute implica um aspecto

diferencial que tem sido amplamente investigado por antropoacutelogos que estudam e buscam o

entendimento dos nossos ldquoportos de origemrdquo como diz Detienne Assim sendo jaacute podemos

estabelecer uma primeira comparaccedilatildeo a mitologia surge a partir dos relatos escritos Antes o

que havia era o mito A mitologia eacute aquela que evoca a sociedade suas crenccedilas seu modus

faciendi traccedila enfim um mapa do tempo colocando o que se chama de ldquotradiccedilatildeo de uma eacutepocardquo

daquilo que se tem por verdadeiro

Embora seja do acircmbito da antropologia da sociologia e da linguumliacutestica pensar o fenocircmeno

da oralidade e da escrita foi Milman Parry segundo Ong52 o primeiro a dar um enfoque

decisivo nesse assunto

Foi ele quem apontou o contraste entre os modos de pensamento que subjazem a

expressatildeo oral e a produccedilatildeo escrita a partir de estudos literaacuterios tendo como corpus o texto da

Iliacuteada e o da Odisseacuteia A partir daiacute todos os autores de outras aacutereas tecircm sua obra como baacutesica

para o estudo que empreendem

Apesar de o nosso estudo natildeo privilegiar uma investigaccedilatildeo no que diz respeito aos

princiacutepios que norteiam o uso da escrita e o desenvolvimento da linguagem oral natildeo podemos

perder de vista que a forma de expressatildeo manifesta no corpus estaacute relacionada a essa

circunstacircncia Acabamos de verificar que o corpus selecionado por Milman Parry refere-se a

textos da eacutepoca arcaica grega e aponta a significacircncia desse fato Assim sendo o que se quer

ressaltar eacute que os textos escritos de alguma maneira direta ou indiretamente estatildeo relacionados

com os aspectos sonoros e com o contexto que a oralidade comprova para transmitir

significados

A fala como forma de expressatildeo e como maneira de manifestar o pensamento sempre

fascinou os estudos cientiacuteficos e provocou interesse nos pesquisadores de diversas aacutereas Por

isso como reflete Ong

En Ocidente entre los antiacuteguos griegos la fascinacioacuten se manifestoacute em la elaboracioacuten del arte minuciosamente elaborado y vasto de la retoacuterica la materia acadeacutemica mas completa de toda la cultura ocidental durante dos mil antildeos En el original griego techneacute rheacutetorikeacute ldquoarte de hablarrdquo (por lo comuacuten abreviado a solo rheacutetorikeacute) em esencia se referia al discurso oral aunque siendo un ldquoarterdquo o ciencia sistematizado o reflexivo ndash

52 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 p16

28

por ejemplo em el Arte Retoacuterica de Aristoacuteteles ndash la retoacuterica era y tuvo que ser un producto de la escritura53

Portanto a escritura jaacute veio como forma de representar a oralidade de se apoiar em seus

fundamentos e de organizar os componentes da linguagem calcados em princiacutepios do domiacutenio da

ciecircncia e da arte como no caso da retoacuterica Esse aspecto evidencia o uso dos relatos miacuteticos orais

que seguiam uma organizaccedilatildeo textual e a importacircncia do uso da linguagem oral nos estudos

sociais linguumliacutesticos e literaacuterios ou seja culturais

Ademais em se tratando da epopeacuteia podemos questionar como eacute possiacutevel mensurar

aquilo que ela traz em si dos textos que os rapsodos narravam pois conferindo o conceito em

grego Ong54 coloca que ldquorhapsoacuteidein lsquocantarrsquo en griego basicamente significa lsquocoser

cancionesrsquordquo Como reflete o autor citado o texto oral jaacute implica etimologicamente o conceito de

tecer Desta forma a base da poesia eacutepica eacute a oralidade

A poesia eacutepica evidencia pois um aspecto fundamental da construccedilatildeo e da fundaccedilatildeo do

que embasa o chatildeo grego pois eacute atraveacutes dela que os antropoacutelogos chegam a determinadas

constataccedilotildees que podem levar agrave compreensatildeo do ato de criar e do ato de viver na eacutepoca arcaica

A esse respeito diz Robert Aubreton

Eacute possiacutevel ainda ir mais longe e atraveacutes de Homero acompanhar toda a tradiccedilatildeo eacutepica Nascida durante o periacuteodo aqueu ndash o estudo histoacuterico no-lo provaraacute ndash e talvez filha da epopeacuteia cretense a epopeacuteia grega possuiacutea desde essa eacutepoca um jogo completo de foacutermulas que lhe eram proacuteprias que entraram na proacutepria tradiccedilatildeo do gecircnero

E mais

Atraveacutes de todas essas foacutermulas se revelava ao poeta todo um mundo antigo do qual ele conservaraacute a lembranccedila formas aqueacuteias eoacutelicas talvez se a tradiccedilatildeo eacutepica se tornara realmente essa com o correr dos tempos Mas o poeta Homero eacute um jocircnio puro e emprega as formas jocircnicas de seu tempo no meio dessa liacutengua herdada dum glorioso passado histoacuterico e literaacuterio55

Quanto a essa evidecircncia Ruigh56 eacute citado como um dos que acredita nos vestiacutegios de uma

traduccedilatildeo eacutepica micecircnica para depois se tornar eoacutelica e finalmente jocircnica

53 ONG WJ op citp 18-19 54 ONG WJ opcit p22 55 AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero 2ed Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1968 p90-91 56 RUIGHCJ apud AUBRETON opcit

29

Aubreton tambeacutem coloca que recuperando as caracteriacutesticas da poesia homeacuterica um fato

que deve ser levado em conta eacute a unidade real que a liacutengua homeacuterica manteacutem apesar de sua

formaccedilatildeo heterogecircnea

Os dados culturais satildeo pois de extrema relevacircncia no que diz respeito aos estudos

linguumliacutesticos e literaacuterios uma vez que interferem e direcionam o trabalho de traduccedilatildeo do corpus

selecionado

Outrossim os poemas homeacutericos e a Teogonia parecem ser um ponto de partida para o

entendimento do mundo dos deuses entre os gregos ou seja de sua religiatildeo Os deuses governam

o mundo subordinados a Zeus mas ao mesmo tempo conjuntamente com ele Cada um deles

tem atribuiccedilotildees determinadas Em relaccedilatildeo ao nosso objeto de estudo Afrodite eacute a deusa que

provoca o desejo conhecida hoje como a deusa do Amor Aacutertemis a deusa da caccedila deusa

virgem Atena deusa da astuacutecia ou seja deusa da guerra e da inteligecircncia tambeacutem virgem

Heacutestia a deusa do lar soliacutecita e virgem

Poreacutem embora essa possa ser uma classificaccedilatildeo geral o nosso enfoque metodoloacutegico

revela que natildeo pode haver uma rigidez nas funccedilotildees dos deuses Nos casos que nos interessam

por exemplo vecircem-se variaccedilotildees significativas quando se fazem analogias entre contextos

diferentes Assim embora Hera signifique a mulher de Zeus e por isso represente a fertilidade

em Eacutefeso Aacutertemis era reverenciada como deusa da fertilidade e ainda em outros lugares como

a deusa da lua misteriosa Atena a deusa guerreira dividia esse atributo com Ares tambeacutem deus

da guerra

Eacute justamente atraveacutes dos poetas que o mundo desses deuses ldquofala gregordquo isto eacute revela-se

com toda sua forccedila aos humanos revestindo-se mesmo na sua estranheza e na sua forma de

saber um jeito familiar conhecido que se cruza com as questotildees do mundo terrestre

Enfatizamos novamente a posiccedilatildeo de Vernant que privilegia o encruzamento soacutecio-religioso

nesse contexto entrelaccedilado

Se eacute cabiacutevel falar quanto agrave Greacutecia arcaica e claacutessica de ldquoreligiatildeo ciacutevicardquo eacute porque ali o religioso estaacute incluiacutedo no social e reciprocamente o social em todos os seus niacuteveis e na diversidade dos seus aspectos eacute penetrado de ponta a ponta pelo religioso57

57 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p7

30

Eacute a partir da constataccedilatildeo da integraccedilatildeo da religiatildeo com o social que os deuses comportam

diferentes dimensotildees Heacutestia tem o controle sobre a lareira de cada casa marca o centro fixo do

que se constitui como famiacutelia mas a mesma Heacutestia pode conjuntamente com Zeus exercer

controle sobre o que eacute considerada a Lareira comum da cidade

O que entatildeo nos perguntamos faz a originalidade das deusas virgens em relaccedilatildeo aos

outros deuses

Essa pergunta jaacute envolve pois um aspecto da especificidade que nossa investigaccedilatildeo

procura desvendar

Tem-se a impressatildeo a partir do que foi exposto de que os atributos dos deuses satildeo muito

menos precisos do que se pode supor e de que as funccedilotildees variam de acordo com os santuaacuterios

Haacute poreacutem uma marca comum invariaacutevel insistente em Aacutertemis Atena e Heacutestia a

virgindade

Embora alguns aspectos da concepccedilatildeo oliacutempica possam ser explicados agrave luz soacutecio-

histoacuterico-cultural como o caso de Zeus uma divindade masculina adaptado ao culto de um

povo guerreiro ideacuteia provavelmente introduzida pelos aqueus existe paralelamente a ideacuteia da

origem da criaccedilatildeo na Teogonia (v 117 e sgtes) onde a Terra (Gaia) parece ter ocupado lugar

privilegiado Assim a origem primeira daacute-se atraveacutes de uma divindade feminina relacionando

pois o conceito de vida e de fertilidade ao elemento feminino Do ponto de vista antropoloacutegico

essa posiccedilatildeo pertence agrave religiatildeo de povos sedentaacuterios de origem agriacutecola para quem sem

duacutevida a Terra eacute a fonte de toda a vida Parece pois uma atitude que fazia parte da Heacutelade da

eacutepoca dos egeus

Esse aspecto cultural eacute um dado que natildeo pode ser deixado de lado quando se reportam

aos epiacutetetos das deusas virgens e de outras naturalmente Alguns atributos podem estar

vinculados a vestiacutegios que a memoacuteria guardou e repetiu de eacutepocas anteriores e que refletem

aspectos de divindades zoomoacuterficas preacute-helecircnicas Exemplificamos com um epiacuteteto recorrente a

Atena glaucoacutepida ou de olhos glaucos

Em geral os dicionaacuterios definem esse termo relacionando-o ao brilho e agrave cor Em nossas

traduccedilotildees (verificamos que o mesmo se daacute em Torrano58) procuramos manter o uso de olhos

glaucos deixando a interpretaccedilatildeo final por conta do leitor porque o termo tambeacutem pode indicar

58 HESIacuteODO Op cit v888

31

ldquoolhos de corujardquo de acordo com alguns estudiosos do politeiacutesmo helecircnico estando dessa

forma referindo-se a uma divindade que teria um significado zoomoacuterfico

As interpretaccedilotildees revelam o movimento por que as culturas passam em um processo

contiacutenuo de construccedilatildeo de seu solo de seu saber de seu espaccedilo como naccedilatildeo constituiacuteda Assim

embora vinculadas agraves anteriores as concepccedilotildees vatildeo se transformando e quando os aqueus se

misturaram aos povos preacute-helecircnicos houve uma adaptaccedilatildeo no modus vivendi um consenso

reciacuteproco uma acomodaccedilatildeo que prevecirc concessotildees reciacuteprocas Essa adoccedilatildeo e recepccedilatildeo entre os

povos interferem tambeacutem no campo religioso e alguns deuses satildeo adotados outros confundidos

e outros ainda instalados Haacute tambeacutem aquelas divindades que perdem o caraacuteter sagrado Eacute assim

que algumas vezes surgem os heroacuteis Essa conjunccedilatildeo de tradiccedilotildees vai colocando camadas no

que se constitui o solo grego

Como jaacute anunciou a antropologia de linha estruturalista um fato que natildeo se pode ignorar

eacute que as culturas surgiram a partir de diversas comunidades que se acumularam no meio da

mesma espeacutecie por consentimento ou por alguma forma de negociaccedilatildeo produzindo conjuntos

distintos convencionais na organizaccedilatildeo do comportamento e na atribuiccedilatildeo de significados agraves

accedilotildees

Satildeo os traccedilos dessa evoluccedilatildeo cultural que a poesia eacutepica evidencia Por isso quando se

referem agraves deusas virgens os hinos homeacutericos ressaltam epiacutetetos das deusas que de alguma

forma estatildeo relacionados agrave conciliaccedilatildeo entre cultos e deuses Como jaacute se mencionou

anteriormente ao caso de Atena combinada com deuses zoomoacuterficos tambeacutem a mesma Atena

possui outros epiacutetetos que podem estar relacionados a outras divindades preacute-helecircnicas Como

explicar o epiacuteteto Tritogecircnia a ela atribuiacutedo e Atena Tritocircnia Levantam-se hipoacuteteses para esses

epiacutetetos relacionando-os a cultos e lugares onde a deusa era venerada mas os significados

podem ser interpretados de formas variadas

Essas suposiccedilotildees que vatildeo sendo levantadas fazem repensar a linha antropoloacutegica que

escolhemos para o nosso trabalho por isso eacute necessaacuterio apontar para uma consciecircncia sobre as

diferenccedilas humanas no mundo e como ela se articula jaacute que cada cultura eacute vista na sua

singularidade em uma determinada eacutepoca como ressaltamos no iniacutecio do capiacutetulo Poreacutem vale

lembrar que uma linha antropoloacutegica interpretativa volta-se para interpretaccedilotildees provisoacuterias e

parciais e mostra que seu principal objeto de estudo eacute a etnografia o que nos faz debruccedilar sobre

32

o homem e os textos culturais que ele produz Foi com esse pensamento que na nossa

Introduccedilatildeo tentamos apontar aspectos do mundo grego que nos fizessem entender a concepccedilatildeo

que tinham de seus deuses do cosmo a relaccedilatildeo dos homens com esses deuses e com o cosmo e

possivelmente procurar interpretar o atributo ou conceito ou valor eacutetico imposto pela

memorabilidade da virgindade De qualquer forma natildeo podemos deixar de concordar com

Crapanzano e Clifford59 que afirmam ldquoa parcialidade da verdade na antropologia e o caraacuteter de

ficccedilatildeo das etnografias construiacutedasrdquo

Eacute sobre a questatildeo do texto literaacuterio o corpus que escolhemos para investigaccedilatildeo que

queremos fazer alguns apontamentos

Quanto aos textos de Homero a Iliacuteada a Odisseacuteia e quanto aos textos de rapsodos que

compuseram os Hinos Homeacutericos haacute algumas interpretaccedilotildees pertinentes ndash de acordo com nosso

entendimento ndash sobre deles Uma dessas interpretaccedilotildees diz respeito a uma posiccedilatildeo eleita por

Homero isto eacute colocar uma divindade absoluta sobre as outras Zeus senhor do Olimpo sem

revelar tendecircncias sobre deuses ligados a esta ou agravequela cidade Isso denota uma imparcialidade

em Homero pois natildeo toma partido em relaccedilatildeo a um deus especiacutefico de uma cidade aleacutem de

mostrar vestiacutegios de deuses de outras raccedilas dos aqueus e dos egeus bem como de deuses

remanescentes de um periacuteodo preacute-helecircnico sem privilegiar apenas um ligado a uma poacutelis

Portanto os textos homeacutericos dissimulam a questatildeo do culto das divindades locais Seraacute que esse

aspecto revela uma tendecircncia ideoloacutegica Ateacute que ponto quer-se representar uma casta guerreira

fiel agrave organizaccedilatildeo aqueacuteia enaltecendo as estrateacutegias de combate e as narrativas de conflito

Um outro ponto aqui eacute que vale pensar um aspecto do corpus que ressaltamos a

virgindade das deusas pois em Homero eacute inegaacutevel os deuses imortais tambeacutem satildeo

humanizados em suas relaccedilotildees em suas funccedilotildees em seus sentimentos Os deuses participam

tanto das cenas militares quanto das familiares daquelas que fazem parte da vida de todos os

dias Assim a deusa guerreira que faz parte dos combates eacute virgem a deusa que estaacute presente

em cada lar zelando pela famiacutelia eacute virgem a deusa que cuida dos campos e dos animais e que

protege os partos e os adolescentes eacute virgem Pode-se questionar se Atena Heacutestia e Aacutertemis

possuem uma caracteriacutestica que faz parte apenas do feminino Parece-nos que as lendas natildeo

59 CRAPANZANO e CLIFFORD apud JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004 p47

33

mencionam guerreiros deuses e heroacuteis virgens Parece-nos que quando o teatro propocircs Hipoacutelito

dedicado agrave virgem Aacutertemis a deusa do Amor (Afrodite) vingou-se dele Assim estaria a

virgindade grega reservada e aceita soacute para o feminino A relaccedilatildeo pai-filha em Homero eacute dotada

de humanidade que fundamenta o coraccedilatildeo paterno A Iliacuteada mostra um Zeus (canto VIII)

cedendo agraves teimosias de Atena e mimando-a Caracteriacutesticas da fraqueza humana do pai Zeus

Afinal a mitologia narra essa filha nascida da proacutepria cabeccedila do pai armada e cheia do dom da

inteligecircncia e digna de um poder que faz parte de seu caraacuteter haja vista sua origem

Eis como Homero se aproveita da mitologia para que participe da sua saga guerreira

divina e humana

O texto de Homero faz suceder narrativas de cerimocircnias fuacutenebres tristes a episoacutedios

quase liacutericos Teraacute aiacute tambeacutem esse Homero eacutepico momentos de um lirismo cheio de frescor

pintando episoacutedios da vida entre o alegre e o triste Entre o cocircmico e o funesto

Mesmo nos Hinos sacros Homero lhes imprime um colorido humano Recupera os laccedilos

familiares e descreve cenas quase burlescas quando se reporta a Aacutertemis a irmatilde querida de

Apolo dando de beber aos cavalos Ele cita detalhes do cotidiano necessaacuterios que fazem parte

da vida humana

Descreve a mulher que atrai o erotismo exalando da espuma do mar da qual brota

Afrodite sempre desejaacutevel atraente que subjuga mortais e imortais ateacute o proacuteprio Zeus

Ningueacutem consegue domar essa forccedila desejante Soacute as deusas virgens

No canto a Atena destaca o seu poder que como jaacute foi dito eacute herdado do proacuteprio pai

Como guerreira estaacute envolvida em atos beacutelicos mas tambeacutem eacute protetora dos combatentes e zela

por eles

Os textos de Homero vatildeo pois aleacutem das lendas e dos testemunhos histoacutericos na sua

forma de tecer a poesia eacutepica Desse modo a sequumlecircncia temporal da sua narrativa natildeo importa

O que interessa eacute perceber que quando Homero tece a sua narraccedilatildeo ndash e aproveitamo-nos

aqui de um filatildeo da antropologia marxista ndash surgem vaacuterios sistemas cognitivos nesse mesmo

meio resultantes de reaccedilotildees agraves variadas condiccedilotildees materiais

Assim reforccedilamos a ideacuteia de que o mito narra as condiccedilotildees significativas das relaccedilotildees

sociais Essas relaccedilotildees podem sofrer transformaccedilotildees alterando todas as formas de significar de

um sistema social

34

Nesse aspecto as narrativas homeacutericas bem como os hinos homeacutericos reportam-se a

recursos naturais como quando apresentam caracteriacutesticas geograacuteficas relacionadas de algum

modo a uma forma de produccedilatildeo e a determinados tipos de atividades que revelam o

comportamento dos habitantes atraveacutes de seus deuses e de seus heroacuteis Mas ao mesmo tempo

em que essa constataccedilatildeo direciona para um conceito de produccedilatildeo ressaltado pela teoria marxista

quando Homero e outros autores teceram suas narrativas a transparecircncia de caracterizar um

discurso atraveacutes da escrita jaacute se perdeu Entatildeo como coloca Geertz60 tambeacutem quando o

observador interpreta significados quando a interpretaccedilatildeo se dirige a um povo construir

descriccedilotildees e significaccedilotildees sobre esse povo natildeo eacute muito diferente de construir uma obra de ficccedilatildeo

Como ele diz ldquonatildeo existe uma torre de marfimrdquo o que existe eacute a poliacutetica do escritor Dessa

forma uma anaacutelise etnograacutefica comparativa eacute constituiacuteda por quem a escreve

Assim de todo nosso percurso pelas deusas gregas virgens e pela virgindade enquanto

conceito atraveacutes do tempo pode-se dizer como Geertz natildeo eacute ldquomuito diferente de construir

romances sobre a vida na Franccedila rural do seacuteculo XIXrdquo61

De qualquer forma poreacutem os gregos da eacutepoca arcaica existiram independentemente do

que se conjeture sobre eles Do mesmo modo os textos de Homero e de Hesiacuteodo existem como

referecircncia ao nosso proacuteprio discurso sobre os gregos e sobre a Mitologia

Um ponto relevante de se considerar eacute a questatildeo levantada por Foucault62 de que um

estudo sobre o humano revela aspectos que se entrecruzam e se emaranham especificando o que

diz respeito aos homens agrave consciecircncia agrave origem e ao sujeito Isso como diz o mesmo Foucault

nos permite definir um espaccedilo para o qual se aponta apesar de o nosso discurso ser ldquoprecaacuterio e

incertordquo

Assim em se estabelecendo comparaccedilotildees no que diz respeito ao modo de narrar de

Homero e de Hesiacuteodo como jaacute foi dito Homero humaniza o divino Coloca lado a lado deuses

e homens emparelhando-os nos sentimentos e nas accedilotildees Hesiacuteodo ao contraacuterio propotildee uma

composiccedilatildeo que privilegia a experiecircncia sagrada como uma forma de narrar a concepccedilatildeo do

mundo arcaico O uso das foacutermulas e de expressotildees retornantes como marca da oralidade e da

linhagem dos deuses apresenta tambeacutem como a narrativa de Homero a justaposiccedilatildeo temporal 60 GEERTZ apud LAYTON Op cit p 277 61 GEERTZ apud LAYTONIdem p 277-278 62 FOUCAULT Michel A arqueologia do Saber 5ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977 p19

35

mostrando-se indiferente a uma cronologia estruturada O tempo se move como se move a Terra

em um fluir constante No entanto um aspecto determinante em sua obra eacute a forma como a

descriccedilatildeo da origem das linhagens se articula pelo

poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute conferido pela Memoacuteria (Musas)63

Tambeacutem em seus Hinos Homeacutericos Homero lanccedila matildeo do recurso de invocar o poder

das Musas e de ressaltar a importacircncia do canto que possibilita ao homem transcender suas

fronteiras geograacuteficas e terrenas e entrar em contato com o que o canto promove o mundo

audiacutevel dos sons que transporta e o mundo invisiacutevel das formas presentes Esse movimento de

entrar em contato com o mundo gera a experiecircncia divina

Hesiacuteodo aleacutem das concepccedilotildees da linguagem do tempo e do Ser enfatiza ndash e talvez

mesmo centralize ndash a concepccedilatildeo de Memoacuteria na descriccedilatildeo dos extensos cataacutelogos que como

coloca Torrano ldquose oferecem como um espetacular jogo mnemocircnicordquo64

Isso nos coloca frente a um conceito que para entendecirc-lo fez-nos procurar o lado oposto

a arte de esquecer Eacute assim que Weinrich65 inaugura sua discussatildeo sobre a memoacuteria reportando a

ceacutelebre histoacuteria de Simocircnides poeta grego que viveu por volta de 500 aC que ajudou a

identificar os mortos em uma sala cujo teto desabara apoacutes sua saiacuteda O recurso da memoacuteria

espacial teria sido o primeiro exemplo de uso de teacutecnica mnemocircnica Assim a morte suacutebita dos

ocupantes da sala estaria revelando ldquouma ameaccediladora cataacutestrofe do esquecimentordquo que

ldquotransforma o lembrar num problemardquo Portanto desde os poetas gregos ao ldquocantaremrdquo as

tradiccedilotildees a memoacuteria tem um lugar principal pois que o esquecimento apagaria os vestiacutegios de

uma histoacuteria Sem a arte das Musas e sem a voz poderosa da memoacuteria como poderia Hesiacuteodo

narrar a origem dos deuses que eacute a origem do proacuteprio cosmo Sem o poder da memoacuteria como

poderia Homero honrar os deuses reverenciando-os em suas caracteriacutesticas peculiares e narrar

assombrosas faccedilanhas que eram ditas da boca ao ouvido dos homens de seu tempo

O grande feito desses autoresndashaedos foi exatamente o de transformar a ldquomemoacuteriardquo em

fatos concretos no audiacutevel e no visiacutevel Aleacutem dos sons agora a imagem das cenas se

63 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos DeusesEstudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p16 64 HESIacuteODO Op cit p16 65 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 p30

36

representava nos caracteres escritos e tomava forma O que tentamos dizer de maneira trocircpega

Weinrich coloca de forma clara e concisa

O artista da memoacuteria que segue o exemplo de Simocircnides percebe em primeiro lugar para seus fins ndash no caso da retoacuterica isso eacute sempre a fala puacuteblica ndash uma constelaccedilatildeo fixa de ldquolugaresrdquo (em grego topoi latim loci) bem familiares sua residecircncia ou o foacuterum Nesses locais ele testemunha em sequecircncia ordenada os conteuacutedos isolados da memoacuteria depois de primeiro os ter transformado em ldquoimagensrdquo (grego phantasmata latim imaginatio)66

Mas ao lado da memoacuteria que promove imagens criadoras a criaccedilatildeo tambeacutem pode ser

aniquilada nas ldquoaacuteguas do esquecimentordquo Eacute assim que os gregos ndash e a Teogonia67 ndash apontam para

essa genealogia colocam Lete (ΛήӨην) filha da noite (Νүҳ) e de Eacuteris (Discoacuterdia em latim) como

o rio do Hades que permite que os mortos se esqueccedilam de suas lembranccedilas Esse campo de

significaccedilotildees do mundo grego parece conter comparaccedilotildees e contrastes para entender aspectos

inerentes ao humano Assim eles jaacute se baseavam em uma antropologia comparativa em suas

interpretaccedilotildees a arte de esquecer se emparelhava agrave arte de lembrar Em Weinrich68 encontramos

a menccedilatildeo de que Pausacircnias cita uma fonte do Lete na Boeacutecia ao lado da qual havia uma fonte de

Mnemosyne

Nos Hinos Homeacutericos69 o(s) autor(es) dirige-se (no caso de nossa pesquisa) agraves deusas

Aacutertemis Atena e Heacutestia comparando-as e colocando-as com outros deuses Assim quando se

reporta a Aacutertemis ldquoa que atira flechasrdquo menciona seu irmatildeo Apolo tambeacutem ele um ldquodeus que

atira flechasrdquo cujos atributos tecircm pontos semelhantes haja dada sua criaccedilatildeo Quando reverencia

Atena ldquoa deusa da inteligecircncia da astuacutecia (Meacutetis) aquela que participa dos atos beacutelicosrdquo coloca

ao seu lado Ares ldquoo deus que tambeacutem se ocupa da guerrardquo Em relaccedilatildeo a Heacutestia ldquoa deusa da

lareira dos lares e da pira das cidadesrdquo ldquoprotetora da famiacutelia e da polisrdquo une-a a Hermes no seu

movimento de ldquoajudar os homens doador de bens protetor dos caminhos e mensageiro dos

deusesrdquo

Nesse processo de contraste Homero e Hesiacuteodo ressaltaram o esquecimento (Lete filha

da noite escura) e a memoacuteria cujas filhas foram as musas inspiradoras Como coloca Torrano70

66 WEINRICH idem p31 67 HESIacuteODO Opcit p 117118 vs 225-232 68 WEINRICH Opcit p21 69 HESIOD THE HOMERIC HYMNS AND HOMERICA Translated by H G Evelyn-White LOEB Classical Librars 1982 70 HESIacuteODO Opcit p 70

37

a memoacuteria eacute ldquoa mais vigorosa negaccedilatildeo do Esquecimento em que se daacute o Natildeo-Serrdquo A memoacuteria

tem pois nesse sentido uma significaccedilatildeo de presentificar o Ser Isso revela um entendimento

inerente da memoacuteria que nomeia e situa o Ser que o coloca como sujeito da sua histoacuteria e da

Histoacuteria como parte de uma trajetoacuteria O proacuteprio tempo soacute teraacute significaccedilatildeo se fizer parte do

contexto da memoacuteria

Homero explicita claramente essa relaccedilatildeo entre o Ser e o Natildeo-Ser entre o Esquecimento

e a Memoacuteria na Odisseacuteia As drogas (os ρһаґmаkοn no Canto IX) e as artimanhas do amor

(Περικаλλέοs ευνές a cama esplecircndida referindo-se ao seu envolvimento com Circe no Canto X

e com Calipso v 450 451 por exemplo no canto XI quando narra ter sido recebido na cama e

ter tido os cuidados da ninfa em Ogiacutegia onde a deusa vive) interromperam por uns tempos o

propoacutesito de Odisseu retardando seu retorno agrave cidade e a casa uma vez que estivera sob o

comando do esquecimento Esse pertence ao paiacutes dos mortos e natildeo dos vivos como se entende

na narrativa homeacuterica Quando Odisseu volta a Ser quando chega a Iacutetaca sem reconhececirc-la

sentindo-se desolado clamando aos deuses eacute acolhido por Palas Atena que lhe descreve a terra

falando de seu solo feacutertil e de sua produccedilatildeo Entatildeo tendo sido recebido pela protetora de Atenas

Odisseu se recompotildee Estaacute pleno da memoacuteria As condiccedilotildees que levam Odisseu a esse estado de

ficar no esquecimento ou de fazer uso da memoacuteria indicam um estado representativo do Ser

quando o homem se coloca em um conflito entre mergulhar em um espiacuterito de aventura eliminar

o passado e atirar-se no mundo imaginaacuterio e manter-se preso agrave realidade ao mundo conhecido

do qual faz parte O personagem conhece pois um drama de foro iacutentimo que faz parte do

humano enquanto Ser mortal

Assim a epopeacuteia exprime alguns desejos inerentes ao humano no que concerne

sentimentos estados e fantasias Limites que ficam entre o real e o imaginaacuterio e revelam

essencialmente o ideal do homem comum de sua vida no campo no mar no poacutelis combinando

o maravilhoso o misterioso e o sagrado enfim tudo o que pode encantar e ser reconhecido por

esse mesmo homem Cabe ao cantor ao poeta reconstruir e relembrar os gestos que fazem parte

do mundo

Queremos dizer em outras palavras que a obra desses dois grandes gregos Homero e

Hesiacuteodo cobrem todos os aspectos da vida humana Jaacute nos referimos agraves recorrecircncias do Tempo e

do Ser jaacute mencionamos os recursos linguumliacutesticos referentes agrave escrita e agrave oralidade jaacute expusemos

38

o que o mytho pode revelar no contexto arcaico e como se enreda com a questatildeo da tradiccedilatildeo

miacutetica jaacute apontamos para o embrenhamento do social e do religioso jaacute falamos de algumas

caracteriacutesticas pertinentes das obras desses autores e jaacute indicamos nossa indagaccedilatildeo frente ao

objeto de estudo as deusas gregas virgens figuras recorrentes nessas obras citadas aleacutem de suas

representaccedilotildees em estaacutetuas e outras iconografias da eacutepoca bem como sua indicaccedilatildeo nas obras de

Heroacutedoto de Pausacircnias e de outros autores que se referiram agravequela eacutepoca E aiacute encontramos um

aspecto que foi colocado pelos poetas na sua acepccedilatildeo do humano a questatildeo de gecircnero

O feminino e o masculino envolvidos nos laccedilos dos desejos carnais a cama como

siacutembolo de amor uma forma de expressar a sexualidade A virgindade feminina representando

trecircs deusas que natildeo se subjugam agraves questotildees de Afrodite isto eacute ao hiacutemeros a forccedila desejante

que como vimos em Homero leva ao esquecimento e faz com que o homem perca seu rumo

desvie-se de sua rota retarde sua trajetoacuteria A virgindade colocada no feminino e no sagrado em

um mundo com tantos episoacutedios de relacionamentos desejantes com tantas lendas de traiccedilotildees ndash

se eacute que assim podemos chamaacute-las ndash e de procriaccedilatildeo revela uma particularidade a mais nesse

mundo grego a ser investigado e re-examinado Por que perguntamos Aacutertemis Atena e Heacutestia

se opunham de forma obstinada ao ldquoardor amorosordquo O que viam de incocircmodo na manifestaccedilatildeo

da sexualidade Ou melhor o que viam na virgindade

Do ponto de vista psicanaliacutetico (longe de noacutes a atitude de querermos colocar essas figuras

divinas no divatilde) o feminino sempre foi um ldquoembaraccedilordquo para os estudiosos da mente e do

comportamento humanos Conhece-se a famosa indagaccedilatildeo de Freud ldquowas will das weibrdquo71

Vaacuterios autores tentaram explicar justificar e mesmo responder essa indagaccedilatildeo freudiana Grant

em seu artigo sobre a feminilidade reporta-se ao fato de que a literatura analiacutetica ldquonatildeo paacutera de

mostrar que as consideraccedilotildees anatocircmicas natildeo satildeo iacutendices para falar da diferenccedila de identidade

sexual entre homens e mulheresrdquo72

De fato o que marca a sexualidade eacute algo que vai aleacutem da materialidade do corpo Por

isso colocou-se em paacuteginas anteriores a discussatildeo que propotildee a indicaccedilatildeo e a especificaccedilatildeo de

funccedilotildees em alguns momentos em que se reflete sobre aspectos sociais Reproduzindo as palavras

de Grant temos 71 O que quer uma mulher 72 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009

39

O fator preponderante que determinaraacute a questatildeo da diferenccedila sexual seraacute o resultado de uma leitura do corpo marcado por um oacutergatildeo sexual a que uma famiacutelia e um determinado sujeito em certas condiccedilotildees sociais podem proceder73

Grant indica pois que o oacutergatildeo sexual de um sujeito eacute representado pelo significante o

que vale dizer que a sociedade determina conceitos e valores ao masculino e ao feminino

Aleacutem dessa complexa problemaacutetica feminina Freud tambeacutem tentou enfocar e entender a

importacircncia das figuras materna e paterna no desenvolvimento da feminilidade e de alguma

forma a conclusatildeo eacute de que a figura predominante eacute a figura materna Entatildeo perguntamos como

pensar a feminilidade em Atena privada que foi da figura materna Ateacute seu nascimento deu-se

na representaccedilatildeo do masculino tendo ela nascido da cabeccedila do pai Como os antigos gregos

entendiam essa sua mitologia que colocava uma deusa cuja condiccedilatildeo de existecircncia cria um noacute

inarredaacutevel em relaccedilatildeo agrave figura da matildee

Aleacutem do mais Freud tentou responder o enigma da questatildeo que ele mesmo se havia

colocado e propocircs como soluccedilatildeo que ser mulher eacute ser matildee ou em outras palavras ter um filho

significa ter um falo

Apesar de as deusas virgens natildeo terem tido filhos natildeo podemos dizer que esse eacute um forte

argumento contra a feminilidade delas pois muitas outras mulheres inclusive em nosso mundo

contemporacircneo optam por natildeo terem filhos o que natildeo lhes nega a feminilidade

Aleacutem disso ainda um aspecto interessante apresentado por Riviegravere74 eacute que muitas

mulheres que preenchem caracteriacutesticas plenas ocupadas pelo feminino podem estar recorrendo a

maacutescaras de feminilidade revestindo-se apenas de suas aparecircncias As deusas virgens assumiram

sua virgindade sem constrangimento o que lhes confere o epiacuteteto de ldquoparthenosrdquo Portanto natildeo

foram mascaradas como diz Riviegravere a respeito das ldquomulheres-homensrdquo

Assim apesar de muitas especulaccedilotildees natildeo se esclarece muito o conflito que o feminino

pode evocar Ao lado de Freud que queria saber o que eacute uma mulher a nossa indagaccedilatildeo se volta

para o que eacute uma virgem

Talvez a resposta esteja dentro da proacutepria mitologia o que estaacute em jogo eacute a natureza de

todo e qualquer desejo (hiacutemeros) daiacute a importacircncia de Afrodite e de Eros ao longo da histoacuteria da

73 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 74 RIVIEgraveRE apud GRANT Op cit

40

humanidade Alem disso o amor e o desejo se inserem em um registro maior do Ser o da

propriedade privada o que vale dizer que haacute uma propriedade inviolaacutevel no espaccedilo social que eacute

o proacuteprio corpo Isso significa que apesar de as diferenccedilas anatocircmicas natildeo serem relevantes para

a constituiccedilatildeo do masculino e do feminino elas determinam uma significaccedilatildeo social e

ideoloacutegica uma vez que o corpo ao longo da Histoacuteria tem sido usado como mercadoria em um

sistema de trocas

As deusas virgens estavam cientes dessa inviolabilidade e sua privacidade subjetiva

inscrevia-se no discurso miacutetico

Frente a Afrodite ceder ao desejo e ser tomado por ele implicaria a Aacutertemis a Atena e a

Heacutestia ver transformado o valor de uso do seu gozo em valor de troca de desejo Por isso a

afirmaccedilatildeo da virgindade e o pedido ao pai (Zeus) para que pudessem manter esse caraacuteter de

castidade que caracteriza a intimidade subjetiva dessas deusas A autorizaccedilatildeo preacutevia ao outro (ao

pai) se imporia a elas para que pudessem usufruir do seu corpo sem o que esse corpo se

transformaria em valor de uso para o gozo de outro e portanto na posse interditada do que eacute

considerado ser intransferiacutevel Essa opccedilatildeo concretiza-se pois em um gesto com um sentido

simboacutelico evidente de registrar a subjetividade Poreacutem nossa proposta eacute de examinar cada uma

das deusas virgens comparando-as e interpretando caracteriacutesticas que julgamos amplas e que soacute

o contexto cultural nessa teia toda pode exprimir Aleacutem disso no processo de compreensatildeo da

virgindade ndash da mesma forma que memoacuteria e esquecimento se complementam ndash natildeo podemos

deixar de discutir o desejo enfocando a deusa do ldquoAmorrdquo e sua representaccedilatildeo para o

entendimento desse conceito no cosmo no que diz respeito a deuses e homens

Quando colocamos que essa posiccedilatildeo de destaque das deusas se daacute atraveacutes de um gesto

estamos interpretando o conteuacutedo ritualiacutestico que essa posiccedilatildeo comemora O rito de passagem

que se opera eacute singular e pleno de significaccedilatildeo As deusas em questatildeo romperam com uma

situaccedilatildeo codificada pelos valores culturais

Com efeito nas formas instituiacutedas do masculino ndash mortal ou imortal ndash e do feminino ndash

mortal ou imortal ndash na tradiccedilatildeo do Ocidente previam-se as relaccedilotildees de trocas entre os sexos

previam-se os rituais de iniciaccedilatildeo para o casamento previa-se a constituiccedilatildeo da famiacutelia previa-

se a procriaccedilatildeo previa-se a forccedila do desejo Nesse gesto de mudanccedila de posiccedilatildeo do feminino

condensa-se a virgindade Estaacute assim instituiacutedo o registro simboacutelico em que a palavra natildeo

41

consegue dar conta e torna-se insuficiente A abrangecircncia cultural e o aspecto do Ser

transcendem a substacircncia do conceito da virgindade A virgindade entre as mulheres (mortais)

passa a ser instaurada e aceita atraveacutes da atitude e da representaccedilatildeo simboacutelica das deusas

(sagradas) O ser humano comum espelha-se e exemplifica-se no divino Constituem-se

diferentes formas de significar

Discutiremos em outro capiacutetulo que como se isso natildeo bastasse ainda podemos descobrir

outros valores nesse gesto distinguindo cada uma dessas deusas na sua individualidade Isso

implica pois nuances e enfoques diferentes na forma de representaccedilatildeo que a virgindade assume

no sujeito E como o discurso freudiano atesta a sexualidade natildeo tem um sentido uniacutevoco mas

uma multiplicidade de significados Sobre essa situaccedilatildeo diz Birman

O sexual seria marcado pela polissemia natildeo podendo pois enquanto palavra e conceito ser reduzido a um campo restrito de referentes Assim a noccedilatildeo de complexidade perpassa o conceito de sexualidade estando entatildeo a dita polissemia inequivocamente articulada ao atributo da complexidade75

O caso da virgindade se a considerarmos como parte da sexualidade nos faz pensar que

ela eacute desalojada do plano comportamental e se aproxima mais da experiecircncia do senso comum

como pode ser compreendido nos registros do discurso do imaginaacuterio social Esse fato nos

permite concluir que natildeo podemos estabelecer normas e nos permite tambeacutem concordar com

Freud

Se bem que eacute oacutebvio o discurso poeacutetico natildeo seja exatamente o do senso comum pode-se dizer que aquele estaacute mais proacuteximo do imaginaacuterio popular do que o cientiacutefico76

Natildeo podemos deixar de reconhecer que os mitos e o discurso poeacutetico satildeo criaccedilotildees do

humano o que revela que foram as experiecircncias dos indiviacuteduos que forneceram elementos para

as epopeacuteias que falam de deusas e deusas de heroacuteis e de pessoas comuns de guerras e de

conflitos passionais

A complexidade a que se refere Birman (acima citado) encaminha a hipoacuteteses

inquietantes pois tambeacutem a representaccedilatildeo da virgindade pode estar vinculada a fatores que satildeo

indecifraacuteveis nesse campo elaacutestico da sexualidade Uma colocaccedilatildeo feita por Birman parece

oferecer um resumo sinteacutetico de uma questatildeo tatildeo ampla e profunda

75 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 p17 76 BIRMAN Joel idem p21

42

Com efeito a sexualidade se inscreve na fantasia antes de mais nada Esse eacute o campo por excelecircncia do erotismo Natildeo existiria pois sexualidade sem fantasia sendo essa sua mateacuteria-prima Seria entatildeo a partir da fantasia como fundamento que a sexualidade poderia assumir formas comportamentais diversificadas O comportamento seria pois o elo final de uma longa cadeia de relaccedilotildees que se inscreveriam primordialmente na fantasia do sujeito O sexo seria portanto um efeito distante do sexual por mais paradoxal que possa parecer essa afirmaccedilatildeo Em contrapartida se existe algo de enigmaacutetico e de obscuro no erotismo a fantasia seria o lugar crucial para o deciframento desse enigma e de iluminaccedilatildeo dessa obscuridade77

Esse enfoque na fantasia pode revelar que de algum modo a sexualidade se materializa

no registro do corpo Embora essa constataccedilatildeo pareccedila ser antagocircnica o que ocorre eacute que natildeo

existiria oposiccedilatildeo entre a fantasia e o corporal ou em outras palavras a sexualidade soacute pode ser

entendida se forem consideradas as forccedilas pulsionais

Eacute interessante pensar que na nossa constataccedilatildeo do mundo grego a incorporaccedilatildeo dos

valores existentes no imaginaacuterio da eacutepoca arcaica parecia identificar tanto o masculino quanto o

feminino com atributos de atividade no que diz respeito agraves deusas virgens Isso parece

evidenciar um consenso social entre os gregos Se Zeus era um deus ativo natildeo menos que ele era

Afrodite no terreno da sexualidade A seduccedilatildeo provocada por Afrodite foi positivamente

qualificada pois ela inscrevia no sujeito o desejo que eacute a marca insofismaacutevel do seu Ser

A questatildeo do desejo foi amplamente discutida por filoacutesofos e revela desde Platatildeo o que

Freud chamou de desamparo e Lacan de falta Em Platatildeo jaacute se encontra essa acepccedilatildeo de que o

desejo implica sempre a incompletude ou seja o sujeito desejante Por isso encontra-se em

Platatildeo como coloca Dumoulieacute78 que o ldquoo que anima o amor o que faz Eros viver eacute o desejo e o

desejo eacute carecircncia eacute faltardquo

O que interessa pois para entender o conceito de desejo eacute o que fundamenta o

pensamento grego E para os gregos da eacutepoca arcaica a relaccedilatildeo do homem com o Ser implicava

jaacute em si uma relaccedilatildeo de desejo Assim Afrodite se afirmava como eterna nesse movimento

coacutesmico de afirmar o desejo como princiacutepio fundador da eternidade do mundo Na Greacutecia cabia

aos mortais manter as tradiccedilotildees inauguradas pelos deuses e como ldquoguardiatildees da memoacuteriardquo

renovar as tradiccedilotildees atraveacutes dos ritos e dos relatos orais e escritos Por isso os aedos inspirados

pelo poder das musas podiam contar as faccedilanhas dos deuses e dos homens de forma que elas

passassem a pertencer ao visiacutevel e pudessem revelar a forccedila desejante do Ser

77 BIRMAN Joel opcit p62 78 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 p25

43

4 - O QUE Eacute TRADUZIR lsquoHOMEROrsquo TENTATIVAS E RISCOS

Assim eacute que a felicidade de um povo corta as asas a seu verso oferece escassa mateacuteria para admiraccedilatildeo e piedade E ainda que o prazer originado do gosto pelas espeacutecies sublimes de escrita possa fazer Vossa Senhoria lamentar o silecircncio das Musas estou persuadido de que vos ireis juntar a mim nos votos de que jamais possamos ser tema apropriado de um poema heroacuteico79

Como ldquoserrdquo um Homero grego em portuguecircs Ou um Hesiacuteodo Ou um rapsodo O

absurdo da indagaccedilatildeo jaacute leva a uma constataccedilatildeo oacutebvia da resposta

Citando um trecho das reflexotildees de Detienne temos que

a liacutengua veicula noccedilotildees o vocabulaacuterio eacute mais um sistema conceitual do que um leacutexico e as noccedilotildees linguumliacutesticas remetem agraves instituiccedilotildees isto eacute a esquemas diretores presentes nas teacutecnicas nos modos de vida nas relaccedilotildees sociais nos processos da palavra e do pensamento80

Se por um lado isso revela a impossibilidade da exatidatildeo em qualquer traduccedilatildeo por

mais teacutecnica e detalhada que ela seja por outro lado revela o desejo do pesquisador de se

aproximar de um estudo etnograacutefico bisbilhotando os textos no original descobrindo indicaccedilotildees

que o uso dos vocaacutebulos das colocaccedilotildees das alternacircncias das recorrecircncias possa significar

Jaacute vimos no capiacutetulo anterior que Milman Parry apontou para a importacircncia dos epiacutetetos

na poesia eacutepica grega Soacute quando se inteirou da profundidade da linguagem e da liacutengua esse

autor pocircde fazer descobertas significativas que introduziram por sua vez novos conceitos e um

novo olhar sobre os epiacutetetos na epopeacuteia e na forma de transmitir a tradiccedilatildeo Como coloca ainda

Detienne ldquoQuaisquer que sejam seus efeitos imediatos ou a longo prazo o escrever a lsquotradiccedilatildeorsquo

transforma virtualmente uma cultura baseada na oralidade na memoacuteria e no memoraacutevelrdquo81 Foi

desdobrando as dobras da epopeacuteia grega que Milman Parry pocircde verificar os desiacutegnios da

tradiccedilatildeo

Alguns aspectos da cultura satildeo dificilmente localizaacuteveis se natildeo houver investigaccedilatildeo do

campo linguumliacutestico e do semacircntico Eacute preciso ldquomaterializarrdquo a liacutengua alvo para conseguir perceber

ndash ainda que de longe e a distacircncia ndash o pensamento miacutetico

79 BLACKWELL apud LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 p 188 80 DETIENNE MarcelOs Gregos e Noacutes Uma Antropologia Comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p79 81 DETIENNE Marcel Opcit p63

44

O objetivo do tradutor eacute tentar entender o texto estrangeiro natildeo soacute na sua abrangecircncia

mas tambeacutem nos detalhes Aleacutem da visibilidade das imagens graacuteficas que compotildeem o texto ele

tem de captar os vatildeos invisiacuteveis Assim a dificuldade se faz dupla traduzir o diziacutevel e o

indiziacutevel

Venuti inaugura seu texto sobre traduccedilatildeo com a colocaccedilatildeo de que

o trabalho de traduccedilatildeo eacute governado por uma noccedilatildeo de equivalecircncia que evolui e varia equivalecircncia a uma interpretaccedilatildeo de uma forma e um conteuacutedo estrangeiros em geral realizada no processo de traduccedilatildeo e raras vezes articulada independentemente dele82

Daiacute jaacute se nota que natildeo haacute uma uacutenica forma de traduzir e que a traduccedilatildeo eacute atravessada pelo

conhecimento que o tradutor tem da liacutengua estrangeira da cultura alvo e de sua relaccedilatildeo com a

sua cultura de origem Esse referencial de valores culturais domeacutesticos indubitavelmente pode

afastar o tradutor do texto e o torna ldquomais estrangeirordquo Mas ao mesmo tempo tambeacutem a

traduccedilatildeo oferece uma domesticaccedilatildeo pois que o tradutor vai se familiarizando com a cultura

estrangeira no ato de traduzir Nesse sentido a traduccedilatildeo se presta para construir representaccedilotildees

de culturas estrangeiras

Esse movimento de se adequar a uma outra cultura construindo uma posiccedilatildeo de

inteligibilidade para o sujeito acaba tambeacutem criando uma postura ideoloacutegica A escolha de um

texto e de estrateacutegias de traduccedilatildeo pode direcionar o texto para diferentes visotildees e pode ateacute

mesmo mudar ou consolidar cacircnones e paradigmas conceituais aleacutem de influenciar metodologias

de pesquisa enfoques teacutecnicos e praacuteticas que satildeo parte da cultura domeacutestica

Na tentativa de traduzir o trabalho do tradutor reflete sua ideologia Por isso eacute

fundamental que se tenha em mente que o trabalho de traduccedilatildeo admite mais que uma abordagem

Assim por exemplo na tentativa de traduzir os Hinos Homeacutericos procuramos seguir as

pegadas do autor autores do texto original procurando palavras que recuperassem o uso dos

epiacutetetos empregando adjetivos e expressotildees que ressaltassem caracteriacutesticas dos deuses

selecionando verbos que retratassem accedilotildees referentes agrave eacutepoca arcaica ldquoinventandordquo termos que

dessem conta da representaccedilatildeo de imagens do cosmo

Ia surgindo assim uma aacuterea de trabalho inteiramente nova e foi nesse momento que

entendemos a acepccedilatildeo de Venuti a respeito dos ldquoefeitosrdquo da traduccedilatildeo mudamos o nosso modo de

82 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 p173

45

olhar o mundo grego As deusas virgens se presentificaram e a epopeacuteia tomou forma e ganhou

ritmo Parecia-nos impossiacutevel que em menos de um ano pudeacutessemos entender textos em grego

Seraacute que nos aproximamos de um processo de domesticaccedilatildeo

Poreacutem o que eacute fato conhecido eacute que haacute tambeacutem a ideologia do tradutor do tradutor

Dessa forma cada eacutepoca dita seus cacircnones e independentemente deles existe um

ldquocorporativismo acadecircmicordquo que determina estilos de traduccedilatildeo aceitaacuteveis e que se tornam

paradigmaacuteticos Essas avaliaccedilotildees institucionais nem sempre consideram todos os aspectos que

envolvem uma traduccedilatildeo Por exemplo a ediccedilatildeo chamada de LOEB eacute considerada ao lado da

traduccedilatildeo francesa de Jean Humbert des Belles Lettres um claacutessico_ como se chamam todas as

obras consagradas_ e no entanto o autor traduz os Hinos Homeacutericos sem a preocupaccedilatildeo de

manter a estrutura riacutetmica e a beleza poeacutetica dos versos Resume-se a traduzir o significado do

texto de forma ldquoconteudiacutesticardquo Nessa passagem de um idioma ao outro haacute tambeacutem uma

mudanccedila do gecircnero textual de poemas para uma narrativa factual Esse tipo de ocorrecircncia revela

a questatildeo da subjetividade do tradutor De qualquer forma as ediccedilotildees LOEB satildeo um cacircnone para

a traduccedilatildeo de textos gregos porque servem a certos interesses de um grupo especiacutefico Isso

explicita uma outra questatildeo ideoloacutegica qual seja a de que os cacircnones introduzidos pelos falantes

de liacutengua francesa e de liacutengua inglesa tecircm dominado o mundo ocidental Como dissemos as

escolas indicam a ldquopreferecircnciardquo de um momento de uma predominacircncia de poliacutetica linguumliacutestica e

hoje a obra de Caacutessola Inni Omerici eacute tida como um dos manuscritos mais apropriados dado o

seu embasamento de pesquisa e seleccedilatildeo cuidadosa do material

Essa constataccedilatildeo revela a dificuldade de um trabalho de traduccedilatildeo e demonstra que os

ldquoefeitosrdquo em geral refletem os interesses de um grupo cultural particular

De forma ousada quase um desafio na tentativa de correr riscos ao se traduzirem os

Hinos Homeacutericos para o portuguecircs procuramos fazer um trabalho em que acreditaacutevamos ndash e aiacute

entra a nossa individualidade ndash na investigaccedilatildeo do leacutexico no entendimento das funccedilotildees

sintaacuteticas na organizaccedilatildeo do texto e sobretudo na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees culturais

Fomos fazendo comentaacuterios tecendo consideraccedilotildees e propondo questionamentos de questotildees

natildeo resolvidas Aleacutem disso procurou-se manter uma preocupaccedilatildeo meacutetrica dos versos para tentar

conservar uma cadecircncia riacutetmica Mais uma vez a questatildeo da domesticaccedilatildeo e da equivalecircncia a

qual natildeo haacute como se evitar

46

Haacute ainda dois pontos a serem considerados por serem objeto de nosso interesse (1) que

desconhecemos qualquer traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos agraves deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia em

portuguecircs e dos Hinos V e VI referentes a Afrodite (2) que eacute preciso que se reconheccedila o caraacuteter

da poesia eacutepica

O estilo da poesia eacutepica eacute de inegaacutevel simplicidade conciliando a excelecircncia dos

costumes e a nobreza dos caracteres Eacute uma manifestaccedilatildeo do ldquomaravilhosordquo e do ldquoassombrosordquo

Tanto em Homero como nos rapsodos que o sucederam e que continuaram sua tradiccedilatildeo como

em Hesiacuteodo a histoacuteria dos deuses e dos heroacuteis eram colocadas para a representaccedilatildeo da

ocorrecircncia de fatos extraordinaacuterios e no caso dos Hinos Homeacutericos na exacerbaccedilatildeo de

verdadeiras louvaccedilotildees arrebatadoras dramaacuteticas enfatizando dons e atributos que movem as

paixotildees humanas que as engrandecem e que evocam clamam pela imitaccedilatildeo do que eacute grandioso

para o humano Como diz Lacerda referindo-se ao trabalho de Blackwell83 sobre a eacutepoca de

Homero

Blackwell como se acabou de verificar presumiu que o grego falado no tempo de Homero se encontrava em condiccedilotildees ideais para a composiccedilatildeo eacutepica O que o tornava tatildeo apropriado seria natildeo soacute a coloraccedilatildeo emotiva mas ainda a ausecircncia de artifiacutecios e sutilezas ldquoUma liacutengua totalmente polida no sentido modernordquo sentencia ldquonatildeo desceraacute agrave simplicidade de maneiras absolutamente necessaacuteria na poesia eacutepicardquo84

Esse aspecto ndash de uma simplicidade quase ingecircnua ndash que foi visto por muitos autores

como um lsquoprimitivismorsquo nos parece como coloca Lacerda ldquouma forma particular de poesia (e de

saber)rdquo85 E mais

Visto que o bom poeta imita a ldquonaturezardquo e natureza no caso quer dizer realidade circundante o poeta de uma eacutepoca polida soacute teraacute ecircxito em assuntos refinados86

Isso nos remete agrave questatildeo dos ldquoriscosrdquo que percebemos nas traduccedilotildees agraves vezes tatildeo

polidas apropriando-nos do termo de Blackwell que se tornam distantes da realidade da eacutepoca

dos deuses quando o efeito da poesia eacute muito mais feito pelo sublime do que pelo grandioso que

os tempos modernos inauguraram

83 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer( 1736) Reimpressatildeo reprograacutefica HildesheimNew York Georg Olms 1976 84 LACERDA Sonia Op cit p 186 85 LACERDA Sonia Idem p 186 86 LACERDA Sonia Idem p187

47

Eacute que Homero Hesiacuteodo e os rapsodos como bardos compositores participavam da

amaacutelgama de saberes miacuteticos (que perdemos atraveacutes dos tempos) e os esquemas linguumliacutesticos e os

motivos narrativos proporcionavam a esses poetas a substacircncia representativa e imageacutetica dos

poemas A forma de vida nesse mundo arcaico a religiatildeo ldquoacotoveladardquo com a realidade

cotidiana e a simplicidade da linguagem eram circunstacircncias essenciais para a elaboraccedilatildeo

ldquoliteraacuteriardquo de uma poesia eacutepicamiacutetica

Por isso querer traduzir os poemas desses bardos corre o risco de produzir uma forma

sincreacutetica ldquofalsardquo de poemas sem feiccedilatildeo na medida em que se afastam tanto da perspectiva da

faacutebula miacutetica quanto da linguagem metafoacuterica pois que a mitologia jaacute eacute intrinsecamente

metafoacuterica

Portanto optamos por traduzir os hinos homeacutericos na sua linearidade no entendimento

do movimento do leacutexico da multiplicidade das metaacuteforas na organizaccedilatildeo das faacutebulas sem

qualquer pretensatildeo ldquomimeacuteticardquo ou seja de imitar aquilo que faz parte da inerecircncia do mito

Pareceu-nos por isso saacutebia a posiccedilatildeo adotada por Faulkner87 quando em sua obra apresenta o

Hino Homeacuterico V a Afrodite em grego limitando-se a comentaacuterios linguumliacutesticos e semacircnticos do

texto a traduccedilotildees interpretativas de frases e expressotildees sem no entanto compor uma traduccedilatildeo

sua

Ainda no dizer de Lacerda reportando-se ao mesmo Blackwell

Da mesma maneira que lhe estatildeo vedados o surpreendente e o fabuloso ao poeta moderno eacute interdito descrever accedilotildees sublimes e caracteres heroacuteicos pois este satildeo estranhos aos costumes de seu tempo e agrave sua experiecircncia88

Seja como for parece-nos que a poesia eacutepica pode tambeacutem ser adaptada a tempos

modernos adquirindo um novo enfoque

87 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Oxford Oxford University Press 2008 88 LACERDA Sonia Opcit p188

49

5 - QUE DEUSAS SAtildeO ESSAS

ldquoLa fertilidad de la naturaleza y la fecundidad tanto de la tierra como de los seres humanos fueron consideradas como misterios sublimes y foram divinizadasrdquo89

51 - AFRODITE E A REPRESENTACcedilAtildeO DO DESEJO

Afrodite eacute consagrada como a deusa do amor a deusa Afrogeneacuteia (ΑФρογένεια) que

nasceu da espuma do mar

Como tudo se inicia A lenda mais conhecida nos conta que no princiacutepio Gaia a matildee

universal comeccedila criando a partir de si mesma quer dizer sem seu contraacuterio masculino o que

implica pois que natildeo houve uniatildeo sexual Esse tipo de reproduccedilatildeo nomeada de cissiparidade

deu origem a Urano o ceacuteu Entatildeo nesse momento comeccedilaram a unir-se Gaia e Urano dois

princiacutepios opostos para procriar filhos que tecircm uma individualidade que satildeo marcados por

atributos que tecircm uma funccedilatildeo como potecircncias coacutesmicas A uniatildeo do ceacuteu e da terra se faz sem

regras O ceacuteu acomoda-se sobre a terra cobrindo-a inteira e os filhos gerados natildeo podem sair da

matildee Gaia por falta de distacircncia entre esses dois pais coacutesmicos Inconformada a matildee (Gaia) pede

a um de seus filhos Crono que agrave noite enquanto o ceacuteu (Urano) se debruccedila sobre ela que ele

(Crono) o castre Assim Urano eacute castrado por um golpe de foice amaldiccediloa os filhos e deixa

Gaia liberta Ficam deste modo separados por um grande espaccedilo vazio apartados um do outro

onde os opostos mesmo quando se unem permanecem distintos

Isto posto jaacute se vecirc que natildeo se pode pensar em uniatildeo dos contraacuterios sem que essa ideacuteia

esteja relacionada a um conflito a uma luta de forccedila entre os dois sexos Eacute nessa tessitura de

ldquocorda esticadardquo entre o macho e a fecircmea que surge Afrodite o ldquoamorrdquo Vinda dos testiacuteculos

ensanguumlentados de Urano que caiacuteram na aacutegua ela chega inaugurando uma forma organizada de

engendrar por uniatildeo os contraacuterios presidindo o casamento em um espaccedilo (sociedade grega

patriarcal) em que a mulher tinha como finalidade a ldquoconstruccedilatildeordquo de seu lar (marido e filhos)

89 MAVROMATAKI Maria Mitologia GriegaAtenas Ediciones Xaitali 1997 p 5

50

Como dizem Vernant e Vidal-Naquet ldquonum mundo pautado pela lei de

complementaridade entre os opostos que ao mesmo tempo se afrontam e se harmonizamrdquo90

Outra lenda conta que Afrodite teria nascido da uniatildeo de Zeus91 com Dione uma das

deusas da primeira geraccedilatildeo divina cuja origem diverge segundo diferentes tradiccedilotildees Ora diz-se

que Dione era filha de Urano e Gaia ora de Teacutetis e Oceano como estaacute colocado na Teogonia de

Hesiacuteodo Essa lenda sobre o nascimento de Afrodite natildeo eacute amplamente conhecida e eacute menos

divulgada que a anterior jaacute tatildeo explorada pelos grandes artistas de todos os tempos quer sejam

eles pintores quer poetas

Entretanto verifica-se a alusatildeo a essa lenda na Iliacuteada V 312-374 quando Afrodite filha

de Zeus (v 312 ∆ιός θυγάτηρ ΆΦροδίτη) protege seu filho Eneacuteias (gerado com o mortal

Anquises) e eacute ferida pelo heroacutei Diomedes (por sua vez protegido de Atena) Afrodite entatildeo

corre para o colo de sua matildee Especificamente os versos 370-374 narram o encontro de matildee e

filha descrito com o lirismo da proteccedilatildeo materna e do consolo compreensivo que Dione oferece

a Afrodite

ή δ έν γούνασι πΐπτε ∆ιώνης δι΄ ΆΦροδίτη 370 microητρος έής ή δ αγκάς έλάζετο θυγατέρα ήν χειρί τέ microιν κατέρεξεν επος τ΄ έΦατ΄ έκ τ΄ όνόmicroαζε ldquoτίς νύ σε τοιάδ΄ έρεξε Φελόν τεκος Οΰρανιώνων microαψιδιως ώς ει τι κακόν ρέζουσαν ένωπήrdquo92 374 Mas Afrodite arremessa-se nos joelhos de Dione 370 sua matildee e ela tomou sua filha nos braccedilos com a matildeo acariciou-a e fez uso das palavras dizendo ldquoquem agora dos filhos de Urano querida crianccedila fez coisas a ti sem razatildeo como se vocecirc um mal tivesse praticado agrave frente de todosrdquo93 374

90 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 p 61 91 Zeus eacute considerado o deus mais importante do Panteatildeo grego Identifica-se com a luz tal como o raio e reina poderoso no Olimpo morada de todos os deuses Eacute filho de Crono e Reacuteia Crono devorava os filhos agrave medida que nasciam Quando Zeus nasceu Reacuteia deu uma pedra enrolada em um pano a Crono que pensando ser a crianccedila engoliu-a Desta forma Zeus foi salvo e mais tarde tomou o poder das matildeos do pai assim como Crono havia tirado o poder de Urano castrando-o 92 HOMER The Iliad v 1 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 93 Traduccedilatildeo nossa apenas para efeito de verificar o sentido do trecho que se refere agrave origem de Afrodite

51

Como se vecirc natildeo se pode deixar de considerar essa outra tradiccedilatildeo do nascimento de

Afrodite uma vez que a Iliacuteada que eacute uma das obras mais lidas aponta para esse fato que eacute

representativo de uma linhagem que privilegia o lugar do feminino na famiacutelia patriarcal dando

ecircnfase agrave figura materna

Um outro aspecto em Afrodite que merece ser destacado eacute a questatildeo do movimento

Afrodite eacute errante Diferentemente das deusas virgens que possuem um domiacutenio especifico

Afrodite perambula por diversos espaccedilos Ela chega mesmo a invadir a ldquoaacuterea delimitadardquo das

outras deusas

Melhor explicando essa ideacuteia podemos reportar-nos a trechos da Iliacuteada e da Odisseacuteia

bem como dos Hinos Homeacutericos reveladores de seu caraacuteter inquieto fugidio onipresente A

guerra estaacute pela sua natureza relacionada agraves atividades da deusa Palas Atena que herdou a

astuacutecia materna e o espiacuterito combatente do pai como eacute comentado adiante Poreacutem Afrodite entra

e move-se nesse espaccedilo envolvendo-se de forma que natildeo pode ser controlada Como jaacute vimos no

canto V da Iliacuteada (312-374) Afrodite vai ao campo de batalha e Diomedes lhe diz em altos

brados

Filha de Zeus94 poderoso conserva-te longe da luta 348 Ou seduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedila Se ainda sentires desejo de ver um combate de perto creio que soacute o nome ldquoguerrardquo haacute de grande pavor inspirar-te Atormentada Afrodite enquanto ele falava afastou-se95 352

As palavras de Diomedes deixam claro novamente essa tradiccedilatildeo da origem de Afrodite e

o fato de que a guerra natildeo eacute espaccedilo para seduccedilatildeo para o feminino que natildeo leva a seacuterio uma

atividade complementar que faz parte da organizaccedilatildeo poliacutetico-social do povo grego Atena ao

contraacuterio move-se dentro da batalha seu campo de domiacutenio como estrategista e essa eacute uma de

suas funccedilotildees

A propoacutesito a Iliacuteada relata um episoacutedio de guerra que se desenvolve a partir da

representaccedilatildeo do desejo Eacute vinculado agrave ideacuteia de uniatildeo e de conflito a que nos referimos

anteriormente que tem iniacutecio uma guerra que envolve deuses e deusas heroacuteis e homens O

conflito eacute gerado por Afrodite na sua proposta de manter o reinado da seduccedilatildeo Natildeo haacute homem

94 Grifo nosso 95 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 p 145

52

que resista agraves tentaccedilotildees de Afrodite ou melhor difiacutecil eacute resistir aos seus ardis femininos Como

diz Diomedes a ela ldquoseduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedilardquo96

Como se sabe e a tiacutetulo de recordaccedilatildeo a histoacuteria da Iliacuteada na verdade comeccedila no ldquoceacuteurdquo

Conta a lenda que em uma grande festa em que se celebrava o casamento a uniatildeo de Peleu e

Teacutetis todos os deuses haviam sido convidados exceto Discoacuterdia (Eacuteris) E por ser Discoacuterdia

insultada e indignada fez rolar uma maccedilatilde pelo chatildeo da entrada ndash chamada lsquopomo da discoacuterdiarsquo ndash

proacuteximo ao assento das deusas Hera Atena e Afrodite Quando Hera pegou a maccedilatilde leu o que

estava escrito ldquoPara a mais belardquo Como reaccedilatildeo feminina Hera imediatamente achou que a maccedilatilde

era para si proacutepria Atena reagiu e Afrodite enfaticamente disse que era para ela Nesse clima de

discoacuterdia foi chamado Zeus que cauteloso e conhecedor do perigo de apontar qualquer uma

delas como a mais bela pois as outras duas se vingariam decidiu nomear Paacuteris tambeacutem

conhecido como Alexandre um dos filhos de Priacuteamo para decidir a questatildeo Hermes o deus

mensageiro levou as trecircs ateacute o Monte Ida onde estava Paacuteris em Troacuteia Laacute cada uma delas

ofereceu uma forma de suborno a Paacuteris em troca do tiacutetulo

Atena propocircs conceder-lhe o dom de ser um guerreiro vitorioso Hera lhe ofereceu o

reinado sobre toda a Aacutesia e Afrodite ofereceu-lhe a mulher mais bela Helena de Esparta Paacuteris

entregou a maccedilatilde de ouro a Afrodite

Eacute interessante verificar que Afrodite gera um conflito tal que troianos e gregos lutam e

morrem pelo rapto de uma mulher pois Helena jaacute era casada com Menelau Aleacutem disso o

feminino revela-se nas outras duas deusas Hera e Atena em forma de vinganccedila Hera torna-se

inimiga de Troacuteia berccedilo de Paacuteris por quem ela e Atena foram preteridas Assim por ocasiatildeo do

rapto de Helena por Paacuteris Hera faz com que o navio em que estavam os dois se afaste do

caminho de Troacuteia e se dirija para Siacutedon na costa siacuteria

Afrodite torna-se protetora de Troacuteia durante a guerra

As deusas e suas reaccedilotildees revelam um caraacuteter humano em que as emoccedilotildees ocupam um

papel preponderante tornando a epopeacuteia homeacuterica real tocante e ateacute mesmo com um certo

ldquolirismordquo como jaacute rotulamos anteriormente em um momento de ousadia Mas os deuses ndash e

nesse caso as deusas ndash soacute fazem sentido se houver o ldquohumanordquo as paixotildees que determinam

concorrecircncias voluacutepias enganos oacutedios terriacuteveis desordens desmedidas lutas Em se

96 HOMERO Idem v 349

53

considerando esse aspecto fundamental do mito grego o certo e o errado o que pode e o que natildeo

pode o que deve e o que natildeo deve enfim valores morais que os homens estabeleceram ao

longo dos tempos eles natildeo existiam como valores eacuteticos entre os gregos da eacutepoca arcaica Desse

modo a moral de Afrodite eacute o desejo poder contra o qual os mortais nada podiam pois os

homens nada valiam sem seus deuses Em outras palavras as accedilotildees humanas (de Paacuteris e de

Helena) soacute existem por intervenccedilatildeo divina Cabe aos deuses a direccedilatildeo de suas intervenccedilotildees ainda

que possam parecer desleais mas que em geral tentam ajudar aquele ou aqueles que procuram

proteger Com a proteccedilatildeo dos deuses aos mortais nada eacute impossiacutevel e assim como Atena

protege Diomedes no combate Afrodite vela por Paacuteris o troiano contra Menelau que teve sua

mulher raptada

O canto III da Iliacuteada mostra um momento de grande forccedila e poder de Afrodite quando

Alexandre (Paacuteris) filho de Priacuteamo (de Troacuteia) luta com Menelau (marido ofendido) e embora

Menelau saia vencedor do embate (graccedilas agrave proteccedilatildeo de Atena) Afrodite salva Paacuteris da morte

(das investidas violentas das armas de Menelau) e o leva a salvo ateacute Helena A proacutepria Helena

reprova a atitude da deusa ante a vitoacuteria de Menelau poreacutem Afrodite chama-lhe a atenccedilatildeo para

seu poder dizendo

Natildeo me provoques criatura infeliz porque natildeo aconteccedila 414 que te abandone e te venha odiar quanto agora te prezo Se entre Acaios e Teucros97 fizesse surgir oacutedio infausto contra tu proacutepria haverias de ter um destino bem triste98 417

Ouvindo essas palavras Helena ficou cheia de medo (έδδεισεν v 418) e seguiu a deusa

que no texto homeacuterico eacute indicada com a palavra δαίmicroων v 420 com sentido de terriacutevel

poderosa de onde vem em portuguecircs o termo democircnio usado na traduccedilatildeo de Nunes

e sem dizer mais palavra se foi99 no veacuteu branco envolvida 419 sem que as troianas a vissem servia de guia o democircnio100 420

A influecircncia de Afrodite eacute decisiva na uniatildeo do casal Paacuteris-Helena e essa ligaccedilatildeo natildeo

dependeu do desejo dos mortais mas do ldquodestinordquo imposto pela deusa

97 Equivalente a gregos e troianos No texto Τρώων καί ∆αναών (v 417) sendo que ∆αναών significa descendente de Dacircnaos 98 HOMERO Op cit Canto III 414-417 p 115 99 Referindo-se a Helena 100 HOMERO Op cit Canto III 418-420 p 115

54

Afrodite tambeacutem protege na guerra de Troacuteia Eneacuteias seu filho com Anquises mas isso eacute

uma outra histoacuteria Aqui a lenda miacutetica enreda temas de conceitos que se sobrepotildeem primeiro a

questatildeo que existe entre a diferenccedila essencial da imortalidade dos deuses e da mortalidade

humana Eneacuteias eacute fruto de uma ligaccedilatildeo entre a deusa Afrodite e o mortal Anquises o que jaacute

revela que como descendente que tem traccedilos humanos natildeo goza do privileacutegio da imortalidade

Segundo apesar de Afrodite estar sempre tecendo a seduccedilatildeo e provocando a uniatildeo sexual entre

deuses e homens o Hino Homeacuterico V que faz parte de uma sequumlecircncia de trinta e trecircs hinos de

eacutepocas e autores diferentes posteriores agrave Iliacuteada e a Odisseacuteia mas que mantem tambeacutem uma

dicccedilatildeo eacutepico-narrativa narra a seduccedilatildeo da proacutepria Afrodite por Anquises e a concepccedilatildeo de

Eneacuteias Veja-se o trecho seguinte retirado do Hino Homeacuterico V 247-255 em que Afrodite

reconhece seu deslize por ter se deixado envolver por um homem mortal

∆ΰτάρ εmicroοί microέγ ονειδος έν αθαvάτοισι θεοΐσιν 247 Έσσεται ήmicroατα πάντα διαmicroπερές έίνεκασεΐο οί΄ πριυ ε΄microούς ο΄άρους και υητιας αΐς ποτε πάντας αθανάτους συνέmicroιξα καταθνητήσι γυναιξί 250 τάρβεσκον πάντας γάρ εmicroόν δάmicroνασκε νόηmicroα νΰν δέ δη ουκέτι microοι στοmicroα χείσετι έξονmicroήναι τούτο microετ΄ άθανάτοισν έπεί microαλα πολλόν α΄άο θην σχέτλιου οΰκ όνοταστόν άπεπλάγχθην δέ νόοιο παΐδα δ΄ ύπό ζώνη έθέmicroηv βροτώ εύνηθέΐοα101 255

E agora sobre mim uma grande censura entre os deuses imortais 247 haveraacute todos os dias continuamente por causa de vocecirc aqueles que se amedrontaram de minhas zombarias e ardis com os quais alguma vez fiz todos os imortais se envolverem com mulheres mortais 250 pois meu propoacutesito submeteu todos a mim Mas agora minha boca natildeo mais teraacute coragem de mencionar isso entre os imortais desde que fiquei grandemente atormentada infeliz sem palavras tendo perdido o juiacutezo trago uma crianccedila debaixo do cinto tendo colocado ao leito um mortal102 255

Algumas observaccedilotildees se fazem necessaacuterias (a) apesar de natildeo haver um conceito

estabelecido de eacutetica e moral entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos a ideacuteia que parece estar vinculada

com a palavra ŏνειδος (censura reprovaccedilatildeo) estaacute relacionada a um sentido de organizaccedilatildeo na

junccedilatildeo entre os opostos que a narrativa da histoacuteria da origem da separaccedilatildeo da terra e do ceacuteu trata

e agrave qual jaacute nos referimos Afrodite como deusa inquieta e errante voluptuosa e voluacutevel tinha a

101 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 p 67 102 Traduccedilatildeo nossa

55

intenccedilatildeo de desequilibrar de afetar a ordem entre os contraacuterios pois a contradiccedilatildeo estaacute associada

com a natureza primeira da condiccedilatildeo de procriaccedilatildeo Nesse jogo de ambivalecircncia tambeacutem os

imortais satildeo enredados pela mortalidade conhecendo a inseguranccedila a fraqueza a brevidade da

vida humana Assim a implicaccedilatildeo de censura daacute-se pelo fato de que os imortais atraveacutes dos

desiacutegnios do desejo reconhecem uma tensatildeo que estaacute colocada como uma realidade humana que

eles passam a identificar no seu relacionamento com os mortais E a presenccedila da morte natildeo podia

ser aceita pelos deuses que a viam como degradante e vil (b) Embora natildeo tenha sido citado no

trecho acima o mesmo Hino Homeacuterico V menciona que o proacuteprio Zeus o deus todo poderoso do

Olimpo que tambeacutem havia sido viacutetima das investidas de Afrodite para dar-lhe uma liccedilatildeo faz

com que ela proacutepria conheccedila um mortal em uma situaccedilatildeo que envolva a intimidade conjugal Eacute o

que revela o verso 255 com a palavra έύνηθεΐσα isto eacute colocar no leito nupcial onde se daacute a

uniatildeo dos opostos e onde se concretiza a concepccedilatildeo (c) Por isso Afrodite fala das consequumlecircncias

de seu ato pois entatildeo sabe que traz ldquouma crianccedila debaixo do seu cintordquo A palavra ζώνη ao

mesmo tempo que se refere a cinto refere-se agrave lsquocinturarsquo ao lsquoventrersquo

A partir daiacute temos pois uma outra consideraccedilatildeo a questatildeo da descendecircncia Essa tese eacute

amplamente discutida por Faulkner103 que comenta como essa temaacutetica (dos ldquoAineiadairdquo) eacute

delineada desde o proacutelogo do poema e estaacute presente nos jogos sedutores que Afrodite impotildee a

Anquises fazendo-se passar por filha de Otreu rei da Frigia Afrodite convence Anquises das

profecias do deus Hermes que previu a uniatildeo deles (Τέκνα Τεκεΐσθαι v 127) atraveacutes de

atividades conjugais e o nascimento de um filho Deste modo o que ela coloca ironicamente

como fraude vem a tornar-se verdade Nem Afrodite escapa de ldquosua bocardquo

As colocaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo a Eneacuteias filho de uma deusa com um mortal o destaque

sobre os atributos fiacutesicos favoraacuteveis de Afrodite e de Anquises a profecia de seu nascimento

parecem dar ecircnfase agrave famiacutelia descendente de Eneacuteias

O que Faulkner104 argumenta eacute que apesar de subtemas ligados ao poema como a ironia

de Afrodite suas zombarias a relaccedilatildeo deus imortal ndash homem mortal no Hino a Afrodite o poeta

pretendeu glorificar a linhagem de uma famiacutelia ldquoEneidanardquo (Aineiadai)

103 FAULKNER Andrew Op cit 104 FAULKNER Andrew Op cit

56

Ainda assim o que jaz como princiacutepio da linhagem eacute uma fraude o que natildeo deixa de ser

uma forma de violecircncia que vem sempre acompanhada do desejo talvez um sentimento de posse

(pois Afrodite queria apossar-se de Anquises dada a sua beleza) que emana do contexto do ser

amado Eacute Anquises que lhe provoca o desejo Retomando o que jaacute foi colocado no item 22 vecirc-

se claramente o jogo de forccedilas em Afrodite a seduccedilatildeo persuasiva (peithoacute) e a ilusatildeo enganosa

(Apaacuteteacute)

O que estaria sendo revelado nesse trecho dos Hinos Homeacutericos em que Afrodite natildeo

resiste aos encantos de Anquises Talvez que a questatildeo dos opostos ndash que envolve sempre uma

tensatildeo como jaacute vimos ndash se inicie pelo ldquoolharrdquo Assim toda genealogia humana passa pela

questatildeo de ldquoolharrdquo e do reconhecimento desse olhar ou seja pelo sexo que eacute uma forma de

apoderar-se isto eacute de poder Nesse sentido a condiccedilatildeo humana que resulta do contexto da

sexualidade pode vir a ser uma condiccedilatildeo traacutegica como foi demonstrado e explorado na trageacutedia

grega

Eneacuteias eacute gerado a partir da seduccedilatildeo e do erotismo A descendecircncia se daacute como

consequumlecircncia como resultado de um ldquofasciacuteniordquo105 como diratildeo os romanos Mas o que fica claro

na questatildeo genealoacutegica eacute que o resultado da ligaccedilatildeo entre os opostos eacute que levaraacute adiante esse ato

e que o proclamaraacute nas geraccedilotildees futuras Como coloca Quignard ldquonous sommes venus drsquoune

scegravene ougrave nous nrsquoeacutetions pasrdquo106

Assim o Hino Homeacuterico V a que estamos nos referindo enfatiza o olhar de Afrodite e

de Anquises A concepccedilatildeo de Eneacuteias deu-se pelo olhar A questatildeo do olhar natildeo poderia deixar de

ser considerada pelos saacutebios gregos

Quando Afrodite desejosa apresenta-se (vs 75 ndash 142) a Anquises como uma simples

mortal o que inaugura esse encontro eacute o olhar de Anquises pois ele percebe o objeto de amor agrave

sua frente Eacute o que diz o texto grego

Αγχίσης δ΄ δρόων107 έΦράξετο θαύmicroαιν΄εν τε 84 ει δός τε microέγεθός τε καί έίmicroατα σιγαλο΄εντα 85

105 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 p 11 O autor faz um estudo comparando a palavra romana ldquofascinusrdquo com a palavra grega ldquophallosrdquo Ele diz ldquoLe lsquofascinusrsquo arrecircte le regard au point qursquoil ne peut srsquoen deacutetacherrdquo ou seja que ldquoo fasciacutenio imobiliza o olhar a tal ponto que natildeo se pode desprender-se delerdquo 106 QUIGNARD Pascal Idem p 10 ldquoViemos de uma cena onde natildeo estaacutevamosrdquo 107 Grifo nosso para assinalar o verbo olhar que tambeacutem significa entender

57

Portanto Anquises quando a viu observou-a bem e admirou sua aparecircncia e suas

vestimentas

O autor descreve em poucas palavras o olhar de atraccedilatildeo de cobiccedila mesmo que faz parte

do jogo de seduccedilatildeo O olhar do mortal Anquises espelha a forma de exercer o olhar do masculino

e revela o entendimento da figura feminina no seu modo de Ser de portar-se de vestir-se de ser

mulher Isso indica o interesse do homem grego pelo belo e a descriccedilatildeo que se segue mostra o

olhar investigador e atento do poeta conhecedor do espaccedilo feminino de seu tempo

Apoacutes essa cena da descoberta pelo olhar Afrodite eacute conduzida de olhos ldquoabaixadosrdquo

(κατ΄ οmicromicroατα καλα βαλοΰσα v 156) ndash revelando modeacutestia ndash por Anquises Novamente o olhar

complementando o gesto decoro vergonha recato O que quer a deusa dizer com isso O texto

leva agrave accedilatildeo seguinte a uniatildeo de Anquises e Afrodite homem mortal e deusa imortal no mesmo

leito A respeito ocorre-nos um trecho das Eacuteleacutegies de Properce

Les yeux dans lrsquoamour sont les guides (oculi sunt in amore duces) Ocirc joie drsquoune nuit lumineuse Ocirc toi petit lit (lectule) heureux de mon plaisir Que de mots eacutechanges agrave la clarteacute des lampes Et la lumiegravere enleveacutee (sublato lumine) dans la nuit que de combats de lrsquoamour Une seule nuit peut faire de nrsquoimporte quel homme un dieu (nocte una quivis vel deus esse potest)108

O leito de Anquises que recebe Afrodite eacute cuidadosamente descrito no Hino Homeacuterico V

O cliacutemax do arrebatamento amoroso ocorre principalmente nos versos 155-167 Eacute quando o

leito que os acolhe revela a forccedila do heroacutei Anquises nas peles de ursos e de leotildees que jaacute se

submeteram a ele e agora jazem estendidos para receber Afrodite tambeacutem ela submissa a seu

poder e como aponta Faulkner para esse fato

By doing so109 the animal skins become more than just an abstract symbol of Anchisesrsquo power and underline Aphroditersquos own loss of power in the face of Anchisesrsquo momentary strenght she is now conquered on top of the very beasts she earlier controlled110

108 PROPERCE Eacuteleacutegies II 15 In QUIGNARD Pascal Op cit p 135 ldquoOs olhos no amor satildeo guias Oh alegria de uma noite luminosa Oh pequeno leito feliz de meu prazer Quantas palavras trocadas agrave claridade das lacircmpadas E a luz arrebatada na noite quantos combates do amor Uma uacutenica noite pode fazer de qualquer homem um deusrdquoTraduccedilatildeo nossa 109 ldquoBy doing sordquo estaacute relacionado agrave sentenccedila anterior referindo-se ao fato de que quando Afrodite estava atravessando o monte Ida para dirigir-se a casa de Anquises Afrodite submeteu os animais selvagens agrave doccedilura do seu desejo fazendo-os copular 110 FAULKNER op cit p 227 ldquoAo fazer isso as peles dos animais se tornam mais do que um siacutembolo abstrato do poder de Anquises e realccedilam a perda de poder da proacutepria Afrodite face agrave forccedila momentacircnea de Anquises agora ela eacute conquistada em cima dos proacuteprios animais que ela antes controlourdquo Traduccedilatildeo nossa

58

O mesmo autor chama a atenccedilatildeo para o fato de que quando Afrodite se despe sua perda

de forccedila pode ser comparada agraves cenas iniciais quando entatildeo sua aparecircncia estaacute recoberta pelas

roupas o que simbolizava antes seu poder enfraquece ao desnudar-se Segundo Quignard em

outros trechos de textos de Homero o mesmo verbo grego mignumi que eacute usado para referir-se

ao jugo de uma mulher eacute o que coloca agrave morte um adversaacuterio Afrodite foi vencida por um

mortal ou venceu-o o proacuteprio desejo

Em nosso ponto de vista natildeo pode ser deixado de lado o aspecto que favorece a posiccedilatildeo

de Anquises no intercurso propondo pois uma questatildeo de gecircnero na sociedade patriarcal Por

isso talvez Faulkner veja nessa atitude de forccedila de Anquises um poder transitoacuterio

Quando Anquises se aproxima de Afrodite a cena do ldquodespir-serdquo revela a fragilidade

feminina frente ao ldquophallosrdquo grego em uma sociedade que tinha a mulher como objeto de

submissatildeo ao homem e de procriaccedilatildeo Afrodite representa esse contexto feminino tanto na sua

submissatildeo agrave uniatildeo com Anquises quanto na profecia do filho que vai ser gerado pois eacute o que se

espera do leito nupcial

Especialmente os versos 162 163 164 165 revelam dois aspectos de grande importacircncia

Um deles eacute que a deusa Afrodite eacute descrita (e eacute tambeacutem representada na pintura e na escultura)

usando brincos e colares aleacutem de outras joacuteias A descriccedilatildeo do nome das joacuteias tem sido objeto de

estudo linguumliacutestico para a precisatildeo do significado delas e para entendimento da eacutepoca em que o

Hino V possa ter sido escrito Vaacuterios autores tecircm estudado o vocabulaacuterio diligentemente e em

Faulkner111 as palavras gregas έλικας e κάλυκάς tecircm um sentido incerto O consenso tem sido

optar pela traduccedilatildeo de brincos em forma de flor de botatildeo para κάλυκες enquanto tem-se suposto

que έλικας indique pulseira uma vez que o significado de έλικας estaacute relacionado com alguma

forma de espiral

Outro fato relacionado com esses versos eacute a forma como a accedilatildeo eacute descrita remetendo agrave

retirada das peccedilas de roupa criando um contexto eroacutetico e um prenuacutencio do ato sexual Daacute-se o

desvendamento de Afrodite no momento em que Anquises (λΰσε δέ οί ζώνην) desata o cinto dela

Afrodite foi subjugada A cena evoca um clima de misteacuterio enquanto Anquises e Afrodite estatildeo

ligados pela atraccedilatildeo do olhar Quando Afrodite eacute ldquodesnudadardquo no ato de ter seu cinto retirado o

olhar cede lugar para a concretizaccedilatildeo da accedilatildeo Agora o que interessa eacute a sombra da mortalidade

111 FAULKNER op cit p 168-169 230

59

que paira sobre eles ele um transgressor que se apropria da deusa ela atormentada pelo seu

gesto de fraqueza

Apoacutes o coito Afrodite recompotildee-se sozinha assume sua forma divina acorda Anquises

que ela havia feito adormecer Esse trecho (versos 168 ndash 183) revelam o terror que o sexo pode

provocar apoacutes a constataccedilatildeo do ato e evocam as reaccedilotildees sugeridas pelo olhar

Afrodite conclama Levante-se filho de Daacuterdano por que vocecirc adormeceu pesadamente

Considere se eu tenho a mesma aparecircncia de quando vocecirc me viu com seus olhos pela primeira

vez

No Hino Homeacuterico

Ορσεο ∆αρδανίδη τι νυ νηγρετον υπνον ίανεις 177 καί Φράσαι ει τοι όmicroοίη έγών ίνδάλλοmicroαι είναι οίην δη microε το πρωτον έν οΦθαλmicroοίσι νόησας 179

Quando Anquises acorda novamente revela-se a questatildeo do olhar pois ao ver o pescoccedilo

e os olhos adoraacuteveis de Afrodite (οmicromicroατα κάλ΄ ΆΦροδίτης v 181) ele se amedronta e dirige seu

olhar para outro lado (τάρβησέν τε καί οσσε παρακλιδόν ετραπευ αλλη v 182)

A presenccedila da deusa impotildee reverecircncia respeito e a atitude de Anquises desviar o olhar eacute

o que se espera diante do divino

A seguir as palavras que Anquises profere configuram-se como uma oraccedilatildeo Ele repete

que seu olhar (όΦθαλmicroοΐσιν v 185) havia captado o divino na aparecircncia de Afrodite embora ela

natildeo tenha dito a verdade Pede entatildeo que ela se apiede dele

Eacute interessante relacionar pois esses versos (188-190) em que Anquises se preocupa com

seu vigor e pede proteccedilatildeo agrave deusa para natildeo ser deixado paraliacutetico entre os homens castigado por

ter transgredido o sagrado com os versos 153-154 em que Anquises exclama que iria de boa

vontade para a casa de Hades (i eacute agrave morte) desde que ele tivesse ldquosubidordquo agrave cama da mulher

bela como as deusas (palavras que ele pronunciou a Afrodite antes do acasalamento julgando

ser ela uma jovem mortal)

Essas cenas refletem o poder do sexo masculino face ao desejo que o coito remete

Agrave cena de forccedila e domiacutenio do homem frente agrave submissatildeo feminina sucede o retorno agraves

origens e ele coloca-se diante da deusa agora vista como mater cheia de poder divino

implorando-lhe a vida ndash garantida pelo acolhimento do ventre feminino Vecirc-se pois nesse gesto

o eterno conflito de forccedila entre os gecircneros O poder do ldquophallosrdquo grego soberano no ato sexual

60

curva-se ao poder da mulher o feminino como princiacutepio das origens A esse respeito fazemos

nossas as beliacutessimas palavras de Quignard

La premiegravere domus est le ventre de la femme La deuxiegraveme domus est la domus dans laquelle lrsquohomme rapte les femmes pour se reproduire et reproduire la domus La troisiegraveme domus est la tombe112

Sabiamente o autor usa a palavra domus (grego δόmicroος) em seu texto o que fornece um

enredamento de sentidos contidos todos no mesmo contexto Pode-se pois entender como

ldquocasa habitaccedilatildeo quarto templo morada dos deuses famiacuteliardquo113

Como diz Quignard o homem cria raiacutezes com seu desejo vincula-se a ele da mesma

forma que o lactente com sua matildee Isso faz parte da cena histoacuterica em que a ontogecircnese do

homem estaacute enraizada na filogecircnese pois como mostraram os gregos atraveacutes do nascimento de

Afrodite a vida estaacute enraizada no universo quer seja atraveacutes da umidade do oceano no ritmo de

suas ondas quer seja atraveacutes do misteacuterio do ceacuteu na trilha de seus astros incandescentes quer

seja atraveacutes da terra que floresce que nutre que acolhe que se transforma e que frutifica

Dessa forma o desejo estaacute enraizado na histoacuteria da origem da terra e a chegada de

Afrodite estaacute vinculada natildeo apenas ao desejo mas tambeacutem agrave reproduccedilatildeo

Mas a histoacuteria do desejo apresenta outras variantes Assim de acordo com a tradiccedilatildeo

miacutetica Afrodite era casada com Hefesto (filho de Zeus e de Hera) deus protetor do fogo e um

haacutebil criador Diz tambeacutem a lenda que Hefesto era coxo e que o casamento de Afrodite e de

Hefesto foi imposto por Hera Era uma maneira de ldquounir el fuego de Hefesto con la fuerza

fecundadora de Afrodita la belleza del arte con la belleza de la naturalezardquo114

No canto VIII (versos 266-367) da Odisseacuteia Odisseu acompanha na voz de um aedo a

saga dos amores de Ares com a formosa Afrodite (Άρεος Φιλότητος εύστεΦάνου τ΄ΆΦροδίτης)

Apesar de o texto apresentar uma narrativa eroacutetica em que o casal de amantes eacute visto na

sua intimidade a palavra usada para representar a uniatildeo desse amor (seria uma forma de

significar a ligaccedilatildeo carnal atraveacutes da qual o desejo se concretiza) eacute Φιλότητος que em periacuteodo

posterior como jaacute se ressaltou anteriormente seraacute usado como amor que revela amizade 112 QUIGNARD op cit p 224 ldquoO primeiro domus eacute o ventre da mulher O segundo domus eacute o domus no qual o homem se apossa das mulheres para se reproduzir e reproduzir o domus O terceiro domus eacute a tumbardquo Traduccedilatildeo nossa Mantivemos o uso de domus como no original Diferentemente do autor consideramos a forma masculina do grego δόmicroος 113 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 p 151 114 MAUROMATAKI Maria Op cit p 87

61

Dando sequumlecircncia agrave histoacuteria de Hefesto e Afrodite Heacutelio o Sol contou a Hefesto sobre os

encontros secretos de Afrodite e Ares o deus da guerra Hefesto enraivecido planejou pegaacute-los

em uma armadilha (δόλον) e por isso teceu com seu engenho admiraacutevel uma rede de metal que

se assemelhava a uma teia de aranha tal o seu ardil em executaacute-la de forma que natildeo pudesse ser

vista Ares e Afrodite foram ao leito (λέχος δ΄ ήσχυνε και εύνην)115 na proacutepria casa de Hefesto

(ΗΦαιστοιο δόmicroοισι) pois Hefesto havia dito que ia se ausentar Ares ardia em desejo

(Φελότητος) e depois que os amantes adormeceram abraccedilados acordaram e viram-se envoltos na

rede fina impossibilitados de sair dali Para ridicularizaacute-los Hefesto chamou todos os deuses

para assistir a esse espetaacuteculo e dizia que Afrodite comprazia-se com Ares (novamente o verbo

Φιλεω) e natildeo com ele por ser coxo Apoacutes a intervenccedilatildeo de alguns deuses Hefesto finalmente

decidiu libertar os amantes

Alguns aspectos relacionados agrave questatildeo do desejo podem ser brevemente observados (a)

relacionado ao desejo estaacute a problemaacutetica da traiccedilatildeo Assim se entendermos o conceito de poder

subjacente agrave uniatildeo sexual verificamos que a situaccedilatildeo realmente pode ser equiparada a um

campo de batalha isto eacute haacute o(s) vencedor(es) e o(s) perdedor(es) (b) Em se tratando de uma

lenda simboacutelica constata-se que o deus envolvido eacute Ares que significa o deus da guerra

responsaacutevel pela violecircncia e pelos enfrentamentos entre os homens Ares eacute realmente descrito

como tendo um caraacuteter agressivo e explosivo e alguns autores explicam que esses atributos

estavam relacionados ao seu lugar de origem pois os antigos habitantes da Traacutecia tinham

costumes violentos e faziam uso da forccedila bruta Assim representa-se a uniatildeo sexual de forma

simboacutelica em que o ato de desejo (Afrodite) eacute subjugado pela forccedila violenta (Ares) (c) Eacute

interessante considerar como o marido traiacutedo procura uma estrateacutegia de vinganccedila calculada Sua

intenccedilatildeo eacute realmente o dano Daiacute a palavra lsquoδολοςrsquo (dolo) usada no texto (d) Todo ato de

traiccedilatildeo pressupotildee uma atitude de reparo Assim quando Afrodite eacute libertada vai a Ilha de Pafos

em Chipre onde eacute recebida pelas Caacuterites que a banham e a ungem com oacuteleo sagrado Isso

parece-nos uma forma de renovar a lsquovirgindadersquo o que equivaleria a um rito de purificaccedilatildeo como

o de Hera que durante os rituais em sua honra tinha sua virgindade renovada Tambeacutem depois o

cristianismo introduziraacute o batismo como ato de purificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo (e) O termo 115 A palavra λέχος tem o significado de ldquoleitordquo mas em alguns contextos tambeacutem pode significar ldquouniatildeo clandestinardquo Neste caso junto da palavra εύνην quer dizer ldquoleito nupcialrdquo o que proclama as atividades sexuais cf BAILLY op cit p 1185 Em PEREIRA opcit p 346 encontra-se aleacutem de lsquoleitorsquo a traduccedilatildeo lsquoninhorsquo e lsquotumbarsquo

62

empregado por Hefesto ao referir-se a Afrodite ao reclamar da situaccedilatildeo para Zeus eacute sugestivo

da propriedade de descontrole do desejo que escapa do domiacutenio do indiviacuteduo O aspecto de

irracionalidade que une animais humanos e deuses aproximando-os pela sua filogecircnese ndash como

jaacute se colocou antes ndash estaacute expresso na palavra κυνώπιδος que tem o sentido de expressar o lsquoolhar

de uma cadelarsquo revelando uma imprudecircncia e um atrevimento (f) A questatildeo do olhar nessa cena

eacute relevante pois haacute os olhares dos deuses sobre os amantes e sobre o trabalho astucioso de

Hefesto haacute o olhar de anguacutestia do marido traiacutedo haacute o olhar de Afrodite (g) Finalmente o que jaacute

se anunciou variadas vezes o conflito que o desejo pode gerar entre os sujeitos

Vejamos como Afrodite eacute descrita em Hesiacuteodo em se considerando seus atributos apoacutes

seu nascimento na espuma do mar vinda do ceacuteu isto eacute de Urano castrado Diz Hesiacuteodo sobre

essa deusa

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha 203 coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice116 206

Assim um uacutenico dever foi determinado a Afrodite as questotildees de Φιλότητά (amor) que

envolvem homens e deuses e portanto tambeacutem o gozo e os enganos Hesiacuteodo usa pois a

palavra philia referindo-se ao amor

Muitas outras lendas satildeo narradas sobre Afrodite tal a importacircncia da grande deusa do

Mediterracircneo Uma das histoacuterias fala dos filhos que Afrodite teve com Ares (Harmonia Deimo

Fobo e Eros) Eros acompanhava sempre a matildee com suas flechas provocando alegria e dor Em

um estaacutegio posterior quando a filosofia passou a indicar conceitos a palavra ερος (Eros)

comeccedilou a ser usada para indicar envolvimentos amorosos tendo-se mantido ateacute hoje em nossa

sociedade ao lado do adjetivo lsquoafrodisiacuteacorsquo reminiscecircncia de Afrodite

Quanto a Fobo embora natildeo haja lenda sobre ele passou a designar lsquofobiarsquo medo e

vincula-se de alguma forma agraves questotildees afetivas unindo ldquodesejordquo e ldquomedordquo o eterno conflito do

macho e da fecircmea

Em algumas representaccedilotildees iconograacuteficas Afrodite aparece com o epiacuteteto Panopla

Los griegos conferiacutean a su figura la idea de la ldquoguerrardquo en el terreno del amor y al mismo tiempo la vinculaban con el mundo de los muertos pues el amor y la muerte son elementos y condiciones indispensables para la renovacioacuten de los ciclos de la vida y de

116 Traduccedilatildeo de TORRANO J A A op cit p 117

63

los seres Asi fue adorada junto a Hermes como Subterracircnea y en algunos cementerios como Afrodita Escotia (de skotos = oscuridad)117

Afrodite recebeu outros epiacutetetos que remetem ao seu aspecto enigmaacutetico como Escoacutecia

(a lsquoescurarsquo) Androacutefonos (lsquoassassina de homensrsquo) Epitiacutembria (lsquodas tumbasrsquo) Quanto ao seu

epiacuteteto Melecircnis (lsquoa negrarsquo) Pausacircnias explica como causa o fato de que a maior parte dos atos

sexuais se daacute agrave noite Essa explicaccedilatildeo eacute considerada ingecircnua pelos autores comtemporacircneos pois

tambeacutem esse epiacuteteto parece estar relacionado agraves caracteriacutesticas de vida e morte que fazem parte

dos ciclos de fertilidade

Afrodite tambeacutem era conhecida como Afrodite Pandecircmica representando o aspecto

carnal e vulgar do amor Assim era vinculada com a prostituiccedilatildeo e vaacuterias prostitutas trabalhavam

em seu santuaacuterio em Acrocorinto Considerava-se que essas prostitutas tinham um caraacuteter

sagrado e uma delas imortalizou-se como modelo desnudo para que Praxiteles pudesse realizar

uma estaacutetua de Afrodite

Assim como o amor as histoacuterias de Afrodite satildeo interminaacuteveis

O domiacutenio de seu impeacuterio natildeo tem fronteiras e Eros seu filho igualmente herdou o

caraacuteter de peregrinaccedilatildeo de sua matildee Ambos matildee e filho aparecem na trageacutedia grega tendo sido

destacado o aspecto de perambulaccedilatildeodeliacuterio

Tomemos como exemplo um trecho da Antiacutegona de Soacutefocles (versos 785-790)

Vagas sobre as ondas 785 e penetras em rebanhos campestres De ti nenhum dos deuses escapa nenhum dos efecircmeros homens Quem tocas delira118 790

Quanto agrave Afrodite Euriacutepides (vs 447-450) destaca seu domiacutenio abrangente e revela

como essa propriedade inerente agrave deusa perpassa pelos mortais Natildeo haacute como resistir a ela que

estaacute em todas as partes no ceacuteu na terra e no mar fazendo florescer a vida Vejamos

Ela percorre o eacuteter ela estaacute nas ondas 447 do mar a Ciacutepria eacute dela que tudo floresce eacute ela a que semeia e a que daacute amor a quem devemos o nascimento da terra119 450

117 MAVROMATAKI Maria Op cit p 89 118 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 p 61 119 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 135

64

52 ndash AacuteRTEMIS A LIBERDADE E A VIRGINDADE

Poderiacuteamos introduzir os comentaacuterios sobre Aacutertemis iniciando-os com um

questionamento por que ndash apesar da nudez e dos olhares ndash desejou Aacutertemis manter-se virgem

Antes de explicarmos melhor nossa colocaccedilatildeo inicial vejamos quem eacute Aacutertemis

Filha de Leto e de Zeus nasceu junto com seu irmatildeo Apolo o que os colocou lado a lado

no panteatildeo grego e o que fez que tivessem muitos elementos em comum constituindo-se

Aacutertemis de acordo com a tradiccedilatildeo sua versatildeo feminina

Vaacuterias satildeo as lendas sobre Aacutertemis Em Hesiacuteodo os versos 918-920 dizem somente que

Leto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechas 918 prole admiraacutevel acima de toda a raccedila do Ceacuteu gerou unida em amor a Zeus porta-eacutegide120 920

Alguns comentaacuterios sobre esses trecircs versos parecem-nos dignos de consideraccedilatildeo Um

deles eacute o fato de que Hesiacuteodo jaacute coloca emparelhados Apolo e Aacutertemis considerando-os como

ldquoprole admiraacutevelrdquo sobre ldquotoda a raccedila do Ceacuteurdquo o que seraacute repetido no Hino Homeacuterico a Aacutertemis

(Hino XXVII ndash veja anexo B) O outro eacute a questatildeo da fecundidade como ato de amor (no texto

grego encontra-se novamente a palavra Φιλότητι)

De acordo com uma das lendas que Graves narra Leto pariu os filhos em Ortiacutegia perto

de Delos Assim que acabou de nascer Aacutertemis ajudou a matildee em seu outro parto pois o

nascimento de Apolo levou nove dias de trabalho121 Por isso foi adorada pelos deuses tambeacutem

como deusa do parto chegando mais tarde a ser confundida com Iliacutetia a deusa do parto

Recebeu o epiacuteteto de Aacutertemis Brauronia em Brauron onde havia um santuaacuterio dedicado a ela

As mulheres que tinham um parto normal faziam sacrifiacutecios em honra agrave deusa Outros fieacuteis

levavam agrave deusa como oferenda roupa de mulheres que haviam morrido no parto

Em Eacutefeso Aacutertemis tinha um outro epiacuteteto Era conhecida como Kuroacutetrofos pois se

encarregava de cuidar das crianccedilas Como Heacutestia tambeacutem era uma deusa da iniciaccedilatildeo que

ajudava os jovens no periacuteodo de transiccedilatildeo entre a adolescecircncia e a idade adulta Havia rituais

especiais invocando seu apoio Como parte da iniciaccedilatildeo algumas jovens deviam servir em seu

120 HESIacuteODO Op cit p 157 121 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 p 68

65

templo especialmente em Brauron para aprender como se dava a passagem para um outro

estaacutegio da vida No periacuteodo em que permaneciam nessa iniciaccedilatildeo as jovens eram chamadas de

akti do grego άrκτοι ou seja ldquoursasrdquo Um mito explicando esse periacuteodo de servidatildeo conta que

um urso das redondezas costumava visitar a cidade de Brauron regularmente As pessoas o

alimentavam e com isso o urso foi domesticado e ficou trataacutevel Poreacutem uma jovem o provocou

e ele enraivecido matou-a Segundo outra versatildeo ele arrancou os olhos dela O irmatildeo da garota

matou o urso o que fez com que Aacutertemis ficasse furiosa Daiacute para a frente ela ordenou que as

jovens agissem como urso domesticado em atitude de reparaccedilatildeo por sua morte

Isso parece deixar claro a ldquodomesticaccedilatildeordquo por que deveriam passar as jovens antes do

casamento favorecendo um comportamento doacutecil e submisso face ao esposo pois uma reaccedilatildeo de

insubordinaccedilatildeo deixaria enfurecido natildeo soacute o esposo como tambeacutem a divindade

Aacutertemis era conhecida ainda como Aacutertemis Ortia em Esparta laacute tambeacutem como iniciadora

de jovens que se encaminhavam para a idade adulta e portanto como cidadatildeos

Os gregos a consideravam uma deusa virgem afastada dos jogos enganosos da seduccedilatildeo

Talvez esse devesse ser um dos atributos das deusas (Aacutertemis e Heacutestia) para que pudessem servir

de guia agraves jovens ndash tambeacutem virgens ndash para uma etapa da vida de mudanccedila pessoal e social

considerando-se aiacute um movimento da vida de liberdade da jovem para as ldquoamarrasrdquo e a

dependecircncia de um esposo e de filhos

Aacutertemis ao contraacuterio continuava como deusa virgem livre e independente caccedilando nos

bosques e nas montanhas banhando-se nos rios bailando e soltando gritos de clamor vinculada

agraves suas origens ancestrais

Graves reporta-se a uma lenda narrada por Pausacircnias em que enquanto se banhava em

um rio Aacutertemis foi vista pelo priacutencipe caccedilador Acteacuteon filho de Aristeu Indignada transformou-

o em um cervo que foi perseguido e morto por sua proacutepria matilha122

Nessa lenda Acteacuteon eacute punido pelo seu olhar por ter devassado a nudez divina A reaccedilatildeo

de Aacutertemis diante desse gesto calado foi violenta evocando o conflito que o desejo cria entre os

contraacuterios O que o olhar de Acteacuteon significava Para Aacutertemis estava impliacutecito que ldquoO olhar

122 GRAVES Robert Op cit p 103

66

deseja sempre mais do que o que lhe eacute dado verrdquo123 Aacutertemis rejeita a seduccedilatildeo jogo enganador

que vem da caccedilada silenciosa do olhar Aacutertemis sai vencedora da cena em que Acteacuteon eacute

decomposto e desaparece como perdedor

Afrodite quando deseja conquistar Anquises estaacute cocircnscia de que a seduccedilatildeo eacute uma farsa e

que o seduzido (no caso Anquises) eacute o que deixa a marca de sua experiecircncia Por isso Anquises

suplica a salvaccedilatildeo a Afrodite

Acteacuteon poreacutem como sedutor perde seu rumo Na origem da liberdade Aacutertemis coloca a

sua virgindade Diferentemente do poder libertaacuterio o poder do desejo eacute ilusoacuterio e errante

Todas as tentativas de vida afetiva (philoacutetes) de que Aacutertemis participa satildeo enfrentadas

com violecircncia Temos pois a ambivalecircncia do desejo de independecircncia que se opotildee ao desejo da

persuasatildeo e do engano que eacute sempre sedutor doce mas tambeacutem enganador (verificar item 2)

Haacute particularmente dois epiacutetetos de Aacutertemis amplamente conhecidos

Um deles eacute Potnia Theron a deusa dos animais selvagens como refere-se Homero a ela

considerando seu aspecto poderoso e veneraacutevel O maior prazer de Aacutertemis era correr nos

bosques e caccedilar com seu arco de ouro (veja anexo Hino a Agravertemis) O veado era um de seus

animais prediletos aacutegil e veloz Estaacute relacionado agrave deusa na iconografia e em algumas lendas

como a que se viu sobre Aacutecteon A proacutepria deusa transformou-se em corccedila durante o caso com os

gecircmeos Aloiacutedas que na pressa de a atingirem mataram-se um ao outro Como deusa caccediladora

era tambeacutem adorada como senhora da natureza a que vivia no campo Dessa forma recebia

ainda o epiacuteteto de Agroacutetera protetora das plantas selvagens e das aacutervores Aleacutem disso era

conhecida por seu envolvimento com rios e lagos onde se banhava e em cujas margens

descansava danccedilava e cantava com as ninfas com as caacuterites e com as musas

Embora aacutegil e liberta em seu espaccedilo a floresta as montanhas o campo os rios e os lagos

a natureza acolhedora Aacutertemis se limita a esse contexto como soberana das feras e caccediladora

indomaacutevel Opotildee-se a Afrodite que na sua eterna mobilidade do desejo natildeo tem limites Como

coloca Fontes em seu estudo ldquoO territoacuterio das castitas eacute fechado e secreto enquanto o universal

domiacutenio de Afrodite expande-se do Ponto Euxino aos limites de Atlasrdquo124

123 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 p 9 124 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 34

67

Como defensora da virgindade tinha companheiras virgens de caccedila e de danccedila nas

margens dos rios e guardava sua castidade com o emblema protetor do arco e da flecha

Diferentemente de Eros cujas flechas tinham como alvo colocar o desejo em algueacutem Aacutertemis

usava suas flechas como proteccedilatildeo de sua virgindade e de sua selvageria pois a morte fazia parte

do ambiente da natureza (phyacutesei)

Nesse sentido Aacutertemis parece ser uma deusa de origem distante remontando agraves mulheres

ambiacuteguas conhecidas como Amazonas e que representavam um modelo miacutetico da mulher que se

privava do contato com os homens situando-se ldquono imaginaacuterio dos antigos natildeo apenas na

fronteira em que barbaacuterie e cultura se enfrentam e se contestam ela eacute radicalmente a outra

assombrada por uma dupla alteridaderdquo125

A questatildeo da dupla alteridade foi apontada por Lissarrague quando se reporta agraves

Amazonas como indica Fontes Esse eacute um aspecto interessante que revela como Aacutertemis mulher

e assassina feminina e baacuterbara caccediladora que habita as florestas densas e as montanhas ermas

natildeo tem cidade e que seria por isso ldquouma ameaccedila permanente para o mundo civilizadordquo126

imagem combatida pelo homem ateniense e civilizador representado nas figuras dos heroacuteis

Heacutercules e Teseu nas cenas iconograacuteficas em que atacam as Amazonas

Esse fato remete agrave questatildeo da tradiccedilatildeo revelando-se Aacutertemis um modelo miacutetico ldquodos

primoacuterdios de Atenas quando as mulheres eram autocircnomas facto monstruoso aos olhos dos

ateniensesrdquo127 De fato os homens atenienses valorizavam a sua posiccedilatildeo de forccedila e de ldquocidadatildeos

hoplitasrdquo considerando-se os defensores da cidade e Aacutertemis pode ter traccedilos semelhantes a essas

Amazonas de quem decerto reparte viacutenculos dessa autonomia recusando contato com os

homens o que a manteacutem uma deusa virgem com vaacuterias lendas em que mata homens jovens quer

seja para evitar o asseacutedio despertado pelo olhar quer seja por uma forma de vinganccedila violenta

Como jaacute mencionamos antes Aacutertemis era amplamente conhecida como Potnia Theron

Aleacutem disso como a Senhora de Eacutefeso

Em Eacutefeso seu templo tornou-se uma das sete maravilhas do mundo Laacute ela era venerada

como uma matildee deusa e de acordo com Graves ldquoela era adorada em sua segunda pessoa ou seja

125 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 22 126 LISSARRAGUE Franccedilois Afiguraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 p266 127 LISSARRAGUE Franccedilois Idem p267

68

como ninfa uma Afrodite orgiaacutestica com um consorte masculino sendo seus emblemas pessoais

a tamareira128 o cervo e a abelha129rdquo130

Isso reforccedila a dualidade de Aacutertemis ora como caccediladora-virgem de instinto selvagem e

primitivo agrave maneira das amazonas ora como suprema ninfa-deusa agrave maneira das antigas

sociedades totecircmicas

Outro aspecto jaacute destacado por noacutes eacute que muitas histoacuterias miacuteticas que envolvem Aacutertemis

ressaltam a questatildeo do olhar como preluacutedio de uma atitude libidinosa Aleacutem da famosa lenda de

Acteacuteon e a dos gecircmeos Aloiacutedas haacute um outro relato que mostra como a mulher era observada

pelo homem na Greacutecia antiga Falando da representaccedilatildeo feminina diz Lissarrague

Tratando-se da imagem das mulheres vimos jaacute a sua diversidade para concluir reiteramos que matildee ou esposa hetera ou muacutesica Amazona ou meacutenade a mulher eacute sempre dada em espetaacuteculo como um objecto aos olhos do homem grego o sujeito que olha131

Voltando ao nosso relato que destaca a importacircncia do olhar na cultura grega temos que

Alfeu um deus fluvial filho de Teacutetis apaixonou-se por Aacutertemis e ocultou-se perto de onde a

deusa se banhava com suas amigas as caacuterites e as ninfas para conseguir se unir a ela Aacutertemis

percebendo as intenccedilotildees de Alfeu cobriu com lodo branco seu rosto e das companheiras de

forma que Alfeu natildeo pudesse reconhececirc-la Na regiatildeo da Eacutelida Aacutertemis passou a ser chamada e

venerada como Aacutertemis Alfeacuteia132

Aleacutem de proteger a si proacutepria nessas histoacuterias em que preserva sua virgindade haacute outras

lendas que contam que Aacutertemis exigia de suas companheiras recato e preservaccedilatildeo de sua

condiccedilatildeo de castidade (autonomia) Assim uma lenda bastante conhecida eacute a que narra que

Calisto que fazia parte de seu grupo fora seduzida por Zeus e engravidara Zangada Aacutertemis

transformou-a em uma ursa e chamou a matilha para persegui-la e devoraacute-la Poreacutem Zeus

interveio pegando-a e levando-a para o ceacuteu onde a colocou entre as estrelas

128 De acordo com a lenda Leto deu a luz a Apolo ajudada pela receacutem-nascida Aacutertemis entre uma oliveira e uma tamareira no Monte Cinto em Delos 129 O siacutembolo da abelha estaacute relacionado a Afrodite Uracircnia (rainha da montanha) e nesse caso por comparaccedilatildeo a Aacutertemis Como deusa-ninfa Afrodite destruiu o rei sagrado com quem havia copulado no cume de uma montanha agrave maneira da abelha-mestra que aniquila o zangatildeo arrancando-lhe os oacutergatildeos sexuais 130 GRAVES Op cit p 87 131 LISSARRAGUE Franccedilois Op cit p268 132 GRAVES Op cit p 104 Refere-se a Pausacircnias (I 264) mencionando o fato de que a estaacutetua mais famosa de Aacutertemis em Atenas se chamava ldquoa do rosto brancordquo As sacerdotisas nos rituais em Letrini e Ortiacutegia cobriam seus rostos com argila branca

69

A lenda possui outras variantes e em todas a figura de Aacutertemis estaacute presente

Parece-nos que a imagem de Aacutertemis que figura na trageacutedia de Euriacutepides (Hipoacutelito) eacute

uma imagem renovada conciliando traccedilos da autonomia da virgindade com a jovem feminina

recatada sem os traccedilos de violecircncia daquela que pune as que natildeo a seguem como virgem e de

errante das florestas que a marcaram na eacutepoca arcaica

Teria havido talvez uma fusatildeo das duas alteridades prevalecendo a metaacutefora do feminino

no que concerne o afeto silencioso a atenccedilatildeo a ajuda

Assim na trageacutedia Euripidiana o Coro das mulheres de Trezena proclama

E costuma estar sujeito o equiliacutebrio instaacutevel do ser feminino a terriacuteveis embaraccedilos nos deliacuterios e nas dores do parto Este sopro dardejou um dia no meu ventre 165 mas gritei pela uracircnia sagitaacuteria propiacutecia aos partos Aacutertemis e muito venerada sempre com a graccedila divina ela me tem visitado133

A virgindade de Aacutertemis eacute exaltada em um relacionamento estreito com a natureza

(phyacutesei) nos seus aspectos intocaacuteveis Por isso Hipoacutelito oferece a Aacutertemis na peccedila do mesmo

nome flores colhidas em um campo imaculado

133 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 115

70

Diz Hipoacutelito agrave deusa Aacutertemis

Para ti oacute Soberana de um campo sem maacutecula eu trago esta grinalda que eu mesmo teci ali pastor natildeo ousa levar seu rebanho 75 nem o ferro jamais passou imaculado na primavera somente a abelha134 o percorre135

Poreacutem a deusa inviolaacutevel o seu lado casto e feminino pertence ao sagrado agravequele

espaccedilo em que os deuses tecircm um poder de determinar e direcionar o caminho dos mortais Isto

posto jaacute mostra que o excesso de admiraccedilatildeo ao tributo de castidade natildeo estaacute de acordo com a

natureza humana O que eacute adequado aos deuses estaacute muitas vezes distante do poder do homem

A trageacutedia de Euriacutepedes mostra que haacute duas forccedilas divinas entrelaccediladas no ldquoduelordquo da

trama Aacutertemis representando a castidade e Afrodite representando o desejo Tendo perdido a

proporccedilatildeo desse espaccedilo reservado aos deuses Hipoacutelito eacute punido por sua transgressatildeo pois a ira

dos deuses natildeo pode ser controlada

Esse paradoxo entre o desejo e a castidade faz parte de toda a histoacuteria da humanidade e

no Cristianismo a Histoacuteria vai registrar muitos fatos de envolvimento amoroso punidos como

ldquocrimesrdquo e muitas outras histoacuterias de supliacutecios de ldquosantosrdquo para atingir a castidade no intuito de

querer livrar-se do desejo que eacute biologicamente constituinte do humano

A deusa Aacutertemis faz parte do enredo de outra trageacutedia de Euriacutepides Ifigecircnia em Tauris

baseada em uma lenda que conta o sacrifiacutecio de Ifigecircnia filha de Agamenon

Segundo uma versatildeo agrave deusa comprazia a oferenda de sacrifiacutecio humano e tendo-se

zangado pelo fato de Agamenon gabar-se apoacutes atirar em um cervo de que ela natildeo poderia tecirc-lo

feito melhor ordenou como puniccedilatildeo que a filha dele Ifigecircnia fosse sacrificada em Aulis sem o

que natildeo haveria vento para que a frota dos barcos pudesse partir para a guerra de Troacuteia

Outra versatildeo que eacute a que Euriacutepedes usa em sua peccedila narra que quando Ifigecircnia ia ser

sacrificada Aacutertemis compadeceu-se dela e colocou em seu lugar um gamo Quanto agrave Ifigecircnia

transportou-a a Tauris em seu famoso santuaacuterio onde a jovem se tornou uma sacerdotisa A

lenda diz ainda que Ifigecircnia enviava os estrangeiros ao altar de Aacutertemis onde eram assassinados

durante os rituais como oferenda para honrar a deusa

134 Como jaacute comentamos anteriormente haacute a menccedilatildeo a um dos siacutembolos de Aacutertemis a abelha (ao lado da corccedila e da tamareira) destacando seu aspecto de feminilidade 135 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 109

71

Em sua trageacutedia Euriacutepides redime a imagem de Aacutertemis colocando na boca de Ifigecircnia

as seguintes palavras ldquoMen of this country being murderers impute their sordid practice to

divine command That any god is evil I do not believerdquo136

53 ndash ATENA A DEUSA VIRGEM DA SABEDORIA E DA GUERR A

Comeccedilamos sobre Atena ndash a grande deusa dos atenienses ndash indagando para os gregos de

Homero que sentido teria ela Por que ela teve uma forma de concepccedilatildeo e de nascimento que a

trouxe sob a forma de virgem Ao lado de sua imortalidade ndash comum a todos os deuses ndash ela foi

a uacutenica que manifestou desde o nascimento em sua natureza divina a ldquoimaculabilidaderdquo Por

que a sociedade grega ateniense voltava o seu olhar para a deusa mais sublime e mais reverente

ao lado de Zeus

Atena nasce jovem (que para os gregos a velhice era um estado de depauperamento)

imortal (jamais teria sua natureza obscurecida) bela (junto com o frescor da juventude pertence

aos deuses tambeacutem o dom da beleza) guerreira (saiu da cabeccedila do pai armada e ecoando gritos

beacutelicos) e virgem (o que a distancia mais do que os outros deusesda natureza humana)

Quando se confrontam homens e deuses o que os separa eacute justamente a expressatildeo

simboacutelica da corporalidade dos seres divinos Dessa forma a divindade grega afastava-se do

natural da realidade do humano elevando-se a um tipo de existecircncia superior

A ligaccedilatildeo de Atena com a forma de existecircncia terrena desfaz-se desde antes do seu

nascimento quando o parto podia simbolizar ldquogravidaderdquo do fundamento materno O misteacuterio de

seu nascimento a torna sublime pois ela chega com forma ritualiacutestica que celebra a vida Ela traz

uma forma de reconhecimento que pode ter um aspecto cultural profundo gerada nas entranhas

da matildee (Meacutetis uma entidade feminina) vem ao mundo pelo acolhimento do pai que a recebe

reconhecendo-lhe a sabedoria superior (ele aceita essa nova deusa renovaccedilatildeo de uma deusa

antiga de outro periacuteodo)

Se Zeus reconhece a verdade em Atena os cidadatildeos de Atenas recebem a filha de Zeus

como uma manifestaccedilatildeo advinda da profundeza maternal da terra imaculada na sua origem

136 EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt ldquoHomens deste paiacutes sendo assassinos imputam sua soacuterdida praacutetica agrave ordem divina Que algum deus seja malfazejo eu natildeo acreditordquo (traduccedilatildeo nossa)

72

Entretanto presente e passado fundem-se nessa nova forma de olhar o mundo e a forccedila viril

coloca-se como parte da elaboraccedilatildeo feminina o que produz a figura maacutescula saacutebia

determinada poderosa da filha de Zeus Portanto de acordo com a concepccedilatildeo do vasto universo

grego Atena era uma entidade de caraacuteter singular embora esse caraacuteter fizesse parte de um

mundo em si completo Um mundo bem diversificado mas completo eacute o que reflete a virgem

filha de Zeus Atena

Enquanto Afrodite emana o encanto que excita e arrebata a que com seu sorriso doce

cativa os sentidos Atena faz despertar a sabedoria as ldquoestrateacutegiasrdquo que direcionam para resolver

necessidades vitais Entatildeo os traccedilos que os deuses ostentam seja Afrodite com sua sedutora

doccedilura seja Aacutertemis com sua meiguice brincalhona seja Atena com sua astuacutecia complexa satildeo

traccedilos humanos o que significa que tecircm em si todo o sentido de domiacutenio da existecircncia humana

Atena pois remete ao seu olhar sobre os cidadatildeos de Atenas o olhar destes sobre ela

essa deusa armada cujo peito ostenta um escudo apavorante objeto de tantas reflexotildees

Referente a esse assunto coloca Otto

ldquoVemos uma deusa que coberta por seu escudo estaacute disposta a lutar e proteger Mas isso seria tudo que se pensava a seu respeito quando a crenccedila nela era viva Podemos chamaacute-la de Virgem do Escudo Virgem da Batalha Para essas perguntas natildeo temos resposta alguma Seja como for uma tal designaccedilatildeo natildeo convivia com Atena homeacuterica por muito que ela se mostre combativa e poderosa na luta ela eacute muito mais que uma deusa da batalha e eacute inimiga declarada dos espiacuteritos selvagens cujo ser se consuma na fruiccedilatildeo do tumulto de guerrardquo137

Essa uacuteltima colocaccedilatildeo de Otto nos faz pensar em uma provaacutevel diferenccedila entre a

virgindade de Atena e a de Aacutertemis A virgindade de Aacutertemis eacute ldquoindomaacutevelrdquo primitiva natildeo

ldquoexploradardquo mais ligada aos elementos terrestres e agrave natureza como sua representaccedilatildeo simboacutelica

enquanto que a virgindade de Atena eacute ontoloacutegica pois faz parte da elevaccedilatildeo e excelecircncia do ser

como forma de um aprimoramento da sabedoria quase que vinculada a uma postura espiritual

Poreacutem ambas no que concerne o aspecto da virgindade devem manter o viacutenculo com

deusesdeusas de eacutepocas anteriores

Desde a sua apariccedilatildeo vinda da cabeccedila do pai Atena aleacutem de revelar sua virgindade e sua

identidade guerreira apresenta o destaque de seus ldquoolhos glaucosrdquo (γλαυκώπιδα) o que segundo

alguns autores estaacute relacionado com olhos de coruja na sua sagacidade abrangente do olhar

137 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p36

73

Para outros autores refletiria a cor esverdeada do mar (veja anexo Hino Homeacuterico a Atena)

pois Atena eacute de natureza aquaacutetica quando ela nasceu diz o Hino Homeacuterico XXVIII ldquoo mar

furioso elevou-se no alvoroccedilo de ondas de escuro esplendorrdquo

Como guerreira ela incita os guerreiros antes da batalha e lhes daacute acircnimo138 Com sua

eacutegide agita os homens ao ardor beacutelico Mas natildeo soacute os incita ajuda-os tambeacutem na forccedila e no

poder do combate com sua presenccedila saacutebia para que os humanos (os gregos) natildeo fraquejem

Na Odisseacuteia quando Odisseu seu filho e seus poucos guerreiros fieacuteis que o acompanham

vecircem-se diante do inimigo nos momentos finais de disputa Atena ergue sua eacutegide e o inimigo

tomado de terror dissipa-se

A sua presenccedila miraculosa proclama o sublime e eacute suficiente para causar

estremecimentos para serenar combates para por fim a situaccedilotildees angustiantes

Seraacute que mais tarde tambeacutem os judeus cristatildeos vatildeo se inspirar nessa deusa mediterracircnea

para conferir a Maria tal poder

O seu olhar cruza-se com seu poder A sua eacutegide ao mesmo tempo que amedronta impotildee

respeito Atena tambeacutem eacute detentora de uma alteridade nessa forma de Poder ldquofeito maacutescarardquo

Nesse ponto o olhar de Atena cruza-se com o olhar de Gorgoacute139 e como diz Vernant

suscita

ldquoo medo em estado puro o Terror como dimensatildeo do sobrenatural Este medo com efeito natildeo eacute uma decorrecircncia nem algo motivado como o que provocaria a consciecircncia de um perigo Eacute um medo primeiro logo de entrada e por si mesma Gorgoacute suscita o pavor porque se apresenta no campo de batalha como um prodiacutegio (teacuteras) um monstro (peacutelōr) em forma de cabeccedila (kephaleacute) terriacutevel e assustadora (de ver e ouvir) (deineacute te smerdneacute) com um rosto de olho terriacutevel (blousurocircpis) lanccedilando um olhar de pavor (deinograven derkeacutenē)rdquo140

A lenda da Medusa se transfigurava em vaacuterias situaccedilotildees ligadas a Atena Uma delas dizia

que ela tinha sido viacutetima de uma metamorfose provocada pela ira de Atena Conta-se que Gorgoacute

138 A este respeito ver HOMERO Iliacuteada op cit canto 2 v446 e seguintes 139 Gorgoacute como eacute citado por VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 Refere-se a Goacutergona (τοργω) a Medusa mortal e filha de duas entidades mariacutetimas A cabeccedila da Goacutergona era rodeada de serpentes e seus olhos brilhantes e o olhar tatildeo penetrante que causava terror e petrificava Atena colocou a cabeccedila da Medusa morta por Perseu em sua eacutegide a fim de que os inimigos fossem petrificados 140 VERNANT Jean-Pierre ndash Idem p50

74

era uma bela jovem que ousara rivalizar sua beleza com a deusa Atena Como ela tinha muito

orgulho de seus cabelos longos Atena transformou-os em serpentes

Na tradiccedilatildeo grega os guerreiros espartanos manifestavam a sua selvageria atraveacutes dos

cabelos longos como crina de cavalo Por ocasiatildeo dos casamentos esses guerreiros mantinham

uma tradiccedilatildeo ritual de simular um rapto da moccedila com quem iam se casar A moccedila (koacuterai as

jovens virgens) raptada era entregue a uma mulher que lhe raspava o cabelo A selvageria da

cabeleira longa da mocinha que se assemelhava a ldquouma potranca em liberdaderdquo no dizer de

Vernant era cortada Continuando diz ele

Para a jovem noiva o ritual da cabeccedila raspada joga com estes dois simbolismos contraacuterios e que se reforccedilam em sua oposiccedilatildeo pois a esposa se deve distinguir-se da patheacuternos para entrar no estado conjugal teraacute tambeacutem no mesmo sentido de diferenciar-se nitidamente de seu marido141

O cortar o cabelo eacute uma forma de domesticaccedilatildeo como vimos em Aacutertemis de transformar

a selvageria da jovem virgem ndash excluiacuteda do casamento ndash para uma vida de submissatildeo a um

esposo e a uma vida de reproduccedilatildeo Da virgem agrave mulher casada e matildee

Aacutertemis manteacutem-se virgem na sua representatividade selvagem da natureza Atena

manteacutem-se virgem na representativa selvagem dos combates

Mas apesar de ser uma deusa guerreira Atena distingue-se radicalmente de Ares pois

enquanto o deus da guerra eacute sanguinolento furioso e desatinado Atena goza de um caraacuteter justo

equilibrado sereno Atenas eacute mais que uma guerreira eacute uma pacificadora Atena eacute prudente e

digna enquanto Ares eacute odioso e coleacuterico

Homero tanto na Iliacuteada quando Atena chama Aquiles agrave razatildeo como na Odisseacuteia

quando Atena encaminha Odisseu agrave sua razatildeo e ao seu destino parece revelar uma consideraccedilatildeo

pela moralidade antes um espiacuterito elevado pela prudecircncia e pela ponderaccedilatildeo do que uma atitude

triunfante frente a uma tensatildeo

Esses sentimentos nobres de Atena a unem aos heroacuteis Aquiles e Odisseu Natildeo eacute soacute a

arguacutecia beacutelica que conta mas a ponderaccedilatildeo refletida A prudecircncia tambeacutem ela eacute uma forma de

sagacidade

Assim o olhar de Terror ao qual Vernant se refere eacute tambeacutem um olhar de prudecircncia de

cautela que faz parar e refletir que natildeo pode ser visto em uma impetuosidade impensada

141 VERNANT Jean-Pierre op cit p59

75

Como coloca Otto em seu estudo sobre os deuses gregos

O que Atena mostra ao homem o que dele quer e lhe inspira eacute por certo audaacutecia vontade de vencer e valentia Mas tudo isso natildeo quer dizer nada sem prudecircncia e luacutecida clareza Daiacute eacute que emana sua atividade com a plenitude da essecircncia da deusa da vitoacuteria Procedendo dessa origem sua luz natildeo ilumina apenas o guerreiro em combate onde quer que feitos notaacuteveis se realizem e se crie o acircnimo heroacuteico ela estaacute presente

Sempre procurando pista e mexendo na questatildeo da virgindade pareceu-nos que em se

enfileirando as deusas virgens no ldquofrontatildeordquo de nosso ldquotemplordquo verifica-se que a virgindade de

Atena coloca-se em um plano diferente do da virgindade atribuiacuteda a Aacutertemis e a Heacutestia

Aacutertemis eacute um ser selvagem pertence a um poacutelo que vai da natureza inexplorada

primitiva a um mundo civilizado maculado por um novo agir Sua virgindade daacute-se nessa tensatildeo

de equiliacutebrio entre o velho e o novo entre o passado e o presente entre o selvagem e o

civilizado entre dois poacutelos sempre numa dupla alteridade

Heacutestia eacute um ser contemplativo Assim como Aacutertemis relaciona-se a um elemento da

terra ao fogo que a natureza acolhe em todos os seus muacuteltiplos sentidos (veja 54) pois o fogo

tambeacutem eacute constitutivo da terra Nesse sentido Heacutestia eacute uma figura ldquoabstratardquo e incorpoacuterea

Atena ao contraacuterio natildeo eacute nem selvagem nem contemplativa Ela eacute a representaccedilatildeo de

uma consciecircncia luacutecida em estado de justiccedila e de pureza Ela eacute nesse sentido mais proacutexima agrave

ideacuteia do que a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde iraacute colocarem seus deuses e santos Atena jaacute tem um

ldquoespiacuteritordquo refinado

Por isso em Atenas ela tambeacutem era chamada de Niacuteke e na sua estaacutetua Partheacutenos de

maacutermore e ouro esculpida por Fiacutedias ela carrega em sua matildeo a imagem de Niacuteke a que distribui

daacutedivas e a que decide sobre faccedilanhas

O Paacuterthenon como ficou sendo chamado o templo que acolhia a estaacutetua de Atena tinha

um compartimento onde habitavam as sacerdotisas da deusa Daiacute o questionamento se

Paacuterthenon referia-se simplesmente ao templo de Atena (lsquoRoom of de Maidenrsquo) ou incluiacutea esse

espaccedilo habitado pelas sacerdotisas virgens (lsquoRoom of tue Maindensrsquo)142

Mas Atena natildeo tem apenas o lado viril guerreiro dos projetos das estrateacutegias da accedilatildeo

Atena natildeo eacute esposa nem matildee mas eacute uma deusa criativa e revela seu aspecto feminino na periacutecia

e na arte

142 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004

76

Dizem os autores que eacute apenas em um periacuteodo tardio que Atena se torna patrona da arte e

das ciecircncias Surgem nessa eacutepoca outras lendas como a de Aracne quando Atena teria

transformado a princesa Coacutelofon na Liacutedia em aranha invejosa que ficara da habilidade de tecer

da princesa

Segundo algumas fontes isso revelaria uma antiga rivalidade comercial entre os

atenienses e os liacutedio-cariates indicando pois uma versatildeo mais tardia da lenda que natildeo tem nada

em comum com as caracteriacutesticas de Atena

Outra lenda que se refere a Atena eacute sobre a sua denominaccedilatildeo de Palas Atena Conta essa

lenda revelando a nobreza de caraacuteter de Atena que ela estava brincando de artes marciais com a

filha de Triton Palas Em um dado momento preocupado com essa brincadeira das meninas

Zeus colocou sua eacutegide e Palas olhando para cima para ver o que era distraiu-se e foi ferida por

Atena vindo a falecer Em homenagem agrave amiga e querendo recuperar sua memoacuteria Atena fez

uma imagem de madeira da figura de Palas e enrolou-a com a eacutegide colocando-a perto de Zeus

Daiacute a origem de seu epiacuteteto Palas que enaltece a dignidade de seus traccedilos

Em nossa leitura e pesquisa Atena pareceu-nos revelar mais especificamente a

caracteriacutestica de virgindade dos gregos da eacutepoca de Homero

54 - HEacuteSTIA E A CASTIDADE

Para entender a deusa Heacutestia pareceu-nos importante retomar as funccedilotildees de Afrodite

Enquanto Afrodite eacute toda corpoacuterea linda sedutora doce Heacutestia eacute pouco representada

fisicamente silenciosa meiga

Dissemos que em Afrodite seu poder eacute determinado pelo olhar da seduccedilatildeo (απάτη) e da

uniatildeo amorosa (Φιλότης) e que implica movimento constante provocar um desejo contiacutenuo entre

os homens e ateacute entre os deuses - que eacute quando atraveacutes do desejo aproximam-se dos mortais

conhecendo-os melhor

Heacutestia ao contraacuterio tem seu poder emanado pelo desejo da fixidez da constacircncia da

manutenccedilatildeo da ordem da famiacutelia do equiliacutebrio das relaccedilotildees familiares da preservaccedilatildeo da

harmonia e da paz do controle Silenciosa sempre presente colocada no espaccedilo central da casa

no umbigo da casa (οικω) como diziam os gregos seu olhar eacute atento e vigilante promovendo o

77

recato das virgens (παρθένος) antes do casamento ela tambeacutem uma virgem que cuida do espaccedilo

da famiacutelia impondo respeito e interditando o incesto

Heacutestia tem uma importacircncia primordial mas era pouco representada pois fazia de tal

forma parte do espaccedilo domeacutestico que a lareira da famiacutelia era chamada de heacutestia onde ardia o

fogo intermitente o altar sagrado em que se ofereciam os sacrifiacutecios

Sobre essa presenccedila na casa dos homens que habitam a superfiacutecie terrestre diz o Hino

Homeacuterico a Heacutestia (XXIX veja anexo B) que ela constitui natildeo soacute o centro do espaccedilo familiar

mas tambeacutem eacute uma presenccedila constante em todos os templos dos deuses (honra concedida a ela

por Zeus) Como Zeus tambeacutem ela era filha de Reacuteia e de Crono e era venerada como a deusa

mais antiga do panteatildeo grego Nas casas diz o mesmo hino os sacrifiacutecios eram sempre

oferecidos a ela Como vivia no meio dos mortais todas as festividades familiares comeccedilavam e

terminavam com rituais laudatoacuterios agrave deusa o que criava uma solidariedade entre os

participantes unindo-os pela identidade comum

Heacutestia natildeo significava o fogo propriamente dito mas a lareira da casa o altar dos

sacrifiacutecios O fogo que queima no altar mobiliza o olhar e estaacute presente como elemento de

purificaccedilatildeo como siacutembolo de marca civilizatoacuteria como chama do desejo da sexualidade

Como elemento de purificaccedilatildeo o fogo arde em homenagem aos deuses em um gesto de

honra e de respeito em uma atitude em que o olhar capta o crepitar da presenccedila do divino nas

chamas

O fogo tambeacutem eacute usado como um elemento de civilizaccedilatildeo pois a presenccedila da deusa

Heacutestia se estendia agraves cidades gregas como continuaccedilatildeo da famiacutelia Nessas piras do espaccedilo

puacuteblico ardia a chama eterna Considerava-se aiacute um lugar de altar sagrado onde os estrangeiros

eram recebidos e os lsquoembaixadoresrsquo prestavam juramentos Os guerreiros antes de irem agrave guerra

pegavam fogo do altar de Heacutestia para levar com eles e os colonizadores o levavam quando iam

fundar uma nova colocircnia A importacircncia de Heacutestia eacute pois ldquohumanizadorardquo uma vez ela se

integra e participa da condiccedilatildeo humana quer como conhecedora do espaccedilo familiar quer como

impulsionadora de um estaacutegio civilizatoacuterio A pira estaacute sempre recebendo o fogo que arde para a

renovaccedilatildeo do velho e para uma ldquoressurreiccedilatildeordquo perioacutedica

A lareira (a heacutestia) que mantinha o fogo tambeacutem tinha uma accedilatildeo relacionada com a

transmissatildeo dos ritos de iniciaccedilatildeo dos jovens (παρθένος) que passariam de um estaacutegio a outro

78

tanto do ponto de vista pessoal como no aspecto social A jovem virgem saiacutea do espaccedilo da casa

do pai para o seu novo espaccedilo familiar com o esposo onde se esperava que se desse a uniatildeo dos

sexos para fins de que a fertilidade na terra tivesse continuidade Nesse sentido Heacutestia era a

deusa que olhava atenta as chamas da accedilatildeo fecundante do desejo

Portanto o olhar que o fogo simboliza pode ser purificador iluminador fecundante Eacute o

olhar vigilante que daacute seguranccedila Comparando-se pois a purificaccedilatildeo pelo fogo relativo agraves

atividades da lareiraheacutestia e a purificaccedilatildeo pelas aacuteguas como vimos em Afrodite no seu

ldquobatismordquo na sua renovaccedilatildeo apoacutes a traiccedilatildeo ao marido poderiacuteamos deduzir que o fogo de que

Heacutestia cuidava era uma forma de purificaccedilatildeo que simbolizava a tradiccedilatildeo dos costumes

relacionada a importantes aspectos sociais dos quais a famiacutelia e as cidades faziam parte Nesse

sentido o fogo que Heacutestia cuida revela uma forma de compreender os estaacutegios por que passa o

feminino diante do masculino na sua histoacuteria terrestre A renovaccedilatildeo a transformaccedilatildeo a uniatildeo

sexual o interdito fazem parte da civilizaccedilatildeo

Quanto agrave aacutegua parece-nos que associada a Afrodite que representa o ceacuteu a terra e o

mar seu simbolismo eacute a purificaccedilatildeo do desejo Afrodite emerge das aacuteguas e esse processo a

remete agraves fontes de origem reconciliada com uma nascente divina de vida nova

Em eacutepocas seguintes agrave antiguidade grega o cristianismo se apropriaraacute da renovaccedilatildeo do

banho nas aacuteguas como forma de purificaccedilatildeo Assim diz o apoacutestolo Mateus (3 5-6) referindo-se

ao batismo que Joatildeo Batista fazia no deserto ldquoE eram por ele batizados no rio Jordatildeo

confessando seus pecadosrdquo O batismo tem pois como finalidade retirar o pecado assegurando

uma regeneraccedilatildeo Essa concepccedilatildeo portanto foi apropriada pelo Cristianismo dos povos de

civilizaccedilotildees anteriores

Heacutestia como significante da lareira da casa ocupava um espaccedilo feminino pois cabia agrave

mulher ocupar-se das atividades domeacutesticas e a casa (οικος) era seu lugar Era ali que a mulher

estava protegida dos perigos que a vida exterior poderia representar

A jovem ao casar-se ia para a casa do marido o que exigia a ela uma mudanccedila natildeo soacute

de casa como tambeacutem de estado de virgem a esposa e matildee Portanto isso implica uma

mobilidade Heacutestia ao contraacuterio continuava fixa e virgem na casa paterna Para a jovem essa

questatildeo espacial era tambeacutem social e pessoal

79

Vejamos o que diz Vernant sobre isso

Essa permanecircncia de Heacutestia natildeo eacute de natureza apenas espacial Como ela confere agrave casa o centro que a fixa no espaccedilo Heacutestia assegura ao grupo domeacutestico a sua perenidade no tempo eacute pela Heacutestia que a linhagem familiar se perpetua e se manteacutem semelhante a si mesma como se em cada geraccedilatildeo nova nascessem diretamente ldquoda lareirardquo os filhos legiacutetimos da casa143

Como aspecto de uma sociedade patriarcal os casamentos eram endogacircmicos mantendo

uma tradiccedilatildeo de hereditariedade puramente paterna Deste modo Heacutestia cuidava da questatildeo da

fecundidade dissociada portanto da questatildeo do desejo Ela cuidava para que houvesse atraveacutes

da filha a prolongaccedilatildeo da ldquolinhagem paternardquo sem a necessidade ldquode uma mulher lsquoestrangeirarsquo

para a procriaccedilatildeordquo 144

Esse tipo de lugar ocupado pela mulher revela um aspecto de passividade e uma

caracteriacutestica de dominaccedilatildeo do homem cujo poder eacute o de garantir a fecundaccedilatildeo

A mulher eacute a estranha na casa do marido agrave qual ele pertence e quer dar continuidade

pois eacute o pai que firma as raiacutezes nessa casa que deve ser cuidada pela mulher Nesse sentido vecirc-

se a mulher como um ldquodomusrdquo (como jaacute nos referimos anteriormente) do masculino no sentido

de receber e dar continuidade agrave linhagem participando como cuacutemplice do desejo do macho de

manter sua genealogia desconsiderando os seus proacuteprios desejos de mulher Agrave mulher cabe

submeter-se ao homem que preocupado com a sua linhagem vai conduzi-la como virgem ao

altar de Heacutestia vai unir-se a ela sexualmente e vai ser o progenitor dos filhos que viratildeo

Ora como jaacute foi comentado antes as relaccedilotildees do gecircnero envolvem conflitos e portanto eacute

natural que as donzelas (moccedilas solteiras) e as mulheres casadas enfrentassem tensotildees dentro da

estrutura familiar e que reagissem a determinadas imposiccedilotildees

Eacute o que mais tarde a trageacutedia vai mostrar as contradiccedilotildees da cena familiar gerando

oposiccedilotildees sofrimentos afetando relacionamentos alimentando oacutedios

Talvez por ser uma observadora constante da cena domeacutestica Heacutestia tenha se fixado na

sua condiccedilatildeo de παρθένος a deusa que remete a uma condiccedilatildeo do feminino ideal inacessiacutevel e

por isso sem sujeitar-se agrave submissatildeo do desejo carnal A ldquopurezardquo natildeo pode ser alcanccedilada pelo

humano pois ela eacute do espaccedilo divino No catolicismo as freiras e as santas manteratildeo a tradiccedilatildeo

do recato fazendo votos de castidade e remetendo-se ao enclausuramento de conventos Uma

143 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 199 144 VERNANT Jean-Pierre Idem p 199

80

forma de manter a ldquopurezardquo era abolindo as relaccedilotildees carnais O catolicismo pois teve suas

virgens que se encarregavam de vigiar o ldquopecadordquo

Mas natildeo eacute soacute a submissatildeo ao marido que a mulher deve aceitar Ela eacute considerada parte

de um comeacutercio de trocas dependente do acordo entre os homens pai e esposo Essa questatildeo eacute

de ampla complexidade pois envolve aspectos poliacutetico-econocircmicos aleacutem dos sociais

o termo οίκος tendo ao mesmo tempo um significado familiar e territorial podem-se compreender as reticecircncias que constituem obstaacuteculo em plena economia mercantil agraves operaccedilotildees de venda e de compra quando se trata de bens familiares (κληρος) compreende-se tambeacutem a recusa em conceder a um estrangeiro o direito de possuir uma terra dita ldquoda cidaderdquo porque ela deve permanecer como o privileacutegio e a marca do cidadatildeo ldquoautoacutectonerdquo145

Ou seja como mercadoria de troca de comeacutercio ou seja como um campo feacutertil em uma

sociedade agriacutecola a mulher era vista para fins de procriaccedilatildeo Como objeto de troca pertencia ao

marido como campo a ele lhe cabia frutificar o solo e fazer a colheita delimitando seu territoacuterio

em um clima de seguranccedila e de amizade domeacutestica

Portanto nesse tipo de sociedade a esterilidade ia contra os princiacutepios de continuaccedilatildeo

genealoacutegica Por isso era punida Natildeo se pode renunciar agrave deusa da fertilidade Afrodite zela

pela vida A uniatildeo entre os opostos faz parte da continuidade do mundo Renunciando ao coito o

homem estaacute impedindo a procriaccedilatildeo Euriacutepedes mostra em sua trageacutedia como Hipoacutelito foi

castigado por querer manter-se fiel a Aacutertemis isto eacute agrave virgindade

A abertura da peccedila daacute-se com as palavras de Afrodite sobre a abstinecircncia sexual

masculina na figura de Hipoacutelito Ser humano eacute sujeitar-se ao desejo Aleacutem disso Afrodite

determina o destino (como jaacute foi apontado no item sobre essa deusa) independentemente da

vontade do homem Faz parte do humano o enredamento o conflito a tensatildeo entre os opostos

pois assim foi determinado desde o iniacutecio dos tempos

Vejamos o que diz Afrodite em suas beliacutessimas palavras na traduccedilatildeo para a liacutengua

portuguesa de J B Fontes

Grande entre os seres mortais e natildeo sem renome 1 de deusa Ciacutepris eu sou chamada no ceacuteu Aqueles que do Ponto aos limites de Atlas habitam e contemplam o lume do sol eu favoreccedilo se veneram meu poder 5 enquanto abato quem pensa em mim com soberba

145 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 208

81

pois eacute inerente tambeacutem a raccedila dos deuses agradar-se com honras prestadas por homens Mostrarei logo a verdade destas palavras O filho de Teseu nascido da Amazona 10 Hipoacutelito que o casto Piteu instruiu eacute o uacutenico entre os cidadatildeos desta Trezena a dizer que dos Numes eu sou o pior o leito ele recusa evita o casamentordquo146 mas pela falta contra mim vou me vingar 147 21 de Hipoacutelito ainda hoje Muito avancei neste projeto resta-me pouco a fazer Vindo ele uma vez da casa de Piteu ver misteacuterios sagrados e neles sagrar-se 25 na terra de Pandiacuteon a bem nascida esposa de seu pai Fedra o viu e um violento amor tomou-lhe coraccedilatildeo segundo o meu desejo148

Reconhecemos em Heacutestia uma polaridade pois ao mesmo tempo que se opotildee a Afrodite

como virgem inicia e supervisiona com o olhar de seu altar as jovens que se preparam para o

casamento Assim como Afrodite Heacutestia se inscreve na natureza humana Tambeacutem ela conhece

o posicionamento do ldquoparrdquo ao lado do masculino no panteatildeo grego onde eacute colocada ao lado de

Hermes divindade que cuida da solidariedade do acolhimento entre os homens nas suas

andanccedilas ldquoexterioresrdquo

O Hino Homeacuterico a Heacutestia coloca-a lado a lado com Hermes complementando funccedilotildees

Assim como Heacutestia figura como virgem e protetora das jovens em uma posiccedilatildeo semelhante agrave da

matildee Hermes eacute o mensageiro que ajuda aqueles que necessitam Hermes eacute pois o ldquoαγγελεrdquo o

anjo que como Heacutestia conhece as accedilotildees humanas e procura ser favoraacutevel aos mortais

A questatildeo do gecircnero eacute altamente significativa na sociedade arcaica e ateacute hoje no mundo

contemporacircneo alguns pais anseiam pela vinda de um filho do sexo masculino Assim sendo o

pai em cujo lar soacute havia filhas esperava que a filha lhe desse um neto como herdeiro do ldquoκλεροςrdquo

paterno Nesse caso o filho seguiria a linhagem do avocirc e era ao mesmo tempo filho e irmatildeo de

sua proacutepria matildee Ainda assim a mulher via-se sujeita agraves condiccedilotildees de submeter-se se natildeo agrave casa

do marido agrave casa paterna Em seu estudo sobre Heacutestia Vernant faz uma consideraccedilatildeo que nos

parece importante em relaccedilatildeo a um outro aspecto da polaridade da deusa Diz ele

146 Grifo nosso 147 Grifo nosso 148 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 105

82

Assim se delineia no pensamento social dos gregos em face agrave imagem do homem agente exclusivo da obra geradora a imagem natildeo menos poderosa da mulher verdadeira fonte de vida em que se alimenta a fecundidade das ldquocasasrdquo A deusa do lar segundo os casos eacute suscetiacutevel de justificar tanto uma quanto outra dessas duas imagens opostas Com efeito Heacutestia nos parece ter a funccedilatildeo especiacutefica de marcar a ldquoincomunicabilidaderdquo dos diversos lares enraizados em um ponto definido do solo eles natildeo poderiam nunca se misturar mas permanecem ldquopurosrdquo ateacute na uniatildeo dos sexos e na alianccedila das famiacutelias149

Como coloca Vernant em seu texto a virgindade de Heacutestia eacute a que assegura agrave jovem

virgem antes do casamento o seu proacuteprio lar Apoacutes o casamento ela passaraacute a representar a casa

do marido submetendo-se a ele como senhor do οίκος

Como organizadora dos bens do lar no que diz respeito agrave concentraccedilatildeo de riqueza e a

delimitaccedilatildeo dos patrimocircnios familiares Heacutestia era conhecida com o epiacuteteto de Heacutestia Tamia

Enquanto cabia a Heacutestia cuidar dos tesouros que ficavam guardados dentro da casa nos cofres

(bronze ouro ferro tecidos) a Hermes cabia o cuidado na aacuterea externa dos rebanhos com seu

bastatildeo maacutegico Considerando-se a funccedilatildeo dessas divindades enquanto Heacutestia se ocupava da

conservaccedilatildeo dos bens Hermes encarregava-se do movimento da riqueza isto eacute da aquisiccedilatildeo ou

da perda de bens

Um outro epiacuteteto de Heacutestia eacute Heacutestia Koineacute Ela era assim denominada quando havia a

cerimocircnia da lavragem que periodicamente renovava o viacutenculo do povo ateniense ldquoautoacutectonerdquo

com a sua terra

Heacutestia tambeacutem era a divindade de um ritual divinatoacuterio na Acaia ao lado de Hermes

O Hino XXIV tambeacutem dedicado a Heacutestia (verificar anexo B) ressalta o poder

adiivinhatoacuterio da deusa prestando serviccedilos no templo de Apolo A ideacuteia de purificaccedilatildeo da deusa

eacute destacada no uso de oacuteleos que pendem das mechas de cabelo Em seu banho regenerador apoacutes

ser pega com Ares Afrodite tambeacutem eacute ungida com oacuteleo elemento de purificaccedilatildeo

Assim como Afrodite traz em si a ligaccedilatildeo com o ceacuteu (pai Urano) com a terra (matildee Gaia)

e com a aacutegua (tendo nascido na espuma do mar) Heacutestia manifesta em si o contato do ceacuteu da

terra e do mundo subterracircneo A lareira fixa na casa enraiacuteza-a na terra Por meio dela a famiacutelia

faz uma aproximaccedilatildeo com o mundo subterracircneo Aleacutem disso a lareira assim como se comunica

com o mundo infernal faz subir ateacute a morada dos deuses oliacutempicos a chama que vem do

149 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 216

83

cozimento dos alimentos Quanto ao οικος cujo centro eacute fixado por Heacutestia representa a

estabilidade no espaccedilo terrestre

Em Homero nada pudemos destacar sobre Heacutestia No entanto no Hino Homeacuterico V (veja

anexo A) dedicado a Afrodite encontra-se uma citaccedilatildeo de grande forccedila quando Heacutestia faz um

juramento sagrado a Zeus de manter-se virgem A cena descrita destaca Heacutestia colocando sua

matildeo na cabeccedila de Zeus como um modo solene de se fazer um juramento Desta maneira Heacutestia

estava resolutamente decidida a manter-se virgem Narra o hino que a deusa implorou a

virgindade a Zeus apoacutes ter sido cortejada por Poseidon e por Apolo

Heacutestia opotildee-se pois a Afrodite natildeo se submetendo a ela na questatildeo do envolvimento

amoroso (carnal) Poderiacuteamos finalizar essas consideraccedilotildees sobre Heacutestia levantando uma

pergunta seria uma forma de independecircncia para Heacutestia natildeo se deixar dominar por algueacutem (seja

deus ou mortal) do sexo masculino mas precisar da aprovaccedilatildeo de Zeus como autoridade

masculina maacutexima do panteatildeo oliacutempico Por que essa decisatildeo natildeo foi individual e teve que

passar pela ldquofigura paterna de Zeusrdquo Por que Zeus em vez de casamento passou a oferecer-lhe

a melhor porccedilatildeo (a primeira viacutetima) de todo sacrifiacutecio puacuteblico

85

6 - A QUESTAtildeO DA VIRGINDADE E AS DEUSAS VIRGENS

ldquoOne popular private offering consisted in dedicating to the deity the symbols of a phase of onersquos life that had ended such as the locks of children now adults or their toys or a bridersquos virginal clothesrdquo150

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo

Para se chegar agrave questatildeo da virgindade parece-nos que eacute preciso descobrir dentro do mito

as significaccedilotildees e as vozes que ficam agrave margem durante a Antiguidade pois satildeo subordinadas a

uma voz maior dominante

Desde o iniacutecio colocam-se as trecircs deusas virgens (Aacutertemis Atena e Heacutestia) distintas das

demais deusas formando pois um grupo agrave parte o que jaacute implica sua feiccedilatildeo diferencial

Isso revela que a ldquoliberdaderdquo individual feminina natildeo eacute compatiacutevel com a dominaccedilatildeo de

um valor de ldquomaioriardquo Portanto eacute preciso uma leitura plural do texto miacutetico para entender como

essa histoacuteria alternativa das deusas foi se constituindo atraveacutes dos tempos como enfatizamos em

nossa proposta metodoloacutegica

Trata-se pois de uma relevacircncia do tema haja vista sua pertinecircncia na questatildeo

mitoloacutegica que destaca de alguma forma quer seja atraveacutes do uso de um vocaacutebulo quer seja

atraveacutes do contexto miacutetico apesar do seu caraacuteter fantasioso a ideologia de uma eacutepoca em que

sobressai um traccedilo da virgindade de uma ldquoteologiardquo feminina

De fato a virgindade das deusas gregas permite-nos captar repercussotildees em diferentes

acircmbitos da sociedade pois o mito estaacute ldquoembrenhadordquo nela revelando justificando explicando

moldando os valores adaptando-os de modo a destacar experiecircncias que se tornam crenccedilas do

coletivo Satildeo vozes que perpassam e ultrapassam as fronteiras das poacutelis e satildeo acolhidas na

representaccedilatildeo simboacutelica dos princiacutepios sociais que a sociedade grega elabora

Portanto a virgindade de Aacutertemis Atena e Heacutestia ldquomexemrdquo com o eixo da memoacuteria

histoacuterica situam-se no eixo da realidade social e permeiam a questatildeo de gecircnero

150 RATTO Stefania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 p 152 ldquoUma oferenda privada popular consistia em dedicar agrave divindade os siacutembolos de uma fase da vida que jaacute tinha acabado tais como mechas de cabelo de crianccedilas agora adultas ou seus brinquedos ou roupas virginais de uma noivardquo (traduccedilatildeo nossa)

86

Certamente muito se tem dito sobre a Greacutecia sobre os deuses gregos sobre o homem

grego sobre as mulheres de Atenas sobre o patriarcalismo sobre o mito Poreacutem que

discussotildees podem dar conta de encaminhar a posiccedilatildeo dessas deusas no Olimpo grego

Vamos partir de um pressuposto de que o mito foi sendo construiacutedo e se adaptando de

acordo com as transformaccedilotildees por que a sociedade ia passando

Primeiro a sociedade marcadamente agriacutecola era uma sociedade que destacava a figura

da mulher Parece-nos pois que a grande deusa era privilegiada nesse espaccedilo Enfatizavam-se os

ritos de fertilidade e de procriaccedilatildeo

Dessa forma as deusas consideradas ldquoantigasrdquo vindas de outras culturas como Heacutestia

Demeacuteter Aacutertemis Atena tinham histoacuterias paralelas em outros lugares e caracteriacutesticas comuns agraves

deusas de outros povos bem como de deusas importantes quer seja nos ritos de fertilidade quer

nos ritos sagrados do fogo quer como grandes deusas ou ainda como Amazonas independentes

Poreacutem na Greacutecia os textos escritos de Homero e de Hesiacuteodo inauguram histoacuterias da

origem do mundo de todas as forccedilas da natureza de deuses e de heroacuteis Aiacute jaacute se coloca a

fertilidade da natureza e a fecundidade da terra como dos seres humanos como misteacuterios

sublimes e por isso divinizados Embora a primeira divindade que surja responsaacutevel pela

fecundaccedilatildeo seja a Terra uma forma de divindade feminina que implica uma retomada a um

primeiro padratildeo que resgata o feminino como procriando independentemente do masculino

ainda assim seu periacuteodo de independecircncia eacute limitado Logo que a matildee terra (Gaia) daacute agrave luz o

mito grego jaacute propotildee a origem dos opostos e a chegada do macho ao mundo gerando conflitos

na figura de Urano o ceacuteu

Parece-nos que a partir desse momento a Grande Matildee comeccedila a ocupar um lugar

secundaacuterio em uma sociedade que sucede agrave eacutepoca eminentemente agriacutecola em que as invasotildees

colocam toda ecircnfase nos guerreiros e o patriarcalismo inicia o seu domiacutenio

A partir dessas consideraccedilotildees trecircs aspectos podem ser destacados nesse poacutelo complexo

da sociedade grega primeiro como foi reorganizado o cenaacuterio dos deuses acomodando-se a uma

nova situaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico-econocircmica com aspectos diferenciados da fase anterior Segundo

como a mulher se posiciona nesse panorama e como suas funccedilotildees eram atribuiacutedas e

determinadas incluindo a questatildeo dos casamentos

87

Terceiro como a flexibilidade das palavras parthenos e koreacute referindo-se agraves moccedilas

solteiras e virgens em um contexto em transformaccedilatildeo pode ser significada face ao poder de

Afrodite

Enfocando o primeiro item das questotildees levantadas verificamos que a ldquoacomodaccedilatildeordquo dos

deuses oliacutempicos colocou como entidade suprema Zeus cuja forccedila e poder estavam relacionados

com o raio e com a sabedoria Estava instalado o masculino no centro do universo (kosmos)

grego A matildee que havia procriado Urano e Crono afastou-se para que eles pudessem presidir

colocando-se ela proacutepria em um plano diferenciado a que ofereceu o ventre feacutertil para que essa

prole pudesse existir e a que participou nas escolhas Ela entretanto posicionou-se aleacutem das

funccedilotildees oliacutempicas pois estas eram mais especiacuteficas para a vida do cotidiano do periacuteodo dito

arcaico Gaia a matildee primeira ficou conhecida como entidade primordial a base da fecundaccedilatildeo e

da criaccedilatildeo a que organizou o mundo e que jaacute estabelecida em um contexto amplo inaugurou o

princiacutepio de uma genealogia que se define com o nascimento de Zeus impondo-se sobre o pai

(Crono) Isso revela claramente que uma outra era tem iniacutecio agora eacute a vez em que o filho vai

reinar libertando antecedentes dessa aacutervore genealoacutegica e devolvendo agrave Terra a luz do

Relacircmpago o som do Trovatildeo e a forccedila da violecircncia A matildee Terra fica pois como base

ldquolongiacutenquardquo e Zeus fica como o centro do Olimpo

Desde o iniacutecio constata-se que a matildee reconhece os filhos e os privilegia Gaia a partir do

momento que copula com Urano passa a reconhececirc-lo como esposo e protege o filho Crono

incitando-o contra o pai que natildeo lhe ldquodava espaccedilordquo A mesma questatildeo se repete entre Crono e

sua irmatilde Reacuteia Quando comeccedilam a copular Reacuteia reconhece Crono como pai de seus filhos e

porque a lenda jaacute previa a ira dos filhos contra o pai tentando arrebatar-lhe o lugar Crono

zeloso de seu domiacutenio passa a devoraacute-los A matildee agora Reacuteia salva o filho Zeus de Crono

dando a este uacuteltimo uma pedra para engolir e escondendo Zeus em uma gruta onde eacute alimentado

por uma cabra

Esses aspectos justificam algumas constataccedilotildees (a) a matildee parece ter um viacutenculo de

afetividade com os filhos desde o nascimento reconhecendo-os como parte de sua prole gerados

em seu ventre (b) o pai considerado apenas pai bioloacutegico ainda natildeo assume os filhos Natildeo

existe pois nesses pais miacuteticos primordiais a ldquoadoccedilatildeordquo dos filhos que seraacute posteriormente

88

introduzida no direito romano151 (c) a lenda miacutetica destaca para um fato natural da vida com o

tempo os filhos assumem o lugar do pai ndash o cetro passa do mais velho ao mais novo ndash (d) a

cabra como participante na amamentaccedilatildeo das crianccedilas na falta do leite materno eacute tida como um

animal reverenciado entre os gregos na figura de Zeus que como infante necessitou da

alimentaccedilatildeo vinda de Amalteacuteia a cabra-ama tida em outras versotildees como ninfa

Essa linhagem a partir daiacute centrada em Zeus parece-nos revelar um periacuteodo de transiccedilatildeo

cedendo a fecundidade criativa lugar para o masculino dominante ocupar o governo do mundo

atraveacutes das armas que lhe satildeo atribuiacutedas o raio o trovatildeo e a violecircncia o poder de ldquofulminarrdquo

Passa-se da fecundidade feminina agrave dominaccedilatildeo masculina

Assim reorganizado o Olimpo instala a figura do pai todo-poderoso o masculino

predominante refletindo uma sociedade em que os cidadatildeos (pais e esposos) negociavam e

decidiam sobre as mulheres (filhas e esposas) protegiam as muralhas da cidade (os hoplitas) e

cuidavam da descendecircncia genealoacutegica atraveacutes da procriaccedilatildeo com as jovens mulheres porque a

continuaccedilatildeo da linhagem familiar era de grande importacircncia na sociedade grega

Isso posto mostra-nos a relevacircncia da deusa Afrodite para a reproduccedilatildeo da espeacutecie o

papel representativo da deusa Heacutestia como guardiatilde da casa e da famiacutelia com sua presenccedila fixa

constante atenta a significacircncia de Aacutertemis lsquoSenhora das Ferasrsquo responsaacutevel pela

lsquodomesticaccedilatildeo dos jovensrsquo as meninas de onze doze anos (as ursas) para enfrentamento do

casamento e dos partos e os rapazes para o preparo civilizatoacuterio que a cidadania impotildee e

finalmente Atena como orientadora das questotildees que precisam de uma direccedilatildeo saacutebia e astuta de

um rumo certeiro de estrateacutegias inteligentes da elaboraccedilatildeo paciente no trabalho manual no

cuidado com os cavalos no cultivo da oliveira Enfim uma deusa multifacetada para atender

necessidades em tempo de guerra e de paz de mulheres e de homens

De certa forma os deuses oliacutempicos refletiam todos os estados de coisas dos homens em

sua vida cotidiana

Uma forma de honrar os deuses e de implorar favores a eles era atraveacutes dos cultos e dos

rituais de sacrifiacutecio Assim o homem grego da eacutepoca arcaica mantinha um viacutenculo com o divino

com seus deuses e deusas atraveacutes da praacutetica de ritos fossem eles puacuteblicos ou privados Os 151 Discutimos sobre esse aspecto em um artigo de nossa autoria O olhar e a voz na construccedilatildeo do masculino ndash A questatildeo da paternidade in GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Masculino Campinas Editora Aliacutenea 2008

89

sacrifiacutecios coletivos oferecidos durante festivais sacros em geral incluiacuteam instrumentos

adequados e animais como viacutetimas Esse fato eacute revelador da continuidade de uma tradiccedilatildeo que se

mantinha dos tempos ancestrais Portanto mesclavam-se o antigo e o novo incorporando ritos a

deuses que tinham um ldquonovo formatordquo adaptados a uma sociedade guerreira cuja voz que se

fazia ouvir era a do masculino Da grande deusa passou-se ao deus supremo

Essa incorporaccedilatildeo da figura de deusas que mantinham sua autonomia vinculada ao

passado de grandes deusas sentadas no Olimpo venerando a figura de um reinado governado por

um deus coloca a mulher e o homem no bojo da historicidade de suas inter-relaccedilotildees

As deusas virgens do Olimpo parecem sugerir pistas de uma sociedade matriarcal anterior

e buscando rastrear seus atributos e funccedilotildees parece-nos que seus testemunhos da Antiguidade

Grega fazem-nos desvendar a ldquoinvisibilidade femininardquo

De fato eacute atraveacutes das deusas que se tem notiacutecia do papel das mulheres na sociedade As

meninas se preparavam para o casamento sob a ldquodomesticaccedilatildeordquo e orientaccedilatildeo de Aacutertemis e lhe

ofertavam seus brinquedos de infacircncia siacutembolos de uma fase que deixavam para traacutes No dia do

casamento em geral a noiva tomava banhos de purificaccedilatildeo indicadores de uma eacutepoca de

transformaccedilotildees pois os rituais de libaccedilatildeo faziam parte dos preparativos de fases muacuteltiplas dos

casamentos da Greacutecia antiga Um banquete era oferecido a Heacutestia na casa da noiva do qual ela

podia participar de rosto coberto por um veacuteu A menina tornava-se entatildeo ldquoinvisiacutevelrdquo escondida

atraveacutes do veacuteu uma presenccedila velada diante do noivo e da famiacutelia Heacutestia tambeacutem ldquoguiavardquo a

procissatildeo para a casa do noivo onde a jovem iria morar pois a matildee da noiva acompanhava o

trajeto carregando tochas acesas

Esses pedaccedilos de descriccedilotildees datildeo pistas a algumas reflexotildees importantes sobre o que hoje

se denomina estudo de gecircneros152 indicador de uma visatildeo da posiccedilatildeo ocupada pela mulher

naquela sociedade dominada por um pai Zeus que se configura como o soberano que representa

o poder diante de todos os outros deuses

152 Natildeo pretendemos explorar a questatildeo vinculada aos estudos de gecircnero cuja trajetoacuteria emerge da constataccedilatildeo de um conflito social na reinvidicaccedilatildeo de direitos tendo sido colocado nas ciecircncias sociais a partir de 1955 quando John Money propocircs o termo ldquopapel de gecircnerordquo atribuindo o conjunto de condutas referentes aos homens e agraves mulheres

90

A nossa leitura dessa categoria de gecircnero dentro de uma anaacutelise antropoloacutegica

comparativa parece superar um olhar que vecirc a mulher fortemente ldquovitimizadardquo dentro da

sociedade sem espaccedilo para a participaccedilatildeo e atuaccedilatildeo legiacutetima

De fato embora a praacutetica discursiva dominante fosse a voz de um pai supremo no

Olimpo outros deuses e deusas enredavam-se em um amplo sistema com diferentes funccedilotildees de

forma que ambos o feminino e o masculino colocavam-se em um mesmo patamar Entatildeo

questionamos o lsquopoderrsquo estaacute acima da questatildeo do gecircnero Zeus era pois o soberano acima de

todos os outros deuses e deusas e unido a deusas e a mulheres (humanas) simboliza o princiacutepio

masculino O princiacutepio era organizador tambeacutem pois representava a constituiccedilatildeo da famiacutelia em

que ambos os sexos satildeo contemplados De algum modo a Greacutecia arcaica preservava a funccedilatildeo

fecundadora da mulher pois ateacute mesmo as Amazonas mulheres independentes que se diziam

descendentes do deus da Guerra e da ninfa Harmonia mulheres que se governavam a si proacuteprias

sem recorrerem a homens usavam-nos no entanto para perpetuar a raccedila Diz a lenda que

conservavam os filhos do sexo feminino mutilando-lhes um seio para o manejo do arco e da

lanccedila Daiacute alguns autores fornecem o termo ά-microαξων (amazonas) como ldquoas que natildeo tecircm seiordquo

Nesse contexto a situaccedilatildeo de poder dentro da categoria de gecircnero eacute oposta tendo o

domiacutenio da situaccedilatildeo essas mulheres guerreiras cegavam os filhos do sexo masculino ou

deixavam-nos coxos

Aqui tambeacutem a questatildeo do olhar se coloca quer seja na mutilaccedilatildeo dos seios oacutergatildeos

femininos por excelecircncia quer seja na retirada dos olhos dos meninos

A deusa virgem Aacutertemis no seu repuacutedio ao olhar masculino e no seu firme propoacutesito de

manter-se virgem era a deusa cultuada por essas mulheres guerreiras e caccediladoras vinculadas agrave

divindade por um traccedilo que senatildeo por uma cultura no bioloacutegico pelo menos por uma biologia na

cultura Logo a questatildeo de gecircnero eacute ldquouma construccedilatildeo social e cultural um lsquomodo de ser no

mundorsquordquo153

153 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p17

91

Quando os textos falam sobre a posiccedilatildeo do as mulheres frente agraves divindades ainda assim

temos que destacar que elas tinham uma participaccedilatildeo ativa nas celebraccedilotildees apesar de natildeo serem

permitidas em lugares onde se realizavam sacrifiacutecios violentos e onde se comia carne de animais

sacrificados Esses espaccedilos eram reservados aos cidadatildeos adultos do sexo masculino dada a

ldquoferocidaderdquo e ldquoatrocidaderdquo dos atos Preservava-se a mulher por sua constituiccedilatildeo bioloacutegica ou

pela constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses rituais

Por outro lado alguns rituais que se realizavam no templo dedicado a Aacutertemis em

Brauron eram reservados apenas agraves jovens meninas de onze a quatorze anos as virgens que se

colocavam como ldquoursasrdquo antes do casamento

Seriam essas funccedilotildees marginais como coloca Ratto154 por uma questatildeo de gecircnero

significando aqui o contexto soacutecio-poliacutetico ou por uma questatildeo que envolve o bioloacutegico

Um outro aspecto que levanta uma discussatildeo quanto ao gecircnero com a carga semacircntica

que lhe eacute atribuiacuteda hoje eacute a situaccedilatildeo dos casamentos na Greacutecia antiga

Zeus unido a deusas simbolizava o princiacutepio masculino como jaacute se enfatizou e o esposo

legiacutetimo no casamento

A sociedade dos homens reproduzia esse estado de coisas atraveacutes de dois momentos que

ressaltavam a mudanccedila de posiccedilatildeo da mulher virgem um contrato formal entre o pai da noiva e o

noivo selado com a entrega do dote e a transferecircncia da jovem da casa do pai para a casa da

famiacutelia do noivo onde deveria perpetuar esse tipo de tradiccedilatildeo

Embora essa troca nos pareccedila altamente comercial (e natildeo deixa de ser um negoacutecio)

revela a preocupaccedilatildeo com as funccedilotildees femininas de procriaccedilatildeo de continuidade a uma genealogia

e do cuidado com a casa que era espaccedilo da alccedilada da mulher pois assim como Heacutestia as esposas

deviam zelar pelo lar e pela famiacutelia

154 RATTO Stefania Opcit ldquoIn Greece women took an active part in the celebration of the leading religious festivals though in marginal rolesrdquo p 140 [Na Greacutecia as mulheres tinham uma obrigaccedilatildeo ativa na celebraccedilatildeo dos festivais religiosos principais embora em funccedilotildees perifeacutericas (traduccedilatildeo nossa)] A autora menciona que em alguns festivais cabia agraves garotas lavar e vestir as estaacutetuas para o culto em outros festivais como as Pan-Ateneacuteias as jovens teciam os saiotes que eram carregados como oferendas agrave deusa Portanto parece que a autora quer dar ecircnfase natildeo ao tipo de funccedilatildeo em si executada pelas jovens mas ao fato de serem excluiacutedas da vida poliacutetica na participaccedilatildeo dos cultos de sacrifiacutecio e dos banquetes coletivos Vemos aiacute uma discussatildeo do ponto de vista de gecircnero como exposto nas ciecircncias sociais

92

Aleacutem disso a sociedade transitoacuteria na posiccedilatildeo que assumimos de um periacuteodo dominado

pela Grande Deusa a um patriarcalismo onde se impotildee a figura de um deus de um pai

dominante explicita a necessidade de preparar as jovens para uma nova etapa cuidando de sua

orientaccedilatildeo e favorecendo os aspectos transformadores que preparam para a aceitaccedilatildeo de papeacuteis

diferentes dos que tinham na casa do pai

Essa preocupaccedilatildeo que a famiacutelia grega manifesta embora um tanto condicionadora e

imposta por padrotildees sociais parecia revelar uma preocupaccedilatildeo com periacuteodos de iniciaccedilatildeo para

outras etapas da vida tanto puacuteblica quanto particular Acreditamos que essa forma de

sistematizar regras e normas sociais possa ter contribuiacutedo grandemente para a formaccedilatildeo do

pensamento filosoacutefico grego que inaugura uma outra etapa

Quanto agrave teologia das deusas virgens ela eacute integradora de vaacuterias dimensotildees da vida

humana no que concerne homens e mulheres ela eacute predominantemente comunitaacuteria e relacional

ela se coloca como contextual e concreta marcada pelo cotidiano da vida grega como lugar de

manifestaccedilatildeo do divino e ela eacute acima de tudo atuante no sentido de participar da vida dos

mortais de favorecer homens e mulheres de zelar no momento em que o feminino precisa da

presenccedila e da forccedila dessas potecircncias nas experiecircncias coletivas e isoladas como expressatildeo de

apoio e de solidariedade

A teologia das deusas virgens direciona para a teologia em que se coloca lado a lado o

masculino e o feminino em que deusas privilegiam a uniatildeo dos opostos a submissatildeo ao esposo

a experiecircncia da vida familiar As deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia rompem o silecircncio da

dependecircncia do feminino impondo a consciecircncia de uma postura autocircnoma de uma perspectiva

feminina que eacute capaz de significar por si soacute sem o viacutenculo de outras presenccedilas quer seja de um

esposo quer seja de um filho quer seja de um amante

Nessa perspectiva poderiacuteamos ousar propor que a teologia feminista das deusas virgens

situa na Antiguidade as origens de um movimento que iraacute se constituir seacuteculos depois

refletindo a questatildeo de gecircnero que se vai delineando em cada movimento histoacuterico

A primeira tensatildeo instala-se com os mitos de criaccedilatildeo das lendas gregas que a partir daiacute

colocam como figura central um deus conferindo-lhe o direito e o poder do pai ou seja a

introduccedilatildeo de um conceito de patriarcado

93

Nas palavras e na visatildeo de Freitas o patriarcado na eacutepoca arcaica deve ser entendido

como uma condiccedilatildeo de inter-relaccedilotildees sociais e de imposiccedilotildees

Mas essa compreensatildeo do termo deixa na sombra o fato de que o pai como chefe de famiacutelia na Antiguidade era tambeacutem senhor amo e esposo Portanto o patriarcado conota um complexo sistema de subordinaccedilatildeo e dominaccedilatildeo 155

As deusas virgens revelam pois um conflito que eacute constitutivo do dualismo simboacutelico de

gecircnero uma vez que estaacute enraizado na convicccedilatildeo de que a experiecircncia humana estaacute imersa em

experiecircncias sustentadas por organizaccedilotildees sociais e poliacuteticas e por instituiccedilotildees e organismos

religiosos permeando todas as relaccedilotildees com seus aspectos contraditoacuterios e ambiacuteguumlos

O problema da linguagem os epiacutetetos referentes agraves deusas e o leacutexico que se impocircs como

caracteriacutestica de algumas expressotildees e atributos peculiares eacute outra questatildeo que nos fez observar

algumas colocaccedilotildees levantadas no estudo dessa teologia feminina

Quando discutimos a metodologia de nossa pesquisa fizemos algumas consideraccedilotildees

sobre os epiacutetetos das deusas e apoiamo-nos na obra de Parry156 um estudioso dos versos homeacutericos

No entanto pretendemos retomar um aspecto que enfatiza o caraacuteter da virgindade e

discuti-lo de uma posiccedilatildeo comparativa (interpretativista)

Narrando sobre a genealogia oliacutempica Hesiacuteodo coloca que

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia157 mais saacutebia que os Deuses e os homens mortais Mas quando ia partir a Deusa de olhos glaucos158 Atena ele enganou suas entranhas com ardil com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo 890 por conselhos da Terra e do Ceacuteu159 constelado Estes lho indicaram para que a honra de rei natildeo tivesse em vez de Zeus outro dos Deuses perenes era destino que ela gerasse filhos prudentes primeiro a virgem160 de olhos glaucos161 Tritogecircnia162 igual ao pai no furor e na prudente vontade163

155 FREITAS Maria Carmelita de Op cit p 28-29 156 PARRY Millman Op cit 157 Em grego encontramos a palavra Μητιν (Meacutetis) uma divindade da primeira geraccedilatildeo eacute a personificaccedilatildeo da sabedoria e da Astuacutecia 158 Jaacute nos referimos ao epiacuteteto de Atena glaucoacutepida (γλαυκωπιν) 159 Referindo-se a Gaia (Γαίης forma poeacutetica) e Urano (Ούρανοΰ) 160 A palavra usada em grego eacute κούρην 161 Haacute repeticcedilatildeo na mesma estrofe do epiacuteteto γλαυκώπιdα 162 Tambeacutem haacute referecircncia ao epiacuteteto Τριτογένειαν Tritogecircnia ou Tritogeneacuteia que se refere ao lugar de seu nascimento Uma das versotildees eacute que teria sido agraves margens do lago Tritatildeo na Liacutebia 163 HESIacuteODO Op cit p 155

94

Veja-se que em seu primeiro casamento a esposa (Meacutetis) eacute literalmente engolida natildeo

deixando Zeus espaccedilo para uma situaccedilatildeo baacutesica do feminino de a mulher parir o filho que

espera

Assim nasce Atena da cabeccedila do pai (vs 924-926) virgem de olhos glaucos Tritogecircnia

guerreira infatigaacutevel semelhante ao pai no furor e na vontade Portanto essa deusa coloca-se jaacute

no iniciacuteo entre o masculino e o feminino uma deidade cujo aspectos bioloacutegicos natildeo satildeo

relevantes uma vez que

Para los griegos antiguos Atenea una de las diosas oliacutempicas maacutes importantes era la representacioacuten de la sabiduriacutea y la destreza En la manera en que se presenta su nacimiento que claros estos aspectos de su caraacuteter164

Aleacutem disso seu nascimento sem a figura materna indica um plano diferencial entre os

deuses entre o comportamento das deidades ancestrais e dos deuses oliacutempicos que iam surgindo

revelando provavelmente uma unificaccedilatildeo entre a cultura matriarcal e uma forma de

pratriarcalismo querendo apossar-se dos atributos da mulher Mas isso natildeo era uma forma de

desprezar o feminino na sua origem e na sua concepccedilatildeo pois Zeus engole Meacutetis para que

tambeacutem ele pudesse usufruir de sua sabedoria e tecirc-la dentro dele De certa forma ele assume a

individualizaccedilatildeo de Meacutetis e assumindo-a assume a paternidadematernidade de Atena em seu

nascimento ele estaacute reiterando que a figura da matildee existe e que tudo proveacutem dela

Diz Loraux a respeito do domiacutenio da matildee

[] a matildee eacute designada pela metoniacutemia da sua matriz ela proacutepria inteira numa parte de si mesma Fazer recuar ao maacuteximo os limites do tempo ou do espaccedilo para melhor encerrar a Deusa na sua lsquometrarsquo (local do materno no corpo das mulheres) tal eacute a operaccedilatildeo que natildeo nos parece possiacutevel escapar Mas como a Deusa eacute o todo porque como pensam os colaboradores os seus filhos natildeo tecircm necessidade de um Urano ciumento para ficarem para sempre presos nas profundezas do corpo materno tudo (Tudo) estaacute neste esconderijo no interior do grande continente feminino165

Atena nasce com a sabedoria materna da mulher pois e com a determinaccedilatildeo e forccedila do

pai mesclando qualidades femininas e masculinas De um lado a jovem virgem (κούρη) de

outro Atena terriacutevel (δειην) a guerreira infatigaacutevel

164 MAUROMATAKI Maria Op cit p 38 165 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 p 52

95

Na origem dos deuses Hesiacuteodo coloca a virgindade como atributo fixo ao lado de outros

que destacam Atena Usa em seu texto a palavra κούρη

O dicionaacuterio do autor francecircs Bailly apresenta para esse leacutexico a definiccedilatildeo ldquojeune fille c

a d jeune viergerdquo portanto uma jovem virgem oposto a έζευγmίνη ou seja ldquofemme marieeacuterdquo

(mulher casada)166

Este mesmo substantivo em Homero no plural Νύmicroφαι καυραι ∆ιός (Il 6 420)167 estaacute

se referindo agraves ninfas e tem um duplo sentido as ninfas filhas de Zeus isto eacute as ninfas virgens e

filhas de Zeus Nesse caso o termo Νύmicroφαι jaacute estaacute relacionado agrave ideacuteia de virgindade pois as

ninfas e as musas eram virgens (κουραι) Compara-se com Μοΰcαι Όλυmicroπιάδεα κοΰραι ∆ιδε

αιγιόχοιο168 traduzido por Torrano169 como ldquoMusas olimpiacuteades virgens170 de Zeus porta-eacutegiderdquo

Encontramos na Teogonia diversas vezes a referecircncia κούρη sempre traduzida por

virgem

No entanto o substantivo κoacuteρη tambeacutem toma a forma de nome proacuteprio referindo-se agrave

jovem filha de Demeacuteter Perseacutefone Nesse sentido a lenda enfatiza a matildee (Demeacuteter) e filha

(Perseacutefone) e o significado eacute o de filha tendo se estratificado como substantivo proacuteprio ( relativo

a Perseacutefone somente)

Em nossa leitura das obras e dos aspectos referentes agraves deusas virgens percebemos que

tambeacutem a palavra παρθένος eacute usada com o sentido de jovem e de virgem171 o adjetivo refere-se

agrave jovem pura e intacta ou a alguma coisa sem maacutecula como por exemplo παρθένιον φρέαρ ou

seja os poccedilos da Virgem perto de Elecircusis por isso capitalizado (senatildeo a leitura de παρθένιον

φρέαρ seria poccedilos de aacutegua liacutempida pura)

166 BAILLY Op cit p121 e 880 167 HOMERO Op cit p 292 (Em inglecircs daughters of Zeus) 168 HESIacuteODO Op cit p 162 v 1022 169 HESIacuteODO Op cit 170 Grifo nosso 171 Verificar entrada do leacutexico em BAILLY Op cit p 1489

96

Em Hesiacuteodo encontramos o uso de παρθένος referindo-se a jovens (provavelmente antes

do casamento) sem qualquer conexatildeo com as deusas de nossa investigaccedilatildeo Dizem os versos

204-205

Coube-lhe172 entre homens e deuses imortais As conversas de moccedilas (παρθένiacuteοvς) os sorrisos os enganos173 205

Aleacutem disso a estaacutetua de Atena em Atenas ldquocunhourdquo o termo partheacutenos como indicativo

de virgem bem como a constelaccedilatildeo de virgem conhecida em grego como PARTHEacuteNOS

Quais seriam os criteacuterios para a escolha de um ou de outro vocaacutebulo Fica aiacute a pergunta

que merece ter uma investigaccedilatildeo profunda dessa ocorrecircncia linguumliacutestica

Hipotetizamos que talvez a escolha do vocaacutebulo possa ter uma variaccedilatildeo devido agrave eacutepoca

oue agrave regiatildeo em que eacute usado

Percebemos que nos Hinos Homeacutericos compostos em periacuteodos posteriores e por

rapsodos diferentes a preferecircncia de emprego eacute a da palavra παρθένος referindo-se a qualquer

das trecircs deusas virgens

62 ndash O caraacuteter da virgindade no Cristianismo

Eacute interessante estabelecer um paralelo entre a mitologia grega e a religiatildeo cristatilde Se para

os gregos os mitos satildeo tidos como lendas que relacionam aos valores de uma eacutepoca o

Cristianismo emerge do pensamento judaico Os textos do Gecircnesis que satildeo tambeacutem simboacutelicos

e representativos de uma cultura tornaram-se poderosos documentos ldquoautecircnticosrdquo detentores de

ldquoverdadesrdquo emblemaacuteticas

Essas supostas verdades retratam ndash assim como os mitos gregos ndash visotildees da existecircncia

humana Elas contecircm como as lendas relaccedilotildees de gecircnero histoacuterias de terror e de piedade e

histoacuterias de amor e de poder

Aleacutem do contexto soacutecio-poliacutetico que orienta tanto o texto grego como o hebraico haacute a

questatildeo linguumliacutestica pois as traduccedilotildees requerem decisotildees interpretativas que como jaacute observamos

em capiacutetulo anterior satildeo motivadas de alguma forma pelas circunstacircncias e pela visatildeo de

172 Referindo-se agrave deusa Afrodite 173 HESIacuteODO Op cit p 117

97

mundo do tradutor Assim muitas vezes uma interpretaccedilatildeo direciona um texto a uma outra

cultura

Inuacutemeras vezes lendo textos em outras liacutenguas dizemos que gostariacuteamos de ldquopensarrdquo

como o falante nativo dessas liacutenguas ou seja de ter introjetada a sua cultura o que jaacute encaminha

para outros entendimentos

Portanto tanto a histoacuteria da ldquovirgindade das deusas gregasrdquo como a histoacuteria da

ldquovirgindade no Cristianismordquo jaacute estatildeo multifacetadas distorcidas e fragmentadas (como diria

Deleuze)

Continuando nosso paralelo proposto no iniacutecio temos dois relatos absolutamente

diferentes da criaccedilatildeo do mundo e dos seres humanos Enquanto os gregos divinizam o espaccedilo e

os homens surgem dentro desse espaccedilo sagrado na sua configuraccedilatildeo a tradiccedilatildeo hebraica coloca

Deus fora do mundo criando-o como espaccedilo para os mortais homens e mulheres Vecirc-se jaacute que

os deuses e os homens gregos habitam o mesmo cosmo em planos diferentes Para os hebreus

Deus estava aleacutem do cosmo o que implica que a humanidade habita outro espaccedilo e estaacute em outro

plano

No Olimpo circulam deuses e deusas e natildeo haacute questotildees motivadas por aspectos de

moralidade O mito eacute moldado atraveacutes de ritos iniciaacuteticos que prevecircem mudanccedilas de etapas e a

aquisiccedilatildeo de novos conhecimentos Haacute diferenccedilas que satildeo determinadas por funccedilotildees bioloacutegicas e

portanto por funccedilotildees sociais e uma das consequumlecircncias eacute o conflito natural as tensotildees que fazem

com que de alguma forma tambeacutem o mito apresente um enfoque binaacuterio

O Cristianismo poreacutem surge com um pensamento miacutetico binaacuterio O homem eacute criado por

Deus mas a etapa da ldquoquedardquo ndash atribuiacuteda agrave mulher ndash eacute inevitaacutevel

Esse pensamento hebraico inicial jaacute confere aos homens que eles sejam privados de

ingenuidade e de acesso a Deus o que lhes daacute consciecircncia discernimento e noccedilatildeo dessa

bipolaridade sexual

Eacute nesse contexto que surge a figura de Cristo tatildeo representativa que em nossos estudos

determinamos a eacutepoca arcaica grega em que se situam os textos de Homero por volta do seacuteculo

VIII antes da era Cristatilde tendo-o como referecircncia

Em Homero a menccedilatildeo da virgindade eacute pouco citada apenas para Atena e para Aacutertemis

sendo posteriormente ressaltada a virgindade de Aacutertemis e de Heacutestia aleacutem da de Atena nos

98

Hinos Homeacutericos Heacutestia era uma deusa silenciosa quase amorfa uma vez que provavelmente

vinculava-se agrave Grande Deusa dos ancestrais o que a fazia perder seus traccedilos definidos

Aleacutem disso dada a flexibilidade dos termos koreacute e partheacutenospodemos ateacute pensar em

uma possibilidade de eles estarem significando as ldquofilhasrdquo de Zeus antes do casamento sem uma

ecircnfase agrave questatildeo da virgindade em si mas do lsquoolharrsquo que conspurga a divindade Aacutertemis vinga-

se do olhar dos mortais Atena protege-se do olhar dos humanos

A proacutepria Afrodite enreda-se na questatildeo do olhar embora em seu caso a mortalidade de

Anquises seja superada pelo ato de procriaccedilatildeo e da descendecircncia dando continuidade ao

nascimento do heroacutei que eacute uma provaacutevel temaacutetica do Hino Homeacuterico a Afrodite V

A virgindade grega passa pois a ser conclamada a partir de Homero e de Hesiacuteodo (que

menciona Atena como κορή em seu nascimento) Os Hinos Homeacutericos jaacute de um periacuteodo

posterior ldquorecuperamrdquo esse aspecto e reorganizam os atributos dessas deusas virgens

enfatizando o epiacuteteto da virgindade e criando a lenda de um juramento de Heacutestia a Zeus para

manter-se virgem sempre Aiacute podemos supor que o mito passava por um periacuteodo de

transformaccedilatildeo acomodando-se a novos tempos fundindo aspectos de outras eacutepocas agrave era

arcaica

Em Homero na Iliacuteada e na Odisseacuteia do ponto de vista conceitual nota-se que o autor

apresenta uma teologia caracteriacutestica de seu tempo e como isso jaacute foi inuacutemeras vezes destacado

por diferentes autores os deuses movem-se ao lado dos humanos e repartem as mesmas

caracteriacutesticas

Dentro da Odisseacuteia e a Iliacuteada vatildeo sendo compostas narrativas dos deuses enredados em

situaccedilotildees que explicitam que assim como os homens eles estatildeo sujeitos a fatos que envolvem a

ldquosexualidaderdquo Eacute o que ouve Odisseu (Ulisses) sobre as aventuras de Afrodite com Ares a que jaacute

nos referimos

Hesiacuteodo remete-se na Teogonia agrave virgem Atena a Tritogecircnia filha de Zeus e de Meacutetis

(vs 886-896) Essa indicaccedilatildeo sobre o nascimento de Atena pode estar vinculada a uma deusa

Liacutebia (Neith) de uma eacutepoca em que as sacerdotisas-virgens (semelhante agraves Amazonas na sua

99

independecircncia e no seu caraacuteter guerreiro) entregavam-se todos os anos a um combate beacutelico Isso

justificaria os atributos de ldquovirgemrdquo ldquoTritogecircniardquo e ldquoguerreirardquo para Atena174

Fizemos essas regressotildees para chegar a uma observaccedilatildeo que consideramos importante

parece que a virgindade das deusas ancestrais estaacute bastante relacionada ao fato de natildeo

dependerem de um homem para terem sua identidade garantida embora pudessem mesmo ter

filhos da mesma forma que as Amazonas que mantinham sua ldquoprole femininardquo como forma de

dar continuidade agravequela ldquoespeacutecierdquo

Esse ponto tambeacutem supomos eacute resgatado pelo Cristianismo quando aponta para o fato

de que a matildee Maria eacute virgem O pai Joseacute teve sua figura obscurecida no Evangelho de Lucas e

tornou-se apenas um ldquosuporterdquo um pai fiacutesico provedor e silencioso na trajetoacuteria do filho na

superfiacutecie terrestre

Em Mateus o auto do nascimento de Jesus eacute significativamente mais curto que em Lucas

contando a histoacuteria da natividade com 31 versiacuteculos enquanto o de Lucas conta com 132

Falando da concepccedilatildeo de Jesus o evangelista refere-se ao dilema de Joseacute que eacute o personagem

principal

Diz Mateus (118-25) que Maria estava desposada com Joseacute e

Antes de coabitarem aconteceu que ela concebeu por virtude do Espiacuterito Santos Joseacute seu esposo que era homem de bem natildeo querendo difama-la rejeitaacute-la secretamente

Em seguida um anjo do senhor lhe diz

ldquoJoseacute filho de Davi natildeo temas receber Maria por esposa pois o que nela foi concebido vem do Espiacuterito Santordquo Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o senhor falou pelo profeta

174 Sobre essa referecircncia verificar a obra de PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) p 1157 Criacutetias no Timeu conta uma histoacuteria narrada a ele por um homem de aproximadamente noventa anos de idade comentando sobre o poeta Soacutelon e sobre sua narrativa (lsquoa veritable traditionrsquo) que ele havia trazido do Egito ldquoIn the Egyptian Delta at the head of which the rive nile divides thereis a certain district which is Called the district of Sais and the great city of the district is also called Sais and is the city from which king Amasis came The citizens have a deity for their foundress she is called in the Egyptian tongue Neith and is asserted by them to be the same whom the Hellenes call Athena They are great lovers of the Athenians and say that they are in some way related to themrdquo ldquoNo delta egiacutepcio do distrito eacute tambeacutem chamada de Sais e eacute a cidade na cabeceira do qual o rio Nilo se divide haacute um certo distrito chamado de distrito de Sais e a grande cidade de onde o Rei Amasis veio Os cidadotildees tecircm uma deidade para sua fundadora ela eacute chamada na liacutengua egiacutepcia de Neith e eacute afirmado por eles que ela eacute a mesma que os helenos chamam de Atena Eles satildeo grandes admiradores dos atenienses e dizem que eles satildeo de alguma forma relacionado a elesrdquo (traduccedilatildeo nossa)

100

Eis que a Virgem conceberaacute e daraacute aacute luz a um filho que se chamaraacute Emanuel (Isaiacuteas 714) que significa Deus conosco

Joseacute acatou as ordens quando acordou

Nessa fala de Mateus a revelaccedilatildeo se daacute atraveacutes de Joseacute

Finalmente Mateus acrescenta

E sem que ele a tivesse conhecido175 ela deu agrave luz o seu filho que recebeu o nome de Jesus176

O tributo ldquovirgemrdquo soacute eacute mencionado atraveacutes das palavras profeacuteticas de Isaiacuteas

O auto do nascimento em Lucas ao contraacuterio enfatiza Maria e coloca-a como receptora

da revelaccedilatildeo da virgindade

Diz o evangelho (Lucas 126-27)

o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiteacuteia Chamada Nazareacute a uma virgem177 com um homem que se chamava Joseacute da casa de Davi e o nome da virgem178 era Maria

Percebe-se a ecircnfase dada agrave Maria e a questatildeo da virgindade colocando Joseacute em segundo

plano

Apoacutes o anjo anunciar-lhe a concepccedilatildeo Maria pergunta ao anjo (134)

ldquoComo se faraacute isso pois natildeo conheccedilo homem179rdquo180

Portanto a questatildeo da virgindade tem um enfoque significativo e diferente em Mateus e

em Lucas para o primeiro evangelista Maria jaacute estava graacutevida ao desposar Joseacute Para o segundo

apesar de ser casada ela natildeo tinha relaccedilotildees maritais com Joseacute A revelaccedilatildeo do primeiro caso

para ser convincente ao marido daacute-se a ele atraveacutes de um sonho No segundo caso a moccedila

casada que se manteacutem ainda em estado de virgindade recebe a noticia do anjo estando desperta

175 Alguns autores colocam ldquonatildeo a conheceu maritalmenterdquo o que remete provavelmente agrave conotaccedilatildeo do texto original 176 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 177 Grifo nosso 178 Grifo nosso 179 Em BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 p 25 encontramos a traduccedilatildeo (de Vera Ribeiro) ldquoComo seraacute isso possiacutevel se sou virgemrdquo 180 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982

101

Em Mateus Maria eacute colocada como uma jovem graacutevida antes do matrimocircnio com a

justificativa de ter sido obra do Espiacuterito Santo Ora segundo dados histoacutericos da eacutepoca muitas

jovens judias eram estupradas por soldados romanos e este poderia ter sido o caso de Maria

Joseacute pertence agrave mesma tribo de Davi acolhe-a e ao filho para que o infante pudesse ser

reconhecido como cidadatildeo judeu filho que era de matildee judia

Parece-nos aqui tambeacutem que a questatildeo da gravidez de Maria deva ter enfoque poliacutetico-

social uma vez que a Igreja Catoacutelica em 649 no Conciacutelio Ecumecircnico do Latratildeo colocou a

virgindade de Maria antes durante e depois do parto de Jesus como dogma

Tentando pensar o conceito de dogma encontramos uma definiccedilatildeo bastante ampla e que

contempla vaacuterios aspectos inclusive o da inquestionabilidade por ter conexatildeo com revelaccedilatildeo

divina Temos pois que

Na Igreja Catoacutelica um dogma eacute uma verdade absoluta definitiva imutaacutevel infaliacutevel inquestionaacutevel e ldquoabsolutamente segura sobre a qual natildeo pode pairar nenhuma duacutevidardquo Uma vez proclamado solenemente ldquonenhum dogma pode serrdquo revogado ou ldquonegado nem mesmo pelo Papa ou por decisatildeo conciliarrdquo Por isso os dogmas constituem a base inalteraacutevel de toda a Doutrina Catoacutelica e qualquer catoacutelico eacute obrigado a aderir aceitar e acreditar nos dogmas de uma maneira irrevogaacutevel181

A virgindade de Maria atesta que Jesus eacute filho do Senhor e o dogma de sua virgindade

reafirma o fato que Jesus eacute o filho primogecircnito e uacutenico de Maria natildeo tendo tido irmatildeos carnais

Quando os textos biacuteblicos se referem aos ldquoirmatildeosrdquo de Jesus podem indicar qualquer parentesco

ou ateacute mesmo ldquoamigordquo em hebraico

Do ponto de vista teoloacutegico a virgindade de Maria revela um comportamento que vai

aleacutem de um dado bioloacutegico e fiacutesico pois ressalta uma decisatildeo pessoal consciente de se dedicar

a servir uma missatildeo Dizendo que aceitava a sua virgindade Maria estava se consagrando agrave

missatildeo que Deus lhe dava

Vemos este aspecto inteiramente semelhante ao das deusas virgens no que concerne

abdicar conscientemente de relaccedilotildees amorosas assumindo o celibato consagrado a uma missatildeo

quer seja como a Grande Deusa como a Grande protetora ou como a grande Amazona todas

tendo em comum o estigma de ldquomatildeesrdquo ldquovirgensrdquo dada a dimensatildeo da funccedilatildeo que ocupam

Inspiradas na missatildeo de Maria as freiras catoacutelicas vatildeo procurar seguir a trilha da

virgindade e da consagraccedilatildeo da vida a Deus

181 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009

102

Quando na enciacuteclica Redemptoris Mater de 1987 o Papa Joatildeo Paulo II refere-se ao dom

da maternidade de Maria podemos remeter-nos ao texto de Loraux182 jaacute por noacutes citado sobre o

poder do domiacutenio da matildee ldquoesse grande continente femininordquo que abarca tudo

Diz parte do item n39 da enciacuteclica Redemptoris Mater

As palavras lsquoEis a serva do Senhorrsquo comprovam o fato de ela desde o principio ter aceitado e entendido a proacutepria maternidade como dom total de si da sua pessoa a serviccedilo dos desiacutegnios salviacuteficos do Altiacutessimo E toda a participaccedilatildeo materna na vida de Jesus Cristo seu filho ela viveu-a ateacute o fim de um modo correspondente agrave sua vocaccedilatildeo para a virgindade183

Eacute interessante observar que a lsquovirgindadersquo eacute vista como vocaccedilatildeo uma vez que implica

reprimir o desejo negando os lsquotrabalhosrsquo da ldquoAacuteurea Afroditerdquo assumindo uma independecircncia

pessoal por um lado e uma dedicaccedilatildeo ilimitada a uma missatildeo por outro lado

No entanto essas consideraccedilotildees que foram colocadas ateacute aqui refletem uma crenccedila

corrente entre os cristatildeos catoacutelicos Mas a questatildeo da virgindade eacute questionada por estudiosos da

aacuterea da religiatildeo e da cultura Assim os professores Borg e Crossan184 investigam a virgindade da

Maria sob diferentes acircngulos

Uma delas eacute a suspeita que Mateus coloca no iniacutecio de sua paraacutebola sobre um presumido

adulteacuterio de Maria Qual teria sido a intenccedilatildeo do evangelista ao fazer tal colocaccedilatildeo se

questionam os autores Em Lucas natildeo haacute nada que diga como Joseacute descobriu ou reagiu diante da

gravidez de Maria e nem mesmo que ele tivesse tido algum problema com esse fato

Dizem os autores

Ainda que Mateus quisesse contar a histoacuteria inteiramente do ponto de vista de Joseacute ndash ao contraacuterio de Lucas que o fez do ponto de vista de Maria ndash ele poderia ter feito o anjo revelar tudo a Joseacute lsquoantesrsquo da concepccedilatildeo de Maria E se quisesse manter-se patriarcal poderia ter feito Joseacute dizer a Maria o que aconteceria com ela Portanto a pergunta persiste Na matriz contextual da tradiccedilatildeo grega romana e judaica de mulheres virginais esteacutereis ou idosas por que apenas Mateus levantou o espectro de uma aduacuteltera e natildeo de uma concepccedilatildeo divina

182 LORAUX Nicole Op cit 183 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 184 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p 123-155

103

Logo haacute uma acusaccedilatildeo anticristatilde de adulteacuterio e a concepccedilatildeo divina parece ser um modo

de encobrir esse adulteacuterio185 Para os autores Mateus baseou-se de maneira deliberada na

concepccedilatildeo de Moiseacutes dentro das versotildees midraacutesticas que eram correntes no seacuteculo I

Estabelecendo um paralelismo com a concepccedilatildeo de Jesus seguindo o esquema ldquodivoacuterciordquo (Joseacute

intenciona deixar Maria) ldquorevelaccedilatildeordquo (o anjo revela a Joseacute a concepccedilatildeo como obra do Espiacuterito

Santo) ldquorecasamentordquo (Joseacute assume Maria e o filho) Seria essa a causa de sua ecircnfase no

controle divino por meio de sonhos e profecias bem como no foco do ponto de vista masculino e

paterno e principalmente para defender o tema que Mateus acreditava ldquoJesus eacute o novo Moiseacutesrdquo

Segundo autores citados Lucas ao contraacuterio natildeo propotildee a virgindade de Maria como

revelaccedilatildeo profeacutetica mas antes como atributo divino estabelecendo mesmo um paralelo entre a

histoacuteria da concepccedilatildeo de Jesus (por uma virgem) e a histoacuteria da concepccedilatildeo de Joatildeo Batista (por

uma esteacuteril) (Lucas 1-2)186 Assim Lucas parece ressaltar o fato de que Jesus natildeo eacute simplesmente

um novo Joatildeo siacutembolo e siacutentese de um Antigo Testamento filho de matildee esteacuteril e idosa Jesus

vem de matildee casta e daacute iniacutecio a uma nova fase da Histoacuteria com ele comeccedila o Novo Testamento

A conclusatildeo desses fatos eacute que parece que havia uma preocupaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica no texto

desses evangelistas Mateus desejava resgatar a figura de Moiseacutes em Cristo e para isso

necessitava colocar o cumprimento das profecias Lucas desejava como se viu colocar Maria e

Cristo como modelos de uma nova era e sua ecircnfase natildeo eacute na profecia que ele nem menciona

mas na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo onde satildeo construiacutedas as figuras de Maria e do filho

Maria eacute pois rsquoabenccediloadarsquo e lsquoobediente agrave becircnccedilatildeo divinardquo e como a primeira cristatilde

perfeita ela eacute tambeacutem lsquovirgemrsquo quer dizer divina de acordo com a tradiccedilatildeo judaica e biacuteblica

(referindo-se aos casos de pais idosos e esteacutereis no Antigo Testamento e por analogia

introduzindo uma outra forma no Novo Testamento)

Comparando-se com Afrodite mesmo em sendo deusa sua concepccedilatildeo com Anquises ou

com Ares natildeo tem a tradiccedilatildeo da virgindade Apesar de ser matildee de heroacutei Eneacuteias considerado o

fundador de Roma ou de outros deuses como Eros um deus que se funde com as caracteriacutesticas

185 Borg e Crossan inspiraram-se em um texto de Oriacutegenes do seacuteculo III polemizando a obra do anticristatildeo Celsus do final do seacuteculo II relatando sobre o nascimento de Jesus e spbre a ldquofalsardquo virgindade de Maria a fim de aplacar os rumores sobre as circunstacircncias verdadeiras da presenccedila de soldados romanos que haviam vindo para sufocar uma revolta em Seacuteforis perto de Nazareacute proacuteximo da eacutepoca em que Jesus nasceu Haacute ateacute mesmo a menccedilatildeo do soldado como Panthera como trocadilho sarcaacutestico do termo grego patheacuternos a lsquovirgemrsquo 186 Biacuteblia Sagrada Op cit p 1345-1348

104

da matildee o intercurso sexual divino se dava de forma fiacutesica a tal ponto que Afrodite precisou

ldquopurificar-serdquo apoacutes sua relaccedilatildeo com Ares

Poreacutem o Cristianismo introduziu a virgindade nas relaccedilotildees humanas para que pudesse ser

exaltada a concepccedilatildeo divina e virginal de Jesus acima de todas as demais ndash especialmente sobre a

de Ceacutesar Augusto considerado ldquofilho de Apolordquo

Citando ainda Borg e Crossan eles dizem

Seja como for a virgindade a esterilidade a longevidade ou qualquer outra coisa que possamos imaginar satildeo simples maneiras de enfatizar sublinhar e ldquoprovarrdquo que a concepccedilatildeo foi divina Eacute essa concepccedilatildeo divina que importa Eacute a teologia do filho e natildeo a biologia da matildee que estaacute em jogo187

187 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p151

105

CONCLUSAtildeO OU INDICACcedilAtildeO DE SUPOSICcedilOtildeES

Uma primeira conclusatildeo a que se chega eacute que a genealogia parece ser um dado

importante e relevante entre os povos da Antiguidade Por isso o Evangelho de Mateus antes de

citar a concepccedilatildeo e o nascimento de Cristo coloca catorze geraccedilotildees que o precederam sem que

se saiba como possa ter sido essa informaccedilatildeo dos protocolos dada a Mateus A ecircnfase da

genealogia tambeacutem era comum entre os gregos todos os deuses incluindo as deusas virgens

tecircm sua genealogia nomeada Atena nasce da cabeccedila do pai supremo (Zeus) e foi gerada por uma

matildee com caracteriacutesticas astutas (Meacutetis) mas como protetora de Atenas haacute indiacutecios de que se

vinculava a uma deusa da Liacutebia e foi a filha de Zeus o que jaacute mostra sua ancestralidade

Aacutertemis tinha como pais Zeus e Leto e como Afrodite era de natureza uracircnica Aacutertemis

nasce com o seu duplo o irmatildeo Apolo tendo atributos comuns a ele Portanto Atena e Aacutertemis

ficam entre o masculino e o feminino distinguindo-se entre aspectos de estrateacutegia e de

belicosidade proacuteprios do masculino na conquista na independecircncia e no poder Por outro lado

caracterizam-se pela proteccedilatildeo e o acompanhamento ldquomaternosrdquo zelando para a soluccedilatildeo de

dificuldades e para os encaminhamentos de etapas da vida

Diferentemente de Aacutertemis e Atena Heacutestia eacute irmatilde de Zeus filha de Reacuteia e de Crono e foi

libertada do ventre de Crono por quem tinha sido engolida a partir do momento em que Zeus

com ldquoseu furor agarra as armas o trovatildeo o relacircmpago e o raio flamante e fere-o188 saltando do

Olimpordquo189

Todas as deidades quer sejam elas miacuteticas ou cristatildes tecircm o relato de um elenco

protocolar da genealogia como forma de apresentar a ligaccedilatildeo com um sistema simboacutelico que

garanta a coerecircncia interna com um princiacutepio organizador no sistema miacutetico ou com um

principio criador (o Verbo) no sistema cristatildeo

Tanto o sistema miacutetico como o sistema cristatildeo reproduzem o plano de uma vontade

divina O Cosmo vem do Caos (entidade primordial) mas soacute se organiza a partir da vitoacuteria de

Zeus que eacute colocado no centro do universo como deus supremo rodeado dos outros deuses que

188 Refere-se a Crono 189 HESIacuteODO Op cit p 153 vs 853-855

106

representam diferentes aspectos desse cosmo Com a morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo reorganiza-

se um novo sistema religioso tendo iniacutecio o Novo Testamento

Assim a genealogia das deusas virgens se constitui a partir da organizaccedilatildeo do cosmo

com Zeus e a genealogia cristatilde do Novo Testamento se organiza com Cristo Com ambos

comeccedila uma nova era

A genealogia dos deuses eacute importante para que seja resgatado nas narrativas feitas um

sentido histoacuterico que se ajuste agraves eacutepocas e agraves influecircncias soacutecio-poliacuteticas Nesse contexto

ldquoperambulamrdquo as divindades dominantes

Mas atraacutes da ldquogenealogia aparenterdquo existe uma genealogia anterior a que se apoacuteia em

diferentes raccedilas em diferentes tribos em diferentes periacuteodos histoacutericos em diferentes ideologias

Essas concepccedilotildees foram expressas nos mitos que misturavam temas e eacutepocas que tinham

versotildees de acordo com ldquoresquiacuteciosrdquo de diferentes vozes e que por isso alguns autores

denominaram de ldquosincreacuteticasrdquo

Isso acontece com muitos deuses e deusas e nosso objeto de estudo as deusas virgens

tambeacutem tem um viacutenculo com lendas e histoacuterias da Greacutecia marcadas por uma fertilidade agriacutecola

e por atividades guerreiras

Essa preocupaccedilatildeo de estabelecer ligaccedilotildees com um passado como base de evoluccedilotildees

sucessivas jaacute estava presente em alguns autores da eacutepoca arcaica e de acordo com Lovejoy e

Boas190 Hesiacuteodo foi considerado ldquoo primeiro testemunho do que chamaram de lsquoprimitivismo

cronoloacutegicorsquordquo

Por isso decifrar ldquoos mitosrdquo das deusas virgens e reconhecer o estatuto dessa virgindade

a elas atribuiacuteda parece ser possiacutevel apenas atraveacutes de suposiccedilotildees Interligando pois a figura de

Heacutestia a outras narrativas que compotildeem um mesmo perfil semacircntico percebemos que sua

presenccedila estaacute sempre vinculada ao fogo sagrado e portanto a um elemento da natureza Sua

representaccedilatildeo eacute tatildeo ldquoabstratardquo e incorpoacuterea que eacute difiacutecil determinar-lhe atributos Teria Heacutestia

pertencido a uma eacutepoca mais como principio abstrato do que como divindade com traccedilos

femininos distintos Teria Heacutestia alguma ligaccedilatildeo com Agni deus do fogo na Iacutendia Por que

190 Cf LE GOFF Jacques Op cit p 294

107

Em estreita conivecircncia com Heacutestia Zeus tem o controle tanto sobre a lareira privada de cada casa ndash no centro fixo que constitui como que o umbigo no qual se enraiacuteza a morada familiar ndash quando sobre a lareira comum da cidade no seio da aglomeraccedilatildeo na Heacutetia Koineacute onde velam os magistrados priacutetanes191

Teria sua virgindade sido ldquocriadardquo a partir da falta de histoacuterias que envolvessem Heacutestia

em questotildees amorosas

Por que soacute a partir dos Hinos Homeacuterico ndash em especial o Hino Homeacuterico V a Afrodite ndash

Heacutestia eacute colocada explicitamente como virgem (parthenos) fazendo um pedido ao pai para que

pudesse manter-se virgem e natildeo se casar

Ainda cavando pistas de genealogias anteriores das deusas virgens antes de levantarmos

nossas hipoacuteteses sobre a virgindade e o epiacuteteto lsquovirgemrsquo das deusas e de Maria procuramos

levantar questotildees sobre Atena Seu surgimento no mundo eacute diferente do das outras deusas

virgens pois nasce da cabeccedila do pai o que lhe garante um jeito diferente de Ser Duas outras

consideraccedilotildees sobre Atena que jaacute foram exploradas ao decorrer de nossas reflexotildees satildeo

colocadas aqui a tiacutetulo de recordaccedilatildeo primeiro Atena eacute a uacutenica deusa considerada

ontologicamente virgem pois ao nascer (veja-se v 895 em Hesiacuteodo) jaacute tem sua virgindade

garantida segundo a identificaccedilatildeo feita por Platatildeo bem como por Apolocircnio de Rodes de que

Atena seria procedente da Liacutebia Platatildeo a coloca como sendo a deusa Neith de eacutepoca anterior agrave

arcaica em que a paternidade natildeo era reconhecida um periacuteodo matriarcal em que Neith tinha

suas sacerdotisas-virgens que se entregavam todos os anos a um combate armado para fins de

conquistar a posiccedilatildeo de sacerdotisa-superior Portanto a virgindade de Atena a κoύρη de

nascimento parece ser colocada desde a sua origem quer se considere a Teogonia grega quer se

considere a versatildeo de sua genealogia Liacutebia

Quanto a Aacutertemis podemos hipotetizaacute-la como sendo ldquoderivadardquo da histoacuteria indo-

europeacuteia uma deusa a quem se vinculam as Amazonas demarcando o espaccedilo entre o mundo

primitivo e a civilizaccedilatildeo192

Da perspectiva genealoacutegica tanto em Mateus como em Lucas a virgindade de Maria eacute

preservada Diz Lucas 323193

191 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 192 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 24 193 BIBLIA SAGRADA p 1350

108

ldquoQuando Jesus comeccedilou o seu ministeacuterio tinha cerca de trinta anos e era tido como filho de Joseacute filho de Helirdquo

Em Mateus 116194 temos sobre a genealogia de Jesus

ldquoJacoacute gerou Joseacute esposo de Maria da qual nasceu Jesus que eacute chamado Cristordquo

Embora as genealogias sejam divergentes em relaccedilatildeo a Joseacute (o que atesta um problema de

reconhecimento de paternidade) haacute uma forma de representaccedilatildeo linguumliacutestica que preserva a

virgindade de Maria pois as descriccedilotildees natildeo permitem a suposiccedilatildeo de que Joseacute possa ser o pai

bioloacutegico de Jesus Em Lucas ldquoera tido comordquo portanto o que equivale a dizer que natildeo era em

Mateus ldquoda qual nasceu Jesusrdquo referindo-se a Maria e natildeo a Joseacute

Chegamos pois ao momento de ldquoenfrentarmosrdquo a virgindade definindo-a por traccedilos se

natildeo por conceitos

A primeira constataccedilatildeo que se chegou eacute que a ideacuteia de ldquocastidaderdquo eacute mais tardia e que a

virgindade no iniacutecio dos tempos vincula-se a uma forma de poder

Resgatando uma definiccedilatildeo relacionada ao poder quando jaacute se estava por volta da eacutepoca

217 aC narra a lenda que Claacuteudia Quinta sacerdotisa de Vesta ia sofrer processo que

terminaria com uma morte ritual o que significava que ia ser sepultada viva Claacuteudia ia ser

punida por ter infringido seu voto de virgindade ndash o que significava a missatildeo para a qual tinha

sido designada No entanto nessa mesma eacutepoca Aniacutebal devastava a Itaacutelia e como narra Cacircmara

Cascudo

A sibila de Cumes aconselhou a vinda da pedra negra de Pessinonte na Aacutesia menor tombada do ceacuteu e considerada como a viva encarnaccedilatildeo de Cibele O barco que trouxe a pedra negra encalhou no Rio Tibre e os auguacuterios anunciaram que uma virgem arrastaria a embarcaccedilatildeo da lama e a poria a nado195

Eacute ai que entra Claacuteudia Quinta que diante de todo o povo romano invoca a deusa Cibele

e amarrando o rostro do navio com o seu cinto de Vestal consegue puxaacute-lo facilmente Tendo

cumprido essa missatildeo de ldquocaraacuteter puacuteblicordquo Claacuteudia daacute a prova de sua virgindade

Assim Cacircmara Cascudo inicia seu capiacutetulo sobre virgindade dizendo

A virgindade explica as estoacuterias populares e na tradiccedilatildeo maacutegica a forccedila irresistiacutevel e os atos sobre-humanos de valentia196

194 Idem p 1285 195 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Supersticcedilatildeo no Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia 1985 p 286 196 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 286

109

Cacircmara Cascudo narra vaacuterias supersticcedilotildees e crenccedilas em que o poder da virgem cura

regenera recupera

Como Heacutestia soacute uma virgem podia ter a obrigaccedilatildeo de acender e guardar o fogo sagrado

da vestais em Roma

Cacircmara Cascudo cita vaacuterias caracteriacutesticas das deusas virgens que vimos ao longo de

nosso trabalho a forccedila fiacutesica a resistecircncia ao combate a ausecircncia de medo a solicitude o

cumprimento de obrigaccedilotildees a valentia inexpugnaacutevel a alegria expressa em cantos danccedilas e

urros como ldquoemanaccedilotildees da virgindaderdquo

Ora nesse sentido coloca-se a deusa Afrodite que se posicionou frente a frente com as

deusas ditas virgens nos Hinos Homeacutericos Para nossa surpresa tambeacutem Cacircmara Cascudo

apresenta uma lista reveladora de deusas virgens e laacute se encontra a uracircnia natildeo Aacutertemis mas

Afrodite Vejamos o que diz Cacircmara Cascudo pois esse aspecto relaciona-se com a hipoacutetese que

tentamos levantar

As virgens criadoras tiveram o culto mais profundo e natural Era o poder para a Vida e sempre o potencial mais puro Nari dos indus Muta-Iacutesis dos egiacutepcios Atar dos aacuterabes Astoret dos feniacutecios Afrodite-Anadiocircmene dos gregos Vesta dos romanos Luonatar dos finlandenses Herta dos germanos Dea dos gauleses Iza dos japoneses Ira dos oceacircnicos foram reverenciadas nessa invocaccedilatildeo espontacircnea e poderosa197

Dessa forma estavam relacionadas a pureza ndash que podia ser conseguida atraveacutes de ritos

de purificaccedilatildeo ndash e a ldquoenergiardquo A tradiccedilatildeo das virgens prevecirc uma forccedila e um poder a tal ponto

que ldquoa Virgo Potens irresistiacutevel teraacute a maior aacuterea de influencia religiosa que qualquer elemento

temaacutetico no mundo do passado histoacutericordquo198

A virgindade assim concebida eacute dom eacute poder e eacute forccedila sobrenatural

Na Greacutecia antiga isso nos faz pensar que o celibato era uma forma de preservar a

autonomia e portanto a forccedila e o poder das divindades para a missatildeo que deviam desempenhar

no cosmo Assim sendo nesse universo grego apenas Hera comparada agraves deusas Aacutertemis

Atena Heacutestia e Afrodite natildeo possuiacutea autonomia ldquoDesgastava-serdquo com os afazeres familiares

pois submissa ao marido Zeus estava sempre vigilante sobre suas conquistas amorosas e todas

as suas lendas de uma forma ou de outra vinculam-na ao masculino isto eacute a Zeus

197 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287 198 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287

110

Afrodite apesar de ser a deusa que promove a ldquophiliardquo e portanto natildeo ser virgem

tambeacutem tem autonomia move-se entre deuses e homens promovendo sua forccedila criadora

Mesmo seu casamento natildeo tem caraacuteter de submissatildeo ao masculino pois foi um casamento

arranjado por Hera ndash aquela que se dedica aos arranjos familiares ndash e aleacutem do mais aquele que eacute

tido como esposo eacute coxo e ldquosem importacircnciardquo dada a ausecircncia de valentia e brilho nas histoacuterias

em que Hefesto participa Ao contraacuterio seus atos satildeo secundaacuterios e pouco relevantes

Diferentemente de Hera Afrodite ndash virgem ou natildeo ndash tem uma importacircncia em si mesma

aos moldes de Aacutertemis Atena e Heacutestia

Aleacutem disso tanto as deusas virgens como Afrodite tecircm uma missatildeo no cosmo fora do

espaccedilo da casa Como diz Hesiacuteodo ldquoAtena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevelrdquo199

Referindo-se a Afrodite

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice200

Aacutertemis eacute tida como a ldquoverte-flechasrdquo ldquoLeto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechasrdquo201

O que queremos destacar eacute que aleacutem de uma missatildeo que exige uma certa autonomia das

deusas parece tambeacutem que o poder da virgindade eacute uma forma de preservar divindades de um

periacuteodo matriarcal quando ainda natildeo se destacava e natildeo se nomeava o masculino

Assim o celibato preserva a autonomia a liberdade de movimentos e incorpora

caracteriacutesticas de uma eacutepoca das grandes deusas

Nesse sentido a virgindade no Cristianismo pode ter um propoacutesito semelhante pois parte

da valorizaccedilatildeo do feminino e do celibato e como consequumlecircncia o sexo passa a ter uma

conotaccedilatildeo negativa no mundo judaico-cristatildeo o que natildeo havia ateacute entatildeo na tradiccedilatildeo judaica

Sobre esse assunto haacute uma beliacutessima discussatildeo encaminhada por Spong Diz ele entre

outros trechos sobre o aspecto da sexualidade

The Bible in general and the birth narratives in particular became a subtle unconscious source for the continued oppression of women The cultural assumption was made that the only proper way for a moral woman to conduct herself was to remain safely inside

199 HESIacuteODO Op cit p 157 v 925 200 HESIacuteODO Op cit p 117 vs 203-206 201 HESIacuteODO Op cit p 157 v 918

111

the sexually profective barriers provided first by her father and second by her husband202

Um aspecto positivo no Cristianismo ao proclamar a virgindade de Maria foi o fato de

nomear a matildee de colocaacute-la dentro da importacircncia da histoacuteria de nascimento da histoacuteria da

humanidade

A partir do retrato elaborado de Maria como matildee virgem tambeacutem hipotetizamos um

outro ponto de que o sofrimento eacute de alguma forma inerente ao aspecto da virgindade Se por

uma lado daacute autonomia em relaccedilatildeo agrave presenccedila de domiacutenio de um esposo de outro prevecirc uma

renuacutencia pessoal aos envolvimentos domeacutesticos frente a uma missatildeo mais ampla quase sempre

de ordem puacuteblica e que requer uma doaccedilatildeo Entatildeo perguntamos isso natildeo equivalia a ldquotrocarrdquo a

submissatildeo do marido pela submissatildeo a uma divindade Natildeo seria deixar de assumir o

compromisso terreno para assumir o sagrado

No Hino Homeacuterico a Afrodite Heacutestia submete-se ao pai Zeus solicitando-lhe permissatildeo

para natildeo se casar e manter-se virgem

Na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo em Lucas Maria submete-se aos desiacutegnios de Deus usando o termo

ldquoservardquo na sua fala de concordacircncia

Eacute preciso uma resignaccedilatildeo um poder e forccedila para manter o equiliacutebrio do Ser com o

desempenho de uma missatildeo Por isso vimos Aacutertemis sofrendo com o parto difiacutecil da matildee o que

coloca uma temeridade em um aspecto do feminino aiacute embora seja uma funccedilatildeo criadora

semelhante agrave da natureza Por isso reza a lenda ela passa a se dedicar agrave causa da mulher como

orientadora nos casamentos e protetora nos partos A mesma Aacutertemis afugenta os pretendentes

deuses e mortais para natildeo deixar que a seduccedilatildeo possa interferir em sua natureza de mulherdeusa

liberta ndash entre dois mundos entre duas culturas ndash no cumprimento da funccedilatildeo que lhe foi

atribuiacuteda a de ldquoverte-flechasrdquo

Atena eacute marcada pelo sofrimento de sua chegada sem matildee mas inaugura uma ldquogeraccedilatildeordquo

nova em que o pai recebe os filhos e os aceita Atena nasce virgem pois sua virgindade eacute

predeterminada bem como sua funccedilatildeo que requer poder e renuacutencia do aspecto feminino

202 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 A Biacuteblia em geral e as narrativas de nascimento em particular se tornaram uma fonte sutil inconsciente de opressatildeo contiacutenua das mulheres Foi feita a conjetura cultural de que o uacutenico meio adequado para uma mulher de moral se conduzir era permanecer segura dentro das barreiras protetoras da sexualidade fornecidas primeiro pelo pai e segundo pelo marido (traduccedilatildeo nossa)

112

particular Ela eacute assumida como virgem e guerreira Sua virgindade eacute colocada como fato seja

como representante de Atenas descendente de Zeus seja como descendente da deusa virgem

Neith da Liacutebia

Heacutestia tem uma missatildeo civilizatoacuteria de grande espectro cuida de cada casa conhece os

dramas da convivecircncia domeacutestica das relaccedilotildees de gecircneros da sociedade grega da poliacutetica que

circunda a pira puacuteblica Como poderia ao mesmo tempo essa grande deusa incorpoacuterea

matriarcal cuidar de esposo de filhos e de sua proacutepria casa

Afrodite tem uma missatildeo que tambeacutem transcende o particular o que nos fez pensar que

talvez dentro da histoacuteria da sociedade patriarcal apenas tenham autonomia e independecircncia em

sua missatildeo as virgens (as deusas gregas com funccedilotildees diferenciadas as vestais na sua funccedilatildeo de

guardiatildes do fogo sagrado agrave maneira de Heacutestia Maria na sua missatildeo Cristatilde as freiras em sua

missatildeo teoloacutegica) e as mulheres que se dedicaram ao amor sem deixar se submeter pelo

domiacutenio do masculino (Afrodite livre no seu agir independente na sua conduta (embora tivesse

um marido) as vestais prostitutas sagradas as concubinas as prostitutas profissionais)

Apesar de a virgindade conter especificidades e a tributos positivos Spong argumenta

que na histoacuteria do Cristianismo ela pode ser vista como um constructo ldquomachistardquo originaacuterio do

patriarcalismo Segundo o argumento que defende a mulher que aparecia de forma marcante ao

lado de Jesus era Maria Madalena

No entanto a tradiccedilatildeo apagou sua figura atuante e colocou-a com um caraacuteter

ldquoameaccediladorrdquo de prostituta dado o seu caraacuteter liberto condenada pelo pecado Essa mesma

tradiccedilatildeo recuperou a imagem de Maria que aparecia palidamente nos primeiros evangelhos Sua

expressatildeo de poder comeccedilou a ganhar impulso a partir do segundo seacuteculo da era cristatilde

Teria sido a categoria de virgindade moldada a partir dos gregos pagatildeos Teria o

Cristianismo se apossado dessa ideacuteia colocando a lsquovirgemrsquo como a lsquomulher idealrsquo para servir aos

propoacutesitos de um Pai divino

Parece que a maternidade foi tida como uma forma de puniccedilatildeo desde o iniacutecio da criaccedilatildeo

do mundo (veja o que se colocou em relaccedilatildeo a Aacutertemis) pelas tensotildees que subjazem ao ato de

reproduccedilatildeo atraveacutes do ldquoconhecimentordquo que Adatildeo tem de Eva Vejamos como coloca Spong

113

At the time of the fall when according to the literal text sin entered Godrsquos good creation Eve too was a virgin Adam did not ldquoKnowrdquo203 her until they were both banished form the Garden of Eden (Gen41) Childbirth the result of Adamrsquos ldquoknowingrdquo was part of Eversquos punishment

(Gen316) 204

Parece-nos pois que a ideacuteia de virgindade foi elaborada como um constructo social do

mundo pagatildeo procurando preservar o poder feminino frente a uma missatildeo ampla e de domiacutenio

do coletivo A proacutepria Afrodite em seu envolvimento sexual com Anquises exprimiu seu

sentimento de culpa e de vulnerabilidade diante das questotildees amorosas explicitando a

consequumlecircncia desse ato na produccedilatildeo de um filho

A forma que a Igreja encontrou para redimir os pecados foi o batismo inspirado tambeacutem

nos rituais gregos de purificaccedilatildeo como jaacute foi referido anteriormente

Finalmente antes de colocarmos um elenco de questotildees investigativas sobre a virgindade

ocorreu-nos refletir sobre um extremo da virgindade feminina que passa a ser significada na sua

lsquoabstraccedilatildeorsquo Assim em se estabelecendo um paralelo entre Heacutestia e Maria percebe-se que antes

dos Hinos Homeacutericos que satildeo produccedilotildees posteriores a Homero e a Hesiacuteodo bem como na

iconografia da eacutepoca a deusa Heacutestia eacute silenciosa e incorpoacuterea quase irreal como Maria

Poucos dados textuais existem a respeito de Heacutestia Entretanto muito se tem investigado

e muitas suposiccedilotildees tecircm sido escritas a seu respeito

Maria tambeacutem parece natildeo ter sido uma mulher real sendo a histoacuteria de sua vida

encoberta de silecircncio Como coloca Spong bispo de Newmark

ldquoA view of history however reveals that the price of Maryrsquos bodily assumption was the sacrifice of her sexual identity She entered the realm of the gods as one deprived of her humanity She was a virgin bride a virgin mother a perpetual virgin and a post partum virgin She was immaculately conceived at birth and bodily assumed at the moment of death Clearly she was not a real woman rdquo205

A palavra grega lsquopathernosrsquo que indica em um primeiro sentido lsquomoccedila antes do

casamentorsquo jaacute deixa evidente o significado de natildeo-comprometimento com um homem Assim a 203 O verbo ldquoconhecerrdquo em hebraico pode significar lsquopenetrarrsquo penetrar no outro para conhecer 204 SPONG John Shelby op cit p 210 ldquoNo tempo da queda quando de acordo com o texto literal o pecado entrou na admiraacutevel criaccedilatildeo de Deus Eva tambeacutem era uma virgem Adatildeo nada ldquoconheciardquo ateacute ambos serem banidos do Jardim do Eacuteden (Gen41) O parto resultado do ldquoconhecimentordquo de Adatildeo foi parte da puniccedilatildeo de Eva (Gen316)rdquo (traduccedilatildeo nossa) 205 SPONG John Shelby op cit p 218 ldquoUma visatildeo da histoacuteria entretanto revela que o preccedilo da assunccedilatildeo do corpo de Maria foi o sacrifiacutecio de sua identidade sexual Ela entrou para o reino dos deuses como algueacutem privado de sua humanidade Ela foi um noiva virgem uma matildee virgem uma virgem perpeacutetua e uma virgem poacutes-parto Ela foi concebida se maacutecula pelo nascimento e corporeamente elevada na hora da morte Claramente ela natildeo era uma mulher realrdquo

114

virgindade deve por extensatildeo garantir o sentido de natildeo-ligaccedilatildeo a um indiviacuteduo por viacutenculos

contratuais como era tido o casamento na Greacutecia arcaica Daiacute a moccedila antes do casamento

virgem

Segue abaixo o protocolo de nossas perguntas

bull Representa a virgindade uma forma de preservar a figura da deusamulher autocircnoma

como continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo matriarcal da cultura baseada nos mitos da

fecundidade

bull Esse aspecto de virgindade confere agrave deusamulher um poder de dedicaccedilatildeo a uma missatildeo

que tem um caraacuteter civilizador

bull Por que o Cristianismo preservou a figura da Virgem na figura da matildee

bull Qual o apelo agrave afetividade lsquophiliarsquo que as deusasmulheres virgens podem manifestar em

seu discurso pela histoacuteria Que tipo de imagem de si mesmo o homem grego pode ter a

partir do olhar das deusas virgens

E aqui entra a nossa conclusatildeo maior a questatildeo amorosa conduz a Afrodite e ao poder do

desejo Sem ela a virgindade natildeo teria expressatildeo

A questatildeo da virgindade e das deusas virgens soacute eacute impactante frente agrave forccedila de recusa a

Afrodite bem como ao compromisso com o masculino

Ficam aiacute propostas para novas discussotildees Embora o misteacuterio das deusas virgens deva

persistir porque faz parte da maneira de se conceber o divino

115

REFEREcircNCIAS

AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro (Ed USP) 2 ed 1968 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par Seacutechant L et Chantraine P Paris Hachette 2000 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer (1736) Reimpressatildeo reprograacutefica Hildesheim Georg Olms 1976 BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed34 1997 DETIENNE Marcel Os Gregos e NoacutesUma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007

116

EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 disponiacutevel em lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt Acesso em 29jun2009 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 FOUCAULT M A arqueologia do Saber Rio de Janeiro forense Universitaacuteria 5 ed 1977 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 FREUD Sigmund (1931) Sexualidade Feminina In Obras completas Estandart brasileira Trad Sob a direccedilatildeo de Jayme Salomatildeo Rio de Janeiro imago 1996 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004 GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Feminino Campinas Editora Aliacutenea 2008 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 HOMER The Iliad v 1 e 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 HOMER The Odyssey Translated by E V Rieu London Penguin Books 2003 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004

117

LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 LISSARRAGUE Franccedilois A figuraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 MAVROMATAKI Maria Mitologia Griega Atenas Ediciones Xaitali 1997 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 RATTO Stephania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

118

SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001

119

BIBLIOGRAFIA

APOLLODORUS The library v 1 e 2 Cambridge Harvard University Press 1990 ARISTOacuteTELES Poeacutetica 2ed Traduccedilatildeo de Eudoro de Souza Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1993 BACHOFEN Johann Jakob Mitologiacutea Arcaica y Derecho materno Edicioacuten de Andreacutes Ortiz-Oseacutes Barcelona Editorial Anthropos 1988 BEN VENISTE Eacutemile Se vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes vol 1 et 2 Paris Les Eacuteditions de Minuit 1969 DETIENNE Marcel Comparar o incomparaacutevel Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2004 DETIENNE Marcel VERNANT Jean-Pierre Les ruses de lrsquointelligence La Megravetis des Grecs France Flammarion 1974 DUMEacuteZIL Georges Lrsquooubli de lrsquohomme et lrsquohonneur des dieux Paris Eacuteditions Gallimard 1985 DUMEacuteZIL Georges Mito y epopeya v III ndash Historias Romanas Meacutexico Fondo de Cultura econoacutemica 1996 GRANT Robert M Augustus to Constantine The emergence of Christianity in the Roman World New York Barnes amp Noble 1996 ROSE H J A Handbook of Greek Mythology London Methuen amp Co Ltd 1985 SISSA Giulia Greek Virginity Translated by Arthur Goldhammer Cambridge Harvard University Press 1990 THOMAS Rosalind Letramento e oralidade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 VEYNE Paul Acreditaram os gregos nos mitos Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

121

ANEXO A ndash Hinos Homeacutericos ndash Afrodite

V

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗ

Μοΰσά microοι έννέπε εργα πολυχρύσσυ Άφροδίτης Κύπριδος ήτε θεοΐσιν έπί γλυκύν ϊmicroερον ώρσε καί τrsquo έδαmicroάσ σ ατο φΰλα καταθνητων άνθρφπων οίωνούς τε διιπετέας καί θηρία πάντα ήγέν οσ΄ήπειροσ πολλά τρέΦει ήδ΄ οσα πόντος 5 πασιν δrsquo έργα microέmicroηλεν έυστεφάνου Κυθερείης

Τρισσάς δrsquo ού δύναται πεπιθεΐν φρένας ούδrsquo άπατησαι΄

κούρην τrsquo αίγιόχοιο ∆ιός γλαυκώπιν Άθήνην΄ ού γάρ οί εϋαδεν έργα πολυχρύσου Άφροδίτης άλλrsquo αρα οί πόλεmicroοί τε άδον και εργον ΄΄Αρηος 10 ύσmicroΐναί τε microάχαι τε καί άγλαά έργrsquo άλεγύνειν πρώτη τέκτονας ανδρας έπιχθονίους έδίδαξε ποιησαι σατίνας τε και αρmicroατα ποικίλα χαλκω η δέ τε παρδενικας άπαλόχροας έν microεγάροισιν άγλαά εργrsquoέδίδαξεν έπι φρεσι θεΐσα έκάστη 15 ούδέ ποτrsquo Άρτέmicroιδα χρυσηλάκατον κελαδεινην δάmicroναται έν φιλότητι φιλοmicromicroειδης Άφροδίτη και γαρ τη αδε τόξα καί οΰρεσι θηρας έναίρειν φόρmicroιγγες τε χοροί τε διαπρύσιοί τrsquo όλολυγαί αλσεά τε σκιόεντα δικαίων τε πτόλις άνδρων 20 ούδε microεν αίδοίη κούρη αδε εργrsquo Άφροδίτης Ίστίη ην πρώτην τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης αΰτις δrsquo όπλοτάτην βουλη ∆ιός αίγιόχοιο πότνιαν ην έmicroνωντο Ποσειδάων καί Άπόλλων΄ η δε microαγrsquo ούκ εθελεν άλλά στερεως άπέειπεν΄ 25 ωmicroοσε δέ microέγαν ο δη τετελεσmicroένος έστίν

PARA AFRODITE206

Musa fale-me dos trabalhos da aacuteurea Afrodite a Ceacutepria que incita o doce desejo nos deuses e que subjuga as raccedilas dos homens mortais e os paacutessaros que voam no ceacuteu e todas as feras e tantas quantas a terra nutre e quantas tambeacutem o

[mar 5 a todos concernem os trabalhos da bem-coroada

[Citereacuteia Mas ela natildeo pode persuadir nem seduzir trecircs

[coraccedilotildees Primeiro a filha de Zeus que segura a eacutegide a

[glaucoacutepi da Atena pois ela natildeo se compraz nos trabalhos da aacuteurea

[Afrodite mas ama as guerra e os trabalhos de Ares 10 os combates e as batalhas e preparar esplecircndidos

[trabalhos beacutelicos Primeiramente ela ensina os artesatildeos da terra a fazer carros de guerra e vaacuterios carros ornados

[com bronze ela tambeacutem ensina as jovens virgens delicadas nas

[casas os esplecircndidos trabalhos e inspira cada uma delas15 e nem a clamorosa Aacutertemis das flecha de ouro a maacutevel Afrodite subjuga no amor pois a ela compraz arcos e flechas e matar feras nos

[montes as liras e os coros e os gritos agudos penetrantes os bosques ensombreados e as cidades dos homens

[civilizados 20 e nem agrave pura virgem Heacutestia compraz os trabalhos de Afrodite a qual foi a primeira nascida de Crono

206 Os hinos a Afrodite V e VI foram traduzidos com um enfoque diferente dos Hinos Homeacutericos dedicados a Aacutertemis Atena e Heacutestia as deusas virgens e nosso objeto de estudo Nestes hinos tivemos preocupaccedilatildeo com a mensagem do rapsodo explicitando caracteriacutesticas da Deusa no que diz respeito agrave sua chegada sobre o mar aos ornamentos que as horas lhe colocaram agrave beleza que encantou os imortais ao dom cativante que a deusa Afrodite emana subjugando deuses imortais e homens mortais Poreacutem resistem a esse poder de desejo ofuscante e opotildee-se a ele um outro tipo de poder o da virgindade As descriccedilotildees nesses hinos satildeo elaboradas como uma tela pintada com detalhes lsquofiletados a ourorsquo como as joacuteias que Afrodite porta e o explendor das violetas e o doce sorriso da deusa esparrama-se em cada linha do hino Assim nossa preocupaccedilatildeo foi antes com o ldquoconteuacutedordquo do que com a esteacutetica e com a meacutetrica pois natildeo poderiacuteamos ldquodistorcerrdquo o poema trazendo-o para o contexto de nosso seacuteculo Fizemos pois uma traduccedilatildeo livre de quaisquer amarras teoacutericas Ficam ai apenas ldquoideacuteiasrdquo sobre o que o rapsodo tentou colocar dentro da cultura de seu tempo

122

άψαmicroένη κεφαλης πατρός ∆ιος αίγιόχοιο παρθένος εσσεσθαι πάντrsquo ηmicroατα δΐα θεάων τη δε πατηρ Ζεύς δωκε καλόν γέρας άντι γάmicroοιο καί τε microέσω οΐκω κατrsquo αρrsquo εζετο πΐαρ έλοΰσα 30 πασιν δrsquo έν νηοΐσι θεων τιmicroάοχός έστι καί παρα πασι βροτοΐσι θεων πρέσβειρα τέτυκται

Τάων ού δύναται πεπιθειν φρένας ούδrsquo άπατησα των δrsquo αλλων οϋ πέρ τι πεφυγmicroένον εστrsquo Άφροδίτην οϋτε θεων microακάρων οϋτε θνητων άνθρώπων 35 καί τε παρεκ Ζηνος νόον ηγαγε τερπικεραύνου οστε microέγστός τrsquo έστί microεγίστης τrsquo εmicromicroορε τιmicroης καί τε τοΰ εϋτrsquo έθέλοι πυκιναλ φρένας έξαπαφαΰσα ρηιδίως συνέmicroιξε καταθνητησι γυναιξίν Ήρης έκλελαθοΰσα κασιγνήτης άλόχου τε 40 η microέγα είδος άρίστη έν άθανάτησι θεησι κυδίστην δrsquo αρα microιν τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης microήτηρ τε ΄Ρείη Ζεύς δrsquo αφθιτα microήδεα είδώς αίδοίην αλοχον ποιήσατο κέδνrsquo είδυΐαν Τη δε καί αύτη Ζεύς γλυκύν ΐmicroερον εmicroβαλε θυmicroω 45 άνδρι καταθνητω microιχθήmicroεναι οφρα τάχιστα microηδrsquo αύτη βροτέης εύνης άποεργmicroένη εϊη καί ποτrsquo έπευξαmicroένη εϊπη microετά πασι θεοΐσιν ήδύ γελοιήσασα φιλοmicromicroειδής Άφροδίτη ως ρα θεούς συνέmicroιξε καταθνητησι γυϖαιξί 50 καί τε καταθνητούλ υίεΐς τέκον άθανάτοισιν ως τε θεάς άνέmicroιξε καταθνητοΐς άνθπώποις

[de espiacuterito astuto e tambeacutem mais jovem pela vontade de Zeus que

[segura a eacutegide a soberana que Poseidon e Apolo procuraram para o

[casamento Mas ela de forma alguma natildeo consentindo

[firmemente recusou 25 E fez um grande juramento o qual foi cumprido ateacute

[o fim tocando a cabeccedila do pai Zeus que segura a eacutegide que seraacute virgem para sempre divina entre as deusas agrave qual o pai Zeus deu grande honra em lugar de

[casamento e ela assentou-se no centro da casa e recebe a melhor

[oferenda 30 em todos os templos ela eacute honrada e entre todos os mortais ela eacute colocada como

[veneraacutevel Deusas ela natildeo pode persuadir nem iludir coraccedilotildees mas dos outros natildeo haacute nenhum que tenha escapado

[de Afrodite Nem os deuses bem aventurados nem os homens

[mortais 35 e sem que Zeus que ama o raio desse conta ela

[conduziu o que eacute o maior e tem a maior diginidade e quando lhe apraz ela ilude facilmente o coraccedilatildeo

[saacutebio dele e o coloca junto de mulheres mortais tendo ocultado de sua irmatilde e esposa Hera 40 a qual eacute a maior em beleza entre os deuses imortais a mais gloriosa eacute ela nascida do astuto Crono e de Reacuteia sua matildee que a geraram e Zeus de

[sabedoria impecaacutevel feacute-la sua doce e cuidadosa esposa

123

VI

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗΝ

Α ίδοίην χρυσοστέφανον καλήν Άφροδίτην ασαmicroαι η πασης Κύπρου κρήδεmicroνα λέλογχεν είναλίης οθι microιν Ζεφύρου microένος ύγρόν άέντος ηνεικεν κατα κΰmicroα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης άφρώ ενι microαλακω την δε χρυσάmicroπυκες Ώραι 5 δέξαντrsquo άσπασίως περί δrsquoαmicroβροτα ειmicroατα εσσαν κρατί δrsquo έπrsquo άθανάτω στεφάνην εϋτυκτοϖ εθηκαν καλήν χρυσείην έν δε τρητοΐσι λοβοΐσιν ανθεmicrorsquo όρειχάλκου χρσοΐό τε τιmicroήεντος δειρη δrsquo άmicroφrsquo άπαλη καί στήθεσιν άργυφέοισιν 10 ορmicroοισι χρυσέοισιν έκόσmicroεον οίσι περ αύταί Ώραι κοσmicroείσθην χρυσάmicroπυκες όππότrsquo ϊοιεν ές χορόν ιmicroερόεντα θεων καί δώmicroατα πατρός αύτάρ έπειδη πάντα περί χροΐ κόσmicroον εθηκαν ηγον ές άθανάτους οΐ δrsquo ήσπάζοντο ίδόντεσ 15 χερσί τrsquo έδεξιόωντο καί ήρήσαντο εκαστος είναι κουριδίην άλοχον καί οϊκαδrsquo αγεσθαι είδος θαυmicroάζοντες ίοστεφάνου Κυθερείης

Χαΐρrsquo έλικοβλέφαρε γλυκυmicroείλιχε δος δrsquo έν άγωνι

νίκην τωδε φέρεσθαι έmicroην δrsquo εντυνον άοιδήν 20 αύτάρ έγώ καί σεΐο καί αλλης microνήσοmicrorsquo άοιδης

PARA AFRODITE

Cantarei veneraacutevel coroada de ouro bela Afrodite 1 a qual de toda Chipre Marinha rodeada de muralhas laacute onde o uacutemido vento Zeacutefiro207 ergueu-a sobre a onda do mar barulhento na espuma suave e as Horas208 adornadas de ouro 5 receberam-na com alegria vestiram-na com [vestimentas divinas e sobre a cabeccedila imortal colocaram a bela coroa de ouro bem feita e nas orelhas furadas ornamentos de oricalco209 e de ouro precioso e em volta do pescoccedilo macio e do peito resplandecente [de brancura 10 colares de ouro os quais filetados de ouro satildeo usados pelas proacuteprias Horas quando quer elas vatildeo para a casa do pai para o coro charmoso dos deuses e depois que a vestiram conduziram-na para os imortais os quais a acolheram15 e saudaram com as matildeos e cada um suplicou para ser o esposo unido a ela210 e levaacute-la para casa admirados pela beleza da Citereacuteia coroada de violetas Salve a de olhos vivazes suavemente cativante na assembleacuteia [dos deuses Decirc-me a vitoacuteria e conduze meu canto honrado 20 E depois eu me lembrarei de ti e de outra canccedilatildeo

207 microένος tem o sentido de forccedilas da natureza como a aacutegua o fogo o vento neste caso refere-se ao vento Zeacutefiro eacute um vento do oeste daiacute ter um significado de vento agradaacutevel Zeacutefiro era personificado como filho de Eoacutelico 208 As Horas representavam as divindades das Estaccedilotildees Eram as filhas de Zeus e de Teacutemis e irmatildes das Moiras (os destinos) Agraves Horas designa-se um duplo sentido de divindade da natureza presidindo o ciclo da vegetaccedilatildeo e de divindades da ordem promovendo estabilidade Soacute tardiamente elas passaram a significar as horas do dia 209 Oricalco eacute um tipo de metal semelhante ao cobre 210 ldquounido em casamento com uma esposardquo daiacute o ldquoesposo legiacutetimordquo Esse termo envolve por extensatildeo a noccedilatildeo de laccedilos conjugais e de leito conjugal

124

X

ΕΙΣ ΑΦΡ0∆1ΤΗΝ

Κν προ γενη Κνθέρειαν αείσοmicroαι ητε βροτοΐσι microεί λιχα δώρα δί δωσιν εφ ίmicroερτω δε προσώπφ αίεί microει διάεί καί εφ ιmicroερτograveν θέεί άνθος Χαicircρε θεά Σα λαmicroicircνος ευκτιmicroένης microε δέουσα είνα λίης τε Κύπρον δός δ ίmicroερόεσσαν άοι δήν5 αύτάρ εγω καί σείο καί αλ λης microνήσοmicro άοι δης

PARA AFRODITE

Canto a Citereacuteia211 de Chipre que aos homens daacute doces dons sobre sua face desejante212 estaacute sempre o sorriso e desejaacutevel213 eacute o brilho Oh deusa dama214 da bem-feita Salamina e da Chipre marinha215 daacute o canto atraente216 5 Entatildeo me lembrarei de ti e de outro canto

211 Como se verifica ao longo das consideraccedilotildees sobre alguns pontos do aspecto metodoloacutegico o uso de palavras pleonaacutesticas em Homero ocorre na posiccedilatildeo que assumimos como um ornato decorrente do proacuteprio gecircnero eacutepico e inerente ao contexto Assim ritmicamente colocam-se lado a lado

Kuπρογενη Kuθέρειαν ou seja a Citereacuteia nascida em Chipre Como acreditava-se que Afrodite havia surgido das ondas (aphros) fecundadas pelo secircmen de Urano

quando foi castrado por seu filho Cronos ela a Afrogeneacuteia nascida da espuma sai do mar em uma praia na ilha de Chipre 212 Encontram-se nos versos 2 3 e 5 do original grego respectivamente as palavras Ίmicroερτώ ίmicroερτόν ίmicroερόεσσαν nos versos indicados 213 Assim a repeticcedilatildeo na traduccedilatildeo procurou manter o sentido original Embora no verso 5 tenha-se usado o adjetivo atraente ele estaacute indicado como um equivalente do verbete significando o que faz aparecer o desejo Todas essas palavras possuem uma base comum ίmicroερός e se referem ao sentido de desejo que estaacute relacionado a Afrodite e portanto ao que se chama de Amor Encontra-se uma personificaccedilatildeo de microερος na Teogonia de Hesiacuteodo verso 64 p 108 na obra de TORRANO JAA Teogonia A Origem dos Deuses HESIacuteODO Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Em GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 haacute o seguinte comentaacuterio sobre HiacutemeroO gecircnio Hiacutemero eacute a personificaccedilatildeo do Desejo amoroso Acompanha Eros no cortejo de Afrodite e no cimo do Olimpo vive ao lado das Caacuteritas e das Musas Eacute uma simples abstraccedilatildeo e natildeo figura em nenhuma lenda p 229 Embora Grimal coloque como sendo uma abstraccedilatildeo acreditamos que ele natildeo esteja se referindo ao desejo como forma de amor platocircnico Na eacutepoca arcaica ίmicroερος em Homero e em Hesiacuteodo estaacute relacionado ao amor libidinoso o que provoca a atraccedilatildeo 214 O texto grego traz a palavra microεδέουσα que significa a que reina sobre Esse termo junto com a palavra Σαλαmicroίνος refere-se a Afrodite (verificar BAILLY Anatole Dictionnaire Grec FranccedilaisParis Hachette2000 p1236) Para a traduccedilatildeo pensou-se no aspecto semacircntico rainha ou dama da cidade e optou-se por motivo de versificaccedilatildeo pela palavra dama 215 A palavra referente a Chipre eacute είναλίης que significa marinha cercada de mar Optou-se pela traduccedilatildeo marinha por ter um significado abrangente daquilo que se relaciona com o mar e por uma questatildeo econocircmica sabendo-se que Chipre eacute uma ilha estaacute cercada de mar 216 Ver notas 212 e 213 acima

125

ANEXO B ndash Hinos Homeacuterico ndash Deusas virgens

IX

ΕΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ

Αρτεmicroιν υmicroνεί Μούσα κασιγνήτην Έκάτοιο παρθενον ιοχεα ιραν όmicroότρο φον Άπόλλωνος ηθιππονς αρσασα βαθυσχοίνοιο Μέ λητος ρίmicro φα δια Σmicroύρνης πα γχρυσεον άρmicroα διώκει έ ς Κ λάρον άmicro πε λόεσσαν otilde θ άργυρότοξος Απόλλων ήσται microιmicroνάζων έκατηβoacute λον ίοχέαιραν 6

Καigrave συ microεν ουτω χαicircρε θεαί θ άmicroα πάσαι άοι δη αύταρ έγώ σε πρώτα και έκ σέθεν άρχοmicro άείδειν σευ δ έγω άρ ξάmicroενο ς microεταβησοmicroαι α λλον έ ς ΰmicroνον

PARA AacuteRTEMIS Musa cante Aacutertemis irmatilde do Atirador217 virgem218

que lanccedila flechas criada com Apolo daacute aacutegua aos cavalos de Meles junto aos juncos219 veloz por Esmirna guia a charrete220

dourada a Klaros com vinhas221 onde o arqueiro Apolo estaacute agrave espera da deusa que atira flechas222 6 E assim salve tu e todas as deusas no canto Entatildeo primeiro a ti e de ti passo a cantar tendo comeccedilado de ti vou a outro hino

217 Εκάτοιο Εκάτος eacute um epiacuteteto de Apolo e eacute inclusive no texto grego grafado com maiuacutescula tambeacutem pois eacute uma outra forma de nomeaacute-lo Significa o que atira ao longe 218 παρθένον παρθένος Em BAILLY (idib p 1489) I vierge particul 1 jeune fille 2 fille non marrieacutee 3jeune femme non marrieacutee 4 qui est comme une jeune fille vierge pur intact II La statue drsquoAthegravena agrave Athegravenes Neste caso παρθένον refer-se a Aacutertemis 219 A palavra βαθυσχοίνοιο significa um lugar coberto de juncos caniccedilos por isso em geral estaacute situado perto de lugares uacutemidos e alagados podendo estar pero de rios ou do mar BAILLY (id Ib p 2041) apresenta como ldquoaux joncs eacutepais aux hautes herbesrdquo 220 άρmicroα tem o sentido de attelage drsquoougrave char char de guerre ( BAILLY ib p 270) Portanto indica que Aacutertemis conduzia seu carro sua carruage ou sua charrete que era toda dourada (παγχρύσεον) Escolhemos a traduccedilatildeo charrete por nos parecer mais adequada ao contexto 221 Αmicroπελόεις όεσσα όεο em BAILLY (ib p 102) couvert de vignes Isso nos daacute uma indicaccedilatildeo de uma regiatildeo agriacutecola em que predominava a cultura de vinhas 222 Εκατηβολον significa o que atira flechas ao longe e eacute um epiacuteteto usado tanto para Apolo como para Aacutertemis Nesse caso como vem junto da palavra ιοχέαιραν refere-se a Aacutertemis e eacute pleonaacutestico pois significa a deusa que atira flechas e eacute usado com o verbo citado que tambeacutem significa atirar flechas ao longe mas estaacute se referindo agrave deusa A palavra ιοχέαιραν tambeacutem aparece no verso 2 relacionada a Aacutertemis ao lado de outro atributo virgem Eacute uma forma recorrente em Homero

126

XXVII

ΣΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ Αρτεmicroιν άεί δω χρυση λάκατον κε λα δεινήν παρθένον αiacute δοίην έ λα φηβό λον ίοχέαιραν αύτοκασιγνήτην χρνσαόρου Άπό λλωνος η κατ δρη σκιoacuteεντα καigrave άκριας ηνεmicroοέσσας άγρη τερποmicroενη παγχρύσεα τόξα τιταίνει 5 πέmicroπουσα στονόεντα βε ληmiddot τροmicroέει δε κάρηνα ύψη λων ορέων ίάχει δ επι δάσκιος υ λη δεινograveν υπograve κ λαγγης θηρων φρίσσει δέ τε ηαicircα πόντος τ ιχθυόεις ή δ α λκιmicroον ήτορ έχουσα πάντη επιστρέ φεται θηρων ό λεκουσα γενέθ λην 10 αύταρ επην τερ φθη θηροσκόπος ίοχέαιρα εύ φρήνη δε νόον χα λάσασ εύκαmicroπέα τόξα έρχεται ες microεηα δωmicroα κασνγνητοια φί λοιο Φοίβου Από λλωνος ∆ε λφων ες πίονα δηmicroον Μουσων και Χαρίτων κα λograveν χορograveν άρτυνέουσα 15 ένθα κατακρεmicroάσασα πα λίντονα τόξα καigrave igraveούς ηγεicircται χαρίεντα περigrave χροigrave κόσmicroον έχουσα εξάρχουσα χορούς αicirc δ άmicroβροσίην οπ ίεicircσαι ύmicroνευσιν Λητω κα λλίσ φυρον ως τέκε παicircδας αθανάτων βου λη τε καigrave εργmicroασιν εξοχ αρίστους 20 Χαίρετε τέκνα ∆ιograveς καigrave Λητους ηυκόmicroοιο αύταρ έηων ύmicroέων τε καigrave α λλης microνήσοmicro άοι δης

PARA AacuteRTEMIS Canto Aacutertemis das flechas de ouro a rumorosa223 digna224 virgem que caccedila225 os cervos e lanccedila o arco a proacutepria irmatilde de Apolo da espada dourada das montanhas sombrias e dos picos ventosos alegrando-se na caccedila estende o arco aacuteureo226 5 enviando flechas atrozes227 Tremem os cumes dos montes altos e a floresta densa ecoa forte com o grito das feras abala a terra e o mar com peixes Mas ela coraccedilatildeo forte228 volta-se a todos os lados destruindo feras229 10 Depois a caccediladora230 e arqueira231 se alegra satizfaz a mente e afrouxa o arco flexiacutevel e vai para a grande casa do irmatildeo amado Febo232 Apolo para a rica terra de Delfos para alinhar a danccedila233 das Musas e Graccedilas 15 Entatildeo pendura para traacutes o arco e as flechas conduz a danccedila e a organiza graciosamente234 e dirige os coros Elas lanccedilam a voz divina cantam como Leto de belo peacute pariu235 os melhores filhos (entre os imortais)236 na vontade e na accedilatildeo 20 Oh filhos de Zeus e Leto de fartos cabelos Eu237 me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

223 A palavra κελαδεινην significa ldquobarulhenta sonora rumorosardquo referindo-se a Aacutertemis devido agrave caccedila 224 De acordo com BAILLY ib p41 aleacutem de veneraacutevel digna de respeito αιδοίην tambeacutem significa envergonhada o que faz pensar em uma caracteriacutestica relacionada agrave virgindade 225 ελαφηβόλον (acusativo) tambeacutem eacute um epiacuteteto de Aacutertemis significando ldquoperseguidora de cervosrdquo Na falta de um termo equivalente em portuguecircs traduzimos por ldquoque caccedila os cervosrdquo usando uma oraccedilatildeo adjetiva para qualificar Aacutertemis 226 Arco aacuteureo ou arco dourado literalmente encontramos em grego παγχρυσεα ou seja com a conotaccedilatildeo de que o arco eacute ldquotodo douradordquo 227 A palavra grega στονόεντα eacute usada com o sentido de ldquoque faz gemer funestasrdquo daiacute termos escolhido em portuguecircs o termos ldquoatrozesrdquo 228 No original grego encontra-se έχουσα que significa ldquotendordquo ou ldquoaquelea que temrdquo (particiacutepio presente do verbo έχω)Usou-se um aposto explicativo com o mesmo sentido para fins de metrificaccedilatildeo 229 O verso 10 se traduzido literalmente fica ldquo volta-se para todos os lados destruindo a raccedila dos animais ferozesrdquo Na traduccedilatildeo eliminou-se a palavra γενέθλην isto eacute raccedila famiacutelia Achamos que a palavra ldquoferasrdquo em portuguecircs jaacute tem uma abrangecircncia de substantivo no plural referindo-se agrave espeacutecie como um todo 230 έηροσκόπος significa ldquoaquela que espreita os animaisrdquo Traduzimos pois com o sentido de ldquoaquela que caccedila os animaisrdquo portanto ldquoa caccediladorardquo 231 ίοχέαιρα epiacuteyeyo de Aacutertemis ldquoa que lanccedila flechasrdquo ou seja ldquoa arqueirardquo 232 Φοίβον traduzido geralmente como Febo que significa ldquoo brilhanterdquo e eacute um epiacuteteto de Apolo Funciona muitas vezes como nome proacuteprio (Ver GRIMAL ib p 167) 233 Quando o autor se refere agrave danccedila das Musas e das Graccedilas ele especifica καλόν χορόν o que quer dizer ldquobela danccedilardquo Por economia meacutetrica suprimimos a palavra ldquobelardquo pressupondo que a danccedila das Musas e das Graccedilas jaacute confere agrave danccedila um sentido de beleza 234 Em uma traduccedilatildeo literal o verso 17 apresenta-se como ldquoela conduziu proporcionando a ordem graciosa em torno da danccedilardquo Traduzimos ldquodirigir a ordem com graccedilardquo como ldquoorganizar com graccedilardquo 235 No texto grego estaacute especificado que Leto ldquopariu filhosrdquo Encontra-se a forma τέκε παίδας Como no verso seguinte (v20) encontra-se a forma αρίστους referindo-se ldquoaos melhore os mais excelentesrdquo transferiu-se a palavra ldquofilhosrdquo (παίδας) do verso 19 para o verso 20 236 O superlativo implica sempre que haacute uma comparaccedilatildeo Por razotildees meacutetricas colocou-se entre parecircnteses significando que natildeo faz parte da estrutura do verso 237 έγων achamos interessante manter na traduccedilatildeo o nominativo eacutepico ldquoeurdquo

127

XI

ΣΙΣ ΑΘΗΝΑΝ Παλλάδ Aθηναίην ερυσίπτολιν αρχomicro αεί δειν δεινήν η συν Aρηι microέλει πολεmicroήια έργα περθόmicroεναί τε πόληες αυτή τε πτόλεmicroοί τε και τ ερρνσατο λαograveν igraveόντα τε νισσόmicroενόν τε Xαicirc ρε θεά δός δ άmicromicroι τύχην ευδαιmicroονίην τε 5

PARA ATENA

A Palas Atena guardiatilde da polis238 canto terriacutevel239 que com Ares faz atos guerreiros de saques das polis de urros e de batalhas e salva as pessoas que na guerra combatem240 Oh deusa conceda-nos uma sorte boa 5

238 O termo grego ερυσίπτολιν eacute usado como epiacuteteto a Atena significando a protetora da cidade a guardiatilde 239 A palavra δεινήν nom δεινός quando se refere a Atena como eacute citado em BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilaised Hachette 2000 p 439 significa fort puissantterrible Daiacute o termo ser traduzido em portuguecircs em alguns contextos como terriacutevel a que tem poder e eacute extraordinaacuteria pois eacute uma divindade que possui tambeacutem um grito de guerra terriacutevel como se encontra no referido verbete e como confirma o verso 3 do Hino em questatildeo Em inglecircs equivalente a terriacutevel poderosa a traduccedilatildeo usada por EVELYN-WHITE HG in Hesiod The Homeric Hymns and Homerica London Loeb Classical Library 1982 eacute dread 240 ίόντα ( verbo είmicroί ) juntamente com a palvra λαόν significa ir agrave guerra e participar da luta Assim coloca BAILLY (id ib) agrave p 593 srsquoavancer au milieu de lrsquoarmeacutee ou de la foule (des guerriers)

128

XXVIII ΕΙΣ ΑΘΗΝΑΝ

Παλλάδ Aθηναίην κυδρην θβόν άρχοmicro άεί δειν γλανκώπιν πολυmicroητ ιν άmicroβίλίχον ητορ εχρυσαν παρθενον αίδοίην ερνσί πτολιν άλκηεσσαν Tριτογενή την αντος εγείνατο microητίετα Ζενς σεmicroνής εκ κε φαλής πολεmicroήια τενχε εχονσαν 5 χρύσεα παmicro φανοωντα σέβας δ εχε πάνταςορώντας αθανάτουςmiddot ή δε πρόσθεν ∆iograveς αίγιόχοιο εσσνmicroένως ώρουσεν ά π άθανάτοιο καρήνου σεiacuteσασ ograveξυν άκονταmiddot microέγας δ ελελiacuteζετ Όλυmicro πος δεινograveν υ πograve βρίmicroης γλανκώ πι δος άmicro φigrave δε γαicircα 10 σmicroερδαλέον iάχησεν εκινηθη δ άρα πόντος κύmicroασι πορ φυρέοισι κνκώmicroενος εκχντο δ άλmicroη εξα πίνης στήσεν δ Y περίονος άγλαograveς υιος iacuteππους ωκύποδας δηρograveν χρόνον είσότε κούρη εΐλετ απ αθανάτων ωmicroων θεοεiacuteκελα τεύχη 15 Παλλagraveς Άθηναίηγήθησε δε microητίετα Ζεύς Καigrave συ microεν οΰτω χαicircρε ∆iograveς τέκος αίηιoacuteχοιο αυτάρ εγώ καigrave σεicircο καigrave άλλης microνήσοmicro άοιδής

A ATENA

A Palas Atena canto a gloriosa241 deusa242 glaucoacutepida243 astuta com coraccedilatildeo indoacutecil virgem244 digna guardiatilde das cidades ousada Tritogecircnia245 o proacuteprio Zeus saacutebio a fez nascer de sua cabeccedila veneraacutevel portando armas246 5 aacuteureas toda brilhantes que impotildeem respeito247 aos imortais E ela frente a Zeus porta-eacutegide com iacutempeto saltou da cabeccedila imortal agitando a lanccedila aguda Ecoai Olimpo com espanto agrave forccedila da glaucoacutepida E a terra 10 gritou assustada O oceano se abalou agitou as ondas negras248 A aacutegua249 transbordou suacutebito O brilhante filho de Hipeacuterion250 parou os cavalos de peacutes aacutegeis ateacute que251 a virgem252 Palas Atena253 tirasse dos imortais 15 ombros as armas E Zeus saacutebio se alegrou Assim salve tu filha de Zeus que tem a eacutegide Depois me lembrarei de ti e de outro canto

241 O termo κυδρην eacute geralmente usado quando se refere a certas deusas como Atena e Leto Tem o sentido de ldquogloriosa ilustrerdquo ( A esse respeito ver BAILLY p1147) 242 A palavra θεόν estaacute no acusativo e possui a mesma forma para o masculino e para o femininoO que identifica o uso eacute o contexto ou o artigo definido Haacute um importante texto escrito por LORAUX Nicole em que ela comente sobre a questatildeo deusdeusa apontando para a generalidade indicando apenas um ser divino Eacute pois um problema de gecircnero como diz Loraux (In PANTEL Pauline S histoacuteria das Mulheres A Antiguidade Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 243 Depois de apelar Palas Atena o autor se remete a ela nomeando-a atraveacutes de uma seacuterie de epiacutetetos ldquoglaucoacutepida astuta virgem guardiatilde das cidade corajosa Tritogecircniardquo 244 O epiacuteteto παρθένον vem enfatizado pelo adjetivo αίδοίην o que como coloca Loraux em seu artigo supra-citado faz remeter agrave ideacuteia do divino do veneraacutevel em relaccedilatildeo agrave castidade de deuses como caracteriacutestica dos imortais 245 relaccedilatildeo ao epiacuteteto Τριτογενή haacute diversas interpretaccedilotildees quanto ao significado Uma das hipoacuteteses do epiacuteteto eacute de que ela nascera perto do lago Tritocircnis Poreacutem uma outra possibilidade eacute de se remeter ao termo eoacutelico que significaria ldquoa verdadeira filha de Zeusrdquo (BAILLY p 1964) 246 Atena nasceu carregando armas Como explicita o texto grego πολεmicroήια τεύχέ ou seja ldquoarmas beacutelicasrdquo 247 O que o autor diz literalmente nos versos 5 6 e 7 eacute que ldquoAtena estava portando armas de guerra douradas e toda brilhantes que impotildeem respeito quando os deuses (imortais) as vecircemrdquo 248 Traduzimos a palavra πορφυρέοωσι por ldquonegrasrdquo Literalmente essa palavra significa ldquoescuras da cor das sombrasrdquo 249 A palavra άλmicroη pode significar tanto a aacutegua do mar como a espuma das aacuteguas do mar Na ediccedilatildeo do Loeb Classical Library foi traduzida por foam (espuma) 250 ldquoO brilhante filho de Hipeacuterionrdquo significa pois o ldquoSolrdquo (Heacutelio) 251 ldquoAteacute querdquo indica um termo relacionado ao tempo que o precede e ao qual daacute continuidade No texto grego o autor enfatiza a accedilatildeo precedente colocando δρόν χρόνο είσότε ou seja ldquode longa duraccedilatildeo ateacute querdquo 252 Aqui a palavra usada referindo-se a Atena e designando a moccedila a virgem eacute a palavra ϊούρη e natildeo αρθένον Isso encaminha para uma reflexatildeo em relaccedilatildeo agrave escolha dos vocaacutebulos 253 No original grego o termo Palas Atena estaacute no verso 16 Na traduccedilatildeo transferimo-lo para o verso 15 por motivo de coerecircncia textual

129

XXIV ΣΙΣ ΕΣΤΙΑΝ

Έστiacuteη ητε ανακτος Άπό λλωνος εκάτοιο Πυθοicirc εν ήγαθέ η ίερograveν δόmicroον άmicro φι πο λεύεις αigraveεigrave σων πλοκάmicroων ά ποίλείβεται ύγρograveν ε λαιον ερχεο τόνδ άνα οίκον εν ερχεο θυmicroograveν εχουσα συν ∆ιigrave microητιόεντί χάριν δ άmicro ο πασσον άοιδ η 5

PARA HEacuteSTIA Heacutestia que ao deus254 Apolo que atira ao longe no divino Piacuteton serve na casa sacra255 sempre das mechas256 puras cai257 o oacuteleo uacutemido vem para esta casa vem tendo um coraccedilatildeo258 com Zeus que eacute saacutebio E concede graccedila ao canto2595

254 αυακτος significa ldquomestre cheferdquo principalmente em se tratando de Apolo Junto de εκάτοιο no mesmo verso ldquoo deus que atira ao longerdquo reforccedila o epiacuteteto que se usa para designar Apolo 255 ίερόν refere-se a δόmicroον Daiacute significar casa sagrada forte poderosa Usamos a traduccedilatildeo sacra por razotildees meacutetricas sem qualquer conotaccedilatildeo com que a palavra santa possa vir a ter dentro de uma visatildeo cristatilde 256 A palavra πλοκάmicroων quer dizer lsquomechasrsquo referindo-se a lsquomechas de cabelorsquo 257 O verbo άπολείβεται significa ldquodeixar cair gota a gotardquo quando se faz uma libaccedilatildeo Assim o verso 3 significa exatamente ldquosempre das mechas de cabelo intactas deixa cair gota a gota o oacuteleo uacutemidordquo 258 O vocaacutebulo θυmicroόν em uma significaccedilatildeo bem ampla ldquocoraccedilatildeo mente princiacutepio de vidardquo enfim relaciona-se ao que diz respeito agrave inteligecircncia e agrave vontade ao poder e ao desejo 259 Nesse verso (v 5) haacute tambeacutem ao palavra αmicroα que omitimos na traduccedilatildeo Essa palavra daacute a ideacuteia de simultaneidade Seria como se dissesse ldquoE ao mesmo tempo concede graccedila ao cantordquo Nesse caso estaria se referindo agraves accedilotildeesrsquo vir para casa unida a Zeus e dar graccedila ao cantorsquo

130

XXIX ΕΙΣ ΕΧΤΙΑΝ

Έστίη ή πάντων εν δώmicroασιν ύψηλοicircσιν αθανάτων τε θέων χαmicroαigrave ερχοmicroένων τ άνθρώττων εδρην άίδιον έλαχες πρεσβηίδα τιmicroήν καλograveν έχουσα γέρας καigrave τίmicroιον ου γαρ άτερ σου ειλαπίναι θνητοicircσιν iacuteν ου πρώτη πυmicroάτη τε 5 Έιστίη αρχόmicroενος σπενδει microελιηδέα οίνον καigrave συ microοι Άργει φόντα ∆ιος καigrave Μαιάδος υiέ αγγελε των microακάρων χρυσoacuteρραπι δωτορ εάων λαος ων επάρηγε συν αίδοίη τε φίλη τε ναίετε δώmicroατα καλά φίλα φρεσigraveν άλληλοισιν εiacuteδότες άmicro φότεροι γαρ επiχθονίων ανθρώπων 11 εiacuteδότες ερηmicroατα καλα νόω θ εσπεσθε καigrave ήβη Χαicircρε Κρόνου θύηατερ συ τε καigrave χρυσόρραπiς Έρmicroής αύτάρ εγών υmicroεων τε καigrave αλλης microνήσοmicro άοιδής

PARA HEacuteSTIA

Heacutestia que nas casas elevadas de todos 1 de deuses imortais e homens que vecircm agrave Terra260 recebeste um lugar eterno e honra digna tens bom privileacutegio e estima261 Pois sem ti natildeo haacute festim262 para os mortais se em primeiro e em uacuteltimo 5 quem vem natildeo263 oferece264 a Heacutestia o vinho doce Tu matador de Argo265 filho de Zeus e Maia266 nuacutencio dos deuses267 com bastatildeo268 doador de bens sendo do povo269 ajude-o com a nobre e querida Habitem a gloriosa casa cara a ambos270 10 que conheceis bem Pois ambos entre os terrestres sabeis as obras nobres da271 mente e da forccedila Oh filha de Cronos e tu Hermes do bastatildeo Pois me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

260 Eacute interessante perceber a construccedilatildeo desse verso O autor estabelece o contraste entre ldquodeuses imortaisrdquo ( άθανάτων θεών ) e os ldquohomens mortaisrdquo referindo-se a eles como ldquoos homens que vecircm agrave Terrardquo ( χαmicroαί έρχοmicroένων άνθρώπων ) mostrando a ideacuteia de transitoriedade no ato de vir e natildeo de qualificaacute-los como terrestres 261 A palavra grega τίmicroιον significa que a deusa tinha uma consideraccedilatildeo uma estima puacuteblica De fato Heacutestia se fazia representar em todas as casas na ldquolareira sagradardquo 262 ειλιπίναι significa banquetear celebrar um festim apoacutes um sacrifiacutecio Para fins de traduccedilatildeo usamos a expressatildeo ldquohaver um festimrdquo que corresponde a ldquobanquetearrdquo 263 A negativa ού (natildeo) encontra-se no verso 5 antes de πρώτη Poreacutem por motivo sintaacutetico transferiu-se a negativa para o verso 6 antes do verbo 264 O verbo σπενδει significa ldquooferecer fazendo uma libaccedilatildeordquo Portanto em um ritual a Heacutestia devia-se fazer em primeiro lugar e em uacuteltimo uma libaccedilatildeo de vinho agrave deusa Se isso natildeo fosse feito a pessoa natildeo podia participar da oferenda de sacrifiacutecio 265 Segundo o dicionaacuterio BAILLY p 259 o epiacuteteto ργειφόντα refere-se a Hermes ldquoo matador de Argosrdquo e eacute de origem desconhecida Haacute uma lenda que atribui a Hermes o fato de ter matado Argo (conhecido como Argos na forma latinizada) possuidor de uma forccedila espantosa e que tinha soacute um olho Em outras lendas ele possui uma multiplicidade de olhos Hermes matou Argo a pedido de Zeus segundo a lenda Haacute tambeacutem variaccedilotildees sobre como ele o matou 266 Natildeo se traduziram todas as palavras do verso 7 Foram suprimidos a conjunccedilatildeo e (καί ) iniciando o verso bem como a expressatildeo para mim (microοι) o que jaacute implica uma alteraccedilatildeo morfoloacutegica sintaacutetica e cultural na interpretaccedilatildeo de nossa traduccedilatildeo 267 No texto grego encontra-se a palavra microακάρων que significa honradosdaiacute sagrados Por isso refer-se aos deuses em oposiccedilatildeo aos homens 268 A palavra χρυσόρραπι tem o sentido de ldquobastatildeo de ourordquo e eacute usado referindo-se ao bastatildeo que Hermes carregava Diz a lenda que Hermes inventou a flauta e Apolo ficou tatildeo encantado com o instrumento musical que ofereceu seu cajado de ouro a Hermes em troca da flauta Daiacute para a frente Herme sempre carregou o bastatildeo de ouro 269 Decidimos traduzir λαος ών como lsquosendo do povordquo isto eacute junto com Heacutestia faziam parte de todas as casas e da cidade e eacute como se fizessem parte desse contexto humano Vimos outra traduccedilotildees como a de uma traduccedilatildeo de Vernant para o inglecircs em que se encontra ldquobe goodrdquo e Evelyn-White da Loeb Classical Library traduz por ldquobe favourablerdquo No entanto em nosso entendimento o verbo ών estaacute no particiacutepio presente daiacute ldquosendordquo Tambeacutem natildeo encontramos palavra que pudesse significar ou ldquobomrdquo ou ldquofavoraacutevelrdquo Tem-se pois nossa interpretaccedilatildeo na traduccedilatildeo desse verso 270 A palavra φρεσίν coraccedilotildees estaacute relacionada a ambos αλλήλοιειν referindo-se a Heacutestia e a Hermes Portanto a ldquoambos unidos no coraccedilatildeo na amizaderdquo 271 Em grego eacute usado o dativo nas palavras mante νόω e forccedila ήβη significando que eles Heacutestia e Hermes conhecem os trabalhos dos homens atraveacutes da inteligecircncia deles e atraveacutes da forccedila deles Eacute pois um instrumental Portanto a traduccedilatildeo para o portuguecircs natildeo implica que em grego eacute usado o caso genitivo

Page 3: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao

iii

ano 2009

v

Inspirada em Afrodite

dedico esterdquo ergonrdquo agrave minha genealogia

a meus pais Nair e Alfredo

que me colocaram na cena do mundo

e a meus filhos Fabiana e Marcelo

descendentes da linhagem familiar

vii

AGRADECIMENTOS

ldquoO meu gesto de agradecimento envolve mais do que os nomes citados revela os abraccedilos que me ampararamrdquo

Agradeccedilo

Ao professor Dr Joaquim Brasil Fontes meu orientador pela confianccedila que depositou em meu trabalho e pela partilha de seu conhecimento

Aos professores Drs Norma Sandra de Almeida Ferreira Siacutelvio Donizetti Gallo Maria

Inecircs Ghillardi-Lucena Ana Helena Cizotto Belline que contribuiacuteram com sua presenccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo da Banca e na leitura do texto

Agraves professoras Dras Elisa Angotti Kossovitch Liacutelian Martins da Silva e Letiacutecia Canedo

pelo incentivo e participaccedilatildeo na minha pesquisa Ao Dr Mauro Bilharinho Naves por seu apoio incansaacutevel e pelos diaacutelogos

esclarecedores sobre a mitologia grega Agrave amiga professora Linda Bishop da Silveira por suas leituras atentas do texto e das

traduccedilotildees em inglecircs Ao Pe Paulinho (Paulo Roberto Rodrigues) pelas suas orientaccedilotildees fundamentais no

campo da teologia A Michelle Risso por sua paciecircncia e alegria nos nossos ldquoencontros em gregordquo A ldquoFlavinha Felizrdquo por suas constantes formataccedilotildees no texto que eu sempre

ldquodesformatavardquo Aos funcionaacuterios da Secretaria Nadir Rita Antonio Carlos Gisleine Cleo pelo

atendimento soliacutecito e pelas indicaccedilotildees constantes e ao Ademiacutelson da Informaacutetica pela digitaccedilatildeo perfeita dos textos em grego

Ao grupo de pesquisa do GEPEDISC que me acolheu com simpatia Aos colegas de curso que direta ou indiretamente participaram do meu percurso

acadecircmico

ix

RESUMO

O objetivo deste estudo as deusas gregas virgens Aacutertemis Atena e Heacutestia eacute demarcar a

existecircncia e a significaccedilatildeo especial dessas deusas no mundo arcaico grego frente agrave posiccedilatildeo

ocupada por Afrodite como representaccedilatildeo do desejo O sistema miacutetico prevecirc a questatildeo do desejo

articulada ao lsquopoderrsquo conforme evidenciam as reflexotildees feitas a partir do corpus selecionado as

obras de Homero de Hesiacuteodo e os Hinos Homeacutericos referentes agraves deusas virgens e a Afrodite A

metodologia que orienta esta pesquisa segue uma linha antropoloacutegica comparativa incluindo

autores como Geertz e Detienne com enfoque no uso e na significaccedilatildeo da linguagem da

produccedilatildeo escrita dos rapsodos gregos O conceito de virgindade eacute direcionado pelo conceito de

desejo e parece necessaacuterio que se considerem as propriedades e os atributos de Afrodite para

definir as deusas gregas virgens que fruem ldquode um outro modo de desejo e de poderrdquo Esse

aspecto nos faz refletir sobre uma sociedade patriarcal e as formas de independecircncia feminina

como instacircncia de compromisso soacutecio-poliacutetico bem como sobre a manutenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

herdada da grande matildee (Magna Mater) e das Amazonas Uma possiacutevel indicaccedilatildeo a partir desses

dados eacute que o Cristianismo procurou dar continuidade a esse aspecto de gecircnero que promove a

civilizaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo da sociedade atraveacutes da figura da lsquomadrersquo como elemento de

significaccedilatildeo cultural

Palavras-chave Deusas gregas virgens Afrodite desejo poder sociedade patriarcal

civilizaccedilatildeo

xi

ABSTRACT

The aim of this study which focuses on the Virgin Greek goddesses Artemis Athene and

Hestia is to stress the existence and the special meaning of those goddesses in the archaic Greek

world compared with Aphroditersquos position as a representative of lsquodesirersquo The mythical system

comprises the matter of desire linked to the meaning of ldquopowerrdquo according to the evidence of

reflections made from the corpus selected Homerrsquos and Hesiodrsquos works and the Homeric Hymns

referring to the virgin goddesses and Aphrodite The methodology that orients this paper follows

authors such as Geertz and Detienne focusing on the use and meaning of the language in the

written production of the Greek rapsodes The concept of virginity is directed by the concept of

desire and it is necessary to consider Aphroditersquos properties and attributes to define the virgin

Greek goddesses who have another form of desire and power That aspect brings up

considerations on a patriarchal society and ways of feminine independence as a means of social-

political commitment as well as on the maintenance of a tradition inherited from the Great

Mother and the Amazons One possible direction arising from the above facts is that Christianity

tried to give sequence to this aspect of gender which promotes civilization and the organization

of society by way of the lsquomater figurersquo as an element of cultural significance

Key words Virgin Greek goddesses Aphrodite desire power patriarchal society civilization

xiii

SUMAacuteRIO

Dedicatoacuteria v

Agradecimentos vii

Resumo ix

Abstract xi

1- Introduccedilatildeo 1 2 - Encruzando Aspectos do Cosmo Natureza Deuses e Homens 5

21 - Fragmentos do Uno 5 22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees 10

3 - A questatildeo metodoloacutegica um olhar sobre a pesquisa bibliograacutefica 17 4 - O que eacute traduzir lsquoHomerorsquo e os rapsodos gregos Tentativas e riscos 43 5 - Que deusas satildeo essas 49

51 - Afrodite e a representaccedilatildeo do desejo 49 52 - Aacutertemis a liberdade e a virgindade 64 53 - Atena a deusa virgem da sabedoria e da guerra 71 54 - Heacutestia e a castidade 76

6 - A questatildeo da virgindade e as deusas virgens 85

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo 85 62 - O caraacuteter da virgindade no Cristianismo 96

7 - Conclusatildeo Ou indicaccedilatildeo de suposiccedilotildees 105 Referecircncias 115 Bibliografia 119 Anexos 121

Anexo A - Hinos Homeacutericos a Afrodite 121 Anexo B - Hinos Homeacutericos a Deusas virgens 125

1

1 ndash INTRODUCcedilAtildeO

ldquoOutros jaacute passaram por esta Senda por isso a novidade de tudo o que eu digo de novo estaacute na forccedila da repeticcedilatildeordquo1

Na condiccedilatildeo de professora de liacutenguas estamos sempre investigando o uso das palavras no

discurso como elas se articulam como elas se estabelecem como elas se traduzem como elas

ldquofingemrdquo ser contidas em supostas definiccedilotildees enfim estamos sempre atravessando o corredor

estreito das significaccedilotildees e das compreensotildees

Como se isso natildeo bastasse as palavras nos levam aos seus percursos ao longo dos

tempos agraves vezes revelando e agraves vezes ocultando estaacutegios de transformaccedilotildees por que passaram

Assim a palavra por si soacute jaacute nos coloca diante de uma rede que envolve sua histoacuteria sua

etimologia sua categoria sua funccedilatildeo E foi a palavra com todo esse contexto maacutegico que nos

cativou

Comeccedilamos perseguindo o conceito de virgindade na Greacutecia de Homero e de Hesiacuteodo e

nos deparamos com um entrelaccedilamento de fatos de conceitos de outras palavras de traduccedilotildees

de um mundo que todas as vezes que pensaacutevamos alcanccedilaacute-lo distanciava-se mais e fazia com

que tambeacutem a nossa pesquisa virasse uma lenda miacutetica em que os deuses superavam em muito o

trabalho humano que empreendiacuteamos

Mas nada ocorre por acaso A nossa iniciativa de trilhar a palavra nesse mundo numinoso

teve uma ponta de lembranccedila e de afeto no encontro com um grande mestre e amigo de tempos

tambeacutem passados Fizemos nosso o seu desafio e desta forma nasceu o nosso objeto de estudo

Fomos tomados pela curiosidade e pelo interesse quando o scholar o helenista professor Dr

Joaquim Brasil Fontes instigou-nos a pensar nas deusas gregas virgens carregadas de valores

de funccedilotildees de lendas que ainda fazem parte de nosso cotidiano e cujas raiacutezes estatildeo atreladas a

um tempo do qual natildeo se desvinculam apesar das transformaccedilotildees e dos ajustes por que vatildeo se

atualizando amoldando-se a novos perfis a novos modus vivendi transpondo espaccedilos

geograacuteficos e culturais atravessando filosofias e marcando a histoacuteria

1 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p 9

2

Tentamos diante do impacto da tarefa pensar como nesse grande eixo assinalado de

homens mortais a presenccedila de Deusdeuses afeta e determina a dimensatildeo humana Pensamos

tambeacutem na nossa experiecircncia de vida marcada por cultos e rituais apesar de todo o progresso da

ciecircncia e da tecnologia

Nossas salas de aulas - tambeacutem elas - se revestem de ritos como cenaacuterio para o estudo de

hipoacuteteses de buscas de discussotildees de valores de sustento do que se acredita ter a forccedila da

verdade E o que seria o entendimento de verdade em um momento teria feiccedilotildees e propostas

diferentes em outras culturas em outros tempos o que mostra que o estatuto de uma suposta

verdade se transfigura e tem um movimento flexiacutevel contiacutenuo propondo novas direccedilotildees e

determinando novos olhares

Nessa atmosfera de consideraccedilotildees foi colocada a questatildeo que encaminhou nossa busca

por princiacutepios que se prendem ao mundo grego - que tem sido objeto de tanto estudo - do qual

herdamos concepccedilotildees de vida e de arte de misteacuterio e de sagrado de sobrenatural e de mundano

se possiacutevel eacute destacar e separar esses princiacutepios norteadores do humano Por que teriam as deusas

gregas Heacutestia Palas Atena e Aacutertemis resistido ao casamento O que as teria movido para que se

mantivessem virgens Como seria entendida a eacutegide da virgindade naquela sociedade Que

mecanismo levaria a compreender os poderes dessas entidades marcadas por uma caracteriacutestica

que se opunha agraves grandes narrativas de relacionamentos de filhos gerados com uns e outros

deuses de traiccedilotildees de intrigas que envolviam deuses e deusas no grande cenaacuterio do mundo dos

homens gregos O que fundamenta a traduccedilatildeo e a compreensatildeo da palavra virgem na passagem

da liacutengua grega para a liacutenguacultura ocidental

Perguntas surgiam e determinavam outras perguntas Eram propostas investigaccedilotildees sobre

investigaccedilotildees leituras sobre leituras Hesiacuteodo e Homero foram se tornando familiares o alfabeto

grego foi se revelando real os questionamentos sobre a arte da traduccedilatildeo (seraacute uma arte) se

fizeram tambeacutem reais As deusas foram tomando forma e suas imagens se faziam presentes em

cada momento do dia atravessando a barreira do tempo e do espaccedilo Listaram-se conteuacutedos e

disciplinas que pudessem ajudar a nortear o trabalho Foram surgindo autores que comeccedilaram a

fornecer elementos para a investigaccedilatildeo Vernant Loraux Detienne Calame Parry Geertz

Freud Deleuze Lerner Buscava-se da mitologia agrave filosofia da cultura agrave psicanaacutelise do

discurso da oralidade agraves questotildees da traduccedilatildeo Natildeo que esse caminho tivesse sido inicialmente

3

planejado Ele foi surgindo como consequumlecircncia de necessidades em que uma busca conduz a

outra Foi se impondo como resultado de ldquoescavaccedilotildeesrdquo como dizia com humor o nosso

orientador Essa mesma procura ia fazendo que acontecessem ldquoexplosotildees de significadosrdquo e a

palavra o uso da linguagem foi se tornando cada vez mais o grande foco de nosso olhar

Dada a abrangecircncia de material e da temaacutetica do objeto que se propocircs examinar tivemos

que fazer escolhas e estabelecer limites como buacutessola indicadora de um caminho pois

correriacuteamos o risco de nos perdermos nas adjacecircncias e de natildeo chegarmos agrave estrada principal

Decidiu-se investigar o cenaacuterio que recebe os deusesdeusas gregos a mitologia (com

suas implicaccedilotildees culturais e histoacutericas) e a filosofia que os ampara Nesse estudo optou-se por

uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica que natildeo se concentrasse apenas nas estruturas caracteriacutesticas dos

fenocircmenos religiosos miacuteticos mas que buscasse a compreensatildeo do texto procurando entender a

partir do contexto histoacuterico-cultural o fenocircmeno de deusas que escolhem a virgindade como

expressatildeo de sua sexualidade (veja-se a ousadia e a impropriedade do termo na falta de outro

em relaccedilatildeo agraves deusas virgens) em um mundo arcaico Este fato provoca um discurso relevante e

significativo na histoacuteria da mitologia e atribui a Heacutestia Atena e Aacutertemis uma posiccedilatildeo especial no

cenaacuterio dos deuses e deusas

Alguns aspectos satildeo pertinentes nesse tipo de investigaccedilatildeo primeiro levar em conta a

inseparabilidade do que se atribui ao mito com os dados histoacutericos e geograacuteficos que fazem parte

da narrativa poeacutetica de Homero de Hesiacuteodo e de outros autores daquela eacutepoca e de eacutepocas

proacuteximas consequumlentemente a relevacircncia do contexto soacutecio-cultural com seus elementos

significativos Aleacutem disso natildeo se pode deixar de considerar que o conceito de mito prevecirc nas

tentativas de defini-lo consideraccedilotildees que hoje se colocam como religiatildeo justamente pelo fato de

representarem o contexto soacutecio-histoacuterico ao qual nos referimos Desta forma a natureza os

deuses os homens o sagrado o profano o mortal o imortal faziam parte de uma mesma

temaacutetica organizando-se e reorganizando-se de acordo com os valores e os niacuteveis sociais das

comunidades gregas

Reflexotildees sobre essas questotildees que compotildeem o objeto de nosso estudo satildeo feitas em um

capiacutetulo como forma de um esclarecimento do assunto e como direccedilatildeo para encaminhamento e

aprofundamento em outro momento que se fizer oportuno

4

Eacute preciso poreacutem que fique claro que o objetivo de uma pesquisa como esta natildeo eacute dar

respostas definitivas mas antes levantar hipoacuteteses Como jaacute bem colocou Sartre ldquoEacute proacuteprio de

uma pesquisa ser indefinida Nomear e defini-la eacute fechar o ciclo o que restardquo2

Assim seratildeo propostas questotildees investigativas em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees miacuteticas que

envolvem o feminino no mundo arcaico grego Enfocar as trecircs deusas virgens na sua

independecircncia e na sua recusa agrave submissatildeo masculina aos laccedilos do casamento agrave fecundaccedilatildeo e

principalmente agrave entrega do desejo agrave philia a eros ou seja a Aphrodite pressupotildee uma

compreensatildeo da virgindade grega em uma sociedade patriarcal

A posiccedilatildeo de Aacutertemis Atena e Heacutestia em relaccedilatildeo a Afrodite revela um emparelhamento e

prevecirc variaccedilotildees de traccedilos que determinam o feminino em um espaccedilo soacutecio-cultural em que se

movem deuses heroacuteis e homens mortais Estabelece-se aiacute a virgindade como uma forma de Ser

como um paradigma (embora o termo possa parecer estruturalista) representativo do domiacutenio

social

Estatildeo pois colocadas no mundo grego arcaico a valorizaccedilatildeo do feminino e as diferentes

formas de atuar frente ao Kosmo quer seja nas manifestaccedilotildees da astuacutecia e da inteligecircncia quer

seja nas questotildees do olhar e dos rituais quer seja no acircmbito do desejo e da interdiccedilatildeo

As deusas gregas virgens fazem parte da conjugaccedilatildeo do imenso tabuleiro que a epopeacuteia

grega fez conhecer contandocantando

2 SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967

5

2 - ENCRUZANDO ASPECTOS DO COSMO NATUREZA DEUSES E HOMENS

ldquo O divino que nos poemas homeacutericos se apresenta com tanta clareza eacute multiforme e contudo sempre idecircntico a si mesmo por toda a parte Exprime-se em todas as suas formas um espiacuterito excelso um destino elevado Natildeo querem os referidos poemas aportar uma revelaccedilatildeo religiosa ou propor uma doutrina sobre os deuses Soacute querem visualizar e formar no gozo da visatildeo assim em face deles se expotildee o reino inteiro do mundo terra e ceacuteu aacutegua e ar aacutervores bichos homens e deusesrdquo3

21 - Fragmentos do ldquoUnordquo

Apesar de o estudo que se empreendeu ter como foco a questatildeo da virgindade de trecircs

deusas Heacutestia Aacutertemis e Atena percebe-se que esse elo comum que as une em um mesmo

aspecto tambeacutem determina caracteriacutesticas individuais diferentes o que as coloca em posiccedilotildees

que destacam suas funccedilotildees e participaccedilatildeo na vida do homem grego Assim nessa trajetoacuteria que

se percorreu evidenciou-se que a virgindade pode estar relacionada a diferentes fatores quer

sejam eles sociais culturais histoacutericos poliacuteticos ou mesmo individuais Essa referecircncia jaacute

destaca a questatildeo do conceito a questatildeo do amor e do desejo a questatildeo do nefando e do

inefaacutevel a questatildeo do casamento e da ligaccedilatildeo sexual a questatildeo do masculino e do feminino

enfim a questatildeo do corpo do olhar e do poder

O primeiro aspecto que nos trouxe embaraccedilo foi quando se propocircs separar algumas

partes em capiacutetulos Notou-se que os conceitos se enredavam todos permeando a vida dos

deuses dos homens sem deixar de ter a natureza colocada lado a lado nesse complexo

organizacional aparentemente inseparaacutevel Confirmando essa revelaccedilatildeo a obra de autores como

Homero Hesiacuteodo e autorescantores (chamados homeacuteridas que se diziam descendentes de

Homero) que cantavam os poemas de seu suposto antepassado que se constituiu corpus do

trabalho entrecruzavam os imortais os mortais e a natureza no mesmo espaccedilo coacutesmico

Essa aparente unidade coacutesmica possibilitou para alguns filoacutesofos interpretaccedilotildees de uma

unidade do mito como a que apresenta Torrano (1996) quando se reporta agrave ldquodescriccedilatildeo geral

desta ontologia iacutensita no mito do mundordquo

3 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p 12

6

Em liacutengua grega nos versos de Homero e de Hesiacuteodo em que ldquoconsubstancia-se a

necessaacuteria unidade de ilatecircncia de mito de culto e de cantordquo4 Assim os mortais ldquotranseuntes

do mundordquo satildeo interpelados pelos deuses isto eacute pelo proacuteprio mundo

Essa colocaccedilatildeo de deuses com uma posiccedilatildeo fundada na imortalidade distingue-os dos

homens na sua mortalidade e os posiciona como formas eternas do mundo Isso jaacute reflete que de

algum modo deuses e homens situam-se ainda que no mesmo cosmo em planos diferentes Os

homens se vecircem interpelados no dizer de Torrano por algo que os ldquoultrapassardquo e eacute justamente

essa energia coacutesmica que daacute ao homem sua substacircncia e que o coloca em movimento para que

sua natureza no mundo ganhe significaccedilatildeo ao mesmo tempo em que o mundo tambeacutem adquire

sentido Nesse movimento de matildeo dupla o homem descobre a sua existecircncia no mundo e o

mundo eacute o princiacutepio constitutivo originaacuterio da forccedila vital infinita e inexauriacutevel Para melhor

entender citamos Torrano

O eterno eacute pensado nesse movimento em que se unem identidade e alteridade nessa unidade vive o ser dos Deuses eles satildeo os que vivem para sempre e de uma soacute vez essa infinitude inexauriacutevel de vezes5

Portanto mesmo em se ressaltando a ideacuteia de unidade o que implica uma visatildeo

estruturalista sobressai um aspecto essencial em nosso entendimento o significado do Cosmo soacute

pode adquirir sentido a partir de um cruzamento Eacute na convergecircncia de deuses e de homens de

imortais e de mortais de eternos e de transeuntes de planos pois diferenciados se natildeo na sua

origem pelo menos nas suas formas existenciais que reside o discernimento complexo do divino

e do humano

Mais ainda a palavra grega cosmo Ќόσmicroος remete agrave definiccedilatildeo de um orderly or

harmonious system6 isto quer dizer que cosmos eacute a antiacutetese de Caos por representar uma

organizaccedilatildeo ordenada harmoniosa Aleacutem desse significado a que se ateve nas deduccedilotildees

apresentadas ateacute aqui haacute ainda o registro de que Cosmo significa ldquoornamentosrdquo

4 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 p 11 5 TORRANO JAA idem p19 6 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008

7

A palavra Ќόσmicroον eacute usada por Homero com essa conotaccedilatildeo (ornamentos) no canto XIV

da Iliacuteada verso 187 O mesmo sistema que organiza ornamenta Entatildeo poderiacuteamos questionar

em um arroubo de ousadia se a virgindade dentro desse sistema organizado seria uma forma de

ornamento que qualifica as deusas virgens como um atributo especial Seria o epiacuteteto ldquovirgemrdquo

um efeito esteacutetico dessa revelaccedilatildeo que indica um modo de harmonia Ficam aiacute questionamentos

para tambeacutem eles se enredarem nesse complexo mundocosmo grego De qualquer modo esse

epiacuteteto direcionado a Heacutestia Aacutertemis e Atena revela o uso de uma teacutecnica mnemocircnica

relacionada a algum aspecto significativo da ordem coacutesmica no enfoque das atribuiccedilotildees dessas

deusas A repeticcedilatildeo das palavras parthenos e koreacute referentes a elas mereceu reflexotildees que estatildeo

encaminhadas ao longo deste trabalho

Repensando pois o assunto da virgindade viu-se que se estava diante de um conflito

deleuziano criar um conceito nesse espaccedilo ldquohabitadordquo por deuses e homens Ainda reportando-

se a Deleuze e Guattari7 descobriu-se que pelo menos por esse vieacutes (que segundo os autores

natildeo deve ser considerado metodoloacutegico) seguia-se a trilha certa pois que Deleuze e Gattari em

se tratando de definir o conceito ressaltam o fato de que cada um remete a outros conceitos e

que seus componentes por sua vez podem ser entendidos como outros conceitos Foi

exatamente essa inseparabilidade de vaacuterios aspectos relacionados a esse remeter histoacuterico de

outros conceitos que ocorreu enquanto se procurava realizar um exame da virgindade evocada

por Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena

Deleuze e Guattari apontam para um ponto primordial da investigaccedilatildeo no que diz

respeito a essas vibraccedilotildees e encruzamentos de conceitos (em onde nos inspiramos para o tiacutetulo

dessa primeira parte - se assim se pode considerar -) que eacute a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da

incompletude com que se depara frente a uma tarefa desse porte Como determinar com umas

poucas palavras juntadas formando uma proposiccedilatildeo - que faz parte das ciecircncias - como definir a

virgindade como um traccedilo uacutenico de deusas distintas Essa posiccedilatildeo deleuziana esteve presente em

todas as nossas consideraccedilotildees em momentos que apresentavam divergecircncias e que

encaminhavam para um discurso polissecircmico marcado por diferentes vozes Procurou-se ter

sempre presente a fala de Deleuze e Guattari

7 DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed341997

8

Os conceitos como totalidades fragmentaacuterias natildeo satildeo sequer os pedaccedilos de um quebra-cabeccedila pois seus contornos irregulares natildeo se correspondem Eles formam um muro mas eacute um muro de pedras secas e se tudo eacute tomado conjuntamente eacute por caminhos divergentes8

Chegou-se entatildeo a uma postura ora se se estaacute examinando a obra de poetas eacute a partir

de suas colocaccedilotildees que a arte tira perceptos e afectos o que exige dizer que se trabalhou com

criaccedilotildees com deduccedilotildees com interpretaccedilotildees baseadas em um contexto - rdquoponte moacutevelrdquo - e natildeo

com verdades loacutegicas e cientiacuteficas Deixamos as verdades conclusivas para o domiacutenio da ciecircncia

e da filosofia se for o caso Fica-se com as hipoacuteteses e com as conjeturas a partir do discurso

literaacuterio Fica-se com as narrativas miacuteticas que se prendem a questotildees histoacuterico-sociais

reveladoras de sentido fica-se com a manifestaccedilatildeo do poder social que direciona o discurso da

sociedade que tinha na sua Teogonia o relato das origens do mundo mas que eacute muito mais

revelador do que apresenta ser quando comparado aos relatos miacuteticos dos hititas e dos feniacutecios e

com as teogonias da Babilocircnia9

A questatildeo da verdade se entendida no domiacutenio do homem grego aleacutetheia diz Torrano

reportando-se a Heidegger e a Detienne seraacute ldquoilatecircnciardquo o que marca a presenccedila pois natildeo pode

ser ocultado Desta forma se assim entendido no movimento de serem virgens que as deusas

Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena se constituem como aquilo que aparece e marca uma verdade A

virgindade entendida pois como o traccedilo mais caracteriacutestico dessas deusas

No desvelar-se das formas divinas impera ilatecircncia como fundaccedilatildeo da presenccedila e dos vaacuterios modos de latecircncia e de aparecircncia10

Os deuses satildeo as formas miacuteticas que constituem os elementos que justificam a presenccedila

do homem no cosmo poreacutem estudar a mitologia grega eacute acima de tudo mexer na memoacuteria

social de um povo tentando captar a essecircncia das narrativas que apresentam o divino e o humano

lado a lado ora aproximando-os e fundindo-os ora distanciando-os e ressaltando uma paixatildeo ou

um sentimento que evidencie o sagrado pela marca desta ou daquela estranheza que chega a

tocar o fantaacutestico De qualquer forma caminham lado a lado homens e deuses o real e o

imaginaacuterio entrelaccedilando-se na vida ciacutevica e na vida religiosa

8 DELEUZE Gilles e GUATARI Feacutelix Idem p 35 9 A respeito das Teogonias verificar Marcel Detienne e JP Vernant 10 TORRANO JAA op cit p 18

9

Como bem definiu Vernant eacute impossiacutevel separar de qualquer estudo que examine

aspectos do mundo grego ldquoaquilo a que se chamaria de bom grado o estilo religioso gregordquo11

A referecircncia a essa posiccedilatildeo faz-se necessaacuteria para se entender o mundo grego com todas

as suas caracteriacutesticas filosoacutefico-culturais pois que direciona o olhar para uma eacutepoca em que o

politeiacutesmo natildeo implicava a onipotecircncia e a transcendecircncia como se entende no estatuto da

religiatildeo cristatilde Pelo contraacuterio os deuses gregos foram criados com o mundo e complementam-se

nas suas funccedilotildees e na sua multiplicidade Os deuses gregos fazem parte da gecircnese do mundo e

para Vernant satildeo antes considerados Potecircncias - natildeo apenas formas - e portanto tecircm aspectos

mundanos e divinos pois pertencem agrave organizaccedilatildeo do universo e agrave vida social dos homens

Acreditamos que essa posiccedilatildeo tambeacutem enfatiza a questatildeo do impulso da ilatecircncia a que se

atribui aos deuses na visatildeo fundamentalista A palavra potecircncia natildeo se refere simplesmente a

poder e a forccedila aplicada para a realizaccedilatildeo de um efeito mas tambeacutem um elemento gerador de um

impulso de uma energia organizando o espaccedilo (Kosmos) enquanto se define a presenccedila do

homem na terra

As ciecircncias humanas e a filosofia acabaram por criar uma ruptura com o pensamento

antigo na medida em que tentaram racionalizar e demonstrar a concepccedilatildeo de mundo da

Antiguidade Como esse natildeo eacute o foco de nosso objeto de estudo deu-se ecircnfase ao dizer

invocativo que a poesia de Homero de Hesiacuteodo e de outros rapsodos revela Como declara

Chacirctelet12 eacute essa concepccedilatildeo de mundo arcaico que marcaraacute uma tradiccedilatildeo essencialmente

diferente da tradiccedilatildeo que mais tarde as filosofias da Idade Medieval e da Idade Moderna teratildeo

de se haver no que diz respeito agrave organizaccedilatildeo religiosa ligada agrave revelaccedilatildeo cristatilde e agrave ordem

soacutecio-econocircmico-poliacutetica A natureza agrave qual os aedos se referem nada tem a ver com os siacutembolos

que a Idade Meacutedia se ldquoimporaacute decifrar nem com o sistema de equaccedilotildees e de maacutequinas que o

pensamento moderno iraacute proporrdquo 13

O que parece fundamental eacute tentar entender o pensamento da eacutepoca arcaica que expressa

a relaccedilatildeo do indiviacuteduo com tudo que o circunda

11 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p11 12 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 13 CHAcircTELET Franccedilois Idem p14

10

seu imaginaacuterio e seus deuses seus concidadatildeos e seus familiares as coisas que o fazem sofrer e as de que frui seu proacuteprio pensamento e os objetivos que lhe estabelecem14

Eacute exatamente com base nessa concepccedilatildeo de mundo que se eacute tentado a estabelecer o uno

como condiccedilatildeo essencial da Antiguidade Poreacutem como demonstram Deleuze e Guattari e como

questiona Chacirctelet a ideacuteia de aceitar uma concepccedilatildeo de mundo fechada sobre si mesmo eacute

tentadora poreacutem a Filosofia natildeo conseguiu elaborar uma linha uacutenica que possa conceituar ou

traccedilar um perfil fechado desse tempo Sobre isso diz Chacirctelet

Uns o tomaratildeo por ldquoperiacuteodo originaacuteriordquo inscrevendo sua marca indeleacutevel na ordem do espiacuterito outros progressistas agrave sua maneira veratildeo aiacute uma primeira etapa edificante na elaboraccedilatildeo do saber outros enfim ldquoregressistasrdquo a compreenderatildeo como marca de um passado que por natureza deve estar indefinidamente perdido15

Eacute nessa etapa da produccedilatildeo escrita ndash que podemos chamar de primeira ndash que nos detemos

nas aventuras de deuses e de heroacuteis na louvaccedilatildeo de entidades divinas na origem da organizaccedilatildeo

do cosmo Enfim no que se considera caracteriacutestico daquele periacuteodo a poesia eacutepica

Nesse campo que movimenta linguagem e cultura procuramos perseguir o conceito de

virgindade na representaccedilatildeo das deusas consideradas virgens sem fragmentaacute-las sem retiraacute-las

do panteatildeo grego mas concebendo-as como peccedilas do jogo de palavras que se vai compondo em

relaccedilatildeo aos outros deuses e deusas e em relaccedilatildeo ao desejo e agraves questotildees de gecircnero que perpassam

o humano desde o iniacutecio de sua origem escrita Portanto seraacute que desejo e poder se opotildeem agrave

virgindade ou fazem parte desse mesmo cosmo uno Fica aiacute mais uma pergunta

22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees

Eacute a partir da narrativa da criaccedilatildeo do mundo que se encontra a primeira referecircncia ao amor

e agrave fecundidade Assim sendo pode-se dizer que a virgindade estaacute subentendida nesse

mecanismo de misteacuterio e de forccedila que determina a procriaccedilatildeo Tanto em Homero quanto em

Hesiacuteodo encontram-se relatos narrativos da criaccedilatildeo do mundo Embora apresentem

interpretaccedilotildees diferentes a noccedilatildeo de fertilidade e de divindade feminina fecundada estaacute presente

nos conteuacutedos referentes a essas narrativas de tradiccedilatildeo mitoloacutegica dos deuses primordiais

14 CHAcircTELET Franccedilois Op cit p14 15 Idem

11

Na Iliacuteada XIV v 197 e seguintes no momento em que Hera estaacute dialogando com

Afrodite ela lhe fala de Oceano o pai de todos os deuses e da matildee primordial Teacutetis que a

acolheram e a nutriram e que naquele momento de discoacuterdia entre eles ela gostaria de ajudar

com o propoacutesito de que pusessem um fim nessa discoacuterdia reatando a afeiccedilatildeo e portanto

voltando a aproximarem-se do leito do matrimocircnio Reproduzimos a seguir um trecho da fala de

Hera a Afrodite no momento em que solicita sua ajuda Apresentamos a traduccedilatildeo de Murray

antes de examinarmos as palavras em grego de interesse para nosso estudo

ldquoGive me now love and desire wherewith thou 198 art wont to subdue all immortals and mortal men

E Hera continua referindo-se a Oceano e Teacutetishelliphelliphellip

Them am I faring to visit and will loose for them their endless strife 205 since now for a long timersquos space they hold aloof one from the other 206 from the marriage- bed and from love for that wrath hath come upon their heartshellip1617 207

Eacute interessante refletir sobre a escolha das palavras usadas por Homero nesses versos e a

significaccedilatildeo decorrente delas para nossas consideraccedilotildees sobre o universo feminino envolvendo

conceitos de virgindade de amor de desejo de fecundidade e ateacute mesmo de discoacuterdia entre os

sujeitos de gecircneros diferentes desde a narrativa da origem do mundo

Primeiramente o autor usa a palavra grega philotes (φιλότης) referindo-se ao amor

Segundo o dicionaacuterio Bailly (2000) essa palavra tem o significado de amor (amour) nesse

contexto (xiv v 198) Podemos pois inferir que eacute um tipo de amor que envolve laccedilos afetivos

ternura e amizade como seraacute posteriormente colocado pelos filoacutesofos No entanto a mesma

palavra philotes ou seja amor usada no verso 209 (ldquojoined together in loverdquo) acompanhada da

palavra όmicroωθήναι (omothenai) juntar e da palavra ευνής (euneacutes)isto eacute leito (XIV 206) tem

um significado de relaccedilatildeo iacutentima envolvendo pois uma noccedilatildeo de sexualidade

16 HOMER The Iliad v 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 17 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 ldquoDaacute-me o desejo e o feiticcedilo do amor com que sempre domaste (v 198) todos os deuses eternos e os homens de curta existecircncia (v199) vou visitaacute-los com o fim de compor-lhes antiga discoacuterdia (v 205) Haacute muito que ambos o leito apartaram desta arte se abstendo dos gratos elos do amor por se acharem inflados de coacutelerardquo (v 207)

12

Fica clara a relaccedilatildeo carnal como parte das atividades dos deuses e a questatildeo do leito

nupcial como local dos relacionamentos secretos Deuses e homens compartilhavam das mesmas

experiecircncias pois como jaacute fizemos referecircncia anteriormente viviam lado a lado O pensamento

poeacutetico tece o texto de forma tatildeo clara e objetiva que nos leva agrave investigaccedilatildeo do campo

semacircntico tais as palavras usadas para dizer de modo natildeo-velado de modo revelador e expliacutecito

o que Hera espera do compartilhamento que envolve o masculino e o feminino

Haacute vaacuterias outras passagens na Iliacuteada em que o autor se refere aos momentos de relaccedilotildees

iacutentimas entre os deuses mostrando que o desejo imeros [ιmicroερος] fazia parte do amor das

relaccedilotildees que se espera que aconteccedilam como atribuiccedilatildeo do universo de natureza divina Assim as

relaccedilotildees sexuais satildeo previsiacuteveis entre os deuses e eacute uma forma de manifestaccedilatildeo de amor entre os

gecircneros diferentes Haja vista que em sua fala Hera coloca que a discoacuterdia νειχεα entre esses

dois deuses primordiais Oceano e Teacutetis havia feito com que eles se afastassem do amor e

consequumlentemente do leito do casamento

Aleacutem disso parece que Homero como bom conhecedor da natureza humana coloca na

fala de Hera o pedido a Afrodite (deusa que subjuga os imortais e os mortais na questatildeo do amor)

de dar a Oceano e Teacutetis natildeo apenas amor mas amor e desejo pois que amor e desejo se

complementam e o desejo promove a manifestaccedilatildeo do amor quer atraveacutes dos sentimentos quer

atraveacutes dos contatos fiacutesicos como forma de expressatildeo e de representaccedilatildeo do sentimento

Eacute interessante observar que a forma Фιλοτήτος eacute usada nesses versos por Homero e que a

expressatildeo da presenccedila do desejo ou da representaccedilatildeo da sexualidade vem acompanhada de outras

palavras No entanto ainda no canto XIV Homero usa o termo ερος como no verso 315

significando entatildeo desejo

Essa variaccedilatildeo na escolha do leacutexico parece remeter a uma variaccedilatildeo semacircntica significativa

A expressatildeo ldquoamor e desejordquo ou seja philotes e imeros eacute entatildeo substituiacuteda por eros Para ερος

nesse contexto Il XIV315 Bailly apresenta a traduccedilatildeo para o francecircs passion amour [θεας

Ѓϋναιχος] correspondendo a ldquoamour pour une deacuteesse une femmerdquo18 Jaacute parece estar impliacutecita

em eros a questatildeo do desejo

18 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par SEacuteCHANT L et CHANTRAINE P Paris Hachette 2000 p 808

13

A presenccedila de Afrodite eacute evocada na combinaccedilatildeo de forccedilas que a deusa representa pois

sempre a acompanham Peithocirc a persuasatildeo alegre trapaceira e Apaacutete a ilusatildeo enganosa da

ternura O pensamento miacutetico eacute ambivalente na criaccedilatildeo de associaccedilotildees e se tece com diferentes

tons como ldquouma fita bordadardquo19

Fazemos nossas as palavras de Fontes quando ele se refere ao movimento das palavras agrave

multiplicidade de sentidos subjacentes a ela dentro do quadro cultural agrave mobilidade dos

conceitos que se enredam na tessitura do mundo miacutetico na composiccedilatildeo poeacutetica

O poema eacute com efeito como diraacute mais tarde Dioniacutesio de Halicarnasso um tecido precioso que nasce das matildeos do poeta quando ele reuacutene diversas liacutenguas numa soacute a nobre e a simples a elaborada e a natural a concisa e a extraordinaacuteria Mas o tecido de muitas cores onde os contraacuterios se misturam harmoniosamente eacute ele proacuteprio semelhante a Proteu o deus muacuteltiplo e inconstante que eacute aacutegua fogo aacutervoreleatildeo que reuacutene todas as formas numa soacute Da mesma maneira a seduccedilatildeo da palavra poeacutetica por meio dos prazeres do canto das medidas e dos ritmos eacute anaacuteloga agrave seduccedilatildeo exercida pela mulher por meio do lsquoencanto do olharrsquo (khaacuteris oacutepseoumls) pela lsquodoccedilura persuasiva da vozrsquo pela lsquoatraccedilatildeo da beleza do corpo20

Pois assim eacute que Homero e Hesiacuteodo misturaram em seus poemas deuses homens

paixotildees e desejos como pertencendo ao mesmo ceacuteu que os cobriam com voluacutepia agrave mesma aacutegua

que os inundava de espuma feacutertil agrave mesma terra que os acolhia com sua fecundidade criadora

As religiotildees de base cristatilde dessacralizaram a natureza e introduziram o modelo da

salvaccedilatildeo pessoal Em Homero ao contraacuterio a palavra tambeacutem fazia parte da phyacutesis mediando

deuses homens e natureza agrave qual tambeacutem pertencia

Assim em uma comparaccedilatildeo da postura e da feacute que move a religiatildeo grega em relaccedilatildeo agrave

religiatildeo cristatilde os gregos manifestavam uma atitude de respeito de preces de oferendas e de

sacrifiacutecios mas como parte de um empreendimento de trocas que experimentavam a partir da

adesatildeo de um costume jaacute estabelecido como suporte da proacutepria existecircncia e que por isso natildeo

precisava ser justificado Desde que havia cultos e rituais era porque eles se provaram

necessaacuterios Como seria possiacutevel conceber um deus transcendental se apenas mais tarde (por

volta do seacuteculo V aC) introduz-se o conceito de transcendecircncia com a filosofia platocircnica e o

mundo das Ideacuteias

19 Verificar sobre esse tema a obra de FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p247 20 FONTES Joaquim Brasil Idem p249

14

Para esclarecer essa questatildeo do movimento de pensamento ascensional nada melhor do

que reportar-se a Deleuze que discorrendo sobre imagens de filoacutesofos tece consideraccedilotildees sobre

o que se entende como princiacutepio filosoacutefico do meacutetodo ldquodas alturasrdquo como oposto ao sistema que

norteou o mundo fundamentalista grego Primeiro Deleuze questiona o que eacute orientar-se no

pensamento esclarecendo que cabe ao filoacutesofo efetuar uma operaccedilatildeo

Entatildeo determinada como ascensatildeo como conversatildeo isto eacute como o movimento de se voltar para o princiacutepio do alto do qual ele procede e de se determinar de se preencher e de se conhecer graccedilas a uma tal movimentaccedilatildeo21

Ora como poderiam os gregos que viveram antes de Platatildeo conseguir estabelecer um

pensamento que se vincula antes ao proacuteprio ato de pensar do que na experiecircncia da vida Essa

colocaccedilatildeo revela uma conclusatildeo baacutesica no entendimento da cultura grega politeiacutesta cuidava-se

dos estados da vida Ainda natildeo se colocava para os gregos o problema da orientaccedilatildeo do ato de

pensar Os deuses natildeo satildeo forccedilas naturais satildeo detentores de soberania exercendo poderes em

diferentes e diversos domiacutenios Para os gregos natildeo era preciso que houvesse uma revelaccedilatildeo para

fundamentar suas relaccedilotildees com o sobrenatural Elas eram representadas e perpetuadas na figura

dos deuses e nos cultos e rituais Fazia parte da vida como o uso do idioma como pertencente agrave

phyacutesis isto eacute agrave proacutepria natureza Acredita-se como Vernant que debruccedilar-se sobre o estudo de

um aspecto dos deuses leva a adentrar em um mundo em que

Entre o religioso e o social o domeacutestico e o ciacutevico portanto natildeo haacute oposiccedilatildeo nem corte niacutetido assim como entre sobrenatural e natural divino e mundano A religiatildeo grega natildeo constitui um setor agrave parte fechado em seus limites e superpondo-se agrave vida familiar profissional poliacutetica ou de lazer sem confundir-se com ela 22

Desta maneira viam os gregos em seus deuses valores e plenitudes que importam na

existecircncia terrestre Para que mais Todas as manifestaccedilotildees terrestres tinham seu lado sagrado

promovendo uma atitude dos cidadatildeos de se espelharem nos deuses natildeo de forma a reivindicar

favores individuais mas como exemplo de valores e do modo de ser que compotildeem a vida

Reforccedilando essa posiccedilatildeo da impossibilidade de uma separaccedilatildeo do que hoje se denomina

mitologia dos demais componentes culturais da sociedade grega podemos citar as palavras de

Berman DW no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo norte-americana do livro de Calame

21 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 p131 22 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p7

15

For the Greeks there is no ldquohistoryrdquo as distinct from the narrative (and until a relatively late date poetic) tradition and no ldquomythrdquo that is not implicated in the process of discourse production ldquoMythrdquo and ldquohistoryrdquo as defined in their modern senses cannot be separated 23

Esse enfoque reafirma o conceito de mito (mythos) usado por Aristoacuteteles em sua Poeacutetica

em que daacute especial relevacircncia ao mito ou seja agrave ldquohistoacuteriardquo Embora Aristoacuteteles esteja se

referindo especificamente aos componentes da trageacutedia podemos dilatar esse conceito no que se

refere agrave tradiccedilatildeo poeacutetica grega pois as narrativas de deuses e de heroacuteis tambeacutem continham

elementos que depois passaram a constituir partes integrantes da trageacutedia Estavam portanto

relacionados nos poemas eacutepicos o mito e a accedilatildeo o terror e a piedade o reconhecimento e a

questatildeo da verdade que seraacute examinada posteriormente tendo-se em vista os trabalhos de Veyne

e de Deleuze

O proacuteprio termo mito transforma-se pois o conceito eacute sempre acompanhado de um

constante processo de devir condiccedilatildeo de percepccedilatildeo da passagem de um mundo a outro

construindo-se e dissolvendo-se em outras coisas Assim natildeo podemos deixar de citar que no

tempo de Homero o conceito de mythos significava a palavra como se pode ver em um

pequeno trecho da Iliacuteada ldquoto be both a speaker of words and a doer of deedsrdquo (9443) 24 em

que mythos opotildee-se a ergon De acordo com Bailly somente apoacutes Homero o termo passa a ser

usado como faacutebula (ldquofablerdquo) particularmente com o sentido de lenda (leacutegende) em oposiccedilatildeo a

logos que ainda tendo como base Bailly25 a coloca como a palavra em geral (la parole)

Este cruzamento linguumliacutestico tenta revelar o ldquojogordquo de significados dos quais participavam

natureza deuses e homens formando o grande cenaacuterio do mundo grego Nesse mesmo cenaacuterio

trecircs personagens tinham uma atuaccedilatildeo que surpreendia pela caracteriacutestica que as diferenciava a

castidade e a forte determinaccedilatildeo de manterem-se virgens

23 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 p xvii ldquoPara os gregos natildeo haacute ldquohistoacuteriardquo como distinta da tradiccedilatildeo narrativa (e ateacute uma data relativamente recente poeacutetica) e nem mito que natildeo esteja enredado no processo de produccedilatildeo do discurso ldquoMitordquo e ldquohistoacuteriardquo como definidos em seus significados modernos natildeo podem ser separadosrdquo 24 HOMER Op cit p414 ldquohellip para ser tanto um orador de palavras quanto um realizador de accedilotildeesrdquo 25 BAILLY Anatole opcit

17

3 - A QUESTAtildeO METODOLOacuteGICA UM OLHAR SOBRE A PESQUISA BIBLIOGRAacuteFICA

Jaacute Aristoacuteteles tinha afastado a histoacuteria do mundo das ciecircncias precisamente porque ela se ocupa do particular que natildeo eacute um objeto da ciecircncia - cada fato histoacuterico soacute aconteceu e soacute aconteceraacute uma vez Esta singularidade constitui para muitos produtores ou consumidores de histoacuteria a sua principal atraccedilatildeo ldquoAmar o que nunca se veraacute duas vezesrdquo26

O objeto de estudo as deusas gregas virgens faz parte de um sistema do complexo

processo social e cultural de um povo Assim sendo o corpus selecionado como ponto de partida

remete a consideraccedilotildees explicaccedilotildees suposiccedilotildees e interpretaccedilotildees calcadas em uma posiccedilatildeo

teoacuterica

Como ler hinos e narrativas eacutepicas que falam das deusas das funccedilotildees e das caracteriacutesticas

que se pretendem conhecer e investigar sem optar por um caminho por uma demonstraccedilatildeo da

maneira como a histoacuteria coloca os modos de ser e de fazer dos homens em um dado tempo

Como o pensamento antropoloacutegico articula-se elaborando ldquoverdadesrdquo tradiccedilotildees inquestionaacuteveis

maneiras de agir coletivas que se aplicam a um povo delineando os traccedilos niacutetidos de seu perfil

independente de traccedilos iguais ou semelhantes em outros povos

As marcas que os nomeiam satildeo uacutenicas fazem-se peculiares distintas ldquofalamrdquo com

sotaque proacuteprio O homem se enraiacuteza ao solo funda-o e surge o nativo de um pedaccedilo geograacutefico

com uma identidade que lhe confere um nome localizado no espaccedilo vestiacutegios da sua construccedilatildeo

nesse cenaacuterio que se vai delimitando com contornos especiacuteficos Eacute nesse desenho do coraccedilatildeo

humano que a antropologia ausculta compara e prescreve Lanccedilou-se matildeo do estetoscoacutepio da

antropologia que examina o saber local que o investiga e como todo o envolvimento humano

tenta diagnosticar atraveacutes das pistas

O nosso olhar poreacutem natildeo se prende de modo exaustivo a uma uacutenica linha teoacuterica como

acircncora pretende ser sobretudo uma interpretaccedilatildeo uma contribuiccedilatildeo explicativa para o

fenocircmeno soacutecio-cultural da virgindade das deusas gregas com base em tudo o que jaacute foi dito e

revisto

26 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003

18

Quando se opta por uma linha epistemoloacutegica esse movimento jaacute determina que outras

teorias forneceratildeo posiccedilotildees antagocircnicas e outras ainda informaccedilotildees complementares A questatildeo

da verdade pertence pois ao seio da indagaccedilatildeo e nossa pesquisa natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilaacute-

la Propotildee-se apenas um pequeno vieacutes um ponto de vista a partir do acircngulo de nossa visatildeo jaacute por

si soacute especificada e direcionada pelo que a nossa individualidade eacute afetada pelo contexto cultural

que a determina

Nossa escolha por uma linha antropoloacutegica ou melhor pelo caraacuteter heterogecircneo dos

significados culturais justifica-se embora com propoacutesitos diferentes a partir das colocaccedilotildees

entatildeo feitas por Heroacutedoto (por volta de 450 a C) que acreditava que a vitoacuteria grega sobre os

persas natildeo se devia agrave bravura dos homens ou agrave vontade dos deuses mas ao resultado do conflito

entre culturas

Eacute pois com essa mesma interpretaccedilatildeo de levantar problemas e de descrever alguns

aspectos relevantes da diversidade cultural onde deusas gregas ditas virgens eram reverenciadas

ao lado de outras deusas e de deuses e de refletir sobre a evoluccedilatildeo do conceito da virgindade

atraveacutes dos tempos colocado em contextos diferentes que nossas indagaccedilotildees se apoacuteiam em uma

linha antropoloacutegica comparativa

Nesse percurso que se decidiu seguir verificou-se que muitas vezes dentro da busca pela

explicaccedilatildeo dos acontecimentos teorias divergem sobre os mesmos aspectos e alguns autores

criticam questionam levantam hipoacuteteses sobre outros autores e sobre os mesmos fatos

Descobrimos entatildeo que aleacutem do social as teorias encontram-se fatalmente ligadas a uma

posiccedilatildeo poliacutetica Assim sendo nosso trabalho como qualquer outro jaacute traz em si perigos pois

direciona a escolha dos acontecimentos e determina um estilo para representar as significaccedilotildees

culturais Como se isso natildeo bastasse os conceitos satildeo sempre ldquoprovisoacuteriosrdquo e movimentam-se

transfigurando-se para novas significaccedilotildees

Como diz Layton vamos procurar fazer uma ldquotraduccedilatildeo da culturardquo buscando o

entendimento dos ldquoaparentemente exoacuteticos costumesrdquo dos gregos da eacutepoca de Homero e de

Hesiacuteodo ldquocom os quais natildeo nos encontramos familiarizadosrdquo27

27 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 p11

19

De algum modo poreacutem nossa atenccedilatildeo se dirige para aspectos caracteriacutesticos do

comportamento social que o corpus selecionado revela sugerindo ligaccedilotildees entre aquilo que

lemos e aquilo que pode significar

Faz-se importante frisar que embora nossas propostas tragam em si preocupaccedilotildees de

caraacuteter social este estudo natildeo deve excluir consideraccedilotildees de enfoque do acircmbito da religiatildeo pois

que mito e religiatildeo se entrecruzam na dimensatildeo mitoloacutegica A religiatildeo como parte do estatuto

histoacuterico e das formas de pensar de agir de acreditar de um povo refletem um comportamento

obrigatoacuterio uma ldquoinfluecircncia coerciva sobre as consciecircncias individuais28rdquo

Em se priorizando preocupaccedilotildees culturais abrangentes verifica-se em um segundo

momento desta abordagem que o texto escrito eacute revelador de um significado soacutecio-histoacuterico-

cultural e parte-se dele como exemplo de um corpus usado na aacuterea da literatura que transcende o

aspecto linguumliacutestico nas suas significaccedilotildees muacuteltiplas na sua dinacircmica complexa nas suas tensotildees

geradoras de oposiccedilotildees nas suas metaacuteforas vigorosas nas suas narrativas extraordinaacuterias nas

descriccedilotildees ldquorepetitivasrdquo de dons e de atributos divinos e heroacuteicos

Aleacutem disso uma metodologia direcionada aos fazeres e agires humanos natildeo deve excluir

funccedilotildees pois satildeo elas que orientam o cumprimento das obrigaccedilotildees contratuais dos deveres

sociais e das crenccedilas morais previamente definidas e existentes no contexto cultural de forma

ampla exteriores ao individual

O estatuto impotildee-se aos sujeitos independentemente de seu desejo e para pertencer a um

grupo tem-se que seguir os mesmos ideais e as mesmas crenccedilas

Eacute com o pensamento voltado ao ato de criar de estabelecer normas e de verificar efeitos

de comportamentos que dirigem um povo que se deve tentar interpretar isto eacute entender do

exterior e agrave distacircncia grandes relatos da tradiccedilatildeo grega que datam do seacuteculo VIII-VII antes da

nossa era Toda a praacutetica narrada na escrita de Homero e de Hesiacuteodo constitui a representaccedilatildeo de

um sistema em accedilatildeo e natildeo pode pois ser surda e silenciosa aos sabores de uma eacutepoca Eacute nesse

trabalho que se percebe como a noccedilatildeo de mythos foi elaborada e se enraizou no solo grego Isso

conduz por seu turno agrave questatildeo do conceito

28 DURKHEIM apud LAYTON Op cit p 34

20

Como entender o mito e a mitologia Como ler esses relatos fantasiosos da tradiccedilatildeo

ldquodenunciada como inaceitaacutevel ou como natildeo sendo mais digna de credibilidade29rdquo como

questionava Tuciacutededes a partir de sua vertente histoacuterica

Recorremos agraves reflexotildees de Detienne30 sobre esse assunto Embora em um primeiro

momento (seacuteculo VII a C) a filosofia tenha atribuiacutedo ao mythos o sentido da narraccedilatildeo inventiva

e de relatos baacuterbaros a evoluccedilatildeo semacircntica do termo o conduz agrave conotaccedilatildeo de revoluccedilatildeo devido

agrave revelaccedilatildeo do partido dos sacircmios os mythiegravetai contra a tirania de Policrato

Com base no poema de Anacreonte de Samos no seacuteculo V aC a palavra mythos eacute usada

por Piacutendaro e por Heroacutedoto com restriccedilatildeo atribuindo-lhe o significado de ldquoo discurso dos outros

enquanto ilusoacuterio incriacutevel e estuacutepidordquo 31

Dessa forma os relatos histoacutericos procuram se apoiar nos logoi discursos

argumentativos enquanto os mythoi excluem a argumentaccedilatildeo raspando todo vestiacutegio de

observaccedilatildeo empiacuterica Assim nesse estado de coisas como coloca Detienne

Falar de mito eacute um modo de contar o escacircndalo de apontaacute-lo Mythos eacute uma palavra-gesto muito cocircmoda suficiente para denunciar a tolice a ficccedilatildeo ou o absurdo e confundi-los imediatamente32

Soacute no final do seacuteculo V eacute que o mythos deixa de ter sua conotaccedilatildeo de lugar-narrado (lieu-

dit) para se tornar discurso de uma forma de saber com base no que foi escrito pelos bioacutegrafos e

pelos poetas Eacute assim que o mito recortado da atividade histoacuterica designa um domiacutenio que

encerra a capacidade de narrar e de memorizar

Entramos pois no campo da memoacuteria fraacutegil e faliacutevel Quanto mais se distancia do

tempo menos criacutevel ela fica e mais e mais suas aacuteguas se engrossam tornando-se caudalosas

Natildeo eacute mais a verdade o que interessa o fato apontado desenhado em cima de si mesmo mas a

beleza do relato que envolve que narra o fabuloso que apresenta o inacreditaacutevel como prodiacutegio

Eacute com essa vestimenta leve e transparente que agora a chamada mitologia ndash os escritos

reunidos dos contemporacircneos ndash sofre a criacutetica de Platatildeo principalmente no que concerne aos

29 DETIENNE Marcel Os Gregos e Noacutes Uma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p39 30 DETIENNE Marcel Idem 31 DETIENNE Marcel Op cit 32 Idem p 41

21

aspectos formais e riacutetmicos para fins de memorizaccedilatildeo Para o filoacutesofo esse meio de expressatildeo

para estimular a memoacuteria e a comunicaccedilatildeo para privilegiar a audiccedilatildeo era

o sinal irrefutaacutevel de sua pertinecircncia ao mundo polimorfo e colorido de tudo que deleita a parte inferior da alma esse reino solitaacuterio onde as paixotildees e os desejos enlouquecem O discurso da mitologia natildeo somente eacute escandaloso ndash e o pesquisador da Repuacuteblica cataloga histoacuterias obscenas selvagens e absurdas - mas eacute perigoso pelos efeitos ilusoacuterios que acarreta a comunicaccedilatildeo da boca ao ouvido visto natildeo ser nem fiscalizada nem controlada33

Poreacutem como diz Detienne Platatildeo tentou inventar uma nova mitologia Pode-se pois

dizer que o filoacutesofo buscou trocar uma mentira por outra uma ldquobela mentira uacutetil capaz de

realizar para todos livremente tudo o que eacute justo34rdquo Assim nas suas Leis Platatildeo quer propor

uma nova tradiccedilatildeo substituindo o canto das musas e o murmuacuterio dos deuses narrados pelos

poetas dos seacuteculos anteriores

Ora eacute fundamental que se considere que eacute esse objeto que deve ser entendido na sua

riqueza humana na sua ambivalecircncia na sua multiplicidade de planos na variedade de niacuteveis de

sua significaccedilatildeo na diversidade dos contextos na singularidade de sua criaccedilatildeo Ou ainda como

diz Torrano acerca de sua anaacutelise sobre a Teogonia quando o corpus que se propotildee analisar

refere-se ao que chama de mitologia tambeacutem o estudo que se propotildee nada mais eacute do que um

ldquodiscurso sobre uma canccedilatildeo numinosa35rdquo veiacuteculo do saber de um tempo em um complexo

contexto cultural O que vale dizer pois que o mito eacute identificado por todos os leitores por seu

sentido relacional intriacutenseco pelas diferentes versotildees que ele pode conter e pelo contexto

etnograacutefico que subjaz aos seus planos significantes

Eacute com essa visatildeo que a anaacutelise se permite ser comparativa Nessa tentativa de comparar

conceitos e posiccedilotildees para alargar o entendimento do mito que nosso estudo evidencia a partir das

deusas gregas virgens que lanccedilamos matildeo de uma perspectiva social de linha antropoloacutegica geral

proposta por Durkheim

Para esse autor conceitos sociais gerais provocam o mesmo efeito da organizaccedilatildeo das

instituiccedilotildees isto eacute em determinados periacuteodos histoacutericos todas as sociedades estatildeo sujeitas a

condicionalismos que se apoderam das multidotildees e fazem-nas interagir e mover-se Assim ondas

33 Idem p 43 34 Idem p43 35 HESIgraveODO Teogonia A Origem dos deuses Estudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p13

22

de entusiasmo de paixatildeo de indignaccedilatildeo apoderam-se do povo de um paiacutes em um momento e o

impulsionam Acredita-se que essa posiccedilatildeo possa ser defendida na interpretaccedilatildeo de alguns

elementos significantes pois as narrativas miacuteticas e os rituais satildeo impelidos por uma forccedila ampla

que abrange todas as esferas A dinacircmica desse movimento perpassa a obra dos poetas em foco e

compotildee parte do conteuacutedo que acompanha o ritmo discursivo dos versos selecionados como

corpus

A chave fundamental de uma linha epistemoloacutegica calcada na antropologia eacute a de

compreender que cada sociedade delineia suas proacuteprias instituiccedilotildees que concebe seus padrotildees de

comportamento que desenha seus espaccedilos que considera as formas de sua organizaccedilatildeo social

que determina seus valores e impotildee sistemas Argumentando em favor de uma antropologia

comparada citamos uma posiccedilatildeo de Durkheim apud Layton

Uma vez que os fenocircmenos sociais natildeo podem ser controlados experimentalmente o uacutenico meacutetodo cientiacutefico apropriado para o trabalho do cientista eacute o comparativo36

ldquoA arte de construir comparaacuteveisrdquo como diz Detienne37 parece-nos pois um caminho

que permite colocar questotildees apontar direccedilotildees considerar diferenccedilas perceber as tensotildees e

acima de tudo dimensionar a necessidade de escolher uma categoria o que faz com que a

hipoacutetese levantada possa ganhar contornos de um desenho definido

Reproduzindo fielmente as palavras de Detienne38 inspirado no trabalho de Geertz tem-

se que

Se um historiador ou um etnoacutelogo debruccedilado sobre uma bem definida questatildeo local percebe que nossa representaccedilatildeo do que eacute uma ldquopessoardquo eacute uma ideacuteia bastante especial no conjunto das culturas do mundo ele comeccedila a antropologia Ao menos um primeiro passo O segundo poderia ser a descoberta do que ldquopara melhor analisar as formas simboacutelicas de uma cultura estrangeira eacute preciso bisbilhotar as peculiaridades de um outro povordquo

Portanto a centralidade da cultura enquanto conceito de base parece ser o ponto-chave

natildeo apenas dos estudos da antropologia americana mas tambeacutem de autores europeus como no

caso de Durkheim e de Detienne

No levantamento de hipoacuteteses da virgindade das deusas gregas deparamo-nos dentro

desse eixo diretivo cultural com o levantamento de algumas funccedilotildees peculiares a essas deusas

36 LAYTON Robert Opcit p37 37 DETIENNE Marcel Op cit p22-23 38 DETIENNE Marcel idem

23

que fazem parte dos atributos evocados pelos epiacutetetos Daiacute advecircm dois pontos que devem ser

considerados Primeiro em relaccedilatildeo ao uso de suas funccedilotildees como forma norteadora de propor

diferentes comportamentos Esse termo faz-se necessaacuterio esclarecer natildeo se vincula aos

conceitos propostos pela anaacutelise social funcionalista Natildeo se pretende agrave maneira de Radcliff

Brown descobrir leis classificatoacuterias do comportamento social propondo uma analogia orgacircnica

nem tampouco como Malinowski usar o termo ldquofunccedilatildeordquo em se considerando que a cultura se

alicerccedila nas necessidades bioloacutegicas primaacuterias do ser humano Em nossa perspectiva usamos

funccedilatildeo para indicar papeacuteis e posiccedilotildees destacados em relaccedilatildeo a essas deusas revelando atributos

que as distingam De fato como Ruth Benedict e Margaret Mead perceberam em suas pesquisas

e colocaram em suas obras aspectos da personalidade fazem parte do contexto cultural quando

se analisa a eacutetica e a moralidade bem como o impacto que esse aspecto determina na vida social

Achamos que a questatildeo relativa aos papeacuteis desempenhados pelas deusas virgens cria articulaccedilotildees

que favorecem o entendimento da virgindade como oposiccedilatildeo a uma outra circunstacircncia

resgatando e alargando a ideacuteia de ldquopoderrdquo que essa condiccedilatildeo pode oferecer no estudo das

relaccedilotildees sociais Essa tessitura convoca um acordo com um ldquocoacutedigo de eacuteticardquo se assim se pode

rotular das accedilotildees de uma comunidade que partilha valores comuns

As mudanccedilas que adviratildeo no conceito de virgindade prendem-se agraves criaccedilotildees da Igreja

cristatilde estabelecendo novas relaccedilotildees sociais mas mantendo e ressaltando um aspecto que seraacute

discutido no enfoque evolutivo da virgindade

O segundo ponto a ressaltar eacute a questatildeo dos epiacutetetos A pergunta que surge eacute quanto eacute de

fato revelado como atributo nos epiacutetetos Seraacute que o epiacuteteto acrescenta um conteuacutedo novo agraves

caracteriacutesticas das deusas ou eacute apenas um recurso ornamental repetitivo

A poesia de Homero eacute marcada pelo uso calculado dos pleonasmos isto eacute satildeo oacutebvios

mas natildeo inuacuteteis pois realizam uma completude riacutetmica um gesto sonoro aleacutem da comunicaccedilatildeo

do conteuacutedo Assim sendo o gecircnero eacutepico requer esse tipo de estrutura que se impotildee agrave vontade

do proacuteprio autor O epiacuteteto serve pois para preencher o verso hexacircmetro tendo uma funccedilatildeo

poeacutetica e provocando mesmo uma superposiccedilatildeo de tempos entre o tempo que estaacute sendo narrado

e o tempo39 que entra como anterior e posterior ao que se narra pois eacute o tempo que vale como

39 Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do tempo e dos epiacutetetos ver o artigo de RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

24

ornato Esse aspecto como se veraacute adiante cria dificuldades na traduccedilatildeo do grego para outras

liacutenguas pois apenas a natureza da liacutengua grega arcaica pode produzir esses epiacutetetos Eacute inerente agrave

disposiccedilatildeo gramatical da liacutengua do contexto que os accedilambarca A comparaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute

revela um impedimento e a traduccedilatildeo dessa cultura como diz Layton jaacute prevecirc um olhar distante e

uma voz indiziacutevel dos textos de Homero Por mais que se prenda ao conteuacutedo a qualidade do

ldquogeistrdquo 40 da forma nos escapa Como reproduzir a voz de Homero Fica aiacute o questionamento

Voltando agrave questatildeo dos epiacutetetos se eles revelam o que eacute sabido de antematildeo eles tambeacutem

oferecem uma conotaccedilatildeo conteudiacutestica de outro lado Como diz Rodrigues41 referindo-se a uma

das causas do uso de epiacutetetos

no fundo natildeo haacute repeticcedilotildees pois este mundo ndash todos sabem eacute progressista e heracliacutetico42 natildeo existiriam repeticcedilotildees absolutas pois repetir de qualquer forma eacute jaacute alterar43

O uso de epiacutetetos em Homero foi exaustivamente investigado por Milman Parry44 cuja

tese foi a de provar a excelecircncia da qualidade esteacutetica dos versos desse poeta comparando-o a

um escultor cujos traccedilos satildeo simples claros e quase impessoais na sua criaccedilatildeo espontacircnea O

que chamou a atenccedilatildeo de Parry na anaacutelise da obra homeacuterica quando comparou o poeta ao

escultor Fiacutedias foi justamente a habilidade de cruzar a tradiccedilatildeo com sua originalidade Dessa

forma repetindo as palavras de Parry

[The repeated words and phrases45] are like a rhythmic motif in the accompaniment of a musical composition strong and lovely regularly recurring while the theme may change to a tone of passion or quiet of discontent of gladness or grandeur

Para nosso trabalho o epiacuteteto propotildee uma quase que insistecircncia na descriccedilatildeo de uma

caracteriacutestica (parthenos) que parece ser imutaacutevel ou tatildeo recorrente se preferirmos quanto o

40 Usamos o termo geist como eacute usado em antropologia por Franz Boas o espiacuterito de um povo 41 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 42 Heracliacutetico referente a Heraacuteclito de Efeacuteso filoacutesofo preacute-socraacutetico que viveu provavelmente entre os seacuteculos VI e V a C Para esse filoacutesofo unidade regularidade e mudanccedila eterna satildeo qualidades fundamentais do que existe O fluir constante significa que ldquoningueacutem pode banhar-se duas vezes no mesmo riordquo porque esse muda assim como muda o homem In PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 pp 206-207 43 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 44 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 45 PARRY idib p xxv (As palavras e as frases repetidas) satildeo como um motivo riacutetmico no acompanhamento de uma composiccedilatildeo musical fortes e encantadoras regularmente recorrentes enquanto o tema pode mudar para um tom de paixatildeo ou quietude de descontentamento de alegria ou grandeza- traduccedilatildeo nossa

25

proacuteprio epiacuteteto Assim vemos uma dupla funccedilatildeo no epiacuteteto a de enfatizar um aspecto jaacute

conhecido de revelar sua natureza essencial e a de provocar uma compreensatildeo clara de sua

natureza esteacutetica

A questatildeo das consideraccedilotildees sobre o epiacuteteto traz em seu bojo uma outra dimensatildeo _ que

natildeo pode passar despercebida em uma anaacutelise cujo corpus eacute referente a poemas de autores

gregos da eacutepoca arcaica Eacute o caso da ecircnfase que se daacute agrave comunicaccedilatildeo nos poemas de Homero de

Hesiacuteodo e de outros poetas considerados ldquode segunda ordem porque foram tratados injustamente

pela tradiccedilatildeo humanista ocidental dos tempos modernosrdquo46 Sabemos que esse fato do uso dos

epiacutetetos tem sido discutido e alvo de polecircmicas Ainda assim vemos como positivo o fato de

que os mesmos epiacutetetos eram usados em diferentes situaccedilotildees por diferentes autores (em nosso

caso Homero e Hesiacuteodo) pois isso reforccedila o conceito de que havia um senso comum um

entendimento taacutecito um conhecimento abrangente em que a obra poeacutetica revela essa luz que

iluminava o mundo homeacuterico

Eacute por isso que natildeo podemos deixar de reforccedilar a colocaccedilatildeo de Torrano47 de que essas

metaacuteforas fixas criaram uma conotaccedilatildeo de encantamento maacutegico e do sagrado que o mundo dos

deuses evoca

Parry em seu estudo minucioso do epiacuteteto revelou os aspectos do estilo poeacutetico que

privilegiavam a oralidade ressaltando a significacircncia das foacutermulas para fins de comunicaccedilatildeo

Sobre isso Denys Page destacou as importantes descobertas de Parry48 comentando

It is not easy at first to grasp the full significance of Milman Parryrsquos discovery that the language of the Homeric poems is of a type unique in Greek literature ndash that it is to a very great extent a language of traditional formulas created in the course of a long period of time by poets who composed in the mind without the aid of writingThat the language of the Greek Epic is in this sense the creation of an oral poetry is a fact of proof in detail and the proofs offered by Milman Parry are of a quality not often to be found in literary studies49

46 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 p291 47 HESIacuteODO Opcit 48 PARRY Milman Op cit p xxvii 49 Natildeo eacute faacutecil em um primeiro momento perceber a significacircncia plena da descoberta de Milman Parry de que a linguagem dos poemas homeacutericos eacute de um tipo uacutenico na literatura grega ndash que eacute em grande parte uma linguagem de foacutermulas tradicionais criadas no curso de um longo periacuteodo de tempo por poetas que compunham na mente sem a ajuda da escritaQue a linguagem do eacutepico grego eacute neste sentido a criaccedilatildeo de uma poesia oral eacute um fato provado em detalhe e as provas oferecidas por Milman Parry satildeo de uma qualidade nem sempre encontrada nos estudos literaacuterios (traduccedilatildeo nossa)

26

A narrativa miacutetica como coloca Detienne50 comeccedila a fazer parte da tradiccedilatildeo oral no

momento em que ldquoexperimenta a prova da boca e do ouvidordquo Ela surge como produto da criaccedilatildeo

de um indiviacuteduo e pode se perpetuar Inspirado na distinccedilatildeo proposta por Leacutevi-Strauss Detienne

comenta a natureza da narrativa que pertence ao que se chama tradiccedilatildeo como tem sido nomeada

a poesia homeacuterica por Parry Os niacuteveis estruturados de memoralidade da histoacuteria podem ter

fundaccedilotildees comuns e dessa forma permaneceratildeo imutaacuteveis No entanto se os niacuteveis forem

probabilistas poderatildeo apresentar variaccedilotildees dependendo de como os narradores sucessivos vatildeo

acrescentando detalhes informaccedilotildees episoacutedios e portanto nesse continuum da transmissatildeo oral

uma histoacuteria enraizada na tradiccedilatildeo pode se tornar produtora de outras histoacuterias Como diz Leacutevi-

Strauss apud Detienne ldquoas obras individuais satildeo todas mitos em potencial mas eacute sua utilizaccedilatildeo

no modo coletivo que atualiza em cada caso seu mitismordquo51

Propotildee-se pois a partir daiacute uma abrangecircncia do aspecto cultural reconhecendo o miacutetico

nas culturas da palavra naquilo que ele enreda para construir seu esquema conceitual nas

diversidades de produccedilotildees que ele propotildee como expressatildeo de relatos de um tipo determinado

Dessa forma vecirc-se o mito como um gecircnero literaacuterio de manifestaccedilotildees da memoacuteria de uma

sociedade com suas crenccedilas e suas praacuteticas Eacute nesse cenaacuterio de riqueza cultural que os relatos

inesqueciacuteveis da sociedade grega de Hesiacuteodo e de Homero satildeo entendidos e revelam a

complexidade de uma religiatildeo politeiacutesta onde deuses imortais e outras potecircncias sobrenaturais

percorrem o mundo ao lado de indiviacuteduos mortais que convivem nesse mesmo mecanismo de

representaccedilotildees que o conhecimento miacutetico evoca

Mais uma vez verificamos que a anaacutelise da cultura enriquece os mitos e posiciona-os

possibilitando reconstruir e articular elementos dentro de uma visatildeo semacircntica sem reduzi-los

somente a algumas oposiccedilotildees ou apontar restriccedilotildees Oposiccedilotildees existem tambeacutem as diferenccedilas

mas elas satildeo consequumlecircncia de um conjunto mais amplo de um mecanismo complexo e quando

oposiccedilotildees e diferenccedilas forem evidenciadas no campo especiacutefico selecionado (das deusas

virgens) o propoacutesito eacute o de evidenciar aspectos que possam contribuir para situarem-se no

conjunto dessa anaacutelise combinatoacuteria apontando ou sugerindo novas relaccedilotildees interpretativas e

estabelecendo comparaccedilotildees ndash como parte da atitude investigatoacuteria que assumimos

50 DETIENNE Marcel Op cit 51 DETIENNE Marcel opcit p48

27

Nesse sentido a questatildeo do uso da oralidade e da escrita jaacute implica um aspecto

diferencial que tem sido amplamente investigado por antropoacutelogos que estudam e buscam o

entendimento dos nossos ldquoportos de origemrdquo como diz Detienne Assim sendo jaacute podemos

estabelecer uma primeira comparaccedilatildeo a mitologia surge a partir dos relatos escritos Antes o

que havia era o mito A mitologia eacute aquela que evoca a sociedade suas crenccedilas seu modus

faciendi traccedila enfim um mapa do tempo colocando o que se chama de ldquotradiccedilatildeo de uma eacutepocardquo

daquilo que se tem por verdadeiro

Embora seja do acircmbito da antropologia da sociologia e da linguumliacutestica pensar o fenocircmeno

da oralidade e da escrita foi Milman Parry segundo Ong52 o primeiro a dar um enfoque

decisivo nesse assunto

Foi ele quem apontou o contraste entre os modos de pensamento que subjazem a

expressatildeo oral e a produccedilatildeo escrita a partir de estudos literaacuterios tendo como corpus o texto da

Iliacuteada e o da Odisseacuteia A partir daiacute todos os autores de outras aacutereas tecircm sua obra como baacutesica

para o estudo que empreendem

Apesar de o nosso estudo natildeo privilegiar uma investigaccedilatildeo no que diz respeito aos

princiacutepios que norteiam o uso da escrita e o desenvolvimento da linguagem oral natildeo podemos

perder de vista que a forma de expressatildeo manifesta no corpus estaacute relacionada a essa

circunstacircncia Acabamos de verificar que o corpus selecionado por Milman Parry refere-se a

textos da eacutepoca arcaica grega e aponta a significacircncia desse fato Assim sendo o que se quer

ressaltar eacute que os textos escritos de alguma maneira direta ou indiretamente estatildeo relacionados

com os aspectos sonoros e com o contexto que a oralidade comprova para transmitir

significados

A fala como forma de expressatildeo e como maneira de manifestar o pensamento sempre

fascinou os estudos cientiacuteficos e provocou interesse nos pesquisadores de diversas aacutereas Por

isso como reflete Ong

En Ocidente entre los antiacuteguos griegos la fascinacioacuten se manifestoacute em la elaboracioacuten del arte minuciosamente elaborado y vasto de la retoacuterica la materia acadeacutemica mas completa de toda la cultura ocidental durante dos mil antildeos En el original griego techneacute rheacutetorikeacute ldquoarte de hablarrdquo (por lo comuacuten abreviado a solo rheacutetorikeacute) em esencia se referia al discurso oral aunque siendo un ldquoarterdquo o ciencia sistematizado o reflexivo ndash

52 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 p16

28

por ejemplo em el Arte Retoacuterica de Aristoacuteteles ndash la retoacuterica era y tuvo que ser un producto de la escritura53

Portanto a escritura jaacute veio como forma de representar a oralidade de se apoiar em seus

fundamentos e de organizar os componentes da linguagem calcados em princiacutepios do domiacutenio da

ciecircncia e da arte como no caso da retoacuterica Esse aspecto evidencia o uso dos relatos miacuteticos orais

que seguiam uma organizaccedilatildeo textual e a importacircncia do uso da linguagem oral nos estudos

sociais linguumliacutesticos e literaacuterios ou seja culturais

Ademais em se tratando da epopeacuteia podemos questionar como eacute possiacutevel mensurar

aquilo que ela traz em si dos textos que os rapsodos narravam pois conferindo o conceito em

grego Ong54 coloca que ldquorhapsoacuteidein lsquocantarrsquo en griego basicamente significa lsquocoser

cancionesrsquordquo Como reflete o autor citado o texto oral jaacute implica etimologicamente o conceito de

tecer Desta forma a base da poesia eacutepica eacute a oralidade

A poesia eacutepica evidencia pois um aspecto fundamental da construccedilatildeo e da fundaccedilatildeo do

que embasa o chatildeo grego pois eacute atraveacutes dela que os antropoacutelogos chegam a determinadas

constataccedilotildees que podem levar agrave compreensatildeo do ato de criar e do ato de viver na eacutepoca arcaica

A esse respeito diz Robert Aubreton

Eacute possiacutevel ainda ir mais longe e atraveacutes de Homero acompanhar toda a tradiccedilatildeo eacutepica Nascida durante o periacuteodo aqueu ndash o estudo histoacuterico no-lo provaraacute ndash e talvez filha da epopeacuteia cretense a epopeacuteia grega possuiacutea desde essa eacutepoca um jogo completo de foacutermulas que lhe eram proacuteprias que entraram na proacutepria tradiccedilatildeo do gecircnero

E mais

Atraveacutes de todas essas foacutermulas se revelava ao poeta todo um mundo antigo do qual ele conservaraacute a lembranccedila formas aqueacuteias eoacutelicas talvez se a tradiccedilatildeo eacutepica se tornara realmente essa com o correr dos tempos Mas o poeta Homero eacute um jocircnio puro e emprega as formas jocircnicas de seu tempo no meio dessa liacutengua herdada dum glorioso passado histoacuterico e literaacuterio55

Quanto a essa evidecircncia Ruigh56 eacute citado como um dos que acredita nos vestiacutegios de uma

traduccedilatildeo eacutepica micecircnica para depois se tornar eoacutelica e finalmente jocircnica

53 ONG WJ op citp 18-19 54 ONG WJ opcit p22 55 AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero 2ed Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1968 p90-91 56 RUIGHCJ apud AUBRETON opcit

29

Aubreton tambeacutem coloca que recuperando as caracteriacutesticas da poesia homeacuterica um fato

que deve ser levado em conta eacute a unidade real que a liacutengua homeacuterica manteacutem apesar de sua

formaccedilatildeo heterogecircnea

Os dados culturais satildeo pois de extrema relevacircncia no que diz respeito aos estudos

linguumliacutesticos e literaacuterios uma vez que interferem e direcionam o trabalho de traduccedilatildeo do corpus

selecionado

Outrossim os poemas homeacutericos e a Teogonia parecem ser um ponto de partida para o

entendimento do mundo dos deuses entre os gregos ou seja de sua religiatildeo Os deuses governam

o mundo subordinados a Zeus mas ao mesmo tempo conjuntamente com ele Cada um deles

tem atribuiccedilotildees determinadas Em relaccedilatildeo ao nosso objeto de estudo Afrodite eacute a deusa que

provoca o desejo conhecida hoje como a deusa do Amor Aacutertemis a deusa da caccedila deusa

virgem Atena deusa da astuacutecia ou seja deusa da guerra e da inteligecircncia tambeacutem virgem

Heacutestia a deusa do lar soliacutecita e virgem

Poreacutem embora essa possa ser uma classificaccedilatildeo geral o nosso enfoque metodoloacutegico

revela que natildeo pode haver uma rigidez nas funccedilotildees dos deuses Nos casos que nos interessam

por exemplo vecircem-se variaccedilotildees significativas quando se fazem analogias entre contextos

diferentes Assim embora Hera signifique a mulher de Zeus e por isso represente a fertilidade

em Eacutefeso Aacutertemis era reverenciada como deusa da fertilidade e ainda em outros lugares como

a deusa da lua misteriosa Atena a deusa guerreira dividia esse atributo com Ares tambeacutem deus

da guerra

Eacute justamente atraveacutes dos poetas que o mundo desses deuses ldquofala gregordquo isto eacute revela-se

com toda sua forccedila aos humanos revestindo-se mesmo na sua estranheza e na sua forma de

saber um jeito familiar conhecido que se cruza com as questotildees do mundo terrestre

Enfatizamos novamente a posiccedilatildeo de Vernant que privilegia o encruzamento soacutecio-religioso

nesse contexto entrelaccedilado

Se eacute cabiacutevel falar quanto agrave Greacutecia arcaica e claacutessica de ldquoreligiatildeo ciacutevicardquo eacute porque ali o religioso estaacute incluiacutedo no social e reciprocamente o social em todos os seus niacuteveis e na diversidade dos seus aspectos eacute penetrado de ponta a ponta pelo religioso57

57 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p7

30

Eacute a partir da constataccedilatildeo da integraccedilatildeo da religiatildeo com o social que os deuses comportam

diferentes dimensotildees Heacutestia tem o controle sobre a lareira de cada casa marca o centro fixo do

que se constitui como famiacutelia mas a mesma Heacutestia pode conjuntamente com Zeus exercer

controle sobre o que eacute considerada a Lareira comum da cidade

O que entatildeo nos perguntamos faz a originalidade das deusas virgens em relaccedilatildeo aos

outros deuses

Essa pergunta jaacute envolve pois um aspecto da especificidade que nossa investigaccedilatildeo

procura desvendar

Tem-se a impressatildeo a partir do que foi exposto de que os atributos dos deuses satildeo muito

menos precisos do que se pode supor e de que as funccedilotildees variam de acordo com os santuaacuterios

Haacute poreacutem uma marca comum invariaacutevel insistente em Aacutertemis Atena e Heacutestia a

virgindade

Embora alguns aspectos da concepccedilatildeo oliacutempica possam ser explicados agrave luz soacutecio-

histoacuterico-cultural como o caso de Zeus uma divindade masculina adaptado ao culto de um

povo guerreiro ideacuteia provavelmente introduzida pelos aqueus existe paralelamente a ideacuteia da

origem da criaccedilatildeo na Teogonia (v 117 e sgtes) onde a Terra (Gaia) parece ter ocupado lugar

privilegiado Assim a origem primeira daacute-se atraveacutes de uma divindade feminina relacionando

pois o conceito de vida e de fertilidade ao elemento feminino Do ponto de vista antropoloacutegico

essa posiccedilatildeo pertence agrave religiatildeo de povos sedentaacuterios de origem agriacutecola para quem sem

duacutevida a Terra eacute a fonte de toda a vida Parece pois uma atitude que fazia parte da Heacutelade da

eacutepoca dos egeus

Esse aspecto cultural eacute um dado que natildeo pode ser deixado de lado quando se reportam

aos epiacutetetos das deusas virgens e de outras naturalmente Alguns atributos podem estar

vinculados a vestiacutegios que a memoacuteria guardou e repetiu de eacutepocas anteriores e que refletem

aspectos de divindades zoomoacuterficas preacute-helecircnicas Exemplificamos com um epiacuteteto recorrente a

Atena glaucoacutepida ou de olhos glaucos

Em geral os dicionaacuterios definem esse termo relacionando-o ao brilho e agrave cor Em nossas

traduccedilotildees (verificamos que o mesmo se daacute em Torrano58) procuramos manter o uso de olhos

glaucos deixando a interpretaccedilatildeo final por conta do leitor porque o termo tambeacutem pode indicar

58 HESIacuteODO Op cit v888

31

ldquoolhos de corujardquo de acordo com alguns estudiosos do politeiacutesmo helecircnico estando dessa

forma referindo-se a uma divindade que teria um significado zoomoacuterfico

As interpretaccedilotildees revelam o movimento por que as culturas passam em um processo

contiacutenuo de construccedilatildeo de seu solo de seu saber de seu espaccedilo como naccedilatildeo constituiacuteda Assim

embora vinculadas agraves anteriores as concepccedilotildees vatildeo se transformando e quando os aqueus se

misturaram aos povos preacute-helecircnicos houve uma adaptaccedilatildeo no modus vivendi um consenso

reciacuteproco uma acomodaccedilatildeo que prevecirc concessotildees reciacuteprocas Essa adoccedilatildeo e recepccedilatildeo entre os

povos interferem tambeacutem no campo religioso e alguns deuses satildeo adotados outros confundidos

e outros ainda instalados Haacute tambeacutem aquelas divindades que perdem o caraacuteter sagrado Eacute assim

que algumas vezes surgem os heroacuteis Essa conjunccedilatildeo de tradiccedilotildees vai colocando camadas no

que se constitui o solo grego

Como jaacute anunciou a antropologia de linha estruturalista um fato que natildeo se pode ignorar

eacute que as culturas surgiram a partir de diversas comunidades que se acumularam no meio da

mesma espeacutecie por consentimento ou por alguma forma de negociaccedilatildeo produzindo conjuntos

distintos convencionais na organizaccedilatildeo do comportamento e na atribuiccedilatildeo de significados agraves

accedilotildees

Satildeo os traccedilos dessa evoluccedilatildeo cultural que a poesia eacutepica evidencia Por isso quando se

referem agraves deusas virgens os hinos homeacutericos ressaltam epiacutetetos das deusas que de alguma

forma estatildeo relacionados agrave conciliaccedilatildeo entre cultos e deuses Como jaacute se mencionou

anteriormente ao caso de Atena combinada com deuses zoomoacuterficos tambeacutem a mesma Atena

possui outros epiacutetetos que podem estar relacionados a outras divindades preacute-helecircnicas Como

explicar o epiacuteteto Tritogecircnia a ela atribuiacutedo e Atena Tritocircnia Levantam-se hipoacuteteses para esses

epiacutetetos relacionando-os a cultos e lugares onde a deusa era venerada mas os significados

podem ser interpretados de formas variadas

Essas suposiccedilotildees que vatildeo sendo levantadas fazem repensar a linha antropoloacutegica que

escolhemos para o nosso trabalho por isso eacute necessaacuterio apontar para uma consciecircncia sobre as

diferenccedilas humanas no mundo e como ela se articula jaacute que cada cultura eacute vista na sua

singularidade em uma determinada eacutepoca como ressaltamos no iniacutecio do capiacutetulo Poreacutem vale

lembrar que uma linha antropoloacutegica interpretativa volta-se para interpretaccedilotildees provisoacuterias e

parciais e mostra que seu principal objeto de estudo eacute a etnografia o que nos faz debruccedilar sobre

32

o homem e os textos culturais que ele produz Foi com esse pensamento que na nossa

Introduccedilatildeo tentamos apontar aspectos do mundo grego que nos fizessem entender a concepccedilatildeo

que tinham de seus deuses do cosmo a relaccedilatildeo dos homens com esses deuses e com o cosmo e

possivelmente procurar interpretar o atributo ou conceito ou valor eacutetico imposto pela

memorabilidade da virgindade De qualquer forma natildeo podemos deixar de concordar com

Crapanzano e Clifford59 que afirmam ldquoa parcialidade da verdade na antropologia e o caraacuteter de

ficccedilatildeo das etnografias construiacutedasrdquo

Eacute sobre a questatildeo do texto literaacuterio o corpus que escolhemos para investigaccedilatildeo que

queremos fazer alguns apontamentos

Quanto aos textos de Homero a Iliacuteada a Odisseacuteia e quanto aos textos de rapsodos que

compuseram os Hinos Homeacutericos haacute algumas interpretaccedilotildees pertinentes ndash de acordo com nosso

entendimento ndash sobre deles Uma dessas interpretaccedilotildees diz respeito a uma posiccedilatildeo eleita por

Homero isto eacute colocar uma divindade absoluta sobre as outras Zeus senhor do Olimpo sem

revelar tendecircncias sobre deuses ligados a esta ou agravequela cidade Isso denota uma imparcialidade

em Homero pois natildeo toma partido em relaccedilatildeo a um deus especiacutefico de uma cidade aleacutem de

mostrar vestiacutegios de deuses de outras raccedilas dos aqueus e dos egeus bem como de deuses

remanescentes de um periacuteodo preacute-helecircnico sem privilegiar apenas um ligado a uma poacutelis

Portanto os textos homeacutericos dissimulam a questatildeo do culto das divindades locais Seraacute que esse

aspecto revela uma tendecircncia ideoloacutegica Ateacute que ponto quer-se representar uma casta guerreira

fiel agrave organizaccedilatildeo aqueacuteia enaltecendo as estrateacutegias de combate e as narrativas de conflito

Um outro ponto aqui eacute que vale pensar um aspecto do corpus que ressaltamos a

virgindade das deusas pois em Homero eacute inegaacutevel os deuses imortais tambeacutem satildeo

humanizados em suas relaccedilotildees em suas funccedilotildees em seus sentimentos Os deuses participam

tanto das cenas militares quanto das familiares daquelas que fazem parte da vida de todos os

dias Assim a deusa guerreira que faz parte dos combates eacute virgem a deusa que estaacute presente

em cada lar zelando pela famiacutelia eacute virgem a deusa que cuida dos campos e dos animais e que

protege os partos e os adolescentes eacute virgem Pode-se questionar se Atena Heacutestia e Aacutertemis

possuem uma caracteriacutestica que faz parte apenas do feminino Parece-nos que as lendas natildeo

59 CRAPANZANO e CLIFFORD apud JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004 p47

33

mencionam guerreiros deuses e heroacuteis virgens Parece-nos que quando o teatro propocircs Hipoacutelito

dedicado agrave virgem Aacutertemis a deusa do Amor (Afrodite) vingou-se dele Assim estaria a

virgindade grega reservada e aceita soacute para o feminino A relaccedilatildeo pai-filha em Homero eacute dotada

de humanidade que fundamenta o coraccedilatildeo paterno A Iliacuteada mostra um Zeus (canto VIII)

cedendo agraves teimosias de Atena e mimando-a Caracteriacutesticas da fraqueza humana do pai Zeus

Afinal a mitologia narra essa filha nascida da proacutepria cabeccedila do pai armada e cheia do dom da

inteligecircncia e digna de um poder que faz parte de seu caraacuteter haja vista sua origem

Eis como Homero se aproveita da mitologia para que participe da sua saga guerreira

divina e humana

O texto de Homero faz suceder narrativas de cerimocircnias fuacutenebres tristes a episoacutedios

quase liacutericos Teraacute aiacute tambeacutem esse Homero eacutepico momentos de um lirismo cheio de frescor

pintando episoacutedios da vida entre o alegre e o triste Entre o cocircmico e o funesto

Mesmo nos Hinos sacros Homero lhes imprime um colorido humano Recupera os laccedilos

familiares e descreve cenas quase burlescas quando se reporta a Aacutertemis a irmatilde querida de

Apolo dando de beber aos cavalos Ele cita detalhes do cotidiano necessaacuterios que fazem parte

da vida humana

Descreve a mulher que atrai o erotismo exalando da espuma do mar da qual brota

Afrodite sempre desejaacutevel atraente que subjuga mortais e imortais ateacute o proacuteprio Zeus

Ningueacutem consegue domar essa forccedila desejante Soacute as deusas virgens

No canto a Atena destaca o seu poder que como jaacute foi dito eacute herdado do proacuteprio pai

Como guerreira estaacute envolvida em atos beacutelicos mas tambeacutem eacute protetora dos combatentes e zela

por eles

Os textos de Homero vatildeo pois aleacutem das lendas e dos testemunhos histoacutericos na sua

forma de tecer a poesia eacutepica Desse modo a sequumlecircncia temporal da sua narrativa natildeo importa

O que interessa eacute perceber que quando Homero tece a sua narraccedilatildeo ndash e aproveitamo-nos

aqui de um filatildeo da antropologia marxista ndash surgem vaacuterios sistemas cognitivos nesse mesmo

meio resultantes de reaccedilotildees agraves variadas condiccedilotildees materiais

Assim reforccedilamos a ideacuteia de que o mito narra as condiccedilotildees significativas das relaccedilotildees

sociais Essas relaccedilotildees podem sofrer transformaccedilotildees alterando todas as formas de significar de

um sistema social

34

Nesse aspecto as narrativas homeacutericas bem como os hinos homeacutericos reportam-se a

recursos naturais como quando apresentam caracteriacutesticas geograacuteficas relacionadas de algum

modo a uma forma de produccedilatildeo e a determinados tipos de atividades que revelam o

comportamento dos habitantes atraveacutes de seus deuses e de seus heroacuteis Mas ao mesmo tempo

em que essa constataccedilatildeo direciona para um conceito de produccedilatildeo ressaltado pela teoria marxista

quando Homero e outros autores teceram suas narrativas a transparecircncia de caracterizar um

discurso atraveacutes da escrita jaacute se perdeu Entatildeo como coloca Geertz60 tambeacutem quando o

observador interpreta significados quando a interpretaccedilatildeo se dirige a um povo construir

descriccedilotildees e significaccedilotildees sobre esse povo natildeo eacute muito diferente de construir uma obra de ficccedilatildeo

Como ele diz ldquonatildeo existe uma torre de marfimrdquo o que existe eacute a poliacutetica do escritor Dessa

forma uma anaacutelise etnograacutefica comparativa eacute constituiacuteda por quem a escreve

Assim de todo nosso percurso pelas deusas gregas virgens e pela virgindade enquanto

conceito atraveacutes do tempo pode-se dizer como Geertz natildeo eacute ldquomuito diferente de construir

romances sobre a vida na Franccedila rural do seacuteculo XIXrdquo61

De qualquer forma poreacutem os gregos da eacutepoca arcaica existiram independentemente do

que se conjeture sobre eles Do mesmo modo os textos de Homero e de Hesiacuteodo existem como

referecircncia ao nosso proacuteprio discurso sobre os gregos e sobre a Mitologia

Um ponto relevante de se considerar eacute a questatildeo levantada por Foucault62 de que um

estudo sobre o humano revela aspectos que se entrecruzam e se emaranham especificando o que

diz respeito aos homens agrave consciecircncia agrave origem e ao sujeito Isso como diz o mesmo Foucault

nos permite definir um espaccedilo para o qual se aponta apesar de o nosso discurso ser ldquoprecaacuterio e

incertordquo

Assim em se estabelecendo comparaccedilotildees no que diz respeito ao modo de narrar de

Homero e de Hesiacuteodo como jaacute foi dito Homero humaniza o divino Coloca lado a lado deuses

e homens emparelhando-os nos sentimentos e nas accedilotildees Hesiacuteodo ao contraacuterio propotildee uma

composiccedilatildeo que privilegia a experiecircncia sagrada como uma forma de narrar a concepccedilatildeo do

mundo arcaico O uso das foacutermulas e de expressotildees retornantes como marca da oralidade e da

linhagem dos deuses apresenta tambeacutem como a narrativa de Homero a justaposiccedilatildeo temporal 60 GEERTZ apud LAYTON Op cit p 277 61 GEERTZ apud LAYTONIdem p 277-278 62 FOUCAULT Michel A arqueologia do Saber 5ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977 p19

35

mostrando-se indiferente a uma cronologia estruturada O tempo se move como se move a Terra

em um fluir constante No entanto um aspecto determinante em sua obra eacute a forma como a

descriccedilatildeo da origem das linhagens se articula pelo

poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute conferido pela Memoacuteria (Musas)63

Tambeacutem em seus Hinos Homeacutericos Homero lanccedila matildeo do recurso de invocar o poder

das Musas e de ressaltar a importacircncia do canto que possibilita ao homem transcender suas

fronteiras geograacuteficas e terrenas e entrar em contato com o que o canto promove o mundo

audiacutevel dos sons que transporta e o mundo invisiacutevel das formas presentes Esse movimento de

entrar em contato com o mundo gera a experiecircncia divina

Hesiacuteodo aleacutem das concepccedilotildees da linguagem do tempo e do Ser enfatiza ndash e talvez

mesmo centralize ndash a concepccedilatildeo de Memoacuteria na descriccedilatildeo dos extensos cataacutelogos que como

coloca Torrano ldquose oferecem como um espetacular jogo mnemocircnicordquo64

Isso nos coloca frente a um conceito que para entendecirc-lo fez-nos procurar o lado oposto

a arte de esquecer Eacute assim que Weinrich65 inaugura sua discussatildeo sobre a memoacuteria reportando a

ceacutelebre histoacuteria de Simocircnides poeta grego que viveu por volta de 500 aC que ajudou a

identificar os mortos em uma sala cujo teto desabara apoacutes sua saiacuteda O recurso da memoacuteria

espacial teria sido o primeiro exemplo de uso de teacutecnica mnemocircnica Assim a morte suacutebita dos

ocupantes da sala estaria revelando ldquouma ameaccediladora cataacutestrofe do esquecimentordquo que

ldquotransforma o lembrar num problemardquo Portanto desde os poetas gregos ao ldquocantaremrdquo as

tradiccedilotildees a memoacuteria tem um lugar principal pois que o esquecimento apagaria os vestiacutegios de

uma histoacuteria Sem a arte das Musas e sem a voz poderosa da memoacuteria como poderia Hesiacuteodo

narrar a origem dos deuses que eacute a origem do proacuteprio cosmo Sem o poder da memoacuteria como

poderia Homero honrar os deuses reverenciando-os em suas caracteriacutesticas peculiares e narrar

assombrosas faccedilanhas que eram ditas da boca ao ouvido dos homens de seu tempo

O grande feito desses autoresndashaedos foi exatamente o de transformar a ldquomemoacuteriardquo em

fatos concretos no audiacutevel e no visiacutevel Aleacutem dos sons agora a imagem das cenas se

63 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos DeusesEstudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p16 64 HESIacuteODO Op cit p16 65 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 p30

36

representava nos caracteres escritos e tomava forma O que tentamos dizer de maneira trocircpega

Weinrich coloca de forma clara e concisa

O artista da memoacuteria que segue o exemplo de Simocircnides percebe em primeiro lugar para seus fins ndash no caso da retoacuterica isso eacute sempre a fala puacuteblica ndash uma constelaccedilatildeo fixa de ldquolugaresrdquo (em grego topoi latim loci) bem familiares sua residecircncia ou o foacuterum Nesses locais ele testemunha em sequecircncia ordenada os conteuacutedos isolados da memoacuteria depois de primeiro os ter transformado em ldquoimagensrdquo (grego phantasmata latim imaginatio)66

Mas ao lado da memoacuteria que promove imagens criadoras a criaccedilatildeo tambeacutem pode ser

aniquilada nas ldquoaacuteguas do esquecimentordquo Eacute assim que os gregos ndash e a Teogonia67 ndash apontam para

essa genealogia colocam Lete (ΛήӨην) filha da noite (Νүҳ) e de Eacuteris (Discoacuterdia em latim) como

o rio do Hades que permite que os mortos se esqueccedilam de suas lembranccedilas Esse campo de

significaccedilotildees do mundo grego parece conter comparaccedilotildees e contrastes para entender aspectos

inerentes ao humano Assim eles jaacute se baseavam em uma antropologia comparativa em suas

interpretaccedilotildees a arte de esquecer se emparelhava agrave arte de lembrar Em Weinrich68 encontramos

a menccedilatildeo de que Pausacircnias cita uma fonte do Lete na Boeacutecia ao lado da qual havia uma fonte de

Mnemosyne

Nos Hinos Homeacutericos69 o(s) autor(es) dirige-se (no caso de nossa pesquisa) agraves deusas

Aacutertemis Atena e Heacutestia comparando-as e colocando-as com outros deuses Assim quando se

reporta a Aacutertemis ldquoa que atira flechasrdquo menciona seu irmatildeo Apolo tambeacutem ele um ldquodeus que

atira flechasrdquo cujos atributos tecircm pontos semelhantes haja dada sua criaccedilatildeo Quando reverencia

Atena ldquoa deusa da inteligecircncia da astuacutecia (Meacutetis) aquela que participa dos atos beacutelicosrdquo coloca

ao seu lado Ares ldquoo deus que tambeacutem se ocupa da guerrardquo Em relaccedilatildeo a Heacutestia ldquoa deusa da

lareira dos lares e da pira das cidadesrdquo ldquoprotetora da famiacutelia e da polisrdquo une-a a Hermes no seu

movimento de ldquoajudar os homens doador de bens protetor dos caminhos e mensageiro dos

deusesrdquo

Nesse processo de contraste Homero e Hesiacuteodo ressaltaram o esquecimento (Lete filha

da noite escura) e a memoacuteria cujas filhas foram as musas inspiradoras Como coloca Torrano70

66 WEINRICH idem p31 67 HESIacuteODO Opcit p 117118 vs 225-232 68 WEINRICH Opcit p21 69 HESIOD THE HOMERIC HYMNS AND HOMERICA Translated by H G Evelyn-White LOEB Classical Librars 1982 70 HESIacuteODO Opcit p 70

37

a memoacuteria eacute ldquoa mais vigorosa negaccedilatildeo do Esquecimento em que se daacute o Natildeo-Serrdquo A memoacuteria

tem pois nesse sentido uma significaccedilatildeo de presentificar o Ser Isso revela um entendimento

inerente da memoacuteria que nomeia e situa o Ser que o coloca como sujeito da sua histoacuteria e da

Histoacuteria como parte de uma trajetoacuteria O proacuteprio tempo soacute teraacute significaccedilatildeo se fizer parte do

contexto da memoacuteria

Homero explicita claramente essa relaccedilatildeo entre o Ser e o Natildeo-Ser entre o Esquecimento

e a Memoacuteria na Odisseacuteia As drogas (os ρһаґmаkοn no Canto IX) e as artimanhas do amor

(Περικаλλέοs ευνές a cama esplecircndida referindo-se ao seu envolvimento com Circe no Canto X

e com Calipso v 450 451 por exemplo no canto XI quando narra ter sido recebido na cama e

ter tido os cuidados da ninfa em Ogiacutegia onde a deusa vive) interromperam por uns tempos o

propoacutesito de Odisseu retardando seu retorno agrave cidade e a casa uma vez que estivera sob o

comando do esquecimento Esse pertence ao paiacutes dos mortos e natildeo dos vivos como se entende

na narrativa homeacuterica Quando Odisseu volta a Ser quando chega a Iacutetaca sem reconhececirc-la

sentindo-se desolado clamando aos deuses eacute acolhido por Palas Atena que lhe descreve a terra

falando de seu solo feacutertil e de sua produccedilatildeo Entatildeo tendo sido recebido pela protetora de Atenas

Odisseu se recompotildee Estaacute pleno da memoacuteria As condiccedilotildees que levam Odisseu a esse estado de

ficar no esquecimento ou de fazer uso da memoacuteria indicam um estado representativo do Ser

quando o homem se coloca em um conflito entre mergulhar em um espiacuterito de aventura eliminar

o passado e atirar-se no mundo imaginaacuterio e manter-se preso agrave realidade ao mundo conhecido

do qual faz parte O personagem conhece pois um drama de foro iacutentimo que faz parte do

humano enquanto Ser mortal

Assim a epopeacuteia exprime alguns desejos inerentes ao humano no que concerne

sentimentos estados e fantasias Limites que ficam entre o real e o imaginaacuterio e revelam

essencialmente o ideal do homem comum de sua vida no campo no mar no poacutelis combinando

o maravilhoso o misterioso e o sagrado enfim tudo o que pode encantar e ser reconhecido por

esse mesmo homem Cabe ao cantor ao poeta reconstruir e relembrar os gestos que fazem parte

do mundo

Queremos dizer em outras palavras que a obra desses dois grandes gregos Homero e

Hesiacuteodo cobrem todos os aspectos da vida humana Jaacute nos referimos agraves recorrecircncias do Tempo e

do Ser jaacute mencionamos os recursos linguumliacutesticos referentes agrave escrita e agrave oralidade jaacute expusemos

38

o que o mytho pode revelar no contexto arcaico e como se enreda com a questatildeo da tradiccedilatildeo

miacutetica jaacute apontamos para o embrenhamento do social e do religioso jaacute falamos de algumas

caracteriacutesticas pertinentes das obras desses autores e jaacute indicamos nossa indagaccedilatildeo frente ao

objeto de estudo as deusas gregas virgens figuras recorrentes nessas obras citadas aleacutem de suas

representaccedilotildees em estaacutetuas e outras iconografias da eacutepoca bem como sua indicaccedilatildeo nas obras de

Heroacutedoto de Pausacircnias e de outros autores que se referiram agravequela eacutepoca E aiacute encontramos um

aspecto que foi colocado pelos poetas na sua acepccedilatildeo do humano a questatildeo de gecircnero

O feminino e o masculino envolvidos nos laccedilos dos desejos carnais a cama como

siacutembolo de amor uma forma de expressar a sexualidade A virgindade feminina representando

trecircs deusas que natildeo se subjugam agraves questotildees de Afrodite isto eacute ao hiacutemeros a forccedila desejante

que como vimos em Homero leva ao esquecimento e faz com que o homem perca seu rumo

desvie-se de sua rota retarde sua trajetoacuteria A virgindade colocada no feminino e no sagrado em

um mundo com tantos episoacutedios de relacionamentos desejantes com tantas lendas de traiccedilotildees ndash

se eacute que assim podemos chamaacute-las ndash e de procriaccedilatildeo revela uma particularidade a mais nesse

mundo grego a ser investigado e re-examinado Por que perguntamos Aacutertemis Atena e Heacutestia

se opunham de forma obstinada ao ldquoardor amorosordquo O que viam de incocircmodo na manifestaccedilatildeo

da sexualidade Ou melhor o que viam na virgindade

Do ponto de vista psicanaliacutetico (longe de noacutes a atitude de querermos colocar essas figuras

divinas no divatilde) o feminino sempre foi um ldquoembaraccedilordquo para os estudiosos da mente e do

comportamento humanos Conhece-se a famosa indagaccedilatildeo de Freud ldquowas will das weibrdquo71

Vaacuterios autores tentaram explicar justificar e mesmo responder essa indagaccedilatildeo freudiana Grant

em seu artigo sobre a feminilidade reporta-se ao fato de que a literatura analiacutetica ldquonatildeo paacutera de

mostrar que as consideraccedilotildees anatocircmicas natildeo satildeo iacutendices para falar da diferenccedila de identidade

sexual entre homens e mulheresrdquo72

De fato o que marca a sexualidade eacute algo que vai aleacutem da materialidade do corpo Por

isso colocou-se em paacuteginas anteriores a discussatildeo que propotildee a indicaccedilatildeo e a especificaccedilatildeo de

funccedilotildees em alguns momentos em que se reflete sobre aspectos sociais Reproduzindo as palavras

de Grant temos 71 O que quer uma mulher 72 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009

39

O fator preponderante que determinaraacute a questatildeo da diferenccedila sexual seraacute o resultado de uma leitura do corpo marcado por um oacutergatildeo sexual a que uma famiacutelia e um determinado sujeito em certas condiccedilotildees sociais podem proceder73

Grant indica pois que o oacutergatildeo sexual de um sujeito eacute representado pelo significante o

que vale dizer que a sociedade determina conceitos e valores ao masculino e ao feminino

Aleacutem dessa complexa problemaacutetica feminina Freud tambeacutem tentou enfocar e entender a

importacircncia das figuras materna e paterna no desenvolvimento da feminilidade e de alguma

forma a conclusatildeo eacute de que a figura predominante eacute a figura materna Entatildeo perguntamos como

pensar a feminilidade em Atena privada que foi da figura materna Ateacute seu nascimento deu-se

na representaccedilatildeo do masculino tendo ela nascido da cabeccedila do pai Como os antigos gregos

entendiam essa sua mitologia que colocava uma deusa cuja condiccedilatildeo de existecircncia cria um noacute

inarredaacutevel em relaccedilatildeo agrave figura da matildee

Aleacutem do mais Freud tentou responder o enigma da questatildeo que ele mesmo se havia

colocado e propocircs como soluccedilatildeo que ser mulher eacute ser matildee ou em outras palavras ter um filho

significa ter um falo

Apesar de as deusas virgens natildeo terem tido filhos natildeo podemos dizer que esse eacute um forte

argumento contra a feminilidade delas pois muitas outras mulheres inclusive em nosso mundo

contemporacircneo optam por natildeo terem filhos o que natildeo lhes nega a feminilidade

Aleacutem disso ainda um aspecto interessante apresentado por Riviegravere74 eacute que muitas

mulheres que preenchem caracteriacutesticas plenas ocupadas pelo feminino podem estar recorrendo a

maacutescaras de feminilidade revestindo-se apenas de suas aparecircncias As deusas virgens assumiram

sua virgindade sem constrangimento o que lhes confere o epiacuteteto de ldquoparthenosrdquo Portanto natildeo

foram mascaradas como diz Riviegravere a respeito das ldquomulheres-homensrdquo

Assim apesar de muitas especulaccedilotildees natildeo se esclarece muito o conflito que o feminino

pode evocar Ao lado de Freud que queria saber o que eacute uma mulher a nossa indagaccedilatildeo se volta

para o que eacute uma virgem

Talvez a resposta esteja dentro da proacutepria mitologia o que estaacute em jogo eacute a natureza de

todo e qualquer desejo (hiacutemeros) daiacute a importacircncia de Afrodite e de Eros ao longo da histoacuteria da

73 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 74 RIVIEgraveRE apud GRANT Op cit

40

humanidade Alem disso o amor e o desejo se inserem em um registro maior do Ser o da

propriedade privada o que vale dizer que haacute uma propriedade inviolaacutevel no espaccedilo social que eacute

o proacuteprio corpo Isso significa que apesar de as diferenccedilas anatocircmicas natildeo serem relevantes para

a constituiccedilatildeo do masculino e do feminino elas determinam uma significaccedilatildeo social e

ideoloacutegica uma vez que o corpo ao longo da Histoacuteria tem sido usado como mercadoria em um

sistema de trocas

As deusas virgens estavam cientes dessa inviolabilidade e sua privacidade subjetiva

inscrevia-se no discurso miacutetico

Frente a Afrodite ceder ao desejo e ser tomado por ele implicaria a Aacutertemis a Atena e a

Heacutestia ver transformado o valor de uso do seu gozo em valor de troca de desejo Por isso a

afirmaccedilatildeo da virgindade e o pedido ao pai (Zeus) para que pudessem manter esse caraacuteter de

castidade que caracteriza a intimidade subjetiva dessas deusas A autorizaccedilatildeo preacutevia ao outro (ao

pai) se imporia a elas para que pudessem usufruir do seu corpo sem o que esse corpo se

transformaria em valor de uso para o gozo de outro e portanto na posse interditada do que eacute

considerado ser intransferiacutevel Essa opccedilatildeo concretiza-se pois em um gesto com um sentido

simboacutelico evidente de registrar a subjetividade Poreacutem nossa proposta eacute de examinar cada uma

das deusas virgens comparando-as e interpretando caracteriacutesticas que julgamos amplas e que soacute

o contexto cultural nessa teia toda pode exprimir Aleacutem disso no processo de compreensatildeo da

virgindade ndash da mesma forma que memoacuteria e esquecimento se complementam ndash natildeo podemos

deixar de discutir o desejo enfocando a deusa do ldquoAmorrdquo e sua representaccedilatildeo para o

entendimento desse conceito no cosmo no que diz respeito a deuses e homens

Quando colocamos que essa posiccedilatildeo de destaque das deusas se daacute atraveacutes de um gesto

estamos interpretando o conteuacutedo ritualiacutestico que essa posiccedilatildeo comemora O rito de passagem

que se opera eacute singular e pleno de significaccedilatildeo As deusas em questatildeo romperam com uma

situaccedilatildeo codificada pelos valores culturais

Com efeito nas formas instituiacutedas do masculino ndash mortal ou imortal ndash e do feminino ndash

mortal ou imortal ndash na tradiccedilatildeo do Ocidente previam-se as relaccedilotildees de trocas entre os sexos

previam-se os rituais de iniciaccedilatildeo para o casamento previa-se a constituiccedilatildeo da famiacutelia previa-

se a procriaccedilatildeo previa-se a forccedila do desejo Nesse gesto de mudanccedila de posiccedilatildeo do feminino

condensa-se a virgindade Estaacute assim instituiacutedo o registro simboacutelico em que a palavra natildeo

41

consegue dar conta e torna-se insuficiente A abrangecircncia cultural e o aspecto do Ser

transcendem a substacircncia do conceito da virgindade A virgindade entre as mulheres (mortais)

passa a ser instaurada e aceita atraveacutes da atitude e da representaccedilatildeo simboacutelica das deusas

(sagradas) O ser humano comum espelha-se e exemplifica-se no divino Constituem-se

diferentes formas de significar

Discutiremos em outro capiacutetulo que como se isso natildeo bastasse ainda podemos descobrir

outros valores nesse gesto distinguindo cada uma dessas deusas na sua individualidade Isso

implica pois nuances e enfoques diferentes na forma de representaccedilatildeo que a virgindade assume

no sujeito E como o discurso freudiano atesta a sexualidade natildeo tem um sentido uniacutevoco mas

uma multiplicidade de significados Sobre essa situaccedilatildeo diz Birman

O sexual seria marcado pela polissemia natildeo podendo pois enquanto palavra e conceito ser reduzido a um campo restrito de referentes Assim a noccedilatildeo de complexidade perpassa o conceito de sexualidade estando entatildeo a dita polissemia inequivocamente articulada ao atributo da complexidade75

O caso da virgindade se a considerarmos como parte da sexualidade nos faz pensar que

ela eacute desalojada do plano comportamental e se aproxima mais da experiecircncia do senso comum

como pode ser compreendido nos registros do discurso do imaginaacuterio social Esse fato nos

permite concluir que natildeo podemos estabelecer normas e nos permite tambeacutem concordar com

Freud

Se bem que eacute oacutebvio o discurso poeacutetico natildeo seja exatamente o do senso comum pode-se dizer que aquele estaacute mais proacuteximo do imaginaacuterio popular do que o cientiacutefico76

Natildeo podemos deixar de reconhecer que os mitos e o discurso poeacutetico satildeo criaccedilotildees do

humano o que revela que foram as experiecircncias dos indiviacuteduos que forneceram elementos para

as epopeacuteias que falam de deusas e deusas de heroacuteis e de pessoas comuns de guerras e de

conflitos passionais

A complexidade a que se refere Birman (acima citado) encaminha a hipoacuteteses

inquietantes pois tambeacutem a representaccedilatildeo da virgindade pode estar vinculada a fatores que satildeo

indecifraacuteveis nesse campo elaacutestico da sexualidade Uma colocaccedilatildeo feita por Birman parece

oferecer um resumo sinteacutetico de uma questatildeo tatildeo ampla e profunda

75 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 p17 76 BIRMAN Joel idem p21

42

Com efeito a sexualidade se inscreve na fantasia antes de mais nada Esse eacute o campo por excelecircncia do erotismo Natildeo existiria pois sexualidade sem fantasia sendo essa sua mateacuteria-prima Seria entatildeo a partir da fantasia como fundamento que a sexualidade poderia assumir formas comportamentais diversificadas O comportamento seria pois o elo final de uma longa cadeia de relaccedilotildees que se inscreveriam primordialmente na fantasia do sujeito O sexo seria portanto um efeito distante do sexual por mais paradoxal que possa parecer essa afirmaccedilatildeo Em contrapartida se existe algo de enigmaacutetico e de obscuro no erotismo a fantasia seria o lugar crucial para o deciframento desse enigma e de iluminaccedilatildeo dessa obscuridade77

Esse enfoque na fantasia pode revelar que de algum modo a sexualidade se materializa

no registro do corpo Embora essa constataccedilatildeo pareccedila ser antagocircnica o que ocorre eacute que natildeo

existiria oposiccedilatildeo entre a fantasia e o corporal ou em outras palavras a sexualidade soacute pode ser

entendida se forem consideradas as forccedilas pulsionais

Eacute interessante pensar que na nossa constataccedilatildeo do mundo grego a incorporaccedilatildeo dos

valores existentes no imaginaacuterio da eacutepoca arcaica parecia identificar tanto o masculino quanto o

feminino com atributos de atividade no que diz respeito agraves deusas virgens Isso parece

evidenciar um consenso social entre os gregos Se Zeus era um deus ativo natildeo menos que ele era

Afrodite no terreno da sexualidade A seduccedilatildeo provocada por Afrodite foi positivamente

qualificada pois ela inscrevia no sujeito o desejo que eacute a marca insofismaacutevel do seu Ser

A questatildeo do desejo foi amplamente discutida por filoacutesofos e revela desde Platatildeo o que

Freud chamou de desamparo e Lacan de falta Em Platatildeo jaacute se encontra essa acepccedilatildeo de que o

desejo implica sempre a incompletude ou seja o sujeito desejante Por isso encontra-se em

Platatildeo como coloca Dumoulieacute78 que o ldquoo que anima o amor o que faz Eros viver eacute o desejo e o

desejo eacute carecircncia eacute faltardquo

O que interessa pois para entender o conceito de desejo eacute o que fundamenta o

pensamento grego E para os gregos da eacutepoca arcaica a relaccedilatildeo do homem com o Ser implicava

jaacute em si uma relaccedilatildeo de desejo Assim Afrodite se afirmava como eterna nesse movimento

coacutesmico de afirmar o desejo como princiacutepio fundador da eternidade do mundo Na Greacutecia cabia

aos mortais manter as tradiccedilotildees inauguradas pelos deuses e como ldquoguardiatildees da memoacuteriardquo

renovar as tradiccedilotildees atraveacutes dos ritos e dos relatos orais e escritos Por isso os aedos inspirados

pelo poder das musas podiam contar as faccedilanhas dos deuses e dos homens de forma que elas

passassem a pertencer ao visiacutevel e pudessem revelar a forccedila desejante do Ser

77 BIRMAN Joel opcit p62 78 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 p25

43

4 - O QUE Eacute TRADUZIR lsquoHOMEROrsquo TENTATIVAS E RISCOS

Assim eacute que a felicidade de um povo corta as asas a seu verso oferece escassa mateacuteria para admiraccedilatildeo e piedade E ainda que o prazer originado do gosto pelas espeacutecies sublimes de escrita possa fazer Vossa Senhoria lamentar o silecircncio das Musas estou persuadido de que vos ireis juntar a mim nos votos de que jamais possamos ser tema apropriado de um poema heroacuteico79

Como ldquoserrdquo um Homero grego em portuguecircs Ou um Hesiacuteodo Ou um rapsodo O

absurdo da indagaccedilatildeo jaacute leva a uma constataccedilatildeo oacutebvia da resposta

Citando um trecho das reflexotildees de Detienne temos que

a liacutengua veicula noccedilotildees o vocabulaacuterio eacute mais um sistema conceitual do que um leacutexico e as noccedilotildees linguumliacutesticas remetem agraves instituiccedilotildees isto eacute a esquemas diretores presentes nas teacutecnicas nos modos de vida nas relaccedilotildees sociais nos processos da palavra e do pensamento80

Se por um lado isso revela a impossibilidade da exatidatildeo em qualquer traduccedilatildeo por

mais teacutecnica e detalhada que ela seja por outro lado revela o desejo do pesquisador de se

aproximar de um estudo etnograacutefico bisbilhotando os textos no original descobrindo indicaccedilotildees

que o uso dos vocaacutebulos das colocaccedilotildees das alternacircncias das recorrecircncias possa significar

Jaacute vimos no capiacutetulo anterior que Milman Parry apontou para a importacircncia dos epiacutetetos

na poesia eacutepica grega Soacute quando se inteirou da profundidade da linguagem e da liacutengua esse

autor pocircde fazer descobertas significativas que introduziram por sua vez novos conceitos e um

novo olhar sobre os epiacutetetos na epopeacuteia e na forma de transmitir a tradiccedilatildeo Como coloca ainda

Detienne ldquoQuaisquer que sejam seus efeitos imediatos ou a longo prazo o escrever a lsquotradiccedilatildeorsquo

transforma virtualmente uma cultura baseada na oralidade na memoacuteria e no memoraacutevelrdquo81 Foi

desdobrando as dobras da epopeacuteia grega que Milman Parry pocircde verificar os desiacutegnios da

tradiccedilatildeo

Alguns aspectos da cultura satildeo dificilmente localizaacuteveis se natildeo houver investigaccedilatildeo do

campo linguumliacutestico e do semacircntico Eacute preciso ldquomaterializarrdquo a liacutengua alvo para conseguir perceber

ndash ainda que de longe e a distacircncia ndash o pensamento miacutetico

79 BLACKWELL apud LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 p 188 80 DETIENNE MarcelOs Gregos e Noacutes Uma Antropologia Comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p79 81 DETIENNE Marcel Opcit p63

44

O objetivo do tradutor eacute tentar entender o texto estrangeiro natildeo soacute na sua abrangecircncia

mas tambeacutem nos detalhes Aleacutem da visibilidade das imagens graacuteficas que compotildeem o texto ele

tem de captar os vatildeos invisiacuteveis Assim a dificuldade se faz dupla traduzir o diziacutevel e o

indiziacutevel

Venuti inaugura seu texto sobre traduccedilatildeo com a colocaccedilatildeo de que

o trabalho de traduccedilatildeo eacute governado por uma noccedilatildeo de equivalecircncia que evolui e varia equivalecircncia a uma interpretaccedilatildeo de uma forma e um conteuacutedo estrangeiros em geral realizada no processo de traduccedilatildeo e raras vezes articulada independentemente dele82

Daiacute jaacute se nota que natildeo haacute uma uacutenica forma de traduzir e que a traduccedilatildeo eacute atravessada pelo

conhecimento que o tradutor tem da liacutengua estrangeira da cultura alvo e de sua relaccedilatildeo com a

sua cultura de origem Esse referencial de valores culturais domeacutesticos indubitavelmente pode

afastar o tradutor do texto e o torna ldquomais estrangeirordquo Mas ao mesmo tempo tambeacutem a

traduccedilatildeo oferece uma domesticaccedilatildeo pois que o tradutor vai se familiarizando com a cultura

estrangeira no ato de traduzir Nesse sentido a traduccedilatildeo se presta para construir representaccedilotildees

de culturas estrangeiras

Esse movimento de se adequar a uma outra cultura construindo uma posiccedilatildeo de

inteligibilidade para o sujeito acaba tambeacutem criando uma postura ideoloacutegica A escolha de um

texto e de estrateacutegias de traduccedilatildeo pode direcionar o texto para diferentes visotildees e pode ateacute

mesmo mudar ou consolidar cacircnones e paradigmas conceituais aleacutem de influenciar metodologias

de pesquisa enfoques teacutecnicos e praacuteticas que satildeo parte da cultura domeacutestica

Na tentativa de traduzir o trabalho do tradutor reflete sua ideologia Por isso eacute

fundamental que se tenha em mente que o trabalho de traduccedilatildeo admite mais que uma abordagem

Assim por exemplo na tentativa de traduzir os Hinos Homeacutericos procuramos seguir as

pegadas do autor autores do texto original procurando palavras que recuperassem o uso dos

epiacutetetos empregando adjetivos e expressotildees que ressaltassem caracteriacutesticas dos deuses

selecionando verbos que retratassem accedilotildees referentes agrave eacutepoca arcaica ldquoinventandordquo termos que

dessem conta da representaccedilatildeo de imagens do cosmo

Ia surgindo assim uma aacuterea de trabalho inteiramente nova e foi nesse momento que

entendemos a acepccedilatildeo de Venuti a respeito dos ldquoefeitosrdquo da traduccedilatildeo mudamos o nosso modo de

82 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 p173

45

olhar o mundo grego As deusas virgens se presentificaram e a epopeacuteia tomou forma e ganhou

ritmo Parecia-nos impossiacutevel que em menos de um ano pudeacutessemos entender textos em grego

Seraacute que nos aproximamos de um processo de domesticaccedilatildeo

Poreacutem o que eacute fato conhecido eacute que haacute tambeacutem a ideologia do tradutor do tradutor

Dessa forma cada eacutepoca dita seus cacircnones e independentemente deles existe um

ldquocorporativismo acadecircmicordquo que determina estilos de traduccedilatildeo aceitaacuteveis e que se tornam

paradigmaacuteticos Essas avaliaccedilotildees institucionais nem sempre consideram todos os aspectos que

envolvem uma traduccedilatildeo Por exemplo a ediccedilatildeo chamada de LOEB eacute considerada ao lado da

traduccedilatildeo francesa de Jean Humbert des Belles Lettres um claacutessico_ como se chamam todas as

obras consagradas_ e no entanto o autor traduz os Hinos Homeacutericos sem a preocupaccedilatildeo de

manter a estrutura riacutetmica e a beleza poeacutetica dos versos Resume-se a traduzir o significado do

texto de forma ldquoconteudiacutesticardquo Nessa passagem de um idioma ao outro haacute tambeacutem uma

mudanccedila do gecircnero textual de poemas para uma narrativa factual Esse tipo de ocorrecircncia revela

a questatildeo da subjetividade do tradutor De qualquer forma as ediccedilotildees LOEB satildeo um cacircnone para

a traduccedilatildeo de textos gregos porque servem a certos interesses de um grupo especiacutefico Isso

explicita uma outra questatildeo ideoloacutegica qual seja a de que os cacircnones introduzidos pelos falantes

de liacutengua francesa e de liacutengua inglesa tecircm dominado o mundo ocidental Como dissemos as

escolas indicam a ldquopreferecircnciardquo de um momento de uma predominacircncia de poliacutetica linguumliacutestica e

hoje a obra de Caacutessola Inni Omerici eacute tida como um dos manuscritos mais apropriados dado o

seu embasamento de pesquisa e seleccedilatildeo cuidadosa do material

Essa constataccedilatildeo revela a dificuldade de um trabalho de traduccedilatildeo e demonstra que os

ldquoefeitosrdquo em geral refletem os interesses de um grupo cultural particular

De forma ousada quase um desafio na tentativa de correr riscos ao se traduzirem os

Hinos Homeacutericos para o portuguecircs procuramos fazer um trabalho em que acreditaacutevamos ndash e aiacute

entra a nossa individualidade ndash na investigaccedilatildeo do leacutexico no entendimento das funccedilotildees

sintaacuteticas na organizaccedilatildeo do texto e sobretudo na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees culturais

Fomos fazendo comentaacuterios tecendo consideraccedilotildees e propondo questionamentos de questotildees

natildeo resolvidas Aleacutem disso procurou-se manter uma preocupaccedilatildeo meacutetrica dos versos para tentar

conservar uma cadecircncia riacutetmica Mais uma vez a questatildeo da domesticaccedilatildeo e da equivalecircncia a

qual natildeo haacute como se evitar

46

Haacute ainda dois pontos a serem considerados por serem objeto de nosso interesse (1) que

desconhecemos qualquer traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos agraves deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia em

portuguecircs e dos Hinos V e VI referentes a Afrodite (2) que eacute preciso que se reconheccedila o caraacuteter

da poesia eacutepica

O estilo da poesia eacutepica eacute de inegaacutevel simplicidade conciliando a excelecircncia dos

costumes e a nobreza dos caracteres Eacute uma manifestaccedilatildeo do ldquomaravilhosordquo e do ldquoassombrosordquo

Tanto em Homero como nos rapsodos que o sucederam e que continuaram sua tradiccedilatildeo como

em Hesiacuteodo a histoacuteria dos deuses e dos heroacuteis eram colocadas para a representaccedilatildeo da

ocorrecircncia de fatos extraordinaacuterios e no caso dos Hinos Homeacutericos na exacerbaccedilatildeo de

verdadeiras louvaccedilotildees arrebatadoras dramaacuteticas enfatizando dons e atributos que movem as

paixotildees humanas que as engrandecem e que evocam clamam pela imitaccedilatildeo do que eacute grandioso

para o humano Como diz Lacerda referindo-se ao trabalho de Blackwell83 sobre a eacutepoca de

Homero

Blackwell como se acabou de verificar presumiu que o grego falado no tempo de Homero se encontrava em condiccedilotildees ideais para a composiccedilatildeo eacutepica O que o tornava tatildeo apropriado seria natildeo soacute a coloraccedilatildeo emotiva mas ainda a ausecircncia de artifiacutecios e sutilezas ldquoUma liacutengua totalmente polida no sentido modernordquo sentencia ldquonatildeo desceraacute agrave simplicidade de maneiras absolutamente necessaacuteria na poesia eacutepicardquo84

Esse aspecto ndash de uma simplicidade quase ingecircnua ndash que foi visto por muitos autores

como um lsquoprimitivismorsquo nos parece como coloca Lacerda ldquouma forma particular de poesia (e de

saber)rdquo85 E mais

Visto que o bom poeta imita a ldquonaturezardquo e natureza no caso quer dizer realidade circundante o poeta de uma eacutepoca polida soacute teraacute ecircxito em assuntos refinados86

Isso nos remete agrave questatildeo dos ldquoriscosrdquo que percebemos nas traduccedilotildees agraves vezes tatildeo

polidas apropriando-nos do termo de Blackwell que se tornam distantes da realidade da eacutepoca

dos deuses quando o efeito da poesia eacute muito mais feito pelo sublime do que pelo grandioso que

os tempos modernos inauguraram

83 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer( 1736) Reimpressatildeo reprograacutefica HildesheimNew York Georg Olms 1976 84 LACERDA Sonia Op cit p 186 85 LACERDA Sonia Idem p 186 86 LACERDA Sonia Idem p187

47

Eacute que Homero Hesiacuteodo e os rapsodos como bardos compositores participavam da

amaacutelgama de saberes miacuteticos (que perdemos atraveacutes dos tempos) e os esquemas linguumliacutesticos e os

motivos narrativos proporcionavam a esses poetas a substacircncia representativa e imageacutetica dos

poemas A forma de vida nesse mundo arcaico a religiatildeo ldquoacotoveladardquo com a realidade

cotidiana e a simplicidade da linguagem eram circunstacircncias essenciais para a elaboraccedilatildeo

ldquoliteraacuteriardquo de uma poesia eacutepicamiacutetica

Por isso querer traduzir os poemas desses bardos corre o risco de produzir uma forma

sincreacutetica ldquofalsardquo de poemas sem feiccedilatildeo na medida em que se afastam tanto da perspectiva da

faacutebula miacutetica quanto da linguagem metafoacuterica pois que a mitologia jaacute eacute intrinsecamente

metafoacuterica

Portanto optamos por traduzir os hinos homeacutericos na sua linearidade no entendimento

do movimento do leacutexico da multiplicidade das metaacuteforas na organizaccedilatildeo das faacutebulas sem

qualquer pretensatildeo ldquomimeacuteticardquo ou seja de imitar aquilo que faz parte da inerecircncia do mito

Pareceu-nos por isso saacutebia a posiccedilatildeo adotada por Faulkner87 quando em sua obra apresenta o

Hino Homeacuterico V a Afrodite em grego limitando-se a comentaacuterios linguumliacutesticos e semacircnticos do

texto a traduccedilotildees interpretativas de frases e expressotildees sem no entanto compor uma traduccedilatildeo

sua

Ainda no dizer de Lacerda reportando-se ao mesmo Blackwell

Da mesma maneira que lhe estatildeo vedados o surpreendente e o fabuloso ao poeta moderno eacute interdito descrever accedilotildees sublimes e caracteres heroacuteicos pois este satildeo estranhos aos costumes de seu tempo e agrave sua experiecircncia88

Seja como for parece-nos que a poesia eacutepica pode tambeacutem ser adaptada a tempos

modernos adquirindo um novo enfoque

87 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Oxford Oxford University Press 2008 88 LACERDA Sonia Opcit p188

49

5 - QUE DEUSAS SAtildeO ESSAS

ldquoLa fertilidad de la naturaleza y la fecundidad tanto de la tierra como de los seres humanos fueron consideradas como misterios sublimes y foram divinizadasrdquo89

51 - AFRODITE E A REPRESENTACcedilAtildeO DO DESEJO

Afrodite eacute consagrada como a deusa do amor a deusa Afrogeneacuteia (ΑФρογένεια) que

nasceu da espuma do mar

Como tudo se inicia A lenda mais conhecida nos conta que no princiacutepio Gaia a matildee

universal comeccedila criando a partir de si mesma quer dizer sem seu contraacuterio masculino o que

implica pois que natildeo houve uniatildeo sexual Esse tipo de reproduccedilatildeo nomeada de cissiparidade

deu origem a Urano o ceacuteu Entatildeo nesse momento comeccedilaram a unir-se Gaia e Urano dois

princiacutepios opostos para procriar filhos que tecircm uma individualidade que satildeo marcados por

atributos que tecircm uma funccedilatildeo como potecircncias coacutesmicas A uniatildeo do ceacuteu e da terra se faz sem

regras O ceacuteu acomoda-se sobre a terra cobrindo-a inteira e os filhos gerados natildeo podem sair da

matildee Gaia por falta de distacircncia entre esses dois pais coacutesmicos Inconformada a matildee (Gaia) pede

a um de seus filhos Crono que agrave noite enquanto o ceacuteu (Urano) se debruccedila sobre ela que ele

(Crono) o castre Assim Urano eacute castrado por um golpe de foice amaldiccediloa os filhos e deixa

Gaia liberta Ficam deste modo separados por um grande espaccedilo vazio apartados um do outro

onde os opostos mesmo quando se unem permanecem distintos

Isto posto jaacute se vecirc que natildeo se pode pensar em uniatildeo dos contraacuterios sem que essa ideacuteia

esteja relacionada a um conflito a uma luta de forccedila entre os dois sexos Eacute nessa tessitura de

ldquocorda esticadardquo entre o macho e a fecircmea que surge Afrodite o ldquoamorrdquo Vinda dos testiacuteculos

ensanguumlentados de Urano que caiacuteram na aacutegua ela chega inaugurando uma forma organizada de

engendrar por uniatildeo os contraacuterios presidindo o casamento em um espaccedilo (sociedade grega

patriarcal) em que a mulher tinha como finalidade a ldquoconstruccedilatildeordquo de seu lar (marido e filhos)

89 MAVROMATAKI Maria Mitologia GriegaAtenas Ediciones Xaitali 1997 p 5

50

Como dizem Vernant e Vidal-Naquet ldquonum mundo pautado pela lei de

complementaridade entre os opostos que ao mesmo tempo se afrontam e se harmonizamrdquo90

Outra lenda conta que Afrodite teria nascido da uniatildeo de Zeus91 com Dione uma das

deusas da primeira geraccedilatildeo divina cuja origem diverge segundo diferentes tradiccedilotildees Ora diz-se

que Dione era filha de Urano e Gaia ora de Teacutetis e Oceano como estaacute colocado na Teogonia de

Hesiacuteodo Essa lenda sobre o nascimento de Afrodite natildeo eacute amplamente conhecida e eacute menos

divulgada que a anterior jaacute tatildeo explorada pelos grandes artistas de todos os tempos quer sejam

eles pintores quer poetas

Entretanto verifica-se a alusatildeo a essa lenda na Iliacuteada V 312-374 quando Afrodite filha

de Zeus (v 312 ∆ιός θυγάτηρ ΆΦροδίτη) protege seu filho Eneacuteias (gerado com o mortal

Anquises) e eacute ferida pelo heroacutei Diomedes (por sua vez protegido de Atena) Afrodite entatildeo

corre para o colo de sua matildee Especificamente os versos 370-374 narram o encontro de matildee e

filha descrito com o lirismo da proteccedilatildeo materna e do consolo compreensivo que Dione oferece

a Afrodite

ή δ έν γούνασι πΐπτε ∆ιώνης δι΄ ΆΦροδίτη 370 microητρος έής ή δ αγκάς έλάζετο θυγατέρα ήν χειρί τέ microιν κατέρεξεν επος τ΄ έΦατ΄ έκ τ΄ όνόmicroαζε ldquoτίς νύ σε τοιάδ΄ έρεξε Φελόν τεκος Οΰρανιώνων microαψιδιως ώς ει τι κακόν ρέζουσαν ένωπήrdquo92 374 Mas Afrodite arremessa-se nos joelhos de Dione 370 sua matildee e ela tomou sua filha nos braccedilos com a matildeo acariciou-a e fez uso das palavras dizendo ldquoquem agora dos filhos de Urano querida crianccedila fez coisas a ti sem razatildeo como se vocecirc um mal tivesse praticado agrave frente de todosrdquo93 374

90 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 p 61 91 Zeus eacute considerado o deus mais importante do Panteatildeo grego Identifica-se com a luz tal como o raio e reina poderoso no Olimpo morada de todos os deuses Eacute filho de Crono e Reacuteia Crono devorava os filhos agrave medida que nasciam Quando Zeus nasceu Reacuteia deu uma pedra enrolada em um pano a Crono que pensando ser a crianccedila engoliu-a Desta forma Zeus foi salvo e mais tarde tomou o poder das matildeos do pai assim como Crono havia tirado o poder de Urano castrando-o 92 HOMER The Iliad v 1 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 93 Traduccedilatildeo nossa apenas para efeito de verificar o sentido do trecho que se refere agrave origem de Afrodite

51

Como se vecirc natildeo se pode deixar de considerar essa outra tradiccedilatildeo do nascimento de

Afrodite uma vez que a Iliacuteada que eacute uma das obras mais lidas aponta para esse fato que eacute

representativo de uma linhagem que privilegia o lugar do feminino na famiacutelia patriarcal dando

ecircnfase agrave figura materna

Um outro aspecto em Afrodite que merece ser destacado eacute a questatildeo do movimento

Afrodite eacute errante Diferentemente das deusas virgens que possuem um domiacutenio especifico

Afrodite perambula por diversos espaccedilos Ela chega mesmo a invadir a ldquoaacuterea delimitadardquo das

outras deusas

Melhor explicando essa ideacuteia podemos reportar-nos a trechos da Iliacuteada e da Odisseacuteia

bem como dos Hinos Homeacutericos reveladores de seu caraacuteter inquieto fugidio onipresente A

guerra estaacute pela sua natureza relacionada agraves atividades da deusa Palas Atena que herdou a

astuacutecia materna e o espiacuterito combatente do pai como eacute comentado adiante Poreacutem Afrodite entra

e move-se nesse espaccedilo envolvendo-se de forma que natildeo pode ser controlada Como jaacute vimos no

canto V da Iliacuteada (312-374) Afrodite vai ao campo de batalha e Diomedes lhe diz em altos

brados

Filha de Zeus94 poderoso conserva-te longe da luta 348 Ou seduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedila Se ainda sentires desejo de ver um combate de perto creio que soacute o nome ldquoguerrardquo haacute de grande pavor inspirar-te Atormentada Afrodite enquanto ele falava afastou-se95 352

As palavras de Diomedes deixam claro novamente essa tradiccedilatildeo da origem de Afrodite e

o fato de que a guerra natildeo eacute espaccedilo para seduccedilatildeo para o feminino que natildeo leva a seacuterio uma

atividade complementar que faz parte da organizaccedilatildeo poliacutetico-social do povo grego Atena ao

contraacuterio move-se dentro da batalha seu campo de domiacutenio como estrategista e essa eacute uma de

suas funccedilotildees

A propoacutesito a Iliacuteada relata um episoacutedio de guerra que se desenvolve a partir da

representaccedilatildeo do desejo Eacute vinculado agrave ideacuteia de uniatildeo e de conflito a que nos referimos

anteriormente que tem iniacutecio uma guerra que envolve deuses e deusas heroacuteis e homens O

conflito eacute gerado por Afrodite na sua proposta de manter o reinado da seduccedilatildeo Natildeo haacute homem

94 Grifo nosso 95 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 p 145

52

que resista agraves tentaccedilotildees de Afrodite ou melhor difiacutecil eacute resistir aos seus ardis femininos Como

diz Diomedes a ela ldquoseduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedilardquo96

Como se sabe e a tiacutetulo de recordaccedilatildeo a histoacuteria da Iliacuteada na verdade comeccedila no ldquoceacuteurdquo

Conta a lenda que em uma grande festa em que se celebrava o casamento a uniatildeo de Peleu e

Teacutetis todos os deuses haviam sido convidados exceto Discoacuterdia (Eacuteris) E por ser Discoacuterdia

insultada e indignada fez rolar uma maccedilatilde pelo chatildeo da entrada ndash chamada lsquopomo da discoacuterdiarsquo ndash

proacuteximo ao assento das deusas Hera Atena e Afrodite Quando Hera pegou a maccedilatilde leu o que

estava escrito ldquoPara a mais belardquo Como reaccedilatildeo feminina Hera imediatamente achou que a maccedilatilde

era para si proacutepria Atena reagiu e Afrodite enfaticamente disse que era para ela Nesse clima de

discoacuterdia foi chamado Zeus que cauteloso e conhecedor do perigo de apontar qualquer uma

delas como a mais bela pois as outras duas se vingariam decidiu nomear Paacuteris tambeacutem

conhecido como Alexandre um dos filhos de Priacuteamo para decidir a questatildeo Hermes o deus

mensageiro levou as trecircs ateacute o Monte Ida onde estava Paacuteris em Troacuteia Laacute cada uma delas

ofereceu uma forma de suborno a Paacuteris em troca do tiacutetulo

Atena propocircs conceder-lhe o dom de ser um guerreiro vitorioso Hera lhe ofereceu o

reinado sobre toda a Aacutesia e Afrodite ofereceu-lhe a mulher mais bela Helena de Esparta Paacuteris

entregou a maccedilatilde de ouro a Afrodite

Eacute interessante verificar que Afrodite gera um conflito tal que troianos e gregos lutam e

morrem pelo rapto de uma mulher pois Helena jaacute era casada com Menelau Aleacutem disso o

feminino revela-se nas outras duas deusas Hera e Atena em forma de vinganccedila Hera torna-se

inimiga de Troacuteia berccedilo de Paacuteris por quem ela e Atena foram preteridas Assim por ocasiatildeo do

rapto de Helena por Paacuteris Hera faz com que o navio em que estavam os dois se afaste do

caminho de Troacuteia e se dirija para Siacutedon na costa siacuteria

Afrodite torna-se protetora de Troacuteia durante a guerra

As deusas e suas reaccedilotildees revelam um caraacuteter humano em que as emoccedilotildees ocupam um

papel preponderante tornando a epopeacuteia homeacuterica real tocante e ateacute mesmo com um certo

ldquolirismordquo como jaacute rotulamos anteriormente em um momento de ousadia Mas os deuses ndash e

nesse caso as deusas ndash soacute fazem sentido se houver o ldquohumanordquo as paixotildees que determinam

concorrecircncias voluacutepias enganos oacutedios terriacuteveis desordens desmedidas lutas Em se

96 HOMERO Idem v 349

53

considerando esse aspecto fundamental do mito grego o certo e o errado o que pode e o que natildeo

pode o que deve e o que natildeo deve enfim valores morais que os homens estabeleceram ao

longo dos tempos eles natildeo existiam como valores eacuteticos entre os gregos da eacutepoca arcaica Desse

modo a moral de Afrodite eacute o desejo poder contra o qual os mortais nada podiam pois os

homens nada valiam sem seus deuses Em outras palavras as accedilotildees humanas (de Paacuteris e de

Helena) soacute existem por intervenccedilatildeo divina Cabe aos deuses a direccedilatildeo de suas intervenccedilotildees ainda

que possam parecer desleais mas que em geral tentam ajudar aquele ou aqueles que procuram

proteger Com a proteccedilatildeo dos deuses aos mortais nada eacute impossiacutevel e assim como Atena

protege Diomedes no combate Afrodite vela por Paacuteris o troiano contra Menelau que teve sua

mulher raptada

O canto III da Iliacuteada mostra um momento de grande forccedila e poder de Afrodite quando

Alexandre (Paacuteris) filho de Priacuteamo (de Troacuteia) luta com Menelau (marido ofendido) e embora

Menelau saia vencedor do embate (graccedilas agrave proteccedilatildeo de Atena) Afrodite salva Paacuteris da morte

(das investidas violentas das armas de Menelau) e o leva a salvo ateacute Helena A proacutepria Helena

reprova a atitude da deusa ante a vitoacuteria de Menelau poreacutem Afrodite chama-lhe a atenccedilatildeo para

seu poder dizendo

Natildeo me provoques criatura infeliz porque natildeo aconteccedila 414 que te abandone e te venha odiar quanto agora te prezo Se entre Acaios e Teucros97 fizesse surgir oacutedio infausto contra tu proacutepria haverias de ter um destino bem triste98 417

Ouvindo essas palavras Helena ficou cheia de medo (έδδεισεν v 418) e seguiu a deusa

que no texto homeacuterico eacute indicada com a palavra δαίmicroων v 420 com sentido de terriacutevel

poderosa de onde vem em portuguecircs o termo democircnio usado na traduccedilatildeo de Nunes

e sem dizer mais palavra se foi99 no veacuteu branco envolvida 419 sem que as troianas a vissem servia de guia o democircnio100 420

A influecircncia de Afrodite eacute decisiva na uniatildeo do casal Paacuteris-Helena e essa ligaccedilatildeo natildeo

dependeu do desejo dos mortais mas do ldquodestinordquo imposto pela deusa

97 Equivalente a gregos e troianos No texto Τρώων καί ∆αναών (v 417) sendo que ∆αναών significa descendente de Dacircnaos 98 HOMERO Op cit Canto III 414-417 p 115 99 Referindo-se a Helena 100 HOMERO Op cit Canto III 418-420 p 115

54

Afrodite tambeacutem protege na guerra de Troacuteia Eneacuteias seu filho com Anquises mas isso eacute

uma outra histoacuteria Aqui a lenda miacutetica enreda temas de conceitos que se sobrepotildeem primeiro a

questatildeo que existe entre a diferenccedila essencial da imortalidade dos deuses e da mortalidade

humana Eneacuteias eacute fruto de uma ligaccedilatildeo entre a deusa Afrodite e o mortal Anquises o que jaacute

revela que como descendente que tem traccedilos humanos natildeo goza do privileacutegio da imortalidade

Segundo apesar de Afrodite estar sempre tecendo a seduccedilatildeo e provocando a uniatildeo sexual entre

deuses e homens o Hino Homeacuterico V que faz parte de uma sequumlecircncia de trinta e trecircs hinos de

eacutepocas e autores diferentes posteriores agrave Iliacuteada e a Odisseacuteia mas que mantem tambeacutem uma

dicccedilatildeo eacutepico-narrativa narra a seduccedilatildeo da proacutepria Afrodite por Anquises e a concepccedilatildeo de

Eneacuteias Veja-se o trecho seguinte retirado do Hino Homeacuterico V 247-255 em que Afrodite

reconhece seu deslize por ter se deixado envolver por um homem mortal

∆ΰτάρ εmicroοί microέγ ονειδος έν αθαvάτοισι θεοΐσιν 247 Έσσεται ήmicroατα πάντα διαmicroπερές έίνεκασεΐο οί΄ πριυ ε΄microούς ο΄άρους και υητιας αΐς ποτε πάντας αθανάτους συνέmicroιξα καταθνητήσι γυναιξί 250 τάρβεσκον πάντας γάρ εmicroόν δάmicroνασκε νόηmicroα νΰν δέ δη ουκέτι microοι στοmicroα χείσετι έξονmicroήναι τούτο microετ΄ άθανάτοισν έπεί microαλα πολλόν α΄άο θην σχέτλιου οΰκ όνοταστόν άπεπλάγχθην δέ νόοιο παΐδα δ΄ ύπό ζώνη έθέmicroηv βροτώ εύνηθέΐοα101 255

E agora sobre mim uma grande censura entre os deuses imortais 247 haveraacute todos os dias continuamente por causa de vocecirc aqueles que se amedrontaram de minhas zombarias e ardis com os quais alguma vez fiz todos os imortais se envolverem com mulheres mortais 250 pois meu propoacutesito submeteu todos a mim Mas agora minha boca natildeo mais teraacute coragem de mencionar isso entre os imortais desde que fiquei grandemente atormentada infeliz sem palavras tendo perdido o juiacutezo trago uma crianccedila debaixo do cinto tendo colocado ao leito um mortal102 255

Algumas observaccedilotildees se fazem necessaacuterias (a) apesar de natildeo haver um conceito

estabelecido de eacutetica e moral entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos a ideacuteia que parece estar vinculada

com a palavra ŏνειδος (censura reprovaccedilatildeo) estaacute relacionada a um sentido de organizaccedilatildeo na

junccedilatildeo entre os opostos que a narrativa da histoacuteria da origem da separaccedilatildeo da terra e do ceacuteu trata

e agrave qual jaacute nos referimos Afrodite como deusa inquieta e errante voluptuosa e voluacutevel tinha a

101 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 p 67 102 Traduccedilatildeo nossa

55

intenccedilatildeo de desequilibrar de afetar a ordem entre os contraacuterios pois a contradiccedilatildeo estaacute associada

com a natureza primeira da condiccedilatildeo de procriaccedilatildeo Nesse jogo de ambivalecircncia tambeacutem os

imortais satildeo enredados pela mortalidade conhecendo a inseguranccedila a fraqueza a brevidade da

vida humana Assim a implicaccedilatildeo de censura daacute-se pelo fato de que os imortais atraveacutes dos

desiacutegnios do desejo reconhecem uma tensatildeo que estaacute colocada como uma realidade humana que

eles passam a identificar no seu relacionamento com os mortais E a presenccedila da morte natildeo podia

ser aceita pelos deuses que a viam como degradante e vil (b) Embora natildeo tenha sido citado no

trecho acima o mesmo Hino Homeacuterico V menciona que o proacuteprio Zeus o deus todo poderoso do

Olimpo que tambeacutem havia sido viacutetima das investidas de Afrodite para dar-lhe uma liccedilatildeo faz

com que ela proacutepria conheccedila um mortal em uma situaccedilatildeo que envolva a intimidade conjugal Eacute o

que revela o verso 255 com a palavra έύνηθεΐσα isto eacute colocar no leito nupcial onde se daacute a

uniatildeo dos opostos e onde se concretiza a concepccedilatildeo (c) Por isso Afrodite fala das consequumlecircncias

de seu ato pois entatildeo sabe que traz ldquouma crianccedila debaixo do seu cintordquo A palavra ζώνη ao

mesmo tempo que se refere a cinto refere-se agrave lsquocinturarsquo ao lsquoventrersquo

A partir daiacute temos pois uma outra consideraccedilatildeo a questatildeo da descendecircncia Essa tese eacute

amplamente discutida por Faulkner103 que comenta como essa temaacutetica (dos ldquoAineiadairdquo) eacute

delineada desde o proacutelogo do poema e estaacute presente nos jogos sedutores que Afrodite impotildee a

Anquises fazendo-se passar por filha de Otreu rei da Frigia Afrodite convence Anquises das

profecias do deus Hermes que previu a uniatildeo deles (Τέκνα Τεκεΐσθαι v 127) atraveacutes de

atividades conjugais e o nascimento de um filho Deste modo o que ela coloca ironicamente

como fraude vem a tornar-se verdade Nem Afrodite escapa de ldquosua bocardquo

As colocaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo a Eneacuteias filho de uma deusa com um mortal o destaque

sobre os atributos fiacutesicos favoraacuteveis de Afrodite e de Anquises a profecia de seu nascimento

parecem dar ecircnfase agrave famiacutelia descendente de Eneacuteias

O que Faulkner104 argumenta eacute que apesar de subtemas ligados ao poema como a ironia

de Afrodite suas zombarias a relaccedilatildeo deus imortal ndash homem mortal no Hino a Afrodite o poeta

pretendeu glorificar a linhagem de uma famiacutelia ldquoEneidanardquo (Aineiadai)

103 FAULKNER Andrew Op cit 104 FAULKNER Andrew Op cit

56

Ainda assim o que jaz como princiacutepio da linhagem eacute uma fraude o que natildeo deixa de ser

uma forma de violecircncia que vem sempre acompanhada do desejo talvez um sentimento de posse

(pois Afrodite queria apossar-se de Anquises dada a sua beleza) que emana do contexto do ser

amado Eacute Anquises que lhe provoca o desejo Retomando o que jaacute foi colocado no item 22 vecirc-

se claramente o jogo de forccedilas em Afrodite a seduccedilatildeo persuasiva (peithoacute) e a ilusatildeo enganosa

(Apaacuteteacute)

O que estaria sendo revelado nesse trecho dos Hinos Homeacutericos em que Afrodite natildeo

resiste aos encantos de Anquises Talvez que a questatildeo dos opostos ndash que envolve sempre uma

tensatildeo como jaacute vimos ndash se inicie pelo ldquoolharrdquo Assim toda genealogia humana passa pela

questatildeo de ldquoolharrdquo e do reconhecimento desse olhar ou seja pelo sexo que eacute uma forma de

apoderar-se isto eacute de poder Nesse sentido a condiccedilatildeo humana que resulta do contexto da

sexualidade pode vir a ser uma condiccedilatildeo traacutegica como foi demonstrado e explorado na trageacutedia

grega

Eneacuteias eacute gerado a partir da seduccedilatildeo e do erotismo A descendecircncia se daacute como

consequumlecircncia como resultado de um ldquofasciacuteniordquo105 como diratildeo os romanos Mas o que fica claro

na questatildeo genealoacutegica eacute que o resultado da ligaccedilatildeo entre os opostos eacute que levaraacute adiante esse ato

e que o proclamaraacute nas geraccedilotildees futuras Como coloca Quignard ldquonous sommes venus drsquoune

scegravene ougrave nous nrsquoeacutetions pasrdquo106

Assim o Hino Homeacuterico V a que estamos nos referindo enfatiza o olhar de Afrodite e

de Anquises A concepccedilatildeo de Eneacuteias deu-se pelo olhar A questatildeo do olhar natildeo poderia deixar de

ser considerada pelos saacutebios gregos

Quando Afrodite desejosa apresenta-se (vs 75 ndash 142) a Anquises como uma simples

mortal o que inaugura esse encontro eacute o olhar de Anquises pois ele percebe o objeto de amor agrave

sua frente Eacute o que diz o texto grego

Αγχίσης δ΄ δρόων107 έΦράξετο θαύmicroαιν΄εν τε 84 ει δός τε microέγεθός τε καί έίmicroατα σιγαλο΄εντα 85

105 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 p 11 O autor faz um estudo comparando a palavra romana ldquofascinusrdquo com a palavra grega ldquophallosrdquo Ele diz ldquoLe lsquofascinusrsquo arrecircte le regard au point qursquoil ne peut srsquoen deacutetacherrdquo ou seja que ldquoo fasciacutenio imobiliza o olhar a tal ponto que natildeo se pode desprender-se delerdquo 106 QUIGNARD Pascal Idem p 10 ldquoViemos de uma cena onde natildeo estaacutevamosrdquo 107 Grifo nosso para assinalar o verbo olhar que tambeacutem significa entender

57

Portanto Anquises quando a viu observou-a bem e admirou sua aparecircncia e suas

vestimentas

O autor descreve em poucas palavras o olhar de atraccedilatildeo de cobiccedila mesmo que faz parte

do jogo de seduccedilatildeo O olhar do mortal Anquises espelha a forma de exercer o olhar do masculino

e revela o entendimento da figura feminina no seu modo de Ser de portar-se de vestir-se de ser

mulher Isso indica o interesse do homem grego pelo belo e a descriccedilatildeo que se segue mostra o

olhar investigador e atento do poeta conhecedor do espaccedilo feminino de seu tempo

Apoacutes essa cena da descoberta pelo olhar Afrodite eacute conduzida de olhos ldquoabaixadosrdquo

(κατ΄ οmicromicroατα καλα βαλοΰσα v 156) ndash revelando modeacutestia ndash por Anquises Novamente o olhar

complementando o gesto decoro vergonha recato O que quer a deusa dizer com isso O texto

leva agrave accedilatildeo seguinte a uniatildeo de Anquises e Afrodite homem mortal e deusa imortal no mesmo

leito A respeito ocorre-nos um trecho das Eacuteleacutegies de Properce

Les yeux dans lrsquoamour sont les guides (oculi sunt in amore duces) Ocirc joie drsquoune nuit lumineuse Ocirc toi petit lit (lectule) heureux de mon plaisir Que de mots eacutechanges agrave la clarteacute des lampes Et la lumiegravere enleveacutee (sublato lumine) dans la nuit que de combats de lrsquoamour Une seule nuit peut faire de nrsquoimporte quel homme un dieu (nocte una quivis vel deus esse potest)108

O leito de Anquises que recebe Afrodite eacute cuidadosamente descrito no Hino Homeacuterico V

O cliacutemax do arrebatamento amoroso ocorre principalmente nos versos 155-167 Eacute quando o

leito que os acolhe revela a forccedila do heroacutei Anquises nas peles de ursos e de leotildees que jaacute se

submeteram a ele e agora jazem estendidos para receber Afrodite tambeacutem ela submissa a seu

poder e como aponta Faulkner para esse fato

By doing so109 the animal skins become more than just an abstract symbol of Anchisesrsquo power and underline Aphroditersquos own loss of power in the face of Anchisesrsquo momentary strenght she is now conquered on top of the very beasts she earlier controlled110

108 PROPERCE Eacuteleacutegies II 15 In QUIGNARD Pascal Op cit p 135 ldquoOs olhos no amor satildeo guias Oh alegria de uma noite luminosa Oh pequeno leito feliz de meu prazer Quantas palavras trocadas agrave claridade das lacircmpadas E a luz arrebatada na noite quantos combates do amor Uma uacutenica noite pode fazer de qualquer homem um deusrdquoTraduccedilatildeo nossa 109 ldquoBy doing sordquo estaacute relacionado agrave sentenccedila anterior referindo-se ao fato de que quando Afrodite estava atravessando o monte Ida para dirigir-se a casa de Anquises Afrodite submeteu os animais selvagens agrave doccedilura do seu desejo fazendo-os copular 110 FAULKNER op cit p 227 ldquoAo fazer isso as peles dos animais se tornam mais do que um siacutembolo abstrato do poder de Anquises e realccedilam a perda de poder da proacutepria Afrodite face agrave forccedila momentacircnea de Anquises agora ela eacute conquistada em cima dos proacuteprios animais que ela antes controlourdquo Traduccedilatildeo nossa

58

O mesmo autor chama a atenccedilatildeo para o fato de que quando Afrodite se despe sua perda

de forccedila pode ser comparada agraves cenas iniciais quando entatildeo sua aparecircncia estaacute recoberta pelas

roupas o que simbolizava antes seu poder enfraquece ao desnudar-se Segundo Quignard em

outros trechos de textos de Homero o mesmo verbo grego mignumi que eacute usado para referir-se

ao jugo de uma mulher eacute o que coloca agrave morte um adversaacuterio Afrodite foi vencida por um

mortal ou venceu-o o proacuteprio desejo

Em nosso ponto de vista natildeo pode ser deixado de lado o aspecto que favorece a posiccedilatildeo

de Anquises no intercurso propondo pois uma questatildeo de gecircnero na sociedade patriarcal Por

isso talvez Faulkner veja nessa atitude de forccedila de Anquises um poder transitoacuterio

Quando Anquises se aproxima de Afrodite a cena do ldquodespir-serdquo revela a fragilidade

feminina frente ao ldquophallosrdquo grego em uma sociedade que tinha a mulher como objeto de

submissatildeo ao homem e de procriaccedilatildeo Afrodite representa esse contexto feminino tanto na sua

submissatildeo agrave uniatildeo com Anquises quanto na profecia do filho que vai ser gerado pois eacute o que se

espera do leito nupcial

Especialmente os versos 162 163 164 165 revelam dois aspectos de grande importacircncia

Um deles eacute que a deusa Afrodite eacute descrita (e eacute tambeacutem representada na pintura e na escultura)

usando brincos e colares aleacutem de outras joacuteias A descriccedilatildeo do nome das joacuteias tem sido objeto de

estudo linguumliacutestico para a precisatildeo do significado delas e para entendimento da eacutepoca em que o

Hino V possa ter sido escrito Vaacuterios autores tecircm estudado o vocabulaacuterio diligentemente e em

Faulkner111 as palavras gregas έλικας e κάλυκάς tecircm um sentido incerto O consenso tem sido

optar pela traduccedilatildeo de brincos em forma de flor de botatildeo para κάλυκες enquanto tem-se suposto

que έλικας indique pulseira uma vez que o significado de έλικας estaacute relacionado com alguma

forma de espiral

Outro fato relacionado com esses versos eacute a forma como a accedilatildeo eacute descrita remetendo agrave

retirada das peccedilas de roupa criando um contexto eroacutetico e um prenuacutencio do ato sexual Daacute-se o

desvendamento de Afrodite no momento em que Anquises (λΰσε δέ οί ζώνην) desata o cinto dela

Afrodite foi subjugada A cena evoca um clima de misteacuterio enquanto Anquises e Afrodite estatildeo

ligados pela atraccedilatildeo do olhar Quando Afrodite eacute ldquodesnudadardquo no ato de ter seu cinto retirado o

olhar cede lugar para a concretizaccedilatildeo da accedilatildeo Agora o que interessa eacute a sombra da mortalidade

111 FAULKNER op cit p 168-169 230

59

que paira sobre eles ele um transgressor que se apropria da deusa ela atormentada pelo seu

gesto de fraqueza

Apoacutes o coito Afrodite recompotildee-se sozinha assume sua forma divina acorda Anquises

que ela havia feito adormecer Esse trecho (versos 168 ndash 183) revelam o terror que o sexo pode

provocar apoacutes a constataccedilatildeo do ato e evocam as reaccedilotildees sugeridas pelo olhar

Afrodite conclama Levante-se filho de Daacuterdano por que vocecirc adormeceu pesadamente

Considere se eu tenho a mesma aparecircncia de quando vocecirc me viu com seus olhos pela primeira

vez

No Hino Homeacuterico

Ορσεο ∆αρδανίδη τι νυ νηγρετον υπνον ίανεις 177 καί Φράσαι ει τοι όmicroοίη έγών ίνδάλλοmicroαι είναι οίην δη microε το πρωτον έν οΦθαλmicroοίσι νόησας 179

Quando Anquises acorda novamente revela-se a questatildeo do olhar pois ao ver o pescoccedilo

e os olhos adoraacuteveis de Afrodite (οmicromicroατα κάλ΄ ΆΦροδίτης v 181) ele se amedronta e dirige seu

olhar para outro lado (τάρβησέν τε καί οσσε παρακλιδόν ετραπευ αλλη v 182)

A presenccedila da deusa impotildee reverecircncia respeito e a atitude de Anquises desviar o olhar eacute

o que se espera diante do divino

A seguir as palavras que Anquises profere configuram-se como uma oraccedilatildeo Ele repete

que seu olhar (όΦθαλmicroοΐσιν v 185) havia captado o divino na aparecircncia de Afrodite embora ela

natildeo tenha dito a verdade Pede entatildeo que ela se apiede dele

Eacute interessante relacionar pois esses versos (188-190) em que Anquises se preocupa com

seu vigor e pede proteccedilatildeo agrave deusa para natildeo ser deixado paraliacutetico entre os homens castigado por

ter transgredido o sagrado com os versos 153-154 em que Anquises exclama que iria de boa

vontade para a casa de Hades (i eacute agrave morte) desde que ele tivesse ldquosubidordquo agrave cama da mulher

bela como as deusas (palavras que ele pronunciou a Afrodite antes do acasalamento julgando

ser ela uma jovem mortal)

Essas cenas refletem o poder do sexo masculino face ao desejo que o coito remete

Agrave cena de forccedila e domiacutenio do homem frente agrave submissatildeo feminina sucede o retorno agraves

origens e ele coloca-se diante da deusa agora vista como mater cheia de poder divino

implorando-lhe a vida ndash garantida pelo acolhimento do ventre feminino Vecirc-se pois nesse gesto

o eterno conflito de forccedila entre os gecircneros O poder do ldquophallosrdquo grego soberano no ato sexual

60

curva-se ao poder da mulher o feminino como princiacutepio das origens A esse respeito fazemos

nossas as beliacutessimas palavras de Quignard

La premiegravere domus est le ventre de la femme La deuxiegraveme domus est la domus dans laquelle lrsquohomme rapte les femmes pour se reproduire et reproduire la domus La troisiegraveme domus est la tombe112

Sabiamente o autor usa a palavra domus (grego δόmicroος) em seu texto o que fornece um

enredamento de sentidos contidos todos no mesmo contexto Pode-se pois entender como

ldquocasa habitaccedilatildeo quarto templo morada dos deuses famiacuteliardquo113

Como diz Quignard o homem cria raiacutezes com seu desejo vincula-se a ele da mesma

forma que o lactente com sua matildee Isso faz parte da cena histoacuterica em que a ontogecircnese do

homem estaacute enraizada na filogecircnese pois como mostraram os gregos atraveacutes do nascimento de

Afrodite a vida estaacute enraizada no universo quer seja atraveacutes da umidade do oceano no ritmo de

suas ondas quer seja atraveacutes do misteacuterio do ceacuteu na trilha de seus astros incandescentes quer

seja atraveacutes da terra que floresce que nutre que acolhe que se transforma e que frutifica

Dessa forma o desejo estaacute enraizado na histoacuteria da origem da terra e a chegada de

Afrodite estaacute vinculada natildeo apenas ao desejo mas tambeacutem agrave reproduccedilatildeo

Mas a histoacuteria do desejo apresenta outras variantes Assim de acordo com a tradiccedilatildeo

miacutetica Afrodite era casada com Hefesto (filho de Zeus e de Hera) deus protetor do fogo e um

haacutebil criador Diz tambeacutem a lenda que Hefesto era coxo e que o casamento de Afrodite e de

Hefesto foi imposto por Hera Era uma maneira de ldquounir el fuego de Hefesto con la fuerza

fecundadora de Afrodita la belleza del arte con la belleza de la naturalezardquo114

No canto VIII (versos 266-367) da Odisseacuteia Odisseu acompanha na voz de um aedo a

saga dos amores de Ares com a formosa Afrodite (Άρεος Φιλότητος εύστεΦάνου τ΄ΆΦροδίτης)

Apesar de o texto apresentar uma narrativa eroacutetica em que o casal de amantes eacute visto na

sua intimidade a palavra usada para representar a uniatildeo desse amor (seria uma forma de

significar a ligaccedilatildeo carnal atraveacutes da qual o desejo se concretiza) eacute Φιλότητος que em periacuteodo

posterior como jaacute se ressaltou anteriormente seraacute usado como amor que revela amizade 112 QUIGNARD op cit p 224 ldquoO primeiro domus eacute o ventre da mulher O segundo domus eacute o domus no qual o homem se apossa das mulheres para se reproduzir e reproduzir o domus O terceiro domus eacute a tumbardquo Traduccedilatildeo nossa Mantivemos o uso de domus como no original Diferentemente do autor consideramos a forma masculina do grego δόmicroος 113 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 p 151 114 MAUROMATAKI Maria Op cit p 87

61

Dando sequumlecircncia agrave histoacuteria de Hefesto e Afrodite Heacutelio o Sol contou a Hefesto sobre os

encontros secretos de Afrodite e Ares o deus da guerra Hefesto enraivecido planejou pegaacute-los

em uma armadilha (δόλον) e por isso teceu com seu engenho admiraacutevel uma rede de metal que

se assemelhava a uma teia de aranha tal o seu ardil em executaacute-la de forma que natildeo pudesse ser

vista Ares e Afrodite foram ao leito (λέχος δ΄ ήσχυνε και εύνην)115 na proacutepria casa de Hefesto

(ΗΦαιστοιο δόmicroοισι) pois Hefesto havia dito que ia se ausentar Ares ardia em desejo

(Φελότητος) e depois que os amantes adormeceram abraccedilados acordaram e viram-se envoltos na

rede fina impossibilitados de sair dali Para ridicularizaacute-los Hefesto chamou todos os deuses

para assistir a esse espetaacuteculo e dizia que Afrodite comprazia-se com Ares (novamente o verbo

Φιλεω) e natildeo com ele por ser coxo Apoacutes a intervenccedilatildeo de alguns deuses Hefesto finalmente

decidiu libertar os amantes

Alguns aspectos relacionados agrave questatildeo do desejo podem ser brevemente observados (a)

relacionado ao desejo estaacute a problemaacutetica da traiccedilatildeo Assim se entendermos o conceito de poder

subjacente agrave uniatildeo sexual verificamos que a situaccedilatildeo realmente pode ser equiparada a um

campo de batalha isto eacute haacute o(s) vencedor(es) e o(s) perdedor(es) (b) Em se tratando de uma

lenda simboacutelica constata-se que o deus envolvido eacute Ares que significa o deus da guerra

responsaacutevel pela violecircncia e pelos enfrentamentos entre os homens Ares eacute realmente descrito

como tendo um caraacuteter agressivo e explosivo e alguns autores explicam que esses atributos

estavam relacionados ao seu lugar de origem pois os antigos habitantes da Traacutecia tinham

costumes violentos e faziam uso da forccedila bruta Assim representa-se a uniatildeo sexual de forma

simboacutelica em que o ato de desejo (Afrodite) eacute subjugado pela forccedila violenta (Ares) (c) Eacute

interessante considerar como o marido traiacutedo procura uma estrateacutegia de vinganccedila calculada Sua

intenccedilatildeo eacute realmente o dano Daiacute a palavra lsquoδολοςrsquo (dolo) usada no texto (d) Todo ato de

traiccedilatildeo pressupotildee uma atitude de reparo Assim quando Afrodite eacute libertada vai a Ilha de Pafos

em Chipre onde eacute recebida pelas Caacuterites que a banham e a ungem com oacuteleo sagrado Isso

parece-nos uma forma de renovar a lsquovirgindadersquo o que equivaleria a um rito de purificaccedilatildeo como

o de Hera que durante os rituais em sua honra tinha sua virgindade renovada Tambeacutem depois o

cristianismo introduziraacute o batismo como ato de purificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo (e) O termo 115 A palavra λέχος tem o significado de ldquoleitordquo mas em alguns contextos tambeacutem pode significar ldquouniatildeo clandestinardquo Neste caso junto da palavra εύνην quer dizer ldquoleito nupcialrdquo o que proclama as atividades sexuais cf BAILLY op cit p 1185 Em PEREIRA opcit p 346 encontra-se aleacutem de lsquoleitorsquo a traduccedilatildeo lsquoninhorsquo e lsquotumbarsquo

62

empregado por Hefesto ao referir-se a Afrodite ao reclamar da situaccedilatildeo para Zeus eacute sugestivo

da propriedade de descontrole do desejo que escapa do domiacutenio do indiviacuteduo O aspecto de

irracionalidade que une animais humanos e deuses aproximando-os pela sua filogecircnese ndash como

jaacute se colocou antes ndash estaacute expresso na palavra κυνώπιδος que tem o sentido de expressar o lsquoolhar

de uma cadelarsquo revelando uma imprudecircncia e um atrevimento (f) A questatildeo do olhar nessa cena

eacute relevante pois haacute os olhares dos deuses sobre os amantes e sobre o trabalho astucioso de

Hefesto haacute o olhar de anguacutestia do marido traiacutedo haacute o olhar de Afrodite (g) Finalmente o que jaacute

se anunciou variadas vezes o conflito que o desejo pode gerar entre os sujeitos

Vejamos como Afrodite eacute descrita em Hesiacuteodo em se considerando seus atributos apoacutes

seu nascimento na espuma do mar vinda do ceacuteu isto eacute de Urano castrado Diz Hesiacuteodo sobre

essa deusa

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha 203 coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice116 206

Assim um uacutenico dever foi determinado a Afrodite as questotildees de Φιλότητά (amor) que

envolvem homens e deuses e portanto tambeacutem o gozo e os enganos Hesiacuteodo usa pois a

palavra philia referindo-se ao amor

Muitas outras lendas satildeo narradas sobre Afrodite tal a importacircncia da grande deusa do

Mediterracircneo Uma das histoacuterias fala dos filhos que Afrodite teve com Ares (Harmonia Deimo

Fobo e Eros) Eros acompanhava sempre a matildee com suas flechas provocando alegria e dor Em

um estaacutegio posterior quando a filosofia passou a indicar conceitos a palavra ερος (Eros)

comeccedilou a ser usada para indicar envolvimentos amorosos tendo-se mantido ateacute hoje em nossa

sociedade ao lado do adjetivo lsquoafrodisiacuteacorsquo reminiscecircncia de Afrodite

Quanto a Fobo embora natildeo haja lenda sobre ele passou a designar lsquofobiarsquo medo e

vincula-se de alguma forma agraves questotildees afetivas unindo ldquodesejordquo e ldquomedordquo o eterno conflito do

macho e da fecircmea

Em algumas representaccedilotildees iconograacuteficas Afrodite aparece com o epiacuteteto Panopla

Los griegos conferiacutean a su figura la idea de la ldquoguerrardquo en el terreno del amor y al mismo tiempo la vinculaban con el mundo de los muertos pues el amor y la muerte son elementos y condiciones indispensables para la renovacioacuten de los ciclos de la vida y de

116 Traduccedilatildeo de TORRANO J A A op cit p 117

63

los seres Asi fue adorada junto a Hermes como Subterracircnea y en algunos cementerios como Afrodita Escotia (de skotos = oscuridad)117

Afrodite recebeu outros epiacutetetos que remetem ao seu aspecto enigmaacutetico como Escoacutecia

(a lsquoescurarsquo) Androacutefonos (lsquoassassina de homensrsquo) Epitiacutembria (lsquodas tumbasrsquo) Quanto ao seu

epiacuteteto Melecircnis (lsquoa negrarsquo) Pausacircnias explica como causa o fato de que a maior parte dos atos

sexuais se daacute agrave noite Essa explicaccedilatildeo eacute considerada ingecircnua pelos autores comtemporacircneos pois

tambeacutem esse epiacuteteto parece estar relacionado agraves caracteriacutesticas de vida e morte que fazem parte

dos ciclos de fertilidade

Afrodite tambeacutem era conhecida como Afrodite Pandecircmica representando o aspecto

carnal e vulgar do amor Assim era vinculada com a prostituiccedilatildeo e vaacuterias prostitutas trabalhavam

em seu santuaacuterio em Acrocorinto Considerava-se que essas prostitutas tinham um caraacuteter

sagrado e uma delas imortalizou-se como modelo desnudo para que Praxiteles pudesse realizar

uma estaacutetua de Afrodite

Assim como o amor as histoacuterias de Afrodite satildeo interminaacuteveis

O domiacutenio de seu impeacuterio natildeo tem fronteiras e Eros seu filho igualmente herdou o

caraacuteter de peregrinaccedilatildeo de sua matildee Ambos matildee e filho aparecem na trageacutedia grega tendo sido

destacado o aspecto de perambulaccedilatildeodeliacuterio

Tomemos como exemplo um trecho da Antiacutegona de Soacutefocles (versos 785-790)

Vagas sobre as ondas 785 e penetras em rebanhos campestres De ti nenhum dos deuses escapa nenhum dos efecircmeros homens Quem tocas delira118 790

Quanto agrave Afrodite Euriacutepides (vs 447-450) destaca seu domiacutenio abrangente e revela

como essa propriedade inerente agrave deusa perpassa pelos mortais Natildeo haacute como resistir a ela que

estaacute em todas as partes no ceacuteu na terra e no mar fazendo florescer a vida Vejamos

Ela percorre o eacuteter ela estaacute nas ondas 447 do mar a Ciacutepria eacute dela que tudo floresce eacute ela a que semeia e a que daacute amor a quem devemos o nascimento da terra119 450

117 MAVROMATAKI Maria Op cit p 89 118 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 p 61 119 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 135

64

52 ndash AacuteRTEMIS A LIBERDADE E A VIRGINDADE

Poderiacuteamos introduzir os comentaacuterios sobre Aacutertemis iniciando-os com um

questionamento por que ndash apesar da nudez e dos olhares ndash desejou Aacutertemis manter-se virgem

Antes de explicarmos melhor nossa colocaccedilatildeo inicial vejamos quem eacute Aacutertemis

Filha de Leto e de Zeus nasceu junto com seu irmatildeo Apolo o que os colocou lado a lado

no panteatildeo grego e o que fez que tivessem muitos elementos em comum constituindo-se

Aacutertemis de acordo com a tradiccedilatildeo sua versatildeo feminina

Vaacuterias satildeo as lendas sobre Aacutertemis Em Hesiacuteodo os versos 918-920 dizem somente que

Leto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechas 918 prole admiraacutevel acima de toda a raccedila do Ceacuteu gerou unida em amor a Zeus porta-eacutegide120 920

Alguns comentaacuterios sobre esses trecircs versos parecem-nos dignos de consideraccedilatildeo Um

deles eacute o fato de que Hesiacuteodo jaacute coloca emparelhados Apolo e Aacutertemis considerando-os como

ldquoprole admiraacutevelrdquo sobre ldquotoda a raccedila do Ceacuteurdquo o que seraacute repetido no Hino Homeacuterico a Aacutertemis

(Hino XXVII ndash veja anexo B) O outro eacute a questatildeo da fecundidade como ato de amor (no texto

grego encontra-se novamente a palavra Φιλότητι)

De acordo com uma das lendas que Graves narra Leto pariu os filhos em Ortiacutegia perto

de Delos Assim que acabou de nascer Aacutertemis ajudou a matildee em seu outro parto pois o

nascimento de Apolo levou nove dias de trabalho121 Por isso foi adorada pelos deuses tambeacutem

como deusa do parto chegando mais tarde a ser confundida com Iliacutetia a deusa do parto

Recebeu o epiacuteteto de Aacutertemis Brauronia em Brauron onde havia um santuaacuterio dedicado a ela

As mulheres que tinham um parto normal faziam sacrifiacutecios em honra agrave deusa Outros fieacuteis

levavam agrave deusa como oferenda roupa de mulheres que haviam morrido no parto

Em Eacutefeso Aacutertemis tinha um outro epiacuteteto Era conhecida como Kuroacutetrofos pois se

encarregava de cuidar das crianccedilas Como Heacutestia tambeacutem era uma deusa da iniciaccedilatildeo que

ajudava os jovens no periacuteodo de transiccedilatildeo entre a adolescecircncia e a idade adulta Havia rituais

especiais invocando seu apoio Como parte da iniciaccedilatildeo algumas jovens deviam servir em seu

120 HESIacuteODO Op cit p 157 121 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 p 68

65

templo especialmente em Brauron para aprender como se dava a passagem para um outro

estaacutegio da vida No periacuteodo em que permaneciam nessa iniciaccedilatildeo as jovens eram chamadas de

akti do grego άrκτοι ou seja ldquoursasrdquo Um mito explicando esse periacuteodo de servidatildeo conta que

um urso das redondezas costumava visitar a cidade de Brauron regularmente As pessoas o

alimentavam e com isso o urso foi domesticado e ficou trataacutevel Poreacutem uma jovem o provocou

e ele enraivecido matou-a Segundo outra versatildeo ele arrancou os olhos dela O irmatildeo da garota

matou o urso o que fez com que Aacutertemis ficasse furiosa Daiacute para a frente ela ordenou que as

jovens agissem como urso domesticado em atitude de reparaccedilatildeo por sua morte

Isso parece deixar claro a ldquodomesticaccedilatildeordquo por que deveriam passar as jovens antes do

casamento favorecendo um comportamento doacutecil e submisso face ao esposo pois uma reaccedilatildeo de

insubordinaccedilatildeo deixaria enfurecido natildeo soacute o esposo como tambeacutem a divindade

Aacutertemis era conhecida ainda como Aacutertemis Ortia em Esparta laacute tambeacutem como iniciadora

de jovens que se encaminhavam para a idade adulta e portanto como cidadatildeos

Os gregos a consideravam uma deusa virgem afastada dos jogos enganosos da seduccedilatildeo

Talvez esse devesse ser um dos atributos das deusas (Aacutertemis e Heacutestia) para que pudessem servir

de guia agraves jovens ndash tambeacutem virgens ndash para uma etapa da vida de mudanccedila pessoal e social

considerando-se aiacute um movimento da vida de liberdade da jovem para as ldquoamarrasrdquo e a

dependecircncia de um esposo e de filhos

Aacutertemis ao contraacuterio continuava como deusa virgem livre e independente caccedilando nos

bosques e nas montanhas banhando-se nos rios bailando e soltando gritos de clamor vinculada

agraves suas origens ancestrais

Graves reporta-se a uma lenda narrada por Pausacircnias em que enquanto se banhava em

um rio Aacutertemis foi vista pelo priacutencipe caccedilador Acteacuteon filho de Aristeu Indignada transformou-

o em um cervo que foi perseguido e morto por sua proacutepria matilha122

Nessa lenda Acteacuteon eacute punido pelo seu olhar por ter devassado a nudez divina A reaccedilatildeo

de Aacutertemis diante desse gesto calado foi violenta evocando o conflito que o desejo cria entre os

contraacuterios O que o olhar de Acteacuteon significava Para Aacutertemis estava impliacutecito que ldquoO olhar

122 GRAVES Robert Op cit p 103

66

deseja sempre mais do que o que lhe eacute dado verrdquo123 Aacutertemis rejeita a seduccedilatildeo jogo enganador

que vem da caccedilada silenciosa do olhar Aacutertemis sai vencedora da cena em que Acteacuteon eacute

decomposto e desaparece como perdedor

Afrodite quando deseja conquistar Anquises estaacute cocircnscia de que a seduccedilatildeo eacute uma farsa e

que o seduzido (no caso Anquises) eacute o que deixa a marca de sua experiecircncia Por isso Anquises

suplica a salvaccedilatildeo a Afrodite

Acteacuteon poreacutem como sedutor perde seu rumo Na origem da liberdade Aacutertemis coloca a

sua virgindade Diferentemente do poder libertaacuterio o poder do desejo eacute ilusoacuterio e errante

Todas as tentativas de vida afetiva (philoacutetes) de que Aacutertemis participa satildeo enfrentadas

com violecircncia Temos pois a ambivalecircncia do desejo de independecircncia que se opotildee ao desejo da

persuasatildeo e do engano que eacute sempre sedutor doce mas tambeacutem enganador (verificar item 2)

Haacute particularmente dois epiacutetetos de Aacutertemis amplamente conhecidos

Um deles eacute Potnia Theron a deusa dos animais selvagens como refere-se Homero a ela

considerando seu aspecto poderoso e veneraacutevel O maior prazer de Aacutertemis era correr nos

bosques e caccedilar com seu arco de ouro (veja anexo Hino a Agravertemis) O veado era um de seus

animais prediletos aacutegil e veloz Estaacute relacionado agrave deusa na iconografia e em algumas lendas

como a que se viu sobre Aacutecteon A proacutepria deusa transformou-se em corccedila durante o caso com os

gecircmeos Aloiacutedas que na pressa de a atingirem mataram-se um ao outro Como deusa caccediladora

era tambeacutem adorada como senhora da natureza a que vivia no campo Dessa forma recebia

ainda o epiacuteteto de Agroacutetera protetora das plantas selvagens e das aacutervores Aleacutem disso era

conhecida por seu envolvimento com rios e lagos onde se banhava e em cujas margens

descansava danccedilava e cantava com as ninfas com as caacuterites e com as musas

Embora aacutegil e liberta em seu espaccedilo a floresta as montanhas o campo os rios e os lagos

a natureza acolhedora Aacutertemis se limita a esse contexto como soberana das feras e caccediladora

indomaacutevel Opotildee-se a Afrodite que na sua eterna mobilidade do desejo natildeo tem limites Como

coloca Fontes em seu estudo ldquoO territoacuterio das castitas eacute fechado e secreto enquanto o universal

domiacutenio de Afrodite expande-se do Ponto Euxino aos limites de Atlasrdquo124

123 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 p 9 124 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 34

67

Como defensora da virgindade tinha companheiras virgens de caccedila e de danccedila nas

margens dos rios e guardava sua castidade com o emblema protetor do arco e da flecha

Diferentemente de Eros cujas flechas tinham como alvo colocar o desejo em algueacutem Aacutertemis

usava suas flechas como proteccedilatildeo de sua virgindade e de sua selvageria pois a morte fazia parte

do ambiente da natureza (phyacutesei)

Nesse sentido Aacutertemis parece ser uma deusa de origem distante remontando agraves mulheres

ambiacuteguas conhecidas como Amazonas e que representavam um modelo miacutetico da mulher que se

privava do contato com os homens situando-se ldquono imaginaacuterio dos antigos natildeo apenas na

fronteira em que barbaacuterie e cultura se enfrentam e se contestam ela eacute radicalmente a outra

assombrada por uma dupla alteridaderdquo125

A questatildeo da dupla alteridade foi apontada por Lissarrague quando se reporta agraves

Amazonas como indica Fontes Esse eacute um aspecto interessante que revela como Aacutertemis mulher

e assassina feminina e baacuterbara caccediladora que habita as florestas densas e as montanhas ermas

natildeo tem cidade e que seria por isso ldquouma ameaccedila permanente para o mundo civilizadordquo126

imagem combatida pelo homem ateniense e civilizador representado nas figuras dos heroacuteis

Heacutercules e Teseu nas cenas iconograacuteficas em que atacam as Amazonas

Esse fato remete agrave questatildeo da tradiccedilatildeo revelando-se Aacutertemis um modelo miacutetico ldquodos

primoacuterdios de Atenas quando as mulheres eram autocircnomas facto monstruoso aos olhos dos

ateniensesrdquo127 De fato os homens atenienses valorizavam a sua posiccedilatildeo de forccedila e de ldquocidadatildeos

hoplitasrdquo considerando-se os defensores da cidade e Aacutertemis pode ter traccedilos semelhantes a essas

Amazonas de quem decerto reparte viacutenculos dessa autonomia recusando contato com os

homens o que a manteacutem uma deusa virgem com vaacuterias lendas em que mata homens jovens quer

seja para evitar o asseacutedio despertado pelo olhar quer seja por uma forma de vinganccedila violenta

Como jaacute mencionamos antes Aacutertemis era amplamente conhecida como Potnia Theron

Aleacutem disso como a Senhora de Eacutefeso

Em Eacutefeso seu templo tornou-se uma das sete maravilhas do mundo Laacute ela era venerada

como uma matildee deusa e de acordo com Graves ldquoela era adorada em sua segunda pessoa ou seja

125 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 22 126 LISSARRAGUE Franccedilois Afiguraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 p266 127 LISSARRAGUE Franccedilois Idem p267

68

como ninfa uma Afrodite orgiaacutestica com um consorte masculino sendo seus emblemas pessoais

a tamareira128 o cervo e a abelha129rdquo130

Isso reforccedila a dualidade de Aacutertemis ora como caccediladora-virgem de instinto selvagem e

primitivo agrave maneira das amazonas ora como suprema ninfa-deusa agrave maneira das antigas

sociedades totecircmicas

Outro aspecto jaacute destacado por noacutes eacute que muitas histoacuterias miacuteticas que envolvem Aacutertemis

ressaltam a questatildeo do olhar como preluacutedio de uma atitude libidinosa Aleacutem da famosa lenda de

Acteacuteon e a dos gecircmeos Aloiacutedas haacute um outro relato que mostra como a mulher era observada

pelo homem na Greacutecia antiga Falando da representaccedilatildeo feminina diz Lissarrague

Tratando-se da imagem das mulheres vimos jaacute a sua diversidade para concluir reiteramos que matildee ou esposa hetera ou muacutesica Amazona ou meacutenade a mulher eacute sempre dada em espetaacuteculo como um objecto aos olhos do homem grego o sujeito que olha131

Voltando ao nosso relato que destaca a importacircncia do olhar na cultura grega temos que

Alfeu um deus fluvial filho de Teacutetis apaixonou-se por Aacutertemis e ocultou-se perto de onde a

deusa se banhava com suas amigas as caacuterites e as ninfas para conseguir se unir a ela Aacutertemis

percebendo as intenccedilotildees de Alfeu cobriu com lodo branco seu rosto e das companheiras de

forma que Alfeu natildeo pudesse reconhececirc-la Na regiatildeo da Eacutelida Aacutertemis passou a ser chamada e

venerada como Aacutertemis Alfeacuteia132

Aleacutem de proteger a si proacutepria nessas histoacuterias em que preserva sua virgindade haacute outras

lendas que contam que Aacutertemis exigia de suas companheiras recato e preservaccedilatildeo de sua

condiccedilatildeo de castidade (autonomia) Assim uma lenda bastante conhecida eacute a que narra que

Calisto que fazia parte de seu grupo fora seduzida por Zeus e engravidara Zangada Aacutertemis

transformou-a em uma ursa e chamou a matilha para persegui-la e devoraacute-la Poreacutem Zeus

interveio pegando-a e levando-a para o ceacuteu onde a colocou entre as estrelas

128 De acordo com a lenda Leto deu a luz a Apolo ajudada pela receacutem-nascida Aacutertemis entre uma oliveira e uma tamareira no Monte Cinto em Delos 129 O siacutembolo da abelha estaacute relacionado a Afrodite Uracircnia (rainha da montanha) e nesse caso por comparaccedilatildeo a Aacutertemis Como deusa-ninfa Afrodite destruiu o rei sagrado com quem havia copulado no cume de uma montanha agrave maneira da abelha-mestra que aniquila o zangatildeo arrancando-lhe os oacutergatildeos sexuais 130 GRAVES Op cit p 87 131 LISSARRAGUE Franccedilois Op cit p268 132 GRAVES Op cit p 104 Refere-se a Pausacircnias (I 264) mencionando o fato de que a estaacutetua mais famosa de Aacutertemis em Atenas se chamava ldquoa do rosto brancordquo As sacerdotisas nos rituais em Letrini e Ortiacutegia cobriam seus rostos com argila branca

69

A lenda possui outras variantes e em todas a figura de Aacutertemis estaacute presente

Parece-nos que a imagem de Aacutertemis que figura na trageacutedia de Euriacutepides (Hipoacutelito) eacute

uma imagem renovada conciliando traccedilos da autonomia da virgindade com a jovem feminina

recatada sem os traccedilos de violecircncia daquela que pune as que natildeo a seguem como virgem e de

errante das florestas que a marcaram na eacutepoca arcaica

Teria havido talvez uma fusatildeo das duas alteridades prevalecendo a metaacutefora do feminino

no que concerne o afeto silencioso a atenccedilatildeo a ajuda

Assim na trageacutedia Euripidiana o Coro das mulheres de Trezena proclama

E costuma estar sujeito o equiliacutebrio instaacutevel do ser feminino a terriacuteveis embaraccedilos nos deliacuterios e nas dores do parto Este sopro dardejou um dia no meu ventre 165 mas gritei pela uracircnia sagitaacuteria propiacutecia aos partos Aacutertemis e muito venerada sempre com a graccedila divina ela me tem visitado133

A virgindade de Aacutertemis eacute exaltada em um relacionamento estreito com a natureza

(phyacutesei) nos seus aspectos intocaacuteveis Por isso Hipoacutelito oferece a Aacutertemis na peccedila do mesmo

nome flores colhidas em um campo imaculado

133 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 115

70

Diz Hipoacutelito agrave deusa Aacutertemis

Para ti oacute Soberana de um campo sem maacutecula eu trago esta grinalda que eu mesmo teci ali pastor natildeo ousa levar seu rebanho 75 nem o ferro jamais passou imaculado na primavera somente a abelha134 o percorre135

Poreacutem a deusa inviolaacutevel o seu lado casto e feminino pertence ao sagrado agravequele

espaccedilo em que os deuses tecircm um poder de determinar e direcionar o caminho dos mortais Isto

posto jaacute mostra que o excesso de admiraccedilatildeo ao tributo de castidade natildeo estaacute de acordo com a

natureza humana O que eacute adequado aos deuses estaacute muitas vezes distante do poder do homem

A trageacutedia de Euriacutepedes mostra que haacute duas forccedilas divinas entrelaccediladas no ldquoduelordquo da

trama Aacutertemis representando a castidade e Afrodite representando o desejo Tendo perdido a

proporccedilatildeo desse espaccedilo reservado aos deuses Hipoacutelito eacute punido por sua transgressatildeo pois a ira

dos deuses natildeo pode ser controlada

Esse paradoxo entre o desejo e a castidade faz parte de toda a histoacuteria da humanidade e

no Cristianismo a Histoacuteria vai registrar muitos fatos de envolvimento amoroso punidos como

ldquocrimesrdquo e muitas outras histoacuterias de supliacutecios de ldquosantosrdquo para atingir a castidade no intuito de

querer livrar-se do desejo que eacute biologicamente constituinte do humano

A deusa Aacutertemis faz parte do enredo de outra trageacutedia de Euriacutepides Ifigecircnia em Tauris

baseada em uma lenda que conta o sacrifiacutecio de Ifigecircnia filha de Agamenon

Segundo uma versatildeo agrave deusa comprazia a oferenda de sacrifiacutecio humano e tendo-se

zangado pelo fato de Agamenon gabar-se apoacutes atirar em um cervo de que ela natildeo poderia tecirc-lo

feito melhor ordenou como puniccedilatildeo que a filha dele Ifigecircnia fosse sacrificada em Aulis sem o

que natildeo haveria vento para que a frota dos barcos pudesse partir para a guerra de Troacuteia

Outra versatildeo que eacute a que Euriacutepedes usa em sua peccedila narra que quando Ifigecircnia ia ser

sacrificada Aacutertemis compadeceu-se dela e colocou em seu lugar um gamo Quanto agrave Ifigecircnia

transportou-a a Tauris em seu famoso santuaacuterio onde a jovem se tornou uma sacerdotisa A

lenda diz ainda que Ifigecircnia enviava os estrangeiros ao altar de Aacutertemis onde eram assassinados

durante os rituais como oferenda para honrar a deusa

134 Como jaacute comentamos anteriormente haacute a menccedilatildeo a um dos siacutembolos de Aacutertemis a abelha (ao lado da corccedila e da tamareira) destacando seu aspecto de feminilidade 135 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 109

71

Em sua trageacutedia Euriacutepides redime a imagem de Aacutertemis colocando na boca de Ifigecircnia

as seguintes palavras ldquoMen of this country being murderers impute their sordid practice to

divine command That any god is evil I do not believerdquo136

53 ndash ATENA A DEUSA VIRGEM DA SABEDORIA E DA GUERR A

Comeccedilamos sobre Atena ndash a grande deusa dos atenienses ndash indagando para os gregos de

Homero que sentido teria ela Por que ela teve uma forma de concepccedilatildeo e de nascimento que a

trouxe sob a forma de virgem Ao lado de sua imortalidade ndash comum a todos os deuses ndash ela foi

a uacutenica que manifestou desde o nascimento em sua natureza divina a ldquoimaculabilidaderdquo Por

que a sociedade grega ateniense voltava o seu olhar para a deusa mais sublime e mais reverente

ao lado de Zeus

Atena nasce jovem (que para os gregos a velhice era um estado de depauperamento)

imortal (jamais teria sua natureza obscurecida) bela (junto com o frescor da juventude pertence

aos deuses tambeacutem o dom da beleza) guerreira (saiu da cabeccedila do pai armada e ecoando gritos

beacutelicos) e virgem (o que a distancia mais do que os outros deusesda natureza humana)

Quando se confrontam homens e deuses o que os separa eacute justamente a expressatildeo

simboacutelica da corporalidade dos seres divinos Dessa forma a divindade grega afastava-se do

natural da realidade do humano elevando-se a um tipo de existecircncia superior

A ligaccedilatildeo de Atena com a forma de existecircncia terrena desfaz-se desde antes do seu

nascimento quando o parto podia simbolizar ldquogravidaderdquo do fundamento materno O misteacuterio de

seu nascimento a torna sublime pois ela chega com forma ritualiacutestica que celebra a vida Ela traz

uma forma de reconhecimento que pode ter um aspecto cultural profundo gerada nas entranhas

da matildee (Meacutetis uma entidade feminina) vem ao mundo pelo acolhimento do pai que a recebe

reconhecendo-lhe a sabedoria superior (ele aceita essa nova deusa renovaccedilatildeo de uma deusa

antiga de outro periacuteodo)

Se Zeus reconhece a verdade em Atena os cidadatildeos de Atenas recebem a filha de Zeus

como uma manifestaccedilatildeo advinda da profundeza maternal da terra imaculada na sua origem

136 EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt ldquoHomens deste paiacutes sendo assassinos imputam sua soacuterdida praacutetica agrave ordem divina Que algum deus seja malfazejo eu natildeo acreditordquo (traduccedilatildeo nossa)

72

Entretanto presente e passado fundem-se nessa nova forma de olhar o mundo e a forccedila viril

coloca-se como parte da elaboraccedilatildeo feminina o que produz a figura maacutescula saacutebia

determinada poderosa da filha de Zeus Portanto de acordo com a concepccedilatildeo do vasto universo

grego Atena era uma entidade de caraacuteter singular embora esse caraacuteter fizesse parte de um

mundo em si completo Um mundo bem diversificado mas completo eacute o que reflete a virgem

filha de Zeus Atena

Enquanto Afrodite emana o encanto que excita e arrebata a que com seu sorriso doce

cativa os sentidos Atena faz despertar a sabedoria as ldquoestrateacutegiasrdquo que direcionam para resolver

necessidades vitais Entatildeo os traccedilos que os deuses ostentam seja Afrodite com sua sedutora

doccedilura seja Aacutertemis com sua meiguice brincalhona seja Atena com sua astuacutecia complexa satildeo

traccedilos humanos o que significa que tecircm em si todo o sentido de domiacutenio da existecircncia humana

Atena pois remete ao seu olhar sobre os cidadatildeos de Atenas o olhar destes sobre ela

essa deusa armada cujo peito ostenta um escudo apavorante objeto de tantas reflexotildees

Referente a esse assunto coloca Otto

ldquoVemos uma deusa que coberta por seu escudo estaacute disposta a lutar e proteger Mas isso seria tudo que se pensava a seu respeito quando a crenccedila nela era viva Podemos chamaacute-la de Virgem do Escudo Virgem da Batalha Para essas perguntas natildeo temos resposta alguma Seja como for uma tal designaccedilatildeo natildeo convivia com Atena homeacuterica por muito que ela se mostre combativa e poderosa na luta ela eacute muito mais que uma deusa da batalha e eacute inimiga declarada dos espiacuteritos selvagens cujo ser se consuma na fruiccedilatildeo do tumulto de guerrardquo137

Essa uacuteltima colocaccedilatildeo de Otto nos faz pensar em uma provaacutevel diferenccedila entre a

virgindade de Atena e a de Aacutertemis A virgindade de Aacutertemis eacute ldquoindomaacutevelrdquo primitiva natildeo

ldquoexploradardquo mais ligada aos elementos terrestres e agrave natureza como sua representaccedilatildeo simboacutelica

enquanto que a virgindade de Atena eacute ontoloacutegica pois faz parte da elevaccedilatildeo e excelecircncia do ser

como forma de um aprimoramento da sabedoria quase que vinculada a uma postura espiritual

Poreacutem ambas no que concerne o aspecto da virgindade devem manter o viacutenculo com

deusesdeusas de eacutepocas anteriores

Desde a sua apariccedilatildeo vinda da cabeccedila do pai Atena aleacutem de revelar sua virgindade e sua

identidade guerreira apresenta o destaque de seus ldquoolhos glaucosrdquo (γλαυκώπιδα) o que segundo

alguns autores estaacute relacionado com olhos de coruja na sua sagacidade abrangente do olhar

137 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p36

73

Para outros autores refletiria a cor esverdeada do mar (veja anexo Hino Homeacuterico a Atena)

pois Atena eacute de natureza aquaacutetica quando ela nasceu diz o Hino Homeacuterico XXVIII ldquoo mar

furioso elevou-se no alvoroccedilo de ondas de escuro esplendorrdquo

Como guerreira ela incita os guerreiros antes da batalha e lhes daacute acircnimo138 Com sua

eacutegide agita os homens ao ardor beacutelico Mas natildeo soacute os incita ajuda-os tambeacutem na forccedila e no

poder do combate com sua presenccedila saacutebia para que os humanos (os gregos) natildeo fraquejem

Na Odisseacuteia quando Odisseu seu filho e seus poucos guerreiros fieacuteis que o acompanham

vecircem-se diante do inimigo nos momentos finais de disputa Atena ergue sua eacutegide e o inimigo

tomado de terror dissipa-se

A sua presenccedila miraculosa proclama o sublime e eacute suficiente para causar

estremecimentos para serenar combates para por fim a situaccedilotildees angustiantes

Seraacute que mais tarde tambeacutem os judeus cristatildeos vatildeo se inspirar nessa deusa mediterracircnea

para conferir a Maria tal poder

O seu olhar cruza-se com seu poder A sua eacutegide ao mesmo tempo que amedronta impotildee

respeito Atena tambeacutem eacute detentora de uma alteridade nessa forma de Poder ldquofeito maacutescarardquo

Nesse ponto o olhar de Atena cruza-se com o olhar de Gorgoacute139 e como diz Vernant

suscita

ldquoo medo em estado puro o Terror como dimensatildeo do sobrenatural Este medo com efeito natildeo eacute uma decorrecircncia nem algo motivado como o que provocaria a consciecircncia de um perigo Eacute um medo primeiro logo de entrada e por si mesma Gorgoacute suscita o pavor porque se apresenta no campo de batalha como um prodiacutegio (teacuteras) um monstro (peacutelōr) em forma de cabeccedila (kephaleacute) terriacutevel e assustadora (de ver e ouvir) (deineacute te smerdneacute) com um rosto de olho terriacutevel (blousurocircpis) lanccedilando um olhar de pavor (deinograven derkeacutenē)rdquo140

A lenda da Medusa se transfigurava em vaacuterias situaccedilotildees ligadas a Atena Uma delas dizia

que ela tinha sido viacutetima de uma metamorfose provocada pela ira de Atena Conta-se que Gorgoacute

138 A este respeito ver HOMERO Iliacuteada op cit canto 2 v446 e seguintes 139 Gorgoacute como eacute citado por VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 Refere-se a Goacutergona (τοργω) a Medusa mortal e filha de duas entidades mariacutetimas A cabeccedila da Goacutergona era rodeada de serpentes e seus olhos brilhantes e o olhar tatildeo penetrante que causava terror e petrificava Atena colocou a cabeccedila da Medusa morta por Perseu em sua eacutegide a fim de que os inimigos fossem petrificados 140 VERNANT Jean-Pierre ndash Idem p50

74

era uma bela jovem que ousara rivalizar sua beleza com a deusa Atena Como ela tinha muito

orgulho de seus cabelos longos Atena transformou-os em serpentes

Na tradiccedilatildeo grega os guerreiros espartanos manifestavam a sua selvageria atraveacutes dos

cabelos longos como crina de cavalo Por ocasiatildeo dos casamentos esses guerreiros mantinham

uma tradiccedilatildeo ritual de simular um rapto da moccedila com quem iam se casar A moccedila (koacuterai as

jovens virgens) raptada era entregue a uma mulher que lhe raspava o cabelo A selvageria da

cabeleira longa da mocinha que se assemelhava a ldquouma potranca em liberdaderdquo no dizer de

Vernant era cortada Continuando diz ele

Para a jovem noiva o ritual da cabeccedila raspada joga com estes dois simbolismos contraacuterios e que se reforccedilam em sua oposiccedilatildeo pois a esposa se deve distinguir-se da patheacuternos para entrar no estado conjugal teraacute tambeacutem no mesmo sentido de diferenciar-se nitidamente de seu marido141

O cortar o cabelo eacute uma forma de domesticaccedilatildeo como vimos em Aacutertemis de transformar

a selvageria da jovem virgem ndash excluiacuteda do casamento ndash para uma vida de submissatildeo a um

esposo e a uma vida de reproduccedilatildeo Da virgem agrave mulher casada e matildee

Aacutertemis manteacutem-se virgem na sua representatividade selvagem da natureza Atena

manteacutem-se virgem na representativa selvagem dos combates

Mas apesar de ser uma deusa guerreira Atena distingue-se radicalmente de Ares pois

enquanto o deus da guerra eacute sanguinolento furioso e desatinado Atena goza de um caraacuteter justo

equilibrado sereno Atenas eacute mais que uma guerreira eacute uma pacificadora Atena eacute prudente e

digna enquanto Ares eacute odioso e coleacuterico

Homero tanto na Iliacuteada quando Atena chama Aquiles agrave razatildeo como na Odisseacuteia

quando Atena encaminha Odisseu agrave sua razatildeo e ao seu destino parece revelar uma consideraccedilatildeo

pela moralidade antes um espiacuterito elevado pela prudecircncia e pela ponderaccedilatildeo do que uma atitude

triunfante frente a uma tensatildeo

Esses sentimentos nobres de Atena a unem aos heroacuteis Aquiles e Odisseu Natildeo eacute soacute a

arguacutecia beacutelica que conta mas a ponderaccedilatildeo refletida A prudecircncia tambeacutem ela eacute uma forma de

sagacidade

Assim o olhar de Terror ao qual Vernant se refere eacute tambeacutem um olhar de prudecircncia de

cautela que faz parar e refletir que natildeo pode ser visto em uma impetuosidade impensada

141 VERNANT Jean-Pierre op cit p59

75

Como coloca Otto em seu estudo sobre os deuses gregos

O que Atena mostra ao homem o que dele quer e lhe inspira eacute por certo audaacutecia vontade de vencer e valentia Mas tudo isso natildeo quer dizer nada sem prudecircncia e luacutecida clareza Daiacute eacute que emana sua atividade com a plenitude da essecircncia da deusa da vitoacuteria Procedendo dessa origem sua luz natildeo ilumina apenas o guerreiro em combate onde quer que feitos notaacuteveis se realizem e se crie o acircnimo heroacuteico ela estaacute presente

Sempre procurando pista e mexendo na questatildeo da virgindade pareceu-nos que em se

enfileirando as deusas virgens no ldquofrontatildeordquo de nosso ldquotemplordquo verifica-se que a virgindade de

Atena coloca-se em um plano diferente do da virgindade atribuiacuteda a Aacutertemis e a Heacutestia

Aacutertemis eacute um ser selvagem pertence a um poacutelo que vai da natureza inexplorada

primitiva a um mundo civilizado maculado por um novo agir Sua virgindade daacute-se nessa tensatildeo

de equiliacutebrio entre o velho e o novo entre o passado e o presente entre o selvagem e o

civilizado entre dois poacutelos sempre numa dupla alteridade

Heacutestia eacute um ser contemplativo Assim como Aacutertemis relaciona-se a um elemento da

terra ao fogo que a natureza acolhe em todos os seus muacuteltiplos sentidos (veja 54) pois o fogo

tambeacutem eacute constitutivo da terra Nesse sentido Heacutestia eacute uma figura ldquoabstratardquo e incorpoacuterea

Atena ao contraacuterio natildeo eacute nem selvagem nem contemplativa Ela eacute a representaccedilatildeo de

uma consciecircncia luacutecida em estado de justiccedila e de pureza Ela eacute nesse sentido mais proacutexima agrave

ideacuteia do que a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde iraacute colocarem seus deuses e santos Atena jaacute tem um

ldquoespiacuteritordquo refinado

Por isso em Atenas ela tambeacutem era chamada de Niacuteke e na sua estaacutetua Partheacutenos de

maacutermore e ouro esculpida por Fiacutedias ela carrega em sua matildeo a imagem de Niacuteke a que distribui

daacutedivas e a que decide sobre faccedilanhas

O Paacuterthenon como ficou sendo chamado o templo que acolhia a estaacutetua de Atena tinha

um compartimento onde habitavam as sacerdotisas da deusa Daiacute o questionamento se

Paacuterthenon referia-se simplesmente ao templo de Atena (lsquoRoom of de Maidenrsquo) ou incluiacutea esse

espaccedilo habitado pelas sacerdotisas virgens (lsquoRoom of tue Maindensrsquo)142

Mas Atena natildeo tem apenas o lado viril guerreiro dos projetos das estrateacutegias da accedilatildeo

Atena natildeo eacute esposa nem matildee mas eacute uma deusa criativa e revela seu aspecto feminino na periacutecia

e na arte

142 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004

76

Dizem os autores que eacute apenas em um periacuteodo tardio que Atena se torna patrona da arte e

das ciecircncias Surgem nessa eacutepoca outras lendas como a de Aracne quando Atena teria

transformado a princesa Coacutelofon na Liacutedia em aranha invejosa que ficara da habilidade de tecer

da princesa

Segundo algumas fontes isso revelaria uma antiga rivalidade comercial entre os

atenienses e os liacutedio-cariates indicando pois uma versatildeo mais tardia da lenda que natildeo tem nada

em comum com as caracteriacutesticas de Atena

Outra lenda que se refere a Atena eacute sobre a sua denominaccedilatildeo de Palas Atena Conta essa

lenda revelando a nobreza de caraacuteter de Atena que ela estava brincando de artes marciais com a

filha de Triton Palas Em um dado momento preocupado com essa brincadeira das meninas

Zeus colocou sua eacutegide e Palas olhando para cima para ver o que era distraiu-se e foi ferida por

Atena vindo a falecer Em homenagem agrave amiga e querendo recuperar sua memoacuteria Atena fez

uma imagem de madeira da figura de Palas e enrolou-a com a eacutegide colocando-a perto de Zeus

Daiacute a origem de seu epiacuteteto Palas que enaltece a dignidade de seus traccedilos

Em nossa leitura e pesquisa Atena pareceu-nos revelar mais especificamente a

caracteriacutestica de virgindade dos gregos da eacutepoca de Homero

54 - HEacuteSTIA E A CASTIDADE

Para entender a deusa Heacutestia pareceu-nos importante retomar as funccedilotildees de Afrodite

Enquanto Afrodite eacute toda corpoacuterea linda sedutora doce Heacutestia eacute pouco representada

fisicamente silenciosa meiga

Dissemos que em Afrodite seu poder eacute determinado pelo olhar da seduccedilatildeo (απάτη) e da

uniatildeo amorosa (Φιλότης) e que implica movimento constante provocar um desejo contiacutenuo entre

os homens e ateacute entre os deuses - que eacute quando atraveacutes do desejo aproximam-se dos mortais

conhecendo-os melhor

Heacutestia ao contraacuterio tem seu poder emanado pelo desejo da fixidez da constacircncia da

manutenccedilatildeo da ordem da famiacutelia do equiliacutebrio das relaccedilotildees familiares da preservaccedilatildeo da

harmonia e da paz do controle Silenciosa sempre presente colocada no espaccedilo central da casa

no umbigo da casa (οικω) como diziam os gregos seu olhar eacute atento e vigilante promovendo o

77

recato das virgens (παρθένος) antes do casamento ela tambeacutem uma virgem que cuida do espaccedilo

da famiacutelia impondo respeito e interditando o incesto

Heacutestia tem uma importacircncia primordial mas era pouco representada pois fazia de tal

forma parte do espaccedilo domeacutestico que a lareira da famiacutelia era chamada de heacutestia onde ardia o

fogo intermitente o altar sagrado em que se ofereciam os sacrifiacutecios

Sobre essa presenccedila na casa dos homens que habitam a superfiacutecie terrestre diz o Hino

Homeacuterico a Heacutestia (XXIX veja anexo B) que ela constitui natildeo soacute o centro do espaccedilo familiar

mas tambeacutem eacute uma presenccedila constante em todos os templos dos deuses (honra concedida a ela

por Zeus) Como Zeus tambeacutem ela era filha de Reacuteia e de Crono e era venerada como a deusa

mais antiga do panteatildeo grego Nas casas diz o mesmo hino os sacrifiacutecios eram sempre

oferecidos a ela Como vivia no meio dos mortais todas as festividades familiares comeccedilavam e

terminavam com rituais laudatoacuterios agrave deusa o que criava uma solidariedade entre os

participantes unindo-os pela identidade comum

Heacutestia natildeo significava o fogo propriamente dito mas a lareira da casa o altar dos

sacrifiacutecios O fogo que queima no altar mobiliza o olhar e estaacute presente como elemento de

purificaccedilatildeo como siacutembolo de marca civilizatoacuteria como chama do desejo da sexualidade

Como elemento de purificaccedilatildeo o fogo arde em homenagem aos deuses em um gesto de

honra e de respeito em uma atitude em que o olhar capta o crepitar da presenccedila do divino nas

chamas

O fogo tambeacutem eacute usado como um elemento de civilizaccedilatildeo pois a presenccedila da deusa

Heacutestia se estendia agraves cidades gregas como continuaccedilatildeo da famiacutelia Nessas piras do espaccedilo

puacuteblico ardia a chama eterna Considerava-se aiacute um lugar de altar sagrado onde os estrangeiros

eram recebidos e os lsquoembaixadoresrsquo prestavam juramentos Os guerreiros antes de irem agrave guerra

pegavam fogo do altar de Heacutestia para levar com eles e os colonizadores o levavam quando iam

fundar uma nova colocircnia A importacircncia de Heacutestia eacute pois ldquohumanizadorardquo uma vez ela se

integra e participa da condiccedilatildeo humana quer como conhecedora do espaccedilo familiar quer como

impulsionadora de um estaacutegio civilizatoacuterio A pira estaacute sempre recebendo o fogo que arde para a

renovaccedilatildeo do velho e para uma ldquoressurreiccedilatildeordquo perioacutedica

A lareira (a heacutestia) que mantinha o fogo tambeacutem tinha uma accedilatildeo relacionada com a

transmissatildeo dos ritos de iniciaccedilatildeo dos jovens (παρθένος) que passariam de um estaacutegio a outro

78

tanto do ponto de vista pessoal como no aspecto social A jovem virgem saiacutea do espaccedilo da casa

do pai para o seu novo espaccedilo familiar com o esposo onde se esperava que se desse a uniatildeo dos

sexos para fins de que a fertilidade na terra tivesse continuidade Nesse sentido Heacutestia era a

deusa que olhava atenta as chamas da accedilatildeo fecundante do desejo

Portanto o olhar que o fogo simboliza pode ser purificador iluminador fecundante Eacute o

olhar vigilante que daacute seguranccedila Comparando-se pois a purificaccedilatildeo pelo fogo relativo agraves

atividades da lareiraheacutestia e a purificaccedilatildeo pelas aacuteguas como vimos em Afrodite no seu

ldquobatismordquo na sua renovaccedilatildeo apoacutes a traiccedilatildeo ao marido poderiacuteamos deduzir que o fogo de que

Heacutestia cuidava era uma forma de purificaccedilatildeo que simbolizava a tradiccedilatildeo dos costumes

relacionada a importantes aspectos sociais dos quais a famiacutelia e as cidades faziam parte Nesse

sentido o fogo que Heacutestia cuida revela uma forma de compreender os estaacutegios por que passa o

feminino diante do masculino na sua histoacuteria terrestre A renovaccedilatildeo a transformaccedilatildeo a uniatildeo

sexual o interdito fazem parte da civilizaccedilatildeo

Quanto agrave aacutegua parece-nos que associada a Afrodite que representa o ceacuteu a terra e o

mar seu simbolismo eacute a purificaccedilatildeo do desejo Afrodite emerge das aacuteguas e esse processo a

remete agraves fontes de origem reconciliada com uma nascente divina de vida nova

Em eacutepocas seguintes agrave antiguidade grega o cristianismo se apropriaraacute da renovaccedilatildeo do

banho nas aacuteguas como forma de purificaccedilatildeo Assim diz o apoacutestolo Mateus (3 5-6) referindo-se

ao batismo que Joatildeo Batista fazia no deserto ldquoE eram por ele batizados no rio Jordatildeo

confessando seus pecadosrdquo O batismo tem pois como finalidade retirar o pecado assegurando

uma regeneraccedilatildeo Essa concepccedilatildeo portanto foi apropriada pelo Cristianismo dos povos de

civilizaccedilotildees anteriores

Heacutestia como significante da lareira da casa ocupava um espaccedilo feminino pois cabia agrave

mulher ocupar-se das atividades domeacutesticas e a casa (οικος) era seu lugar Era ali que a mulher

estava protegida dos perigos que a vida exterior poderia representar

A jovem ao casar-se ia para a casa do marido o que exigia a ela uma mudanccedila natildeo soacute

de casa como tambeacutem de estado de virgem a esposa e matildee Portanto isso implica uma

mobilidade Heacutestia ao contraacuterio continuava fixa e virgem na casa paterna Para a jovem essa

questatildeo espacial era tambeacutem social e pessoal

79

Vejamos o que diz Vernant sobre isso

Essa permanecircncia de Heacutestia natildeo eacute de natureza apenas espacial Como ela confere agrave casa o centro que a fixa no espaccedilo Heacutestia assegura ao grupo domeacutestico a sua perenidade no tempo eacute pela Heacutestia que a linhagem familiar se perpetua e se manteacutem semelhante a si mesma como se em cada geraccedilatildeo nova nascessem diretamente ldquoda lareirardquo os filhos legiacutetimos da casa143

Como aspecto de uma sociedade patriarcal os casamentos eram endogacircmicos mantendo

uma tradiccedilatildeo de hereditariedade puramente paterna Deste modo Heacutestia cuidava da questatildeo da

fecundidade dissociada portanto da questatildeo do desejo Ela cuidava para que houvesse atraveacutes

da filha a prolongaccedilatildeo da ldquolinhagem paternardquo sem a necessidade ldquode uma mulher lsquoestrangeirarsquo

para a procriaccedilatildeordquo 144

Esse tipo de lugar ocupado pela mulher revela um aspecto de passividade e uma

caracteriacutestica de dominaccedilatildeo do homem cujo poder eacute o de garantir a fecundaccedilatildeo

A mulher eacute a estranha na casa do marido agrave qual ele pertence e quer dar continuidade

pois eacute o pai que firma as raiacutezes nessa casa que deve ser cuidada pela mulher Nesse sentido vecirc-

se a mulher como um ldquodomusrdquo (como jaacute nos referimos anteriormente) do masculino no sentido

de receber e dar continuidade agrave linhagem participando como cuacutemplice do desejo do macho de

manter sua genealogia desconsiderando os seus proacuteprios desejos de mulher Agrave mulher cabe

submeter-se ao homem que preocupado com a sua linhagem vai conduzi-la como virgem ao

altar de Heacutestia vai unir-se a ela sexualmente e vai ser o progenitor dos filhos que viratildeo

Ora como jaacute foi comentado antes as relaccedilotildees do gecircnero envolvem conflitos e portanto eacute

natural que as donzelas (moccedilas solteiras) e as mulheres casadas enfrentassem tensotildees dentro da

estrutura familiar e que reagissem a determinadas imposiccedilotildees

Eacute o que mais tarde a trageacutedia vai mostrar as contradiccedilotildees da cena familiar gerando

oposiccedilotildees sofrimentos afetando relacionamentos alimentando oacutedios

Talvez por ser uma observadora constante da cena domeacutestica Heacutestia tenha se fixado na

sua condiccedilatildeo de παρθένος a deusa que remete a uma condiccedilatildeo do feminino ideal inacessiacutevel e

por isso sem sujeitar-se agrave submissatildeo do desejo carnal A ldquopurezardquo natildeo pode ser alcanccedilada pelo

humano pois ela eacute do espaccedilo divino No catolicismo as freiras e as santas manteratildeo a tradiccedilatildeo

do recato fazendo votos de castidade e remetendo-se ao enclausuramento de conventos Uma

143 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 199 144 VERNANT Jean-Pierre Idem p 199

80

forma de manter a ldquopurezardquo era abolindo as relaccedilotildees carnais O catolicismo pois teve suas

virgens que se encarregavam de vigiar o ldquopecadordquo

Mas natildeo eacute soacute a submissatildeo ao marido que a mulher deve aceitar Ela eacute considerada parte

de um comeacutercio de trocas dependente do acordo entre os homens pai e esposo Essa questatildeo eacute

de ampla complexidade pois envolve aspectos poliacutetico-econocircmicos aleacutem dos sociais

o termo οίκος tendo ao mesmo tempo um significado familiar e territorial podem-se compreender as reticecircncias que constituem obstaacuteculo em plena economia mercantil agraves operaccedilotildees de venda e de compra quando se trata de bens familiares (κληρος) compreende-se tambeacutem a recusa em conceder a um estrangeiro o direito de possuir uma terra dita ldquoda cidaderdquo porque ela deve permanecer como o privileacutegio e a marca do cidadatildeo ldquoautoacutectonerdquo145

Ou seja como mercadoria de troca de comeacutercio ou seja como um campo feacutertil em uma

sociedade agriacutecola a mulher era vista para fins de procriaccedilatildeo Como objeto de troca pertencia ao

marido como campo a ele lhe cabia frutificar o solo e fazer a colheita delimitando seu territoacuterio

em um clima de seguranccedila e de amizade domeacutestica

Portanto nesse tipo de sociedade a esterilidade ia contra os princiacutepios de continuaccedilatildeo

genealoacutegica Por isso era punida Natildeo se pode renunciar agrave deusa da fertilidade Afrodite zela

pela vida A uniatildeo entre os opostos faz parte da continuidade do mundo Renunciando ao coito o

homem estaacute impedindo a procriaccedilatildeo Euriacutepedes mostra em sua trageacutedia como Hipoacutelito foi

castigado por querer manter-se fiel a Aacutertemis isto eacute agrave virgindade

A abertura da peccedila daacute-se com as palavras de Afrodite sobre a abstinecircncia sexual

masculina na figura de Hipoacutelito Ser humano eacute sujeitar-se ao desejo Aleacutem disso Afrodite

determina o destino (como jaacute foi apontado no item sobre essa deusa) independentemente da

vontade do homem Faz parte do humano o enredamento o conflito a tensatildeo entre os opostos

pois assim foi determinado desde o iniacutecio dos tempos

Vejamos o que diz Afrodite em suas beliacutessimas palavras na traduccedilatildeo para a liacutengua

portuguesa de J B Fontes

Grande entre os seres mortais e natildeo sem renome 1 de deusa Ciacutepris eu sou chamada no ceacuteu Aqueles que do Ponto aos limites de Atlas habitam e contemplam o lume do sol eu favoreccedilo se veneram meu poder 5 enquanto abato quem pensa em mim com soberba

145 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 208

81

pois eacute inerente tambeacutem a raccedila dos deuses agradar-se com honras prestadas por homens Mostrarei logo a verdade destas palavras O filho de Teseu nascido da Amazona 10 Hipoacutelito que o casto Piteu instruiu eacute o uacutenico entre os cidadatildeos desta Trezena a dizer que dos Numes eu sou o pior o leito ele recusa evita o casamentordquo146 mas pela falta contra mim vou me vingar 147 21 de Hipoacutelito ainda hoje Muito avancei neste projeto resta-me pouco a fazer Vindo ele uma vez da casa de Piteu ver misteacuterios sagrados e neles sagrar-se 25 na terra de Pandiacuteon a bem nascida esposa de seu pai Fedra o viu e um violento amor tomou-lhe coraccedilatildeo segundo o meu desejo148

Reconhecemos em Heacutestia uma polaridade pois ao mesmo tempo que se opotildee a Afrodite

como virgem inicia e supervisiona com o olhar de seu altar as jovens que se preparam para o

casamento Assim como Afrodite Heacutestia se inscreve na natureza humana Tambeacutem ela conhece

o posicionamento do ldquoparrdquo ao lado do masculino no panteatildeo grego onde eacute colocada ao lado de

Hermes divindade que cuida da solidariedade do acolhimento entre os homens nas suas

andanccedilas ldquoexterioresrdquo

O Hino Homeacuterico a Heacutestia coloca-a lado a lado com Hermes complementando funccedilotildees

Assim como Heacutestia figura como virgem e protetora das jovens em uma posiccedilatildeo semelhante agrave da

matildee Hermes eacute o mensageiro que ajuda aqueles que necessitam Hermes eacute pois o ldquoαγγελεrdquo o

anjo que como Heacutestia conhece as accedilotildees humanas e procura ser favoraacutevel aos mortais

A questatildeo do gecircnero eacute altamente significativa na sociedade arcaica e ateacute hoje no mundo

contemporacircneo alguns pais anseiam pela vinda de um filho do sexo masculino Assim sendo o

pai em cujo lar soacute havia filhas esperava que a filha lhe desse um neto como herdeiro do ldquoκλεροςrdquo

paterno Nesse caso o filho seguiria a linhagem do avocirc e era ao mesmo tempo filho e irmatildeo de

sua proacutepria matildee Ainda assim a mulher via-se sujeita agraves condiccedilotildees de submeter-se se natildeo agrave casa

do marido agrave casa paterna Em seu estudo sobre Heacutestia Vernant faz uma consideraccedilatildeo que nos

parece importante em relaccedilatildeo a um outro aspecto da polaridade da deusa Diz ele

146 Grifo nosso 147 Grifo nosso 148 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 105

82

Assim se delineia no pensamento social dos gregos em face agrave imagem do homem agente exclusivo da obra geradora a imagem natildeo menos poderosa da mulher verdadeira fonte de vida em que se alimenta a fecundidade das ldquocasasrdquo A deusa do lar segundo os casos eacute suscetiacutevel de justificar tanto uma quanto outra dessas duas imagens opostas Com efeito Heacutestia nos parece ter a funccedilatildeo especiacutefica de marcar a ldquoincomunicabilidaderdquo dos diversos lares enraizados em um ponto definido do solo eles natildeo poderiam nunca se misturar mas permanecem ldquopurosrdquo ateacute na uniatildeo dos sexos e na alianccedila das famiacutelias149

Como coloca Vernant em seu texto a virgindade de Heacutestia eacute a que assegura agrave jovem

virgem antes do casamento o seu proacuteprio lar Apoacutes o casamento ela passaraacute a representar a casa

do marido submetendo-se a ele como senhor do οίκος

Como organizadora dos bens do lar no que diz respeito agrave concentraccedilatildeo de riqueza e a

delimitaccedilatildeo dos patrimocircnios familiares Heacutestia era conhecida com o epiacuteteto de Heacutestia Tamia

Enquanto cabia a Heacutestia cuidar dos tesouros que ficavam guardados dentro da casa nos cofres

(bronze ouro ferro tecidos) a Hermes cabia o cuidado na aacuterea externa dos rebanhos com seu

bastatildeo maacutegico Considerando-se a funccedilatildeo dessas divindades enquanto Heacutestia se ocupava da

conservaccedilatildeo dos bens Hermes encarregava-se do movimento da riqueza isto eacute da aquisiccedilatildeo ou

da perda de bens

Um outro epiacuteteto de Heacutestia eacute Heacutestia Koineacute Ela era assim denominada quando havia a

cerimocircnia da lavragem que periodicamente renovava o viacutenculo do povo ateniense ldquoautoacutectonerdquo

com a sua terra

Heacutestia tambeacutem era a divindade de um ritual divinatoacuterio na Acaia ao lado de Hermes

O Hino XXIV tambeacutem dedicado a Heacutestia (verificar anexo B) ressalta o poder

adiivinhatoacuterio da deusa prestando serviccedilos no templo de Apolo A ideacuteia de purificaccedilatildeo da deusa

eacute destacada no uso de oacuteleos que pendem das mechas de cabelo Em seu banho regenerador apoacutes

ser pega com Ares Afrodite tambeacutem eacute ungida com oacuteleo elemento de purificaccedilatildeo

Assim como Afrodite traz em si a ligaccedilatildeo com o ceacuteu (pai Urano) com a terra (matildee Gaia)

e com a aacutegua (tendo nascido na espuma do mar) Heacutestia manifesta em si o contato do ceacuteu da

terra e do mundo subterracircneo A lareira fixa na casa enraiacuteza-a na terra Por meio dela a famiacutelia

faz uma aproximaccedilatildeo com o mundo subterracircneo Aleacutem disso a lareira assim como se comunica

com o mundo infernal faz subir ateacute a morada dos deuses oliacutempicos a chama que vem do

149 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 216

83

cozimento dos alimentos Quanto ao οικος cujo centro eacute fixado por Heacutestia representa a

estabilidade no espaccedilo terrestre

Em Homero nada pudemos destacar sobre Heacutestia No entanto no Hino Homeacuterico V (veja

anexo A) dedicado a Afrodite encontra-se uma citaccedilatildeo de grande forccedila quando Heacutestia faz um

juramento sagrado a Zeus de manter-se virgem A cena descrita destaca Heacutestia colocando sua

matildeo na cabeccedila de Zeus como um modo solene de se fazer um juramento Desta maneira Heacutestia

estava resolutamente decidida a manter-se virgem Narra o hino que a deusa implorou a

virgindade a Zeus apoacutes ter sido cortejada por Poseidon e por Apolo

Heacutestia opotildee-se pois a Afrodite natildeo se submetendo a ela na questatildeo do envolvimento

amoroso (carnal) Poderiacuteamos finalizar essas consideraccedilotildees sobre Heacutestia levantando uma

pergunta seria uma forma de independecircncia para Heacutestia natildeo se deixar dominar por algueacutem (seja

deus ou mortal) do sexo masculino mas precisar da aprovaccedilatildeo de Zeus como autoridade

masculina maacutexima do panteatildeo oliacutempico Por que essa decisatildeo natildeo foi individual e teve que

passar pela ldquofigura paterna de Zeusrdquo Por que Zeus em vez de casamento passou a oferecer-lhe

a melhor porccedilatildeo (a primeira viacutetima) de todo sacrifiacutecio puacuteblico

85

6 - A QUESTAtildeO DA VIRGINDADE E AS DEUSAS VIRGENS

ldquoOne popular private offering consisted in dedicating to the deity the symbols of a phase of onersquos life that had ended such as the locks of children now adults or their toys or a bridersquos virginal clothesrdquo150

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo

Para se chegar agrave questatildeo da virgindade parece-nos que eacute preciso descobrir dentro do mito

as significaccedilotildees e as vozes que ficam agrave margem durante a Antiguidade pois satildeo subordinadas a

uma voz maior dominante

Desde o iniacutecio colocam-se as trecircs deusas virgens (Aacutertemis Atena e Heacutestia) distintas das

demais deusas formando pois um grupo agrave parte o que jaacute implica sua feiccedilatildeo diferencial

Isso revela que a ldquoliberdaderdquo individual feminina natildeo eacute compatiacutevel com a dominaccedilatildeo de

um valor de ldquomaioriardquo Portanto eacute preciso uma leitura plural do texto miacutetico para entender como

essa histoacuteria alternativa das deusas foi se constituindo atraveacutes dos tempos como enfatizamos em

nossa proposta metodoloacutegica

Trata-se pois de uma relevacircncia do tema haja vista sua pertinecircncia na questatildeo

mitoloacutegica que destaca de alguma forma quer seja atraveacutes do uso de um vocaacutebulo quer seja

atraveacutes do contexto miacutetico apesar do seu caraacuteter fantasioso a ideologia de uma eacutepoca em que

sobressai um traccedilo da virgindade de uma ldquoteologiardquo feminina

De fato a virgindade das deusas gregas permite-nos captar repercussotildees em diferentes

acircmbitos da sociedade pois o mito estaacute ldquoembrenhadordquo nela revelando justificando explicando

moldando os valores adaptando-os de modo a destacar experiecircncias que se tornam crenccedilas do

coletivo Satildeo vozes que perpassam e ultrapassam as fronteiras das poacutelis e satildeo acolhidas na

representaccedilatildeo simboacutelica dos princiacutepios sociais que a sociedade grega elabora

Portanto a virgindade de Aacutertemis Atena e Heacutestia ldquomexemrdquo com o eixo da memoacuteria

histoacuterica situam-se no eixo da realidade social e permeiam a questatildeo de gecircnero

150 RATTO Stefania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 p 152 ldquoUma oferenda privada popular consistia em dedicar agrave divindade os siacutembolos de uma fase da vida que jaacute tinha acabado tais como mechas de cabelo de crianccedilas agora adultas ou seus brinquedos ou roupas virginais de uma noivardquo (traduccedilatildeo nossa)

86

Certamente muito se tem dito sobre a Greacutecia sobre os deuses gregos sobre o homem

grego sobre as mulheres de Atenas sobre o patriarcalismo sobre o mito Poreacutem que

discussotildees podem dar conta de encaminhar a posiccedilatildeo dessas deusas no Olimpo grego

Vamos partir de um pressuposto de que o mito foi sendo construiacutedo e se adaptando de

acordo com as transformaccedilotildees por que a sociedade ia passando

Primeiro a sociedade marcadamente agriacutecola era uma sociedade que destacava a figura

da mulher Parece-nos pois que a grande deusa era privilegiada nesse espaccedilo Enfatizavam-se os

ritos de fertilidade e de procriaccedilatildeo

Dessa forma as deusas consideradas ldquoantigasrdquo vindas de outras culturas como Heacutestia

Demeacuteter Aacutertemis Atena tinham histoacuterias paralelas em outros lugares e caracteriacutesticas comuns agraves

deusas de outros povos bem como de deusas importantes quer seja nos ritos de fertilidade quer

nos ritos sagrados do fogo quer como grandes deusas ou ainda como Amazonas independentes

Poreacutem na Greacutecia os textos escritos de Homero e de Hesiacuteodo inauguram histoacuterias da

origem do mundo de todas as forccedilas da natureza de deuses e de heroacuteis Aiacute jaacute se coloca a

fertilidade da natureza e a fecundidade da terra como dos seres humanos como misteacuterios

sublimes e por isso divinizados Embora a primeira divindade que surja responsaacutevel pela

fecundaccedilatildeo seja a Terra uma forma de divindade feminina que implica uma retomada a um

primeiro padratildeo que resgata o feminino como procriando independentemente do masculino

ainda assim seu periacuteodo de independecircncia eacute limitado Logo que a matildee terra (Gaia) daacute agrave luz o

mito grego jaacute propotildee a origem dos opostos e a chegada do macho ao mundo gerando conflitos

na figura de Urano o ceacuteu

Parece-nos que a partir desse momento a Grande Matildee comeccedila a ocupar um lugar

secundaacuterio em uma sociedade que sucede agrave eacutepoca eminentemente agriacutecola em que as invasotildees

colocam toda ecircnfase nos guerreiros e o patriarcalismo inicia o seu domiacutenio

A partir dessas consideraccedilotildees trecircs aspectos podem ser destacados nesse poacutelo complexo

da sociedade grega primeiro como foi reorganizado o cenaacuterio dos deuses acomodando-se a uma

nova situaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico-econocircmica com aspectos diferenciados da fase anterior Segundo

como a mulher se posiciona nesse panorama e como suas funccedilotildees eram atribuiacutedas e

determinadas incluindo a questatildeo dos casamentos

87

Terceiro como a flexibilidade das palavras parthenos e koreacute referindo-se agraves moccedilas

solteiras e virgens em um contexto em transformaccedilatildeo pode ser significada face ao poder de

Afrodite

Enfocando o primeiro item das questotildees levantadas verificamos que a ldquoacomodaccedilatildeordquo dos

deuses oliacutempicos colocou como entidade suprema Zeus cuja forccedila e poder estavam relacionados

com o raio e com a sabedoria Estava instalado o masculino no centro do universo (kosmos)

grego A matildee que havia procriado Urano e Crono afastou-se para que eles pudessem presidir

colocando-se ela proacutepria em um plano diferenciado a que ofereceu o ventre feacutertil para que essa

prole pudesse existir e a que participou nas escolhas Ela entretanto posicionou-se aleacutem das

funccedilotildees oliacutempicas pois estas eram mais especiacuteficas para a vida do cotidiano do periacuteodo dito

arcaico Gaia a matildee primeira ficou conhecida como entidade primordial a base da fecundaccedilatildeo e

da criaccedilatildeo a que organizou o mundo e que jaacute estabelecida em um contexto amplo inaugurou o

princiacutepio de uma genealogia que se define com o nascimento de Zeus impondo-se sobre o pai

(Crono) Isso revela claramente que uma outra era tem iniacutecio agora eacute a vez em que o filho vai

reinar libertando antecedentes dessa aacutervore genealoacutegica e devolvendo agrave Terra a luz do

Relacircmpago o som do Trovatildeo e a forccedila da violecircncia A matildee Terra fica pois como base

ldquolongiacutenquardquo e Zeus fica como o centro do Olimpo

Desde o iniacutecio constata-se que a matildee reconhece os filhos e os privilegia Gaia a partir do

momento que copula com Urano passa a reconhececirc-lo como esposo e protege o filho Crono

incitando-o contra o pai que natildeo lhe ldquodava espaccedilordquo A mesma questatildeo se repete entre Crono e

sua irmatilde Reacuteia Quando comeccedilam a copular Reacuteia reconhece Crono como pai de seus filhos e

porque a lenda jaacute previa a ira dos filhos contra o pai tentando arrebatar-lhe o lugar Crono

zeloso de seu domiacutenio passa a devoraacute-los A matildee agora Reacuteia salva o filho Zeus de Crono

dando a este uacuteltimo uma pedra para engolir e escondendo Zeus em uma gruta onde eacute alimentado

por uma cabra

Esses aspectos justificam algumas constataccedilotildees (a) a matildee parece ter um viacutenculo de

afetividade com os filhos desde o nascimento reconhecendo-os como parte de sua prole gerados

em seu ventre (b) o pai considerado apenas pai bioloacutegico ainda natildeo assume os filhos Natildeo

existe pois nesses pais miacuteticos primordiais a ldquoadoccedilatildeordquo dos filhos que seraacute posteriormente

88

introduzida no direito romano151 (c) a lenda miacutetica destaca para um fato natural da vida com o

tempo os filhos assumem o lugar do pai ndash o cetro passa do mais velho ao mais novo ndash (d) a

cabra como participante na amamentaccedilatildeo das crianccedilas na falta do leite materno eacute tida como um

animal reverenciado entre os gregos na figura de Zeus que como infante necessitou da

alimentaccedilatildeo vinda de Amalteacuteia a cabra-ama tida em outras versotildees como ninfa

Essa linhagem a partir daiacute centrada em Zeus parece-nos revelar um periacuteodo de transiccedilatildeo

cedendo a fecundidade criativa lugar para o masculino dominante ocupar o governo do mundo

atraveacutes das armas que lhe satildeo atribuiacutedas o raio o trovatildeo e a violecircncia o poder de ldquofulminarrdquo

Passa-se da fecundidade feminina agrave dominaccedilatildeo masculina

Assim reorganizado o Olimpo instala a figura do pai todo-poderoso o masculino

predominante refletindo uma sociedade em que os cidadatildeos (pais e esposos) negociavam e

decidiam sobre as mulheres (filhas e esposas) protegiam as muralhas da cidade (os hoplitas) e

cuidavam da descendecircncia genealoacutegica atraveacutes da procriaccedilatildeo com as jovens mulheres porque a

continuaccedilatildeo da linhagem familiar era de grande importacircncia na sociedade grega

Isso posto mostra-nos a relevacircncia da deusa Afrodite para a reproduccedilatildeo da espeacutecie o

papel representativo da deusa Heacutestia como guardiatilde da casa e da famiacutelia com sua presenccedila fixa

constante atenta a significacircncia de Aacutertemis lsquoSenhora das Ferasrsquo responsaacutevel pela

lsquodomesticaccedilatildeo dos jovensrsquo as meninas de onze doze anos (as ursas) para enfrentamento do

casamento e dos partos e os rapazes para o preparo civilizatoacuterio que a cidadania impotildee e

finalmente Atena como orientadora das questotildees que precisam de uma direccedilatildeo saacutebia e astuta de

um rumo certeiro de estrateacutegias inteligentes da elaboraccedilatildeo paciente no trabalho manual no

cuidado com os cavalos no cultivo da oliveira Enfim uma deusa multifacetada para atender

necessidades em tempo de guerra e de paz de mulheres e de homens

De certa forma os deuses oliacutempicos refletiam todos os estados de coisas dos homens em

sua vida cotidiana

Uma forma de honrar os deuses e de implorar favores a eles era atraveacutes dos cultos e dos

rituais de sacrifiacutecio Assim o homem grego da eacutepoca arcaica mantinha um viacutenculo com o divino

com seus deuses e deusas atraveacutes da praacutetica de ritos fossem eles puacuteblicos ou privados Os 151 Discutimos sobre esse aspecto em um artigo de nossa autoria O olhar e a voz na construccedilatildeo do masculino ndash A questatildeo da paternidade in GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Masculino Campinas Editora Aliacutenea 2008

89

sacrifiacutecios coletivos oferecidos durante festivais sacros em geral incluiacuteam instrumentos

adequados e animais como viacutetimas Esse fato eacute revelador da continuidade de uma tradiccedilatildeo que se

mantinha dos tempos ancestrais Portanto mesclavam-se o antigo e o novo incorporando ritos a

deuses que tinham um ldquonovo formatordquo adaptados a uma sociedade guerreira cuja voz que se

fazia ouvir era a do masculino Da grande deusa passou-se ao deus supremo

Essa incorporaccedilatildeo da figura de deusas que mantinham sua autonomia vinculada ao

passado de grandes deusas sentadas no Olimpo venerando a figura de um reinado governado por

um deus coloca a mulher e o homem no bojo da historicidade de suas inter-relaccedilotildees

As deusas virgens do Olimpo parecem sugerir pistas de uma sociedade matriarcal anterior

e buscando rastrear seus atributos e funccedilotildees parece-nos que seus testemunhos da Antiguidade

Grega fazem-nos desvendar a ldquoinvisibilidade femininardquo

De fato eacute atraveacutes das deusas que se tem notiacutecia do papel das mulheres na sociedade As

meninas se preparavam para o casamento sob a ldquodomesticaccedilatildeordquo e orientaccedilatildeo de Aacutertemis e lhe

ofertavam seus brinquedos de infacircncia siacutembolos de uma fase que deixavam para traacutes No dia do

casamento em geral a noiva tomava banhos de purificaccedilatildeo indicadores de uma eacutepoca de

transformaccedilotildees pois os rituais de libaccedilatildeo faziam parte dos preparativos de fases muacuteltiplas dos

casamentos da Greacutecia antiga Um banquete era oferecido a Heacutestia na casa da noiva do qual ela

podia participar de rosto coberto por um veacuteu A menina tornava-se entatildeo ldquoinvisiacutevelrdquo escondida

atraveacutes do veacuteu uma presenccedila velada diante do noivo e da famiacutelia Heacutestia tambeacutem ldquoguiavardquo a

procissatildeo para a casa do noivo onde a jovem iria morar pois a matildee da noiva acompanhava o

trajeto carregando tochas acesas

Esses pedaccedilos de descriccedilotildees datildeo pistas a algumas reflexotildees importantes sobre o que hoje

se denomina estudo de gecircneros152 indicador de uma visatildeo da posiccedilatildeo ocupada pela mulher

naquela sociedade dominada por um pai Zeus que se configura como o soberano que representa

o poder diante de todos os outros deuses

152 Natildeo pretendemos explorar a questatildeo vinculada aos estudos de gecircnero cuja trajetoacuteria emerge da constataccedilatildeo de um conflito social na reinvidicaccedilatildeo de direitos tendo sido colocado nas ciecircncias sociais a partir de 1955 quando John Money propocircs o termo ldquopapel de gecircnerordquo atribuindo o conjunto de condutas referentes aos homens e agraves mulheres

90

A nossa leitura dessa categoria de gecircnero dentro de uma anaacutelise antropoloacutegica

comparativa parece superar um olhar que vecirc a mulher fortemente ldquovitimizadardquo dentro da

sociedade sem espaccedilo para a participaccedilatildeo e atuaccedilatildeo legiacutetima

De fato embora a praacutetica discursiva dominante fosse a voz de um pai supremo no

Olimpo outros deuses e deusas enredavam-se em um amplo sistema com diferentes funccedilotildees de

forma que ambos o feminino e o masculino colocavam-se em um mesmo patamar Entatildeo

questionamos o lsquopoderrsquo estaacute acima da questatildeo do gecircnero Zeus era pois o soberano acima de

todos os outros deuses e deusas e unido a deusas e a mulheres (humanas) simboliza o princiacutepio

masculino O princiacutepio era organizador tambeacutem pois representava a constituiccedilatildeo da famiacutelia em

que ambos os sexos satildeo contemplados De algum modo a Greacutecia arcaica preservava a funccedilatildeo

fecundadora da mulher pois ateacute mesmo as Amazonas mulheres independentes que se diziam

descendentes do deus da Guerra e da ninfa Harmonia mulheres que se governavam a si proacuteprias

sem recorrerem a homens usavam-nos no entanto para perpetuar a raccedila Diz a lenda que

conservavam os filhos do sexo feminino mutilando-lhes um seio para o manejo do arco e da

lanccedila Daiacute alguns autores fornecem o termo ά-microαξων (amazonas) como ldquoas que natildeo tecircm seiordquo

Nesse contexto a situaccedilatildeo de poder dentro da categoria de gecircnero eacute oposta tendo o

domiacutenio da situaccedilatildeo essas mulheres guerreiras cegavam os filhos do sexo masculino ou

deixavam-nos coxos

Aqui tambeacutem a questatildeo do olhar se coloca quer seja na mutilaccedilatildeo dos seios oacutergatildeos

femininos por excelecircncia quer seja na retirada dos olhos dos meninos

A deusa virgem Aacutertemis no seu repuacutedio ao olhar masculino e no seu firme propoacutesito de

manter-se virgem era a deusa cultuada por essas mulheres guerreiras e caccediladoras vinculadas agrave

divindade por um traccedilo que senatildeo por uma cultura no bioloacutegico pelo menos por uma biologia na

cultura Logo a questatildeo de gecircnero eacute ldquouma construccedilatildeo social e cultural um lsquomodo de ser no

mundorsquordquo153

153 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p17

91

Quando os textos falam sobre a posiccedilatildeo do as mulheres frente agraves divindades ainda assim

temos que destacar que elas tinham uma participaccedilatildeo ativa nas celebraccedilotildees apesar de natildeo serem

permitidas em lugares onde se realizavam sacrifiacutecios violentos e onde se comia carne de animais

sacrificados Esses espaccedilos eram reservados aos cidadatildeos adultos do sexo masculino dada a

ldquoferocidaderdquo e ldquoatrocidaderdquo dos atos Preservava-se a mulher por sua constituiccedilatildeo bioloacutegica ou

pela constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses rituais

Por outro lado alguns rituais que se realizavam no templo dedicado a Aacutertemis em

Brauron eram reservados apenas agraves jovens meninas de onze a quatorze anos as virgens que se

colocavam como ldquoursasrdquo antes do casamento

Seriam essas funccedilotildees marginais como coloca Ratto154 por uma questatildeo de gecircnero

significando aqui o contexto soacutecio-poliacutetico ou por uma questatildeo que envolve o bioloacutegico

Um outro aspecto que levanta uma discussatildeo quanto ao gecircnero com a carga semacircntica

que lhe eacute atribuiacuteda hoje eacute a situaccedilatildeo dos casamentos na Greacutecia antiga

Zeus unido a deusas simbolizava o princiacutepio masculino como jaacute se enfatizou e o esposo

legiacutetimo no casamento

A sociedade dos homens reproduzia esse estado de coisas atraveacutes de dois momentos que

ressaltavam a mudanccedila de posiccedilatildeo da mulher virgem um contrato formal entre o pai da noiva e o

noivo selado com a entrega do dote e a transferecircncia da jovem da casa do pai para a casa da

famiacutelia do noivo onde deveria perpetuar esse tipo de tradiccedilatildeo

Embora essa troca nos pareccedila altamente comercial (e natildeo deixa de ser um negoacutecio)

revela a preocupaccedilatildeo com as funccedilotildees femininas de procriaccedilatildeo de continuidade a uma genealogia

e do cuidado com a casa que era espaccedilo da alccedilada da mulher pois assim como Heacutestia as esposas

deviam zelar pelo lar e pela famiacutelia

154 RATTO Stefania Opcit ldquoIn Greece women took an active part in the celebration of the leading religious festivals though in marginal rolesrdquo p 140 [Na Greacutecia as mulheres tinham uma obrigaccedilatildeo ativa na celebraccedilatildeo dos festivais religiosos principais embora em funccedilotildees perifeacutericas (traduccedilatildeo nossa)] A autora menciona que em alguns festivais cabia agraves garotas lavar e vestir as estaacutetuas para o culto em outros festivais como as Pan-Ateneacuteias as jovens teciam os saiotes que eram carregados como oferendas agrave deusa Portanto parece que a autora quer dar ecircnfase natildeo ao tipo de funccedilatildeo em si executada pelas jovens mas ao fato de serem excluiacutedas da vida poliacutetica na participaccedilatildeo dos cultos de sacrifiacutecio e dos banquetes coletivos Vemos aiacute uma discussatildeo do ponto de vista de gecircnero como exposto nas ciecircncias sociais

92

Aleacutem disso a sociedade transitoacuteria na posiccedilatildeo que assumimos de um periacuteodo dominado

pela Grande Deusa a um patriarcalismo onde se impotildee a figura de um deus de um pai

dominante explicita a necessidade de preparar as jovens para uma nova etapa cuidando de sua

orientaccedilatildeo e favorecendo os aspectos transformadores que preparam para a aceitaccedilatildeo de papeacuteis

diferentes dos que tinham na casa do pai

Essa preocupaccedilatildeo que a famiacutelia grega manifesta embora um tanto condicionadora e

imposta por padrotildees sociais parecia revelar uma preocupaccedilatildeo com periacuteodos de iniciaccedilatildeo para

outras etapas da vida tanto puacuteblica quanto particular Acreditamos que essa forma de

sistematizar regras e normas sociais possa ter contribuiacutedo grandemente para a formaccedilatildeo do

pensamento filosoacutefico grego que inaugura uma outra etapa

Quanto agrave teologia das deusas virgens ela eacute integradora de vaacuterias dimensotildees da vida

humana no que concerne homens e mulheres ela eacute predominantemente comunitaacuteria e relacional

ela se coloca como contextual e concreta marcada pelo cotidiano da vida grega como lugar de

manifestaccedilatildeo do divino e ela eacute acima de tudo atuante no sentido de participar da vida dos

mortais de favorecer homens e mulheres de zelar no momento em que o feminino precisa da

presenccedila e da forccedila dessas potecircncias nas experiecircncias coletivas e isoladas como expressatildeo de

apoio e de solidariedade

A teologia das deusas virgens direciona para a teologia em que se coloca lado a lado o

masculino e o feminino em que deusas privilegiam a uniatildeo dos opostos a submissatildeo ao esposo

a experiecircncia da vida familiar As deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia rompem o silecircncio da

dependecircncia do feminino impondo a consciecircncia de uma postura autocircnoma de uma perspectiva

feminina que eacute capaz de significar por si soacute sem o viacutenculo de outras presenccedilas quer seja de um

esposo quer seja de um filho quer seja de um amante

Nessa perspectiva poderiacuteamos ousar propor que a teologia feminista das deusas virgens

situa na Antiguidade as origens de um movimento que iraacute se constituir seacuteculos depois

refletindo a questatildeo de gecircnero que se vai delineando em cada movimento histoacuterico

A primeira tensatildeo instala-se com os mitos de criaccedilatildeo das lendas gregas que a partir daiacute

colocam como figura central um deus conferindo-lhe o direito e o poder do pai ou seja a

introduccedilatildeo de um conceito de patriarcado

93

Nas palavras e na visatildeo de Freitas o patriarcado na eacutepoca arcaica deve ser entendido

como uma condiccedilatildeo de inter-relaccedilotildees sociais e de imposiccedilotildees

Mas essa compreensatildeo do termo deixa na sombra o fato de que o pai como chefe de famiacutelia na Antiguidade era tambeacutem senhor amo e esposo Portanto o patriarcado conota um complexo sistema de subordinaccedilatildeo e dominaccedilatildeo 155

As deusas virgens revelam pois um conflito que eacute constitutivo do dualismo simboacutelico de

gecircnero uma vez que estaacute enraizado na convicccedilatildeo de que a experiecircncia humana estaacute imersa em

experiecircncias sustentadas por organizaccedilotildees sociais e poliacuteticas e por instituiccedilotildees e organismos

religiosos permeando todas as relaccedilotildees com seus aspectos contraditoacuterios e ambiacuteguumlos

O problema da linguagem os epiacutetetos referentes agraves deusas e o leacutexico que se impocircs como

caracteriacutestica de algumas expressotildees e atributos peculiares eacute outra questatildeo que nos fez observar

algumas colocaccedilotildees levantadas no estudo dessa teologia feminina

Quando discutimos a metodologia de nossa pesquisa fizemos algumas consideraccedilotildees

sobre os epiacutetetos das deusas e apoiamo-nos na obra de Parry156 um estudioso dos versos homeacutericos

No entanto pretendemos retomar um aspecto que enfatiza o caraacuteter da virgindade e

discuti-lo de uma posiccedilatildeo comparativa (interpretativista)

Narrando sobre a genealogia oliacutempica Hesiacuteodo coloca que

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia157 mais saacutebia que os Deuses e os homens mortais Mas quando ia partir a Deusa de olhos glaucos158 Atena ele enganou suas entranhas com ardil com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo 890 por conselhos da Terra e do Ceacuteu159 constelado Estes lho indicaram para que a honra de rei natildeo tivesse em vez de Zeus outro dos Deuses perenes era destino que ela gerasse filhos prudentes primeiro a virgem160 de olhos glaucos161 Tritogecircnia162 igual ao pai no furor e na prudente vontade163

155 FREITAS Maria Carmelita de Op cit p 28-29 156 PARRY Millman Op cit 157 Em grego encontramos a palavra Μητιν (Meacutetis) uma divindade da primeira geraccedilatildeo eacute a personificaccedilatildeo da sabedoria e da Astuacutecia 158 Jaacute nos referimos ao epiacuteteto de Atena glaucoacutepida (γλαυκωπιν) 159 Referindo-se a Gaia (Γαίης forma poeacutetica) e Urano (Ούρανοΰ) 160 A palavra usada em grego eacute κούρην 161 Haacute repeticcedilatildeo na mesma estrofe do epiacuteteto γλαυκώπιdα 162 Tambeacutem haacute referecircncia ao epiacuteteto Τριτογένειαν Tritogecircnia ou Tritogeneacuteia que se refere ao lugar de seu nascimento Uma das versotildees eacute que teria sido agraves margens do lago Tritatildeo na Liacutebia 163 HESIacuteODO Op cit p 155

94

Veja-se que em seu primeiro casamento a esposa (Meacutetis) eacute literalmente engolida natildeo

deixando Zeus espaccedilo para uma situaccedilatildeo baacutesica do feminino de a mulher parir o filho que

espera

Assim nasce Atena da cabeccedila do pai (vs 924-926) virgem de olhos glaucos Tritogecircnia

guerreira infatigaacutevel semelhante ao pai no furor e na vontade Portanto essa deusa coloca-se jaacute

no iniciacuteo entre o masculino e o feminino uma deidade cujo aspectos bioloacutegicos natildeo satildeo

relevantes uma vez que

Para los griegos antiguos Atenea una de las diosas oliacutempicas maacutes importantes era la representacioacuten de la sabiduriacutea y la destreza En la manera en que se presenta su nacimiento que claros estos aspectos de su caraacuteter164

Aleacutem disso seu nascimento sem a figura materna indica um plano diferencial entre os

deuses entre o comportamento das deidades ancestrais e dos deuses oliacutempicos que iam surgindo

revelando provavelmente uma unificaccedilatildeo entre a cultura matriarcal e uma forma de

pratriarcalismo querendo apossar-se dos atributos da mulher Mas isso natildeo era uma forma de

desprezar o feminino na sua origem e na sua concepccedilatildeo pois Zeus engole Meacutetis para que

tambeacutem ele pudesse usufruir de sua sabedoria e tecirc-la dentro dele De certa forma ele assume a

individualizaccedilatildeo de Meacutetis e assumindo-a assume a paternidadematernidade de Atena em seu

nascimento ele estaacute reiterando que a figura da matildee existe e que tudo proveacutem dela

Diz Loraux a respeito do domiacutenio da matildee

[] a matildee eacute designada pela metoniacutemia da sua matriz ela proacutepria inteira numa parte de si mesma Fazer recuar ao maacuteximo os limites do tempo ou do espaccedilo para melhor encerrar a Deusa na sua lsquometrarsquo (local do materno no corpo das mulheres) tal eacute a operaccedilatildeo que natildeo nos parece possiacutevel escapar Mas como a Deusa eacute o todo porque como pensam os colaboradores os seus filhos natildeo tecircm necessidade de um Urano ciumento para ficarem para sempre presos nas profundezas do corpo materno tudo (Tudo) estaacute neste esconderijo no interior do grande continente feminino165

Atena nasce com a sabedoria materna da mulher pois e com a determinaccedilatildeo e forccedila do

pai mesclando qualidades femininas e masculinas De um lado a jovem virgem (κούρη) de

outro Atena terriacutevel (δειην) a guerreira infatigaacutevel

164 MAUROMATAKI Maria Op cit p 38 165 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 p 52

95

Na origem dos deuses Hesiacuteodo coloca a virgindade como atributo fixo ao lado de outros

que destacam Atena Usa em seu texto a palavra κούρη

O dicionaacuterio do autor francecircs Bailly apresenta para esse leacutexico a definiccedilatildeo ldquojeune fille c

a d jeune viergerdquo portanto uma jovem virgem oposto a έζευγmίνη ou seja ldquofemme marieeacuterdquo

(mulher casada)166

Este mesmo substantivo em Homero no plural Νύmicroφαι καυραι ∆ιός (Il 6 420)167 estaacute

se referindo agraves ninfas e tem um duplo sentido as ninfas filhas de Zeus isto eacute as ninfas virgens e

filhas de Zeus Nesse caso o termo Νύmicroφαι jaacute estaacute relacionado agrave ideacuteia de virgindade pois as

ninfas e as musas eram virgens (κουραι) Compara-se com Μοΰcαι Όλυmicroπιάδεα κοΰραι ∆ιδε

αιγιόχοιο168 traduzido por Torrano169 como ldquoMusas olimpiacuteades virgens170 de Zeus porta-eacutegiderdquo

Encontramos na Teogonia diversas vezes a referecircncia κούρη sempre traduzida por

virgem

No entanto o substantivo κoacuteρη tambeacutem toma a forma de nome proacuteprio referindo-se agrave

jovem filha de Demeacuteter Perseacutefone Nesse sentido a lenda enfatiza a matildee (Demeacuteter) e filha

(Perseacutefone) e o significado eacute o de filha tendo se estratificado como substantivo proacuteprio ( relativo

a Perseacutefone somente)

Em nossa leitura das obras e dos aspectos referentes agraves deusas virgens percebemos que

tambeacutem a palavra παρθένος eacute usada com o sentido de jovem e de virgem171 o adjetivo refere-se

agrave jovem pura e intacta ou a alguma coisa sem maacutecula como por exemplo παρθένιον φρέαρ ou

seja os poccedilos da Virgem perto de Elecircusis por isso capitalizado (senatildeo a leitura de παρθένιον

φρέαρ seria poccedilos de aacutegua liacutempida pura)

166 BAILLY Op cit p121 e 880 167 HOMERO Op cit p 292 (Em inglecircs daughters of Zeus) 168 HESIacuteODO Op cit p 162 v 1022 169 HESIacuteODO Op cit 170 Grifo nosso 171 Verificar entrada do leacutexico em BAILLY Op cit p 1489

96

Em Hesiacuteodo encontramos o uso de παρθένος referindo-se a jovens (provavelmente antes

do casamento) sem qualquer conexatildeo com as deusas de nossa investigaccedilatildeo Dizem os versos

204-205

Coube-lhe172 entre homens e deuses imortais As conversas de moccedilas (παρθένiacuteοvς) os sorrisos os enganos173 205

Aleacutem disso a estaacutetua de Atena em Atenas ldquocunhourdquo o termo partheacutenos como indicativo

de virgem bem como a constelaccedilatildeo de virgem conhecida em grego como PARTHEacuteNOS

Quais seriam os criteacuterios para a escolha de um ou de outro vocaacutebulo Fica aiacute a pergunta

que merece ter uma investigaccedilatildeo profunda dessa ocorrecircncia linguumliacutestica

Hipotetizamos que talvez a escolha do vocaacutebulo possa ter uma variaccedilatildeo devido agrave eacutepoca

oue agrave regiatildeo em que eacute usado

Percebemos que nos Hinos Homeacutericos compostos em periacuteodos posteriores e por

rapsodos diferentes a preferecircncia de emprego eacute a da palavra παρθένος referindo-se a qualquer

das trecircs deusas virgens

62 ndash O caraacuteter da virgindade no Cristianismo

Eacute interessante estabelecer um paralelo entre a mitologia grega e a religiatildeo cristatilde Se para

os gregos os mitos satildeo tidos como lendas que relacionam aos valores de uma eacutepoca o

Cristianismo emerge do pensamento judaico Os textos do Gecircnesis que satildeo tambeacutem simboacutelicos

e representativos de uma cultura tornaram-se poderosos documentos ldquoautecircnticosrdquo detentores de

ldquoverdadesrdquo emblemaacuteticas

Essas supostas verdades retratam ndash assim como os mitos gregos ndash visotildees da existecircncia

humana Elas contecircm como as lendas relaccedilotildees de gecircnero histoacuterias de terror e de piedade e

histoacuterias de amor e de poder

Aleacutem do contexto soacutecio-poliacutetico que orienta tanto o texto grego como o hebraico haacute a

questatildeo linguumliacutestica pois as traduccedilotildees requerem decisotildees interpretativas que como jaacute observamos

em capiacutetulo anterior satildeo motivadas de alguma forma pelas circunstacircncias e pela visatildeo de

172 Referindo-se agrave deusa Afrodite 173 HESIacuteODO Op cit p 117

97

mundo do tradutor Assim muitas vezes uma interpretaccedilatildeo direciona um texto a uma outra

cultura

Inuacutemeras vezes lendo textos em outras liacutenguas dizemos que gostariacuteamos de ldquopensarrdquo

como o falante nativo dessas liacutenguas ou seja de ter introjetada a sua cultura o que jaacute encaminha

para outros entendimentos

Portanto tanto a histoacuteria da ldquovirgindade das deusas gregasrdquo como a histoacuteria da

ldquovirgindade no Cristianismordquo jaacute estatildeo multifacetadas distorcidas e fragmentadas (como diria

Deleuze)

Continuando nosso paralelo proposto no iniacutecio temos dois relatos absolutamente

diferentes da criaccedilatildeo do mundo e dos seres humanos Enquanto os gregos divinizam o espaccedilo e

os homens surgem dentro desse espaccedilo sagrado na sua configuraccedilatildeo a tradiccedilatildeo hebraica coloca

Deus fora do mundo criando-o como espaccedilo para os mortais homens e mulheres Vecirc-se jaacute que

os deuses e os homens gregos habitam o mesmo cosmo em planos diferentes Para os hebreus

Deus estava aleacutem do cosmo o que implica que a humanidade habita outro espaccedilo e estaacute em outro

plano

No Olimpo circulam deuses e deusas e natildeo haacute questotildees motivadas por aspectos de

moralidade O mito eacute moldado atraveacutes de ritos iniciaacuteticos que prevecircem mudanccedilas de etapas e a

aquisiccedilatildeo de novos conhecimentos Haacute diferenccedilas que satildeo determinadas por funccedilotildees bioloacutegicas e

portanto por funccedilotildees sociais e uma das consequumlecircncias eacute o conflito natural as tensotildees que fazem

com que de alguma forma tambeacutem o mito apresente um enfoque binaacuterio

O Cristianismo poreacutem surge com um pensamento miacutetico binaacuterio O homem eacute criado por

Deus mas a etapa da ldquoquedardquo ndash atribuiacuteda agrave mulher ndash eacute inevitaacutevel

Esse pensamento hebraico inicial jaacute confere aos homens que eles sejam privados de

ingenuidade e de acesso a Deus o que lhes daacute consciecircncia discernimento e noccedilatildeo dessa

bipolaridade sexual

Eacute nesse contexto que surge a figura de Cristo tatildeo representativa que em nossos estudos

determinamos a eacutepoca arcaica grega em que se situam os textos de Homero por volta do seacuteculo

VIII antes da era Cristatilde tendo-o como referecircncia

Em Homero a menccedilatildeo da virgindade eacute pouco citada apenas para Atena e para Aacutertemis

sendo posteriormente ressaltada a virgindade de Aacutertemis e de Heacutestia aleacutem da de Atena nos

98

Hinos Homeacutericos Heacutestia era uma deusa silenciosa quase amorfa uma vez que provavelmente

vinculava-se agrave Grande Deusa dos ancestrais o que a fazia perder seus traccedilos definidos

Aleacutem disso dada a flexibilidade dos termos koreacute e partheacutenospodemos ateacute pensar em

uma possibilidade de eles estarem significando as ldquofilhasrdquo de Zeus antes do casamento sem uma

ecircnfase agrave questatildeo da virgindade em si mas do lsquoolharrsquo que conspurga a divindade Aacutertemis vinga-

se do olhar dos mortais Atena protege-se do olhar dos humanos

A proacutepria Afrodite enreda-se na questatildeo do olhar embora em seu caso a mortalidade de

Anquises seja superada pelo ato de procriaccedilatildeo e da descendecircncia dando continuidade ao

nascimento do heroacutei que eacute uma provaacutevel temaacutetica do Hino Homeacuterico a Afrodite V

A virgindade grega passa pois a ser conclamada a partir de Homero e de Hesiacuteodo (que

menciona Atena como κορή em seu nascimento) Os Hinos Homeacutericos jaacute de um periacuteodo

posterior ldquorecuperamrdquo esse aspecto e reorganizam os atributos dessas deusas virgens

enfatizando o epiacuteteto da virgindade e criando a lenda de um juramento de Heacutestia a Zeus para

manter-se virgem sempre Aiacute podemos supor que o mito passava por um periacuteodo de

transformaccedilatildeo acomodando-se a novos tempos fundindo aspectos de outras eacutepocas agrave era

arcaica

Em Homero na Iliacuteada e na Odisseacuteia do ponto de vista conceitual nota-se que o autor

apresenta uma teologia caracteriacutestica de seu tempo e como isso jaacute foi inuacutemeras vezes destacado

por diferentes autores os deuses movem-se ao lado dos humanos e repartem as mesmas

caracteriacutesticas

Dentro da Odisseacuteia e a Iliacuteada vatildeo sendo compostas narrativas dos deuses enredados em

situaccedilotildees que explicitam que assim como os homens eles estatildeo sujeitos a fatos que envolvem a

ldquosexualidaderdquo Eacute o que ouve Odisseu (Ulisses) sobre as aventuras de Afrodite com Ares a que jaacute

nos referimos

Hesiacuteodo remete-se na Teogonia agrave virgem Atena a Tritogecircnia filha de Zeus e de Meacutetis

(vs 886-896) Essa indicaccedilatildeo sobre o nascimento de Atena pode estar vinculada a uma deusa

Liacutebia (Neith) de uma eacutepoca em que as sacerdotisas-virgens (semelhante agraves Amazonas na sua

99

independecircncia e no seu caraacuteter guerreiro) entregavam-se todos os anos a um combate beacutelico Isso

justificaria os atributos de ldquovirgemrdquo ldquoTritogecircniardquo e ldquoguerreirardquo para Atena174

Fizemos essas regressotildees para chegar a uma observaccedilatildeo que consideramos importante

parece que a virgindade das deusas ancestrais estaacute bastante relacionada ao fato de natildeo

dependerem de um homem para terem sua identidade garantida embora pudessem mesmo ter

filhos da mesma forma que as Amazonas que mantinham sua ldquoprole femininardquo como forma de

dar continuidade agravequela ldquoespeacutecierdquo

Esse ponto tambeacutem supomos eacute resgatado pelo Cristianismo quando aponta para o fato

de que a matildee Maria eacute virgem O pai Joseacute teve sua figura obscurecida no Evangelho de Lucas e

tornou-se apenas um ldquosuporterdquo um pai fiacutesico provedor e silencioso na trajetoacuteria do filho na

superfiacutecie terrestre

Em Mateus o auto do nascimento de Jesus eacute significativamente mais curto que em Lucas

contando a histoacuteria da natividade com 31 versiacuteculos enquanto o de Lucas conta com 132

Falando da concepccedilatildeo de Jesus o evangelista refere-se ao dilema de Joseacute que eacute o personagem

principal

Diz Mateus (118-25) que Maria estava desposada com Joseacute e

Antes de coabitarem aconteceu que ela concebeu por virtude do Espiacuterito Santos Joseacute seu esposo que era homem de bem natildeo querendo difama-la rejeitaacute-la secretamente

Em seguida um anjo do senhor lhe diz

ldquoJoseacute filho de Davi natildeo temas receber Maria por esposa pois o que nela foi concebido vem do Espiacuterito Santordquo Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o senhor falou pelo profeta

174 Sobre essa referecircncia verificar a obra de PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) p 1157 Criacutetias no Timeu conta uma histoacuteria narrada a ele por um homem de aproximadamente noventa anos de idade comentando sobre o poeta Soacutelon e sobre sua narrativa (lsquoa veritable traditionrsquo) que ele havia trazido do Egito ldquoIn the Egyptian Delta at the head of which the rive nile divides thereis a certain district which is Called the district of Sais and the great city of the district is also called Sais and is the city from which king Amasis came The citizens have a deity for their foundress she is called in the Egyptian tongue Neith and is asserted by them to be the same whom the Hellenes call Athena They are great lovers of the Athenians and say that they are in some way related to themrdquo ldquoNo delta egiacutepcio do distrito eacute tambeacutem chamada de Sais e eacute a cidade na cabeceira do qual o rio Nilo se divide haacute um certo distrito chamado de distrito de Sais e a grande cidade de onde o Rei Amasis veio Os cidadotildees tecircm uma deidade para sua fundadora ela eacute chamada na liacutengua egiacutepcia de Neith e eacute afirmado por eles que ela eacute a mesma que os helenos chamam de Atena Eles satildeo grandes admiradores dos atenienses e dizem que eles satildeo de alguma forma relacionado a elesrdquo (traduccedilatildeo nossa)

100

Eis que a Virgem conceberaacute e daraacute aacute luz a um filho que se chamaraacute Emanuel (Isaiacuteas 714) que significa Deus conosco

Joseacute acatou as ordens quando acordou

Nessa fala de Mateus a revelaccedilatildeo se daacute atraveacutes de Joseacute

Finalmente Mateus acrescenta

E sem que ele a tivesse conhecido175 ela deu agrave luz o seu filho que recebeu o nome de Jesus176

O tributo ldquovirgemrdquo soacute eacute mencionado atraveacutes das palavras profeacuteticas de Isaiacuteas

O auto do nascimento em Lucas ao contraacuterio enfatiza Maria e coloca-a como receptora

da revelaccedilatildeo da virgindade

Diz o evangelho (Lucas 126-27)

o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiteacuteia Chamada Nazareacute a uma virgem177 com um homem que se chamava Joseacute da casa de Davi e o nome da virgem178 era Maria

Percebe-se a ecircnfase dada agrave Maria e a questatildeo da virgindade colocando Joseacute em segundo

plano

Apoacutes o anjo anunciar-lhe a concepccedilatildeo Maria pergunta ao anjo (134)

ldquoComo se faraacute isso pois natildeo conheccedilo homem179rdquo180

Portanto a questatildeo da virgindade tem um enfoque significativo e diferente em Mateus e

em Lucas para o primeiro evangelista Maria jaacute estava graacutevida ao desposar Joseacute Para o segundo

apesar de ser casada ela natildeo tinha relaccedilotildees maritais com Joseacute A revelaccedilatildeo do primeiro caso

para ser convincente ao marido daacute-se a ele atraveacutes de um sonho No segundo caso a moccedila

casada que se manteacutem ainda em estado de virgindade recebe a noticia do anjo estando desperta

175 Alguns autores colocam ldquonatildeo a conheceu maritalmenterdquo o que remete provavelmente agrave conotaccedilatildeo do texto original 176 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 177 Grifo nosso 178 Grifo nosso 179 Em BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 p 25 encontramos a traduccedilatildeo (de Vera Ribeiro) ldquoComo seraacute isso possiacutevel se sou virgemrdquo 180 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982

101

Em Mateus Maria eacute colocada como uma jovem graacutevida antes do matrimocircnio com a

justificativa de ter sido obra do Espiacuterito Santo Ora segundo dados histoacutericos da eacutepoca muitas

jovens judias eram estupradas por soldados romanos e este poderia ter sido o caso de Maria

Joseacute pertence agrave mesma tribo de Davi acolhe-a e ao filho para que o infante pudesse ser

reconhecido como cidadatildeo judeu filho que era de matildee judia

Parece-nos aqui tambeacutem que a questatildeo da gravidez de Maria deva ter enfoque poliacutetico-

social uma vez que a Igreja Catoacutelica em 649 no Conciacutelio Ecumecircnico do Latratildeo colocou a

virgindade de Maria antes durante e depois do parto de Jesus como dogma

Tentando pensar o conceito de dogma encontramos uma definiccedilatildeo bastante ampla e que

contempla vaacuterios aspectos inclusive o da inquestionabilidade por ter conexatildeo com revelaccedilatildeo

divina Temos pois que

Na Igreja Catoacutelica um dogma eacute uma verdade absoluta definitiva imutaacutevel infaliacutevel inquestionaacutevel e ldquoabsolutamente segura sobre a qual natildeo pode pairar nenhuma duacutevidardquo Uma vez proclamado solenemente ldquonenhum dogma pode serrdquo revogado ou ldquonegado nem mesmo pelo Papa ou por decisatildeo conciliarrdquo Por isso os dogmas constituem a base inalteraacutevel de toda a Doutrina Catoacutelica e qualquer catoacutelico eacute obrigado a aderir aceitar e acreditar nos dogmas de uma maneira irrevogaacutevel181

A virgindade de Maria atesta que Jesus eacute filho do Senhor e o dogma de sua virgindade

reafirma o fato que Jesus eacute o filho primogecircnito e uacutenico de Maria natildeo tendo tido irmatildeos carnais

Quando os textos biacuteblicos se referem aos ldquoirmatildeosrdquo de Jesus podem indicar qualquer parentesco

ou ateacute mesmo ldquoamigordquo em hebraico

Do ponto de vista teoloacutegico a virgindade de Maria revela um comportamento que vai

aleacutem de um dado bioloacutegico e fiacutesico pois ressalta uma decisatildeo pessoal consciente de se dedicar

a servir uma missatildeo Dizendo que aceitava a sua virgindade Maria estava se consagrando agrave

missatildeo que Deus lhe dava

Vemos este aspecto inteiramente semelhante ao das deusas virgens no que concerne

abdicar conscientemente de relaccedilotildees amorosas assumindo o celibato consagrado a uma missatildeo

quer seja como a Grande Deusa como a Grande protetora ou como a grande Amazona todas

tendo em comum o estigma de ldquomatildeesrdquo ldquovirgensrdquo dada a dimensatildeo da funccedilatildeo que ocupam

Inspiradas na missatildeo de Maria as freiras catoacutelicas vatildeo procurar seguir a trilha da

virgindade e da consagraccedilatildeo da vida a Deus

181 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009

102

Quando na enciacuteclica Redemptoris Mater de 1987 o Papa Joatildeo Paulo II refere-se ao dom

da maternidade de Maria podemos remeter-nos ao texto de Loraux182 jaacute por noacutes citado sobre o

poder do domiacutenio da matildee ldquoesse grande continente femininordquo que abarca tudo

Diz parte do item n39 da enciacuteclica Redemptoris Mater

As palavras lsquoEis a serva do Senhorrsquo comprovam o fato de ela desde o principio ter aceitado e entendido a proacutepria maternidade como dom total de si da sua pessoa a serviccedilo dos desiacutegnios salviacuteficos do Altiacutessimo E toda a participaccedilatildeo materna na vida de Jesus Cristo seu filho ela viveu-a ateacute o fim de um modo correspondente agrave sua vocaccedilatildeo para a virgindade183

Eacute interessante observar que a lsquovirgindadersquo eacute vista como vocaccedilatildeo uma vez que implica

reprimir o desejo negando os lsquotrabalhosrsquo da ldquoAacuteurea Afroditerdquo assumindo uma independecircncia

pessoal por um lado e uma dedicaccedilatildeo ilimitada a uma missatildeo por outro lado

No entanto essas consideraccedilotildees que foram colocadas ateacute aqui refletem uma crenccedila

corrente entre os cristatildeos catoacutelicos Mas a questatildeo da virgindade eacute questionada por estudiosos da

aacuterea da religiatildeo e da cultura Assim os professores Borg e Crossan184 investigam a virgindade da

Maria sob diferentes acircngulos

Uma delas eacute a suspeita que Mateus coloca no iniacutecio de sua paraacutebola sobre um presumido

adulteacuterio de Maria Qual teria sido a intenccedilatildeo do evangelista ao fazer tal colocaccedilatildeo se

questionam os autores Em Lucas natildeo haacute nada que diga como Joseacute descobriu ou reagiu diante da

gravidez de Maria e nem mesmo que ele tivesse tido algum problema com esse fato

Dizem os autores

Ainda que Mateus quisesse contar a histoacuteria inteiramente do ponto de vista de Joseacute ndash ao contraacuterio de Lucas que o fez do ponto de vista de Maria ndash ele poderia ter feito o anjo revelar tudo a Joseacute lsquoantesrsquo da concepccedilatildeo de Maria E se quisesse manter-se patriarcal poderia ter feito Joseacute dizer a Maria o que aconteceria com ela Portanto a pergunta persiste Na matriz contextual da tradiccedilatildeo grega romana e judaica de mulheres virginais esteacutereis ou idosas por que apenas Mateus levantou o espectro de uma aduacuteltera e natildeo de uma concepccedilatildeo divina

182 LORAUX Nicole Op cit 183 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 184 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p 123-155

103

Logo haacute uma acusaccedilatildeo anticristatilde de adulteacuterio e a concepccedilatildeo divina parece ser um modo

de encobrir esse adulteacuterio185 Para os autores Mateus baseou-se de maneira deliberada na

concepccedilatildeo de Moiseacutes dentro das versotildees midraacutesticas que eram correntes no seacuteculo I

Estabelecendo um paralelismo com a concepccedilatildeo de Jesus seguindo o esquema ldquodivoacuterciordquo (Joseacute

intenciona deixar Maria) ldquorevelaccedilatildeordquo (o anjo revela a Joseacute a concepccedilatildeo como obra do Espiacuterito

Santo) ldquorecasamentordquo (Joseacute assume Maria e o filho) Seria essa a causa de sua ecircnfase no

controle divino por meio de sonhos e profecias bem como no foco do ponto de vista masculino e

paterno e principalmente para defender o tema que Mateus acreditava ldquoJesus eacute o novo Moiseacutesrdquo

Segundo autores citados Lucas ao contraacuterio natildeo propotildee a virgindade de Maria como

revelaccedilatildeo profeacutetica mas antes como atributo divino estabelecendo mesmo um paralelo entre a

histoacuteria da concepccedilatildeo de Jesus (por uma virgem) e a histoacuteria da concepccedilatildeo de Joatildeo Batista (por

uma esteacuteril) (Lucas 1-2)186 Assim Lucas parece ressaltar o fato de que Jesus natildeo eacute simplesmente

um novo Joatildeo siacutembolo e siacutentese de um Antigo Testamento filho de matildee esteacuteril e idosa Jesus

vem de matildee casta e daacute iniacutecio a uma nova fase da Histoacuteria com ele comeccedila o Novo Testamento

A conclusatildeo desses fatos eacute que parece que havia uma preocupaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica no texto

desses evangelistas Mateus desejava resgatar a figura de Moiseacutes em Cristo e para isso

necessitava colocar o cumprimento das profecias Lucas desejava como se viu colocar Maria e

Cristo como modelos de uma nova era e sua ecircnfase natildeo eacute na profecia que ele nem menciona

mas na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo onde satildeo construiacutedas as figuras de Maria e do filho

Maria eacute pois rsquoabenccediloadarsquo e lsquoobediente agrave becircnccedilatildeo divinardquo e como a primeira cristatilde

perfeita ela eacute tambeacutem lsquovirgemrsquo quer dizer divina de acordo com a tradiccedilatildeo judaica e biacuteblica

(referindo-se aos casos de pais idosos e esteacutereis no Antigo Testamento e por analogia

introduzindo uma outra forma no Novo Testamento)

Comparando-se com Afrodite mesmo em sendo deusa sua concepccedilatildeo com Anquises ou

com Ares natildeo tem a tradiccedilatildeo da virgindade Apesar de ser matildee de heroacutei Eneacuteias considerado o

fundador de Roma ou de outros deuses como Eros um deus que se funde com as caracteriacutesticas

185 Borg e Crossan inspiraram-se em um texto de Oriacutegenes do seacuteculo III polemizando a obra do anticristatildeo Celsus do final do seacuteculo II relatando sobre o nascimento de Jesus e spbre a ldquofalsardquo virgindade de Maria a fim de aplacar os rumores sobre as circunstacircncias verdadeiras da presenccedila de soldados romanos que haviam vindo para sufocar uma revolta em Seacuteforis perto de Nazareacute proacuteximo da eacutepoca em que Jesus nasceu Haacute ateacute mesmo a menccedilatildeo do soldado como Panthera como trocadilho sarcaacutestico do termo grego patheacuternos a lsquovirgemrsquo 186 Biacuteblia Sagrada Op cit p 1345-1348

104

da matildee o intercurso sexual divino se dava de forma fiacutesica a tal ponto que Afrodite precisou

ldquopurificar-serdquo apoacutes sua relaccedilatildeo com Ares

Poreacutem o Cristianismo introduziu a virgindade nas relaccedilotildees humanas para que pudesse ser

exaltada a concepccedilatildeo divina e virginal de Jesus acima de todas as demais ndash especialmente sobre a

de Ceacutesar Augusto considerado ldquofilho de Apolordquo

Citando ainda Borg e Crossan eles dizem

Seja como for a virgindade a esterilidade a longevidade ou qualquer outra coisa que possamos imaginar satildeo simples maneiras de enfatizar sublinhar e ldquoprovarrdquo que a concepccedilatildeo foi divina Eacute essa concepccedilatildeo divina que importa Eacute a teologia do filho e natildeo a biologia da matildee que estaacute em jogo187

187 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p151

105

CONCLUSAtildeO OU INDICACcedilAtildeO DE SUPOSICcedilOtildeES

Uma primeira conclusatildeo a que se chega eacute que a genealogia parece ser um dado

importante e relevante entre os povos da Antiguidade Por isso o Evangelho de Mateus antes de

citar a concepccedilatildeo e o nascimento de Cristo coloca catorze geraccedilotildees que o precederam sem que

se saiba como possa ter sido essa informaccedilatildeo dos protocolos dada a Mateus A ecircnfase da

genealogia tambeacutem era comum entre os gregos todos os deuses incluindo as deusas virgens

tecircm sua genealogia nomeada Atena nasce da cabeccedila do pai supremo (Zeus) e foi gerada por uma

matildee com caracteriacutesticas astutas (Meacutetis) mas como protetora de Atenas haacute indiacutecios de que se

vinculava a uma deusa da Liacutebia e foi a filha de Zeus o que jaacute mostra sua ancestralidade

Aacutertemis tinha como pais Zeus e Leto e como Afrodite era de natureza uracircnica Aacutertemis

nasce com o seu duplo o irmatildeo Apolo tendo atributos comuns a ele Portanto Atena e Aacutertemis

ficam entre o masculino e o feminino distinguindo-se entre aspectos de estrateacutegia e de

belicosidade proacuteprios do masculino na conquista na independecircncia e no poder Por outro lado

caracterizam-se pela proteccedilatildeo e o acompanhamento ldquomaternosrdquo zelando para a soluccedilatildeo de

dificuldades e para os encaminhamentos de etapas da vida

Diferentemente de Aacutertemis e Atena Heacutestia eacute irmatilde de Zeus filha de Reacuteia e de Crono e foi

libertada do ventre de Crono por quem tinha sido engolida a partir do momento em que Zeus

com ldquoseu furor agarra as armas o trovatildeo o relacircmpago e o raio flamante e fere-o188 saltando do

Olimpordquo189

Todas as deidades quer sejam elas miacuteticas ou cristatildes tecircm o relato de um elenco

protocolar da genealogia como forma de apresentar a ligaccedilatildeo com um sistema simboacutelico que

garanta a coerecircncia interna com um princiacutepio organizador no sistema miacutetico ou com um

principio criador (o Verbo) no sistema cristatildeo

Tanto o sistema miacutetico como o sistema cristatildeo reproduzem o plano de uma vontade

divina O Cosmo vem do Caos (entidade primordial) mas soacute se organiza a partir da vitoacuteria de

Zeus que eacute colocado no centro do universo como deus supremo rodeado dos outros deuses que

188 Refere-se a Crono 189 HESIacuteODO Op cit p 153 vs 853-855

106

representam diferentes aspectos desse cosmo Com a morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo reorganiza-

se um novo sistema religioso tendo iniacutecio o Novo Testamento

Assim a genealogia das deusas virgens se constitui a partir da organizaccedilatildeo do cosmo

com Zeus e a genealogia cristatilde do Novo Testamento se organiza com Cristo Com ambos

comeccedila uma nova era

A genealogia dos deuses eacute importante para que seja resgatado nas narrativas feitas um

sentido histoacuterico que se ajuste agraves eacutepocas e agraves influecircncias soacutecio-poliacuteticas Nesse contexto

ldquoperambulamrdquo as divindades dominantes

Mas atraacutes da ldquogenealogia aparenterdquo existe uma genealogia anterior a que se apoacuteia em

diferentes raccedilas em diferentes tribos em diferentes periacuteodos histoacutericos em diferentes ideologias

Essas concepccedilotildees foram expressas nos mitos que misturavam temas e eacutepocas que tinham

versotildees de acordo com ldquoresquiacuteciosrdquo de diferentes vozes e que por isso alguns autores

denominaram de ldquosincreacuteticasrdquo

Isso acontece com muitos deuses e deusas e nosso objeto de estudo as deusas virgens

tambeacutem tem um viacutenculo com lendas e histoacuterias da Greacutecia marcadas por uma fertilidade agriacutecola

e por atividades guerreiras

Essa preocupaccedilatildeo de estabelecer ligaccedilotildees com um passado como base de evoluccedilotildees

sucessivas jaacute estava presente em alguns autores da eacutepoca arcaica e de acordo com Lovejoy e

Boas190 Hesiacuteodo foi considerado ldquoo primeiro testemunho do que chamaram de lsquoprimitivismo

cronoloacutegicorsquordquo

Por isso decifrar ldquoos mitosrdquo das deusas virgens e reconhecer o estatuto dessa virgindade

a elas atribuiacuteda parece ser possiacutevel apenas atraveacutes de suposiccedilotildees Interligando pois a figura de

Heacutestia a outras narrativas que compotildeem um mesmo perfil semacircntico percebemos que sua

presenccedila estaacute sempre vinculada ao fogo sagrado e portanto a um elemento da natureza Sua

representaccedilatildeo eacute tatildeo ldquoabstratardquo e incorpoacuterea que eacute difiacutecil determinar-lhe atributos Teria Heacutestia

pertencido a uma eacutepoca mais como principio abstrato do que como divindade com traccedilos

femininos distintos Teria Heacutestia alguma ligaccedilatildeo com Agni deus do fogo na Iacutendia Por que

190 Cf LE GOFF Jacques Op cit p 294

107

Em estreita conivecircncia com Heacutestia Zeus tem o controle tanto sobre a lareira privada de cada casa ndash no centro fixo que constitui como que o umbigo no qual se enraiacuteza a morada familiar ndash quando sobre a lareira comum da cidade no seio da aglomeraccedilatildeo na Heacutetia Koineacute onde velam os magistrados priacutetanes191

Teria sua virgindade sido ldquocriadardquo a partir da falta de histoacuterias que envolvessem Heacutestia

em questotildees amorosas

Por que soacute a partir dos Hinos Homeacuterico ndash em especial o Hino Homeacuterico V a Afrodite ndash

Heacutestia eacute colocada explicitamente como virgem (parthenos) fazendo um pedido ao pai para que

pudesse manter-se virgem e natildeo se casar

Ainda cavando pistas de genealogias anteriores das deusas virgens antes de levantarmos

nossas hipoacuteteses sobre a virgindade e o epiacuteteto lsquovirgemrsquo das deusas e de Maria procuramos

levantar questotildees sobre Atena Seu surgimento no mundo eacute diferente do das outras deusas

virgens pois nasce da cabeccedila do pai o que lhe garante um jeito diferente de Ser Duas outras

consideraccedilotildees sobre Atena que jaacute foram exploradas ao decorrer de nossas reflexotildees satildeo

colocadas aqui a tiacutetulo de recordaccedilatildeo primeiro Atena eacute a uacutenica deusa considerada

ontologicamente virgem pois ao nascer (veja-se v 895 em Hesiacuteodo) jaacute tem sua virgindade

garantida segundo a identificaccedilatildeo feita por Platatildeo bem como por Apolocircnio de Rodes de que

Atena seria procedente da Liacutebia Platatildeo a coloca como sendo a deusa Neith de eacutepoca anterior agrave

arcaica em que a paternidade natildeo era reconhecida um periacuteodo matriarcal em que Neith tinha

suas sacerdotisas-virgens que se entregavam todos os anos a um combate armado para fins de

conquistar a posiccedilatildeo de sacerdotisa-superior Portanto a virgindade de Atena a κoύρη de

nascimento parece ser colocada desde a sua origem quer se considere a Teogonia grega quer se

considere a versatildeo de sua genealogia Liacutebia

Quanto a Aacutertemis podemos hipotetizaacute-la como sendo ldquoderivadardquo da histoacuteria indo-

europeacuteia uma deusa a quem se vinculam as Amazonas demarcando o espaccedilo entre o mundo

primitivo e a civilizaccedilatildeo192

Da perspectiva genealoacutegica tanto em Mateus como em Lucas a virgindade de Maria eacute

preservada Diz Lucas 323193

191 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 192 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 24 193 BIBLIA SAGRADA p 1350

108

ldquoQuando Jesus comeccedilou o seu ministeacuterio tinha cerca de trinta anos e era tido como filho de Joseacute filho de Helirdquo

Em Mateus 116194 temos sobre a genealogia de Jesus

ldquoJacoacute gerou Joseacute esposo de Maria da qual nasceu Jesus que eacute chamado Cristordquo

Embora as genealogias sejam divergentes em relaccedilatildeo a Joseacute (o que atesta um problema de

reconhecimento de paternidade) haacute uma forma de representaccedilatildeo linguumliacutestica que preserva a

virgindade de Maria pois as descriccedilotildees natildeo permitem a suposiccedilatildeo de que Joseacute possa ser o pai

bioloacutegico de Jesus Em Lucas ldquoera tido comordquo portanto o que equivale a dizer que natildeo era em

Mateus ldquoda qual nasceu Jesusrdquo referindo-se a Maria e natildeo a Joseacute

Chegamos pois ao momento de ldquoenfrentarmosrdquo a virgindade definindo-a por traccedilos se

natildeo por conceitos

A primeira constataccedilatildeo que se chegou eacute que a ideacuteia de ldquocastidaderdquo eacute mais tardia e que a

virgindade no iniacutecio dos tempos vincula-se a uma forma de poder

Resgatando uma definiccedilatildeo relacionada ao poder quando jaacute se estava por volta da eacutepoca

217 aC narra a lenda que Claacuteudia Quinta sacerdotisa de Vesta ia sofrer processo que

terminaria com uma morte ritual o que significava que ia ser sepultada viva Claacuteudia ia ser

punida por ter infringido seu voto de virgindade ndash o que significava a missatildeo para a qual tinha

sido designada No entanto nessa mesma eacutepoca Aniacutebal devastava a Itaacutelia e como narra Cacircmara

Cascudo

A sibila de Cumes aconselhou a vinda da pedra negra de Pessinonte na Aacutesia menor tombada do ceacuteu e considerada como a viva encarnaccedilatildeo de Cibele O barco que trouxe a pedra negra encalhou no Rio Tibre e os auguacuterios anunciaram que uma virgem arrastaria a embarcaccedilatildeo da lama e a poria a nado195

Eacute ai que entra Claacuteudia Quinta que diante de todo o povo romano invoca a deusa Cibele

e amarrando o rostro do navio com o seu cinto de Vestal consegue puxaacute-lo facilmente Tendo

cumprido essa missatildeo de ldquocaraacuteter puacuteblicordquo Claacuteudia daacute a prova de sua virgindade

Assim Cacircmara Cascudo inicia seu capiacutetulo sobre virgindade dizendo

A virgindade explica as estoacuterias populares e na tradiccedilatildeo maacutegica a forccedila irresistiacutevel e os atos sobre-humanos de valentia196

194 Idem p 1285 195 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Supersticcedilatildeo no Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia 1985 p 286 196 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 286

109

Cacircmara Cascudo narra vaacuterias supersticcedilotildees e crenccedilas em que o poder da virgem cura

regenera recupera

Como Heacutestia soacute uma virgem podia ter a obrigaccedilatildeo de acender e guardar o fogo sagrado

da vestais em Roma

Cacircmara Cascudo cita vaacuterias caracteriacutesticas das deusas virgens que vimos ao longo de

nosso trabalho a forccedila fiacutesica a resistecircncia ao combate a ausecircncia de medo a solicitude o

cumprimento de obrigaccedilotildees a valentia inexpugnaacutevel a alegria expressa em cantos danccedilas e

urros como ldquoemanaccedilotildees da virgindaderdquo

Ora nesse sentido coloca-se a deusa Afrodite que se posicionou frente a frente com as

deusas ditas virgens nos Hinos Homeacutericos Para nossa surpresa tambeacutem Cacircmara Cascudo

apresenta uma lista reveladora de deusas virgens e laacute se encontra a uracircnia natildeo Aacutertemis mas

Afrodite Vejamos o que diz Cacircmara Cascudo pois esse aspecto relaciona-se com a hipoacutetese que

tentamos levantar

As virgens criadoras tiveram o culto mais profundo e natural Era o poder para a Vida e sempre o potencial mais puro Nari dos indus Muta-Iacutesis dos egiacutepcios Atar dos aacuterabes Astoret dos feniacutecios Afrodite-Anadiocircmene dos gregos Vesta dos romanos Luonatar dos finlandenses Herta dos germanos Dea dos gauleses Iza dos japoneses Ira dos oceacircnicos foram reverenciadas nessa invocaccedilatildeo espontacircnea e poderosa197

Dessa forma estavam relacionadas a pureza ndash que podia ser conseguida atraveacutes de ritos

de purificaccedilatildeo ndash e a ldquoenergiardquo A tradiccedilatildeo das virgens prevecirc uma forccedila e um poder a tal ponto

que ldquoa Virgo Potens irresistiacutevel teraacute a maior aacuterea de influencia religiosa que qualquer elemento

temaacutetico no mundo do passado histoacutericordquo198

A virgindade assim concebida eacute dom eacute poder e eacute forccedila sobrenatural

Na Greacutecia antiga isso nos faz pensar que o celibato era uma forma de preservar a

autonomia e portanto a forccedila e o poder das divindades para a missatildeo que deviam desempenhar

no cosmo Assim sendo nesse universo grego apenas Hera comparada agraves deusas Aacutertemis

Atena Heacutestia e Afrodite natildeo possuiacutea autonomia ldquoDesgastava-serdquo com os afazeres familiares

pois submissa ao marido Zeus estava sempre vigilante sobre suas conquistas amorosas e todas

as suas lendas de uma forma ou de outra vinculam-na ao masculino isto eacute a Zeus

197 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287 198 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287

110

Afrodite apesar de ser a deusa que promove a ldquophiliardquo e portanto natildeo ser virgem

tambeacutem tem autonomia move-se entre deuses e homens promovendo sua forccedila criadora

Mesmo seu casamento natildeo tem caraacuteter de submissatildeo ao masculino pois foi um casamento

arranjado por Hera ndash aquela que se dedica aos arranjos familiares ndash e aleacutem do mais aquele que eacute

tido como esposo eacute coxo e ldquosem importacircnciardquo dada a ausecircncia de valentia e brilho nas histoacuterias

em que Hefesto participa Ao contraacuterio seus atos satildeo secundaacuterios e pouco relevantes

Diferentemente de Hera Afrodite ndash virgem ou natildeo ndash tem uma importacircncia em si mesma

aos moldes de Aacutertemis Atena e Heacutestia

Aleacutem disso tanto as deusas virgens como Afrodite tecircm uma missatildeo no cosmo fora do

espaccedilo da casa Como diz Hesiacuteodo ldquoAtena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevelrdquo199

Referindo-se a Afrodite

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice200

Aacutertemis eacute tida como a ldquoverte-flechasrdquo ldquoLeto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechasrdquo201

O que queremos destacar eacute que aleacutem de uma missatildeo que exige uma certa autonomia das

deusas parece tambeacutem que o poder da virgindade eacute uma forma de preservar divindades de um

periacuteodo matriarcal quando ainda natildeo se destacava e natildeo se nomeava o masculino

Assim o celibato preserva a autonomia a liberdade de movimentos e incorpora

caracteriacutesticas de uma eacutepoca das grandes deusas

Nesse sentido a virgindade no Cristianismo pode ter um propoacutesito semelhante pois parte

da valorizaccedilatildeo do feminino e do celibato e como consequumlecircncia o sexo passa a ter uma

conotaccedilatildeo negativa no mundo judaico-cristatildeo o que natildeo havia ateacute entatildeo na tradiccedilatildeo judaica

Sobre esse assunto haacute uma beliacutessima discussatildeo encaminhada por Spong Diz ele entre

outros trechos sobre o aspecto da sexualidade

The Bible in general and the birth narratives in particular became a subtle unconscious source for the continued oppression of women The cultural assumption was made that the only proper way for a moral woman to conduct herself was to remain safely inside

199 HESIacuteODO Op cit p 157 v 925 200 HESIacuteODO Op cit p 117 vs 203-206 201 HESIacuteODO Op cit p 157 v 918

111

the sexually profective barriers provided first by her father and second by her husband202

Um aspecto positivo no Cristianismo ao proclamar a virgindade de Maria foi o fato de

nomear a matildee de colocaacute-la dentro da importacircncia da histoacuteria de nascimento da histoacuteria da

humanidade

A partir do retrato elaborado de Maria como matildee virgem tambeacutem hipotetizamos um

outro ponto de que o sofrimento eacute de alguma forma inerente ao aspecto da virgindade Se por

uma lado daacute autonomia em relaccedilatildeo agrave presenccedila de domiacutenio de um esposo de outro prevecirc uma

renuacutencia pessoal aos envolvimentos domeacutesticos frente a uma missatildeo mais ampla quase sempre

de ordem puacuteblica e que requer uma doaccedilatildeo Entatildeo perguntamos isso natildeo equivalia a ldquotrocarrdquo a

submissatildeo do marido pela submissatildeo a uma divindade Natildeo seria deixar de assumir o

compromisso terreno para assumir o sagrado

No Hino Homeacuterico a Afrodite Heacutestia submete-se ao pai Zeus solicitando-lhe permissatildeo

para natildeo se casar e manter-se virgem

Na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo em Lucas Maria submete-se aos desiacutegnios de Deus usando o termo

ldquoservardquo na sua fala de concordacircncia

Eacute preciso uma resignaccedilatildeo um poder e forccedila para manter o equiliacutebrio do Ser com o

desempenho de uma missatildeo Por isso vimos Aacutertemis sofrendo com o parto difiacutecil da matildee o que

coloca uma temeridade em um aspecto do feminino aiacute embora seja uma funccedilatildeo criadora

semelhante agrave da natureza Por isso reza a lenda ela passa a se dedicar agrave causa da mulher como

orientadora nos casamentos e protetora nos partos A mesma Aacutertemis afugenta os pretendentes

deuses e mortais para natildeo deixar que a seduccedilatildeo possa interferir em sua natureza de mulherdeusa

liberta ndash entre dois mundos entre duas culturas ndash no cumprimento da funccedilatildeo que lhe foi

atribuiacuteda a de ldquoverte-flechasrdquo

Atena eacute marcada pelo sofrimento de sua chegada sem matildee mas inaugura uma ldquogeraccedilatildeordquo

nova em que o pai recebe os filhos e os aceita Atena nasce virgem pois sua virgindade eacute

predeterminada bem como sua funccedilatildeo que requer poder e renuacutencia do aspecto feminino

202 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 A Biacuteblia em geral e as narrativas de nascimento em particular se tornaram uma fonte sutil inconsciente de opressatildeo contiacutenua das mulheres Foi feita a conjetura cultural de que o uacutenico meio adequado para uma mulher de moral se conduzir era permanecer segura dentro das barreiras protetoras da sexualidade fornecidas primeiro pelo pai e segundo pelo marido (traduccedilatildeo nossa)

112

particular Ela eacute assumida como virgem e guerreira Sua virgindade eacute colocada como fato seja

como representante de Atenas descendente de Zeus seja como descendente da deusa virgem

Neith da Liacutebia

Heacutestia tem uma missatildeo civilizatoacuteria de grande espectro cuida de cada casa conhece os

dramas da convivecircncia domeacutestica das relaccedilotildees de gecircneros da sociedade grega da poliacutetica que

circunda a pira puacuteblica Como poderia ao mesmo tempo essa grande deusa incorpoacuterea

matriarcal cuidar de esposo de filhos e de sua proacutepria casa

Afrodite tem uma missatildeo que tambeacutem transcende o particular o que nos fez pensar que

talvez dentro da histoacuteria da sociedade patriarcal apenas tenham autonomia e independecircncia em

sua missatildeo as virgens (as deusas gregas com funccedilotildees diferenciadas as vestais na sua funccedilatildeo de

guardiatildes do fogo sagrado agrave maneira de Heacutestia Maria na sua missatildeo Cristatilde as freiras em sua

missatildeo teoloacutegica) e as mulheres que se dedicaram ao amor sem deixar se submeter pelo

domiacutenio do masculino (Afrodite livre no seu agir independente na sua conduta (embora tivesse

um marido) as vestais prostitutas sagradas as concubinas as prostitutas profissionais)

Apesar de a virgindade conter especificidades e a tributos positivos Spong argumenta

que na histoacuteria do Cristianismo ela pode ser vista como um constructo ldquomachistardquo originaacuterio do

patriarcalismo Segundo o argumento que defende a mulher que aparecia de forma marcante ao

lado de Jesus era Maria Madalena

No entanto a tradiccedilatildeo apagou sua figura atuante e colocou-a com um caraacuteter

ldquoameaccediladorrdquo de prostituta dado o seu caraacuteter liberto condenada pelo pecado Essa mesma

tradiccedilatildeo recuperou a imagem de Maria que aparecia palidamente nos primeiros evangelhos Sua

expressatildeo de poder comeccedilou a ganhar impulso a partir do segundo seacuteculo da era cristatilde

Teria sido a categoria de virgindade moldada a partir dos gregos pagatildeos Teria o

Cristianismo se apossado dessa ideacuteia colocando a lsquovirgemrsquo como a lsquomulher idealrsquo para servir aos

propoacutesitos de um Pai divino

Parece que a maternidade foi tida como uma forma de puniccedilatildeo desde o iniacutecio da criaccedilatildeo

do mundo (veja o que se colocou em relaccedilatildeo a Aacutertemis) pelas tensotildees que subjazem ao ato de

reproduccedilatildeo atraveacutes do ldquoconhecimentordquo que Adatildeo tem de Eva Vejamos como coloca Spong

113

At the time of the fall when according to the literal text sin entered Godrsquos good creation Eve too was a virgin Adam did not ldquoKnowrdquo203 her until they were both banished form the Garden of Eden (Gen41) Childbirth the result of Adamrsquos ldquoknowingrdquo was part of Eversquos punishment

(Gen316) 204

Parece-nos pois que a ideacuteia de virgindade foi elaborada como um constructo social do

mundo pagatildeo procurando preservar o poder feminino frente a uma missatildeo ampla e de domiacutenio

do coletivo A proacutepria Afrodite em seu envolvimento sexual com Anquises exprimiu seu

sentimento de culpa e de vulnerabilidade diante das questotildees amorosas explicitando a

consequumlecircncia desse ato na produccedilatildeo de um filho

A forma que a Igreja encontrou para redimir os pecados foi o batismo inspirado tambeacutem

nos rituais gregos de purificaccedilatildeo como jaacute foi referido anteriormente

Finalmente antes de colocarmos um elenco de questotildees investigativas sobre a virgindade

ocorreu-nos refletir sobre um extremo da virgindade feminina que passa a ser significada na sua

lsquoabstraccedilatildeorsquo Assim em se estabelecendo um paralelo entre Heacutestia e Maria percebe-se que antes

dos Hinos Homeacutericos que satildeo produccedilotildees posteriores a Homero e a Hesiacuteodo bem como na

iconografia da eacutepoca a deusa Heacutestia eacute silenciosa e incorpoacuterea quase irreal como Maria

Poucos dados textuais existem a respeito de Heacutestia Entretanto muito se tem investigado

e muitas suposiccedilotildees tecircm sido escritas a seu respeito

Maria tambeacutem parece natildeo ter sido uma mulher real sendo a histoacuteria de sua vida

encoberta de silecircncio Como coloca Spong bispo de Newmark

ldquoA view of history however reveals that the price of Maryrsquos bodily assumption was the sacrifice of her sexual identity She entered the realm of the gods as one deprived of her humanity She was a virgin bride a virgin mother a perpetual virgin and a post partum virgin She was immaculately conceived at birth and bodily assumed at the moment of death Clearly she was not a real woman rdquo205

A palavra grega lsquopathernosrsquo que indica em um primeiro sentido lsquomoccedila antes do

casamentorsquo jaacute deixa evidente o significado de natildeo-comprometimento com um homem Assim a 203 O verbo ldquoconhecerrdquo em hebraico pode significar lsquopenetrarrsquo penetrar no outro para conhecer 204 SPONG John Shelby op cit p 210 ldquoNo tempo da queda quando de acordo com o texto literal o pecado entrou na admiraacutevel criaccedilatildeo de Deus Eva tambeacutem era uma virgem Adatildeo nada ldquoconheciardquo ateacute ambos serem banidos do Jardim do Eacuteden (Gen41) O parto resultado do ldquoconhecimentordquo de Adatildeo foi parte da puniccedilatildeo de Eva (Gen316)rdquo (traduccedilatildeo nossa) 205 SPONG John Shelby op cit p 218 ldquoUma visatildeo da histoacuteria entretanto revela que o preccedilo da assunccedilatildeo do corpo de Maria foi o sacrifiacutecio de sua identidade sexual Ela entrou para o reino dos deuses como algueacutem privado de sua humanidade Ela foi um noiva virgem uma matildee virgem uma virgem perpeacutetua e uma virgem poacutes-parto Ela foi concebida se maacutecula pelo nascimento e corporeamente elevada na hora da morte Claramente ela natildeo era uma mulher realrdquo

114

virgindade deve por extensatildeo garantir o sentido de natildeo-ligaccedilatildeo a um indiviacuteduo por viacutenculos

contratuais como era tido o casamento na Greacutecia arcaica Daiacute a moccedila antes do casamento

virgem

Segue abaixo o protocolo de nossas perguntas

bull Representa a virgindade uma forma de preservar a figura da deusamulher autocircnoma

como continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo matriarcal da cultura baseada nos mitos da

fecundidade

bull Esse aspecto de virgindade confere agrave deusamulher um poder de dedicaccedilatildeo a uma missatildeo

que tem um caraacuteter civilizador

bull Por que o Cristianismo preservou a figura da Virgem na figura da matildee

bull Qual o apelo agrave afetividade lsquophiliarsquo que as deusasmulheres virgens podem manifestar em

seu discurso pela histoacuteria Que tipo de imagem de si mesmo o homem grego pode ter a

partir do olhar das deusas virgens

E aqui entra a nossa conclusatildeo maior a questatildeo amorosa conduz a Afrodite e ao poder do

desejo Sem ela a virgindade natildeo teria expressatildeo

A questatildeo da virgindade e das deusas virgens soacute eacute impactante frente agrave forccedila de recusa a

Afrodite bem como ao compromisso com o masculino

Ficam aiacute propostas para novas discussotildees Embora o misteacuterio das deusas virgens deva

persistir porque faz parte da maneira de se conceber o divino

115

REFEREcircNCIAS

AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro (Ed USP) 2 ed 1968 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par Seacutechant L et Chantraine P Paris Hachette 2000 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer (1736) Reimpressatildeo reprograacutefica Hildesheim Georg Olms 1976 BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed34 1997 DETIENNE Marcel Os Gregos e NoacutesUma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007

116

EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 disponiacutevel em lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt Acesso em 29jun2009 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 FOUCAULT M A arqueologia do Saber Rio de Janeiro forense Universitaacuteria 5 ed 1977 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 FREUD Sigmund (1931) Sexualidade Feminina In Obras completas Estandart brasileira Trad Sob a direccedilatildeo de Jayme Salomatildeo Rio de Janeiro imago 1996 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004 GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Feminino Campinas Editora Aliacutenea 2008 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 HOMER The Iliad v 1 e 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 HOMER The Odyssey Translated by E V Rieu London Penguin Books 2003 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004

117

LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 LISSARRAGUE Franccedilois A figuraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 MAVROMATAKI Maria Mitologia Griega Atenas Ediciones Xaitali 1997 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 RATTO Stephania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

118

SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001

119

BIBLIOGRAFIA

APOLLODORUS The library v 1 e 2 Cambridge Harvard University Press 1990 ARISTOacuteTELES Poeacutetica 2ed Traduccedilatildeo de Eudoro de Souza Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1993 BACHOFEN Johann Jakob Mitologiacutea Arcaica y Derecho materno Edicioacuten de Andreacutes Ortiz-Oseacutes Barcelona Editorial Anthropos 1988 BEN VENISTE Eacutemile Se vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes vol 1 et 2 Paris Les Eacuteditions de Minuit 1969 DETIENNE Marcel Comparar o incomparaacutevel Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2004 DETIENNE Marcel VERNANT Jean-Pierre Les ruses de lrsquointelligence La Megravetis des Grecs France Flammarion 1974 DUMEacuteZIL Georges Lrsquooubli de lrsquohomme et lrsquohonneur des dieux Paris Eacuteditions Gallimard 1985 DUMEacuteZIL Georges Mito y epopeya v III ndash Historias Romanas Meacutexico Fondo de Cultura econoacutemica 1996 GRANT Robert M Augustus to Constantine The emergence of Christianity in the Roman World New York Barnes amp Noble 1996 ROSE H J A Handbook of Greek Mythology London Methuen amp Co Ltd 1985 SISSA Giulia Greek Virginity Translated by Arthur Goldhammer Cambridge Harvard University Press 1990 THOMAS Rosalind Letramento e oralidade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 VEYNE Paul Acreditaram os gregos nos mitos Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

121

ANEXO A ndash Hinos Homeacutericos ndash Afrodite

V

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗ

Μοΰσά microοι έννέπε εργα πολυχρύσσυ Άφροδίτης Κύπριδος ήτε θεοΐσιν έπί γλυκύν ϊmicroερον ώρσε καί τrsquo έδαmicroάσ σ ατο φΰλα καταθνητων άνθρφπων οίωνούς τε διιπετέας καί θηρία πάντα ήγέν οσ΄ήπειροσ πολλά τρέΦει ήδ΄ οσα πόντος 5 πασιν δrsquo έργα microέmicroηλεν έυστεφάνου Κυθερείης

Τρισσάς δrsquo ού δύναται πεπιθεΐν φρένας ούδrsquo άπατησαι΄

κούρην τrsquo αίγιόχοιο ∆ιός γλαυκώπιν Άθήνην΄ ού γάρ οί εϋαδεν έργα πολυχρύσου Άφροδίτης άλλrsquo αρα οί πόλεmicroοί τε άδον και εργον ΄΄Αρηος 10 ύσmicroΐναί τε microάχαι τε καί άγλαά έργrsquo άλεγύνειν πρώτη τέκτονας ανδρας έπιχθονίους έδίδαξε ποιησαι σατίνας τε και αρmicroατα ποικίλα χαλκω η δέ τε παρδενικας άπαλόχροας έν microεγάροισιν άγλαά εργrsquoέδίδαξεν έπι φρεσι θεΐσα έκάστη 15 ούδέ ποτrsquo Άρτέmicroιδα χρυσηλάκατον κελαδεινην δάmicroναται έν φιλότητι φιλοmicromicroειδης Άφροδίτη και γαρ τη αδε τόξα καί οΰρεσι θηρας έναίρειν φόρmicroιγγες τε χοροί τε διαπρύσιοί τrsquo όλολυγαί αλσεά τε σκιόεντα δικαίων τε πτόλις άνδρων 20 ούδε microεν αίδοίη κούρη αδε εργrsquo Άφροδίτης Ίστίη ην πρώτην τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης αΰτις δrsquo όπλοτάτην βουλη ∆ιός αίγιόχοιο πότνιαν ην έmicroνωντο Ποσειδάων καί Άπόλλων΄ η δε microαγrsquo ούκ εθελεν άλλά στερεως άπέειπεν΄ 25 ωmicroοσε δέ microέγαν ο δη τετελεσmicroένος έστίν

PARA AFRODITE206

Musa fale-me dos trabalhos da aacuteurea Afrodite a Ceacutepria que incita o doce desejo nos deuses e que subjuga as raccedilas dos homens mortais e os paacutessaros que voam no ceacuteu e todas as feras e tantas quantas a terra nutre e quantas tambeacutem o

[mar 5 a todos concernem os trabalhos da bem-coroada

[Citereacuteia Mas ela natildeo pode persuadir nem seduzir trecircs

[coraccedilotildees Primeiro a filha de Zeus que segura a eacutegide a

[glaucoacutepi da Atena pois ela natildeo se compraz nos trabalhos da aacuteurea

[Afrodite mas ama as guerra e os trabalhos de Ares 10 os combates e as batalhas e preparar esplecircndidos

[trabalhos beacutelicos Primeiramente ela ensina os artesatildeos da terra a fazer carros de guerra e vaacuterios carros ornados

[com bronze ela tambeacutem ensina as jovens virgens delicadas nas

[casas os esplecircndidos trabalhos e inspira cada uma delas15 e nem a clamorosa Aacutertemis das flecha de ouro a maacutevel Afrodite subjuga no amor pois a ela compraz arcos e flechas e matar feras nos

[montes as liras e os coros e os gritos agudos penetrantes os bosques ensombreados e as cidades dos homens

[civilizados 20 e nem agrave pura virgem Heacutestia compraz os trabalhos de Afrodite a qual foi a primeira nascida de Crono

206 Os hinos a Afrodite V e VI foram traduzidos com um enfoque diferente dos Hinos Homeacutericos dedicados a Aacutertemis Atena e Heacutestia as deusas virgens e nosso objeto de estudo Nestes hinos tivemos preocupaccedilatildeo com a mensagem do rapsodo explicitando caracteriacutesticas da Deusa no que diz respeito agrave sua chegada sobre o mar aos ornamentos que as horas lhe colocaram agrave beleza que encantou os imortais ao dom cativante que a deusa Afrodite emana subjugando deuses imortais e homens mortais Poreacutem resistem a esse poder de desejo ofuscante e opotildee-se a ele um outro tipo de poder o da virgindade As descriccedilotildees nesses hinos satildeo elaboradas como uma tela pintada com detalhes lsquofiletados a ourorsquo como as joacuteias que Afrodite porta e o explendor das violetas e o doce sorriso da deusa esparrama-se em cada linha do hino Assim nossa preocupaccedilatildeo foi antes com o ldquoconteuacutedordquo do que com a esteacutetica e com a meacutetrica pois natildeo poderiacuteamos ldquodistorcerrdquo o poema trazendo-o para o contexto de nosso seacuteculo Fizemos pois uma traduccedilatildeo livre de quaisquer amarras teoacutericas Ficam ai apenas ldquoideacuteiasrdquo sobre o que o rapsodo tentou colocar dentro da cultura de seu tempo

122

άψαmicroένη κεφαλης πατρός ∆ιος αίγιόχοιο παρθένος εσσεσθαι πάντrsquo ηmicroατα δΐα θεάων τη δε πατηρ Ζεύς δωκε καλόν γέρας άντι γάmicroοιο καί τε microέσω οΐκω κατrsquo αρrsquo εζετο πΐαρ έλοΰσα 30 πασιν δrsquo έν νηοΐσι θεων τιmicroάοχός έστι καί παρα πασι βροτοΐσι θεων πρέσβειρα τέτυκται

Τάων ού δύναται πεπιθειν φρένας ούδrsquo άπατησα των δrsquo αλλων οϋ πέρ τι πεφυγmicroένον εστrsquo Άφροδίτην οϋτε θεων microακάρων οϋτε θνητων άνθρώπων 35 καί τε παρεκ Ζηνος νόον ηγαγε τερπικεραύνου οστε microέγστός τrsquo έστί microεγίστης τrsquo εmicromicroορε τιmicroης καί τε τοΰ εϋτrsquo έθέλοι πυκιναλ φρένας έξαπαφαΰσα ρηιδίως συνέmicroιξε καταθνητησι γυναιξίν Ήρης έκλελαθοΰσα κασιγνήτης άλόχου τε 40 η microέγα είδος άρίστη έν άθανάτησι θεησι κυδίστην δrsquo αρα microιν τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης microήτηρ τε ΄Ρείη Ζεύς δrsquo αφθιτα microήδεα είδώς αίδοίην αλοχον ποιήσατο κέδνrsquo είδυΐαν Τη δε καί αύτη Ζεύς γλυκύν ΐmicroερον εmicroβαλε θυmicroω 45 άνδρι καταθνητω microιχθήmicroεναι οφρα τάχιστα microηδrsquo αύτη βροτέης εύνης άποεργmicroένη εϊη καί ποτrsquo έπευξαmicroένη εϊπη microετά πασι θεοΐσιν ήδύ γελοιήσασα φιλοmicromicroειδής Άφροδίτη ως ρα θεούς συνέmicroιξε καταθνητησι γυϖαιξί 50 καί τε καταθνητούλ υίεΐς τέκον άθανάτοισιν ως τε θεάς άνέmicroιξε καταθνητοΐς άνθπώποις

[de espiacuterito astuto e tambeacutem mais jovem pela vontade de Zeus que

[segura a eacutegide a soberana que Poseidon e Apolo procuraram para o

[casamento Mas ela de forma alguma natildeo consentindo

[firmemente recusou 25 E fez um grande juramento o qual foi cumprido ateacute

[o fim tocando a cabeccedila do pai Zeus que segura a eacutegide que seraacute virgem para sempre divina entre as deusas agrave qual o pai Zeus deu grande honra em lugar de

[casamento e ela assentou-se no centro da casa e recebe a melhor

[oferenda 30 em todos os templos ela eacute honrada e entre todos os mortais ela eacute colocada como

[veneraacutevel Deusas ela natildeo pode persuadir nem iludir coraccedilotildees mas dos outros natildeo haacute nenhum que tenha escapado

[de Afrodite Nem os deuses bem aventurados nem os homens

[mortais 35 e sem que Zeus que ama o raio desse conta ela

[conduziu o que eacute o maior e tem a maior diginidade e quando lhe apraz ela ilude facilmente o coraccedilatildeo

[saacutebio dele e o coloca junto de mulheres mortais tendo ocultado de sua irmatilde e esposa Hera 40 a qual eacute a maior em beleza entre os deuses imortais a mais gloriosa eacute ela nascida do astuto Crono e de Reacuteia sua matildee que a geraram e Zeus de

[sabedoria impecaacutevel feacute-la sua doce e cuidadosa esposa

123

VI

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗΝ

Α ίδοίην χρυσοστέφανον καλήν Άφροδίτην ασαmicroαι η πασης Κύπρου κρήδεmicroνα λέλογχεν είναλίης οθι microιν Ζεφύρου microένος ύγρόν άέντος ηνεικεν κατα κΰmicroα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης άφρώ ενι microαλακω την δε χρυσάmicroπυκες Ώραι 5 δέξαντrsquo άσπασίως περί δrsquoαmicroβροτα ειmicroατα εσσαν κρατί δrsquo έπrsquo άθανάτω στεφάνην εϋτυκτοϖ εθηκαν καλήν χρυσείην έν δε τρητοΐσι λοβοΐσιν ανθεmicrorsquo όρειχάλκου χρσοΐό τε τιmicroήεντος δειρη δrsquo άmicroφrsquo άπαλη καί στήθεσιν άργυφέοισιν 10 ορmicroοισι χρυσέοισιν έκόσmicroεον οίσι περ αύταί Ώραι κοσmicroείσθην χρυσάmicroπυκες όππότrsquo ϊοιεν ές χορόν ιmicroερόεντα θεων καί δώmicroατα πατρός αύτάρ έπειδη πάντα περί χροΐ κόσmicroον εθηκαν ηγον ές άθανάτους οΐ δrsquo ήσπάζοντο ίδόντεσ 15 χερσί τrsquo έδεξιόωντο καί ήρήσαντο εκαστος είναι κουριδίην άλοχον καί οϊκαδrsquo αγεσθαι είδος θαυmicroάζοντες ίοστεφάνου Κυθερείης

Χαΐρrsquo έλικοβλέφαρε γλυκυmicroείλιχε δος δrsquo έν άγωνι

νίκην τωδε φέρεσθαι έmicroην δrsquo εντυνον άοιδήν 20 αύτάρ έγώ καί σεΐο καί αλλης microνήσοmicrorsquo άοιδης

PARA AFRODITE

Cantarei veneraacutevel coroada de ouro bela Afrodite 1 a qual de toda Chipre Marinha rodeada de muralhas laacute onde o uacutemido vento Zeacutefiro207 ergueu-a sobre a onda do mar barulhento na espuma suave e as Horas208 adornadas de ouro 5 receberam-na com alegria vestiram-na com [vestimentas divinas e sobre a cabeccedila imortal colocaram a bela coroa de ouro bem feita e nas orelhas furadas ornamentos de oricalco209 e de ouro precioso e em volta do pescoccedilo macio e do peito resplandecente [de brancura 10 colares de ouro os quais filetados de ouro satildeo usados pelas proacuteprias Horas quando quer elas vatildeo para a casa do pai para o coro charmoso dos deuses e depois que a vestiram conduziram-na para os imortais os quais a acolheram15 e saudaram com as matildeos e cada um suplicou para ser o esposo unido a ela210 e levaacute-la para casa admirados pela beleza da Citereacuteia coroada de violetas Salve a de olhos vivazes suavemente cativante na assembleacuteia [dos deuses Decirc-me a vitoacuteria e conduze meu canto honrado 20 E depois eu me lembrarei de ti e de outra canccedilatildeo

207 microένος tem o sentido de forccedilas da natureza como a aacutegua o fogo o vento neste caso refere-se ao vento Zeacutefiro eacute um vento do oeste daiacute ter um significado de vento agradaacutevel Zeacutefiro era personificado como filho de Eoacutelico 208 As Horas representavam as divindades das Estaccedilotildees Eram as filhas de Zeus e de Teacutemis e irmatildes das Moiras (os destinos) Agraves Horas designa-se um duplo sentido de divindade da natureza presidindo o ciclo da vegetaccedilatildeo e de divindades da ordem promovendo estabilidade Soacute tardiamente elas passaram a significar as horas do dia 209 Oricalco eacute um tipo de metal semelhante ao cobre 210 ldquounido em casamento com uma esposardquo daiacute o ldquoesposo legiacutetimordquo Esse termo envolve por extensatildeo a noccedilatildeo de laccedilos conjugais e de leito conjugal

124

X

ΕΙΣ ΑΦΡ0∆1ΤΗΝ

Κν προ γενη Κνθέρειαν αείσοmicroαι ητε βροτοΐσι microεί λιχα δώρα δί δωσιν εφ ίmicroερτω δε προσώπφ αίεί microει διάεί καί εφ ιmicroερτograveν θέεί άνθος Χαicircρε θεά Σα λαmicroicircνος ευκτιmicroένης microε δέουσα είνα λίης τε Κύπρον δός δ ίmicroερόεσσαν άοι δήν5 αύτάρ εγω καί σείο καί αλ λης microνήσοmicro άοι δης

PARA AFRODITE

Canto a Citereacuteia211 de Chipre que aos homens daacute doces dons sobre sua face desejante212 estaacute sempre o sorriso e desejaacutevel213 eacute o brilho Oh deusa dama214 da bem-feita Salamina e da Chipre marinha215 daacute o canto atraente216 5 Entatildeo me lembrarei de ti e de outro canto

211 Como se verifica ao longo das consideraccedilotildees sobre alguns pontos do aspecto metodoloacutegico o uso de palavras pleonaacutesticas em Homero ocorre na posiccedilatildeo que assumimos como um ornato decorrente do proacuteprio gecircnero eacutepico e inerente ao contexto Assim ritmicamente colocam-se lado a lado

Kuπρογενη Kuθέρειαν ou seja a Citereacuteia nascida em Chipre Como acreditava-se que Afrodite havia surgido das ondas (aphros) fecundadas pelo secircmen de Urano

quando foi castrado por seu filho Cronos ela a Afrogeneacuteia nascida da espuma sai do mar em uma praia na ilha de Chipre 212 Encontram-se nos versos 2 3 e 5 do original grego respectivamente as palavras Ίmicroερτώ ίmicroερτόν ίmicroερόεσσαν nos versos indicados 213 Assim a repeticcedilatildeo na traduccedilatildeo procurou manter o sentido original Embora no verso 5 tenha-se usado o adjetivo atraente ele estaacute indicado como um equivalente do verbete significando o que faz aparecer o desejo Todas essas palavras possuem uma base comum ίmicroερός e se referem ao sentido de desejo que estaacute relacionado a Afrodite e portanto ao que se chama de Amor Encontra-se uma personificaccedilatildeo de microερος na Teogonia de Hesiacuteodo verso 64 p 108 na obra de TORRANO JAA Teogonia A Origem dos Deuses HESIacuteODO Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Em GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 haacute o seguinte comentaacuterio sobre HiacutemeroO gecircnio Hiacutemero eacute a personificaccedilatildeo do Desejo amoroso Acompanha Eros no cortejo de Afrodite e no cimo do Olimpo vive ao lado das Caacuteritas e das Musas Eacute uma simples abstraccedilatildeo e natildeo figura em nenhuma lenda p 229 Embora Grimal coloque como sendo uma abstraccedilatildeo acreditamos que ele natildeo esteja se referindo ao desejo como forma de amor platocircnico Na eacutepoca arcaica ίmicroερος em Homero e em Hesiacuteodo estaacute relacionado ao amor libidinoso o que provoca a atraccedilatildeo 214 O texto grego traz a palavra microεδέουσα que significa a que reina sobre Esse termo junto com a palavra Σαλαmicroίνος refere-se a Afrodite (verificar BAILLY Anatole Dictionnaire Grec FranccedilaisParis Hachette2000 p1236) Para a traduccedilatildeo pensou-se no aspecto semacircntico rainha ou dama da cidade e optou-se por motivo de versificaccedilatildeo pela palavra dama 215 A palavra referente a Chipre eacute είναλίης que significa marinha cercada de mar Optou-se pela traduccedilatildeo marinha por ter um significado abrangente daquilo que se relaciona com o mar e por uma questatildeo econocircmica sabendo-se que Chipre eacute uma ilha estaacute cercada de mar 216 Ver notas 212 e 213 acima

125

ANEXO B ndash Hinos Homeacuterico ndash Deusas virgens

IX

ΕΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ

Αρτεmicroιν υmicroνεί Μούσα κασιγνήτην Έκάτοιο παρθενον ιοχεα ιραν όmicroότρο φον Άπόλλωνος ηθιππονς αρσασα βαθυσχοίνοιο Μέ λητος ρίmicro φα δια Σmicroύρνης πα γχρυσεον άρmicroα διώκει έ ς Κ λάρον άmicro πε λόεσσαν otilde θ άργυρότοξος Απόλλων ήσται microιmicroνάζων έκατηβoacute λον ίοχέαιραν 6

Καigrave συ microεν ουτω χαicircρε θεαί θ άmicroα πάσαι άοι δη αύταρ έγώ σε πρώτα και έκ σέθεν άρχοmicro άείδειν σευ δ έγω άρ ξάmicroενο ς microεταβησοmicroαι α λλον έ ς ΰmicroνον

PARA AacuteRTEMIS Musa cante Aacutertemis irmatilde do Atirador217 virgem218

que lanccedila flechas criada com Apolo daacute aacutegua aos cavalos de Meles junto aos juncos219 veloz por Esmirna guia a charrete220

dourada a Klaros com vinhas221 onde o arqueiro Apolo estaacute agrave espera da deusa que atira flechas222 6 E assim salve tu e todas as deusas no canto Entatildeo primeiro a ti e de ti passo a cantar tendo comeccedilado de ti vou a outro hino

217 Εκάτοιο Εκάτος eacute um epiacuteteto de Apolo e eacute inclusive no texto grego grafado com maiuacutescula tambeacutem pois eacute uma outra forma de nomeaacute-lo Significa o que atira ao longe 218 παρθένον παρθένος Em BAILLY (idib p 1489) I vierge particul 1 jeune fille 2 fille non marrieacutee 3jeune femme non marrieacutee 4 qui est comme une jeune fille vierge pur intact II La statue drsquoAthegravena agrave Athegravenes Neste caso παρθένον refer-se a Aacutertemis 219 A palavra βαθυσχοίνοιο significa um lugar coberto de juncos caniccedilos por isso em geral estaacute situado perto de lugares uacutemidos e alagados podendo estar pero de rios ou do mar BAILLY (id Ib p 2041) apresenta como ldquoaux joncs eacutepais aux hautes herbesrdquo 220 άρmicroα tem o sentido de attelage drsquoougrave char char de guerre ( BAILLY ib p 270) Portanto indica que Aacutertemis conduzia seu carro sua carruage ou sua charrete que era toda dourada (παγχρύσεον) Escolhemos a traduccedilatildeo charrete por nos parecer mais adequada ao contexto 221 Αmicroπελόεις όεσσα όεο em BAILLY (ib p 102) couvert de vignes Isso nos daacute uma indicaccedilatildeo de uma regiatildeo agriacutecola em que predominava a cultura de vinhas 222 Εκατηβολον significa o que atira flechas ao longe e eacute um epiacuteteto usado tanto para Apolo como para Aacutertemis Nesse caso como vem junto da palavra ιοχέαιραν refere-se a Aacutertemis e eacute pleonaacutestico pois significa a deusa que atira flechas e eacute usado com o verbo citado que tambeacutem significa atirar flechas ao longe mas estaacute se referindo agrave deusa A palavra ιοχέαιραν tambeacutem aparece no verso 2 relacionada a Aacutertemis ao lado de outro atributo virgem Eacute uma forma recorrente em Homero

126

XXVII

ΣΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ Αρτεmicroιν άεί δω χρυση λάκατον κε λα δεινήν παρθένον αiacute δοίην έ λα φηβό λον ίοχέαιραν αύτοκασιγνήτην χρνσαόρου Άπό λλωνος η κατ δρη σκιoacuteεντα καigrave άκριας ηνεmicroοέσσας άγρη τερποmicroενη παγχρύσεα τόξα τιταίνει 5 πέmicroπουσα στονόεντα βε ληmiddot τροmicroέει δε κάρηνα ύψη λων ορέων ίάχει δ επι δάσκιος υ λη δεινograveν υπograve κ λαγγης θηρων φρίσσει δέ τε ηαicircα πόντος τ ιχθυόεις ή δ α λκιmicroον ήτορ έχουσα πάντη επιστρέ φεται θηρων ό λεκουσα γενέθ λην 10 αύταρ επην τερ φθη θηροσκόπος ίοχέαιρα εύ φρήνη δε νόον χα λάσασ εύκαmicroπέα τόξα έρχεται ες microεηα δωmicroα κασνγνητοια φί λοιο Φοίβου Από λλωνος ∆ε λφων ες πίονα δηmicroον Μουσων και Χαρίτων κα λograveν χορograveν άρτυνέουσα 15 ένθα κατακρεmicroάσασα πα λίντονα τόξα καigrave igraveούς ηγεicircται χαρίεντα περigrave χροigrave κόσmicroον έχουσα εξάρχουσα χορούς αicirc δ άmicroβροσίην οπ ίεicircσαι ύmicroνευσιν Λητω κα λλίσ φυρον ως τέκε παicircδας αθανάτων βου λη τε καigrave εργmicroασιν εξοχ αρίστους 20 Χαίρετε τέκνα ∆ιograveς καigrave Λητους ηυκόmicroοιο αύταρ έηων ύmicroέων τε καigrave α λλης microνήσοmicro άοι δης

PARA AacuteRTEMIS Canto Aacutertemis das flechas de ouro a rumorosa223 digna224 virgem que caccedila225 os cervos e lanccedila o arco a proacutepria irmatilde de Apolo da espada dourada das montanhas sombrias e dos picos ventosos alegrando-se na caccedila estende o arco aacuteureo226 5 enviando flechas atrozes227 Tremem os cumes dos montes altos e a floresta densa ecoa forte com o grito das feras abala a terra e o mar com peixes Mas ela coraccedilatildeo forte228 volta-se a todos os lados destruindo feras229 10 Depois a caccediladora230 e arqueira231 se alegra satizfaz a mente e afrouxa o arco flexiacutevel e vai para a grande casa do irmatildeo amado Febo232 Apolo para a rica terra de Delfos para alinhar a danccedila233 das Musas e Graccedilas 15 Entatildeo pendura para traacutes o arco e as flechas conduz a danccedila e a organiza graciosamente234 e dirige os coros Elas lanccedilam a voz divina cantam como Leto de belo peacute pariu235 os melhores filhos (entre os imortais)236 na vontade e na accedilatildeo 20 Oh filhos de Zeus e Leto de fartos cabelos Eu237 me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

223 A palavra κελαδεινην significa ldquobarulhenta sonora rumorosardquo referindo-se a Aacutertemis devido agrave caccedila 224 De acordo com BAILLY ib p41 aleacutem de veneraacutevel digna de respeito αιδοίην tambeacutem significa envergonhada o que faz pensar em uma caracteriacutestica relacionada agrave virgindade 225 ελαφηβόλον (acusativo) tambeacutem eacute um epiacuteteto de Aacutertemis significando ldquoperseguidora de cervosrdquo Na falta de um termo equivalente em portuguecircs traduzimos por ldquoque caccedila os cervosrdquo usando uma oraccedilatildeo adjetiva para qualificar Aacutertemis 226 Arco aacuteureo ou arco dourado literalmente encontramos em grego παγχρυσεα ou seja com a conotaccedilatildeo de que o arco eacute ldquotodo douradordquo 227 A palavra grega στονόεντα eacute usada com o sentido de ldquoque faz gemer funestasrdquo daiacute termos escolhido em portuguecircs o termos ldquoatrozesrdquo 228 No original grego encontra-se έχουσα que significa ldquotendordquo ou ldquoaquelea que temrdquo (particiacutepio presente do verbo έχω)Usou-se um aposto explicativo com o mesmo sentido para fins de metrificaccedilatildeo 229 O verso 10 se traduzido literalmente fica ldquo volta-se para todos os lados destruindo a raccedila dos animais ferozesrdquo Na traduccedilatildeo eliminou-se a palavra γενέθλην isto eacute raccedila famiacutelia Achamos que a palavra ldquoferasrdquo em portuguecircs jaacute tem uma abrangecircncia de substantivo no plural referindo-se agrave espeacutecie como um todo 230 έηροσκόπος significa ldquoaquela que espreita os animaisrdquo Traduzimos pois com o sentido de ldquoaquela que caccedila os animaisrdquo portanto ldquoa caccediladorardquo 231 ίοχέαιρα epiacuteyeyo de Aacutertemis ldquoa que lanccedila flechasrdquo ou seja ldquoa arqueirardquo 232 Φοίβον traduzido geralmente como Febo que significa ldquoo brilhanterdquo e eacute um epiacuteteto de Apolo Funciona muitas vezes como nome proacuteprio (Ver GRIMAL ib p 167) 233 Quando o autor se refere agrave danccedila das Musas e das Graccedilas ele especifica καλόν χορόν o que quer dizer ldquobela danccedilardquo Por economia meacutetrica suprimimos a palavra ldquobelardquo pressupondo que a danccedila das Musas e das Graccedilas jaacute confere agrave danccedila um sentido de beleza 234 Em uma traduccedilatildeo literal o verso 17 apresenta-se como ldquoela conduziu proporcionando a ordem graciosa em torno da danccedilardquo Traduzimos ldquodirigir a ordem com graccedilardquo como ldquoorganizar com graccedilardquo 235 No texto grego estaacute especificado que Leto ldquopariu filhosrdquo Encontra-se a forma τέκε παίδας Como no verso seguinte (v20) encontra-se a forma αρίστους referindo-se ldquoaos melhore os mais excelentesrdquo transferiu-se a palavra ldquofilhosrdquo (παίδας) do verso 19 para o verso 20 236 O superlativo implica sempre que haacute uma comparaccedilatildeo Por razotildees meacutetricas colocou-se entre parecircnteses significando que natildeo faz parte da estrutura do verso 237 έγων achamos interessante manter na traduccedilatildeo o nominativo eacutepico ldquoeurdquo

127

XI

ΣΙΣ ΑΘΗΝΑΝ Παλλάδ Aθηναίην ερυσίπτολιν αρχomicro αεί δειν δεινήν η συν Aρηι microέλει πολεmicroήια έργα περθόmicroεναί τε πόληες αυτή τε πτόλεmicroοί τε και τ ερρνσατο λαograveν igraveόντα τε νισσόmicroενόν τε Xαicirc ρε θεά δός δ άmicromicroι τύχην ευδαιmicroονίην τε 5

PARA ATENA

A Palas Atena guardiatilde da polis238 canto terriacutevel239 que com Ares faz atos guerreiros de saques das polis de urros e de batalhas e salva as pessoas que na guerra combatem240 Oh deusa conceda-nos uma sorte boa 5

238 O termo grego ερυσίπτολιν eacute usado como epiacuteteto a Atena significando a protetora da cidade a guardiatilde 239 A palavra δεινήν nom δεινός quando se refere a Atena como eacute citado em BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilaised Hachette 2000 p 439 significa fort puissantterrible Daiacute o termo ser traduzido em portuguecircs em alguns contextos como terriacutevel a que tem poder e eacute extraordinaacuteria pois eacute uma divindade que possui tambeacutem um grito de guerra terriacutevel como se encontra no referido verbete e como confirma o verso 3 do Hino em questatildeo Em inglecircs equivalente a terriacutevel poderosa a traduccedilatildeo usada por EVELYN-WHITE HG in Hesiod The Homeric Hymns and Homerica London Loeb Classical Library 1982 eacute dread 240 ίόντα ( verbo είmicroί ) juntamente com a palvra λαόν significa ir agrave guerra e participar da luta Assim coloca BAILLY (id ib) agrave p 593 srsquoavancer au milieu de lrsquoarmeacutee ou de la foule (des guerriers)

128

XXVIII ΕΙΣ ΑΘΗΝΑΝ

Παλλάδ Aθηναίην κυδρην θβόν άρχοmicro άεί δειν γλανκώπιν πολυmicroητ ιν άmicroβίλίχον ητορ εχρυσαν παρθενον αίδοίην ερνσί πτολιν άλκηεσσαν Tριτογενή την αντος εγείνατο microητίετα Ζενς σεmicroνής εκ κε φαλής πολεmicroήια τενχε εχονσαν 5 χρύσεα παmicro φανοωντα σέβας δ εχε πάνταςορώντας αθανάτουςmiddot ή δε πρόσθεν ∆iograveς αίγιόχοιο εσσνmicroένως ώρουσεν ά π άθανάτοιο καρήνου σεiacuteσασ ograveξυν άκονταmiddot microέγας δ ελελiacuteζετ Όλυmicro πος δεινograveν υ πograve βρίmicroης γλανκώ πι δος άmicro φigrave δε γαicircα 10 σmicroερδαλέον iάχησεν εκινηθη δ άρα πόντος κύmicroασι πορ φυρέοισι κνκώmicroενος εκχντο δ άλmicroη εξα πίνης στήσεν δ Y περίονος άγλαograveς υιος iacuteππους ωκύποδας δηρograveν χρόνον είσότε κούρη εΐλετ απ αθανάτων ωmicroων θεοεiacuteκελα τεύχη 15 Παλλagraveς Άθηναίηγήθησε δε microητίετα Ζεύς Καigrave συ microεν οΰτω χαicircρε ∆iograveς τέκος αίηιoacuteχοιο αυτάρ εγώ καigrave σεicircο καigrave άλλης microνήσοmicro άοιδής

A ATENA

A Palas Atena canto a gloriosa241 deusa242 glaucoacutepida243 astuta com coraccedilatildeo indoacutecil virgem244 digna guardiatilde das cidades ousada Tritogecircnia245 o proacuteprio Zeus saacutebio a fez nascer de sua cabeccedila veneraacutevel portando armas246 5 aacuteureas toda brilhantes que impotildeem respeito247 aos imortais E ela frente a Zeus porta-eacutegide com iacutempeto saltou da cabeccedila imortal agitando a lanccedila aguda Ecoai Olimpo com espanto agrave forccedila da glaucoacutepida E a terra 10 gritou assustada O oceano se abalou agitou as ondas negras248 A aacutegua249 transbordou suacutebito O brilhante filho de Hipeacuterion250 parou os cavalos de peacutes aacutegeis ateacute que251 a virgem252 Palas Atena253 tirasse dos imortais 15 ombros as armas E Zeus saacutebio se alegrou Assim salve tu filha de Zeus que tem a eacutegide Depois me lembrarei de ti e de outro canto

241 O termo κυδρην eacute geralmente usado quando se refere a certas deusas como Atena e Leto Tem o sentido de ldquogloriosa ilustrerdquo ( A esse respeito ver BAILLY p1147) 242 A palavra θεόν estaacute no acusativo e possui a mesma forma para o masculino e para o femininoO que identifica o uso eacute o contexto ou o artigo definido Haacute um importante texto escrito por LORAUX Nicole em que ela comente sobre a questatildeo deusdeusa apontando para a generalidade indicando apenas um ser divino Eacute pois um problema de gecircnero como diz Loraux (In PANTEL Pauline S histoacuteria das Mulheres A Antiguidade Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 243 Depois de apelar Palas Atena o autor se remete a ela nomeando-a atraveacutes de uma seacuterie de epiacutetetos ldquoglaucoacutepida astuta virgem guardiatilde das cidade corajosa Tritogecircniardquo 244 O epiacuteteto παρθένον vem enfatizado pelo adjetivo αίδοίην o que como coloca Loraux em seu artigo supra-citado faz remeter agrave ideacuteia do divino do veneraacutevel em relaccedilatildeo agrave castidade de deuses como caracteriacutestica dos imortais 245 relaccedilatildeo ao epiacuteteto Τριτογενή haacute diversas interpretaccedilotildees quanto ao significado Uma das hipoacuteteses do epiacuteteto eacute de que ela nascera perto do lago Tritocircnis Poreacutem uma outra possibilidade eacute de se remeter ao termo eoacutelico que significaria ldquoa verdadeira filha de Zeusrdquo (BAILLY p 1964) 246 Atena nasceu carregando armas Como explicita o texto grego πολεmicroήια τεύχέ ou seja ldquoarmas beacutelicasrdquo 247 O que o autor diz literalmente nos versos 5 6 e 7 eacute que ldquoAtena estava portando armas de guerra douradas e toda brilhantes que impotildeem respeito quando os deuses (imortais) as vecircemrdquo 248 Traduzimos a palavra πορφυρέοωσι por ldquonegrasrdquo Literalmente essa palavra significa ldquoescuras da cor das sombrasrdquo 249 A palavra άλmicroη pode significar tanto a aacutegua do mar como a espuma das aacuteguas do mar Na ediccedilatildeo do Loeb Classical Library foi traduzida por foam (espuma) 250 ldquoO brilhante filho de Hipeacuterionrdquo significa pois o ldquoSolrdquo (Heacutelio) 251 ldquoAteacute querdquo indica um termo relacionado ao tempo que o precede e ao qual daacute continuidade No texto grego o autor enfatiza a accedilatildeo precedente colocando δρόν χρόνο είσότε ou seja ldquode longa duraccedilatildeo ateacute querdquo 252 Aqui a palavra usada referindo-se a Atena e designando a moccedila a virgem eacute a palavra ϊούρη e natildeo αρθένον Isso encaminha para uma reflexatildeo em relaccedilatildeo agrave escolha dos vocaacutebulos 253 No original grego o termo Palas Atena estaacute no verso 16 Na traduccedilatildeo transferimo-lo para o verso 15 por motivo de coerecircncia textual

129

XXIV ΣΙΣ ΕΣΤΙΑΝ

Έστiacuteη ητε ανακτος Άπό λλωνος εκάτοιο Πυθοicirc εν ήγαθέ η ίερograveν δόmicroον άmicro φι πο λεύεις αigraveεigrave σων πλοκάmicroων ά ποίλείβεται ύγρograveν ε λαιον ερχεο τόνδ άνα οίκον εν ερχεο θυmicroograveν εχουσα συν ∆ιigrave microητιόεντί χάριν δ άmicro ο πασσον άοιδ η 5

PARA HEacuteSTIA Heacutestia que ao deus254 Apolo que atira ao longe no divino Piacuteton serve na casa sacra255 sempre das mechas256 puras cai257 o oacuteleo uacutemido vem para esta casa vem tendo um coraccedilatildeo258 com Zeus que eacute saacutebio E concede graccedila ao canto2595

254 αυακτος significa ldquomestre cheferdquo principalmente em se tratando de Apolo Junto de εκάτοιο no mesmo verso ldquoo deus que atira ao longerdquo reforccedila o epiacuteteto que se usa para designar Apolo 255 ίερόν refere-se a δόmicroον Daiacute significar casa sagrada forte poderosa Usamos a traduccedilatildeo sacra por razotildees meacutetricas sem qualquer conotaccedilatildeo com que a palavra santa possa vir a ter dentro de uma visatildeo cristatilde 256 A palavra πλοκάmicroων quer dizer lsquomechasrsquo referindo-se a lsquomechas de cabelorsquo 257 O verbo άπολείβεται significa ldquodeixar cair gota a gotardquo quando se faz uma libaccedilatildeo Assim o verso 3 significa exatamente ldquosempre das mechas de cabelo intactas deixa cair gota a gota o oacuteleo uacutemidordquo 258 O vocaacutebulo θυmicroόν em uma significaccedilatildeo bem ampla ldquocoraccedilatildeo mente princiacutepio de vidardquo enfim relaciona-se ao que diz respeito agrave inteligecircncia e agrave vontade ao poder e ao desejo 259 Nesse verso (v 5) haacute tambeacutem ao palavra αmicroα que omitimos na traduccedilatildeo Essa palavra daacute a ideacuteia de simultaneidade Seria como se dissesse ldquoE ao mesmo tempo concede graccedila ao cantordquo Nesse caso estaria se referindo agraves accedilotildeesrsquo vir para casa unida a Zeus e dar graccedila ao cantorsquo

130

XXIX ΕΙΣ ΕΧΤΙΑΝ

Έστίη ή πάντων εν δώmicroασιν ύψηλοicircσιν αθανάτων τε θέων χαmicroαigrave ερχοmicroένων τ άνθρώττων εδρην άίδιον έλαχες πρεσβηίδα τιmicroήν καλograveν έχουσα γέρας καigrave τίmicroιον ου γαρ άτερ σου ειλαπίναι θνητοicircσιν iacuteν ου πρώτη πυmicroάτη τε 5 Έιστίη αρχόmicroενος σπενδει microελιηδέα οίνον καigrave συ microοι Άργει φόντα ∆ιος καigrave Μαιάδος υiέ αγγελε των microακάρων χρυσoacuteρραπι δωτορ εάων λαος ων επάρηγε συν αίδοίη τε φίλη τε ναίετε δώmicroατα καλά φίλα φρεσigraveν άλληλοισιν εiacuteδότες άmicro φότεροι γαρ επiχθονίων ανθρώπων 11 εiacuteδότες ερηmicroατα καλα νόω θ εσπεσθε καigrave ήβη Χαicircρε Κρόνου θύηατερ συ τε καigrave χρυσόρραπiς Έρmicroής αύτάρ εγών υmicroεων τε καigrave αλλης microνήσοmicro άοιδής

PARA HEacuteSTIA

Heacutestia que nas casas elevadas de todos 1 de deuses imortais e homens que vecircm agrave Terra260 recebeste um lugar eterno e honra digna tens bom privileacutegio e estima261 Pois sem ti natildeo haacute festim262 para os mortais se em primeiro e em uacuteltimo 5 quem vem natildeo263 oferece264 a Heacutestia o vinho doce Tu matador de Argo265 filho de Zeus e Maia266 nuacutencio dos deuses267 com bastatildeo268 doador de bens sendo do povo269 ajude-o com a nobre e querida Habitem a gloriosa casa cara a ambos270 10 que conheceis bem Pois ambos entre os terrestres sabeis as obras nobres da271 mente e da forccedila Oh filha de Cronos e tu Hermes do bastatildeo Pois me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

260 Eacute interessante perceber a construccedilatildeo desse verso O autor estabelece o contraste entre ldquodeuses imortaisrdquo ( άθανάτων θεών ) e os ldquohomens mortaisrdquo referindo-se a eles como ldquoos homens que vecircm agrave Terrardquo ( χαmicroαί έρχοmicroένων άνθρώπων ) mostrando a ideacuteia de transitoriedade no ato de vir e natildeo de qualificaacute-los como terrestres 261 A palavra grega τίmicroιον significa que a deusa tinha uma consideraccedilatildeo uma estima puacuteblica De fato Heacutestia se fazia representar em todas as casas na ldquolareira sagradardquo 262 ειλιπίναι significa banquetear celebrar um festim apoacutes um sacrifiacutecio Para fins de traduccedilatildeo usamos a expressatildeo ldquohaver um festimrdquo que corresponde a ldquobanquetearrdquo 263 A negativa ού (natildeo) encontra-se no verso 5 antes de πρώτη Poreacutem por motivo sintaacutetico transferiu-se a negativa para o verso 6 antes do verbo 264 O verbo σπενδει significa ldquooferecer fazendo uma libaccedilatildeordquo Portanto em um ritual a Heacutestia devia-se fazer em primeiro lugar e em uacuteltimo uma libaccedilatildeo de vinho agrave deusa Se isso natildeo fosse feito a pessoa natildeo podia participar da oferenda de sacrifiacutecio 265 Segundo o dicionaacuterio BAILLY p 259 o epiacuteteto ργειφόντα refere-se a Hermes ldquoo matador de Argosrdquo e eacute de origem desconhecida Haacute uma lenda que atribui a Hermes o fato de ter matado Argo (conhecido como Argos na forma latinizada) possuidor de uma forccedila espantosa e que tinha soacute um olho Em outras lendas ele possui uma multiplicidade de olhos Hermes matou Argo a pedido de Zeus segundo a lenda Haacute tambeacutem variaccedilotildees sobre como ele o matou 266 Natildeo se traduziram todas as palavras do verso 7 Foram suprimidos a conjunccedilatildeo e (καί ) iniciando o verso bem como a expressatildeo para mim (microοι) o que jaacute implica uma alteraccedilatildeo morfoloacutegica sintaacutetica e cultural na interpretaccedilatildeo de nossa traduccedilatildeo 267 No texto grego encontra-se a palavra microακάρων que significa honradosdaiacute sagrados Por isso refer-se aos deuses em oposiccedilatildeo aos homens 268 A palavra χρυσόρραπι tem o sentido de ldquobastatildeo de ourordquo e eacute usado referindo-se ao bastatildeo que Hermes carregava Diz a lenda que Hermes inventou a flauta e Apolo ficou tatildeo encantado com o instrumento musical que ofereceu seu cajado de ouro a Hermes em troca da flauta Daiacute para a frente Herme sempre carregou o bastatildeo de ouro 269 Decidimos traduzir λαος ών como lsquosendo do povordquo isto eacute junto com Heacutestia faziam parte de todas as casas e da cidade e eacute como se fizessem parte desse contexto humano Vimos outra traduccedilotildees como a de uma traduccedilatildeo de Vernant para o inglecircs em que se encontra ldquobe goodrdquo e Evelyn-White da Loeb Classical Library traduz por ldquobe favourablerdquo No entanto em nosso entendimento o verbo ών estaacute no particiacutepio presente daiacute ldquosendordquo Tambeacutem natildeo encontramos palavra que pudesse significar ou ldquobomrdquo ou ldquofavoraacutevelrdquo Tem-se pois nossa interpretaccedilatildeo na traduccedilatildeo desse verso 270 A palavra φρεσίν coraccedilotildees estaacute relacionada a ambos αλλήλοιειν referindo-se a Heacutestia e a Hermes Portanto a ldquoambos unidos no coraccedilatildeo na amizaderdquo 271 Em grego eacute usado o dativo nas palavras mante νόω e forccedila ήβη significando que eles Heacutestia e Hermes conhecem os trabalhos dos homens atraveacutes da inteligecircncia deles e atraveacutes da forccedila deles Eacute pois um instrumental Portanto a traduccedilatildeo para o portuguecircs natildeo implica que em grego eacute usado o caso genitivo

Page 4: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao

v

Inspirada em Afrodite

dedico esterdquo ergonrdquo agrave minha genealogia

a meus pais Nair e Alfredo

que me colocaram na cena do mundo

e a meus filhos Fabiana e Marcelo

descendentes da linhagem familiar

vii

AGRADECIMENTOS

ldquoO meu gesto de agradecimento envolve mais do que os nomes citados revela os abraccedilos que me ampararamrdquo

Agradeccedilo

Ao professor Dr Joaquim Brasil Fontes meu orientador pela confianccedila que depositou em meu trabalho e pela partilha de seu conhecimento

Aos professores Drs Norma Sandra de Almeida Ferreira Siacutelvio Donizetti Gallo Maria

Inecircs Ghillardi-Lucena Ana Helena Cizotto Belline que contribuiacuteram com sua presenccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo da Banca e na leitura do texto

Agraves professoras Dras Elisa Angotti Kossovitch Liacutelian Martins da Silva e Letiacutecia Canedo

pelo incentivo e participaccedilatildeo na minha pesquisa Ao Dr Mauro Bilharinho Naves por seu apoio incansaacutevel e pelos diaacutelogos

esclarecedores sobre a mitologia grega Agrave amiga professora Linda Bishop da Silveira por suas leituras atentas do texto e das

traduccedilotildees em inglecircs Ao Pe Paulinho (Paulo Roberto Rodrigues) pelas suas orientaccedilotildees fundamentais no

campo da teologia A Michelle Risso por sua paciecircncia e alegria nos nossos ldquoencontros em gregordquo A ldquoFlavinha Felizrdquo por suas constantes formataccedilotildees no texto que eu sempre

ldquodesformatavardquo Aos funcionaacuterios da Secretaria Nadir Rita Antonio Carlos Gisleine Cleo pelo

atendimento soliacutecito e pelas indicaccedilotildees constantes e ao Ademiacutelson da Informaacutetica pela digitaccedilatildeo perfeita dos textos em grego

Ao grupo de pesquisa do GEPEDISC que me acolheu com simpatia Aos colegas de curso que direta ou indiretamente participaram do meu percurso

acadecircmico

ix

RESUMO

O objetivo deste estudo as deusas gregas virgens Aacutertemis Atena e Heacutestia eacute demarcar a

existecircncia e a significaccedilatildeo especial dessas deusas no mundo arcaico grego frente agrave posiccedilatildeo

ocupada por Afrodite como representaccedilatildeo do desejo O sistema miacutetico prevecirc a questatildeo do desejo

articulada ao lsquopoderrsquo conforme evidenciam as reflexotildees feitas a partir do corpus selecionado as

obras de Homero de Hesiacuteodo e os Hinos Homeacutericos referentes agraves deusas virgens e a Afrodite A

metodologia que orienta esta pesquisa segue uma linha antropoloacutegica comparativa incluindo

autores como Geertz e Detienne com enfoque no uso e na significaccedilatildeo da linguagem da

produccedilatildeo escrita dos rapsodos gregos O conceito de virgindade eacute direcionado pelo conceito de

desejo e parece necessaacuterio que se considerem as propriedades e os atributos de Afrodite para

definir as deusas gregas virgens que fruem ldquode um outro modo de desejo e de poderrdquo Esse

aspecto nos faz refletir sobre uma sociedade patriarcal e as formas de independecircncia feminina

como instacircncia de compromisso soacutecio-poliacutetico bem como sobre a manutenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

herdada da grande matildee (Magna Mater) e das Amazonas Uma possiacutevel indicaccedilatildeo a partir desses

dados eacute que o Cristianismo procurou dar continuidade a esse aspecto de gecircnero que promove a

civilizaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo da sociedade atraveacutes da figura da lsquomadrersquo como elemento de

significaccedilatildeo cultural

Palavras-chave Deusas gregas virgens Afrodite desejo poder sociedade patriarcal

civilizaccedilatildeo

xi

ABSTRACT

The aim of this study which focuses on the Virgin Greek goddesses Artemis Athene and

Hestia is to stress the existence and the special meaning of those goddesses in the archaic Greek

world compared with Aphroditersquos position as a representative of lsquodesirersquo The mythical system

comprises the matter of desire linked to the meaning of ldquopowerrdquo according to the evidence of

reflections made from the corpus selected Homerrsquos and Hesiodrsquos works and the Homeric Hymns

referring to the virgin goddesses and Aphrodite The methodology that orients this paper follows

authors such as Geertz and Detienne focusing on the use and meaning of the language in the

written production of the Greek rapsodes The concept of virginity is directed by the concept of

desire and it is necessary to consider Aphroditersquos properties and attributes to define the virgin

Greek goddesses who have another form of desire and power That aspect brings up

considerations on a patriarchal society and ways of feminine independence as a means of social-

political commitment as well as on the maintenance of a tradition inherited from the Great

Mother and the Amazons One possible direction arising from the above facts is that Christianity

tried to give sequence to this aspect of gender which promotes civilization and the organization

of society by way of the lsquomater figurersquo as an element of cultural significance

Key words Virgin Greek goddesses Aphrodite desire power patriarchal society civilization

xiii

SUMAacuteRIO

Dedicatoacuteria v

Agradecimentos vii

Resumo ix

Abstract xi

1- Introduccedilatildeo 1 2 - Encruzando Aspectos do Cosmo Natureza Deuses e Homens 5

21 - Fragmentos do Uno 5 22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees 10

3 - A questatildeo metodoloacutegica um olhar sobre a pesquisa bibliograacutefica 17 4 - O que eacute traduzir lsquoHomerorsquo e os rapsodos gregos Tentativas e riscos 43 5 - Que deusas satildeo essas 49

51 - Afrodite e a representaccedilatildeo do desejo 49 52 - Aacutertemis a liberdade e a virgindade 64 53 - Atena a deusa virgem da sabedoria e da guerra 71 54 - Heacutestia e a castidade 76

6 - A questatildeo da virgindade e as deusas virgens 85

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo 85 62 - O caraacuteter da virgindade no Cristianismo 96

7 - Conclusatildeo Ou indicaccedilatildeo de suposiccedilotildees 105 Referecircncias 115 Bibliografia 119 Anexos 121

Anexo A - Hinos Homeacutericos a Afrodite 121 Anexo B - Hinos Homeacutericos a Deusas virgens 125

1

1 ndash INTRODUCcedilAtildeO

ldquoOutros jaacute passaram por esta Senda por isso a novidade de tudo o que eu digo de novo estaacute na forccedila da repeticcedilatildeordquo1

Na condiccedilatildeo de professora de liacutenguas estamos sempre investigando o uso das palavras no

discurso como elas se articulam como elas se estabelecem como elas se traduzem como elas

ldquofingemrdquo ser contidas em supostas definiccedilotildees enfim estamos sempre atravessando o corredor

estreito das significaccedilotildees e das compreensotildees

Como se isso natildeo bastasse as palavras nos levam aos seus percursos ao longo dos

tempos agraves vezes revelando e agraves vezes ocultando estaacutegios de transformaccedilotildees por que passaram

Assim a palavra por si soacute jaacute nos coloca diante de uma rede que envolve sua histoacuteria sua

etimologia sua categoria sua funccedilatildeo E foi a palavra com todo esse contexto maacutegico que nos

cativou

Comeccedilamos perseguindo o conceito de virgindade na Greacutecia de Homero e de Hesiacuteodo e

nos deparamos com um entrelaccedilamento de fatos de conceitos de outras palavras de traduccedilotildees

de um mundo que todas as vezes que pensaacutevamos alcanccedilaacute-lo distanciava-se mais e fazia com

que tambeacutem a nossa pesquisa virasse uma lenda miacutetica em que os deuses superavam em muito o

trabalho humano que empreendiacuteamos

Mas nada ocorre por acaso A nossa iniciativa de trilhar a palavra nesse mundo numinoso

teve uma ponta de lembranccedila e de afeto no encontro com um grande mestre e amigo de tempos

tambeacutem passados Fizemos nosso o seu desafio e desta forma nasceu o nosso objeto de estudo

Fomos tomados pela curiosidade e pelo interesse quando o scholar o helenista professor Dr

Joaquim Brasil Fontes instigou-nos a pensar nas deusas gregas virgens carregadas de valores

de funccedilotildees de lendas que ainda fazem parte de nosso cotidiano e cujas raiacutezes estatildeo atreladas a

um tempo do qual natildeo se desvinculam apesar das transformaccedilotildees e dos ajustes por que vatildeo se

atualizando amoldando-se a novos perfis a novos modus vivendi transpondo espaccedilos

geograacuteficos e culturais atravessando filosofias e marcando a histoacuteria

1 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p 9

2

Tentamos diante do impacto da tarefa pensar como nesse grande eixo assinalado de

homens mortais a presenccedila de Deusdeuses afeta e determina a dimensatildeo humana Pensamos

tambeacutem na nossa experiecircncia de vida marcada por cultos e rituais apesar de todo o progresso da

ciecircncia e da tecnologia

Nossas salas de aulas - tambeacutem elas - se revestem de ritos como cenaacuterio para o estudo de

hipoacuteteses de buscas de discussotildees de valores de sustento do que se acredita ter a forccedila da

verdade E o que seria o entendimento de verdade em um momento teria feiccedilotildees e propostas

diferentes em outras culturas em outros tempos o que mostra que o estatuto de uma suposta

verdade se transfigura e tem um movimento flexiacutevel contiacutenuo propondo novas direccedilotildees e

determinando novos olhares

Nessa atmosfera de consideraccedilotildees foi colocada a questatildeo que encaminhou nossa busca

por princiacutepios que se prendem ao mundo grego - que tem sido objeto de tanto estudo - do qual

herdamos concepccedilotildees de vida e de arte de misteacuterio e de sagrado de sobrenatural e de mundano

se possiacutevel eacute destacar e separar esses princiacutepios norteadores do humano Por que teriam as deusas

gregas Heacutestia Palas Atena e Aacutertemis resistido ao casamento O que as teria movido para que se

mantivessem virgens Como seria entendida a eacutegide da virgindade naquela sociedade Que

mecanismo levaria a compreender os poderes dessas entidades marcadas por uma caracteriacutestica

que se opunha agraves grandes narrativas de relacionamentos de filhos gerados com uns e outros

deuses de traiccedilotildees de intrigas que envolviam deuses e deusas no grande cenaacuterio do mundo dos

homens gregos O que fundamenta a traduccedilatildeo e a compreensatildeo da palavra virgem na passagem

da liacutengua grega para a liacutenguacultura ocidental

Perguntas surgiam e determinavam outras perguntas Eram propostas investigaccedilotildees sobre

investigaccedilotildees leituras sobre leituras Hesiacuteodo e Homero foram se tornando familiares o alfabeto

grego foi se revelando real os questionamentos sobre a arte da traduccedilatildeo (seraacute uma arte) se

fizeram tambeacutem reais As deusas foram tomando forma e suas imagens se faziam presentes em

cada momento do dia atravessando a barreira do tempo e do espaccedilo Listaram-se conteuacutedos e

disciplinas que pudessem ajudar a nortear o trabalho Foram surgindo autores que comeccedilaram a

fornecer elementos para a investigaccedilatildeo Vernant Loraux Detienne Calame Parry Geertz

Freud Deleuze Lerner Buscava-se da mitologia agrave filosofia da cultura agrave psicanaacutelise do

discurso da oralidade agraves questotildees da traduccedilatildeo Natildeo que esse caminho tivesse sido inicialmente

3

planejado Ele foi surgindo como consequumlecircncia de necessidades em que uma busca conduz a

outra Foi se impondo como resultado de ldquoescavaccedilotildeesrdquo como dizia com humor o nosso

orientador Essa mesma procura ia fazendo que acontecessem ldquoexplosotildees de significadosrdquo e a

palavra o uso da linguagem foi se tornando cada vez mais o grande foco de nosso olhar

Dada a abrangecircncia de material e da temaacutetica do objeto que se propocircs examinar tivemos

que fazer escolhas e estabelecer limites como buacutessola indicadora de um caminho pois

correriacuteamos o risco de nos perdermos nas adjacecircncias e de natildeo chegarmos agrave estrada principal

Decidiu-se investigar o cenaacuterio que recebe os deusesdeusas gregos a mitologia (com

suas implicaccedilotildees culturais e histoacutericas) e a filosofia que os ampara Nesse estudo optou-se por

uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica que natildeo se concentrasse apenas nas estruturas caracteriacutesticas dos

fenocircmenos religiosos miacuteticos mas que buscasse a compreensatildeo do texto procurando entender a

partir do contexto histoacuterico-cultural o fenocircmeno de deusas que escolhem a virgindade como

expressatildeo de sua sexualidade (veja-se a ousadia e a impropriedade do termo na falta de outro

em relaccedilatildeo agraves deusas virgens) em um mundo arcaico Este fato provoca um discurso relevante e

significativo na histoacuteria da mitologia e atribui a Heacutestia Atena e Aacutertemis uma posiccedilatildeo especial no

cenaacuterio dos deuses e deusas

Alguns aspectos satildeo pertinentes nesse tipo de investigaccedilatildeo primeiro levar em conta a

inseparabilidade do que se atribui ao mito com os dados histoacutericos e geograacuteficos que fazem parte

da narrativa poeacutetica de Homero de Hesiacuteodo e de outros autores daquela eacutepoca e de eacutepocas

proacuteximas consequumlentemente a relevacircncia do contexto soacutecio-cultural com seus elementos

significativos Aleacutem disso natildeo se pode deixar de considerar que o conceito de mito prevecirc nas

tentativas de defini-lo consideraccedilotildees que hoje se colocam como religiatildeo justamente pelo fato de

representarem o contexto soacutecio-histoacuterico ao qual nos referimos Desta forma a natureza os

deuses os homens o sagrado o profano o mortal o imortal faziam parte de uma mesma

temaacutetica organizando-se e reorganizando-se de acordo com os valores e os niacuteveis sociais das

comunidades gregas

Reflexotildees sobre essas questotildees que compotildeem o objeto de nosso estudo satildeo feitas em um

capiacutetulo como forma de um esclarecimento do assunto e como direccedilatildeo para encaminhamento e

aprofundamento em outro momento que se fizer oportuno

4

Eacute preciso poreacutem que fique claro que o objetivo de uma pesquisa como esta natildeo eacute dar

respostas definitivas mas antes levantar hipoacuteteses Como jaacute bem colocou Sartre ldquoEacute proacuteprio de

uma pesquisa ser indefinida Nomear e defini-la eacute fechar o ciclo o que restardquo2

Assim seratildeo propostas questotildees investigativas em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees miacuteticas que

envolvem o feminino no mundo arcaico grego Enfocar as trecircs deusas virgens na sua

independecircncia e na sua recusa agrave submissatildeo masculina aos laccedilos do casamento agrave fecundaccedilatildeo e

principalmente agrave entrega do desejo agrave philia a eros ou seja a Aphrodite pressupotildee uma

compreensatildeo da virgindade grega em uma sociedade patriarcal

A posiccedilatildeo de Aacutertemis Atena e Heacutestia em relaccedilatildeo a Afrodite revela um emparelhamento e

prevecirc variaccedilotildees de traccedilos que determinam o feminino em um espaccedilo soacutecio-cultural em que se

movem deuses heroacuteis e homens mortais Estabelece-se aiacute a virgindade como uma forma de Ser

como um paradigma (embora o termo possa parecer estruturalista) representativo do domiacutenio

social

Estatildeo pois colocadas no mundo grego arcaico a valorizaccedilatildeo do feminino e as diferentes

formas de atuar frente ao Kosmo quer seja nas manifestaccedilotildees da astuacutecia e da inteligecircncia quer

seja nas questotildees do olhar e dos rituais quer seja no acircmbito do desejo e da interdiccedilatildeo

As deusas gregas virgens fazem parte da conjugaccedilatildeo do imenso tabuleiro que a epopeacuteia

grega fez conhecer contandocantando

2 SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967

5

2 - ENCRUZANDO ASPECTOS DO COSMO NATUREZA DEUSES E HOMENS

ldquo O divino que nos poemas homeacutericos se apresenta com tanta clareza eacute multiforme e contudo sempre idecircntico a si mesmo por toda a parte Exprime-se em todas as suas formas um espiacuterito excelso um destino elevado Natildeo querem os referidos poemas aportar uma revelaccedilatildeo religiosa ou propor uma doutrina sobre os deuses Soacute querem visualizar e formar no gozo da visatildeo assim em face deles se expotildee o reino inteiro do mundo terra e ceacuteu aacutegua e ar aacutervores bichos homens e deusesrdquo3

21 - Fragmentos do ldquoUnordquo

Apesar de o estudo que se empreendeu ter como foco a questatildeo da virgindade de trecircs

deusas Heacutestia Aacutertemis e Atena percebe-se que esse elo comum que as une em um mesmo

aspecto tambeacutem determina caracteriacutesticas individuais diferentes o que as coloca em posiccedilotildees

que destacam suas funccedilotildees e participaccedilatildeo na vida do homem grego Assim nessa trajetoacuteria que

se percorreu evidenciou-se que a virgindade pode estar relacionada a diferentes fatores quer

sejam eles sociais culturais histoacutericos poliacuteticos ou mesmo individuais Essa referecircncia jaacute

destaca a questatildeo do conceito a questatildeo do amor e do desejo a questatildeo do nefando e do

inefaacutevel a questatildeo do casamento e da ligaccedilatildeo sexual a questatildeo do masculino e do feminino

enfim a questatildeo do corpo do olhar e do poder

O primeiro aspecto que nos trouxe embaraccedilo foi quando se propocircs separar algumas

partes em capiacutetulos Notou-se que os conceitos se enredavam todos permeando a vida dos

deuses dos homens sem deixar de ter a natureza colocada lado a lado nesse complexo

organizacional aparentemente inseparaacutevel Confirmando essa revelaccedilatildeo a obra de autores como

Homero Hesiacuteodo e autorescantores (chamados homeacuteridas que se diziam descendentes de

Homero) que cantavam os poemas de seu suposto antepassado que se constituiu corpus do

trabalho entrecruzavam os imortais os mortais e a natureza no mesmo espaccedilo coacutesmico

Essa aparente unidade coacutesmica possibilitou para alguns filoacutesofos interpretaccedilotildees de uma

unidade do mito como a que apresenta Torrano (1996) quando se reporta agrave ldquodescriccedilatildeo geral

desta ontologia iacutensita no mito do mundordquo

3 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p 12

6

Em liacutengua grega nos versos de Homero e de Hesiacuteodo em que ldquoconsubstancia-se a

necessaacuteria unidade de ilatecircncia de mito de culto e de cantordquo4 Assim os mortais ldquotranseuntes

do mundordquo satildeo interpelados pelos deuses isto eacute pelo proacuteprio mundo

Essa colocaccedilatildeo de deuses com uma posiccedilatildeo fundada na imortalidade distingue-os dos

homens na sua mortalidade e os posiciona como formas eternas do mundo Isso jaacute reflete que de

algum modo deuses e homens situam-se ainda que no mesmo cosmo em planos diferentes Os

homens se vecircem interpelados no dizer de Torrano por algo que os ldquoultrapassardquo e eacute justamente

essa energia coacutesmica que daacute ao homem sua substacircncia e que o coloca em movimento para que

sua natureza no mundo ganhe significaccedilatildeo ao mesmo tempo em que o mundo tambeacutem adquire

sentido Nesse movimento de matildeo dupla o homem descobre a sua existecircncia no mundo e o

mundo eacute o princiacutepio constitutivo originaacuterio da forccedila vital infinita e inexauriacutevel Para melhor

entender citamos Torrano

O eterno eacute pensado nesse movimento em que se unem identidade e alteridade nessa unidade vive o ser dos Deuses eles satildeo os que vivem para sempre e de uma soacute vez essa infinitude inexauriacutevel de vezes5

Portanto mesmo em se ressaltando a ideacuteia de unidade o que implica uma visatildeo

estruturalista sobressai um aspecto essencial em nosso entendimento o significado do Cosmo soacute

pode adquirir sentido a partir de um cruzamento Eacute na convergecircncia de deuses e de homens de

imortais e de mortais de eternos e de transeuntes de planos pois diferenciados se natildeo na sua

origem pelo menos nas suas formas existenciais que reside o discernimento complexo do divino

e do humano

Mais ainda a palavra grega cosmo Ќόσmicroος remete agrave definiccedilatildeo de um orderly or

harmonious system6 isto quer dizer que cosmos eacute a antiacutetese de Caos por representar uma

organizaccedilatildeo ordenada harmoniosa Aleacutem desse significado a que se ateve nas deduccedilotildees

apresentadas ateacute aqui haacute ainda o registro de que Cosmo significa ldquoornamentosrdquo

4 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 p 11 5 TORRANO JAA idem p19 6 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008

7

A palavra Ќόσmicroον eacute usada por Homero com essa conotaccedilatildeo (ornamentos) no canto XIV

da Iliacuteada verso 187 O mesmo sistema que organiza ornamenta Entatildeo poderiacuteamos questionar

em um arroubo de ousadia se a virgindade dentro desse sistema organizado seria uma forma de

ornamento que qualifica as deusas virgens como um atributo especial Seria o epiacuteteto ldquovirgemrdquo

um efeito esteacutetico dessa revelaccedilatildeo que indica um modo de harmonia Ficam aiacute questionamentos

para tambeacutem eles se enredarem nesse complexo mundocosmo grego De qualquer modo esse

epiacuteteto direcionado a Heacutestia Aacutertemis e Atena revela o uso de uma teacutecnica mnemocircnica

relacionada a algum aspecto significativo da ordem coacutesmica no enfoque das atribuiccedilotildees dessas

deusas A repeticcedilatildeo das palavras parthenos e koreacute referentes a elas mereceu reflexotildees que estatildeo

encaminhadas ao longo deste trabalho

Repensando pois o assunto da virgindade viu-se que se estava diante de um conflito

deleuziano criar um conceito nesse espaccedilo ldquohabitadordquo por deuses e homens Ainda reportando-

se a Deleuze e Guattari7 descobriu-se que pelo menos por esse vieacutes (que segundo os autores

natildeo deve ser considerado metodoloacutegico) seguia-se a trilha certa pois que Deleuze e Gattari em

se tratando de definir o conceito ressaltam o fato de que cada um remete a outros conceitos e

que seus componentes por sua vez podem ser entendidos como outros conceitos Foi

exatamente essa inseparabilidade de vaacuterios aspectos relacionados a esse remeter histoacuterico de

outros conceitos que ocorreu enquanto se procurava realizar um exame da virgindade evocada

por Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena

Deleuze e Guattari apontam para um ponto primordial da investigaccedilatildeo no que diz

respeito a essas vibraccedilotildees e encruzamentos de conceitos (em onde nos inspiramos para o tiacutetulo

dessa primeira parte - se assim se pode considerar -) que eacute a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da

incompletude com que se depara frente a uma tarefa desse porte Como determinar com umas

poucas palavras juntadas formando uma proposiccedilatildeo - que faz parte das ciecircncias - como definir a

virgindade como um traccedilo uacutenico de deusas distintas Essa posiccedilatildeo deleuziana esteve presente em

todas as nossas consideraccedilotildees em momentos que apresentavam divergecircncias e que

encaminhavam para um discurso polissecircmico marcado por diferentes vozes Procurou-se ter

sempre presente a fala de Deleuze e Guattari

7 DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed341997

8

Os conceitos como totalidades fragmentaacuterias natildeo satildeo sequer os pedaccedilos de um quebra-cabeccedila pois seus contornos irregulares natildeo se correspondem Eles formam um muro mas eacute um muro de pedras secas e se tudo eacute tomado conjuntamente eacute por caminhos divergentes8

Chegou-se entatildeo a uma postura ora se se estaacute examinando a obra de poetas eacute a partir

de suas colocaccedilotildees que a arte tira perceptos e afectos o que exige dizer que se trabalhou com

criaccedilotildees com deduccedilotildees com interpretaccedilotildees baseadas em um contexto - rdquoponte moacutevelrdquo - e natildeo

com verdades loacutegicas e cientiacuteficas Deixamos as verdades conclusivas para o domiacutenio da ciecircncia

e da filosofia se for o caso Fica-se com as hipoacuteteses e com as conjeturas a partir do discurso

literaacuterio Fica-se com as narrativas miacuteticas que se prendem a questotildees histoacuterico-sociais

reveladoras de sentido fica-se com a manifestaccedilatildeo do poder social que direciona o discurso da

sociedade que tinha na sua Teogonia o relato das origens do mundo mas que eacute muito mais

revelador do que apresenta ser quando comparado aos relatos miacuteticos dos hititas e dos feniacutecios e

com as teogonias da Babilocircnia9

A questatildeo da verdade se entendida no domiacutenio do homem grego aleacutetheia diz Torrano

reportando-se a Heidegger e a Detienne seraacute ldquoilatecircnciardquo o que marca a presenccedila pois natildeo pode

ser ocultado Desta forma se assim entendido no movimento de serem virgens que as deusas

Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena se constituem como aquilo que aparece e marca uma verdade A

virgindade entendida pois como o traccedilo mais caracteriacutestico dessas deusas

No desvelar-se das formas divinas impera ilatecircncia como fundaccedilatildeo da presenccedila e dos vaacuterios modos de latecircncia e de aparecircncia10

Os deuses satildeo as formas miacuteticas que constituem os elementos que justificam a presenccedila

do homem no cosmo poreacutem estudar a mitologia grega eacute acima de tudo mexer na memoacuteria

social de um povo tentando captar a essecircncia das narrativas que apresentam o divino e o humano

lado a lado ora aproximando-os e fundindo-os ora distanciando-os e ressaltando uma paixatildeo ou

um sentimento que evidencie o sagrado pela marca desta ou daquela estranheza que chega a

tocar o fantaacutestico De qualquer forma caminham lado a lado homens e deuses o real e o

imaginaacuterio entrelaccedilando-se na vida ciacutevica e na vida religiosa

8 DELEUZE Gilles e GUATARI Feacutelix Idem p 35 9 A respeito das Teogonias verificar Marcel Detienne e JP Vernant 10 TORRANO JAA op cit p 18

9

Como bem definiu Vernant eacute impossiacutevel separar de qualquer estudo que examine

aspectos do mundo grego ldquoaquilo a que se chamaria de bom grado o estilo religioso gregordquo11

A referecircncia a essa posiccedilatildeo faz-se necessaacuteria para se entender o mundo grego com todas

as suas caracteriacutesticas filosoacutefico-culturais pois que direciona o olhar para uma eacutepoca em que o

politeiacutesmo natildeo implicava a onipotecircncia e a transcendecircncia como se entende no estatuto da

religiatildeo cristatilde Pelo contraacuterio os deuses gregos foram criados com o mundo e complementam-se

nas suas funccedilotildees e na sua multiplicidade Os deuses gregos fazem parte da gecircnese do mundo e

para Vernant satildeo antes considerados Potecircncias - natildeo apenas formas - e portanto tecircm aspectos

mundanos e divinos pois pertencem agrave organizaccedilatildeo do universo e agrave vida social dos homens

Acreditamos que essa posiccedilatildeo tambeacutem enfatiza a questatildeo do impulso da ilatecircncia a que se

atribui aos deuses na visatildeo fundamentalista A palavra potecircncia natildeo se refere simplesmente a

poder e a forccedila aplicada para a realizaccedilatildeo de um efeito mas tambeacutem um elemento gerador de um

impulso de uma energia organizando o espaccedilo (Kosmos) enquanto se define a presenccedila do

homem na terra

As ciecircncias humanas e a filosofia acabaram por criar uma ruptura com o pensamento

antigo na medida em que tentaram racionalizar e demonstrar a concepccedilatildeo de mundo da

Antiguidade Como esse natildeo eacute o foco de nosso objeto de estudo deu-se ecircnfase ao dizer

invocativo que a poesia de Homero de Hesiacuteodo e de outros rapsodos revela Como declara

Chacirctelet12 eacute essa concepccedilatildeo de mundo arcaico que marcaraacute uma tradiccedilatildeo essencialmente

diferente da tradiccedilatildeo que mais tarde as filosofias da Idade Medieval e da Idade Moderna teratildeo

de se haver no que diz respeito agrave organizaccedilatildeo religiosa ligada agrave revelaccedilatildeo cristatilde e agrave ordem

soacutecio-econocircmico-poliacutetica A natureza agrave qual os aedos se referem nada tem a ver com os siacutembolos

que a Idade Meacutedia se ldquoimporaacute decifrar nem com o sistema de equaccedilotildees e de maacutequinas que o

pensamento moderno iraacute proporrdquo 13

O que parece fundamental eacute tentar entender o pensamento da eacutepoca arcaica que expressa

a relaccedilatildeo do indiviacuteduo com tudo que o circunda

11 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p11 12 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 13 CHAcircTELET Franccedilois Idem p14

10

seu imaginaacuterio e seus deuses seus concidadatildeos e seus familiares as coisas que o fazem sofrer e as de que frui seu proacuteprio pensamento e os objetivos que lhe estabelecem14

Eacute exatamente com base nessa concepccedilatildeo de mundo que se eacute tentado a estabelecer o uno

como condiccedilatildeo essencial da Antiguidade Poreacutem como demonstram Deleuze e Guattari e como

questiona Chacirctelet a ideacuteia de aceitar uma concepccedilatildeo de mundo fechada sobre si mesmo eacute

tentadora poreacutem a Filosofia natildeo conseguiu elaborar uma linha uacutenica que possa conceituar ou

traccedilar um perfil fechado desse tempo Sobre isso diz Chacirctelet

Uns o tomaratildeo por ldquoperiacuteodo originaacuteriordquo inscrevendo sua marca indeleacutevel na ordem do espiacuterito outros progressistas agrave sua maneira veratildeo aiacute uma primeira etapa edificante na elaboraccedilatildeo do saber outros enfim ldquoregressistasrdquo a compreenderatildeo como marca de um passado que por natureza deve estar indefinidamente perdido15

Eacute nessa etapa da produccedilatildeo escrita ndash que podemos chamar de primeira ndash que nos detemos

nas aventuras de deuses e de heroacuteis na louvaccedilatildeo de entidades divinas na origem da organizaccedilatildeo

do cosmo Enfim no que se considera caracteriacutestico daquele periacuteodo a poesia eacutepica

Nesse campo que movimenta linguagem e cultura procuramos perseguir o conceito de

virgindade na representaccedilatildeo das deusas consideradas virgens sem fragmentaacute-las sem retiraacute-las

do panteatildeo grego mas concebendo-as como peccedilas do jogo de palavras que se vai compondo em

relaccedilatildeo aos outros deuses e deusas e em relaccedilatildeo ao desejo e agraves questotildees de gecircnero que perpassam

o humano desde o iniacutecio de sua origem escrita Portanto seraacute que desejo e poder se opotildeem agrave

virgindade ou fazem parte desse mesmo cosmo uno Fica aiacute mais uma pergunta

22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees

Eacute a partir da narrativa da criaccedilatildeo do mundo que se encontra a primeira referecircncia ao amor

e agrave fecundidade Assim sendo pode-se dizer que a virgindade estaacute subentendida nesse

mecanismo de misteacuterio e de forccedila que determina a procriaccedilatildeo Tanto em Homero quanto em

Hesiacuteodo encontram-se relatos narrativos da criaccedilatildeo do mundo Embora apresentem

interpretaccedilotildees diferentes a noccedilatildeo de fertilidade e de divindade feminina fecundada estaacute presente

nos conteuacutedos referentes a essas narrativas de tradiccedilatildeo mitoloacutegica dos deuses primordiais

14 CHAcircTELET Franccedilois Op cit p14 15 Idem

11

Na Iliacuteada XIV v 197 e seguintes no momento em que Hera estaacute dialogando com

Afrodite ela lhe fala de Oceano o pai de todos os deuses e da matildee primordial Teacutetis que a

acolheram e a nutriram e que naquele momento de discoacuterdia entre eles ela gostaria de ajudar

com o propoacutesito de que pusessem um fim nessa discoacuterdia reatando a afeiccedilatildeo e portanto

voltando a aproximarem-se do leito do matrimocircnio Reproduzimos a seguir um trecho da fala de

Hera a Afrodite no momento em que solicita sua ajuda Apresentamos a traduccedilatildeo de Murray

antes de examinarmos as palavras em grego de interesse para nosso estudo

ldquoGive me now love and desire wherewith thou 198 art wont to subdue all immortals and mortal men

E Hera continua referindo-se a Oceano e Teacutetishelliphelliphellip

Them am I faring to visit and will loose for them their endless strife 205 since now for a long timersquos space they hold aloof one from the other 206 from the marriage- bed and from love for that wrath hath come upon their heartshellip1617 207

Eacute interessante refletir sobre a escolha das palavras usadas por Homero nesses versos e a

significaccedilatildeo decorrente delas para nossas consideraccedilotildees sobre o universo feminino envolvendo

conceitos de virgindade de amor de desejo de fecundidade e ateacute mesmo de discoacuterdia entre os

sujeitos de gecircneros diferentes desde a narrativa da origem do mundo

Primeiramente o autor usa a palavra grega philotes (φιλότης) referindo-se ao amor

Segundo o dicionaacuterio Bailly (2000) essa palavra tem o significado de amor (amour) nesse

contexto (xiv v 198) Podemos pois inferir que eacute um tipo de amor que envolve laccedilos afetivos

ternura e amizade como seraacute posteriormente colocado pelos filoacutesofos No entanto a mesma

palavra philotes ou seja amor usada no verso 209 (ldquojoined together in loverdquo) acompanhada da

palavra όmicroωθήναι (omothenai) juntar e da palavra ευνής (euneacutes)isto eacute leito (XIV 206) tem

um significado de relaccedilatildeo iacutentima envolvendo pois uma noccedilatildeo de sexualidade

16 HOMER The Iliad v 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 17 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 ldquoDaacute-me o desejo e o feiticcedilo do amor com que sempre domaste (v 198) todos os deuses eternos e os homens de curta existecircncia (v199) vou visitaacute-los com o fim de compor-lhes antiga discoacuterdia (v 205) Haacute muito que ambos o leito apartaram desta arte se abstendo dos gratos elos do amor por se acharem inflados de coacutelerardquo (v 207)

12

Fica clara a relaccedilatildeo carnal como parte das atividades dos deuses e a questatildeo do leito

nupcial como local dos relacionamentos secretos Deuses e homens compartilhavam das mesmas

experiecircncias pois como jaacute fizemos referecircncia anteriormente viviam lado a lado O pensamento

poeacutetico tece o texto de forma tatildeo clara e objetiva que nos leva agrave investigaccedilatildeo do campo

semacircntico tais as palavras usadas para dizer de modo natildeo-velado de modo revelador e expliacutecito

o que Hera espera do compartilhamento que envolve o masculino e o feminino

Haacute vaacuterias outras passagens na Iliacuteada em que o autor se refere aos momentos de relaccedilotildees

iacutentimas entre os deuses mostrando que o desejo imeros [ιmicroερος] fazia parte do amor das

relaccedilotildees que se espera que aconteccedilam como atribuiccedilatildeo do universo de natureza divina Assim as

relaccedilotildees sexuais satildeo previsiacuteveis entre os deuses e eacute uma forma de manifestaccedilatildeo de amor entre os

gecircneros diferentes Haja vista que em sua fala Hera coloca que a discoacuterdia νειχεα entre esses

dois deuses primordiais Oceano e Teacutetis havia feito com que eles se afastassem do amor e

consequumlentemente do leito do casamento

Aleacutem disso parece que Homero como bom conhecedor da natureza humana coloca na

fala de Hera o pedido a Afrodite (deusa que subjuga os imortais e os mortais na questatildeo do amor)

de dar a Oceano e Teacutetis natildeo apenas amor mas amor e desejo pois que amor e desejo se

complementam e o desejo promove a manifestaccedilatildeo do amor quer atraveacutes dos sentimentos quer

atraveacutes dos contatos fiacutesicos como forma de expressatildeo e de representaccedilatildeo do sentimento

Eacute interessante observar que a forma Фιλοτήτος eacute usada nesses versos por Homero e que a

expressatildeo da presenccedila do desejo ou da representaccedilatildeo da sexualidade vem acompanhada de outras

palavras No entanto ainda no canto XIV Homero usa o termo ερος como no verso 315

significando entatildeo desejo

Essa variaccedilatildeo na escolha do leacutexico parece remeter a uma variaccedilatildeo semacircntica significativa

A expressatildeo ldquoamor e desejordquo ou seja philotes e imeros eacute entatildeo substituiacuteda por eros Para ερος

nesse contexto Il XIV315 Bailly apresenta a traduccedilatildeo para o francecircs passion amour [θεας

Ѓϋναιχος] correspondendo a ldquoamour pour une deacuteesse une femmerdquo18 Jaacute parece estar impliacutecita

em eros a questatildeo do desejo

18 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par SEacuteCHANT L et CHANTRAINE P Paris Hachette 2000 p 808

13

A presenccedila de Afrodite eacute evocada na combinaccedilatildeo de forccedilas que a deusa representa pois

sempre a acompanham Peithocirc a persuasatildeo alegre trapaceira e Apaacutete a ilusatildeo enganosa da

ternura O pensamento miacutetico eacute ambivalente na criaccedilatildeo de associaccedilotildees e se tece com diferentes

tons como ldquouma fita bordadardquo19

Fazemos nossas as palavras de Fontes quando ele se refere ao movimento das palavras agrave

multiplicidade de sentidos subjacentes a ela dentro do quadro cultural agrave mobilidade dos

conceitos que se enredam na tessitura do mundo miacutetico na composiccedilatildeo poeacutetica

O poema eacute com efeito como diraacute mais tarde Dioniacutesio de Halicarnasso um tecido precioso que nasce das matildeos do poeta quando ele reuacutene diversas liacutenguas numa soacute a nobre e a simples a elaborada e a natural a concisa e a extraordinaacuteria Mas o tecido de muitas cores onde os contraacuterios se misturam harmoniosamente eacute ele proacuteprio semelhante a Proteu o deus muacuteltiplo e inconstante que eacute aacutegua fogo aacutervoreleatildeo que reuacutene todas as formas numa soacute Da mesma maneira a seduccedilatildeo da palavra poeacutetica por meio dos prazeres do canto das medidas e dos ritmos eacute anaacuteloga agrave seduccedilatildeo exercida pela mulher por meio do lsquoencanto do olharrsquo (khaacuteris oacutepseoumls) pela lsquodoccedilura persuasiva da vozrsquo pela lsquoatraccedilatildeo da beleza do corpo20

Pois assim eacute que Homero e Hesiacuteodo misturaram em seus poemas deuses homens

paixotildees e desejos como pertencendo ao mesmo ceacuteu que os cobriam com voluacutepia agrave mesma aacutegua

que os inundava de espuma feacutertil agrave mesma terra que os acolhia com sua fecundidade criadora

As religiotildees de base cristatilde dessacralizaram a natureza e introduziram o modelo da

salvaccedilatildeo pessoal Em Homero ao contraacuterio a palavra tambeacutem fazia parte da phyacutesis mediando

deuses homens e natureza agrave qual tambeacutem pertencia

Assim em uma comparaccedilatildeo da postura e da feacute que move a religiatildeo grega em relaccedilatildeo agrave

religiatildeo cristatilde os gregos manifestavam uma atitude de respeito de preces de oferendas e de

sacrifiacutecios mas como parte de um empreendimento de trocas que experimentavam a partir da

adesatildeo de um costume jaacute estabelecido como suporte da proacutepria existecircncia e que por isso natildeo

precisava ser justificado Desde que havia cultos e rituais era porque eles se provaram

necessaacuterios Como seria possiacutevel conceber um deus transcendental se apenas mais tarde (por

volta do seacuteculo V aC) introduz-se o conceito de transcendecircncia com a filosofia platocircnica e o

mundo das Ideacuteias

19 Verificar sobre esse tema a obra de FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p247 20 FONTES Joaquim Brasil Idem p249

14

Para esclarecer essa questatildeo do movimento de pensamento ascensional nada melhor do

que reportar-se a Deleuze que discorrendo sobre imagens de filoacutesofos tece consideraccedilotildees sobre

o que se entende como princiacutepio filosoacutefico do meacutetodo ldquodas alturasrdquo como oposto ao sistema que

norteou o mundo fundamentalista grego Primeiro Deleuze questiona o que eacute orientar-se no

pensamento esclarecendo que cabe ao filoacutesofo efetuar uma operaccedilatildeo

Entatildeo determinada como ascensatildeo como conversatildeo isto eacute como o movimento de se voltar para o princiacutepio do alto do qual ele procede e de se determinar de se preencher e de se conhecer graccedilas a uma tal movimentaccedilatildeo21

Ora como poderiam os gregos que viveram antes de Platatildeo conseguir estabelecer um

pensamento que se vincula antes ao proacuteprio ato de pensar do que na experiecircncia da vida Essa

colocaccedilatildeo revela uma conclusatildeo baacutesica no entendimento da cultura grega politeiacutesta cuidava-se

dos estados da vida Ainda natildeo se colocava para os gregos o problema da orientaccedilatildeo do ato de

pensar Os deuses natildeo satildeo forccedilas naturais satildeo detentores de soberania exercendo poderes em

diferentes e diversos domiacutenios Para os gregos natildeo era preciso que houvesse uma revelaccedilatildeo para

fundamentar suas relaccedilotildees com o sobrenatural Elas eram representadas e perpetuadas na figura

dos deuses e nos cultos e rituais Fazia parte da vida como o uso do idioma como pertencente agrave

phyacutesis isto eacute agrave proacutepria natureza Acredita-se como Vernant que debruccedilar-se sobre o estudo de

um aspecto dos deuses leva a adentrar em um mundo em que

Entre o religioso e o social o domeacutestico e o ciacutevico portanto natildeo haacute oposiccedilatildeo nem corte niacutetido assim como entre sobrenatural e natural divino e mundano A religiatildeo grega natildeo constitui um setor agrave parte fechado em seus limites e superpondo-se agrave vida familiar profissional poliacutetica ou de lazer sem confundir-se com ela 22

Desta maneira viam os gregos em seus deuses valores e plenitudes que importam na

existecircncia terrestre Para que mais Todas as manifestaccedilotildees terrestres tinham seu lado sagrado

promovendo uma atitude dos cidadatildeos de se espelharem nos deuses natildeo de forma a reivindicar

favores individuais mas como exemplo de valores e do modo de ser que compotildeem a vida

Reforccedilando essa posiccedilatildeo da impossibilidade de uma separaccedilatildeo do que hoje se denomina

mitologia dos demais componentes culturais da sociedade grega podemos citar as palavras de

Berman DW no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo norte-americana do livro de Calame

21 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 p131 22 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p7

15

For the Greeks there is no ldquohistoryrdquo as distinct from the narrative (and until a relatively late date poetic) tradition and no ldquomythrdquo that is not implicated in the process of discourse production ldquoMythrdquo and ldquohistoryrdquo as defined in their modern senses cannot be separated 23

Esse enfoque reafirma o conceito de mito (mythos) usado por Aristoacuteteles em sua Poeacutetica

em que daacute especial relevacircncia ao mito ou seja agrave ldquohistoacuteriardquo Embora Aristoacuteteles esteja se

referindo especificamente aos componentes da trageacutedia podemos dilatar esse conceito no que se

refere agrave tradiccedilatildeo poeacutetica grega pois as narrativas de deuses e de heroacuteis tambeacutem continham

elementos que depois passaram a constituir partes integrantes da trageacutedia Estavam portanto

relacionados nos poemas eacutepicos o mito e a accedilatildeo o terror e a piedade o reconhecimento e a

questatildeo da verdade que seraacute examinada posteriormente tendo-se em vista os trabalhos de Veyne

e de Deleuze

O proacuteprio termo mito transforma-se pois o conceito eacute sempre acompanhado de um

constante processo de devir condiccedilatildeo de percepccedilatildeo da passagem de um mundo a outro

construindo-se e dissolvendo-se em outras coisas Assim natildeo podemos deixar de citar que no

tempo de Homero o conceito de mythos significava a palavra como se pode ver em um

pequeno trecho da Iliacuteada ldquoto be both a speaker of words and a doer of deedsrdquo (9443) 24 em

que mythos opotildee-se a ergon De acordo com Bailly somente apoacutes Homero o termo passa a ser

usado como faacutebula (ldquofablerdquo) particularmente com o sentido de lenda (leacutegende) em oposiccedilatildeo a

logos que ainda tendo como base Bailly25 a coloca como a palavra em geral (la parole)

Este cruzamento linguumliacutestico tenta revelar o ldquojogordquo de significados dos quais participavam

natureza deuses e homens formando o grande cenaacuterio do mundo grego Nesse mesmo cenaacuterio

trecircs personagens tinham uma atuaccedilatildeo que surpreendia pela caracteriacutestica que as diferenciava a

castidade e a forte determinaccedilatildeo de manterem-se virgens

23 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 p xvii ldquoPara os gregos natildeo haacute ldquohistoacuteriardquo como distinta da tradiccedilatildeo narrativa (e ateacute uma data relativamente recente poeacutetica) e nem mito que natildeo esteja enredado no processo de produccedilatildeo do discurso ldquoMitordquo e ldquohistoacuteriardquo como definidos em seus significados modernos natildeo podem ser separadosrdquo 24 HOMER Op cit p414 ldquohellip para ser tanto um orador de palavras quanto um realizador de accedilotildeesrdquo 25 BAILLY Anatole opcit

17

3 - A QUESTAtildeO METODOLOacuteGICA UM OLHAR SOBRE A PESQUISA BIBLIOGRAacuteFICA

Jaacute Aristoacuteteles tinha afastado a histoacuteria do mundo das ciecircncias precisamente porque ela se ocupa do particular que natildeo eacute um objeto da ciecircncia - cada fato histoacuterico soacute aconteceu e soacute aconteceraacute uma vez Esta singularidade constitui para muitos produtores ou consumidores de histoacuteria a sua principal atraccedilatildeo ldquoAmar o que nunca se veraacute duas vezesrdquo26

O objeto de estudo as deusas gregas virgens faz parte de um sistema do complexo

processo social e cultural de um povo Assim sendo o corpus selecionado como ponto de partida

remete a consideraccedilotildees explicaccedilotildees suposiccedilotildees e interpretaccedilotildees calcadas em uma posiccedilatildeo

teoacuterica

Como ler hinos e narrativas eacutepicas que falam das deusas das funccedilotildees e das caracteriacutesticas

que se pretendem conhecer e investigar sem optar por um caminho por uma demonstraccedilatildeo da

maneira como a histoacuteria coloca os modos de ser e de fazer dos homens em um dado tempo

Como o pensamento antropoloacutegico articula-se elaborando ldquoverdadesrdquo tradiccedilotildees inquestionaacuteveis

maneiras de agir coletivas que se aplicam a um povo delineando os traccedilos niacutetidos de seu perfil

independente de traccedilos iguais ou semelhantes em outros povos

As marcas que os nomeiam satildeo uacutenicas fazem-se peculiares distintas ldquofalamrdquo com

sotaque proacuteprio O homem se enraiacuteza ao solo funda-o e surge o nativo de um pedaccedilo geograacutefico

com uma identidade que lhe confere um nome localizado no espaccedilo vestiacutegios da sua construccedilatildeo

nesse cenaacuterio que se vai delimitando com contornos especiacuteficos Eacute nesse desenho do coraccedilatildeo

humano que a antropologia ausculta compara e prescreve Lanccedilou-se matildeo do estetoscoacutepio da

antropologia que examina o saber local que o investiga e como todo o envolvimento humano

tenta diagnosticar atraveacutes das pistas

O nosso olhar poreacutem natildeo se prende de modo exaustivo a uma uacutenica linha teoacuterica como

acircncora pretende ser sobretudo uma interpretaccedilatildeo uma contribuiccedilatildeo explicativa para o

fenocircmeno soacutecio-cultural da virgindade das deusas gregas com base em tudo o que jaacute foi dito e

revisto

26 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003

18

Quando se opta por uma linha epistemoloacutegica esse movimento jaacute determina que outras

teorias forneceratildeo posiccedilotildees antagocircnicas e outras ainda informaccedilotildees complementares A questatildeo

da verdade pertence pois ao seio da indagaccedilatildeo e nossa pesquisa natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilaacute-

la Propotildee-se apenas um pequeno vieacutes um ponto de vista a partir do acircngulo de nossa visatildeo jaacute por

si soacute especificada e direcionada pelo que a nossa individualidade eacute afetada pelo contexto cultural

que a determina

Nossa escolha por uma linha antropoloacutegica ou melhor pelo caraacuteter heterogecircneo dos

significados culturais justifica-se embora com propoacutesitos diferentes a partir das colocaccedilotildees

entatildeo feitas por Heroacutedoto (por volta de 450 a C) que acreditava que a vitoacuteria grega sobre os

persas natildeo se devia agrave bravura dos homens ou agrave vontade dos deuses mas ao resultado do conflito

entre culturas

Eacute pois com essa mesma interpretaccedilatildeo de levantar problemas e de descrever alguns

aspectos relevantes da diversidade cultural onde deusas gregas ditas virgens eram reverenciadas

ao lado de outras deusas e de deuses e de refletir sobre a evoluccedilatildeo do conceito da virgindade

atraveacutes dos tempos colocado em contextos diferentes que nossas indagaccedilotildees se apoacuteiam em uma

linha antropoloacutegica comparativa

Nesse percurso que se decidiu seguir verificou-se que muitas vezes dentro da busca pela

explicaccedilatildeo dos acontecimentos teorias divergem sobre os mesmos aspectos e alguns autores

criticam questionam levantam hipoacuteteses sobre outros autores e sobre os mesmos fatos

Descobrimos entatildeo que aleacutem do social as teorias encontram-se fatalmente ligadas a uma

posiccedilatildeo poliacutetica Assim sendo nosso trabalho como qualquer outro jaacute traz em si perigos pois

direciona a escolha dos acontecimentos e determina um estilo para representar as significaccedilotildees

culturais Como se isso natildeo bastasse os conceitos satildeo sempre ldquoprovisoacuteriosrdquo e movimentam-se

transfigurando-se para novas significaccedilotildees

Como diz Layton vamos procurar fazer uma ldquotraduccedilatildeo da culturardquo buscando o

entendimento dos ldquoaparentemente exoacuteticos costumesrdquo dos gregos da eacutepoca de Homero e de

Hesiacuteodo ldquocom os quais natildeo nos encontramos familiarizadosrdquo27

27 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 p11

19

De algum modo poreacutem nossa atenccedilatildeo se dirige para aspectos caracteriacutesticos do

comportamento social que o corpus selecionado revela sugerindo ligaccedilotildees entre aquilo que

lemos e aquilo que pode significar

Faz-se importante frisar que embora nossas propostas tragam em si preocupaccedilotildees de

caraacuteter social este estudo natildeo deve excluir consideraccedilotildees de enfoque do acircmbito da religiatildeo pois

que mito e religiatildeo se entrecruzam na dimensatildeo mitoloacutegica A religiatildeo como parte do estatuto

histoacuterico e das formas de pensar de agir de acreditar de um povo refletem um comportamento

obrigatoacuterio uma ldquoinfluecircncia coerciva sobre as consciecircncias individuais28rdquo

Em se priorizando preocupaccedilotildees culturais abrangentes verifica-se em um segundo

momento desta abordagem que o texto escrito eacute revelador de um significado soacutecio-histoacuterico-

cultural e parte-se dele como exemplo de um corpus usado na aacuterea da literatura que transcende o

aspecto linguumliacutestico nas suas significaccedilotildees muacuteltiplas na sua dinacircmica complexa nas suas tensotildees

geradoras de oposiccedilotildees nas suas metaacuteforas vigorosas nas suas narrativas extraordinaacuterias nas

descriccedilotildees ldquorepetitivasrdquo de dons e de atributos divinos e heroacuteicos

Aleacutem disso uma metodologia direcionada aos fazeres e agires humanos natildeo deve excluir

funccedilotildees pois satildeo elas que orientam o cumprimento das obrigaccedilotildees contratuais dos deveres

sociais e das crenccedilas morais previamente definidas e existentes no contexto cultural de forma

ampla exteriores ao individual

O estatuto impotildee-se aos sujeitos independentemente de seu desejo e para pertencer a um

grupo tem-se que seguir os mesmos ideais e as mesmas crenccedilas

Eacute com o pensamento voltado ao ato de criar de estabelecer normas e de verificar efeitos

de comportamentos que dirigem um povo que se deve tentar interpretar isto eacute entender do

exterior e agrave distacircncia grandes relatos da tradiccedilatildeo grega que datam do seacuteculo VIII-VII antes da

nossa era Toda a praacutetica narrada na escrita de Homero e de Hesiacuteodo constitui a representaccedilatildeo de

um sistema em accedilatildeo e natildeo pode pois ser surda e silenciosa aos sabores de uma eacutepoca Eacute nesse

trabalho que se percebe como a noccedilatildeo de mythos foi elaborada e se enraizou no solo grego Isso

conduz por seu turno agrave questatildeo do conceito

28 DURKHEIM apud LAYTON Op cit p 34

20

Como entender o mito e a mitologia Como ler esses relatos fantasiosos da tradiccedilatildeo

ldquodenunciada como inaceitaacutevel ou como natildeo sendo mais digna de credibilidade29rdquo como

questionava Tuciacutededes a partir de sua vertente histoacuterica

Recorremos agraves reflexotildees de Detienne30 sobre esse assunto Embora em um primeiro

momento (seacuteculo VII a C) a filosofia tenha atribuiacutedo ao mythos o sentido da narraccedilatildeo inventiva

e de relatos baacuterbaros a evoluccedilatildeo semacircntica do termo o conduz agrave conotaccedilatildeo de revoluccedilatildeo devido

agrave revelaccedilatildeo do partido dos sacircmios os mythiegravetai contra a tirania de Policrato

Com base no poema de Anacreonte de Samos no seacuteculo V aC a palavra mythos eacute usada

por Piacutendaro e por Heroacutedoto com restriccedilatildeo atribuindo-lhe o significado de ldquoo discurso dos outros

enquanto ilusoacuterio incriacutevel e estuacutepidordquo 31

Dessa forma os relatos histoacutericos procuram se apoiar nos logoi discursos

argumentativos enquanto os mythoi excluem a argumentaccedilatildeo raspando todo vestiacutegio de

observaccedilatildeo empiacuterica Assim nesse estado de coisas como coloca Detienne

Falar de mito eacute um modo de contar o escacircndalo de apontaacute-lo Mythos eacute uma palavra-gesto muito cocircmoda suficiente para denunciar a tolice a ficccedilatildeo ou o absurdo e confundi-los imediatamente32

Soacute no final do seacuteculo V eacute que o mythos deixa de ter sua conotaccedilatildeo de lugar-narrado (lieu-

dit) para se tornar discurso de uma forma de saber com base no que foi escrito pelos bioacutegrafos e

pelos poetas Eacute assim que o mito recortado da atividade histoacuterica designa um domiacutenio que

encerra a capacidade de narrar e de memorizar

Entramos pois no campo da memoacuteria fraacutegil e faliacutevel Quanto mais se distancia do

tempo menos criacutevel ela fica e mais e mais suas aacuteguas se engrossam tornando-se caudalosas

Natildeo eacute mais a verdade o que interessa o fato apontado desenhado em cima de si mesmo mas a

beleza do relato que envolve que narra o fabuloso que apresenta o inacreditaacutevel como prodiacutegio

Eacute com essa vestimenta leve e transparente que agora a chamada mitologia ndash os escritos

reunidos dos contemporacircneos ndash sofre a criacutetica de Platatildeo principalmente no que concerne aos

29 DETIENNE Marcel Os Gregos e Noacutes Uma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p39 30 DETIENNE Marcel Idem 31 DETIENNE Marcel Op cit 32 Idem p 41

21

aspectos formais e riacutetmicos para fins de memorizaccedilatildeo Para o filoacutesofo esse meio de expressatildeo

para estimular a memoacuteria e a comunicaccedilatildeo para privilegiar a audiccedilatildeo era

o sinal irrefutaacutevel de sua pertinecircncia ao mundo polimorfo e colorido de tudo que deleita a parte inferior da alma esse reino solitaacuterio onde as paixotildees e os desejos enlouquecem O discurso da mitologia natildeo somente eacute escandaloso ndash e o pesquisador da Repuacuteblica cataloga histoacuterias obscenas selvagens e absurdas - mas eacute perigoso pelos efeitos ilusoacuterios que acarreta a comunicaccedilatildeo da boca ao ouvido visto natildeo ser nem fiscalizada nem controlada33

Poreacutem como diz Detienne Platatildeo tentou inventar uma nova mitologia Pode-se pois

dizer que o filoacutesofo buscou trocar uma mentira por outra uma ldquobela mentira uacutetil capaz de

realizar para todos livremente tudo o que eacute justo34rdquo Assim nas suas Leis Platatildeo quer propor

uma nova tradiccedilatildeo substituindo o canto das musas e o murmuacuterio dos deuses narrados pelos

poetas dos seacuteculos anteriores

Ora eacute fundamental que se considere que eacute esse objeto que deve ser entendido na sua

riqueza humana na sua ambivalecircncia na sua multiplicidade de planos na variedade de niacuteveis de

sua significaccedilatildeo na diversidade dos contextos na singularidade de sua criaccedilatildeo Ou ainda como

diz Torrano acerca de sua anaacutelise sobre a Teogonia quando o corpus que se propotildee analisar

refere-se ao que chama de mitologia tambeacutem o estudo que se propotildee nada mais eacute do que um

ldquodiscurso sobre uma canccedilatildeo numinosa35rdquo veiacuteculo do saber de um tempo em um complexo

contexto cultural O que vale dizer pois que o mito eacute identificado por todos os leitores por seu

sentido relacional intriacutenseco pelas diferentes versotildees que ele pode conter e pelo contexto

etnograacutefico que subjaz aos seus planos significantes

Eacute com essa visatildeo que a anaacutelise se permite ser comparativa Nessa tentativa de comparar

conceitos e posiccedilotildees para alargar o entendimento do mito que nosso estudo evidencia a partir das

deusas gregas virgens que lanccedilamos matildeo de uma perspectiva social de linha antropoloacutegica geral

proposta por Durkheim

Para esse autor conceitos sociais gerais provocam o mesmo efeito da organizaccedilatildeo das

instituiccedilotildees isto eacute em determinados periacuteodos histoacutericos todas as sociedades estatildeo sujeitas a

condicionalismos que se apoderam das multidotildees e fazem-nas interagir e mover-se Assim ondas

33 Idem p 43 34 Idem p43 35 HESIgraveODO Teogonia A Origem dos deuses Estudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p13

22

de entusiasmo de paixatildeo de indignaccedilatildeo apoderam-se do povo de um paiacutes em um momento e o

impulsionam Acredita-se que essa posiccedilatildeo possa ser defendida na interpretaccedilatildeo de alguns

elementos significantes pois as narrativas miacuteticas e os rituais satildeo impelidos por uma forccedila ampla

que abrange todas as esferas A dinacircmica desse movimento perpassa a obra dos poetas em foco e

compotildee parte do conteuacutedo que acompanha o ritmo discursivo dos versos selecionados como

corpus

A chave fundamental de uma linha epistemoloacutegica calcada na antropologia eacute a de

compreender que cada sociedade delineia suas proacuteprias instituiccedilotildees que concebe seus padrotildees de

comportamento que desenha seus espaccedilos que considera as formas de sua organizaccedilatildeo social

que determina seus valores e impotildee sistemas Argumentando em favor de uma antropologia

comparada citamos uma posiccedilatildeo de Durkheim apud Layton

Uma vez que os fenocircmenos sociais natildeo podem ser controlados experimentalmente o uacutenico meacutetodo cientiacutefico apropriado para o trabalho do cientista eacute o comparativo36

ldquoA arte de construir comparaacuteveisrdquo como diz Detienne37 parece-nos pois um caminho

que permite colocar questotildees apontar direccedilotildees considerar diferenccedilas perceber as tensotildees e

acima de tudo dimensionar a necessidade de escolher uma categoria o que faz com que a

hipoacutetese levantada possa ganhar contornos de um desenho definido

Reproduzindo fielmente as palavras de Detienne38 inspirado no trabalho de Geertz tem-

se que

Se um historiador ou um etnoacutelogo debruccedilado sobre uma bem definida questatildeo local percebe que nossa representaccedilatildeo do que eacute uma ldquopessoardquo eacute uma ideacuteia bastante especial no conjunto das culturas do mundo ele comeccedila a antropologia Ao menos um primeiro passo O segundo poderia ser a descoberta do que ldquopara melhor analisar as formas simboacutelicas de uma cultura estrangeira eacute preciso bisbilhotar as peculiaridades de um outro povordquo

Portanto a centralidade da cultura enquanto conceito de base parece ser o ponto-chave

natildeo apenas dos estudos da antropologia americana mas tambeacutem de autores europeus como no

caso de Durkheim e de Detienne

No levantamento de hipoacuteteses da virgindade das deusas gregas deparamo-nos dentro

desse eixo diretivo cultural com o levantamento de algumas funccedilotildees peculiares a essas deusas

36 LAYTON Robert Opcit p37 37 DETIENNE Marcel Op cit p22-23 38 DETIENNE Marcel idem

23

que fazem parte dos atributos evocados pelos epiacutetetos Daiacute advecircm dois pontos que devem ser

considerados Primeiro em relaccedilatildeo ao uso de suas funccedilotildees como forma norteadora de propor

diferentes comportamentos Esse termo faz-se necessaacuterio esclarecer natildeo se vincula aos

conceitos propostos pela anaacutelise social funcionalista Natildeo se pretende agrave maneira de Radcliff

Brown descobrir leis classificatoacuterias do comportamento social propondo uma analogia orgacircnica

nem tampouco como Malinowski usar o termo ldquofunccedilatildeordquo em se considerando que a cultura se

alicerccedila nas necessidades bioloacutegicas primaacuterias do ser humano Em nossa perspectiva usamos

funccedilatildeo para indicar papeacuteis e posiccedilotildees destacados em relaccedilatildeo a essas deusas revelando atributos

que as distingam De fato como Ruth Benedict e Margaret Mead perceberam em suas pesquisas

e colocaram em suas obras aspectos da personalidade fazem parte do contexto cultural quando

se analisa a eacutetica e a moralidade bem como o impacto que esse aspecto determina na vida social

Achamos que a questatildeo relativa aos papeacuteis desempenhados pelas deusas virgens cria articulaccedilotildees

que favorecem o entendimento da virgindade como oposiccedilatildeo a uma outra circunstacircncia

resgatando e alargando a ideacuteia de ldquopoderrdquo que essa condiccedilatildeo pode oferecer no estudo das

relaccedilotildees sociais Essa tessitura convoca um acordo com um ldquocoacutedigo de eacuteticardquo se assim se pode

rotular das accedilotildees de uma comunidade que partilha valores comuns

As mudanccedilas que adviratildeo no conceito de virgindade prendem-se agraves criaccedilotildees da Igreja

cristatilde estabelecendo novas relaccedilotildees sociais mas mantendo e ressaltando um aspecto que seraacute

discutido no enfoque evolutivo da virgindade

O segundo ponto a ressaltar eacute a questatildeo dos epiacutetetos A pergunta que surge eacute quanto eacute de

fato revelado como atributo nos epiacutetetos Seraacute que o epiacuteteto acrescenta um conteuacutedo novo agraves

caracteriacutesticas das deusas ou eacute apenas um recurso ornamental repetitivo

A poesia de Homero eacute marcada pelo uso calculado dos pleonasmos isto eacute satildeo oacutebvios

mas natildeo inuacuteteis pois realizam uma completude riacutetmica um gesto sonoro aleacutem da comunicaccedilatildeo

do conteuacutedo Assim sendo o gecircnero eacutepico requer esse tipo de estrutura que se impotildee agrave vontade

do proacuteprio autor O epiacuteteto serve pois para preencher o verso hexacircmetro tendo uma funccedilatildeo

poeacutetica e provocando mesmo uma superposiccedilatildeo de tempos entre o tempo que estaacute sendo narrado

e o tempo39 que entra como anterior e posterior ao que se narra pois eacute o tempo que vale como

39 Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do tempo e dos epiacutetetos ver o artigo de RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

24

ornato Esse aspecto como se veraacute adiante cria dificuldades na traduccedilatildeo do grego para outras

liacutenguas pois apenas a natureza da liacutengua grega arcaica pode produzir esses epiacutetetos Eacute inerente agrave

disposiccedilatildeo gramatical da liacutengua do contexto que os accedilambarca A comparaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute

revela um impedimento e a traduccedilatildeo dessa cultura como diz Layton jaacute prevecirc um olhar distante e

uma voz indiziacutevel dos textos de Homero Por mais que se prenda ao conteuacutedo a qualidade do

ldquogeistrdquo 40 da forma nos escapa Como reproduzir a voz de Homero Fica aiacute o questionamento

Voltando agrave questatildeo dos epiacutetetos se eles revelam o que eacute sabido de antematildeo eles tambeacutem

oferecem uma conotaccedilatildeo conteudiacutestica de outro lado Como diz Rodrigues41 referindo-se a uma

das causas do uso de epiacutetetos

no fundo natildeo haacute repeticcedilotildees pois este mundo ndash todos sabem eacute progressista e heracliacutetico42 natildeo existiriam repeticcedilotildees absolutas pois repetir de qualquer forma eacute jaacute alterar43

O uso de epiacutetetos em Homero foi exaustivamente investigado por Milman Parry44 cuja

tese foi a de provar a excelecircncia da qualidade esteacutetica dos versos desse poeta comparando-o a

um escultor cujos traccedilos satildeo simples claros e quase impessoais na sua criaccedilatildeo espontacircnea O

que chamou a atenccedilatildeo de Parry na anaacutelise da obra homeacuterica quando comparou o poeta ao

escultor Fiacutedias foi justamente a habilidade de cruzar a tradiccedilatildeo com sua originalidade Dessa

forma repetindo as palavras de Parry

[The repeated words and phrases45] are like a rhythmic motif in the accompaniment of a musical composition strong and lovely regularly recurring while the theme may change to a tone of passion or quiet of discontent of gladness or grandeur

Para nosso trabalho o epiacuteteto propotildee uma quase que insistecircncia na descriccedilatildeo de uma

caracteriacutestica (parthenos) que parece ser imutaacutevel ou tatildeo recorrente se preferirmos quanto o

40 Usamos o termo geist como eacute usado em antropologia por Franz Boas o espiacuterito de um povo 41 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 42 Heracliacutetico referente a Heraacuteclito de Efeacuteso filoacutesofo preacute-socraacutetico que viveu provavelmente entre os seacuteculos VI e V a C Para esse filoacutesofo unidade regularidade e mudanccedila eterna satildeo qualidades fundamentais do que existe O fluir constante significa que ldquoningueacutem pode banhar-se duas vezes no mesmo riordquo porque esse muda assim como muda o homem In PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 pp 206-207 43 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 44 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 45 PARRY idib p xxv (As palavras e as frases repetidas) satildeo como um motivo riacutetmico no acompanhamento de uma composiccedilatildeo musical fortes e encantadoras regularmente recorrentes enquanto o tema pode mudar para um tom de paixatildeo ou quietude de descontentamento de alegria ou grandeza- traduccedilatildeo nossa

25

proacuteprio epiacuteteto Assim vemos uma dupla funccedilatildeo no epiacuteteto a de enfatizar um aspecto jaacute

conhecido de revelar sua natureza essencial e a de provocar uma compreensatildeo clara de sua

natureza esteacutetica

A questatildeo das consideraccedilotildees sobre o epiacuteteto traz em seu bojo uma outra dimensatildeo _ que

natildeo pode passar despercebida em uma anaacutelise cujo corpus eacute referente a poemas de autores

gregos da eacutepoca arcaica Eacute o caso da ecircnfase que se daacute agrave comunicaccedilatildeo nos poemas de Homero de

Hesiacuteodo e de outros poetas considerados ldquode segunda ordem porque foram tratados injustamente

pela tradiccedilatildeo humanista ocidental dos tempos modernosrdquo46 Sabemos que esse fato do uso dos

epiacutetetos tem sido discutido e alvo de polecircmicas Ainda assim vemos como positivo o fato de

que os mesmos epiacutetetos eram usados em diferentes situaccedilotildees por diferentes autores (em nosso

caso Homero e Hesiacuteodo) pois isso reforccedila o conceito de que havia um senso comum um

entendimento taacutecito um conhecimento abrangente em que a obra poeacutetica revela essa luz que

iluminava o mundo homeacuterico

Eacute por isso que natildeo podemos deixar de reforccedilar a colocaccedilatildeo de Torrano47 de que essas

metaacuteforas fixas criaram uma conotaccedilatildeo de encantamento maacutegico e do sagrado que o mundo dos

deuses evoca

Parry em seu estudo minucioso do epiacuteteto revelou os aspectos do estilo poeacutetico que

privilegiavam a oralidade ressaltando a significacircncia das foacutermulas para fins de comunicaccedilatildeo

Sobre isso Denys Page destacou as importantes descobertas de Parry48 comentando

It is not easy at first to grasp the full significance of Milman Parryrsquos discovery that the language of the Homeric poems is of a type unique in Greek literature ndash that it is to a very great extent a language of traditional formulas created in the course of a long period of time by poets who composed in the mind without the aid of writingThat the language of the Greek Epic is in this sense the creation of an oral poetry is a fact of proof in detail and the proofs offered by Milman Parry are of a quality not often to be found in literary studies49

46 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 p291 47 HESIacuteODO Opcit 48 PARRY Milman Op cit p xxvii 49 Natildeo eacute faacutecil em um primeiro momento perceber a significacircncia plena da descoberta de Milman Parry de que a linguagem dos poemas homeacutericos eacute de um tipo uacutenico na literatura grega ndash que eacute em grande parte uma linguagem de foacutermulas tradicionais criadas no curso de um longo periacuteodo de tempo por poetas que compunham na mente sem a ajuda da escritaQue a linguagem do eacutepico grego eacute neste sentido a criaccedilatildeo de uma poesia oral eacute um fato provado em detalhe e as provas oferecidas por Milman Parry satildeo de uma qualidade nem sempre encontrada nos estudos literaacuterios (traduccedilatildeo nossa)

26

A narrativa miacutetica como coloca Detienne50 comeccedila a fazer parte da tradiccedilatildeo oral no

momento em que ldquoexperimenta a prova da boca e do ouvidordquo Ela surge como produto da criaccedilatildeo

de um indiviacuteduo e pode se perpetuar Inspirado na distinccedilatildeo proposta por Leacutevi-Strauss Detienne

comenta a natureza da narrativa que pertence ao que se chama tradiccedilatildeo como tem sido nomeada

a poesia homeacuterica por Parry Os niacuteveis estruturados de memoralidade da histoacuteria podem ter

fundaccedilotildees comuns e dessa forma permaneceratildeo imutaacuteveis No entanto se os niacuteveis forem

probabilistas poderatildeo apresentar variaccedilotildees dependendo de como os narradores sucessivos vatildeo

acrescentando detalhes informaccedilotildees episoacutedios e portanto nesse continuum da transmissatildeo oral

uma histoacuteria enraizada na tradiccedilatildeo pode se tornar produtora de outras histoacuterias Como diz Leacutevi-

Strauss apud Detienne ldquoas obras individuais satildeo todas mitos em potencial mas eacute sua utilizaccedilatildeo

no modo coletivo que atualiza em cada caso seu mitismordquo51

Propotildee-se pois a partir daiacute uma abrangecircncia do aspecto cultural reconhecendo o miacutetico

nas culturas da palavra naquilo que ele enreda para construir seu esquema conceitual nas

diversidades de produccedilotildees que ele propotildee como expressatildeo de relatos de um tipo determinado

Dessa forma vecirc-se o mito como um gecircnero literaacuterio de manifestaccedilotildees da memoacuteria de uma

sociedade com suas crenccedilas e suas praacuteticas Eacute nesse cenaacuterio de riqueza cultural que os relatos

inesqueciacuteveis da sociedade grega de Hesiacuteodo e de Homero satildeo entendidos e revelam a

complexidade de uma religiatildeo politeiacutesta onde deuses imortais e outras potecircncias sobrenaturais

percorrem o mundo ao lado de indiviacuteduos mortais que convivem nesse mesmo mecanismo de

representaccedilotildees que o conhecimento miacutetico evoca

Mais uma vez verificamos que a anaacutelise da cultura enriquece os mitos e posiciona-os

possibilitando reconstruir e articular elementos dentro de uma visatildeo semacircntica sem reduzi-los

somente a algumas oposiccedilotildees ou apontar restriccedilotildees Oposiccedilotildees existem tambeacutem as diferenccedilas

mas elas satildeo consequumlecircncia de um conjunto mais amplo de um mecanismo complexo e quando

oposiccedilotildees e diferenccedilas forem evidenciadas no campo especiacutefico selecionado (das deusas

virgens) o propoacutesito eacute o de evidenciar aspectos que possam contribuir para situarem-se no

conjunto dessa anaacutelise combinatoacuteria apontando ou sugerindo novas relaccedilotildees interpretativas e

estabelecendo comparaccedilotildees ndash como parte da atitude investigatoacuteria que assumimos

50 DETIENNE Marcel Op cit 51 DETIENNE Marcel opcit p48

27

Nesse sentido a questatildeo do uso da oralidade e da escrita jaacute implica um aspecto

diferencial que tem sido amplamente investigado por antropoacutelogos que estudam e buscam o

entendimento dos nossos ldquoportos de origemrdquo como diz Detienne Assim sendo jaacute podemos

estabelecer uma primeira comparaccedilatildeo a mitologia surge a partir dos relatos escritos Antes o

que havia era o mito A mitologia eacute aquela que evoca a sociedade suas crenccedilas seu modus

faciendi traccedila enfim um mapa do tempo colocando o que se chama de ldquotradiccedilatildeo de uma eacutepocardquo

daquilo que se tem por verdadeiro

Embora seja do acircmbito da antropologia da sociologia e da linguumliacutestica pensar o fenocircmeno

da oralidade e da escrita foi Milman Parry segundo Ong52 o primeiro a dar um enfoque

decisivo nesse assunto

Foi ele quem apontou o contraste entre os modos de pensamento que subjazem a

expressatildeo oral e a produccedilatildeo escrita a partir de estudos literaacuterios tendo como corpus o texto da

Iliacuteada e o da Odisseacuteia A partir daiacute todos os autores de outras aacutereas tecircm sua obra como baacutesica

para o estudo que empreendem

Apesar de o nosso estudo natildeo privilegiar uma investigaccedilatildeo no que diz respeito aos

princiacutepios que norteiam o uso da escrita e o desenvolvimento da linguagem oral natildeo podemos

perder de vista que a forma de expressatildeo manifesta no corpus estaacute relacionada a essa

circunstacircncia Acabamos de verificar que o corpus selecionado por Milman Parry refere-se a

textos da eacutepoca arcaica grega e aponta a significacircncia desse fato Assim sendo o que se quer

ressaltar eacute que os textos escritos de alguma maneira direta ou indiretamente estatildeo relacionados

com os aspectos sonoros e com o contexto que a oralidade comprova para transmitir

significados

A fala como forma de expressatildeo e como maneira de manifestar o pensamento sempre

fascinou os estudos cientiacuteficos e provocou interesse nos pesquisadores de diversas aacutereas Por

isso como reflete Ong

En Ocidente entre los antiacuteguos griegos la fascinacioacuten se manifestoacute em la elaboracioacuten del arte minuciosamente elaborado y vasto de la retoacuterica la materia acadeacutemica mas completa de toda la cultura ocidental durante dos mil antildeos En el original griego techneacute rheacutetorikeacute ldquoarte de hablarrdquo (por lo comuacuten abreviado a solo rheacutetorikeacute) em esencia se referia al discurso oral aunque siendo un ldquoarterdquo o ciencia sistematizado o reflexivo ndash

52 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 p16

28

por ejemplo em el Arte Retoacuterica de Aristoacuteteles ndash la retoacuterica era y tuvo que ser un producto de la escritura53

Portanto a escritura jaacute veio como forma de representar a oralidade de se apoiar em seus

fundamentos e de organizar os componentes da linguagem calcados em princiacutepios do domiacutenio da

ciecircncia e da arte como no caso da retoacuterica Esse aspecto evidencia o uso dos relatos miacuteticos orais

que seguiam uma organizaccedilatildeo textual e a importacircncia do uso da linguagem oral nos estudos

sociais linguumliacutesticos e literaacuterios ou seja culturais

Ademais em se tratando da epopeacuteia podemos questionar como eacute possiacutevel mensurar

aquilo que ela traz em si dos textos que os rapsodos narravam pois conferindo o conceito em

grego Ong54 coloca que ldquorhapsoacuteidein lsquocantarrsquo en griego basicamente significa lsquocoser

cancionesrsquordquo Como reflete o autor citado o texto oral jaacute implica etimologicamente o conceito de

tecer Desta forma a base da poesia eacutepica eacute a oralidade

A poesia eacutepica evidencia pois um aspecto fundamental da construccedilatildeo e da fundaccedilatildeo do

que embasa o chatildeo grego pois eacute atraveacutes dela que os antropoacutelogos chegam a determinadas

constataccedilotildees que podem levar agrave compreensatildeo do ato de criar e do ato de viver na eacutepoca arcaica

A esse respeito diz Robert Aubreton

Eacute possiacutevel ainda ir mais longe e atraveacutes de Homero acompanhar toda a tradiccedilatildeo eacutepica Nascida durante o periacuteodo aqueu ndash o estudo histoacuterico no-lo provaraacute ndash e talvez filha da epopeacuteia cretense a epopeacuteia grega possuiacutea desde essa eacutepoca um jogo completo de foacutermulas que lhe eram proacuteprias que entraram na proacutepria tradiccedilatildeo do gecircnero

E mais

Atraveacutes de todas essas foacutermulas se revelava ao poeta todo um mundo antigo do qual ele conservaraacute a lembranccedila formas aqueacuteias eoacutelicas talvez se a tradiccedilatildeo eacutepica se tornara realmente essa com o correr dos tempos Mas o poeta Homero eacute um jocircnio puro e emprega as formas jocircnicas de seu tempo no meio dessa liacutengua herdada dum glorioso passado histoacuterico e literaacuterio55

Quanto a essa evidecircncia Ruigh56 eacute citado como um dos que acredita nos vestiacutegios de uma

traduccedilatildeo eacutepica micecircnica para depois se tornar eoacutelica e finalmente jocircnica

53 ONG WJ op citp 18-19 54 ONG WJ opcit p22 55 AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero 2ed Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1968 p90-91 56 RUIGHCJ apud AUBRETON opcit

29

Aubreton tambeacutem coloca que recuperando as caracteriacutesticas da poesia homeacuterica um fato

que deve ser levado em conta eacute a unidade real que a liacutengua homeacuterica manteacutem apesar de sua

formaccedilatildeo heterogecircnea

Os dados culturais satildeo pois de extrema relevacircncia no que diz respeito aos estudos

linguumliacutesticos e literaacuterios uma vez que interferem e direcionam o trabalho de traduccedilatildeo do corpus

selecionado

Outrossim os poemas homeacutericos e a Teogonia parecem ser um ponto de partida para o

entendimento do mundo dos deuses entre os gregos ou seja de sua religiatildeo Os deuses governam

o mundo subordinados a Zeus mas ao mesmo tempo conjuntamente com ele Cada um deles

tem atribuiccedilotildees determinadas Em relaccedilatildeo ao nosso objeto de estudo Afrodite eacute a deusa que

provoca o desejo conhecida hoje como a deusa do Amor Aacutertemis a deusa da caccedila deusa

virgem Atena deusa da astuacutecia ou seja deusa da guerra e da inteligecircncia tambeacutem virgem

Heacutestia a deusa do lar soliacutecita e virgem

Poreacutem embora essa possa ser uma classificaccedilatildeo geral o nosso enfoque metodoloacutegico

revela que natildeo pode haver uma rigidez nas funccedilotildees dos deuses Nos casos que nos interessam

por exemplo vecircem-se variaccedilotildees significativas quando se fazem analogias entre contextos

diferentes Assim embora Hera signifique a mulher de Zeus e por isso represente a fertilidade

em Eacutefeso Aacutertemis era reverenciada como deusa da fertilidade e ainda em outros lugares como

a deusa da lua misteriosa Atena a deusa guerreira dividia esse atributo com Ares tambeacutem deus

da guerra

Eacute justamente atraveacutes dos poetas que o mundo desses deuses ldquofala gregordquo isto eacute revela-se

com toda sua forccedila aos humanos revestindo-se mesmo na sua estranheza e na sua forma de

saber um jeito familiar conhecido que se cruza com as questotildees do mundo terrestre

Enfatizamos novamente a posiccedilatildeo de Vernant que privilegia o encruzamento soacutecio-religioso

nesse contexto entrelaccedilado

Se eacute cabiacutevel falar quanto agrave Greacutecia arcaica e claacutessica de ldquoreligiatildeo ciacutevicardquo eacute porque ali o religioso estaacute incluiacutedo no social e reciprocamente o social em todos os seus niacuteveis e na diversidade dos seus aspectos eacute penetrado de ponta a ponta pelo religioso57

57 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p7

30

Eacute a partir da constataccedilatildeo da integraccedilatildeo da religiatildeo com o social que os deuses comportam

diferentes dimensotildees Heacutestia tem o controle sobre a lareira de cada casa marca o centro fixo do

que se constitui como famiacutelia mas a mesma Heacutestia pode conjuntamente com Zeus exercer

controle sobre o que eacute considerada a Lareira comum da cidade

O que entatildeo nos perguntamos faz a originalidade das deusas virgens em relaccedilatildeo aos

outros deuses

Essa pergunta jaacute envolve pois um aspecto da especificidade que nossa investigaccedilatildeo

procura desvendar

Tem-se a impressatildeo a partir do que foi exposto de que os atributos dos deuses satildeo muito

menos precisos do que se pode supor e de que as funccedilotildees variam de acordo com os santuaacuterios

Haacute poreacutem uma marca comum invariaacutevel insistente em Aacutertemis Atena e Heacutestia a

virgindade

Embora alguns aspectos da concepccedilatildeo oliacutempica possam ser explicados agrave luz soacutecio-

histoacuterico-cultural como o caso de Zeus uma divindade masculina adaptado ao culto de um

povo guerreiro ideacuteia provavelmente introduzida pelos aqueus existe paralelamente a ideacuteia da

origem da criaccedilatildeo na Teogonia (v 117 e sgtes) onde a Terra (Gaia) parece ter ocupado lugar

privilegiado Assim a origem primeira daacute-se atraveacutes de uma divindade feminina relacionando

pois o conceito de vida e de fertilidade ao elemento feminino Do ponto de vista antropoloacutegico

essa posiccedilatildeo pertence agrave religiatildeo de povos sedentaacuterios de origem agriacutecola para quem sem

duacutevida a Terra eacute a fonte de toda a vida Parece pois uma atitude que fazia parte da Heacutelade da

eacutepoca dos egeus

Esse aspecto cultural eacute um dado que natildeo pode ser deixado de lado quando se reportam

aos epiacutetetos das deusas virgens e de outras naturalmente Alguns atributos podem estar

vinculados a vestiacutegios que a memoacuteria guardou e repetiu de eacutepocas anteriores e que refletem

aspectos de divindades zoomoacuterficas preacute-helecircnicas Exemplificamos com um epiacuteteto recorrente a

Atena glaucoacutepida ou de olhos glaucos

Em geral os dicionaacuterios definem esse termo relacionando-o ao brilho e agrave cor Em nossas

traduccedilotildees (verificamos que o mesmo se daacute em Torrano58) procuramos manter o uso de olhos

glaucos deixando a interpretaccedilatildeo final por conta do leitor porque o termo tambeacutem pode indicar

58 HESIacuteODO Op cit v888

31

ldquoolhos de corujardquo de acordo com alguns estudiosos do politeiacutesmo helecircnico estando dessa

forma referindo-se a uma divindade que teria um significado zoomoacuterfico

As interpretaccedilotildees revelam o movimento por que as culturas passam em um processo

contiacutenuo de construccedilatildeo de seu solo de seu saber de seu espaccedilo como naccedilatildeo constituiacuteda Assim

embora vinculadas agraves anteriores as concepccedilotildees vatildeo se transformando e quando os aqueus se

misturaram aos povos preacute-helecircnicos houve uma adaptaccedilatildeo no modus vivendi um consenso

reciacuteproco uma acomodaccedilatildeo que prevecirc concessotildees reciacuteprocas Essa adoccedilatildeo e recepccedilatildeo entre os

povos interferem tambeacutem no campo religioso e alguns deuses satildeo adotados outros confundidos

e outros ainda instalados Haacute tambeacutem aquelas divindades que perdem o caraacuteter sagrado Eacute assim

que algumas vezes surgem os heroacuteis Essa conjunccedilatildeo de tradiccedilotildees vai colocando camadas no

que se constitui o solo grego

Como jaacute anunciou a antropologia de linha estruturalista um fato que natildeo se pode ignorar

eacute que as culturas surgiram a partir de diversas comunidades que se acumularam no meio da

mesma espeacutecie por consentimento ou por alguma forma de negociaccedilatildeo produzindo conjuntos

distintos convencionais na organizaccedilatildeo do comportamento e na atribuiccedilatildeo de significados agraves

accedilotildees

Satildeo os traccedilos dessa evoluccedilatildeo cultural que a poesia eacutepica evidencia Por isso quando se

referem agraves deusas virgens os hinos homeacutericos ressaltam epiacutetetos das deusas que de alguma

forma estatildeo relacionados agrave conciliaccedilatildeo entre cultos e deuses Como jaacute se mencionou

anteriormente ao caso de Atena combinada com deuses zoomoacuterficos tambeacutem a mesma Atena

possui outros epiacutetetos que podem estar relacionados a outras divindades preacute-helecircnicas Como

explicar o epiacuteteto Tritogecircnia a ela atribuiacutedo e Atena Tritocircnia Levantam-se hipoacuteteses para esses

epiacutetetos relacionando-os a cultos e lugares onde a deusa era venerada mas os significados

podem ser interpretados de formas variadas

Essas suposiccedilotildees que vatildeo sendo levantadas fazem repensar a linha antropoloacutegica que

escolhemos para o nosso trabalho por isso eacute necessaacuterio apontar para uma consciecircncia sobre as

diferenccedilas humanas no mundo e como ela se articula jaacute que cada cultura eacute vista na sua

singularidade em uma determinada eacutepoca como ressaltamos no iniacutecio do capiacutetulo Poreacutem vale

lembrar que uma linha antropoloacutegica interpretativa volta-se para interpretaccedilotildees provisoacuterias e

parciais e mostra que seu principal objeto de estudo eacute a etnografia o que nos faz debruccedilar sobre

32

o homem e os textos culturais que ele produz Foi com esse pensamento que na nossa

Introduccedilatildeo tentamos apontar aspectos do mundo grego que nos fizessem entender a concepccedilatildeo

que tinham de seus deuses do cosmo a relaccedilatildeo dos homens com esses deuses e com o cosmo e

possivelmente procurar interpretar o atributo ou conceito ou valor eacutetico imposto pela

memorabilidade da virgindade De qualquer forma natildeo podemos deixar de concordar com

Crapanzano e Clifford59 que afirmam ldquoa parcialidade da verdade na antropologia e o caraacuteter de

ficccedilatildeo das etnografias construiacutedasrdquo

Eacute sobre a questatildeo do texto literaacuterio o corpus que escolhemos para investigaccedilatildeo que

queremos fazer alguns apontamentos

Quanto aos textos de Homero a Iliacuteada a Odisseacuteia e quanto aos textos de rapsodos que

compuseram os Hinos Homeacutericos haacute algumas interpretaccedilotildees pertinentes ndash de acordo com nosso

entendimento ndash sobre deles Uma dessas interpretaccedilotildees diz respeito a uma posiccedilatildeo eleita por

Homero isto eacute colocar uma divindade absoluta sobre as outras Zeus senhor do Olimpo sem

revelar tendecircncias sobre deuses ligados a esta ou agravequela cidade Isso denota uma imparcialidade

em Homero pois natildeo toma partido em relaccedilatildeo a um deus especiacutefico de uma cidade aleacutem de

mostrar vestiacutegios de deuses de outras raccedilas dos aqueus e dos egeus bem como de deuses

remanescentes de um periacuteodo preacute-helecircnico sem privilegiar apenas um ligado a uma poacutelis

Portanto os textos homeacutericos dissimulam a questatildeo do culto das divindades locais Seraacute que esse

aspecto revela uma tendecircncia ideoloacutegica Ateacute que ponto quer-se representar uma casta guerreira

fiel agrave organizaccedilatildeo aqueacuteia enaltecendo as estrateacutegias de combate e as narrativas de conflito

Um outro ponto aqui eacute que vale pensar um aspecto do corpus que ressaltamos a

virgindade das deusas pois em Homero eacute inegaacutevel os deuses imortais tambeacutem satildeo

humanizados em suas relaccedilotildees em suas funccedilotildees em seus sentimentos Os deuses participam

tanto das cenas militares quanto das familiares daquelas que fazem parte da vida de todos os

dias Assim a deusa guerreira que faz parte dos combates eacute virgem a deusa que estaacute presente

em cada lar zelando pela famiacutelia eacute virgem a deusa que cuida dos campos e dos animais e que

protege os partos e os adolescentes eacute virgem Pode-se questionar se Atena Heacutestia e Aacutertemis

possuem uma caracteriacutestica que faz parte apenas do feminino Parece-nos que as lendas natildeo

59 CRAPANZANO e CLIFFORD apud JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004 p47

33

mencionam guerreiros deuses e heroacuteis virgens Parece-nos que quando o teatro propocircs Hipoacutelito

dedicado agrave virgem Aacutertemis a deusa do Amor (Afrodite) vingou-se dele Assim estaria a

virgindade grega reservada e aceita soacute para o feminino A relaccedilatildeo pai-filha em Homero eacute dotada

de humanidade que fundamenta o coraccedilatildeo paterno A Iliacuteada mostra um Zeus (canto VIII)

cedendo agraves teimosias de Atena e mimando-a Caracteriacutesticas da fraqueza humana do pai Zeus

Afinal a mitologia narra essa filha nascida da proacutepria cabeccedila do pai armada e cheia do dom da

inteligecircncia e digna de um poder que faz parte de seu caraacuteter haja vista sua origem

Eis como Homero se aproveita da mitologia para que participe da sua saga guerreira

divina e humana

O texto de Homero faz suceder narrativas de cerimocircnias fuacutenebres tristes a episoacutedios

quase liacutericos Teraacute aiacute tambeacutem esse Homero eacutepico momentos de um lirismo cheio de frescor

pintando episoacutedios da vida entre o alegre e o triste Entre o cocircmico e o funesto

Mesmo nos Hinos sacros Homero lhes imprime um colorido humano Recupera os laccedilos

familiares e descreve cenas quase burlescas quando se reporta a Aacutertemis a irmatilde querida de

Apolo dando de beber aos cavalos Ele cita detalhes do cotidiano necessaacuterios que fazem parte

da vida humana

Descreve a mulher que atrai o erotismo exalando da espuma do mar da qual brota

Afrodite sempre desejaacutevel atraente que subjuga mortais e imortais ateacute o proacuteprio Zeus

Ningueacutem consegue domar essa forccedila desejante Soacute as deusas virgens

No canto a Atena destaca o seu poder que como jaacute foi dito eacute herdado do proacuteprio pai

Como guerreira estaacute envolvida em atos beacutelicos mas tambeacutem eacute protetora dos combatentes e zela

por eles

Os textos de Homero vatildeo pois aleacutem das lendas e dos testemunhos histoacutericos na sua

forma de tecer a poesia eacutepica Desse modo a sequumlecircncia temporal da sua narrativa natildeo importa

O que interessa eacute perceber que quando Homero tece a sua narraccedilatildeo ndash e aproveitamo-nos

aqui de um filatildeo da antropologia marxista ndash surgem vaacuterios sistemas cognitivos nesse mesmo

meio resultantes de reaccedilotildees agraves variadas condiccedilotildees materiais

Assim reforccedilamos a ideacuteia de que o mito narra as condiccedilotildees significativas das relaccedilotildees

sociais Essas relaccedilotildees podem sofrer transformaccedilotildees alterando todas as formas de significar de

um sistema social

34

Nesse aspecto as narrativas homeacutericas bem como os hinos homeacutericos reportam-se a

recursos naturais como quando apresentam caracteriacutesticas geograacuteficas relacionadas de algum

modo a uma forma de produccedilatildeo e a determinados tipos de atividades que revelam o

comportamento dos habitantes atraveacutes de seus deuses e de seus heroacuteis Mas ao mesmo tempo

em que essa constataccedilatildeo direciona para um conceito de produccedilatildeo ressaltado pela teoria marxista

quando Homero e outros autores teceram suas narrativas a transparecircncia de caracterizar um

discurso atraveacutes da escrita jaacute se perdeu Entatildeo como coloca Geertz60 tambeacutem quando o

observador interpreta significados quando a interpretaccedilatildeo se dirige a um povo construir

descriccedilotildees e significaccedilotildees sobre esse povo natildeo eacute muito diferente de construir uma obra de ficccedilatildeo

Como ele diz ldquonatildeo existe uma torre de marfimrdquo o que existe eacute a poliacutetica do escritor Dessa

forma uma anaacutelise etnograacutefica comparativa eacute constituiacuteda por quem a escreve

Assim de todo nosso percurso pelas deusas gregas virgens e pela virgindade enquanto

conceito atraveacutes do tempo pode-se dizer como Geertz natildeo eacute ldquomuito diferente de construir

romances sobre a vida na Franccedila rural do seacuteculo XIXrdquo61

De qualquer forma poreacutem os gregos da eacutepoca arcaica existiram independentemente do

que se conjeture sobre eles Do mesmo modo os textos de Homero e de Hesiacuteodo existem como

referecircncia ao nosso proacuteprio discurso sobre os gregos e sobre a Mitologia

Um ponto relevante de se considerar eacute a questatildeo levantada por Foucault62 de que um

estudo sobre o humano revela aspectos que se entrecruzam e se emaranham especificando o que

diz respeito aos homens agrave consciecircncia agrave origem e ao sujeito Isso como diz o mesmo Foucault

nos permite definir um espaccedilo para o qual se aponta apesar de o nosso discurso ser ldquoprecaacuterio e

incertordquo

Assim em se estabelecendo comparaccedilotildees no que diz respeito ao modo de narrar de

Homero e de Hesiacuteodo como jaacute foi dito Homero humaniza o divino Coloca lado a lado deuses

e homens emparelhando-os nos sentimentos e nas accedilotildees Hesiacuteodo ao contraacuterio propotildee uma

composiccedilatildeo que privilegia a experiecircncia sagrada como uma forma de narrar a concepccedilatildeo do

mundo arcaico O uso das foacutermulas e de expressotildees retornantes como marca da oralidade e da

linhagem dos deuses apresenta tambeacutem como a narrativa de Homero a justaposiccedilatildeo temporal 60 GEERTZ apud LAYTON Op cit p 277 61 GEERTZ apud LAYTONIdem p 277-278 62 FOUCAULT Michel A arqueologia do Saber 5ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977 p19

35

mostrando-se indiferente a uma cronologia estruturada O tempo se move como se move a Terra

em um fluir constante No entanto um aspecto determinante em sua obra eacute a forma como a

descriccedilatildeo da origem das linhagens se articula pelo

poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute conferido pela Memoacuteria (Musas)63

Tambeacutem em seus Hinos Homeacutericos Homero lanccedila matildeo do recurso de invocar o poder

das Musas e de ressaltar a importacircncia do canto que possibilita ao homem transcender suas

fronteiras geograacuteficas e terrenas e entrar em contato com o que o canto promove o mundo

audiacutevel dos sons que transporta e o mundo invisiacutevel das formas presentes Esse movimento de

entrar em contato com o mundo gera a experiecircncia divina

Hesiacuteodo aleacutem das concepccedilotildees da linguagem do tempo e do Ser enfatiza ndash e talvez

mesmo centralize ndash a concepccedilatildeo de Memoacuteria na descriccedilatildeo dos extensos cataacutelogos que como

coloca Torrano ldquose oferecem como um espetacular jogo mnemocircnicordquo64

Isso nos coloca frente a um conceito que para entendecirc-lo fez-nos procurar o lado oposto

a arte de esquecer Eacute assim que Weinrich65 inaugura sua discussatildeo sobre a memoacuteria reportando a

ceacutelebre histoacuteria de Simocircnides poeta grego que viveu por volta de 500 aC que ajudou a

identificar os mortos em uma sala cujo teto desabara apoacutes sua saiacuteda O recurso da memoacuteria

espacial teria sido o primeiro exemplo de uso de teacutecnica mnemocircnica Assim a morte suacutebita dos

ocupantes da sala estaria revelando ldquouma ameaccediladora cataacutestrofe do esquecimentordquo que

ldquotransforma o lembrar num problemardquo Portanto desde os poetas gregos ao ldquocantaremrdquo as

tradiccedilotildees a memoacuteria tem um lugar principal pois que o esquecimento apagaria os vestiacutegios de

uma histoacuteria Sem a arte das Musas e sem a voz poderosa da memoacuteria como poderia Hesiacuteodo

narrar a origem dos deuses que eacute a origem do proacuteprio cosmo Sem o poder da memoacuteria como

poderia Homero honrar os deuses reverenciando-os em suas caracteriacutesticas peculiares e narrar

assombrosas faccedilanhas que eram ditas da boca ao ouvido dos homens de seu tempo

O grande feito desses autoresndashaedos foi exatamente o de transformar a ldquomemoacuteriardquo em

fatos concretos no audiacutevel e no visiacutevel Aleacutem dos sons agora a imagem das cenas se

63 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos DeusesEstudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p16 64 HESIacuteODO Op cit p16 65 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 p30

36

representava nos caracteres escritos e tomava forma O que tentamos dizer de maneira trocircpega

Weinrich coloca de forma clara e concisa

O artista da memoacuteria que segue o exemplo de Simocircnides percebe em primeiro lugar para seus fins ndash no caso da retoacuterica isso eacute sempre a fala puacuteblica ndash uma constelaccedilatildeo fixa de ldquolugaresrdquo (em grego topoi latim loci) bem familiares sua residecircncia ou o foacuterum Nesses locais ele testemunha em sequecircncia ordenada os conteuacutedos isolados da memoacuteria depois de primeiro os ter transformado em ldquoimagensrdquo (grego phantasmata latim imaginatio)66

Mas ao lado da memoacuteria que promove imagens criadoras a criaccedilatildeo tambeacutem pode ser

aniquilada nas ldquoaacuteguas do esquecimentordquo Eacute assim que os gregos ndash e a Teogonia67 ndash apontam para

essa genealogia colocam Lete (ΛήӨην) filha da noite (Νүҳ) e de Eacuteris (Discoacuterdia em latim) como

o rio do Hades que permite que os mortos se esqueccedilam de suas lembranccedilas Esse campo de

significaccedilotildees do mundo grego parece conter comparaccedilotildees e contrastes para entender aspectos

inerentes ao humano Assim eles jaacute se baseavam em uma antropologia comparativa em suas

interpretaccedilotildees a arte de esquecer se emparelhava agrave arte de lembrar Em Weinrich68 encontramos

a menccedilatildeo de que Pausacircnias cita uma fonte do Lete na Boeacutecia ao lado da qual havia uma fonte de

Mnemosyne

Nos Hinos Homeacutericos69 o(s) autor(es) dirige-se (no caso de nossa pesquisa) agraves deusas

Aacutertemis Atena e Heacutestia comparando-as e colocando-as com outros deuses Assim quando se

reporta a Aacutertemis ldquoa que atira flechasrdquo menciona seu irmatildeo Apolo tambeacutem ele um ldquodeus que

atira flechasrdquo cujos atributos tecircm pontos semelhantes haja dada sua criaccedilatildeo Quando reverencia

Atena ldquoa deusa da inteligecircncia da astuacutecia (Meacutetis) aquela que participa dos atos beacutelicosrdquo coloca

ao seu lado Ares ldquoo deus que tambeacutem se ocupa da guerrardquo Em relaccedilatildeo a Heacutestia ldquoa deusa da

lareira dos lares e da pira das cidadesrdquo ldquoprotetora da famiacutelia e da polisrdquo une-a a Hermes no seu

movimento de ldquoajudar os homens doador de bens protetor dos caminhos e mensageiro dos

deusesrdquo

Nesse processo de contraste Homero e Hesiacuteodo ressaltaram o esquecimento (Lete filha

da noite escura) e a memoacuteria cujas filhas foram as musas inspiradoras Como coloca Torrano70

66 WEINRICH idem p31 67 HESIacuteODO Opcit p 117118 vs 225-232 68 WEINRICH Opcit p21 69 HESIOD THE HOMERIC HYMNS AND HOMERICA Translated by H G Evelyn-White LOEB Classical Librars 1982 70 HESIacuteODO Opcit p 70

37

a memoacuteria eacute ldquoa mais vigorosa negaccedilatildeo do Esquecimento em que se daacute o Natildeo-Serrdquo A memoacuteria

tem pois nesse sentido uma significaccedilatildeo de presentificar o Ser Isso revela um entendimento

inerente da memoacuteria que nomeia e situa o Ser que o coloca como sujeito da sua histoacuteria e da

Histoacuteria como parte de uma trajetoacuteria O proacuteprio tempo soacute teraacute significaccedilatildeo se fizer parte do

contexto da memoacuteria

Homero explicita claramente essa relaccedilatildeo entre o Ser e o Natildeo-Ser entre o Esquecimento

e a Memoacuteria na Odisseacuteia As drogas (os ρһаґmаkοn no Canto IX) e as artimanhas do amor

(Περικаλλέοs ευνές a cama esplecircndida referindo-se ao seu envolvimento com Circe no Canto X

e com Calipso v 450 451 por exemplo no canto XI quando narra ter sido recebido na cama e

ter tido os cuidados da ninfa em Ogiacutegia onde a deusa vive) interromperam por uns tempos o

propoacutesito de Odisseu retardando seu retorno agrave cidade e a casa uma vez que estivera sob o

comando do esquecimento Esse pertence ao paiacutes dos mortos e natildeo dos vivos como se entende

na narrativa homeacuterica Quando Odisseu volta a Ser quando chega a Iacutetaca sem reconhececirc-la

sentindo-se desolado clamando aos deuses eacute acolhido por Palas Atena que lhe descreve a terra

falando de seu solo feacutertil e de sua produccedilatildeo Entatildeo tendo sido recebido pela protetora de Atenas

Odisseu se recompotildee Estaacute pleno da memoacuteria As condiccedilotildees que levam Odisseu a esse estado de

ficar no esquecimento ou de fazer uso da memoacuteria indicam um estado representativo do Ser

quando o homem se coloca em um conflito entre mergulhar em um espiacuterito de aventura eliminar

o passado e atirar-se no mundo imaginaacuterio e manter-se preso agrave realidade ao mundo conhecido

do qual faz parte O personagem conhece pois um drama de foro iacutentimo que faz parte do

humano enquanto Ser mortal

Assim a epopeacuteia exprime alguns desejos inerentes ao humano no que concerne

sentimentos estados e fantasias Limites que ficam entre o real e o imaginaacuterio e revelam

essencialmente o ideal do homem comum de sua vida no campo no mar no poacutelis combinando

o maravilhoso o misterioso e o sagrado enfim tudo o que pode encantar e ser reconhecido por

esse mesmo homem Cabe ao cantor ao poeta reconstruir e relembrar os gestos que fazem parte

do mundo

Queremos dizer em outras palavras que a obra desses dois grandes gregos Homero e

Hesiacuteodo cobrem todos os aspectos da vida humana Jaacute nos referimos agraves recorrecircncias do Tempo e

do Ser jaacute mencionamos os recursos linguumliacutesticos referentes agrave escrita e agrave oralidade jaacute expusemos

38

o que o mytho pode revelar no contexto arcaico e como se enreda com a questatildeo da tradiccedilatildeo

miacutetica jaacute apontamos para o embrenhamento do social e do religioso jaacute falamos de algumas

caracteriacutesticas pertinentes das obras desses autores e jaacute indicamos nossa indagaccedilatildeo frente ao

objeto de estudo as deusas gregas virgens figuras recorrentes nessas obras citadas aleacutem de suas

representaccedilotildees em estaacutetuas e outras iconografias da eacutepoca bem como sua indicaccedilatildeo nas obras de

Heroacutedoto de Pausacircnias e de outros autores que se referiram agravequela eacutepoca E aiacute encontramos um

aspecto que foi colocado pelos poetas na sua acepccedilatildeo do humano a questatildeo de gecircnero

O feminino e o masculino envolvidos nos laccedilos dos desejos carnais a cama como

siacutembolo de amor uma forma de expressar a sexualidade A virgindade feminina representando

trecircs deusas que natildeo se subjugam agraves questotildees de Afrodite isto eacute ao hiacutemeros a forccedila desejante

que como vimos em Homero leva ao esquecimento e faz com que o homem perca seu rumo

desvie-se de sua rota retarde sua trajetoacuteria A virgindade colocada no feminino e no sagrado em

um mundo com tantos episoacutedios de relacionamentos desejantes com tantas lendas de traiccedilotildees ndash

se eacute que assim podemos chamaacute-las ndash e de procriaccedilatildeo revela uma particularidade a mais nesse

mundo grego a ser investigado e re-examinado Por que perguntamos Aacutertemis Atena e Heacutestia

se opunham de forma obstinada ao ldquoardor amorosordquo O que viam de incocircmodo na manifestaccedilatildeo

da sexualidade Ou melhor o que viam na virgindade

Do ponto de vista psicanaliacutetico (longe de noacutes a atitude de querermos colocar essas figuras

divinas no divatilde) o feminino sempre foi um ldquoembaraccedilordquo para os estudiosos da mente e do

comportamento humanos Conhece-se a famosa indagaccedilatildeo de Freud ldquowas will das weibrdquo71

Vaacuterios autores tentaram explicar justificar e mesmo responder essa indagaccedilatildeo freudiana Grant

em seu artigo sobre a feminilidade reporta-se ao fato de que a literatura analiacutetica ldquonatildeo paacutera de

mostrar que as consideraccedilotildees anatocircmicas natildeo satildeo iacutendices para falar da diferenccedila de identidade

sexual entre homens e mulheresrdquo72

De fato o que marca a sexualidade eacute algo que vai aleacutem da materialidade do corpo Por

isso colocou-se em paacuteginas anteriores a discussatildeo que propotildee a indicaccedilatildeo e a especificaccedilatildeo de

funccedilotildees em alguns momentos em que se reflete sobre aspectos sociais Reproduzindo as palavras

de Grant temos 71 O que quer uma mulher 72 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009

39

O fator preponderante que determinaraacute a questatildeo da diferenccedila sexual seraacute o resultado de uma leitura do corpo marcado por um oacutergatildeo sexual a que uma famiacutelia e um determinado sujeito em certas condiccedilotildees sociais podem proceder73

Grant indica pois que o oacutergatildeo sexual de um sujeito eacute representado pelo significante o

que vale dizer que a sociedade determina conceitos e valores ao masculino e ao feminino

Aleacutem dessa complexa problemaacutetica feminina Freud tambeacutem tentou enfocar e entender a

importacircncia das figuras materna e paterna no desenvolvimento da feminilidade e de alguma

forma a conclusatildeo eacute de que a figura predominante eacute a figura materna Entatildeo perguntamos como

pensar a feminilidade em Atena privada que foi da figura materna Ateacute seu nascimento deu-se

na representaccedilatildeo do masculino tendo ela nascido da cabeccedila do pai Como os antigos gregos

entendiam essa sua mitologia que colocava uma deusa cuja condiccedilatildeo de existecircncia cria um noacute

inarredaacutevel em relaccedilatildeo agrave figura da matildee

Aleacutem do mais Freud tentou responder o enigma da questatildeo que ele mesmo se havia

colocado e propocircs como soluccedilatildeo que ser mulher eacute ser matildee ou em outras palavras ter um filho

significa ter um falo

Apesar de as deusas virgens natildeo terem tido filhos natildeo podemos dizer que esse eacute um forte

argumento contra a feminilidade delas pois muitas outras mulheres inclusive em nosso mundo

contemporacircneo optam por natildeo terem filhos o que natildeo lhes nega a feminilidade

Aleacutem disso ainda um aspecto interessante apresentado por Riviegravere74 eacute que muitas

mulheres que preenchem caracteriacutesticas plenas ocupadas pelo feminino podem estar recorrendo a

maacutescaras de feminilidade revestindo-se apenas de suas aparecircncias As deusas virgens assumiram

sua virgindade sem constrangimento o que lhes confere o epiacuteteto de ldquoparthenosrdquo Portanto natildeo

foram mascaradas como diz Riviegravere a respeito das ldquomulheres-homensrdquo

Assim apesar de muitas especulaccedilotildees natildeo se esclarece muito o conflito que o feminino

pode evocar Ao lado de Freud que queria saber o que eacute uma mulher a nossa indagaccedilatildeo se volta

para o que eacute uma virgem

Talvez a resposta esteja dentro da proacutepria mitologia o que estaacute em jogo eacute a natureza de

todo e qualquer desejo (hiacutemeros) daiacute a importacircncia de Afrodite e de Eros ao longo da histoacuteria da

73 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 74 RIVIEgraveRE apud GRANT Op cit

40

humanidade Alem disso o amor e o desejo se inserem em um registro maior do Ser o da

propriedade privada o que vale dizer que haacute uma propriedade inviolaacutevel no espaccedilo social que eacute

o proacuteprio corpo Isso significa que apesar de as diferenccedilas anatocircmicas natildeo serem relevantes para

a constituiccedilatildeo do masculino e do feminino elas determinam uma significaccedilatildeo social e

ideoloacutegica uma vez que o corpo ao longo da Histoacuteria tem sido usado como mercadoria em um

sistema de trocas

As deusas virgens estavam cientes dessa inviolabilidade e sua privacidade subjetiva

inscrevia-se no discurso miacutetico

Frente a Afrodite ceder ao desejo e ser tomado por ele implicaria a Aacutertemis a Atena e a

Heacutestia ver transformado o valor de uso do seu gozo em valor de troca de desejo Por isso a

afirmaccedilatildeo da virgindade e o pedido ao pai (Zeus) para que pudessem manter esse caraacuteter de

castidade que caracteriza a intimidade subjetiva dessas deusas A autorizaccedilatildeo preacutevia ao outro (ao

pai) se imporia a elas para que pudessem usufruir do seu corpo sem o que esse corpo se

transformaria em valor de uso para o gozo de outro e portanto na posse interditada do que eacute

considerado ser intransferiacutevel Essa opccedilatildeo concretiza-se pois em um gesto com um sentido

simboacutelico evidente de registrar a subjetividade Poreacutem nossa proposta eacute de examinar cada uma

das deusas virgens comparando-as e interpretando caracteriacutesticas que julgamos amplas e que soacute

o contexto cultural nessa teia toda pode exprimir Aleacutem disso no processo de compreensatildeo da

virgindade ndash da mesma forma que memoacuteria e esquecimento se complementam ndash natildeo podemos

deixar de discutir o desejo enfocando a deusa do ldquoAmorrdquo e sua representaccedilatildeo para o

entendimento desse conceito no cosmo no que diz respeito a deuses e homens

Quando colocamos que essa posiccedilatildeo de destaque das deusas se daacute atraveacutes de um gesto

estamos interpretando o conteuacutedo ritualiacutestico que essa posiccedilatildeo comemora O rito de passagem

que se opera eacute singular e pleno de significaccedilatildeo As deusas em questatildeo romperam com uma

situaccedilatildeo codificada pelos valores culturais

Com efeito nas formas instituiacutedas do masculino ndash mortal ou imortal ndash e do feminino ndash

mortal ou imortal ndash na tradiccedilatildeo do Ocidente previam-se as relaccedilotildees de trocas entre os sexos

previam-se os rituais de iniciaccedilatildeo para o casamento previa-se a constituiccedilatildeo da famiacutelia previa-

se a procriaccedilatildeo previa-se a forccedila do desejo Nesse gesto de mudanccedila de posiccedilatildeo do feminino

condensa-se a virgindade Estaacute assim instituiacutedo o registro simboacutelico em que a palavra natildeo

41

consegue dar conta e torna-se insuficiente A abrangecircncia cultural e o aspecto do Ser

transcendem a substacircncia do conceito da virgindade A virgindade entre as mulheres (mortais)

passa a ser instaurada e aceita atraveacutes da atitude e da representaccedilatildeo simboacutelica das deusas

(sagradas) O ser humano comum espelha-se e exemplifica-se no divino Constituem-se

diferentes formas de significar

Discutiremos em outro capiacutetulo que como se isso natildeo bastasse ainda podemos descobrir

outros valores nesse gesto distinguindo cada uma dessas deusas na sua individualidade Isso

implica pois nuances e enfoques diferentes na forma de representaccedilatildeo que a virgindade assume

no sujeito E como o discurso freudiano atesta a sexualidade natildeo tem um sentido uniacutevoco mas

uma multiplicidade de significados Sobre essa situaccedilatildeo diz Birman

O sexual seria marcado pela polissemia natildeo podendo pois enquanto palavra e conceito ser reduzido a um campo restrito de referentes Assim a noccedilatildeo de complexidade perpassa o conceito de sexualidade estando entatildeo a dita polissemia inequivocamente articulada ao atributo da complexidade75

O caso da virgindade se a considerarmos como parte da sexualidade nos faz pensar que

ela eacute desalojada do plano comportamental e se aproxima mais da experiecircncia do senso comum

como pode ser compreendido nos registros do discurso do imaginaacuterio social Esse fato nos

permite concluir que natildeo podemos estabelecer normas e nos permite tambeacutem concordar com

Freud

Se bem que eacute oacutebvio o discurso poeacutetico natildeo seja exatamente o do senso comum pode-se dizer que aquele estaacute mais proacuteximo do imaginaacuterio popular do que o cientiacutefico76

Natildeo podemos deixar de reconhecer que os mitos e o discurso poeacutetico satildeo criaccedilotildees do

humano o que revela que foram as experiecircncias dos indiviacuteduos que forneceram elementos para

as epopeacuteias que falam de deusas e deusas de heroacuteis e de pessoas comuns de guerras e de

conflitos passionais

A complexidade a que se refere Birman (acima citado) encaminha a hipoacuteteses

inquietantes pois tambeacutem a representaccedilatildeo da virgindade pode estar vinculada a fatores que satildeo

indecifraacuteveis nesse campo elaacutestico da sexualidade Uma colocaccedilatildeo feita por Birman parece

oferecer um resumo sinteacutetico de uma questatildeo tatildeo ampla e profunda

75 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 p17 76 BIRMAN Joel idem p21

42

Com efeito a sexualidade se inscreve na fantasia antes de mais nada Esse eacute o campo por excelecircncia do erotismo Natildeo existiria pois sexualidade sem fantasia sendo essa sua mateacuteria-prima Seria entatildeo a partir da fantasia como fundamento que a sexualidade poderia assumir formas comportamentais diversificadas O comportamento seria pois o elo final de uma longa cadeia de relaccedilotildees que se inscreveriam primordialmente na fantasia do sujeito O sexo seria portanto um efeito distante do sexual por mais paradoxal que possa parecer essa afirmaccedilatildeo Em contrapartida se existe algo de enigmaacutetico e de obscuro no erotismo a fantasia seria o lugar crucial para o deciframento desse enigma e de iluminaccedilatildeo dessa obscuridade77

Esse enfoque na fantasia pode revelar que de algum modo a sexualidade se materializa

no registro do corpo Embora essa constataccedilatildeo pareccedila ser antagocircnica o que ocorre eacute que natildeo

existiria oposiccedilatildeo entre a fantasia e o corporal ou em outras palavras a sexualidade soacute pode ser

entendida se forem consideradas as forccedilas pulsionais

Eacute interessante pensar que na nossa constataccedilatildeo do mundo grego a incorporaccedilatildeo dos

valores existentes no imaginaacuterio da eacutepoca arcaica parecia identificar tanto o masculino quanto o

feminino com atributos de atividade no que diz respeito agraves deusas virgens Isso parece

evidenciar um consenso social entre os gregos Se Zeus era um deus ativo natildeo menos que ele era

Afrodite no terreno da sexualidade A seduccedilatildeo provocada por Afrodite foi positivamente

qualificada pois ela inscrevia no sujeito o desejo que eacute a marca insofismaacutevel do seu Ser

A questatildeo do desejo foi amplamente discutida por filoacutesofos e revela desde Platatildeo o que

Freud chamou de desamparo e Lacan de falta Em Platatildeo jaacute se encontra essa acepccedilatildeo de que o

desejo implica sempre a incompletude ou seja o sujeito desejante Por isso encontra-se em

Platatildeo como coloca Dumoulieacute78 que o ldquoo que anima o amor o que faz Eros viver eacute o desejo e o

desejo eacute carecircncia eacute faltardquo

O que interessa pois para entender o conceito de desejo eacute o que fundamenta o

pensamento grego E para os gregos da eacutepoca arcaica a relaccedilatildeo do homem com o Ser implicava

jaacute em si uma relaccedilatildeo de desejo Assim Afrodite se afirmava como eterna nesse movimento

coacutesmico de afirmar o desejo como princiacutepio fundador da eternidade do mundo Na Greacutecia cabia

aos mortais manter as tradiccedilotildees inauguradas pelos deuses e como ldquoguardiatildees da memoacuteriardquo

renovar as tradiccedilotildees atraveacutes dos ritos e dos relatos orais e escritos Por isso os aedos inspirados

pelo poder das musas podiam contar as faccedilanhas dos deuses e dos homens de forma que elas

passassem a pertencer ao visiacutevel e pudessem revelar a forccedila desejante do Ser

77 BIRMAN Joel opcit p62 78 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 p25

43

4 - O QUE Eacute TRADUZIR lsquoHOMEROrsquo TENTATIVAS E RISCOS

Assim eacute que a felicidade de um povo corta as asas a seu verso oferece escassa mateacuteria para admiraccedilatildeo e piedade E ainda que o prazer originado do gosto pelas espeacutecies sublimes de escrita possa fazer Vossa Senhoria lamentar o silecircncio das Musas estou persuadido de que vos ireis juntar a mim nos votos de que jamais possamos ser tema apropriado de um poema heroacuteico79

Como ldquoserrdquo um Homero grego em portuguecircs Ou um Hesiacuteodo Ou um rapsodo O

absurdo da indagaccedilatildeo jaacute leva a uma constataccedilatildeo oacutebvia da resposta

Citando um trecho das reflexotildees de Detienne temos que

a liacutengua veicula noccedilotildees o vocabulaacuterio eacute mais um sistema conceitual do que um leacutexico e as noccedilotildees linguumliacutesticas remetem agraves instituiccedilotildees isto eacute a esquemas diretores presentes nas teacutecnicas nos modos de vida nas relaccedilotildees sociais nos processos da palavra e do pensamento80

Se por um lado isso revela a impossibilidade da exatidatildeo em qualquer traduccedilatildeo por

mais teacutecnica e detalhada que ela seja por outro lado revela o desejo do pesquisador de se

aproximar de um estudo etnograacutefico bisbilhotando os textos no original descobrindo indicaccedilotildees

que o uso dos vocaacutebulos das colocaccedilotildees das alternacircncias das recorrecircncias possa significar

Jaacute vimos no capiacutetulo anterior que Milman Parry apontou para a importacircncia dos epiacutetetos

na poesia eacutepica grega Soacute quando se inteirou da profundidade da linguagem e da liacutengua esse

autor pocircde fazer descobertas significativas que introduziram por sua vez novos conceitos e um

novo olhar sobre os epiacutetetos na epopeacuteia e na forma de transmitir a tradiccedilatildeo Como coloca ainda

Detienne ldquoQuaisquer que sejam seus efeitos imediatos ou a longo prazo o escrever a lsquotradiccedilatildeorsquo

transforma virtualmente uma cultura baseada na oralidade na memoacuteria e no memoraacutevelrdquo81 Foi

desdobrando as dobras da epopeacuteia grega que Milman Parry pocircde verificar os desiacutegnios da

tradiccedilatildeo

Alguns aspectos da cultura satildeo dificilmente localizaacuteveis se natildeo houver investigaccedilatildeo do

campo linguumliacutestico e do semacircntico Eacute preciso ldquomaterializarrdquo a liacutengua alvo para conseguir perceber

ndash ainda que de longe e a distacircncia ndash o pensamento miacutetico

79 BLACKWELL apud LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 p 188 80 DETIENNE MarcelOs Gregos e Noacutes Uma Antropologia Comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p79 81 DETIENNE Marcel Opcit p63

44

O objetivo do tradutor eacute tentar entender o texto estrangeiro natildeo soacute na sua abrangecircncia

mas tambeacutem nos detalhes Aleacutem da visibilidade das imagens graacuteficas que compotildeem o texto ele

tem de captar os vatildeos invisiacuteveis Assim a dificuldade se faz dupla traduzir o diziacutevel e o

indiziacutevel

Venuti inaugura seu texto sobre traduccedilatildeo com a colocaccedilatildeo de que

o trabalho de traduccedilatildeo eacute governado por uma noccedilatildeo de equivalecircncia que evolui e varia equivalecircncia a uma interpretaccedilatildeo de uma forma e um conteuacutedo estrangeiros em geral realizada no processo de traduccedilatildeo e raras vezes articulada independentemente dele82

Daiacute jaacute se nota que natildeo haacute uma uacutenica forma de traduzir e que a traduccedilatildeo eacute atravessada pelo

conhecimento que o tradutor tem da liacutengua estrangeira da cultura alvo e de sua relaccedilatildeo com a

sua cultura de origem Esse referencial de valores culturais domeacutesticos indubitavelmente pode

afastar o tradutor do texto e o torna ldquomais estrangeirordquo Mas ao mesmo tempo tambeacutem a

traduccedilatildeo oferece uma domesticaccedilatildeo pois que o tradutor vai se familiarizando com a cultura

estrangeira no ato de traduzir Nesse sentido a traduccedilatildeo se presta para construir representaccedilotildees

de culturas estrangeiras

Esse movimento de se adequar a uma outra cultura construindo uma posiccedilatildeo de

inteligibilidade para o sujeito acaba tambeacutem criando uma postura ideoloacutegica A escolha de um

texto e de estrateacutegias de traduccedilatildeo pode direcionar o texto para diferentes visotildees e pode ateacute

mesmo mudar ou consolidar cacircnones e paradigmas conceituais aleacutem de influenciar metodologias

de pesquisa enfoques teacutecnicos e praacuteticas que satildeo parte da cultura domeacutestica

Na tentativa de traduzir o trabalho do tradutor reflete sua ideologia Por isso eacute

fundamental que se tenha em mente que o trabalho de traduccedilatildeo admite mais que uma abordagem

Assim por exemplo na tentativa de traduzir os Hinos Homeacutericos procuramos seguir as

pegadas do autor autores do texto original procurando palavras que recuperassem o uso dos

epiacutetetos empregando adjetivos e expressotildees que ressaltassem caracteriacutesticas dos deuses

selecionando verbos que retratassem accedilotildees referentes agrave eacutepoca arcaica ldquoinventandordquo termos que

dessem conta da representaccedilatildeo de imagens do cosmo

Ia surgindo assim uma aacuterea de trabalho inteiramente nova e foi nesse momento que

entendemos a acepccedilatildeo de Venuti a respeito dos ldquoefeitosrdquo da traduccedilatildeo mudamos o nosso modo de

82 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 p173

45

olhar o mundo grego As deusas virgens se presentificaram e a epopeacuteia tomou forma e ganhou

ritmo Parecia-nos impossiacutevel que em menos de um ano pudeacutessemos entender textos em grego

Seraacute que nos aproximamos de um processo de domesticaccedilatildeo

Poreacutem o que eacute fato conhecido eacute que haacute tambeacutem a ideologia do tradutor do tradutor

Dessa forma cada eacutepoca dita seus cacircnones e independentemente deles existe um

ldquocorporativismo acadecircmicordquo que determina estilos de traduccedilatildeo aceitaacuteveis e que se tornam

paradigmaacuteticos Essas avaliaccedilotildees institucionais nem sempre consideram todos os aspectos que

envolvem uma traduccedilatildeo Por exemplo a ediccedilatildeo chamada de LOEB eacute considerada ao lado da

traduccedilatildeo francesa de Jean Humbert des Belles Lettres um claacutessico_ como se chamam todas as

obras consagradas_ e no entanto o autor traduz os Hinos Homeacutericos sem a preocupaccedilatildeo de

manter a estrutura riacutetmica e a beleza poeacutetica dos versos Resume-se a traduzir o significado do

texto de forma ldquoconteudiacutesticardquo Nessa passagem de um idioma ao outro haacute tambeacutem uma

mudanccedila do gecircnero textual de poemas para uma narrativa factual Esse tipo de ocorrecircncia revela

a questatildeo da subjetividade do tradutor De qualquer forma as ediccedilotildees LOEB satildeo um cacircnone para

a traduccedilatildeo de textos gregos porque servem a certos interesses de um grupo especiacutefico Isso

explicita uma outra questatildeo ideoloacutegica qual seja a de que os cacircnones introduzidos pelos falantes

de liacutengua francesa e de liacutengua inglesa tecircm dominado o mundo ocidental Como dissemos as

escolas indicam a ldquopreferecircnciardquo de um momento de uma predominacircncia de poliacutetica linguumliacutestica e

hoje a obra de Caacutessola Inni Omerici eacute tida como um dos manuscritos mais apropriados dado o

seu embasamento de pesquisa e seleccedilatildeo cuidadosa do material

Essa constataccedilatildeo revela a dificuldade de um trabalho de traduccedilatildeo e demonstra que os

ldquoefeitosrdquo em geral refletem os interesses de um grupo cultural particular

De forma ousada quase um desafio na tentativa de correr riscos ao se traduzirem os

Hinos Homeacutericos para o portuguecircs procuramos fazer um trabalho em que acreditaacutevamos ndash e aiacute

entra a nossa individualidade ndash na investigaccedilatildeo do leacutexico no entendimento das funccedilotildees

sintaacuteticas na organizaccedilatildeo do texto e sobretudo na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees culturais

Fomos fazendo comentaacuterios tecendo consideraccedilotildees e propondo questionamentos de questotildees

natildeo resolvidas Aleacutem disso procurou-se manter uma preocupaccedilatildeo meacutetrica dos versos para tentar

conservar uma cadecircncia riacutetmica Mais uma vez a questatildeo da domesticaccedilatildeo e da equivalecircncia a

qual natildeo haacute como se evitar

46

Haacute ainda dois pontos a serem considerados por serem objeto de nosso interesse (1) que

desconhecemos qualquer traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos agraves deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia em

portuguecircs e dos Hinos V e VI referentes a Afrodite (2) que eacute preciso que se reconheccedila o caraacuteter

da poesia eacutepica

O estilo da poesia eacutepica eacute de inegaacutevel simplicidade conciliando a excelecircncia dos

costumes e a nobreza dos caracteres Eacute uma manifestaccedilatildeo do ldquomaravilhosordquo e do ldquoassombrosordquo

Tanto em Homero como nos rapsodos que o sucederam e que continuaram sua tradiccedilatildeo como

em Hesiacuteodo a histoacuteria dos deuses e dos heroacuteis eram colocadas para a representaccedilatildeo da

ocorrecircncia de fatos extraordinaacuterios e no caso dos Hinos Homeacutericos na exacerbaccedilatildeo de

verdadeiras louvaccedilotildees arrebatadoras dramaacuteticas enfatizando dons e atributos que movem as

paixotildees humanas que as engrandecem e que evocam clamam pela imitaccedilatildeo do que eacute grandioso

para o humano Como diz Lacerda referindo-se ao trabalho de Blackwell83 sobre a eacutepoca de

Homero

Blackwell como se acabou de verificar presumiu que o grego falado no tempo de Homero se encontrava em condiccedilotildees ideais para a composiccedilatildeo eacutepica O que o tornava tatildeo apropriado seria natildeo soacute a coloraccedilatildeo emotiva mas ainda a ausecircncia de artifiacutecios e sutilezas ldquoUma liacutengua totalmente polida no sentido modernordquo sentencia ldquonatildeo desceraacute agrave simplicidade de maneiras absolutamente necessaacuteria na poesia eacutepicardquo84

Esse aspecto ndash de uma simplicidade quase ingecircnua ndash que foi visto por muitos autores

como um lsquoprimitivismorsquo nos parece como coloca Lacerda ldquouma forma particular de poesia (e de

saber)rdquo85 E mais

Visto que o bom poeta imita a ldquonaturezardquo e natureza no caso quer dizer realidade circundante o poeta de uma eacutepoca polida soacute teraacute ecircxito em assuntos refinados86

Isso nos remete agrave questatildeo dos ldquoriscosrdquo que percebemos nas traduccedilotildees agraves vezes tatildeo

polidas apropriando-nos do termo de Blackwell que se tornam distantes da realidade da eacutepoca

dos deuses quando o efeito da poesia eacute muito mais feito pelo sublime do que pelo grandioso que

os tempos modernos inauguraram

83 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer( 1736) Reimpressatildeo reprograacutefica HildesheimNew York Georg Olms 1976 84 LACERDA Sonia Op cit p 186 85 LACERDA Sonia Idem p 186 86 LACERDA Sonia Idem p187

47

Eacute que Homero Hesiacuteodo e os rapsodos como bardos compositores participavam da

amaacutelgama de saberes miacuteticos (que perdemos atraveacutes dos tempos) e os esquemas linguumliacutesticos e os

motivos narrativos proporcionavam a esses poetas a substacircncia representativa e imageacutetica dos

poemas A forma de vida nesse mundo arcaico a religiatildeo ldquoacotoveladardquo com a realidade

cotidiana e a simplicidade da linguagem eram circunstacircncias essenciais para a elaboraccedilatildeo

ldquoliteraacuteriardquo de uma poesia eacutepicamiacutetica

Por isso querer traduzir os poemas desses bardos corre o risco de produzir uma forma

sincreacutetica ldquofalsardquo de poemas sem feiccedilatildeo na medida em que se afastam tanto da perspectiva da

faacutebula miacutetica quanto da linguagem metafoacuterica pois que a mitologia jaacute eacute intrinsecamente

metafoacuterica

Portanto optamos por traduzir os hinos homeacutericos na sua linearidade no entendimento

do movimento do leacutexico da multiplicidade das metaacuteforas na organizaccedilatildeo das faacutebulas sem

qualquer pretensatildeo ldquomimeacuteticardquo ou seja de imitar aquilo que faz parte da inerecircncia do mito

Pareceu-nos por isso saacutebia a posiccedilatildeo adotada por Faulkner87 quando em sua obra apresenta o

Hino Homeacuterico V a Afrodite em grego limitando-se a comentaacuterios linguumliacutesticos e semacircnticos do

texto a traduccedilotildees interpretativas de frases e expressotildees sem no entanto compor uma traduccedilatildeo

sua

Ainda no dizer de Lacerda reportando-se ao mesmo Blackwell

Da mesma maneira que lhe estatildeo vedados o surpreendente e o fabuloso ao poeta moderno eacute interdito descrever accedilotildees sublimes e caracteres heroacuteicos pois este satildeo estranhos aos costumes de seu tempo e agrave sua experiecircncia88

Seja como for parece-nos que a poesia eacutepica pode tambeacutem ser adaptada a tempos

modernos adquirindo um novo enfoque

87 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Oxford Oxford University Press 2008 88 LACERDA Sonia Opcit p188

49

5 - QUE DEUSAS SAtildeO ESSAS

ldquoLa fertilidad de la naturaleza y la fecundidad tanto de la tierra como de los seres humanos fueron consideradas como misterios sublimes y foram divinizadasrdquo89

51 - AFRODITE E A REPRESENTACcedilAtildeO DO DESEJO

Afrodite eacute consagrada como a deusa do amor a deusa Afrogeneacuteia (ΑФρογένεια) que

nasceu da espuma do mar

Como tudo se inicia A lenda mais conhecida nos conta que no princiacutepio Gaia a matildee

universal comeccedila criando a partir de si mesma quer dizer sem seu contraacuterio masculino o que

implica pois que natildeo houve uniatildeo sexual Esse tipo de reproduccedilatildeo nomeada de cissiparidade

deu origem a Urano o ceacuteu Entatildeo nesse momento comeccedilaram a unir-se Gaia e Urano dois

princiacutepios opostos para procriar filhos que tecircm uma individualidade que satildeo marcados por

atributos que tecircm uma funccedilatildeo como potecircncias coacutesmicas A uniatildeo do ceacuteu e da terra se faz sem

regras O ceacuteu acomoda-se sobre a terra cobrindo-a inteira e os filhos gerados natildeo podem sair da

matildee Gaia por falta de distacircncia entre esses dois pais coacutesmicos Inconformada a matildee (Gaia) pede

a um de seus filhos Crono que agrave noite enquanto o ceacuteu (Urano) se debruccedila sobre ela que ele

(Crono) o castre Assim Urano eacute castrado por um golpe de foice amaldiccediloa os filhos e deixa

Gaia liberta Ficam deste modo separados por um grande espaccedilo vazio apartados um do outro

onde os opostos mesmo quando se unem permanecem distintos

Isto posto jaacute se vecirc que natildeo se pode pensar em uniatildeo dos contraacuterios sem que essa ideacuteia

esteja relacionada a um conflito a uma luta de forccedila entre os dois sexos Eacute nessa tessitura de

ldquocorda esticadardquo entre o macho e a fecircmea que surge Afrodite o ldquoamorrdquo Vinda dos testiacuteculos

ensanguumlentados de Urano que caiacuteram na aacutegua ela chega inaugurando uma forma organizada de

engendrar por uniatildeo os contraacuterios presidindo o casamento em um espaccedilo (sociedade grega

patriarcal) em que a mulher tinha como finalidade a ldquoconstruccedilatildeordquo de seu lar (marido e filhos)

89 MAVROMATAKI Maria Mitologia GriegaAtenas Ediciones Xaitali 1997 p 5

50

Como dizem Vernant e Vidal-Naquet ldquonum mundo pautado pela lei de

complementaridade entre os opostos que ao mesmo tempo se afrontam e se harmonizamrdquo90

Outra lenda conta que Afrodite teria nascido da uniatildeo de Zeus91 com Dione uma das

deusas da primeira geraccedilatildeo divina cuja origem diverge segundo diferentes tradiccedilotildees Ora diz-se

que Dione era filha de Urano e Gaia ora de Teacutetis e Oceano como estaacute colocado na Teogonia de

Hesiacuteodo Essa lenda sobre o nascimento de Afrodite natildeo eacute amplamente conhecida e eacute menos

divulgada que a anterior jaacute tatildeo explorada pelos grandes artistas de todos os tempos quer sejam

eles pintores quer poetas

Entretanto verifica-se a alusatildeo a essa lenda na Iliacuteada V 312-374 quando Afrodite filha

de Zeus (v 312 ∆ιός θυγάτηρ ΆΦροδίτη) protege seu filho Eneacuteias (gerado com o mortal

Anquises) e eacute ferida pelo heroacutei Diomedes (por sua vez protegido de Atena) Afrodite entatildeo

corre para o colo de sua matildee Especificamente os versos 370-374 narram o encontro de matildee e

filha descrito com o lirismo da proteccedilatildeo materna e do consolo compreensivo que Dione oferece

a Afrodite

ή δ έν γούνασι πΐπτε ∆ιώνης δι΄ ΆΦροδίτη 370 microητρος έής ή δ αγκάς έλάζετο θυγατέρα ήν χειρί τέ microιν κατέρεξεν επος τ΄ έΦατ΄ έκ τ΄ όνόmicroαζε ldquoτίς νύ σε τοιάδ΄ έρεξε Φελόν τεκος Οΰρανιώνων microαψιδιως ώς ει τι κακόν ρέζουσαν ένωπήrdquo92 374 Mas Afrodite arremessa-se nos joelhos de Dione 370 sua matildee e ela tomou sua filha nos braccedilos com a matildeo acariciou-a e fez uso das palavras dizendo ldquoquem agora dos filhos de Urano querida crianccedila fez coisas a ti sem razatildeo como se vocecirc um mal tivesse praticado agrave frente de todosrdquo93 374

90 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 p 61 91 Zeus eacute considerado o deus mais importante do Panteatildeo grego Identifica-se com a luz tal como o raio e reina poderoso no Olimpo morada de todos os deuses Eacute filho de Crono e Reacuteia Crono devorava os filhos agrave medida que nasciam Quando Zeus nasceu Reacuteia deu uma pedra enrolada em um pano a Crono que pensando ser a crianccedila engoliu-a Desta forma Zeus foi salvo e mais tarde tomou o poder das matildeos do pai assim como Crono havia tirado o poder de Urano castrando-o 92 HOMER The Iliad v 1 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 93 Traduccedilatildeo nossa apenas para efeito de verificar o sentido do trecho que se refere agrave origem de Afrodite

51

Como se vecirc natildeo se pode deixar de considerar essa outra tradiccedilatildeo do nascimento de

Afrodite uma vez que a Iliacuteada que eacute uma das obras mais lidas aponta para esse fato que eacute

representativo de uma linhagem que privilegia o lugar do feminino na famiacutelia patriarcal dando

ecircnfase agrave figura materna

Um outro aspecto em Afrodite que merece ser destacado eacute a questatildeo do movimento

Afrodite eacute errante Diferentemente das deusas virgens que possuem um domiacutenio especifico

Afrodite perambula por diversos espaccedilos Ela chega mesmo a invadir a ldquoaacuterea delimitadardquo das

outras deusas

Melhor explicando essa ideacuteia podemos reportar-nos a trechos da Iliacuteada e da Odisseacuteia

bem como dos Hinos Homeacutericos reveladores de seu caraacuteter inquieto fugidio onipresente A

guerra estaacute pela sua natureza relacionada agraves atividades da deusa Palas Atena que herdou a

astuacutecia materna e o espiacuterito combatente do pai como eacute comentado adiante Poreacutem Afrodite entra

e move-se nesse espaccedilo envolvendo-se de forma que natildeo pode ser controlada Como jaacute vimos no

canto V da Iliacuteada (312-374) Afrodite vai ao campo de batalha e Diomedes lhe diz em altos

brados

Filha de Zeus94 poderoso conserva-te longe da luta 348 Ou seduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedila Se ainda sentires desejo de ver um combate de perto creio que soacute o nome ldquoguerrardquo haacute de grande pavor inspirar-te Atormentada Afrodite enquanto ele falava afastou-se95 352

As palavras de Diomedes deixam claro novamente essa tradiccedilatildeo da origem de Afrodite e

o fato de que a guerra natildeo eacute espaccedilo para seduccedilatildeo para o feminino que natildeo leva a seacuterio uma

atividade complementar que faz parte da organizaccedilatildeo poliacutetico-social do povo grego Atena ao

contraacuterio move-se dentro da batalha seu campo de domiacutenio como estrategista e essa eacute uma de

suas funccedilotildees

A propoacutesito a Iliacuteada relata um episoacutedio de guerra que se desenvolve a partir da

representaccedilatildeo do desejo Eacute vinculado agrave ideacuteia de uniatildeo e de conflito a que nos referimos

anteriormente que tem iniacutecio uma guerra que envolve deuses e deusas heroacuteis e homens O

conflito eacute gerado por Afrodite na sua proposta de manter o reinado da seduccedilatildeo Natildeo haacute homem

94 Grifo nosso 95 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 p 145

52

que resista agraves tentaccedilotildees de Afrodite ou melhor difiacutecil eacute resistir aos seus ardis femininos Como

diz Diomedes a ela ldquoseduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedilardquo96

Como se sabe e a tiacutetulo de recordaccedilatildeo a histoacuteria da Iliacuteada na verdade comeccedila no ldquoceacuteurdquo

Conta a lenda que em uma grande festa em que se celebrava o casamento a uniatildeo de Peleu e

Teacutetis todos os deuses haviam sido convidados exceto Discoacuterdia (Eacuteris) E por ser Discoacuterdia

insultada e indignada fez rolar uma maccedilatilde pelo chatildeo da entrada ndash chamada lsquopomo da discoacuterdiarsquo ndash

proacuteximo ao assento das deusas Hera Atena e Afrodite Quando Hera pegou a maccedilatilde leu o que

estava escrito ldquoPara a mais belardquo Como reaccedilatildeo feminina Hera imediatamente achou que a maccedilatilde

era para si proacutepria Atena reagiu e Afrodite enfaticamente disse que era para ela Nesse clima de

discoacuterdia foi chamado Zeus que cauteloso e conhecedor do perigo de apontar qualquer uma

delas como a mais bela pois as outras duas se vingariam decidiu nomear Paacuteris tambeacutem

conhecido como Alexandre um dos filhos de Priacuteamo para decidir a questatildeo Hermes o deus

mensageiro levou as trecircs ateacute o Monte Ida onde estava Paacuteris em Troacuteia Laacute cada uma delas

ofereceu uma forma de suborno a Paacuteris em troca do tiacutetulo

Atena propocircs conceder-lhe o dom de ser um guerreiro vitorioso Hera lhe ofereceu o

reinado sobre toda a Aacutesia e Afrodite ofereceu-lhe a mulher mais bela Helena de Esparta Paacuteris

entregou a maccedilatilde de ouro a Afrodite

Eacute interessante verificar que Afrodite gera um conflito tal que troianos e gregos lutam e

morrem pelo rapto de uma mulher pois Helena jaacute era casada com Menelau Aleacutem disso o

feminino revela-se nas outras duas deusas Hera e Atena em forma de vinganccedila Hera torna-se

inimiga de Troacuteia berccedilo de Paacuteris por quem ela e Atena foram preteridas Assim por ocasiatildeo do

rapto de Helena por Paacuteris Hera faz com que o navio em que estavam os dois se afaste do

caminho de Troacuteia e se dirija para Siacutedon na costa siacuteria

Afrodite torna-se protetora de Troacuteia durante a guerra

As deusas e suas reaccedilotildees revelam um caraacuteter humano em que as emoccedilotildees ocupam um

papel preponderante tornando a epopeacuteia homeacuterica real tocante e ateacute mesmo com um certo

ldquolirismordquo como jaacute rotulamos anteriormente em um momento de ousadia Mas os deuses ndash e

nesse caso as deusas ndash soacute fazem sentido se houver o ldquohumanordquo as paixotildees que determinam

concorrecircncias voluacutepias enganos oacutedios terriacuteveis desordens desmedidas lutas Em se

96 HOMERO Idem v 349

53

considerando esse aspecto fundamental do mito grego o certo e o errado o que pode e o que natildeo

pode o que deve e o que natildeo deve enfim valores morais que os homens estabeleceram ao

longo dos tempos eles natildeo existiam como valores eacuteticos entre os gregos da eacutepoca arcaica Desse

modo a moral de Afrodite eacute o desejo poder contra o qual os mortais nada podiam pois os

homens nada valiam sem seus deuses Em outras palavras as accedilotildees humanas (de Paacuteris e de

Helena) soacute existem por intervenccedilatildeo divina Cabe aos deuses a direccedilatildeo de suas intervenccedilotildees ainda

que possam parecer desleais mas que em geral tentam ajudar aquele ou aqueles que procuram

proteger Com a proteccedilatildeo dos deuses aos mortais nada eacute impossiacutevel e assim como Atena

protege Diomedes no combate Afrodite vela por Paacuteris o troiano contra Menelau que teve sua

mulher raptada

O canto III da Iliacuteada mostra um momento de grande forccedila e poder de Afrodite quando

Alexandre (Paacuteris) filho de Priacuteamo (de Troacuteia) luta com Menelau (marido ofendido) e embora

Menelau saia vencedor do embate (graccedilas agrave proteccedilatildeo de Atena) Afrodite salva Paacuteris da morte

(das investidas violentas das armas de Menelau) e o leva a salvo ateacute Helena A proacutepria Helena

reprova a atitude da deusa ante a vitoacuteria de Menelau poreacutem Afrodite chama-lhe a atenccedilatildeo para

seu poder dizendo

Natildeo me provoques criatura infeliz porque natildeo aconteccedila 414 que te abandone e te venha odiar quanto agora te prezo Se entre Acaios e Teucros97 fizesse surgir oacutedio infausto contra tu proacutepria haverias de ter um destino bem triste98 417

Ouvindo essas palavras Helena ficou cheia de medo (έδδεισεν v 418) e seguiu a deusa

que no texto homeacuterico eacute indicada com a palavra δαίmicroων v 420 com sentido de terriacutevel

poderosa de onde vem em portuguecircs o termo democircnio usado na traduccedilatildeo de Nunes

e sem dizer mais palavra se foi99 no veacuteu branco envolvida 419 sem que as troianas a vissem servia de guia o democircnio100 420

A influecircncia de Afrodite eacute decisiva na uniatildeo do casal Paacuteris-Helena e essa ligaccedilatildeo natildeo

dependeu do desejo dos mortais mas do ldquodestinordquo imposto pela deusa

97 Equivalente a gregos e troianos No texto Τρώων καί ∆αναών (v 417) sendo que ∆αναών significa descendente de Dacircnaos 98 HOMERO Op cit Canto III 414-417 p 115 99 Referindo-se a Helena 100 HOMERO Op cit Canto III 418-420 p 115

54

Afrodite tambeacutem protege na guerra de Troacuteia Eneacuteias seu filho com Anquises mas isso eacute

uma outra histoacuteria Aqui a lenda miacutetica enreda temas de conceitos que se sobrepotildeem primeiro a

questatildeo que existe entre a diferenccedila essencial da imortalidade dos deuses e da mortalidade

humana Eneacuteias eacute fruto de uma ligaccedilatildeo entre a deusa Afrodite e o mortal Anquises o que jaacute

revela que como descendente que tem traccedilos humanos natildeo goza do privileacutegio da imortalidade

Segundo apesar de Afrodite estar sempre tecendo a seduccedilatildeo e provocando a uniatildeo sexual entre

deuses e homens o Hino Homeacuterico V que faz parte de uma sequumlecircncia de trinta e trecircs hinos de

eacutepocas e autores diferentes posteriores agrave Iliacuteada e a Odisseacuteia mas que mantem tambeacutem uma

dicccedilatildeo eacutepico-narrativa narra a seduccedilatildeo da proacutepria Afrodite por Anquises e a concepccedilatildeo de

Eneacuteias Veja-se o trecho seguinte retirado do Hino Homeacuterico V 247-255 em que Afrodite

reconhece seu deslize por ter se deixado envolver por um homem mortal

∆ΰτάρ εmicroοί microέγ ονειδος έν αθαvάτοισι θεοΐσιν 247 Έσσεται ήmicroατα πάντα διαmicroπερές έίνεκασεΐο οί΄ πριυ ε΄microούς ο΄άρους και υητιας αΐς ποτε πάντας αθανάτους συνέmicroιξα καταθνητήσι γυναιξί 250 τάρβεσκον πάντας γάρ εmicroόν δάmicroνασκε νόηmicroα νΰν δέ δη ουκέτι microοι στοmicroα χείσετι έξονmicroήναι τούτο microετ΄ άθανάτοισν έπεί microαλα πολλόν α΄άο θην σχέτλιου οΰκ όνοταστόν άπεπλάγχθην δέ νόοιο παΐδα δ΄ ύπό ζώνη έθέmicroηv βροτώ εύνηθέΐοα101 255

E agora sobre mim uma grande censura entre os deuses imortais 247 haveraacute todos os dias continuamente por causa de vocecirc aqueles que se amedrontaram de minhas zombarias e ardis com os quais alguma vez fiz todos os imortais se envolverem com mulheres mortais 250 pois meu propoacutesito submeteu todos a mim Mas agora minha boca natildeo mais teraacute coragem de mencionar isso entre os imortais desde que fiquei grandemente atormentada infeliz sem palavras tendo perdido o juiacutezo trago uma crianccedila debaixo do cinto tendo colocado ao leito um mortal102 255

Algumas observaccedilotildees se fazem necessaacuterias (a) apesar de natildeo haver um conceito

estabelecido de eacutetica e moral entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos a ideacuteia que parece estar vinculada

com a palavra ŏνειδος (censura reprovaccedilatildeo) estaacute relacionada a um sentido de organizaccedilatildeo na

junccedilatildeo entre os opostos que a narrativa da histoacuteria da origem da separaccedilatildeo da terra e do ceacuteu trata

e agrave qual jaacute nos referimos Afrodite como deusa inquieta e errante voluptuosa e voluacutevel tinha a

101 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 p 67 102 Traduccedilatildeo nossa

55

intenccedilatildeo de desequilibrar de afetar a ordem entre os contraacuterios pois a contradiccedilatildeo estaacute associada

com a natureza primeira da condiccedilatildeo de procriaccedilatildeo Nesse jogo de ambivalecircncia tambeacutem os

imortais satildeo enredados pela mortalidade conhecendo a inseguranccedila a fraqueza a brevidade da

vida humana Assim a implicaccedilatildeo de censura daacute-se pelo fato de que os imortais atraveacutes dos

desiacutegnios do desejo reconhecem uma tensatildeo que estaacute colocada como uma realidade humana que

eles passam a identificar no seu relacionamento com os mortais E a presenccedila da morte natildeo podia

ser aceita pelos deuses que a viam como degradante e vil (b) Embora natildeo tenha sido citado no

trecho acima o mesmo Hino Homeacuterico V menciona que o proacuteprio Zeus o deus todo poderoso do

Olimpo que tambeacutem havia sido viacutetima das investidas de Afrodite para dar-lhe uma liccedilatildeo faz

com que ela proacutepria conheccedila um mortal em uma situaccedilatildeo que envolva a intimidade conjugal Eacute o

que revela o verso 255 com a palavra έύνηθεΐσα isto eacute colocar no leito nupcial onde se daacute a

uniatildeo dos opostos e onde se concretiza a concepccedilatildeo (c) Por isso Afrodite fala das consequumlecircncias

de seu ato pois entatildeo sabe que traz ldquouma crianccedila debaixo do seu cintordquo A palavra ζώνη ao

mesmo tempo que se refere a cinto refere-se agrave lsquocinturarsquo ao lsquoventrersquo

A partir daiacute temos pois uma outra consideraccedilatildeo a questatildeo da descendecircncia Essa tese eacute

amplamente discutida por Faulkner103 que comenta como essa temaacutetica (dos ldquoAineiadairdquo) eacute

delineada desde o proacutelogo do poema e estaacute presente nos jogos sedutores que Afrodite impotildee a

Anquises fazendo-se passar por filha de Otreu rei da Frigia Afrodite convence Anquises das

profecias do deus Hermes que previu a uniatildeo deles (Τέκνα Τεκεΐσθαι v 127) atraveacutes de

atividades conjugais e o nascimento de um filho Deste modo o que ela coloca ironicamente

como fraude vem a tornar-se verdade Nem Afrodite escapa de ldquosua bocardquo

As colocaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo a Eneacuteias filho de uma deusa com um mortal o destaque

sobre os atributos fiacutesicos favoraacuteveis de Afrodite e de Anquises a profecia de seu nascimento

parecem dar ecircnfase agrave famiacutelia descendente de Eneacuteias

O que Faulkner104 argumenta eacute que apesar de subtemas ligados ao poema como a ironia

de Afrodite suas zombarias a relaccedilatildeo deus imortal ndash homem mortal no Hino a Afrodite o poeta

pretendeu glorificar a linhagem de uma famiacutelia ldquoEneidanardquo (Aineiadai)

103 FAULKNER Andrew Op cit 104 FAULKNER Andrew Op cit

56

Ainda assim o que jaz como princiacutepio da linhagem eacute uma fraude o que natildeo deixa de ser

uma forma de violecircncia que vem sempre acompanhada do desejo talvez um sentimento de posse

(pois Afrodite queria apossar-se de Anquises dada a sua beleza) que emana do contexto do ser

amado Eacute Anquises que lhe provoca o desejo Retomando o que jaacute foi colocado no item 22 vecirc-

se claramente o jogo de forccedilas em Afrodite a seduccedilatildeo persuasiva (peithoacute) e a ilusatildeo enganosa

(Apaacuteteacute)

O que estaria sendo revelado nesse trecho dos Hinos Homeacutericos em que Afrodite natildeo

resiste aos encantos de Anquises Talvez que a questatildeo dos opostos ndash que envolve sempre uma

tensatildeo como jaacute vimos ndash se inicie pelo ldquoolharrdquo Assim toda genealogia humana passa pela

questatildeo de ldquoolharrdquo e do reconhecimento desse olhar ou seja pelo sexo que eacute uma forma de

apoderar-se isto eacute de poder Nesse sentido a condiccedilatildeo humana que resulta do contexto da

sexualidade pode vir a ser uma condiccedilatildeo traacutegica como foi demonstrado e explorado na trageacutedia

grega

Eneacuteias eacute gerado a partir da seduccedilatildeo e do erotismo A descendecircncia se daacute como

consequumlecircncia como resultado de um ldquofasciacuteniordquo105 como diratildeo os romanos Mas o que fica claro

na questatildeo genealoacutegica eacute que o resultado da ligaccedilatildeo entre os opostos eacute que levaraacute adiante esse ato

e que o proclamaraacute nas geraccedilotildees futuras Como coloca Quignard ldquonous sommes venus drsquoune

scegravene ougrave nous nrsquoeacutetions pasrdquo106

Assim o Hino Homeacuterico V a que estamos nos referindo enfatiza o olhar de Afrodite e

de Anquises A concepccedilatildeo de Eneacuteias deu-se pelo olhar A questatildeo do olhar natildeo poderia deixar de

ser considerada pelos saacutebios gregos

Quando Afrodite desejosa apresenta-se (vs 75 ndash 142) a Anquises como uma simples

mortal o que inaugura esse encontro eacute o olhar de Anquises pois ele percebe o objeto de amor agrave

sua frente Eacute o que diz o texto grego

Αγχίσης δ΄ δρόων107 έΦράξετο θαύmicroαιν΄εν τε 84 ει δός τε microέγεθός τε καί έίmicroατα σιγαλο΄εντα 85

105 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 p 11 O autor faz um estudo comparando a palavra romana ldquofascinusrdquo com a palavra grega ldquophallosrdquo Ele diz ldquoLe lsquofascinusrsquo arrecircte le regard au point qursquoil ne peut srsquoen deacutetacherrdquo ou seja que ldquoo fasciacutenio imobiliza o olhar a tal ponto que natildeo se pode desprender-se delerdquo 106 QUIGNARD Pascal Idem p 10 ldquoViemos de uma cena onde natildeo estaacutevamosrdquo 107 Grifo nosso para assinalar o verbo olhar que tambeacutem significa entender

57

Portanto Anquises quando a viu observou-a bem e admirou sua aparecircncia e suas

vestimentas

O autor descreve em poucas palavras o olhar de atraccedilatildeo de cobiccedila mesmo que faz parte

do jogo de seduccedilatildeo O olhar do mortal Anquises espelha a forma de exercer o olhar do masculino

e revela o entendimento da figura feminina no seu modo de Ser de portar-se de vestir-se de ser

mulher Isso indica o interesse do homem grego pelo belo e a descriccedilatildeo que se segue mostra o

olhar investigador e atento do poeta conhecedor do espaccedilo feminino de seu tempo

Apoacutes essa cena da descoberta pelo olhar Afrodite eacute conduzida de olhos ldquoabaixadosrdquo

(κατ΄ οmicromicroατα καλα βαλοΰσα v 156) ndash revelando modeacutestia ndash por Anquises Novamente o olhar

complementando o gesto decoro vergonha recato O que quer a deusa dizer com isso O texto

leva agrave accedilatildeo seguinte a uniatildeo de Anquises e Afrodite homem mortal e deusa imortal no mesmo

leito A respeito ocorre-nos um trecho das Eacuteleacutegies de Properce

Les yeux dans lrsquoamour sont les guides (oculi sunt in amore duces) Ocirc joie drsquoune nuit lumineuse Ocirc toi petit lit (lectule) heureux de mon plaisir Que de mots eacutechanges agrave la clarteacute des lampes Et la lumiegravere enleveacutee (sublato lumine) dans la nuit que de combats de lrsquoamour Une seule nuit peut faire de nrsquoimporte quel homme un dieu (nocte una quivis vel deus esse potest)108

O leito de Anquises que recebe Afrodite eacute cuidadosamente descrito no Hino Homeacuterico V

O cliacutemax do arrebatamento amoroso ocorre principalmente nos versos 155-167 Eacute quando o

leito que os acolhe revela a forccedila do heroacutei Anquises nas peles de ursos e de leotildees que jaacute se

submeteram a ele e agora jazem estendidos para receber Afrodite tambeacutem ela submissa a seu

poder e como aponta Faulkner para esse fato

By doing so109 the animal skins become more than just an abstract symbol of Anchisesrsquo power and underline Aphroditersquos own loss of power in the face of Anchisesrsquo momentary strenght she is now conquered on top of the very beasts she earlier controlled110

108 PROPERCE Eacuteleacutegies II 15 In QUIGNARD Pascal Op cit p 135 ldquoOs olhos no amor satildeo guias Oh alegria de uma noite luminosa Oh pequeno leito feliz de meu prazer Quantas palavras trocadas agrave claridade das lacircmpadas E a luz arrebatada na noite quantos combates do amor Uma uacutenica noite pode fazer de qualquer homem um deusrdquoTraduccedilatildeo nossa 109 ldquoBy doing sordquo estaacute relacionado agrave sentenccedila anterior referindo-se ao fato de que quando Afrodite estava atravessando o monte Ida para dirigir-se a casa de Anquises Afrodite submeteu os animais selvagens agrave doccedilura do seu desejo fazendo-os copular 110 FAULKNER op cit p 227 ldquoAo fazer isso as peles dos animais se tornam mais do que um siacutembolo abstrato do poder de Anquises e realccedilam a perda de poder da proacutepria Afrodite face agrave forccedila momentacircnea de Anquises agora ela eacute conquistada em cima dos proacuteprios animais que ela antes controlourdquo Traduccedilatildeo nossa

58

O mesmo autor chama a atenccedilatildeo para o fato de que quando Afrodite se despe sua perda

de forccedila pode ser comparada agraves cenas iniciais quando entatildeo sua aparecircncia estaacute recoberta pelas

roupas o que simbolizava antes seu poder enfraquece ao desnudar-se Segundo Quignard em

outros trechos de textos de Homero o mesmo verbo grego mignumi que eacute usado para referir-se

ao jugo de uma mulher eacute o que coloca agrave morte um adversaacuterio Afrodite foi vencida por um

mortal ou venceu-o o proacuteprio desejo

Em nosso ponto de vista natildeo pode ser deixado de lado o aspecto que favorece a posiccedilatildeo

de Anquises no intercurso propondo pois uma questatildeo de gecircnero na sociedade patriarcal Por

isso talvez Faulkner veja nessa atitude de forccedila de Anquises um poder transitoacuterio

Quando Anquises se aproxima de Afrodite a cena do ldquodespir-serdquo revela a fragilidade

feminina frente ao ldquophallosrdquo grego em uma sociedade que tinha a mulher como objeto de

submissatildeo ao homem e de procriaccedilatildeo Afrodite representa esse contexto feminino tanto na sua

submissatildeo agrave uniatildeo com Anquises quanto na profecia do filho que vai ser gerado pois eacute o que se

espera do leito nupcial

Especialmente os versos 162 163 164 165 revelam dois aspectos de grande importacircncia

Um deles eacute que a deusa Afrodite eacute descrita (e eacute tambeacutem representada na pintura e na escultura)

usando brincos e colares aleacutem de outras joacuteias A descriccedilatildeo do nome das joacuteias tem sido objeto de

estudo linguumliacutestico para a precisatildeo do significado delas e para entendimento da eacutepoca em que o

Hino V possa ter sido escrito Vaacuterios autores tecircm estudado o vocabulaacuterio diligentemente e em

Faulkner111 as palavras gregas έλικας e κάλυκάς tecircm um sentido incerto O consenso tem sido

optar pela traduccedilatildeo de brincos em forma de flor de botatildeo para κάλυκες enquanto tem-se suposto

que έλικας indique pulseira uma vez que o significado de έλικας estaacute relacionado com alguma

forma de espiral

Outro fato relacionado com esses versos eacute a forma como a accedilatildeo eacute descrita remetendo agrave

retirada das peccedilas de roupa criando um contexto eroacutetico e um prenuacutencio do ato sexual Daacute-se o

desvendamento de Afrodite no momento em que Anquises (λΰσε δέ οί ζώνην) desata o cinto dela

Afrodite foi subjugada A cena evoca um clima de misteacuterio enquanto Anquises e Afrodite estatildeo

ligados pela atraccedilatildeo do olhar Quando Afrodite eacute ldquodesnudadardquo no ato de ter seu cinto retirado o

olhar cede lugar para a concretizaccedilatildeo da accedilatildeo Agora o que interessa eacute a sombra da mortalidade

111 FAULKNER op cit p 168-169 230

59

que paira sobre eles ele um transgressor que se apropria da deusa ela atormentada pelo seu

gesto de fraqueza

Apoacutes o coito Afrodite recompotildee-se sozinha assume sua forma divina acorda Anquises

que ela havia feito adormecer Esse trecho (versos 168 ndash 183) revelam o terror que o sexo pode

provocar apoacutes a constataccedilatildeo do ato e evocam as reaccedilotildees sugeridas pelo olhar

Afrodite conclama Levante-se filho de Daacuterdano por que vocecirc adormeceu pesadamente

Considere se eu tenho a mesma aparecircncia de quando vocecirc me viu com seus olhos pela primeira

vez

No Hino Homeacuterico

Ορσεο ∆αρδανίδη τι νυ νηγρετον υπνον ίανεις 177 καί Φράσαι ει τοι όmicroοίη έγών ίνδάλλοmicroαι είναι οίην δη microε το πρωτον έν οΦθαλmicroοίσι νόησας 179

Quando Anquises acorda novamente revela-se a questatildeo do olhar pois ao ver o pescoccedilo

e os olhos adoraacuteveis de Afrodite (οmicromicroατα κάλ΄ ΆΦροδίτης v 181) ele se amedronta e dirige seu

olhar para outro lado (τάρβησέν τε καί οσσε παρακλιδόν ετραπευ αλλη v 182)

A presenccedila da deusa impotildee reverecircncia respeito e a atitude de Anquises desviar o olhar eacute

o que se espera diante do divino

A seguir as palavras que Anquises profere configuram-se como uma oraccedilatildeo Ele repete

que seu olhar (όΦθαλmicroοΐσιν v 185) havia captado o divino na aparecircncia de Afrodite embora ela

natildeo tenha dito a verdade Pede entatildeo que ela se apiede dele

Eacute interessante relacionar pois esses versos (188-190) em que Anquises se preocupa com

seu vigor e pede proteccedilatildeo agrave deusa para natildeo ser deixado paraliacutetico entre os homens castigado por

ter transgredido o sagrado com os versos 153-154 em que Anquises exclama que iria de boa

vontade para a casa de Hades (i eacute agrave morte) desde que ele tivesse ldquosubidordquo agrave cama da mulher

bela como as deusas (palavras que ele pronunciou a Afrodite antes do acasalamento julgando

ser ela uma jovem mortal)

Essas cenas refletem o poder do sexo masculino face ao desejo que o coito remete

Agrave cena de forccedila e domiacutenio do homem frente agrave submissatildeo feminina sucede o retorno agraves

origens e ele coloca-se diante da deusa agora vista como mater cheia de poder divino

implorando-lhe a vida ndash garantida pelo acolhimento do ventre feminino Vecirc-se pois nesse gesto

o eterno conflito de forccedila entre os gecircneros O poder do ldquophallosrdquo grego soberano no ato sexual

60

curva-se ao poder da mulher o feminino como princiacutepio das origens A esse respeito fazemos

nossas as beliacutessimas palavras de Quignard

La premiegravere domus est le ventre de la femme La deuxiegraveme domus est la domus dans laquelle lrsquohomme rapte les femmes pour se reproduire et reproduire la domus La troisiegraveme domus est la tombe112

Sabiamente o autor usa a palavra domus (grego δόmicroος) em seu texto o que fornece um

enredamento de sentidos contidos todos no mesmo contexto Pode-se pois entender como

ldquocasa habitaccedilatildeo quarto templo morada dos deuses famiacuteliardquo113

Como diz Quignard o homem cria raiacutezes com seu desejo vincula-se a ele da mesma

forma que o lactente com sua matildee Isso faz parte da cena histoacuterica em que a ontogecircnese do

homem estaacute enraizada na filogecircnese pois como mostraram os gregos atraveacutes do nascimento de

Afrodite a vida estaacute enraizada no universo quer seja atraveacutes da umidade do oceano no ritmo de

suas ondas quer seja atraveacutes do misteacuterio do ceacuteu na trilha de seus astros incandescentes quer

seja atraveacutes da terra que floresce que nutre que acolhe que se transforma e que frutifica

Dessa forma o desejo estaacute enraizado na histoacuteria da origem da terra e a chegada de

Afrodite estaacute vinculada natildeo apenas ao desejo mas tambeacutem agrave reproduccedilatildeo

Mas a histoacuteria do desejo apresenta outras variantes Assim de acordo com a tradiccedilatildeo

miacutetica Afrodite era casada com Hefesto (filho de Zeus e de Hera) deus protetor do fogo e um

haacutebil criador Diz tambeacutem a lenda que Hefesto era coxo e que o casamento de Afrodite e de

Hefesto foi imposto por Hera Era uma maneira de ldquounir el fuego de Hefesto con la fuerza

fecundadora de Afrodita la belleza del arte con la belleza de la naturalezardquo114

No canto VIII (versos 266-367) da Odisseacuteia Odisseu acompanha na voz de um aedo a

saga dos amores de Ares com a formosa Afrodite (Άρεος Φιλότητος εύστεΦάνου τ΄ΆΦροδίτης)

Apesar de o texto apresentar uma narrativa eroacutetica em que o casal de amantes eacute visto na

sua intimidade a palavra usada para representar a uniatildeo desse amor (seria uma forma de

significar a ligaccedilatildeo carnal atraveacutes da qual o desejo se concretiza) eacute Φιλότητος que em periacuteodo

posterior como jaacute se ressaltou anteriormente seraacute usado como amor que revela amizade 112 QUIGNARD op cit p 224 ldquoO primeiro domus eacute o ventre da mulher O segundo domus eacute o domus no qual o homem se apossa das mulheres para se reproduzir e reproduzir o domus O terceiro domus eacute a tumbardquo Traduccedilatildeo nossa Mantivemos o uso de domus como no original Diferentemente do autor consideramos a forma masculina do grego δόmicroος 113 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 p 151 114 MAUROMATAKI Maria Op cit p 87

61

Dando sequumlecircncia agrave histoacuteria de Hefesto e Afrodite Heacutelio o Sol contou a Hefesto sobre os

encontros secretos de Afrodite e Ares o deus da guerra Hefesto enraivecido planejou pegaacute-los

em uma armadilha (δόλον) e por isso teceu com seu engenho admiraacutevel uma rede de metal que

se assemelhava a uma teia de aranha tal o seu ardil em executaacute-la de forma que natildeo pudesse ser

vista Ares e Afrodite foram ao leito (λέχος δ΄ ήσχυνε και εύνην)115 na proacutepria casa de Hefesto

(ΗΦαιστοιο δόmicroοισι) pois Hefesto havia dito que ia se ausentar Ares ardia em desejo

(Φελότητος) e depois que os amantes adormeceram abraccedilados acordaram e viram-se envoltos na

rede fina impossibilitados de sair dali Para ridicularizaacute-los Hefesto chamou todos os deuses

para assistir a esse espetaacuteculo e dizia que Afrodite comprazia-se com Ares (novamente o verbo

Φιλεω) e natildeo com ele por ser coxo Apoacutes a intervenccedilatildeo de alguns deuses Hefesto finalmente

decidiu libertar os amantes

Alguns aspectos relacionados agrave questatildeo do desejo podem ser brevemente observados (a)

relacionado ao desejo estaacute a problemaacutetica da traiccedilatildeo Assim se entendermos o conceito de poder

subjacente agrave uniatildeo sexual verificamos que a situaccedilatildeo realmente pode ser equiparada a um

campo de batalha isto eacute haacute o(s) vencedor(es) e o(s) perdedor(es) (b) Em se tratando de uma

lenda simboacutelica constata-se que o deus envolvido eacute Ares que significa o deus da guerra

responsaacutevel pela violecircncia e pelos enfrentamentos entre os homens Ares eacute realmente descrito

como tendo um caraacuteter agressivo e explosivo e alguns autores explicam que esses atributos

estavam relacionados ao seu lugar de origem pois os antigos habitantes da Traacutecia tinham

costumes violentos e faziam uso da forccedila bruta Assim representa-se a uniatildeo sexual de forma

simboacutelica em que o ato de desejo (Afrodite) eacute subjugado pela forccedila violenta (Ares) (c) Eacute

interessante considerar como o marido traiacutedo procura uma estrateacutegia de vinganccedila calculada Sua

intenccedilatildeo eacute realmente o dano Daiacute a palavra lsquoδολοςrsquo (dolo) usada no texto (d) Todo ato de

traiccedilatildeo pressupotildee uma atitude de reparo Assim quando Afrodite eacute libertada vai a Ilha de Pafos

em Chipre onde eacute recebida pelas Caacuterites que a banham e a ungem com oacuteleo sagrado Isso

parece-nos uma forma de renovar a lsquovirgindadersquo o que equivaleria a um rito de purificaccedilatildeo como

o de Hera que durante os rituais em sua honra tinha sua virgindade renovada Tambeacutem depois o

cristianismo introduziraacute o batismo como ato de purificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo (e) O termo 115 A palavra λέχος tem o significado de ldquoleitordquo mas em alguns contextos tambeacutem pode significar ldquouniatildeo clandestinardquo Neste caso junto da palavra εύνην quer dizer ldquoleito nupcialrdquo o que proclama as atividades sexuais cf BAILLY op cit p 1185 Em PEREIRA opcit p 346 encontra-se aleacutem de lsquoleitorsquo a traduccedilatildeo lsquoninhorsquo e lsquotumbarsquo

62

empregado por Hefesto ao referir-se a Afrodite ao reclamar da situaccedilatildeo para Zeus eacute sugestivo

da propriedade de descontrole do desejo que escapa do domiacutenio do indiviacuteduo O aspecto de

irracionalidade que une animais humanos e deuses aproximando-os pela sua filogecircnese ndash como

jaacute se colocou antes ndash estaacute expresso na palavra κυνώπιδος que tem o sentido de expressar o lsquoolhar

de uma cadelarsquo revelando uma imprudecircncia e um atrevimento (f) A questatildeo do olhar nessa cena

eacute relevante pois haacute os olhares dos deuses sobre os amantes e sobre o trabalho astucioso de

Hefesto haacute o olhar de anguacutestia do marido traiacutedo haacute o olhar de Afrodite (g) Finalmente o que jaacute

se anunciou variadas vezes o conflito que o desejo pode gerar entre os sujeitos

Vejamos como Afrodite eacute descrita em Hesiacuteodo em se considerando seus atributos apoacutes

seu nascimento na espuma do mar vinda do ceacuteu isto eacute de Urano castrado Diz Hesiacuteodo sobre

essa deusa

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha 203 coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice116 206

Assim um uacutenico dever foi determinado a Afrodite as questotildees de Φιλότητά (amor) que

envolvem homens e deuses e portanto tambeacutem o gozo e os enganos Hesiacuteodo usa pois a

palavra philia referindo-se ao amor

Muitas outras lendas satildeo narradas sobre Afrodite tal a importacircncia da grande deusa do

Mediterracircneo Uma das histoacuterias fala dos filhos que Afrodite teve com Ares (Harmonia Deimo

Fobo e Eros) Eros acompanhava sempre a matildee com suas flechas provocando alegria e dor Em

um estaacutegio posterior quando a filosofia passou a indicar conceitos a palavra ερος (Eros)

comeccedilou a ser usada para indicar envolvimentos amorosos tendo-se mantido ateacute hoje em nossa

sociedade ao lado do adjetivo lsquoafrodisiacuteacorsquo reminiscecircncia de Afrodite

Quanto a Fobo embora natildeo haja lenda sobre ele passou a designar lsquofobiarsquo medo e

vincula-se de alguma forma agraves questotildees afetivas unindo ldquodesejordquo e ldquomedordquo o eterno conflito do

macho e da fecircmea

Em algumas representaccedilotildees iconograacuteficas Afrodite aparece com o epiacuteteto Panopla

Los griegos conferiacutean a su figura la idea de la ldquoguerrardquo en el terreno del amor y al mismo tiempo la vinculaban con el mundo de los muertos pues el amor y la muerte son elementos y condiciones indispensables para la renovacioacuten de los ciclos de la vida y de

116 Traduccedilatildeo de TORRANO J A A op cit p 117

63

los seres Asi fue adorada junto a Hermes como Subterracircnea y en algunos cementerios como Afrodita Escotia (de skotos = oscuridad)117

Afrodite recebeu outros epiacutetetos que remetem ao seu aspecto enigmaacutetico como Escoacutecia

(a lsquoescurarsquo) Androacutefonos (lsquoassassina de homensrsquo) Epitiacutembria (lsquodas tumbasrsquo) Quanto ao seu

epiacuteteto Melecircnis (lsquoa negrarsquo) Pausacircnias explica como causa o fato de que a maior parte dos atos

sexuais se daacute agrave noite Essa explicaccedilatildeo eacute considerada ingecircnua pelos autores comtemporacircneos pois

tambeacutem esse epiacuteteto parece estar relacionado agraves caracteriacutesticas de vida e morte que fazem parte

dos ciclos de fertilidade

Afrodite tambeacutem era conhecida como Afrodite Pandecircmica representando o aspecto

carnal e vulgar do amor Assim era vinculada com a prostituiccedilatildeo e vaacuterias prostitutas trabalhavam

em seu santuaacuterio em Acrocorinto Considerava-se que essas prostitutas tinham um caraacuteter

sagrado e uma delas imortalizou-se como modelo desnudo para que Praxiteles pudesse realizar

uma estaacutetua de Afrodite

Assim como o amor as histoacuterias de Afrodite satildeo interminaacuteveis

O domiacutenio de seu impeacuterio natildeo tem fronteiras e Eros seu filho igualmente herdou o

caraacuteter de peregrinaccedilatildeo de sua matildee Ambos matildee e filho aparecem na trageacutedia grega tendo sido

destacado o aspecto de perambulaccedilatildeodeliacuterio

Tomemos como exemplo um trecho da Antiacutegona de Soacutefocles (versos 785-790)

Vagas sobre as ondas 785 e penetras em rebanhos campestres De ti nenhum dos deuses escapa nenhum dos efecircmeros homens Quem tocas delira118 790

Quanto agrave Afrodite Euriacutepides (vs 447-450) destaca seu domiacutenio abrangente e revela

como essa propriedade inerente agrave deusa perpassa pelos mortais Natildeo haacute como resistir a ela que

estaacute em todas as partes no ceacuteu na terra e no mar fazendo florescer a vida Vejamos

Ela percorre o eacuteter ela estaacute nas ondas 447 do mar a Ciacutepria eacute dela que tudo floresce eacute ela a que semeia e a que daacute amor a quem devemos o nascimento da terra119 450

117 MAVROMATAKI Maria Op cit p 89 118 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 p 61 119 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 135

64

52 ndash AacuteRTEMIS A LIBERDADE E A VIRGINDADE

Poderiacuteamos introduzir os comentaacuterios sobre Aacutertemis iniciando-os com um

questionamento por que ndash apesar da nudez e dos olhares ndash desejou Aacutertemis manter-se virgem

Antes de explicarmos melhor nossa colocaccedilatildeo inicial vejamos quem eacute Aacutertemis

Filha de Leto e de Zeus nasceu junto com seu irmatildeo Apolo o que os colocou lado a lado

no panteatildeo grego e o que fez que tivessem muitos elementos em comum constituindo-se

Aacutertemis de acordo com a tradiccedilatildeo sua versatildeo feminina

Vaacuterias satildeo as lendas sobre Aacutertemis Em Hesiacuteodo os versos 918-920 dizem somente que

Leto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechas 918 prole admiraacutevel acima de toda a raccedila do Ceacuteu gerou unida em amor a Zeus porta-eacutegide120 920

Alguns comentaacuterios sobre esses trecircs versos parecem-nos dignos de consideraccedilatildeo Um

deles eacute o fato de que Hesiacuteodo jaacute coloca emparelhados Apolo e Aacutertemis considerando-os como

ldquoprole admiraacutevelrdquo sobre ldquotoda a raccedila do Ceacuteurdquo o que seraacute repetido no Hino Homeacuterico a Aacutertemis

(Hino XXVII ndash veja anexo B) O outro eacute a questatildeo da fecundidade como ato de amor (no texto

grego encontra-se novamente a palavra Φιλότητι)

De acordo com uma das lendas que Graves narra Leto pariu os filhos em Ortiacutegia perto

de Delos Assim que acabou de nascer Aacutertemis ajudou a matildee em seu outro parto pois o

nascimento de Apolo levou nove dias de trabalho121 Por isso foi adorada pelos deuses tambeacutem

como deusa do parto chegando mais tarde a ser confundida com Iliacutetia a deusa do parto

Recebeu o epiacuteteto de Aacutertemis Brauronia em Brauron onde havia um santuaacuterio dedicado a ela

As mulheres que tinham um parto normal faziam sacrifiacutecios em honra agrave deusa Outros fieacuteis

levavam agrave deusa como oferenda roupa de mulheres que haviam morrido no parto

Em Eacutefeso Aacutertemis tinha um outro epiacuteteto Era conhecida como Kuroacutetrofos pois se

encarregava de cuidar das crianccedilas Como Heacutestia tambeacutem era uma deusa da iniciaccedilatildeo que

ajudava os jovens no periacuteodo de transiccedilatildeo entre a adolescecircncia e a idade adulta Havia rituais

especiais invocando seu apoio Como parte da iniciaccedilatildeo algumas jovens deviam servir em seu

120 HESIacuteODO Op cit p 157 121 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 p 68

65

templo especialmente em Brauron para aprender como se dava a passagem para um outro

estaacutegio da vida No periacuteodo em que permaneciam nessa iniciaccedilatildeo as jovens eram chamadas de

akti do grego άrκτοι ou seja ldquoursasrdquo Um mito explicando esse periacuteodo de servidatildeo conta que

um urso das redondezas costumava visitar a cidade de Brauron regularmente As pessoas o

alimentavam e com isso o urso foi domesticado e ficou trataacutevel Poreacutem uma jovem o provocou

e ele enraivecido matou-a Segundo outra versatildeo ele arrancou os olhos dela O irmatildeo da garota

matou o urso o que fez com que Aacutertemis ficasse furiosa Daiacute para a frente ela ordenou que as

jovens agissem como urso domesticado em atitude de reparaccedilatildeo por sua morte

Isso parece deixar claro a ldquodomesticaccedilatildeordquo por que deveriam passar as jovens antes do

casamento favorecendo um comportamento doacutecil e submisso face ao esposo pois uma reaccedilatildeo de

insubordinaccedilatildeo deixaria enfurecido natildeo soacute o esposo como tambeacutem a divindade

Aacutertemis era conhecida ainda como Aacutertemis Ortia em Esparta laacute tambeacutem como iniciadora

de jovens que se encaminhavam para a idade adulta e portanto como cidadatildeos

Os gregos a consideravam uma deusa virgem afastada dos jogos enganosos da seduccedilatildeo

Talvez esse devesse ser um dos atributos das deusas (Aacutertemis e Heacutestia) para que pudessem servir

de guia agraves jovens ndash tambeacutem virgens ndash para uma etapa da vida de mudanccedila pessoal e social

considerando-se aiacute um movimento da vida de liberdade da jovem para as ldquoamarrasrdquo e a

dependecircncia de um esposo e de filhos

Aacutertemis ao contraacuterio continuava como deusa virgem livre e independente caccedilando nos

bosques e nas montanhas banhando-se nos rios bailando e soltando gritos de clamor vinculada

agraves suas origens ancestrais

Graves reporta-se a uma lenda narrada por Pausacircnias em que enquanto se banhava em

um rio Aacutertemis foi vista pelo priacutencipe caccedilador Acteacuteon filho de Aristeu Indignada transformou-

o em um cervo que foi perseguido e morto por sua proacutepria matilha122

Nessa lenda Acteacuteon eacute punido pelo seu olhar por ter devassado a nudez divina A reaccedilatildeo

de Aacutertemis diante desse gesto calado foi violenta evocando o conflito que o desejo cria entre os

contraacuterios O que o olhar de Acteacuteon significava Para Aacutertemis estava impliacutecito que ldquoO olhar

122 GRAVES Robert Op cit p 103

66

deseja sempre mais do que o que lhe eacute dado verrdquo123 Aacutertemis rejeita a seduccedilatildeo jogo enganador

que vem da caccedilada silenciosa do olhar Aacutertemis sai vencedora da cena em que Acteacuteon eacute

decomposto e desaparece como perdedor

Afrodite quando deseja conquistar Anquises estaacute cocircnscia de que a seduccedilatildeo eacute uma farsa e

que o seduzido (no caso Anquises) eacute o que deixa a marca de sua experiecircncia Por isso Anquises

suplica a salvaccedilatildeo a Afrodite

Acteacuteon poreacutem como sedutor perde seu rumo Na origem da liberdade Aacutertemis coloca a

sua virgindade Diferentemente do poder libertaacuterio o poder do desejo eacute ilusoacuterio e errante

Todas as tentativas de vida afetiva (philoacutetes) de que Aacutertemis participa satildeo enfrentadas

com violecircncia Temos pois a ambivalecircncia do desejo de independecircncia que se opotildee ao desejo da

persuasatildeo e do engano que eacute sempre sedutor doce mas tambeacutem enganador (verificar item 2)

Haacute particularmente dois epiacutetetos de Aacutertemis amplamente conhecidos

Um deles eacute Potnia Theron a deusa dos animais selvagens como refere-se Homero a ela

considerando seu aspecto poderoso e veneraacutevel O maior prazer de Aacutertemis era correr nos

bosques e caccedilar com seu arco de ouro (veja anexo Hino a Agravertemis) O veado era um de seus

animais prediletos aacutegil e veloz Estaacute relacionado agrave deusa na iconografia e em algumas lendas

como a que se viu sobre Aacutecteon A proacutepria deusa transformou-se em corccedila durante o caso com os

gecircmeos Aloiacutedas que na pressa de a atingirem mataram-se um ao outro Como deusa caccediladora

era tambeacutem adorada como senhora da natureza a que vivia no campo Dessa forma recebia

ainda o epiacuteteto de Agroacutetera protetora das plantas selvagens e das aacutervores Aleacutem disso era

conhecida por seu envolvimento com rios e lagos onde se banhava e em cujas margens

descansava danccedilava e cantava com as ninfas com as caacuterites e com as musas

Embora aacutegil e liberta em seu espaccedilo a floresta as montanhas o campo os rios e os lagos

a natureza acolhedora Aacutertemis se limita a esse contexto como soberana das feras e caccediladora

indomaacutevel Opotildee-se a Afrodite que na sua eterna mobilidade do desejo natildeo tem limites Como

coloca Fontes em seu estudo ldquoO territoacuterio das castitas eacute fechado e secreto enquanto o universal

domiacutenio de Afrodite expande-se do Ponto Euxino aos limites de Atlasrdquo124

123 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 p 9 124 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 34

67

Como defensora da virgindade tinha companheiras virgens de caccedila e de danccedila nas

margens dos rios e guardava sua castidade com o emblema protetor do arco e da flecha

Diferentemente de Eros cujas flechas tinham como alvo colocar o desejo em algueacutem Aacutertemis

usava suas flechas como proteccedilatildeo de sua virgindade e de sua selvageria pois a morte fazia parte

do ambiente da natureza (phyacutesei)

Nesse sentido Aacutertemis parece ser uma deusa de origem distante remontando agraves mulheres

ambiacuteguas conhecidas como Amazonas e que representavam um modelo miacutetico da mulher que se

privava do contato com os homens situando-se ldquono imaginaacuterio dos antigos natildeo apenas na

fronteira em que barbaacuterie e cultura se enfrentam e se contestam ela eacute radicalmente a outra

assombrada por uma dupla alteridaderdquo125

A questatildeo da dupla alteridade foi apontada por Lissarrague quando se reporta agraves

Amazonas como indica Fontes Esse eacute um aspecto interessante que revela como Aacutertemis mulher

e assassina feminina e baacuterbara caccediladora que habita as florestas densas e as montanhas ermas

natildeo tem cidade e que seria por isso ldquouma ameaccedila permanente para o mundo civilizadordquo126

imagem combatida pelo homem ateniense e civilizador representado nas figuras dos heroacuteis

Heacutercules e Teseu nas cenas iconograacuteficas em que atacam as Amazonas

Esse fato remete agrave questatildeo da tradiccedilatildeo revelando-se Aacutertemis um modelo miacutetico ldquodos

primoacuterdios de Atenas quando as mulheres eram autocircnomas facto monstruoso aos olhos dos

ateniensesrdquo127 De fato os homens atenienses valorizavam a sua posiccedilatildeo de forccedila e de ldquocidadatildeos

hoplitasrdquo considerando-se os defensores da cidade e Aacutertemis pode ter traccedilos semelhantes a essas

Amazonas de quem decerto reparte viacutenculos dessa autonomia recusando contato com os

homens o que a manteacutem uma deusa virgem com vaacuterias lendas em que mata homens jovens quer

seja para evitar o asseacutedio despertado pelo olhar quer seja por uma forma de vinganccedila violenta

Como jaacute mencionamos antes Aacutertemis era amplamente conhecida como Potnia Theron

Aleacutem disso como a Senhora de Eacutefeso

Em Eacutefeso seu templo tornou-se uma das sete maravilhas do mundo Laacute ela era venerada

como uma matildee deusa e de acordo com Graves ldquoela era adorada em sua segunda pessoa ou seja

125 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 22 126 LISSARRAGUE Franccedilois Afiguraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 p266 127 LISSARRAGUE Franccedilois Idem p267

68

como ninfa uma Afrodite orgiaacutestica com um consorte masculino sendo seus emblemas pessoais

a tamareira128 o cervo e a abelha129rdquo130

Isso reforccedila a dualidade de Aacutertemis ora como caccediladora-virgem de instinto selvagem e

primitivo agrave maneira das amazonas ora como suprema ninfa-deusa agrave maneira das antigas

sociedades totecircmicas

Outro aspecto jaacute destacado por noacutes eacute que muitas histoacuterias miacuteticas que envolvem Aacutertemis

ressaltam a questatildeo do olhar como preluacutedio de uma atitude libidinosa Aleacutem da famosa lenda de

Acteacuteon e a dos gecircmeos Aloiacutedas haacute um outro relato que mostra como a mulher era observada

pelo homem na Greacutecia antiga Falando da representaccedilatildeo feminina diz Lissarrague

Tratando-se da imagem das mulheres vimos jaacute a sua diversidade para concluir reiteramos que matildee ou esposa hetera ou muacutesica Amazona ou meacutenade a mulher eacute sempre dada em espetaacuteculo como um objecto aos olhos do homem grego o sujeito que olha131

Voltando ao nosso relato que destaca a importacircncia do olhar na cultura grega temos que

Alfeu um deus fluvial filho de Teacutetis apaixonou-se por Aacutertemis e ocultou-se perto de onde a

deusa se banhava com suas amigas as caacuterites e as ninfas para conseguir se unir a ela Aacutertemis

percebendo as intenccedilotildees de Alfeu cobriu com lodo branco seu rosto e das companheiras de

forma que Alfeu natildeo pudesse reconhececirc-la Na regiatildeo da Eacutelida Aacutertemis passou a ser chamada e

venerada como Aacutertemis Alfeacuteia132

Aleacutem de proteger a si proacutepria nessas histoacuterias em que preserva sua virgindade haacute outras

lendas que contam que Aacutertemis exigia de suas companheiras recato e preservaccedilatildeo de sua

condiccedilatildeo de castidade (autonomia) Assim uma lenda bastante conhecida eacute a que narra que

Calisto que fazia parte de seu grupo fora seduzida por Zeus e engravidara Zangada Aacutertemis

transformou-a em uma ursa e chamou a matilha para persegui-la e devoraacute-la Poreacutem Zeus

interveio pegando-a e levando-a para o ceacuteu onde a colocou entre as estrelas

128 De acordo com a lenda Leto deu a luz a Apolo ajudada pela receacutem-nascida Aacutertemis entre uma oliveira e uma tamareira no Monte Cinto em Delos 129 O siacutembolo da abelha estaacute relacionado a Afrodite Uracircnia (rainha da montanha) e nesse caso por comparaccedilatildeo a Aacutertemis Como deusa-ninfa Afrodite destruiu o rei sagrado com quem havia copulado no cume de uma montanha agrave maneira da abelha-mestra que aniquila o zangatildeo arrancando-lhe os oacutergatildeos sexuais 130 GRAVES Op cit p 87 131 LISSARRAGUE Franccedilois Op cit p268 132 GRAVES Op cit p 104 Refere-se a Pausacircnias (I 264) mencionando o fato de que a estaacutetua mais famosa de Aacutertemis em Atenas se chamava ldquoa do rosto brancordquo As sacerdotisas nos rituais em Letrini e Ortiacutegia cobriam seus rostos com argila branca

69

A lenda possui outras variantes e em todas a figura de Aacutertemis estaacute presente

Parece-nos que a imagem de Aacutertemis que figura na trageacutedia de Euriacutepides (Hipoacutelito) eacute

uma imagem renovada conciliando traccedilos da autonomia da virgindade com a jovem feminina

recatada sem os traccedilos de violecircncia daquela que pune as que natildeo a seguem como virgem e de

errante das florestas que a marcaram na eacutepoca arcaica

Teria havido talvez uma fusatildeo das duas alteridades prevalecendo a metaacutefora do feminino

no que concerne o afeto silencioso a atenccedilatildeo a ajuda

Assim na trageacutedia Euripidiana o Coro das mulheres de Trezena proclama

E costuma estar sujeito o equiliacutebrio instaacutevel do ser feminino a terriacuteveis embaraccedilos nos deliacuterios e nas dores do parto Este sopro dardejou um dia no meu ventre 165 mas gritei pela uracircnia sagitaacuteria propiacutecia aos partos Aacutertemis e muito venerada sempre com a graccedila divina ela me tem visitado133

A virgindade de Aacutertemis eacute exaltada em um relacionamento estreito com a natureza

(phyacutesei) nos seus aspectos intocaacuteveis Por isso Hipoacutelito oferece a Aacutertemis na peccedila do mesmo

nome flores colhidas em um campo imaculado

133 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 115

70

Diz Hipoacutelito agrave deusa Aacutertemis

Para ti oacute Soberana de um campo sem maacutecula eu trago esta grinalda que eu mesmo teci ali pastor natildeo ousa levar seu rebanho 75 nem o ferro jamais passou imaculado na primavera somente a abelha134 o percorre135

Poreacutem a deusa inviolaacutevel o seu lado casto e feminino pertence ao sagrado agravequele

espaccedilo em que os deuses tecircm um poder de determinar e direcionar o caminho dos mortais Isto

posto jaacute mostra que o excesso de admiraccedilatildeo ao tributo de castidade natildeo estaacute de acordo com a

natureza humana O que eacute adequado aos deuses estaacute muitas vezes distante do poder do homem

A trageacutedia de Euriacutepedes mostra que haacute duas forccedilas divinas entrelaccediladas no ldquoduelordquo da

trama Aacutertemis representando a castidade e Afrodite representando o desejo Tendo perdido a

proporccedilatildeo desse espaccedilo reservado aos deuses Hipoacutelito eacute punido por sua transgressatildeo pois a ira

dos deuses natildeo pode ser controlada

Esse paradoxo entre o desejo e a castidade faz parte de toda a histoacuteria da humanidade e

no Cristianismo a Histoacuteria vai registrar muitos fatos de envolvimento amoroso punidos como

ldquocrimesrdquo e muitas outras histoacuterias de supliacutecios de ldquosantosrdquo para atingir a castidade no intuito de

querer livrar-se do desejo que eacute biologicamente constituinte do humano

A deusa Aacutertemis faz parte do enredo de outra trageacutedia de Euriacutepides Ifigecircnia em Tauris

baseada em uma lenda que conta o sacrifiacutecio de Ifigecircnia filha de Agamenon

Segundo uma versatildeo agrave deusa comprazia a oferenda de sacrifiacutecio humano e tendo-se

zangado pelo fato de Agamenon gabar-se apoacutes atirar em um cervo de que ela natildeo poderia tecirc-lo

feito melhor ordenou como puniccedilatildeo que a filha dele Ifigecircnia fosse sacrificada em Aulis sem o

que natildeo haveria vento para que a frota dos barcos pudesse partir para a guerra de Troacuteia

Outra versatildeo que eacute a que Euriacutepedes usa em sua peccedila narra que quando Ifigecircnia ia ser

sacrificada Aacutertemis compadeceu-se dela e colocou em seu lugar um gamo Quanto agrave Ifigecircnia

transportou-a a Tauris em seu famoso santuaacuterio onde a jovem se tornou uma sacerdotisa A

lenda diz ainda que Ifigecircnia enviava os estrangeiros ao altar de Aacutertemis onde eram assassinados

durante os rituais como oferenda para honrar a deusa

134 Como jaacute comentamos anteriormente haacute a menccedilatildeo a um dos siacutembolos de Aacutertemis a abelha (ao lado da corccedila e da tamareira) destacando seu aspecto de feminilidade 135 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 109

71

Em sua trageacutedia Euriacutepides redime a imagem de Aacutertemis colocando na boca de Ifigecircnia

as seguintes palavras ldquoMen of this country being murderers impute their sordid practice to

divine command That any god is evil I do not believerdquo136

53 ndash ATENA A DEUSA VIRGEM DA SABEDORIA E DA GUERR A

Comeccedilamos sobre Atena ndash a grande deusa dos atenienses ndash indagando para os gregos de

Homero que sentido teria ela Por que ela teve uma forma de concepccedilatildeo e de nascimento que a

trouxe sob a forma de virgem Ao lado de sua imortalidade ndash comum a todos os deuses ndash ela foi

a uacutenica que manifestou desde o nascimento em sua natureza divina a ldquoimaculabilidaderdquo Por

que a sociedade grega ateniense voltava o seu olhar para a deusa mais sublime e mais reverente

ao lado de Zeus

Atena nasce jovem (que para os gregos a velhice era um estado de depauperamento)

imortal (jamais teria sua natureza obscurecida) bela (junto com o frescor da juventude pertence

aos deuses tambeacutem o dom da beleza) guerreira (saiu da cabeccedila do pai armada e ecoando gritos

beacutelicos) e virgem (o que a distancia mais do que os outros deusesda natureza humana)

Quando se confrontam homens e deuses o que os separa eacute justamente a expressatildeo

simboacutelica da corporalidade dos seres divinos Dessa forma a divindade grega afastava-se do

natural da realidade do humano elevando-se a um tipo de existecircncia superior

A ligaccedilatildeo de Atena com a forma de existecircncia terrena desfaz-se desde antes do seu

nascimento quando o parto podia simbolizar ldquogravidaderdquo do fundamento materno O misteacuterio de

seu nascimento a torna sublime pois ela chega com forma ritualiacutestica que celebra a vida Ela traz

uma forma de reconhecimento que pode ter um aspecto cultural profundo gerada nas entranhas

da matildee (Meacutetis uma entidade feminina) vem ao mundo pelo acolhimento do pai que a recebe

reconhecendo-lhe a sabedoria superior (ele aceita essa nova deusa renovaccedilatildeo de uma deusa

antiga de outro periacuteodo)

Se Zeus reconhece a verdade em Atena os cidadatildeos de Atenas recebem a filha de Zeus

como uma manifestaccedilatildeo advinda da profundeza maternal da terra imaculada na sua origem

136 EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt ldquoHomens deste paiacutes sendo assassinos imputam sua soacuterdida praacutetica agrave ordem divina Que algum deus seja malfazejo eu natildeo acreditordquo (traduccedilatildeo nossa)

72

Entretanto presente e passado fundem-se nessa nova forma de olhar o mundo e a forccedila viril

coloca-se como parte da elaboraccedilatildeo feminina o que produz a figura maacutescula saacutebia

determinada poderosa da filha de Zeus Portanto de acordo com a concepccedilatildeo do vasto universo

grego Atena era uma entidade de caraacuteter singular embora esse caraacuteter fizesse parte de um

mundo em si completo Um mundo bem diversificado mas completo eacute o que reflete a virgem

filha de Zeus Atena

Enquanto Afrodite emana o encanto que excita e arrebata a que com seu sorriso doce

cativa os sentidos Atena faz despertar a sabedoria as ldquoestrateacutegiasrdquo que direcionam para resolver

necessidades vitais Entatildeo os traccedilos que os deuses ostentam seja Afrodite com sua sedutora

doccedilura seja Aacutertemis com sua meiguice brincalhona seja Atena com sua astuacutecia complexa satildeo

traccedilos humanos o que significa que tecircm em si todo o sentido de domiacutenio da existecircncia humana

Atena pois remete ao seu olhar sobre os cidadatildeos de Atenas o olhar destes sobre ela

essa deusa armada cujo peito ostenta um escudo apavorante objeto de tantas reflexotildees

Referente a esse assunto coloca Otto

ldquoVemos uma deusa que coberta por seu escudo estaacute disposta a lutar e proteger Mas isso seria tudo que se pensava a seu respeito quando a crenccedila nela era viva Podemos chamaacute-la de Virgem do Escudo Virgem da Batalha Para essas perguntas natildeo temos resposta alguma Seja como for uma tal designaccedilatildeo natildeo convivia com Atena homeacuterica por muito que ela se mostre combativa e poderosa na luta ela eacute muito mais que uma deusa da batalha e eacute inimiga declarada dos espiacuteritos selvagens cujo ser se consuma na fruiccedilatildeo do tumulto de guerrardquo137

Essa uacuteltima colocaccedilatildeo de Otto nos faz pensar em uma provaacutevel diferenccedila entre a

virgindade de Atena e a de Aacutertemis A virgindade de Aacutertemis eacute ldquoindomaacutevelrdquo primitiva natildeo

ldquoexploradardquo mais ligada aos elementos terrestres e agrave natureza como sua representaccedilatildeo simboacutelica

enquanto que a virgindade de Atena eacute ontoloacutegica pois faz parte da elevaccedilatildeo e excelecircncia do ser

como forma de um aprimoramento da sabedoria quase que vinculada a uma postura espiritual

Poreacutem ambas no que concerne o aspecto da virgindade devem manter o viacutenculo com

deusesdeusas de eacutepocas anteriores

Desde a sua apariccedilatildeo vinda da cabeccedila do pai Atena aleacutem de revelar sua virgindade e sua

identidade guerreira apresenta o destaque de seus ldquoolhos glaucosrdquo (γλαυκώπιδα) o que segundo

alguns autores estaacute relacionado com olhos de coruja na sua sagacidade abrangente do olhar

137 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p36

73

Para outros autores refletiria a cor esverdeada do mar (veja anexo Hino Homeacuterico a Atena)

pois Atena eacute de natureza aquaacutetica quando ela nasceu diz o Hino Homeacuterico XXVIII ldquoo mar

furioso elevou-se no alvoroccedilo de ondas de escuro esplendorrdquo

Como guerreira ela incita os guerreiros antes da batalha e lhes daacute acircnimo138 Com sua

eacutegide agita os homens ao ardor beacutelico Mas natildeo soacute os incita ajuda-os tambeacutem na forccedila e no

poder do combate com sua presenccedila saacutebia para que os humanos (os gregos) natildeo fraquejem

Na Odisseacuteia quando Odisseu seu filho e seus poucos guerreiros fieacuteis que o acompanham

vecircem-se diante do inimigo nos momentos finais de disputa Atena ergue sua eacutegide e o inimigo

tomado de terror dissipa-se

A sua presenccedila miraculosa proclama o sublime e eacute suficiente para causar

estremecimentos para serenar combates para por fim a situaccedilotildees angustiantes

Seraacute que mais tarde tambeacutem os judeus cristatildeos vatildeo se inspirar nessa deusa mediterracircnea

para conferir a Maria tal poder

O seu olhar cruza-se com seu poder A sua eacutegide ao mesmo tempo que amedronta impotildee

respeito Atena tambeacutem eacute detentora de uma alteridade nessa forma de Poder ldquofeito maacutescarardquo

Nesse ponto o olhar de Atena cruza-se com o olhar de Gorgoacute139 e como diz Vernant

suscita

ldquoo medo em estado puro o Terror como dimensatildeo do sobrenatural Este medo com efeito natildeo eacute uma decorrecircncia nem algo motivado como o que provocaria a consciecircncia de um perigo Eacute um medo primeiro logo de entrada e por si mesma Gorgoacute suscita o pavor porque se apresenta no campo de batalha como um prodiacutegio (teacuteras) um monstro (peacutelōr) em forma de cabeccedila (kephaleacute) terriacutevel e assustadora (de ver e ouvir) (deineacute te smerdneacute) com um rosto de olho terriacutevel (blousurocircpis) lanccedilando um olhar de pavor (deinograven derkeacutenē)rdquo140

A lenda da Medusa se transfigurava em vaacuterias situaccedilotildees ligadas a Atena Uma delas dizia

que ela tinha sido viacutetima de uma metamorfose provocada pela ira de Atena Conta-se que Gorgoacute

138 A este respeito ver HOMERO Iliacuteada op cit canto 2 v446 e seguintes 139 Gorgoacute como eacute citado por VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 Refere-se a Goacutergona (τοργω) a Medusa mortal e filha de duas entidades mariacutetimas A cabeccedila da Goacutergona era rodeada de serpentes e seus olhos brilhantes e o olhar tatildeo penetrante que causava terror e petrificava Atena colocou a cabeccedila da Medusa morta por Perseu em sua eacutegide a fim de que os inimigos fossem petrificados 140 VERNANT Jean-Pierre ndash Idem p50

74

era uma bela jovem que ousara rivalizar sua beleza com a deusa Atena Como ela tinha muito

orgulho de seus cabelos longos Atena transformou-os em serpentes

Na tradiccedilatildeo grega os guerreiros espartanos manifestavam a sua selvageria atraveacutes dos

cabelos longos como crina de cavalo Por ocasiatildeo dos casamentos esses guerreiros mantinham

uma tradiccedilatildeo ritual de simular um rapto da moccedila com quem iam se casar A moccedila (koacuterai as

jovens virgens) raptada era entregue a uma mulher que lhe raspava o cabelo A selvageria da

cabeleira longa da mocinha que se assemelhava a ldquouma potranca em liberdaderdquo no dizer de

Vernant era cortada Continuando diz ele

Para a jovem noiva o ritual da cabeccedila raspada joga com estes dois simbolismos contraacuterios e que se reforccedilam em sua oposiccedilatildeo pois a esposa se deve distinguir-se da patheacuternos para entrar no estado conjugal teraacute tambeacutem no mesmo sentido de diferenciar-se nitidamente de seu marido141

O cortar o cabelo eacute uma forma de domesticaccedilatildeo como vimos em Aacutertemis de transformar

a selvageria da jovem virgem ndash excluiacuteda do casamento ndash para uma vida de submissatildeo a um

esposo e a uma vida de reproduccedilatildeo Da virgem agrave mulher casada e matildee

Aacutertemis manteacutem-se virgem na sua representatividade selvagem da natureza Atena

manteacutem-se virgem na representativa selvagem dos combates

Mas apesar de ser uma deusa guerreira Atena distingue-se radicalmente de Ares pois

enquanto o deus da guerra eacute sanguinolento furioso e desatinado Atena goza de um caraacuteter justo

equilibrado sereno Atenas eacute mais que uma guerreira eacute uma pacificadora Atena eacute prudente e

digna enquanto Ares eacute odioso e coleacuterico

Homero tanto na Iliacuteada quando Atena chama Aquiles agrave razatildeo como na Odisseacuteia

quando Atena encaminha Odisseu agrave sua razatildeo e ao seu destino parece revelar uma consideraccedilatildeo

pela moralidade antes um espiacuterito elevado pela prudecircncia e pela ponderaccedilatildeo do que uma atitude

triunfante frente a uma tensatildeo

Esses sentimentos nobres de Atena a unem aos heroacuteis Aquiles e Odisseu Natildeo eacute soacute a

arguacutecia beacutelica que conta mas a ponderaccedilatildeo refletida A prudecircncia tambeacutem ela eacute uma forma de

sagacidade

Assim o olhar de Terror ao qual Vernant se refere eacute tambeacutem um olhar de prudecircncia de

cautela que faz parar e refletir que natildeo pode ser visto em uma impetuosidade impensada

141 VERNANT Jean-Pierre op cit p59

75

Como coloca Otto em seu estudo sobre os deuses gregos

O que Atena mostra ao homem o que dele quer e lhe inspira eacute por certo audaacutecia vontade de vencer e valentia Mas tudo isso natildeo quer dizer nada sem prudecircncia e luacutecida clareza Daiacute eacute que emana sua atividade com a plenitude da essecircncia da deusa da vitoacuteria Procedendo dessa origem sua luz natildeo ilumina apenas o guerreiro em combate onde quer que feitos notaacuteveis se realizem e se crie o acircnimo heroacuteico ela estaacute presente

Sempre procurando pista e mexendo na questatildeo da virgindade pareceu-nos que em se

enfileirando as deusas virgens no ldquofrontatildeordquo de nosso ldquotemplordquo verifica-se que a virgindade de

Atena coloca-se em um plano diferente do da virgindade atribuiacuteda a Aacutertemis e a Heacutestia

Aacutertemis eacute um ser selvagem pertence a um poacutelo que vai da natureza inexplorada

primitiva a um mundo civilizado maculado por um novo agir Sua virgindade daacute-se nessa tensatildeo

de equiliacutebrio entre o velho e o novo entre o passado e o presente entre o selvagem e o

civilizado entre dois poacutelos sempre numa dupla alteridade

Heacutestia eacute um ser contemplativo Assim como Aacutertemis relaciona-se a um elemento da

terra ao fogo que a natureza acolhe em todos os seus muacuteltiplos sentidos (veja 54) pois o fogo

tambeacutem eacute constitutivo da terra Nesse sentido Heacutestia eacute uma figura ldquoabstratardquo e incorpoacuterea

Atena ao contraacuterio natildeo eacute nem selvagem nem contemplativa Ela eacute a representaccedilatildeo de

uma consciecircncia luacutecida em estado de justiccedila e de pureza Ela eacute nesse sentido mais proacutexima agrave

ideacuteia do que a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde iraacute colocarem seus deuses e santos Atena jaacute tem um

ldquoespiacuteritordquo refinado

Por isso em Atenas ela tambeacutem era chamada de Niacuteke e na sua estaacutetua Partheacutenos de

maacutermore e ouro esculpida por Fiacutedias ela carrega em sua matildeo a imagem de Niacuteke a que distribui

daacutedivas e a que decide sobre faccedilanhas

O Paacuterthenon como ficou sendo chamado o templo que acolhia a estaacutetua de Atena tinha

um compartimento onde habitavam as sacerdotisas da deusa Daiacute o questionamento se

Paacuterthenon referia-se simplesmente ao templo de Atena (lsquoRoom of de Maidenrsquo) ou incluiacutea esse

espaccedilo habitado pelas sacerdotisas virgens (lsquoRoom of tue Maindensrsquo)142

Mas Atena natildeo tem apenas o lado viril guerreiro dos projetos das estrateacutegias da accedilatildeo

Atena natildeo eacute esposa nem matildee mas eacute uma deusa criativa e revela seu aspecto feminino na periacutecia

e na arte

142 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004

76

Dizem os autores que eacute apenas em um periacuteodo tardio que Atena se torna patrona da arte e

das ciecircncias Surgem nessa eacutepoca outras lendas como a de Aracne quando Atena teria

transformado a princesa Coacutelofon na Liacutedia em aranha invejosa que ficara da habilidade de tecer

da princesa

Segundo algumas fontes isso revelaria uma antiga rivalidade comercial entre os

atenienses e os liacutedio-cariates indicando pois uma versatildeo mais tardia da lenda que natildeo tem nada

em comum com as caracteriacutesticas de Atena

Outra lenda que se refere a Atena eacute sobre a sua denominaccedilatildeo de Palas Atena Conta essa

lenda revelando a nobreza de caraacuteter de Atena que ela estava brincando de artes marciais com a

filha de Triton Palas Em um dado momento preocupado com essa brincadeira das meninas

Zeus colocou sua eacutegide e Palas olhando para cima para ver o que era distraiu-se e foi ferida por

Atena vindo a falecer Em homenagem agrave amiga e querendo recuperar sua memoacuteria Atena fez

uma imagem de madeira da figura de Palas e enrolou-a com a eacutegide colocando-a perto de Zeus

Daiacute a origem de seu epiacuteteto Palas que enaltece a dignidade de seus traccedilos

Em nossa leitura e pesquisa Atena pareceu-nos revelar mais especificamente a

caracteriacutestica de virgindade dos gregos da eacutepoca de Homero

54 - HEacuteSTIA E A CASTIDADE

Para entender a deusa Heacutestia pareceu-nos importante retomar as funccedilotildees de Afrodite

Enquanto Afrodite eacute toda corpoacuterea linda sedutora doce Heacutestia eacute pouco representada

fisicamente silenciosa meiga

Dissemos que em Afrodite seu poder eacute determinado pelo olhar da seduccedilatildeo (απάτη) e da

uniatildeo amorosa (Φιλότης) e que implica movimento constante provocar um desejo contiacutenuo entre

os homens e ateacute entre os deuses - que eacute quando atraveacutes do desejo aproximam-se dos mortais

conhecendo-os melhor

Heacutestia ao contraacuterio tem seu poder emanado pelo desejo da fixidez da constacircncia da

manutenccedilatildeo da ordem da famiacutelia do equiliacutebrio das relaccedilotildees familiares da preservaccedilatildeo da

harmonia e da paz do controle Silenciosa sempre presente colocada no espaccedilo central da casa

no umbigo da casa (οικω) como diziam os gregos seu olhar eacute atento e vigilante promovendo o

77

recato das virgens (παρθένος) antes do casamento ela tambeacutem uma virgem que cuida do espaccedilo

da famiacutelia impondo respeito e interditando o incesto

Heacutestia tem uma importacircncia primordial mas era pouco representada pois fazia de tal

forma parte do espaccedilo domeacutestico que a lareira da famiacutelia era chamada de heacutestia onde ardia o

fogo intermitente o altar sagrado em que se ofereciam os sacrifiacutecios

Sobre essa presenccedila na casa dos homens que habitam a superfiacutecie terrestre diz o Hino

Homeacuterico a Heacutestia (XXIX veja anexo B) que ela constitui natildeo soacute o centro do espaccedilo familiar

mas tambeacutem eacute uma presenccedila constante em todos os templos dos deuses (honra concedida a ela

por Zeus) Como Zeus tambeacutem ela era filha de Reacuteia e de Crono e era venerada como a deusa

mais antiga do panteatildeo grego Nas casas diz o mesmo hino os sacrifiacutecios eram sempre

oferecidos a ela Como vivia no meio dos mortais todas as festividades familiares comeccedilavam e

terminavam com rituais laudatoacuterios agrave deusa o que criava uma solidariedade entre os

participantes unindo-os pela identidade comum

Heacutestia natildeo significava o fogo propriamente dito mas a lareira da casa o altar dos

sacrifiacutecios O fogo que queima no altar mobiliza o olhar e estaacute presente como elemento de

purificaccedilatildeo como siacutembolo de marca civilizatoacuteria como chama do desejo da sexualidade

Como elemento de purificaccedilatildeo o fogo arde em homenagem aos deuses em um gesto de

honra e de respeito em uma atitude em que o olhar capta o crepitar da presenccedila do divino nas

chamas

O fogo tambeacutem eacute usado como um elemento de civilizaccedilatildeo pois a presenccedila da deusa

Heacutestia se estendia agraves cidades gregas como continuaccedilatildeo da famiacutelia Nessas piras do espaccedilo

puacuteblico ardia a chama eterna Considerava-se aiacute um lugar de altar sagrado onde os estrangeiros

eram recebidos e os lsquoembaixadoresrsquo prestavam juramentos Os guerreiros antes de irem agrave guerra

pegavam fogo do altar de Heacutestia para levar com eles e os colonizadores o levavam quando iam

fundar uma nova colocircnia A importacircncia de Heacutestia eacute pois ldquohumanizadorardquo uma vez ela se

integra e participa da condiccedilatildeo humana quer como conhecedora do espaccedilo familiar quer como

impulsionadora de um estaacutegio civilizatoacuterio A pira estaacute sempre recebendo o fogo que arde para a

renovaccedilatildeo do velho e para uma ldquoressurreiccedilatildeordquo perioacutedica

A lareira (a heacutestia) que mantinha o fogo tambeacutem tinha uma accedilatildeo relacionada com a

transmissatildeo dos ritos de iniciaccedilatildeo dos jovens (παρθένος) que passariam de um estaacutegio a outro

78

tanto do ponto de vista pessoal como no aspecto social A jovem virgem saiacutea do espaccedilo da casa

do pai para o seu novo espaccedilo familiar com o esposo onde se esperava que se desse a uniatildeo dos

sexos para fins de que a fertilidade na terra tivesse continuidade Nesse sentido Heacutestia era a

deusa que olhava atenta as chamas da accedilatildeo fecundante do desejo

Portanto o olhar que o fogo simboliza pode ser purificador iluminador fecundante Eacute o

olhar vigilante que daacute seguranccedila Comparando-se pois a purificaccedilatildeo pelo fogo relativo agraves

atividades da lareiraheacutestia e a purificaccedilatildeo pelas aacuteguas como vimos em Afrodite no seu

ldquobatismordquo na sua renovaccedilatildeo apoacutes a traiccedilatildeo ao marido poderiacuteamos deduzir que o fogo de que

Heacutestia cuidava era uma forma de purificaccedilatildeo que simbolizava a tradiccedilatildeo dos costumes

relacionada a importantes aspectos sociais dos quais a famiacutelia e as cidades faziam parte Nesse

sentido o fogo que Heacutestia cuida revela uma forma de compreender os estaacutegios por que passa o

feminino diante do masculino na sua histoacuteria terrestre A renovaccedilatildeo a transformaccedilatildeo a uniatildeo

sexual o interdito fazem parte da civilizaccedilatildeo

Quanto agrave aacutegua parece-nos que associada a Afrodite que representa o ceacuteu a terra e o

mar seu simbolismo eacute a purificaccedilatildeo do desejo Afrodite emerge das aacuteguas e esse processo a

remete agraves fontes de origem reconciliada com uma nascente divina de vida nova

Em eacutepocas seguintes agrave antiguidade grega o cristianismo se apropriaraacute da renovaccedilatildeo do

banho nas aacuteguas como forma de purificaccedilatildeo Assim diz o apoacutestolo Mateus (3 5-6) referindo-se

ao batismo que Joatildeo Batista fazia no deserto ldquoE eram por ele batizados no rio Jordatildeo

confessando seus pecadosrdquo O batismo tem pois como finalidade retirar o pecado assegurando

uma regeneraccedilatildeo Essa concepccedilatildeo portanto foi apropriada pelo Cristianismo dos povos de

civilizaccedilotildees anteriores

Heacutestia como significante da lareira da casa ocupava um espaccedilo feminino pois cabia agrave

mulher ocupar-se das atividades domeacutesticas e a casa (οικος) era seu lugar Era ali que a mulher

estava protegida dos perigos que a vida exterior poderia representar

A jovem ao casar-se ia para a casa do marido o que exigia a ela uma mudanccedila natildeo soacute

de casa como tambeacutem de estado de virgem a esposa e matildee Portanto isso implica uma

mobilidade Heacutestia ao contraacuterio continuava fixa e virgem na casa paterna Para a jovem essa

questatildeo espacial era tambeacutem social e pessoal

79

Vejamos o que diz Vernant sobre isso

Essa permanecircncia de Heacutestia natildeo eacute de natureza apenas espacial Como ela confere agrave casa o centro que a fixa no espaccedilo Heacutestia assegura ao grupo domeacutestico a sua perenidade no tempo eacute pela Heacutestia que a linhagem familiar se perpetua e se manteacutem semelhante a si mesma como se em cada geraccedilatildeo nova nascessem diretamente ldquoda lareirardquo os filhos legiacutetimos da casa143

Como aspecto de uma sociedade patriarcal os casamentos eram endogacircmicos mantendo

uma tradiccedilatildeo de hereditariedade puramente paterna Deste modo Heacutestia cuidava da questatildeo da

fecundidade dissociada portanto da questatildeo do desejo Ela cuidava para que houvesse atraveacutes

da filha a prolongaccedilatildeo da ldquolinhagem paternardquo sem a necessidade ldquode uma mulher lsquoestrangeirarsquo

para a procriaccedilatildeordquo 144

Esse tipo de lugar ocupado pela mulher revela um aspecto de passividade e uma

caracteriacutestica de dominaccedilatildeo do homem cujo poder eacute o de garantir a fecundaccedilatildeo

A mulher eacute a estranha na casa do marido agrave qual ele pertence e quer dar continuidade

pois eacute o pai que firma as raiacutezes nessa casa que deve ser cuidada pela mulher Nesse sentido vecirc-

se a mulher como um ldquodomusrdquo (como jaacute nos referimos anteriormente) do masculino no sentido

de receber e dar continuidade agrave linhagem participando como cuacutemplice do desejo do macho de

manter sua genealogia desconsiderando os seus proacuteprios desejos de mulher Agrave mulher cabe

submeter-se ao homem que preocupado com a sua linhagem vai conduzi-la como virgem ao

altar de Heacutestia vai unir-se a ela sexualmente e vai ser o progenitor dos filhos que viratildeo

Ora como jaacute foi comentado antes as relaccedilotildees do gecircnero envolvem conflitos e portanto eacute

natural que as donzelas (moccedilas solteiras) e as mulheres casadas enfrentassem tensotildees dentro da

estrutura familiar e que reagissem a determinadas imposiccedilotildees

Eacute o que mais tarde a trageacutedia vai mostrar as contradiccedilotildees da cena familiar gerando

oposiccedilotildees sofrimentos afetando relacionamentos alimentando oacutedios

Talvez por ser uma observadora constante da cena domeacutestica Heacutestia tenha se fixado na

sua condiccedilatildeo de παρθένος a deusa que remete a uma condiccedilatildeo do feminino ideal inacessiacutevel e

por isso sem sujeitar-se agrave submissatildeo do desejo carnal A ldquopurezardquo natildeo pode ser alcanccedilada pelo

humano pois ela eacute do espaccedilo divino No catolicismo as freiras e as santas manteratildeo a tradiccedilatildeo

do recato fazendo votos de castidade e remetendo-se ao enclausuramento de conventos Uma

143 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 199 144 VERNANT Jean-Pierre Idem p 199

80

forma de manter a ldquopurezardquo era abolindo as relaccedilotildees carnais O catolicismo pois teve suas

virgens que se encarregavam de vigiar o ldquopecadordquo

Mas natildeo eacute soacute a submissatildeo ao marido que a mulher deve aceitar Ela eacute considerada parte

de um comeacutercio de trocas dependente do acordo entre os homens pai e esposo Essa questatildeo eacute

de ampla complexidade pois envolve aspectos poliacutetico-econocircmicos aleacutem dos sociais

o termo οίκος tendo ao mesmo tempo um significado familiar e territorial podem-se compreender as reticecircncias que constituem obstaacuteculo em plena economia mercantil agraves operaccedilotildees de venda e de compra quando se trata de bens familiares (κληρος) compreende-se tambeacutem a recusa em conceder a um estrangeiro o direito de possuir uma terra dita ldquoda cidaderdquo porque ela deve permanecer como o privileacutegio e a marca do cidadatildeo ldquoautoacutectonerdquo145

Ou seja como mercadoria de troca de comeacutercio ou seja como um campo feacutertil em uma

sociedade agriacutecola a mulher era vista para fins de procriaccedilatildeo Como objeto de troca pertencia ao

marido como campo a ele lhe cabia frutificar o solo e fazer a colheita delimitando seu territoacuterio

em um clima de seguranccedila e de amizade domeacutestica

Portanto nesse tipo de sociedade a esterilidade ia contra os princiacutepios de continuaccedilatildeo

genealoacutegica Por isso era punida Natildeo se pode renunciar agrave deusa da fertilidade Afrodite zela

pela vida A uniatildeo entre os opostos faz parte da continuidade do mundo Renunciando ao coito o

homem estaacute impedindo a procriaccedilatildeo Euriacutepedes mostra em sua trageacutedia como Hipoacutelito foi

castigado por querer manter-se fiel a Aacutertemis isto eacute agrave virgindade

A abertura da peccedila daacute-se com as palavras de Afrodite sobre a abstinecircncia sexual

masculina na figura de Hipoacutelito Ser humano eacute sujeitar-se ao desejo Aleacutem disso Afrodite

determina o destino (como jaacute foi apontado no item sobre essa deusa) independentemente da

vontade do homem Faz parte do humano o enredamento o conflito a tensatildeo entre os opostos

pois assim foi determinado desde o iniacutecio dos tempos

Vejamos o que diz Afrodite em suas beliacutessimas palavras na traduccedilatildeo para a liacutengua

portuguesa de J B Fontes

Grande entre os seres mortais e natildeo sem renome 1 de deusa Ciacutepris eu sou chamada no ceacuteu Aqueles que do Ponto aos limites de Atlas habitam e contemplam o lume do sol eu favoreccedilo se veneram meu poder 5 enquanto abato quem pensa em mim com soberba

145 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 208

81

pois eacute inerente tambeacutem a raccedila dos deuses agradar-se com honras prestadas por homens Mostrarei logo a verdade destas palavras O filho de Teseu nascido da Amazona 10 Hipoacutelito que o casto Piteu instruiu eacute o uacutenico entre os cidadatildeos desta Trezena a dizer que dos Numes eu sou o pior o leito ele recusa evita o casamentordquo146 mas pela falta contra mim vou me vingar 147 21 de Hipoacutelito ainda hoje Muito avancei neste projeto resta-me pouco a fazer Vindo ele uma vez da casa de Piteu ver misteacuterios sagrados e neles sagrar-se 25 na terra de Pandiacuteon a bem nascida esposa de seu pai Fedra o viu e um violento amor tomou-lhe coraccedilatildeo segundo o meu desejo148

Reconhecemos em Heacutestia uma polaridade pois ao mesmo tempo que se opotildee a Afrodite

como virgem inicia e supervisiona com o olhar de seu altar as jovens que se preparam para o

casamento Assim como Afrodite Heacutestia se inscreve na natureza humana Tambeacutem ela conhece

o posicionamento do ldquoparrdquo ao lado do masculino no panteatildeo grego onde eacute colocada ao lado de

Hermes divindade que cuida da solidariedade do acolhimento entre os homens nas suas

andanccedilas ldquoexterioresrdquo

O Hino Homeacuterico a Heacutestia coloca-a lado a lado com Hermes complementando funccedilotildees

Assim como Heacutestia figura como virgem e protetora das jovens em uma posiccedilatildeo semelhante agrave da

matildee Hermes eacute o mensageiro que ajuda aqueles que necessitam Hermes eacute pois o ldquoαγγελεrdquo o

anjo que como Heacutestia conhece as accedilotildees humanas e procura ser favoraacutevel aos mortais

A questatildeo do gecircnero eacute altamente significativa na sociedade arcaica e ateacute hoje no mundo

contemporacircneo alguns pais anseiam pela vinda de um filho do sexo masculino Assim sendo o

pai em cujo lar soacute havia filhas esperava que a filha lhe desse um neto como herdeiro do ldquoκλεροςrdquo

paterno Nesse caso o filho seguiria a linhagem do avocirc e era ao mesmo tempo filho e irmatildeo de

sua proacutepria matildee Ainda assim a mulher via-se sujeita agraves condiccedilotildees de submeter-se se natildeo agrave casa

do marido agrave casa paterna Em seu estudo sobre Heacutestia Vernant faz uma consideraccedilatildeo que nos

parece importante em relaccedilatildeo a um outro aspecto da polaridade da deusa Diz ele

146 Grifo nosso 147 Grifo nosso 148 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 105

82

Assim se delineia no pensamento social dos gregos em face agrave imagem do homem agente exclusivo da obra geradora a imagem natildeo menos poderosa da mulher verdadeira fonte de vida em que se alimenta a fecundidade das ldquocasasrdquo A deusa do lar segundo os casos eacute suscetiacutevel de justificar tanto uma quanto outra dessas duas imagens opostas Com efeito Heacutestia nos parece ter a funccedilatildeo especiacutefica de marcar a ldquoincomunicabilidaderdquo dos diversos lares enraizados em um ponto definido do solo eles natildeo poderiam nunca se misturar mas permanecem ldquopurosrdquo ateacute na uniatildeo dos sexos e na alianccedila das famiacutelias149

Como coloca Vernant em seu texto a virgindade de Heacutestia eacute a que assegura agrave jovem

virgem antes do casamento o seu proacuteprio lar Apoacutes o casamento ela passaraacute a representar a casa

do marido submetendo-se a ele como senhor do οίκος

Como organizadora dos bens do lar no que diz respeito agrave concentraccedilatildeo de riqueza e a

delimitaccedilatildeo dos patrimocircnios familiares Heacutestia era conhecida com o epiacuteteto de Heacutestia Tamia

Enquanto cabia a Heacutestia cuidar dos tesouros que ficavam guardados dentro da casa nos cofres

(bronze ouro ferro tecidos) a Hermes cabia o cuidado na aacuterea externa dos rebanhos com seu

bastatildeo maacutegico Considerando-se a funccedilatildeo dessas divindades enquanto Heacutestia se ocupava da

conservaccedilatildeo dos bens Hermes encarregava-se do movimento da riqueza isto eacute da aquisiccedilatildeo ou

da perda de bens

Um outro epiacuteteto de Heacutestia eacute Heacutestia Koineacute Ela era assim denominada quando havia a

cerimocircnia da lavragem que periodicamente renovava o viacutenculo do povo ateniense ldquoautoacutectonerdquo

com a sua terra

Heacutestia tambeacutem era a divindade de um ritual divinatoacuterio na Acaia ao lado de Hermes

O Hino XXIV tambeacutem dedicado a Heacutestia (verificar anexo B) ressalta o poder

adiivinhatoacuterio da deusa prestando serviccedilos no templo de Apolo A ideacuteia de purificaccedilatildeo da deusa

eacute destacada no uso de oacuteleos que pendem das mechas de cabelo Em seu banho regenerador apoacutes

ser pega com Ares Afrodite tambeacutem eacute ungida com oacuteleo elemento de purificaccedilatildeo

Assim como Afrodite traz em si a ligaccedilatildeo com o ceacuteu (pai Urano) com a terra (matildee Gaia)

e com a aacutegua (tendo nascido na espuma do mar) Heacutestia manifesta em si o contato do ceacuteu da

terra e do mundo subterracircneo A lareira fixa na casa enraiacuteza-a na terra Por meio dela a famiacutelia

faz uma aproximaccedilatildeo com o mundo subterracircneo Aleacutem disso a lareira assim como se comunica

com o mundo infernal faz subir ateacute a morada dos deuses oliacutempicos a chama que vem do

149 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 216

83

cozimento dos alimentos Quanto ao οικος cujo centro eacute fixado por Heacutestia representa a

estabilidade no espaccedilo terrestre

Em Homero nada pudemos destacar sobre Heacutestia No entanto no Hino Homeacuterico V (veja

anexo A) dedicado a Afrodite encontra-se uma citaccedilatildeo de grande forccedila quando Heacutestia faz um

juramento sagrado a Zeus de manter-se virgem A cena descrita destaca Heacutestia colocando sua

matildeo na cabeccedila de Zeus como um modo solene de se fazer um juramento Desta maneira Heacutestia

estava resolutamente decidida a manter-se virgem Narra o hino que a deusa implorou a

virgindade a Zeus apoacutes ter sido cortejada por Poseidon e por Apolo

Heacutestia opotildee-se pois a Afrodite natildeo se submetendo a ela na questatildeo do envolvimento

amoroso (carnal) Poderiacuteamos finalizar essas consideraccedilotildees sobre Heacutestia levantando uma

pergunta seria uma forma de independecircncia para Heacutestia natildeo se deixar dominar por algueacutem (seja

deus ou mortal) do sexo masculino mas precisar da aprovaccedilatildeo de Zeus como autoridade

masculina maacutexima do panteatildeo oliacutempico Por que essa decisatildeo natildeo foi individual e teve que

passar pela ldquofigura paterna de Zeusrdquo Por que Zeus em vez de casamento passou a oferecer-lhe

a melhor porccedilatildeo (a primeira viacutetima) de todo sacrifiacutecio puacuteblico

85

6 - A QUESTAtildeO DA VIRGINDADE E AS DEUSAS VIRGENS

ldquoOne popular private offering consisted in dedicating to the deity the symbols of a phase of onersquos life that had ended such as the locks of children now adults or their toys or a bridersquos virginal clothesrdquo150

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo

Para se chegar agrave questatildeo da virgindade parece-nos que eacute preciso descobrir dentro do mito

as significaccedilotildees e as vozes que ficam agrave margem durante a Antiguidade pois satildeo subordinadas a

uma voz maior dominante

Desde o iniacutecio colocam-se as trecircs deusas virgens (Aacutertemis Atena e Heacutestia) distintas das

demais deusas formando pois um grupo agrave parte o que jaacute implica sua feiccedilatildeo diferencial

Isso revela que a ldquoliberdaderdquo individual feminina natildeo eacute compatiacutevel com a dominaccedilatildeo de

um valor de ldquomaioriardquo Portanto eacute preciso uma leitura plural do texto miacutetico para entender como

essa histoacuteria alternativa das deusas foi se constituindo atraveacutes dos tempos como enfatizamos em

nossa proposta metodoloacutegica

Trata-se pois de uma relevacircncia do tema haja vista sua pertinecircncia na questatildeo

mitoloacutegica que destaca de alguma forma quer seja atraveacutes do uso de um vocaacutebulo quer seja

atraveacutes do contexto miacutetico apesar do seu caraacuteter fantasioso a ideologia de uma eacutepoca em que

sobressai um traccedilo da virgindade de uma ldquoteologiardquo feminina

De fato a virgindade das deusas gregas permite-nos captar repercussotildees em diferentes

acircmbitos da sociedade pois o mito estaacute ldquoembrenhadordquo nela revelando justificando explicando

moldando os valores adaptando-os de modo a destacar experiecircncias que se tornam crenccedilas do

coletivo Satildeo vozes que perpassam e ultrapassam as fronteiras das poacutelis e satildeo acolhidas na

representaccedilatildeo simboacutelica dos princiacutepios sociais que a sociedade grega elabora

Portanto a virgindade de Aacutertemis Atena e Heacutestia ldquomexemrdquo com o eixo da memoacuteria

histoacuterica situam-se no eixo da realidade social e permeiam a questatildeo de gecircnero

150 RATTO Stefania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 p 152 ldquoUma oferenda privada popular consistia em dedicar agrave divindade os siacutembolos de uma fase da vida que jaacute tinha acabado tais como mechas de cabelo de crianccedilas agora adultas ou seus brinquedos ou roupas virginais de uma noivardquo (traduccedilatildeo nossa)

86

Certamente muito se tem dito sobre a Greacutecia sobre os deuses gregos sobre o homem

grego sobre as mulheres de Atenas sobre o patriarcalismo sobre o mito Poreacutem que

discussotildees podem dar conta de encaminhar a posiccedilatildeo dessas deusas no Olimpo grego

Vamos partir de um pressuposto de que o mito foi sendo construiacutedo e se adaptando de

acordo com as transformaccedilotildees por que a sociedade ia passando

Primeiro a sociedade marcadamente agriacutecola era uma sociedade que destacava a figura

da mulher Parece-nos pois que a grande deusa era privilegiada nesse espaccedilo Enfatizavam-se os

ritos de fertilidade e de procriaccedilatildeo

Dessa forma as deusas consideradas ldquoantigasrdquo vindas de outras culturas como Heacutestia

Demeacuteter Aacutertemis Atena tinham histoacuterias paralelas em outros lugares e caracteriacutesticas comuns agraves

deusas de outros povos bem como de deusas importantes quer seja nos ritos de fertilidade quer

nos ritos sagrados do fogo quer como grandes deusas ou ainda como Amazonas independentes

Poreacutem na Greacutecia os textos escritos de Homero e de Hesiacuteodo inauguram histoacuterias da

origem do mundo de todas as forccedilas da natureza de deuses e de heroacuteis Aiacute jaacute se coloca a

fertilidade da natureza e a fecundidade da terra como dos seres humanos como misteacuterios

sublimes e por isso divinizados Embora a primeira divindade que surja responsaacutevel pela

fecundaccedilatildeo seja a Terra uma forma de divindade feminina que implica uma retomada a um

primeiro padratildeo que resgata o feminino como procriando independentemente do masculino

ainda assim seu periacuteodo de independecircncia eacute limitado Logo que a matildee terra (Gaia) daacute agrave luz o

mito grego jaacute propotildee a origem dos opostos e a chegada do macho ao mundo gerando conflitos

na figura de Urano o ceacuteu

Parece-nos que a partir desse momento a Grande Matildee comeccedila a ocupar um lugar

secundaacuterio em uma sociedade que sucede agrave eacutepoca eminentemente agriacutecola em que as invasotildees

colocam toda ecircnfase nos guerreiros e o patriarcalismo inicia o seu domiacutenio

A partir dessas consideraccedilotildees trecircs aspectos podem ser destacados nesse poacutelo complexo

da sociedade grega primeiro como foi reorganizado o cenaacuterio dos deuses acomodando-se a uma

nova situaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico-econocircmica com aspectos diferenciados da fase anterior Segundo

como a mulher se posiciona nesse panorama e como suas funccedilotildees eram atribuiacutedas e

determinadas incluindo a questatildeo dos casamentos

87

Terceiro como a flexibilidade das palavras parthenos e koreacute referindo-se agraves moccedilas

solteiras e virgens em um contexto em transformaccedilatildeo pode ser significada face ao poder de

Afrodite

Enfocando o primeiro item das questotildees levantadas verificamos que a ldquoacomodaccedilatildeordquo dos

deuses oliacutempicos colocou como entidade suprema Zeus cuja forccedila e poder estavam relacionados

com o raio e com a sabedoria Estava instalado o masculino no centro do universo (kosmos)

grego A matildee que havia procriado Urano e Crono afastou-se para que eles pudessem presidir

colocando-se ela proacutepria em um plano diferenciado a que ofereceu o ventre feacutertil para que essa

prole pudesse existir e a que participou nas escolhas Ela entretanto posicionou-se aleacutem das

funccedilotildees oliacutempicas pois estas eram mais especiacuteficas para a vida do cotidiano do periacuteodo dito

arcaico Gaia a matildee primeira ficou conhecida como entidade primordial a base da fecundaccedilatildeo e

da criaccedilatildeo a que organizou o mundo e que jaacute estabelecida em um contexto amplo inaugurou o

princiacutepio de uma genealogia que se define com o nascimento de Zeus impondo-se sobre o pai

(Crono) Isso revela claramente que uma outra era tem iniacutecio agora eacute a vez em que o filho vai

reinar libertando antecedentes dessa aacutervore genealoacutegica e devolvendo agrave Terra a luz do

Relacircmpago o som do Trovatildeo e a forccedila da violecircncia A matildee Terra fica pois como base

ldquolongiacutenquardquo e Zeus fica como o centro do Olimpo

Desde o iniacutecio constata-se que a matildee reconhece os filhos e os privilegia Gaia a partir do

momento que copula com Urano passa a reconhececirc-lo como esposo e protege o filho Crono

incitando-o contra o pai que natildeo lhe ldquodava espaccedilordquo A mesma questatildeo se repete entre Crono e

sua irmatilde Reacuteia Quando comeccedilam a copular Reacuteia reconhece Crono como pai de seus filhos e

porque a lenda jaacute previa a ira dos filhos contra o pai tentando arrebatar-lhe o lugar Crono

zeloso de seu domiacutenio passa a devoraacute-los A matildee agora Reacuteia salva o filho Zeus de Crono

dando a este uacuteltimo uma pedra para engolir e escondendo Zeus em uma gruta onde eacute alimentado

por uma cabra

Esses aspectos justificam algumas constataccedilotildees (a) a matildee parece ter um viacutenculo de

afetividade com os filhos desde o nascimento reconhecendo-os como parte de sua prole gerados

em seu ventre (b) o pai considerado apenas pai bioloacutegico ainda natildeo assume os filhos Natildeo

existe pois nesses pais miacuteticos primordiais a ldquoadoccedilatildeordquo dos filhos que seraacute posteriormente

88

introduzida no direito romano151 (c) a lenda miacutetica destaca para um fato natural da vida com o

tempo os filhos assumem o lugar do pai ndash o cetro passa do mais velho ao mais novo ndash (d) a

cabra como participante na amamentaccedilatildeo das crianccedilas na falta do leite materno eacute tida como um

animal reverenciado entre os gregos na figura de Zeus que como infante necessitou da

alimentaccedilatildeo vinda de Amalteacuteia a cabra-ama tida em outras versotildees como ninfa

Essa linhagem a partir daiacute centrada em Zeus parece-nos revelar um periacuteodo de transiccedilatildeo

cedendo a fecundidade criativa lugar para o masculino dominante ocupar o governo do mundo

atraveacutes das armas que lhe satildeo atribuiacutedas o raio o trovatildeo e a violecircncia o poder de ldquofulminarrdquo

Passa-se da fecundidade feminina agrave dominaccedilatildeo masculina

Assim reorganizado o Olimpo instala a figura do pai todo-poderoso o masculino

predominante refletindo uma sociedade em que os cidadatildeos (pais e esposos) negociavam e

decidiam sobre as mulheres (filhas e esposas) protegiam as muralhas da cidade (os hoplitas) e

cuidavam da descendecircncia genealoacutegica atraveacutes da procriaccedilatildeo com as jovens mulheres porque a

continuaccedilatildeo da linhagem familiar era de grande importacircncia na sociedade grega

Isso posto mostra-nos a relevacircncia da deusa Afrodite para a reproduccedilatildeo da espeacutecie o

papel representativo da deusa Heacutestia como guardiatilde da casa e da famiacutelia com sua presenccedila fixa

constante atenta a significacircncia de Aacutertemis lsquoSenhora das Ferasrsquo responsaacutevel pela

lsquodomesticaccedilatildeo dos jovensrsquo as meninas de onze doze anos (as ursas) para enfrentamento do

casamento e dos partos e os rapazes para o preparo civilizatoacuterio que a cidadania impotildee e

finalmente Atena como orientadora das questotildees que precisam de uma direccedilatildeo saacutebia e astuta de

um rumo certeiro de estrateacutegias inteligentes da elaboraccedilatildeo paciente no trabalho manual no

cuidado com os cavalos no cultivo da oliveira Enfim uma deusa multifacetada para atender

necessidades em tempo de guerra e de paz de mulheres e de homens

De certa forma os deuses oliacutempicos refletiam todos os estados de coisas dos homens em

sua vida cotidiana

Uma forma de honrar os deuses e de implorar favores a eles era atraveacutes dos cultos e dos

rituais de sacrifiacutecio Assim o homem grego da eacutepoca arcaica mantinha um viacutenculo com o divino

com seus deuses e deusas atraveacutes da praacutetica de ritos fossem eles puacuteblicos ou privados Os 151 Discutimos sobre esse aspecto em um artigo de nossa autoria O olhar e a voz na construccedilatildeo do masculino ndash A questatildeo da paternidade in GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Masculino Campinas Editora Aliacutenea 2008

89

sacrifiacutecios coletivos oferecidos durante festivais sacros em geral incluiacuteam instrumentos

adequados e animais como viacutetimas Esse fato eacute revelador da continuidade de uma tradiccedilatildeo que se

mantinha dos tempos ancestrais Portanto mesclavam-se o antigo e o novo incorporando ritos a

deuses que tinham um ldquonovo formatordquo adaptados a uma sociedade guerreira cuja voz que se

fazia ouvir era a do masculino Da grande deusa passou-se ao deus supremo

Essa incorporaccedilatildeo da figura de deusas que mantinham sua autonomia vinculada ao

passado de grandes deusas sentadas no Olimpo venerando a figura de um reinado governado por

um deus coloca a mulher e o homem no bojo da historicidade de suas inter-relaccedilotildees

As deusas virgens do Olimpo parecem sugerir pistas de uma sociedade matriarcal anterior

e buscando rastrear seus atributos e funccedilotildees parece-nos que seus testemunhos da Antiguidade

Grega fazem-nos desvendar a ldquoinvisibilidade femininardquo

De fato eacute atraveacutes das deusas que se tem notiacutecia do papel das mulheres na sociedade As

meninas se preparavam para o casamento sob a ldquodomesticaccedilatildeordquo e orientaccedilatildeo de Aacutertemis e lhe

ofertavam seus brinquedos de infacircncia siacutembolos de uma fase que deixavam para traacutes No dia do

casamento em geral a noiva tomava banhos de purificaccedilatildeo indicadores de uma eacutepoca de

transformaccedilotildees pois os rituais de libaccedilatildeo faziam parte dos preparativos de fases muacuteltiplas dos

casamentos da Greacutecia antiga Um banquete era oferecido a Heacutestia na casa da noiva do qual ela

podia participar de rosto coberto por um veacuteu A menina tornava-se entatildeo ldquoinvisiacutevelrdquo escondida

atraveacutes do veacuteu uma presenccedila velada diante do noivo e da famiacutelia Heacutestia tambeacutem ldquoguiavardquo a

procissatildeo para a casa do noivo onde a jovem iria morar pois a matildee da noiva acompanhava o

trajeto carregando tochas acesas

Esses pedaccedilos de descriccedilotildees datildeo pistas a algumas reflexotildees importantes sobre o que hoje

se denomina estudo de gecircneros152 indicador de uma visatildeo da posiccedilatildeo ocupada pela mulher

naquela sociedade dominada por um pai Zeus que se configura como o soberano que representa

o poder diante de todos os outros deuses

152 Natildeo pretendemos explorar a questatildeo vinculada aos estudos de gecircnero cuja trajetoacuteria emerge da constataccedilatildeo de um conflito social na reinvidicaccedilatildeo de direitos tendo sido colocado nas ciecircncias sociais a partir de 1955 quando John Money propocircs o termo ldquopapel de gecircnerordquo atribuindo o conjunto de condutas referentes aos homens e agraves mulheres

90

A nossa leitura dessa categoria de gecircnero dentro de uma anaacutelise antropoloacutegica

comparativa parece superar um olhar que vecirc a mulher fortemente ldquovitimizadardquo dentro da

sociedade sem espaccedilo para a participaccedilatildeo e atuaccedilatildeo legiacutetima

De fato embora a praacutetica discursiva dominante fosse a voz de um pai supremo no

Olimpo outros deuses e deusas enredavam-se em um amplo sistema com diferentes funccedilotildees de

forma que ambos o feminino e o masculino colocavam-se em um mesmo patamar Entatildeo

questionamos o lsquopoderrsquo estaacute acima da questatildeo do gecircnero Zeus era pois o soberano acima de

todos os outros deuses e deusas e unido a deusas e a mulheres (humanas) simboliza o princiacutepio

masculino O princiacutepio era organizador tambeacutem pois representava a constituiccedilatildeo da famiacutelia em

que ambos os sexos satildeo contemplados De algum modo a Greacutecia arcaica preservava a funccedilatildeo

fecundadora da mulher pois ateacute mesmo as Amazonas mulheres independentes que se diziam

descendentes do deus da Guerra e da ninfa Harmonia mulheres que se governavam a si proacuteprias

sem recorrerem a homens usavam-nos no entanto para perpetuar a raccedila Diz a lenda que

conservavam os filhos do sexo feminino mutilando-lhes um seio para o manejo do arco e da

lanccedila Daiacute alguns autores fornecem o termo ά-microαξων (amazonas) como ldquoas que natildeo tecircm seiordquo

Nesse contexto a situaccedilatildeo de poder dentro da categoria de gecircnero eacute oposta tendo o

domiacutenio da situaccedilatildeo essas mulheres guerreiras cegavam os filhos do sexo masculino ou

deixavam-nos coxos

Aqui tambeacutem a questatildeo do olhar se coloca quer seja na mutilaccedilatildeo dos seios oacutergatildeos

femininos por excelecircncia quer seja na retirada dos olhos dos meninos

A deusa virgem Aacutertemis no seu repuacutedio ao olhar masculino e no seu firme propoacutesito de

manter-se virgem era a deusa cultuada por essas mulheres guerreiras e caccediladoras vinculadas agrave

divindade por um traccedilo que senatildeo por uma cultura no bioloacutegico pelo menos por uma biologia na

cultura Logo a questatildeo de gecircnero eacute ldquouma construccedilatildeo social e cultural um lsquomodo de ser no

mundorsquordquo153

153 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p17

91

Quando os textos falam sobre a posiccedilatildeo do as mulheres frente agraves divindades ainda assim

temos que destacar que elas tinham uma participaccedilatildeo ativa nas celebraccedilotildees apesar de natildeo serem

permitidas em lugares onde se realizavam sacrifiacutecios violentos e onde se comia carne de animais

sacrificados Esses espaccedilos eram reservados aos cidadatildeos adultos do sexo masculino dada a

ldquoferocidaderdquo e ldquoatrocidaderdquo dos atos Preservava-se a mulher por sua constituiccedilatildeo bioloacutegica ou

pela constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses rituais

Por outro lado alguns rituais que se realizavam no templo dedicado a Aacutertemis em

Brauron eram reservados apenas agraves jovens meninas de onze a quatorze anos as virgens que se

colocavam como ldquoursasrdquo antes do casamento

Seriam essas funccedilotildees marginais como coloca Ratto154 por uma questatildeo de gecircnero

significando aqui o contexto soacutecio-poliacutetico ou por uma questatildeo que envolve o bioloacutegico

Um outro aspecto que levanta uma discussatildeo quanto ao gecircnero com a carga semacircntica

que lhe eacute atribuiacuteda hoje eacute a situaccedilatildeo dos casamentos na Greacutecia antiga

Zeus unido a deusas simbolizava o princiacutepio masculino como jaacute se enfatizou e o esposo

legiacutetimo no casamento

A sociedade dos homens reproduzia esse estado de coisas atraveacutes de dois momentos que

ressaltavam a mudanccedila de posiccedilatildeo da mulher virgem um contrato formal entre o pai da noiva e o

noivo selado com a entrega do dote e a transferecircncia da jovem da casa do pai para a casa da

famiacutelia do noivo onde deveria perpetuar esse tipo de tradiccedilatildeo

Embora essa troca nos pareccedila altamente comercial (e natildeo deixa de ser um negoacutecio)

revela a preocupaccedilatildeo com as funccedilotildees femininas de procriaccedilatildeo de continuidade a uma genealogia

e do cuidado com a casa que era espaccedilo da alccedilada da mulher pois assim como Heacutestia as esposas

deviam zelar pelo lar e pela famiacutelia

154 RATTO Stefania Opcit ldquoIn Greece women took an active part in the celebration of the leading religious festivals though in marginal rolesrdquo p 140 [Na Greacutecia as mulheres tinham uma obrigaccedilatildeo ativa na celebraccedilatildeo dos festivais religiosos principais embora em funccedilotildees perifeacutericas (traduccedilatildeo nossa)] A autora menciona que em alguns festivais cabia agraves garotas lavar e vestir as estaacutetuas para o culto em outros festivais como as Pan-Ateneacuteias as jovens teciam os saiotes que eram carregados como oferendas agrave deusa Portanto parece que a autora quer dar ecircnfase natildeo ao tipo de funccedilatildeo em si executada pelas jovens mas ao fato de serem excluiacutedas da vida poliacutetica na participaccedilatildeo dos cultos de sacrifiacutecio e dos banquetes coletivos Vemos aiacute uma discussatildeo do ponto de vista de gecircnero como exposto nas ciecircncias sociais

92

Aleacutem disso a sociedade transitoacuteria na posiccedilatildeo que assumimos de um periacuteodo dominado

pela Grande Deusa a um patriarcalismo onde se impotildee a figura de um deus de um pai

dominante explicita a necessidade de preparar as jovens para uma nova etapa cuidando de sua

orientaccedilatildeo e favorecendo os aspectos transformadores que preparam para a aceitaccedilatildeo de papeacuteis

diferentes dos que tinham na casa do pai

Essa preocupaccedilatildeo que a famiacutelia grega manifesta embora um tanto condicionadora e

imposta por padrotildees sociais parecia revelar uma preocupaccedilatildeo com periacuteodos de iniciaccedilatildeo para

outras etapas da vida tanto puacuteblica quanto particular Acreditamos que essa forma de

sistematizar regras e normas sociais possa ter contribuiacutedo grandemente para a formaccedilatildeo do

pensamento filosoacutefico grego que inaugura uma outra etapa

Quanto agrave teologia das deusas virgens ela eacute integradora de vaacuterias dimensotildees da vida

humana no que concerne homens e mulheres ela eacute predominantemente comunitaacuteria e relacional

ela se coloca como contextual e concreta marcada pelo cotidiano da vida grega como lugar de

manifestaccedilatildeo do divino e ela eacute acima de tudo atuante no sentido de participar da vida dos

mortais de favorecer homens e mulheres de zelar no momento em que o feminino precisa da

presenccedila e da forccedila dessas potecircncias nas experiecircncias coletivas e isoladas como expressatildeo de

apoio e de solidariedade

A teologia das deusas virgens direciona para a teologia em que se coloca lado a lado o

masculino e o feminino em que deusas privilegiam a uniatildeo dos opostos a submissatildeo ao esposo

a experiecircncia da vida familiar As deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia rompem o silecircncio da

dependecircncia do feminino impondo a consciecircncia de uma postura autocircnoma de uma perspectiva

feminina que eacute capaz de significar por si soacute sem o viacutenculo de outras presenccedilas quer seja de um

esposo quer seja de um filho quer seja de um amante

Nessa perspectiva poderiacuteamos ousar propor que a teologia feminista das deusas virgens

situa na Antiguidade as origens de um movimento que iraacute se constituir seacuteculos depois

refletindo a questatildeo de gecircnero que se vai delineando em cada movimento histoacuterico

A primeira tensatildeo instala-se com os mitos de criaccedilatildeo das lendas gregas que a partir daiacute

colocam como figura central um deus conferindo-lhe o direito e o poder do pai ou seja a

introduccedilatildeo de um conceito de patriarcado

93

Nas palavras e na visatildeo de Freitas o patriarcado na eacutepoca arcaica deve ser entendido

como uma condiccedilatildeo de inter-relaccedilotildees sociais e de imposiccedilotildees

Mas essa compreensatildeo do termo deixa na sombra o fato de que o pai como chefe de famiacutelia na Antiguidade era tambeacutem senhor amo e esposo Portanto o patriarcado conota um complexo sistema de subordinaccedilatildeo e dominaccedilatildeo 155

As deusas virgens revelam pois um conflito que eacute constitutivo do dualismo simboacutelico de

gecircnero uma vez que estaacute enraizado na convicccedilatildeo de que a experiecircncia humana estaacute imersa em

experiecircncias sustentadas por organizaccedilotildees sociais e poliacuteticas e por instituiccedilotildees e organismos

religiosos permeando todas as relaccedilotildees com seus aspectos contraditoacuterios e ambiacuteguumlos

O problema da linguagem os epiacutetetos referentes agraves deusas e o leacutexico que se impocircs como

caracteriacutestica de algumas expressotildees e atributos peculiares eacute outra questatildeo que nos fez observar

algumas colocaccedilotildees levantadas no estudo dessa teologia feminina

Quando discutimos a metodologia de nossa pesquisa fizemos algumas consideraccedilotildees

sobre os epiacutetetos das deusas e apoiamo-nos na obra de Parry156 um estudioso dos versos homeacutericos

No entanto pretendemos retomar um aspecto que enfatiza o caraacuteter da virgindade e

discuti-lo de uma posiccedilatildeo comparativa (interpretativista)

Narrando sobre a genealogia oliacutempica Hesiacuteodo coloca que

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia157 mais saacutebia que os Deuses e os homens mortais Mas quando ia partir a Deusa de olhos glaucos158 Atena ele enganou suas entranhas com ardil com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo 890 por conselhos da Terra e do Ceacuteu159 constelado Estes lho indicaram para que a honra de rei natildeo tivesse em vez de Zeus outro dos Deuses perenes era destino que ela gerasse filhos prudentes primeiro a virgem160 de olhos glaucos161 Tritogecircnia162 igual ao pai no furor e na prudente vontade163

155 FREITAS Maria Carmelita de Op cit p 28-29 156 PARRY Millman Op cit 157 Em grego encontramos a palavra Μητιν (Meacutetis) uma divindade da primeira geraccedilatildeo eacute a personificaccedilatildeo da sabedoria e da Astuacutecia 158 Jaacute nos referimos ao epiacuteteto de Atena glaucoacutepida (γλαυκωπιν) 159 Referindo-se a Gaia (Γαίης forma poeacutetica) e Urano (Ούρανοΰ) 160 A palavra usada em grego eacute κούρην 161 Haacute repeticcedilatildeo na mesma estrofe do epiacuteteto γλαυκώπιdα 162 Tambeacutem haacute referecircncia ao epiacuteteto Τριτογένειαν Tritogecircnia ou Tritogeneacuteia que se refere ao lugar de seu nascimento Uma das versotildees eacute que teria sido agraves margens do lago Tritatildeo na Liacutebia 163 HESIacuteODO Op cit p 155

94

Veja-se que em seu primeiro casamento a esposa (Meacutetis) eacute literalmente engolida natildeo

deixando Zeus espaccedilo para uma situaccedilatildeo baacutesica do feminino de a mulher parir o filho que

espera

Assim nasce Atena da cabeccedila do pai (vs 924-926) virgem de olhos glaucos Tritogecircnia

guerreira infatigaacutevel semelhante ao pai no furor e na vontade Portanto essa deusa coloca-se jaacute

no iniciacuteo entre o masculino e o feminino uma deidade cujo aspectos bioloacutegicos natildeo satildeo

relevantes uma vez que

Para los griegos antiguos Atenea una de las diosas oliacutempicas maacutes importantes era la representacioacuten de la sabiduriacutea y la destreza En la manera en que se presenta su nacimiento que claros estos aspectos de su caraacuteter164

Aleacutem disso seu nascimento sem a figura materna indica um plano diferencial entre os

deuses entre o comportamento das deidades ancestrais e dos deuses oliacutempicos que iam surgindo

revelando provavelmente uma unificaccedilatildeo entre a cultura matriarcal e uma forma de

pratriarcalismo querendo apossar-se dos atributos da mulher Mas isso natildeo era uma forma de

desprezar o feminino na sua origem e na sua concepccedilatildeo pois Zeus engole Meacutetis para que

tambeacutem ele pudesse usufruir de sua sabedoria e tecirc-la dentro dele De certa forma ele assume a

individualizaccedilatildeo de Meacutetis e assumindo-a assume a paternidadematernidade de Atena em seu

nascimento ele estaacute reiterando que a figura da matildee existe e que tudo proveacutem dela

Diz Loraux a respeito do domiacutenio da matildee

[] a matildee eacute designada pela metoniacutemia da sua matriz ela proacutepria inteira numa parte de si mesma Fazer recuar ao maacuteximo os limites do tempo ou do espaccedilo para melhor encerrar a Deusa na sua lsquometrarsquo (local do materno no corpo das mulheres) tal eacute a operaccedilatildeo que natildeo nos parece possiacutevel escapar Mas como a Deusa eacute o todo porque como pensam os colaboradores os seus filhos natildeo tecircm necessidade de um Urano ciumento para ficarem para sempre presos nas profundezas do corpo materno tudo (Tudo) estaacute neste esconderijo no interior do grande continente feminino165

Atena nasce com a sabedoria materna da mulher pois e com a determinaccedilatildeo e forccedila do

pai mesclando qualidades femininas e masculinas De um lado a jovem virgem (κούρη) de

outro Atena terriacutevel (δειην) a guerreira infatigaacutevel

164 MAUROMATAKI Maria Op cit p 38 165 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 p 52

95

Na origem dos deuses Hesiacuteodo coloca a virgindade como atributo fixo ao lado de outros

que destacam Atena Usa em seu texto a palavra κούρη

O dicionaacuterio do autor francecircs Bailly apresenta para esse leacutexico a definiccedilatildeo ldquojeune fille c

a d jeune viergerdquo portanto uma jovem virgem oposto a έζευγmίνη ou seja ldquofemme marieeacuterdquo

(mulher casada)166

Este mesmo substantivo em Homero no plural Νύmicroφαι καυραι ∆ιός (Il 6 420)167 estaacute

se referindo agraves ninfas e tem um duplo sentido as ninfas filhas de Zeus isto eacute as ninfas virgens e

filhas de Zeus Nesse caso o termo Νύmicroφαι jaacute estaacute relacionado agrave ideacuteia de virgindade pois as

ninfas e as musas eram virgens (κουραι) Compara-se com Μοΰcαι Όλυmicroπιάδεα κοΰραι ∆ιδε

αιγιόχοιο168 traduzido por Torrano169 como ldquoMusas olimpiacuteades virgens170 de Zeus porta-eacutegiderdquo

Encontramos na Teogonia diversas vezes a referecircncia κούρη sempre traduzida por

virgem

No entanto o substantivo κoacuteρη tambeacutem toma a forma de nome proacuteprio referindo-se agrave

jovem filha de Demeacuteter Perseacutefone Nesse sentido a lenda enfatiza a matildee (Demeacuteter) e filha

(Perseacutefone) e o significado eacute o de filha tendo se estratificado como substantivo proacuteprio ( relativo

a Perseacutefone somente)

Em nossa leitura das obras e dos aspectos referentes agraves deusas virgens percebemos que

tambeacutem a palavra παρθένος eacute usada com o sentido de jovem e de virgem171 o adjetivo refere-se

agrave jovem pura e intacta ou a alguma coisa sem maacutecula como por exemplo παρθένιον φρέαρ ou

seja os poccedilos da Virgem perto de Elecircusis por isso capitalizado (senatildeo a leitura de παρθένιον

φρέαρ seria poccedilos de aacutegua liacutempida pura)

166 BAILLY Op cit p121 e 880 167 HOMERO Op cit p 292 (Em inglecircs daughters of Zeus) 168 HESIacuteODO Op cit p 162 v 1022 169 HESIacuteODO Op cit 170 Grifo nosso 171 Verificar entrada do leacutexico em BAILLY Op cit p 1489

96

Em Hesiacuteodo encontramos o uso de παρθένος referindo-se a jovens (provavelmente antes

do casamento) sem qualquer conexatildeo com as deusas de nossa investigaccedilatildeo Dizem os versos

204-205

Coube-lhe172 entre homens e deuses imortais As conversas de moccedilas (παρθένiacuteοvς) os sorrisos os enganos173 205

Aleacutem disso a estaacutetua de Atena em Atenas ldquocunhourdquo o termo partheacutenos como indicativo

de virgem bem como a constelaccedilatildeo de virgem conhecida em grego como PARTHEacuteNOS

Quais seriam os criteacuterios para a escolha de um ou de outro vocaacutebulo Fica aiacute a pergunta

que merece ter uma investigaccedilatildeo profunda dessa ocorrecircncia linguumliacutestica

Hipotetizamos que talvez a escolha do vocaacutebulo possa ter uma variaccedilatildeo devido agrave eacutepoca

oue agrave regiatildeo em que eacute usado

Percebemos que nos Hinos Homeacutericos compostos em periacuteodos posteriores e por

rapsodos diferentes a preferecircncia de emprego eacute a da palavra παρθένος referindo-se a qualquer

das trecircs deusas virgens

62 ndash O caraacuteter da virgindade no Cristianismo

Eacute interessante estabelecer um paralelo entre a mitologia grega e a religiatildeo cristatilde Se para

os gregos os mitos satildeo tidos como lendas que relacionam aos valores de uma eacutepoca o

Cristianismo emerge do pensamento judaico Os textos do Gecircnesis que satildeo tambeacutem simboacutelicos

e representativos de uma cultura tornaram-se poderosos documentos ldquoautecircnticosrdquo detentores de

ldquoverdadesrdquo emblemaacuteticas

Essas supostas verdades retratam ndash assim como os mitos gregos ndash visotildees da existecircncia

humana Elas contecircm como as lendas relaccedilotildees de gecircnero histoacuterias de terror e de piedade e

histoacuterias de amor e de poder

Aleacutem do contexto soacutecio-poliacutetico que orienta tanto o texto grego como o hebraico haacute a

questatildeo linguumliacutestica pois as traduccedilotildees requerem decisotildees interpretativas que como jaacute observamos

em capiacutetulo anterior satildeo motivadas de alguma forma pelas circunstacircncias e pela visatildeo de

172 Referindo-se agrave deusa Afrodite 173 HESIacuteODO Op cit p 117

97

mundo do tradutor Assim muitas vezes uma interpretaccedilatildeo direciona um texto a uma outra

cultura

Inuacutemeras vezes lendo textos em outras liacutenguas dizemos que gostariacuteamos de ldquopensarrdquo

como o falante nativo dessas liacutenguas ou seja de ter introjetada a sua cultura o que jaacute encaminha

para outros entendimentos

Portanto tanto a histoacuteria da ldquovirgindade das deusas gregasrdquo como a histoacuteria da

ldquovirgindade no Cristianismordquo jaacute estatildeo multifacetadas distorcidas e fragmentadas (como diria

Deleuze)

Continuando nosso paralelo proposto no iniacutecio temos dois relatos absolutamente

diferentes da criaccedilatildeo do mundo e dos seres humanos Enquanto os gregos divinizam o espaccedilo e

os homens surgem dentro desse espaccedilo sagrado na sua configuraccedilatildeo a tradiccedilatildeo hebraica coloca

Deus fora do mundo criando-o como espaccedilo para os mortais homens e mulheres Vecirc-se jaacute que

os deuses e os homens gregos habitam o mesmo cosmo em planos diferentes Para os hebreus

Deus estava aleacutem do cosmo o que implica que a humanidade habita outro espaccedilo e estaacute em outro

plano

No Olimpo circulam deuses e deusas e natildeo haacute questotildees motivadas por aspectos de

moralidade O mito eacute moldado atraveacutes de ritos iniciaacuteticos que prevecircem mudanccedilas de etapas e a

aquisiccedilatildeo de novos conhecimentos Haacute diferenccedilas que satildeo determinadas por funccedilotildees bioloacutegicas e

portanto por funccedilotildees sociais e uma das consequumlecircncias eacute o conflito natural as tensotildees que fazem

com que de alguma forma tambeacutem o mito apresente um enfoque binaacuterio

O Cristianismo poreacutem surge com um pensamento miacutetico binaacuterio O homem eacute criado por

Deus mas a etapa da ldquoquedardquo ndash atribuiacuteda agrave mulher ndash eacute inevitaacutevel

Esse pensamento hebraico inicial jaacute confere aos homens que eles sejam privados de

ingenuidade e de acesso a Deus o que lhes daacute consciecircncia discernimento e noccedilatildeo dessa

bipolaridade sexual

Eacute nesse contexto que surge a figura de Cristo tatildeo representativa que em nossos estudos

determinamos a eacutepoca arcaica grega em que se situam os textos de Homero por volta do seacuteculo

VIII antes da era Cristatilde tendo-o como referecircncia

Em Homero a menccedilatildeo da virgindade eacute pouco citada apenas para Atena e para Aacutertemis

sendo posteriormente ressaltada a virgindade de Aacutertemis e de Heacutestia aleacutem da de Atena nos

98

Hinos Homeacutericos Heacutestia era uma deusa silenciosa quase amorfa uma vez que provavelmente

vinculava-se agrave Grande Deusa dos ancestrais o que a fazia perder seus traccedilos definidos

Aleacutem disso dada a flexibilidade dos termos koreacute e partheacutenospodemos ateacute pensar em

uma possibilidade de eles estarem significando as ldquofilhasrdquo de Zeus antes do casamento sem uma

ecircnfase agrave questatildeo da virgindade em si mas do lsquoolharrsquo que conspurga a divindade Aacutertemis vinga-

se do olhar dos mortais Atena protege-se do olhar dos humanos

A proacutepria Afrodite enreda-se na questatildeo do olhar embora em seu caso a mortalidade de

Anquises seja superada pelo ato de procriaccedilatildeo e da descendecircncia dando continuidade ao

nascimento do heroacutei que eacute uma provaacutevel temaacutetica do Hino Homeacuterico a Afrodite V

A virgindade grega passa pois a ser conclamada a partir de Homero e de Hesiacuteodo (que

menciona Atena como κορή em seu nascimento) Os Hinos Homeacutericos jaacute de um periacuteodo

posterior ldquorecuperamrdquo esse aspecto e reorganizam os atributos dessas deusas virgens

enfatizando o epiacuteteto da virgindade e criando a lenda de um juramento de Heacutestia a Zeus para

manter-se virgem sempre Aiacute podemos supor que o mito passava por um periacuteodo de

transformaccedilatildeo acomodando-se a novos tempos fundindo aspectos de outras eacutepocas agrave era

arcaica

Em Homero na Iliacuteada e na Odisseacuteia do ponto de vista conceitual nota-se que o autor

apresenta uma teologia caracteriacutestica de seu tempo e como isso jaacute foi inuacutemeras vezes destacado

por diferentes autores os deuses movem-se ao lado dos humanos e repartem as mesmas

caracteriacutesticas

Dentro da Odisseacuteia e a Iliacuteada vatildeo sendo compostas narrativas dos deuses enredados em

situaccedilotildees que explicitam que assim como os homens eles estatildeo sujeitos a fatos que envolvem a

ldquosexualidaderdquo Eacute o que ouve Odisseu (Ulisses) sobre as aventuras de Afrodite com Ares a que jaacute

nos referimos

Hesiacuteodo remete-se na Teogonia agrave virgem Atena a Tritogecircnia filha de Zeus e de Meacutetis

(vs 886-896) Essa indicaccedilatildeo sobre o nascimento de Atena pode estar vinculada a uma deusa

Liacutebia (Neith) de uma eacutepoca em que as sacerdotisas-virgens (semelhante agraves Amazonas na sua

99

independecircncia e no seu caraacuteter guerreiro) entregavam-se todos os anos a um combate beacutelico Isso

justificaria os atributos de ldquovirgemrdquo ldquoTritogecircniardquo e ldquoguerreirardquo para Atena174

Fizemos essas regressotildees para chegar a uma observaccedilatildeo que consideramos importante

parece que a virgindade das deusas ancestrais estaacute bastante relacionada ao fato de natildeo

dependerem de um homem para terem sua identidade garantida embora pudessem mesmo ter

filhos da mesma forma que as Amazonas que mantinham sua ldquoprole femininardquo como forma de

dar continuidade agravequela ldquoespeacutecierdquo

Esse ponto tambeacutem supomos eacute resgatado pelo Cristianismo quando aponta para o fato

de que a matildee Maria eacute virgem O pai Joseacute teve sua figura obscurecida no Evangelho de Lucas e

tornou-se apenas um ldquosuporterdquo um pai fiacutesico provedor e silencioso na trajetoacuteria do filho na

superfiacutecie terrestre

Em Mateus o auto do nascimento de Jesus eacute significativamente mais curto que em Lucas

contando a histoacuteria da natividade com 31 versiacuteculos enquanto o de Lucas conta com 132

Falando da concepccedilatildeo de Jesus o evangelista refere-se ao dilema de Joseacute que eacute o personagem

principal

Diz Mateus (118-25) que Maria estava desposada com Joseacute e

Antes de coabitarem aconteceu que ela concebeu por virtude do Espiacuterito Santos Joseacute seu esposo que era homem de bem natildeo querendo difama-la rejeitaacute-la secretamente

Em seguida um anjo do senhor lhe diz

ldquoJoseacute filho de Davi natildeo temas receber Maria por esposa pois o que nela foi concebido vem do Espiacuterito Santordquo Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o senhor falou pelo profeta

174 Sobre essa referecircncia verificar a obra de PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) p 1157 Criacutetias no Timeu conta uma histoacuteria narrada a ele por um homem de aproximadamente noventa anos de idade comentando sobre o poeta Soacutelon e sobre sua narrativa (lsquoa veritable traditionrsquo) que ele havia trazido do Egito ldquoIn the Egyptian Delta at the head of which the rive nile divides thereis a certain district which is Called the district of Sais and the great city of the district is also called Sais and is the city from which king Amasis came The citizens have a deity for their foundress she is called in the Egyptian tongue Neith and is asserted by them to be the same whom the Hellenes call Athena They are great lovers of the Athenians and say that they are in some way related to themrdquo ldquoNo delta egiacutepcio do distrito eacute tambeacutem chamada de Sais e eacute a cidade na cabeceira do qual o rio Nilo se divide haacute um certo distrito chamado de distrito de Sais e a grande cidade de onde o Rei Amasis veio Os cidadotildees tecircm uma deidade para sua fundadora ela eacute chamada na liacutengua egiacutepcia de Neith e eacute afirmado por eles que ela eacute a mesma que os helenos chamam de Atena Eles satildeo grandes admiradores dos atenienses e dizem que eles satildeo de alguma forma relacionado a elesrdquo (traduccedilatildeo nossa)

100

Eis que a Virgem conceberaacute e daraacute aacute luz a um filho que se chamaraacute Emanuel (Isaiacuteas 714) que significa Deus conosco

Joseacute acatou as ordens quando acordou

Nessa fala de Mateus a revelaccedilatildeo se daacute atraveacutes de Joseacute

Finalmente Mateus acrescenta

E sem que ele a tivesse conhecido175 ela deu agrave luz o seu filho que recebeu o nome de Jesus176

O tributo ldquovirgemrdquo soacute eacute mencionado atraveacutes das palavras profeacuteticas de Isaiacuteas

O auto do nascimento em Lucas ao contraacuterio enfatiza Maria e coloca-a como receptora

da revelaccedilatildeo da virgindade

Diz o evangelho (Lucas 126-27)

o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiteacuteia Chamada Nazareacute a uma virgem177 com um homem que se chamava Joseacute da casa de Davi e o nome da virgem178 era Maria

Percebe-se a ecircnfase dada agrave Maria e a questatildeo da virgindade colocando Joseacute em segundo

plano

Apoacutes o anjo anunciar-lhe a concepccedilatildeo Maria pergunta ao anjo (134)

ldquoComo se faraacute isso pois natildeo conheccedilo homem179rdquo180

Portanto a questatildeo da virgindade tem um enfoque significativo e diferente em Mateus e

em Lucas para o primeiro evangelista Maria jaacute estava graacutevida ao desposar Joseacute Para o segundo

apesar de ser casada ela natildeo tinha relaccedilotildees maritais com Joseacute A revelaccedilatildeo do primeiro caso

para ser convincente ao marido daacute-se a ele atraveacutes de um sonho No segundo caso a moccedila

casada que se manteacutem ainda em estado de virgindade recebe a noticia do anjo estando desperta

175 Alguns autores colocam ldquonatildeo a conheceu maritalmenterdquo o que remete provavelmente agrave conotaccedilatildeo do texto original 176 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 177 Grifo nosso 178 Grifo nosso 179 Em BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 p 25 encontramos a traduccedilatildeo (de Vera Ribeiro) ldquoComo seraacute isso possiacutevel se sou virgemrdquo 180 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982

101

Em Mateus Maria eacute colocada como uma jovem graacutevida antes do matrimocircnio com a

justificativa de ter sido obra do Espiacuterito Santo Ora segundo dados histoacutericos da eacutepoca muitas

jovens judias eram estupradas por soldados romanos e este poderia ter sido o caso de Maria

Joseacute pertence agrave mesma tribo de Davi acolhe-a e ao filho para que o infante pudesse ser

reconhecido como cidadatildeo judeu filho que era de matildee judia

Parece-nos aqui tambeacutem que a questatildeo da gravidez de Maria deva ter enfoque poliacutetico-

social uma vez que a Igreja Catoacutelica em 649 no Conciacutelio Ecumecircnico do Latratildeo colocou a

virgindade de Maria antes durante e depois do parto de Jesus como dogma

Tentando pensar o conceito de dogma encontramos uma definiccedilatildeo bastante ampla e que

contempla vaacuterios aspectos inclusive o da inquestionabilidade por ter conexatildeo com revelaccedilatildeo

divina Temos pois que

Na Igreja Catoacutelica um dogma eacute uma verdade absoluta definitiva imutaacutevel infaliacutevel inquestionaacutevel e ldquoabsolutamente segura sobre a qual natildeo pode pairar nenhuma duacutevidardquo Uma vez proclamado solenemente ldquonenhum dogma pode serrdquo revogado ou ldquonegado nem mesmo pelo Papa ou por decisatildeo conciliarrdquo Por isso os dogmas constituem a base inalteraacutevel de toda a Doutrina Catoacutelica e qualquer catoacutelico eacute obrigado a aderir aceitar e acreditar nos dogmas de uma maneira irrevogaacutevel181

A virgindade de Maria atesta que Jesus eacute filho do Senhor e o dogma de sua virgindade

reafirma o fato que Jesus eacute o filho primogecircnito e uacutenico de Maria natildeo tendo tido irmatildeos carnais

Quando os textos biacuteblicos se referem aos ldquoirmatildeosrdquo de Jesus podem indicar qualquer parentesco

ou ateacute mesmo ldquoamigordquo em hebraico

Do ponto de vista teoloacutegico a virgindade de Maria revela um comportamento que vai

aleacutem de um dado bioloacutegico e fiacutesico pois ressalta uma decisatildeo pessoal consciente de se dedicar

a servir uma missatildeo Dizendo que aceitava a sua virgindade Maria estava se consagrando agrave

missatildeo que Deus lhe dava

Vemos este aspecto inteiramente semelhante ao das deusas virgens no que concerne

abdicar conscientemente de relaccedilotildees amorosas assumindo o celibato consagrado a uma missatildeo

quer seja como a Grande Deusa como a Grande protetora ou como a grande Amazona todas

tendo em comum o estigma de ldquomatildeesrdquo ldquovirgensrdquo dada a dimensatildeo da funccedilatildeo que ocupam

Inspiradas na missatildeo de Maria as freiras catoacutelicas vatildeo procurar seguir a trilha da

virgindade e da consagraccedilatildeo da vida a Deus

181 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009

102

Quando na enciacuteclica Redemptoris Mater de 1987 o Papa Joatildeo Paulo II refere-se ao dom

da maternidade de Maria podemos remeter-nos ao texto de Loraux182 jaacute por noacutes citado sobre o

poder do domiacutenio da matildee ldquoesse grande continente femininordquo que abarca tudo

Diz parte do item n39 da enciacuteclica Redemptoris Mater

As palavras lsquoEis a serva do Senhorrsquo comprovam o fato de ela desde o principio ter aceitado e entendido a proacutepria maternidade como dom total de si da sua pessoa a serviccedilo dos desiacutegnios salviacuteficos do Altiacutessimo E toda a participaccedilatildeo materna na vida de Jesus Cristo seu filho ela viveu-a ateacute o fim de um modo correspondente agrave sua vocaccedilatildeo para a virgindade183

Eacute interessante observar que a lsquovirgindadersquo eacute vista como vocaccedilatildeo uma vez que implica

reprimir o desejo negando os lsquotrabalhosrsquo da ldquoAacuteurea Afroditerdquo assumindo uma independecircncia

pessoal por um lado e uma dedicaccedilatildeo ilimitada a uma missatildeo por outro lado

No entanto essas consideraccedilotildees que foram colocadas ateacute aqui refletem uma crenccedila

corrente entre os cristatildeos catoacutelicos Mas a questatildeo da virgindade eacute questionada por estudiosos da

aacuterea da religiatildeo e da cultura Assim os professores Borg e Crossan184 investigam a virgindade da

Maria sob diferentes acircngulos

Uma delas eacute a suspeita que Mateus coloca no iniacutecio de sua paraacutebola sobre um presumido

adulteacuterio de Maria Qual teria sido a intenccedilatildeo do evangelista ao fazer tal colocaccedilatildeo se

questionam os autores Em Lucas natildeo haacute nada que diga como Joseacute descobriu ou reagiu diante da

gravidez de Maria e nem mesmo que ele tivesse tido algum problema com esse fato

Dizem os autores

Ainda que Mateus quisesse contar a histoacuteria inteiramente do ponto de vista de Joseacute ndash ao contraacuterio de Lucas que o fez do ponto de vista de Maria ndash ele poderia ter feito o anjo revelar tudo a Joseacute lsquoantesrsquo da concepccedilatildeo de Maria E se quisesse manter-se patriarcal poderia ter feito Joseacute dizer a Maria o que aconteceria com ela Portanto a pergunta persiste Na matriz contextual da tradiccedilatildeo grega romana e judaica de mulheres virginais esteacutereis ou idosas por que apenas Mateus levantou o espectro de uma aduacuteltera e natildeo de uma concepccedilatildeo divina

182 LORAUX Nicole Op cit 183 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 184 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p 123-155

103

Logo haacute uma acusaccedilatildeo anticristatilde de adulteacuterio e a concepccedilatildeo divina parece ser um modo

de encobrir esse adulteacuterio185 Para os autores Mateus baseou-se de maneira deliberada na

concepccedilatildeo de Moiseacutes dentro das versotildees midraacutesticas que eram correntes no seacuteculo I

Estabelecendo um paralelismo com a concepccedilatildeo de Jesus seguindo o esquema ldquodivoacuterciordquo (Joseacute

intenciona deixar Maria) ldquorevelaccedilatildeordquo (o anjo revela a Joseacute a concepccedilatildeo como obra do Espiacuterito

Santo) ldquorecasamentordquo (Joseacute assume Maria e o filho) Seria essa a causa de sua ecircnfase no

controle divino por meio de sonhos e profecias bem como no foco do ponto de vista masculino e

paterno e principalmente para defender o tema que Mateus acreditava ldquoJesus eacute o novo Moiseacutesrdquo

Segundo autores citados Lucas ao contraacuterio natildeo propotildee a virgindade de Maria como

revelaccedilatildeo profeacutetica mas antes como atributo divino estabelecendo mesmo um paralelo entre a

histoacuteria da concepccedilatildeo de Jesus (por uma virgem) e a histoacuteria da concepccedilatildeo de Joatildeo Batista (por

uma esteacuteril) (Lucas 1-2)186 Assim Lucas parece ressaltar o fato de que Jesus natildeo eacute simplesmente

um novo Joatildeo siacutembolo e siacutentese de um Antigo Testamento filho de matildee esteacuteril e idosa Jesus

vem de matildee casta e daacute iniacutecio a uma nova fase da Histoacuteria com ele comeccedila o Novo Testamento

A conclusatildeo desses fatos eacute que parece que havia uma preocupaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica no texto

desses evangelistas Mateus desejava resgatar a figura de Moiseacutes em Cristo e para isso

necessitava colocar o cumprimento das profecias Lucas desejava como se viu colocar Maria e

Cristo como modelos de uma nova era e sua ecircnfase natildeo eacute na profecia que ele nem menciona

mas na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo onde satildeo construiacutedas as figuras de Maria e do filho

Maria eacute pois rsquoabenccediloadarsquo e lsquoobediente agrave becircnccedilatildeo divinardquo e como a primeira cristatilde

perfeita ela eacute tambeacutem lsquovirgemrsquo quer dizer divina de acordo com a tradiccedilatildeo judaica e biacuteblica

(referindo-se aos casos de pais idosos e esteacutereis no Antigo Testamento e por analogia

introduzindo uma outra forma no Novo Testamento)

Comparando-se com Afrodite mesmo em sendo deusa sua concepccedilatildeo com Anquises ou

com Ares natildeo tem a tradiccedilatildeo da virgindade Apesar de ser matildee de heroacutei Eneacuteias considerado o

fundador de Roma ou de outros deuses como Eros um deus que se funde com as caracteriacutesticas

185 Borg e Crossan inspiraram-se em um texto de Oriacutegenes do seacuteculo III polemizando a obra do anticristatildeo Celsus do final do seacuteculo II relatando sobre o nascimento de Jesus e spbre a ldquofalsardquo virgindade de Maria a fim de aplacar os rumores sobre as circunstacircncias verdadeiras da presenccedila de soldados romanos que haviam vindo para sufocar uma revolta em Seacuteforis perto de Nazareacute proacuteximo da eacutepoca em que Jesus nasceu Haacute ateacute mesmo a menccedilatildeo do soldado como Panthera como trocadilho sarcaacutestico do termo grego patheacuternos a lsquovirgemrsquo 186 Biacuteblia Sagrada Op cit p 1345-1348

104

da matildee o intercurso sexual divino se dava de forma fiacutesica a tal ponto que Afrodite precisou

ldquopurificar-serdquo apoacutes sua relaccedilatildeo com Ares

Poreacutem o Cristianismo introduziu a virgindade nas relaccedilotildees humanas para que pudesse ser

exaltada a concepccedilatildeo divina e virginal de Jesus acima de todas as demais ndash especialmente sobre a

de Ceacutesar Augusto considerado ldquofilho de Apolordquo

Citando ainda Borg e Crossan eles dizem

Seja como for a virgindade a esterilidade a longevidade ou qualquer outra coisa que possamos imaginar satildeo simples maneiras de enfatizar sublinhar e ldquoprovarrdquo que a concepccedilatildeo foi divina Eacute essa concepccedilatildeo divina que importa Eacute a teologia do filho e natildeo a biologia da matildee que estaacute em jogo187

187 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p151

105

CONCLUSAtildeO OU INDICACcedilAtildeO DE SUPOSICcedilOtildeES

Uma primeira conclusatildeo a que se chega eacute que a genealogia parece ser um dado

importante e relevante entre os povos da Antiguidade Por isso o Evangelho de Mateus antes de

citar a concepccedilatildeo e o nascimento de Cristo coloca catorze geraccedilotildees que o precederam sem que

se saiba como possa ter sido essa informaccedilatildeo dos protocolos dada a Mateus A ecircnfase da

genealogia tambeacutem era comum entre os gregos todos os deuses incluindo as deusas virgens

tecircm sua genealogia nomeada Atena nasce da cabeccedila do pai supremo (Zeus) e foi gerada por uma

matildee com caracteriacutesticas astutas (Meacutetis) mas como protetora de Atenas haacute indiacutecios de que se

vinculava a uma deusa da Liacutebia e foi a filha de Zeus o que jaacute mostra sua ancestralidade

Aacutertemis tinha como pais Zeus e Leto e como Afrodite era de natureza uracircnica Aacutertemis

nasce com o seu duplo o irmatildeo Apolo tendo atributos comuns a ele Portanto Atena e Aacutertemis

ficam entre o masculino e o feminino distinguindo-se entre aspectos de estrateacutegia e de

belicosidade proacuteprios do masculino na conquista na independecircncia e no poder Por outro lado

caracterizam-se pela proteccedilatildeo e o acompanhamento ldquomaternosrdquo zelando para a soluccedilatildeo de

dificuldades e para os encaminhamentos de etapas da vida

Diferentemente de Aacutertemis e Atena Heacutestia eacute irmatilde de Zeus filha de Reacuteia e de Crono e foi

libertada do ventre de Crono por quem tinha sido engolida a partir do momento em que Zeus

com ldquoseu furor agarra as armas o trovatildeo o relacircmpago e o raio flamante e fere-o188 saltando do

Olimpordquo189

Todas as deidades quer sejam elas miacuteticas ou cristatildes tecircm o relato de um elenco

protocolar da genealogia como forma de apresentar a ligaccedilatildeo com um sistema simboacutelico que

garanta a coerecircncia interna com um princiacutepio organizador no sistema miacutetico ou com um

principio criador (o Verbo) no sistema cristatildeo

Tanto o sistema miacutetico como o sistema cristatildeo reproduzem o plano de uma vontade

divina O Cosmo vem do Caos (entidade primordial) mas soacute se organiza a partir da vitoacuteria de

Zeus que eacute colocado no centro do universo como deus supremo rodeado dos outros deuses que

188 Refere-se a Crono 189 HESIacuteODO Op cit p 153 vs 853-855

106

representam diferentes aspectos desse cosmo Com a morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo reorganiza-

se um novo sistema religioso tendo iniacutecio o Novo Testamento

Assim a genealogia das deusas virgens se constitui a partir da organizaccedilatildeo do cosmo

com Zeus e a genealogia cristatilde do Novo Testamento se organiza com Cristo Com ambos

comeccedila uma nova era

A genealogia dos deuses eacute importante para que seja resgatado nas narrativas feitas um

sentido histoacuterico que se ajuste agraves eacutepocas e agraves influecircncias soacutecio-poliacuteticas Nesse contexto

ldquoperambulamrdquo as divindades dominantes

Mas atraacutes da ldquogenealogia aparenterdquo existe uma genealogia anterior a que se apoacuteia em

diferentes raccedilas em diferentes tribos em diferentes periacuteodos histoacutericos em diferentes ideologias

Essas concepccedilotildees foram expressas nos mitos que misturavam temas e eacutepocas que tinham

versotildees de acordo com ldquoresquiacuteciosrdquo de diferentes vozes e que por isso alguns autores

denominaram de ldquosincreacuteticasrdquo

Isso acontece com muitos deuses e deusas e nosso objeto de estudo as deusas virgens

tambeacutem tem um viacutenculo com lendas e histoacuterias da Greacutecia marcadas por uma fertilidade agriacutecola

e por atividades guerreiras

Essa preocupaccedilatildeo de estabelecer ligaccedilotildees com um passado como base de evoluccedilotildees

sucessivas jaacute estava presente em alguns autores da eacutepoca arcaica e de acordo com Lovejoy e

Boas190 Hesiacuteodo foi considerado ldquoo primeiro testemunho do que chamaram de lsquoprimitivismo

cronoloacutegicorsquordquo

Por isso decifrar ldquoos mitosrdquo das deusas virgens e reconhecer o estatuto dessa virgindade

a elas atribuiacuteda parece ser possiacutevel apenas atraveacutes de suposiccedilotildees Interligando pois a figura de

Heacutestia a outras narrativas que compotildeem um mesmo perfil semacircntico percebemos que sua

presenccedila estaacute sempre vinculada ao fogo sagrado e portanto a um elemento da natureza Sua

representaccedilatildeo eacute tatildeo ldquoabstratardquo e incorpoacuterea que eacute difiacutecil determinar-lhe atributos Teria Heacutestia

pertencido a uma eacutepoca mais como principio abstrato do que como divindade com traccedilos

femininos distintos Teria Heacutestia alguma ligaccedilatildeo com Agni deus do fogo na Iacutendia Por que

190 Cf LE GOFF Jacques Op cit p 294

107

Em estreita conivecircncia com Heacutestia Zeus tem o controle tanto sobre a lareira privada de cada casa ndash no centro fixo que constitui como que o umbigo no qual se enraiacuteza a morada familiar ndash quando sobre a lareira comum da cidade no seio da aglomeraccedilatildeo na Heacutetia Koineacute onde velam os magistrados priacutetanes191

Teria sua virgindade sido ldquocriadardquo a partir da falta de histoacuterias que envolvessem Heacutestia

em questotildees amorosas

Por que soacute a partir dos Hinos Homeacuterico ndash em especial o Hino Homeacuterico V a Afrodite ndash

Heacutestia eacute colocada explicitamente como virgem (parthenos) fazendo um pedido ao pai para que

pudesse manter-se virgem e natildeo se casar

Ainda cavando pistas de genealogias anteriores das deusas virgens antes de levantarmos

nossas hipoacuteteses sobre a virgindade e o epiacuteteto lsquovirgemrsquo das deusas e de Maria procuramos

levantar questotildees sobre Atena Seu surgimento no mundo eacute diferente do das outras deusas

virgens pois nasce da cabeccedila do pai o que lhe garante um jeito diferente de Ser Duas outras

consideraccedilotildees sobre Atena que jaacute foram exploradas ao decorrer de nossas reflexotildees satildeo

colocadas aqui a tiacutetulo de recordaccedilatildeo primeiro Atena eacute a uacutenica deusa considerada

ontologicamente virgem pois ao nascer (veja-se v 895 em Hesiacuteodo) jaacute tem sua virgindade

garantida segundo a identificaccedilatildeo feita por Platatildeo bem como por Apolocircnio de Rodes de que

Atena seria procedente da Liacutebia Platatildeo a coloca como sendo a deusa Neith de eacutepoca anterior agrave

arcaica em que a paternidade natildeo era reconhecida um periacuteodo matriarcal em que Neith tinha

suas sacerdotisas-virgens que se entregavam todos os anos a um combate armado para fins de

conquistar a posiccedilatildeo de sacerdotisa-superior Portanto a virgindade de Atena a κoύρη de

nascimento parece ser colocada desde a sua origem quer se considere a Teogonia grega quer se

considere a versatildeo de sua genealogia Liacutebia

Quanto a Aacutertemis podemos hipotetizaacute-la como sendo ldquoderivadardquo da histoacuteria indo-

europeacuteia uma deusa a quem se vinculam as Amazonas demarcando o espaccedilo entre o mundo

primitivo e a civilizaccedilatildeo192

Da perspectiva genealoacutegica tanto em Mateus como em Lucas a virgindade de Maria eacute

preservada Diz Lucas 323193

191 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 192 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 24 193 BIBLIA SAGRADA p 1350

108

ldquoQuando Jesus comeccedilou o seu ministeacuterio tinha cerca de trinta anos e era tido como filho de Joseacute filho de Helirdquo

Em Mateus 116194 temos sobre a genealogia de Jesus

ldquoJacoacute gerou Joseacute esposo de Maria da qual nasceu Jesus que eacute chamado Cristordquo

Embora as genealogias sejam divergentes em relaccedilatildeo a Joseacute (o que atesta um problema de

reconhecimento de paternidade) haacute uma forma de representaccedilatildeo linguumliacutestica que preserva a

virgindade de Maria pois as descriccedilotildees natildeo permitem a suposiccedilatildeo de que Joseacute possa ser o pai

bioloacutegico de Jesus Em Lucas ldquoera tido comordquo portanto o que equivale a dizer que natildeo era em

Mateus ldquoda qual nasceu Jesusrdquo referindo-se a Maria e natildeo a Joseacute

Chegamos pois ao momento de ldquoenfrentarmosrdquo a virgindade definindo-a por traccedilos se

natildeo por conceitos

A primeira constataccedilatildeo que se chegou eacute que a ideacuteia de ldquocastidaderdquo eacute mais tardia e que a

virgindade no iniacutecio dos tempos vincula-se a uma forma de poder

Resgatando uma definiccedilatildeo relacionada ao poder quando jaacute se estava por volta da eacutepoca

217 aC narra a lenda que Claacuteudia Quinta sacerdotisa de Vesta ia sofrer processo que

terminaria com uma morte ritual o que significava que ia ser sepultada viva Claacuteudia ia ser

punida por ter infringido seu voto de virgindade ndash o que significava a missatildeo para a qual tinha

sido designada No entanto nessa mesma eacutepoca Aniacutebal devastava a Itaacutelia e como narra Cacircmara

Cascudo

A sibila de Cumes aconselhou a vinda da pedra negra de Pessinonte na Aacutesia menor tombada do ceacuteu e considerada como a viva encarnaccedilatildeo de Cibele O barco que trouxe a pedra negra encalhou no Rio Tibre e os auguacuterios anunciaram que uma virgem arrastaria a embarcaccedilatildeo da lama e a poria a nado195

Eacute ai que entra Claacuteudia Quinta que diante de todo o povo romano invoca a deusa Cibele

e amarrando o rostro do navio com o seu cinto de Vestal consegue puxaacute-lo facilmente Tendo

cumprido essa missatildeo de ldquocaraacuteter puacuteblicordquo Claacuteudia daacute a prova de sua virgindade

Assim Cacircmara Cascudo inicia seu capiacutetulo sobre virgindade dizendo

A virgindade explica as estoacuterias populares e na tradiccedilatildeo maacutegica a forccedila irresistiacutevel e os atos sobre-humanos de valentia196

194 Idem p 1285 195 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Supersticcedilatildeo no Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia 1985 p 286 196 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 286

109

Cacircmara Cascudo narra vaacuterias supersticcedilotildees e crenccedilas em que o poder da virgem cura

regenera recupera

Como Heacutestia soacute uma virgem podia ter a obrigaccedilatildeo de acender e guardar o fogo sagrado

da vestais em Roma

Cacircmara Cascudo cita vaacuterias caracteriacutesticas das deusas virgens que vimos ao longo de

nosso trabalho a forccedila fiacutesica a resistecircncia ao combate a ausecircncia de medo a solicitude o

cumprimento de obrigaccedilotildees a valentia inexpugnaacutevel a alegria expressa em cantos danccedilas e

urros como ldquoemanaccedilotildees da virgindaderdquo

Ora nesse sentido coloca-se a deusa Afrodite que se posicionou frente a frente com as

deusas ditas virgens nos Hinos Homeacutericos Para nossa surpresa tambeacutem Cacircmara Cascudo

apresenta uma lista reveladora de deusas virgens e laacute se encontra a uracircnia natildeo Aacutertemis mas

Afrodite Vejamos o que diz Cacircmara Cascudo pois esse aspecto relaciona-se com a hipoacutetese que

tentamos levantar

As virgens criadoras tiveram o culto mais profundo e natural Era o poder para a Vida e sempre o potencial mais puro Nari dos indus Muta-Iacutesis dos egiacutepcios Atar dos aacuterabes Astoret dos feniacutecios Afrodite-Anadiocircmene dos gregos Vesta dos romanos Luonatar dos finlandenses Herta dos germanos Dea dos gauleses Iza dos japoneses Ira dos oceacircnicos foram reverenciadas nessa invocaccedilatildeo espontacircnea e poderosa197

Dessa forma estavam relacionadas a pureza ndash que podia ser conseguida atraveacutes de ritos

de purificaccedilatildeo ndash e a ldquoenergiardquo A tradiccedilatildeo das virgens prevecirc uma forccedila e um poder a tal ponto

que ldquoa Virgo Potens irresistiacutevel teraacute a maior aacuterea de influencia religiosa que qualquer elemento

temaacutetico no mundo do passado histoacutericordquo198

A virgindade assim concebida eacute dom eacute poder e eacute forccedila sobrenatural

Na Greacutecia antiga isso nos faz pensar que o celibato era uma forma de preservar a

autonomia e portanto a forccedila e o poder das divindades para a missatildeo que deviam desempenhar

no cosmo Assim sendo nesse universo grego apenas Hera comparada agraves deusas Aacutertemis

Atena Heacutestia e Afrodite natildeo possuiacutea autonomia ldquoDesgastava-serdquo com os afazeres familiares

pois submissa ao marido Zeus estava sempre vigilante sobre suas conquistas amorosas e todas

as suas lendas de uma forma ou de outra vinculam-na ao masculino isto eacute a Zeus

197 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287 198 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287

110

Afrodite apesar de ser a deusa que promove a ldquophiliardquo e portanto natildeo ser virgem

tambeacutem tem autonomia move-se entre deuses e homens promovendo sua forccedila criadora

Mesmo seu casamento natildeo tem caraacuteter de submissatildeo ao masculino pois foi um casamento

arranjado por Hera ndash aquela que se dedica aos arranjos familiares ndash e aleacutem do mais aquele que eacute

tido como esposo eacute coxo e ldquosem importacircnciardquo dada a ausecircncia de valentia e brilho nas histoacuterias

em que Hefesto participa Ao contraacuterio seus atos satildeo secundaacuterios e pouco relevantes

Diferentemente de Hera Afrodite ndash virgem ou natildeo ndash tem uma importacircncia em si mesma

aos moldes de Aacutertemis Atena e Heacutestia

Aleacutem disso tanto as deusas virgens como Afrodite tecircm uma missatildeo no cosmo fora do

espaccedilo da casa Como diz Hesiacuteodo ldquoAtena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevelrdquo199

Referindo-se a Afrodite

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice200

Aacutertemis eacute tida como a ldquoverte-flechasrdquo ldquoLeto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechasrdquo201

O que queremos destacar eacute que aleacutem de uma missatildeo que exige uma certa autonomia das

deusas parece tambeacutem que o poder da virgindade eacute uma forma de preservar divindades de um

periacuteodo matriarcal quando ainda natildeo se destacava e natildeo se nomeava o masculino

Assim o celibato preserva a autonomia a liberdade de movimentos e incorpora

caracteriacutesticas de uma eacutepoca das grandes deusas

Nesse sentido a virgindade no Cristianismo pode ter um propoacutesito semelhante pois parte

da valorizaccedilatildeo do feminino e do celibato e como consequumlecircncia o sexo passa a ter uma

conotaccedilatildeo negativa no mundo judaico-cristatildeo o que natildeo havia ateacute entatildeo na tradiccedilatildeo judaica

Sobre esse assunto haacute uma beliacutessima discussatildeo encaminhada por Spong Diz ele entre

outros trechos sobre o aspecto da sexualidade

The Bible in general and the birth narratives in particular became a subtle unconscious source for the continued oppression of women The cultural assumption was made that the only proper way for a moral woman to conduct herself was to remain safely inside

199 HESIacuteODO Op cit p 157 v 925 200 HESIacuteODO Op cit p 117 vs 203-206 201 HESIacuteODO Op cit p 157 v 918

111

the sexually profective barriers provided first by her father and second by her husband202

Um aspecto positivo no Cristianismo ao proclamar a virgindade de Maria foi o fato de

nomear a matildee de colocaacute-la dentro da importacircncia da histoacuteria de nascimento da histoacuteria da

humanidade

A partir do retrato elaborado de Maria como matildee virgem tambeacutem hipotetizamos um

outro ponto de que o sofrimento eacute de alguma forma inerente ao aspecto da virgindade Se por

uma lado daacute autonomia em relaccedilatildeo agrave presenccedila de domiacutenio de um esposo de outro prevecirc uma

renuacutencia pessoal aos envolvimentos domeacutesticos frente a uma missatildeo mais ampla quase sempre

de ordem puacuteblica e que requer uma doaccedilatildeo Entatildeo perguntamos isso natildeo equivalia a ldquotrocarrdquo a

submissatildeo do marido pela submissatildeo a uma divindade Natildeo seria deixar de assumir o

compromisso terreno para assumir o sagrado

No Hino Homeacuterico a Afrodite Heacutestia submete-se ao pai Zeus solicitando-lhe permissatildeo

para natildeo se casar e manter-se virgem

Na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo em Lucas Maria submete-se aos desiacutegnios de Deus usando o termo

ldquoservardquo na sua fala de concordacircncia

Eacute preciso uma resignaccedilatildeo um poder e forccedila para manter o equiliacutebrio do Ser com o

desempenho de uma missatildeo Por isso vimos Aacutertemis sofrendo com o parto difiacutecil da matildee o que

coloca uma temeridade em um aspecto do feminino aiacute embora seja uma funccedilatildeo criadora

semelhante agrave da natureza Por isso reza a lenda ela passa a se dedicar agrave causa da mulher como

orientadora nos casamentos e protetora nos partos A mesma Aacutertemis afugenta os pretendentes

deuses e mortais para natildeo deixar que a seduccedilatildeo possa interferir em sua natureza de mulherdeusa

liberta ndash entre dois mundos entre duas culturas ndash no cumprimento da funccedilatildeo que lhe foi

atribuiacuteda a de ldquoverte-flechasrdquo

Atena eacute marcada pelo sofrimento de sua chegada sem matildee mas inaugura uma ldquogeraccedilatildeordquo

nova em que o pai recebe os filhos e os aceita Atena nasce virgem pois sua virgindade eacute

predeterminada bem como sua funccedilatildeo que requer poder e renuacutencia do aspecto feminino

202 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 A Biacuteblia em geral e as narrativas de nascimento em particular se tornaram uma fonte sutil inconsciente de opressatildeo contiacutenua das mulheres Foi feita a conjetura cultural de que o uacutenico meio adequado para uma mulher de moral se conduzir era permanecer segura dentro das barreiras protetoras da sexualidade fornecidas primeiro pelo pai e segundo pelo marido (traduccedilatildeo nossa)

112

particular Ela eacute assumida como virgem e guerreira Sua virgindade eacute colocada como fato seja

como representante de Atenas descendente de Zeus seja como descendente da deusa virgem

Neith da Liacutebia

Heacutestia tem uma missatildeo civilizatoacuteria de grande espectro cuida de cada casa conhece os

dramas da convivecircncia domeacutestica das relaccedilotildees de gecircneros da sociedade grega da poliacutetica que

circunda a pira puacuteblica Como poderia ao mesmo tempo essa grande deusa incorpoacuterea

matriarcal cuidar de esposo de filhos e de sua proacutepria casa

Afrodite tem uma missatildeo que tambeacutem transcende o particular o que nos fez pensar que

talvez dentro da histoacuteria da sociedade patriarcal apenas tenham autonomia e independecircncia em

sua missatildeo as virgens (as deusas gregas com funccedilotildees diferenciadas as vestais na sua funccedilatildeo de

guardiatildes do fogo sagrado agrave maneira de Heacutestia Maria na sua missatildeo Cristatilde as freiras em sua

missatildeo teoloacutegica) e as mulheres que se dedicaram ao amor sem deixar se submeter pelo

domiacutenio do masculino (Afrodite livre no seu agir independente na sua conduta (embora tivesse

um marido) as vestais prostitutas sagradas as concubinas as prostitutas profissionais)

Apesar de a virgindade conter especificidades e a tributos positivos Spong argumenta

que na histoacuteria do Cristianismo ela pode ser vista como um constructo ldquomachistardquo originaacuterio do

patriarcalismo Segundo o argumento que defende a mulher que aparecia de forma marcante ao

lado de Jesus era Maria Madalena

No entanto a tradiccedilatildeo apagou sua figura atuante e colocou-a com um caraacuteter

ldquoameaccediladorrdquo de prostituta dado o seu caraacuteter liberto condenada pelo pecado Essa mesma

tradiccedilatildeo recuperou a imagem de Maria que aparecia palidamente nos primeiros evangelhos Sua

expressatildeo de poder comeccedilou a ganhar impulso a partir do segundo seacuteculo da era cristatilde

Teria sido a categoria de virgindade moldada a partir dos gregos pagatildeos Teria o

Cristianismo se apossado dessa ideacuteia colocando a lsquovirgemrsquo como a lsquomulher idealrsquo para servir aos

propoacutesitos de um Pai divino

Parece que a maternidade foi tida como uma forma de puniccedilatildeo desde o iniacutecio da criaccedilatildeo

do mundo (veja o que se colocou em relaccedilatildeo a Aacutertemis) pelas tensotildees que subjazem ao ato de

reproduccedilatildeo atraveacutes do ldquoconhecimentordquo que Adatildeo tem de Eva Vejamos como coloca Spong

113

At the time of the fall when according to the literal text sin entered Godrsquos good creation Eve too was a virgin Adam did not ldquoKnowrdquo203 her until they were both banished form the Garden of Eden (Gen41) Childbirth the result of Adamrsquos ldquoknowingrdquo was part of Eversquos punishment

(Gen316) 204

Parece-nos pois que a ideacuteia de virgindade foi elaborada como um constructo social do

mundo pagatildeo procurando preservar o poder feminino frente a uma missatildeo ampla e de domiacutenio

do coletivo A proacutepria Afrodite em seu envolvimento sexual com Anquises exprimiu seu

sentimento de culpa e de vulnerabilidade diante das questotildees amorosas explicitando a

consequumlecircncia desse ato na produccedilatildeo de um filho

A forma que a Igreja encontrou para redimir os pecados foi o batismo inspirado tambeacutem

nos rituais gregos de purificaccedilatildeo como jaacute foi referido anteriormente

Finalmente antes de colocarmos um elenco de questotildees investigativas sobre a virgindade

ocorreu-nos refletir sobre um extremo da virgindade feminina que passa a ser significada na sua

lsquoabstraccedilatildeorsquo Assim em se estabelecendo um paralelo entre Heacutestia e Maria percebe-se que antes

dos Hinos Homeacutericos que satildeo produccedilotildees posteriores a Homero e a Hesiacuteodo bem como na

iconografia da eacutepoca a deusa Heacutestia eacute silenciosa e incorpoacuterea quase irreal como Maria

Poucos dados textuais existem a respeito de Heacutestia Entretanto muito se tem investigado

e muitas suposiccedilotildees tecircm sido escritas a seu respeito

Maria tambeacutem parece natildeo ter sido uma mulher real sendo a histoacuteria de sua vida

encoberta de silecircncio Como coloca Spong bispo de Newmark

ldquoA view of history however reveals that the price of Maryrsquos bodily assumption was the sacrifice of her sexual identity She entered the realm of the gods as one deprived of her humanity She was a virgin bride a virgin mother a perpetual virgin and a post partum virgin She was immaculately conceived at birth and bodily assumed at the moment of death Clearly she was not a real woman rdquo205

A palavra grega lsquopathernosrsquo que indica em um primeiro sentido lsquomoccedila antes do

casamentorsquo jaacute deixa evidente o significado de natildeo-comprometimento com um homem Assim a 203 O verbo ldquoconhecerrdquo em hebraico pode significar lsquopenetrarrsquo penetrar no outro para conhecer 204 SPONG John Shelby op cit p 210 ldquoNo tempo da queda quando de acordo com o texto literal o pecado entrou na admiraacutevel criaccedilatildeo de Deus Eva tambeacutem era uma virgem Adatildeo nada ldquoconheciardquo ateacute ambos serem banidos do Jardim do Eacuteden (Gen41) O parto resultado do ldquoconhecimentordquo de Adatildeo foi parte da puniccedilatildeo de Eva (Gen316)rdquo (traduccedilatildeo nossa) 205 SPONG John Shelby op cit p 218 ldquoUma visatildeo da histoacuteria entretanto revela que o preccedilo da assunccedilatildeo do corpo de Maria foi o sacrifiacutecio de sua identidade sexual Ela entrou para o reino dos deuses como algueacutem privado de sua humanidade Ela foi um noiva virgem uma matildee virgem uma virgem perpeacutetua e uma virgem poacutes-parto Ela foi concebida se maacutecula pelo nascimento e corporeamente elevada na hora da morte Claramente ela natildeo era uma mulher realrdquo

114

virgindade deve por extensatildeo garantir o sentido de natildeo-ligaccedilatildeo a um indiviacuteduo por viacutenculos

contratuais como era tido o casamento na Greacutecia arcaica Daiacute a moccedila antes do casamento

virgem

Segue abaixo o protocolo de nossas perguntas

bull Representa a virgindade uma forma de preservar a figura da deusamulher autocircnoma

como continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo matriarcal da cultura baseada nos mitos da

fecundidade

bull Esse aspecto de virgindade confere agrave deusamulher um poder de dedicaccedilatildeo a uma missatildeo

que tem um caraacuteter civilizador

bull Por que o Cristianismo preservou a figura da Virgem na figura da matildee

bull Qual o apelo agrave afetividade lsquophiliarsquo que as deusasmulheres virgens podem manifestar em

seu discurso pela histoacuteria Que tipo de imagem de si mesmo o homem grego pode ter a

partir do olhar das deusas virgens

E aqui entra a nossa conclusatildeo maior a questatildeo amorosa conduz a Afrodite e ao poder do

desejo Sem ela a virgindade natildeo teria expressatildeo

A questatildeo da virgindade e das deusas virgens soacute eacute impactante frente agrave forccedila de recusa a

Afrodite bem como ao compromisso com o masculino

Ficam aiacute propostas para novas discussotildees Embora o misteacuterio das deusas virgens deva

persistir porque faz parte da maneira de se conceber o divino

115

REFEREcircNCIAS

AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro (Ed USP) 2 ed 1968 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par Seacutechant L et Chantraine P Paris Hachette 2000 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer (1736) Reimpressatildeo reprograacutefica Hildesheim Georg Olms 1976 BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed34 1997 DETIENNE Marcel Os Gregos e NoacutesUma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007

116

EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 disponiacutevel em lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt Acesso em 29jun2009 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 FOUCAULT M A arqueologia do Saber Rio de Janeiro forense Universitaacuteria 5 ed 1977 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 FREUD Sigmund (1931) Sexualidade Feminina In Obras completas Estandart brasileira Trad Sob a direccedilatildeo de Jayme Salomatildeo Rio de Janeiro imago 1996 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004 GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Feminino Campinas Editora Aliacutenea 2008 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 HOMER The Iliad v 1 e 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 HOMER The Odyssey Translated by E V Rieu London Penguin Books 2003 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004

117

LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 LISSARRAGUE Franccedilois A figuraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 MAVROMATAKI Maria Mitologia Griega Atenas Ediciones Xaitali 1997 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 RATTO Stephania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

118

SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001

119

BIBLIOGRAFIA

APOLLODORUS The library v 1 e 2 Cambridge Harvard University Press 1990 ARISTOacuteTELES Poeacutetica 2ed Traduccedilatildeo de Eudoro de Souza Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1993 BACHOFEN Johann Jakob Mitologiacutea Arcaica y Derecho materno Edicioacuten de Andreacutes Ortiz-Oseacutes Barcelona Editorial Anthropos 1988 BEN VENISTE Eacutemile Se vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes vol 1 et 2 Paris Les Eacuteditions de Minuit 1969 DETIENNE Marcel Comparar o incomparaacutevel Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2004 DETIENNE Marcel VERNANT Jean-Pierre Les ruses de lrsquointelligence La Megravetis des Grecs France Flammarion 1974 DUMEacuteZIL Georges Lrsquooubli de lrsquohomme et lrsquohonneur des dieux Paris Eacuteditions Gallimard 1985 DUMEacuteZIL Georges Mito y epopeya v III ndash Historias Romanas Meacutexico Fondo de Cultura econoacutemica 1996 GRANT Robert M Augustus to Constantine The emergence of Christianity in the Roman World New York Barnes amp Noble 1996 ROSE H J A Handbook of Greek Mythology London Methuen amp Co Ltd 1985 SISSA Giulia Greek Virginity Translated by Arthur Goldhammer Cambridge Harvard University Press 1990 THOMAS Rosalind Letramento e oralidade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 VEYNE Paul Acreditaram os gregos nos mitos Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

121

ANEXO A ndash Hinos Homeacutericos ndash Afrodite

V

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗ

Μοΰσά microοι έννέπε εργα πολυχρύσσυ Άφροδίτης Κύπριδος ήτε θεοΐσιν έπί γλυκύν ϊmicroερον ώρσε καί τrsquo έδαmicroάσ σ ατο φΰλα καταθνητων άνθρφπων οίωνούς τε διιπετέας καί θηρία πάντα ήγέν οσ΄ήπειροσ πολλά τρέΦει ήδ΄ οσα πόντος 5 πασιν δrsquo έργα microέmicroηλεν έυστεφάνου Κυθερείης

Τρισσάς δrsquo ού δύναται πεπιθεΐν φρένας ούδrsquo άπατησαι΄

κούρην τrsquo αίγιόχοιο ∆ιός γλαυκώπιν Άθήνην΄ ού γάρ οί εϋαδεν έργα πολυχρύσου Άφροδίτης άλλrsquo αρα οί πόλεmicroοί τε άδον και εργον ΄΄Αρηος 10 ύσmicroΐναί τε microάχαι τε καί άγλαά έργrsquo άλεγύνειν πρώτη τέκτονας ανδρας έπιχθονίους έδίδαξε ποιησαι σατίνας τε και αρmicroατα ποικίλα χαλκω η δέ τε παρδενικας άπαλόχροας έν microεγάροισιν άγλαά εργrsquoέδίδαξεν έπι φρεσι θεΐσα έκάστη 15 ούδέ ποτrsquo Άρτέmicroιδα χρυσηλάκατον κελαδεινην δάmicroναται έν φιλότητι φιλοmicromicroειδης Άφροδίτη και γαρ τη αδε τόξα καί οΰρεσι θηρας έναίρειν φόρmicroιγγες τε χοροί τε διαπρύσιοί τrsquo όλολυγαί αλσεά τε σκιόεντα δικαίων τε πτόλις άνδρων 20 ούδε microεν αίδοίη κούρη αδε εργrsquo Άφροδίτης Ίστίη ην πρώτην τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης αΰτις δrsquo όπλοτάτην βουλη ∆ιός αίγιόχοιο πότνιαν ην έmicroνωντο Ποσειδάων καί Άπόλλων΄ η δε microαγrsquo ούκ εθελεν άλλά στερεως άπέειπεν΄ 25 ωmicroοσε δέ microέγαν ο δη τετελεσmicroένος έστίν

PARA AFRODITE206

Musa fale-me dos trabalhos da aacuteurea Afrodite a Ceacutepria que incita o doce desejo nos deuses e que subjuga as raccedilas dos homens mortais e os paacutessaros que voam no ceacuteu e todas as feras e tantas quantas a terra nutre e quantas tambeacutem o

[mar 5 a todos concernem os trabalhos da bem-coroada

[Citereacuteia Mas ela natildeo pode persuadir nem seduzir trecircs

[coraccedilotildees Primeiro a filha de Zeus que segura a eacutegide a

[glaucoacutepi da Atena pois ela natildeo se compraz nos trabalhos da aacuteurea

[Afrodite mas ama as guerra e os trabalhos de Ares 10 os combates e as batalhas e preparar esplecircndidos

[trabalhos beacutelicos Primeiramente ela ensina os artesatildeos da terra a fazer carros de guerra e vaacuterios carros ornados

[com bronze ela tambeacutem ensina as jovens virgens delicadas nas

[casas os esplecircndidos trabalhos e inspira cada uma delas15 e nem a clamorosa Aacutertemis das flecha de ouro a maacutevel Afrodite subjuga no amor pois a ela compraz arcos e flechas e matar feras nos

[montes as liras e os coros e os gritos agudos penetrantes os bosques ensombreados e as cidades dos homens

[civilizados 20 e nem agrave pura virgem Heacutestia compraz os trabalhos de Afrodite a qual foi a primeira nascida de Crono

206 Os hinos a Afrodite V e VI foram traduzidos com um enfoque diferente dos Hinos Homeacutericos dedicados a Aacutertemis Atena e Heacutestia as deusas virgens e nosso objeto de estudo Nestes hinos tivemos preocupaccedilatildeo com a mensagem do rapsodo explicitando caracteriacutesticas da Deusa no que diz respeito agrave sua chegada sobre o mar aos ornamentos que as horas lhe colocaram agrave beleza que encantou os imortais ao dom cativante que a deusa Afrodite emana subjugando deuses imortais e homens mortais Poreacutem resistem a esse poder de desejo ofuscante e opotildee-se a ele um outro tipo de poder o da virgindade As descriccedilotildees nesses hinos satildeo elaboradas como uma tela pintada com detalhes lsquofiletados a ourorsquo como as joacuteias que Afrodite porta e o explendor das violetas e o doce sorriso da deusa esparrama-se em cada linha do hino Assim nossa preocupaccedilatildeo foi antes com o ldquoconteuacutedordquo do que com a esteacutetica e com a meacutetrica pois natildeo poderiacuteamos ldquodistorcerrdquo o poema trazendo-o para o contexto de nosso seacuteculo Fizemos pois uma traduccedilatildeo livre de quaisquer amarras teoacutericas Ficam ai apenas ldquoideacuteiasrdquo sobre o que o rapsodo tentou colocar dentro da cultura de seu tempo

122

άψαmicroένη κεφαλης πατρός ∆ιος αίγιόχοιο παρθένος εσσεσθαι πάντrsquo ηmicroατα δΐα θεάων τη δε πατηρ Ζεύς δωκε καλόν γέρας άντι γάmicroοιο καί τε microέσω οΐκω κατrsquo αρrsquo εζετο πΐαρ έλοΰσα 30 πασιν δrsquo έν νηοΐσι θεων τιmicroάοχός έστι καί παρα πασι βροτοΐσι θεων πρέσβειρα τέτυκται

Τάων ού δύναται πεπιθειν φρένας ούδrsquo άπατησα των δrsquo αλλων οϋ πέρ τι πεφυγmicroένον εστrsquo Άφροδίτην οϋτε θεων microακάρων οϋτε θνητων άνθρώπων 35 καί τε παρεκ Ζηνος νόον ηγαγε τερπικεραύνου οστε microέγστός τrsquo έστί microεγίστης τrsquo εmicromicroορε τιmicroης καί τε τοΰ εϋτrsquo έθέλοι πυκιναλ φρένας έξαπαφαΰσα ρηιδίως συνέmicroιξε καταθνητησι γυναιξίν Ήρης έκλελαθοΰσα κασιγνήτης άλόχου τε 40 η microέγα είδος άρίστη έν άθανάτησι θεησι κυδίστην δrsquo αρα microιν τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης microήτηρ τε ΄Ρείη Ζεύς δrsquo αφθιτα microήδεα είδώς αίδοίην αλοχον ποιήσατο κέδνrsquo είδυΐαν Τη δε καί αύτη Ζεύς γλυκύν ΐmicroερον εmicroβαλε θυmicroω 45 άνδρι καταθνητω microιχθήmicroεναι οφρα τάχιστα microηδrsquo αύτη βροτέης εύνης άποεργmicroένη εϊη καί ποτrsquo έπευξαmicroένη εϊπη microετά πασι θεοΐσιν ήδύ γελοιήσασα φιλοmicromicroειδής Άφροδίτη ως ρα θεούς συνέmicroιξε καταθνητησι γυϖαιξί 50 καί τε καταθνητούλ υίεΐς τέκον άθανάτοισιν ως τε θεάς άνέmicroιξε καταθνητοΐς άνθπώποις

[de espiacuterito astuto e tambeacutem mais jovem pela vontade de Zeus que

[segura a eacutegide a soberana que Poseidon e Apolo procuraram para o

[casamento Mas ela de forma alguma natildeo consentindo

[firmemente recusou 25 E fez um grande juramento o qual foi cumprido ateacute

[o fim tocando a cabeccedila do pai Zeus que segura a eacutegide que seraacute virgem para sempre divina entre as deusas agrave qual o pai Zeus deu grande honra em lugar de

[casamento e ela assentou-se no centro da casa e recebe a melhor

[oferenda 30 em todos os templos ela eacute honrada e entre todos os mortais ela eacute colocada como

[veneraacutevel Deusas ela natildeo pode persuadir nem iludir coraccedilotildees mas dos outros natildeo haacute nenhum que tenha escapado

[de Afrodite Nem os deuses bem aventurados nem os homens

[mortais 35 e sem que Zeus que ama o raio desse conta ela

[conduziu o que eacute o maior e tem a maior diginidade e quando lhe apraz ela ilude facilmente o coraccedilatildeo

[saacutebio dele e o coloca junto de mulheres mortais tendo ocultado de sua irmatilde e esposa Hera 40 a qual eacute a maior em beleza entre os deuses imortais a mais gloriosa eacute ela nascida do astuto Crono e de Reacuteia sua matildee que a geraram e Zeus de

[sabedoria impecaacutevel feacute-la sua doce e cuidadosa esposa

123

VI

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗΝ

Α ίδοίην χρυσοστέφανον καλήν Άφροδίτην ασαmicroαι η πασης Κύπρου κρήδεmicroνα λέλογχεν είναλίης οθι microιν Ζεφύρου microένος ύγρόν άέντος ηνεικεν κατα κΰmicroα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης άφρώ ενι microαλακω την δε χρυσάmicroπυκες Ώραι 5 δέξαντrsquo άσπασίως περί δrsquoαmicroβροτα ειmicroατα εσσαν κρατί δrsquo έπrsquo άθανάτω στεφάνην εϋτυκτοϖ εθηκαν καλήν χρυσείην έν δε τρητοΐσι λοβοΐσιν ανθεmicrorsquo όρειχάλκου χρσοΐό τε τιmicroήεντος δειρη δrsquo άmicroφrsquo άπαλη καί στήθεσιν άργυφέοισιν 10 ορmicroοισι χρυσέοισιν έκόσmicroεον οίσι περ αύταί Ώραι κοσmicroείσθην χρυσάmicroπυκες όππότrsquo ϊοιεν ές χορόν ιmicroερόεντα θεων καί δώmicroατα πατρός αύτάρ έπειδη πάντα περί χροΐ κόσmicroον εθηκαν ηγον ές άθανάτους οΐ δrsquo ήσπάζοντο ίδόντεσ 15 χερσί τrsquo έδεξιόωντο καί ήρήσαντο εκαστος είναι κουριδίην άλοχον καί οϊκαδrsquo αγεσθαι είδος θαυmicroάζοντες ίοστεφάνου Κυθερείης

Χαΐρrsquo έλικοβλέφαρε γλυκυmicroείλιχε δος δrsquo έν άγωνι

νίκην τωδε φέρεσθαι έmicroην δrsquo εντυνον άοιδήν 20 αύτάρ έγώ καί σεΐο καί αλλης microνήσοmicrorsquo άοιδης

PARA AFRODITE

Cantarei veneraacutevel coroada de ouro bela Afrodite 1 a qual de toda Chipre Marinha rodeada de muralhas laacute onde o uacutemido vento Zeacutefiro207 ergueu-a sobre a onda do mar barulhento na espuma suave e as Horas208 adornadas de ouro 5 receberam-na com alegria vestiram-na com [vestimentas divinas e sobre a cabeccedila imortal colocaram a bela coroa de ouro bem feita e nas orelhas furadas ornamentos de oricalco209 e de ouro precioso e em volta do pescoccedilo macio e do peito resplandecente [de brancura 10 colares de ouro os quais filetados de ouro satildeo usados pelas proacuteprias Horas quando quer elas vatildeo para a casa do pai para o coro charmoso dos deuses e depois que a vestiram conduziram-na para os imortais os quais a acolheram15 e saudaram com as matildeos e cada um suplicou para ser o esposo unido a ela210 e levaacute-la para casa admirados pela beleza da Citereacuteia coroada de violetas Salve a de olhos vivazes suavemente cativante na assembleacuteia [dos deuses Decirc-me a vitoacuteria e conduze meu canto honrado 20 E depois eu me lembrarei de ti e de outra canccedilatildeo

207 microένος tem o sentido de forccedilas da natureza como a aacutegua o fogo o vento neste caso refere-se ao vento Zeacutefiro eacute um vento do oeste daiacute ter um significado de vento agradaacutevel Zeacutefiro era personificado como filho de Eoacutelico 208 As Horas representavam as divindades das Estaccedilotildees Eram as filhas de Zeus e de Teacutemis e irmatildes das Moiras (os destinos) Agraves Horas designa-se um duplo sentido de divindade da natureza presidindo o ciclo da vegetaccedilatildeo e de divindades da ordem promovendo estabilidade Soacute tardiamente elas passaram a significar as horas do dia 209 Oricalco eacute um tipo de metal semelhante ao cobre 210 ldquounido em casamento com uma esposardquo daiacute o ldquoesposo legiacutetimordquo Esse termo envolve por extensatildeo a noccedilatildeo de laccedilos conjugais e de leito conjugal

124

X

ΕΙΣ ΑΦΡ0∆1ΤΗΝ

Κν προ γενη Κνθέρειαν αείσοmicroαι ητε βροτοΐσι microεί λιχα δώρα δί δωσιν εφ ίmicroερτω δε προσώπφ αίεί microει διάεί καί εφ ιmicroερτograveν θέεί άνθος Χαicircρε θεά Σα λαmicroicircνος ευκτιmicroένης microε δέουσα είνα λίης τε Κύπρον δός δ ίmicroερόεσσαν άοι δήν5 αύτάρ εγω καί σείο καί αλ λης microνήσοmicro άοι δης

PARA AFRODITE

Canto a Citereacuteia211 de Chipre que aos homens daacute doces dons sobre sua face desejante212 estaacute sempre o sorriso e desejaacutevel213 eacute o brilho Oh deusa dama214 da bem-feita Salamina e da Chipre marinha215 daacute o canto atraente216 5 Entatildeo me lembrarei de ti e de outro canto

211 Como se verifica ao longo das consideraccedilotildees sobre alguns pontos do aspecto metodoloacutegico o uso de palavras pleonaacutesticas em Homero ocorre na posiccedilatildeo que assumimos como um ornato decorrente do proacuteprio gecircnero eacutepico e inerente ao contexto Assim ritmicamente colocam-se lado a lado

Kuπρογενη Kuθέρειαν ou seja a Citereacuteia nascida em Chipre Como acreditava-se que Afrodite havia surgido das ondas (aphros) fecundadas pelo secircmen de Urano

quando foi castrado por seu filho Cronos ela a Afrogeneacuteia nascida da espuma sai do mar em uma praia na ilha de Chipre 212 Encontram-se nos versos 2 3 e 5 do original grego respectivamente as palavras Ίmicroερτώ ίmicroερτόν ίmicroερόεσσαν nos versos indicados 213 Assim a repeticcedilatildeo na traduccedilatildeo procurou manter o sentido original Embora no verso 5 tenha-se usado o adjetivo atraente ele estaacute indicado como um equivalente do verbete significando o que faz aparecer o desejo Todas essas palavras possuem uma base comum ίmicroερός e se referem ao sentido de desejo que estaacute relacionado a Afrodite e portanto ao que se chama de Amor Encontra-se uma personificaccedilatildeo de microερος na Teogonia de Hesiacuteodo verso 64 p 108 na obra de TORRANO JAA Teogonia A Origem dos Deuses HESIacuteODO Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Em GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 haacute o seguinte comentaacuterio sobre HiacutemeroO gecircnio Hiacutemero eacute a personificaccedilatildeo do Desejo amoroso Acompanha Eros no cortejo de Afrodite e no cimo do Olimpo vive ao lado das Caacuteritas e das Musas Eacute uma simples abstraccedilatildeo e natildeo figura em nenhuma lenda p 229 Embora Grimal coloque como sendo uma abstraccedilatildeo acreditamos que ele natildeo esteja se referindo ao desejo como forma de amor platocircnico Na eacutepoca arcaica ίmicroερος em Homero e em Hesiacuteodo estaacute relacionado ao amor libidinoso o que provoca a atraccedilatildeo 214 O texto grego traz a palavra microεδέουσα que significa a que reina sobre Esse termo junto com a palavra Σαλαmicroίνος refere-se a Afrodite (verificar BAILLY Anatole Dictionnaire Grec FranccedilaisParis Hachette2000 p1236) Para a traduccedilatildeo pensou-se no aspecto semacircntico rainha ou dama da cidade e optou-se por motivo de versificaccedilatildeo pela palavra dama 215 A palavra referente a Chipre eacute είναλίης que significa marinha cercada de mar Optou-se pela traduccedilatildeo marinha por ter um significado abrangente daquilo que se relaciona com o mar e por uma questatildeo econocircmica sabendo-se que Chipre eacute uma ilha estaacute cercada de mar 216 Ver notas 212 e 213 acima

125

ANEXO B ndash Hinos Homeacuterico ndash Deusas virgens

IX

ΕΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ

Αρτεmicroιν υmicroνεί Μούσα κασιγνήτην Έκάτοιο παρθενον ιοχεα ιραν όmicroότρο φον Άπόλλωνος ηθιππονς αρσασα βαθυσχοίνοιο Μέ λητος ρίmicro φα δια Σmicroύρνης πα γχρυσεον άρmicroα διώκει έ ς Κ λάρον άmicro πε λόεσσαν otilde θ άργυρότοξος Απόλλων ήσται microιmicroνάζων έκατηβoacute λον ίοχέαιραν 6

Καigrave συ microεν ουτω χαicircρε θεαί θ άmicroα πάσαι άοι δη αύταρ έγώ σε πρώτα και έκ σέθεν άρχοmicro άείδειν σευ δ έγω άρ ξάmicroενο ς microεταβησοmicroαι α λλον έ ς ΰmicroνον

PARA AacuteRTEMIS Musa cante Aacutertemis irmatilde do Atirador217 virgem218

que lanccedila flechas criada com Apolo daacute aacutegua aos cavalos de Meles junto aos juncos219 veloz por Esmirna guia a charrete220

dourada a Klaros com vinhas221 onde o arqueiro Apolo estaacute agrave espera da deusa que atira flechas222 6 E assim salve tu e todas as deusas no canto Entatildeo primeiro a ti e de ti passo a cantar tendo comeccedilado de ti vou a outro hino

217 Εκάτοιο Εκάτος eacute um epiacuteteto de Apolo e eacute inclusive no texto grego grafado com maiuacutescula tambeacutem pois eacute uma outra forma de nomeaacute-lo Significa o que atira ao longe 218 παρθένον παρθένος Em BAILLY (idib p 1489) I vierge particul 1 jeune fille 2 fille non marrieacutee 3jeune femme non marrieacutee 4 qui est comme une jeune fille vierge pur intact II La statue drsquoAthegravena agrave Athegravenes Neste caso παρθένον refer-se a Aacutertemis 219 A palavra βαθυσχοίνοιο significa um lugar coberto de juncos caniccedilos por isso em geral estaacute situado perto de lugares uacutemidos e alagados podendo estar pero de rios ou do mar BAILLY (id Ib p 2041) apresenta como ldquoaux joncs eacutepais aux hautes herbesrdquo 220 άρmicroα tem o sentido de attelage drsquoougrave char char de guerre ( BAILLY ib p 270) Portanto indica que Aacutertemis conduzia seu carro sua carruage ou sua charrete que era toda dourada (παγχρύσεον) Escolhemos a traduccedilatildeo charrete por nos parecer mais adequada ao contexto 221 Αmicroπελόεις όεσσα όεο em BAILLY (ib p 102) couvert de vignes Isso nos daacute uma indicaccedilatildeo de uma regiatildeo agriacutecola em que predominava a cultura de vinhas 222 Εκατηβολον significa o que atira flechas ao longe e eacute um epiacuteteto usado tanto para Apolo como para Aacutertemis Nesse caso como vem junto da palavra ιοχέαιραν refere-se a Aacutertemis e eacute pleonaacutestico pois significa a deusa que atira flechas e eacute usado com o verbo citado que tambeacutem significa atirar flechas ao longe mas estaacute se referindo agrave deusa A palavra ιοχέαιραν tambeacutem aparece no verso 2 relacionada a Aacutertemis ao lado de outro atributo virgem Eacute uma forma recorrente em Homero

126

XXVII

ΣΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ Αρτεmicroιν άεί δω χρυση λάκατον κε λα δεινήν παρθένον αiacute δοίην έ λα φηβό λον ίοχέαιραν αύτοκασιγνήτην χρνσαόρου Άπό λλωνος η κατ δρη σκιoacuteεντα καigrave άκριας ηνεmicroοέσσας άγρη τερποmicroενη παγχρύσεα τόξα τιταίνει 5 πέmicroπουσα στονόεντα βε ληmiddot τροmicroέει δε κάρηνα ύψη λων ορέων ίάχει δ επι δάσκιος υ λη δεινograveν υπograve κ λαγγης θηρων φρίσσει δέ τε ηαicircα πόντος τ ιχθυόεις ή δ α λκιmicroον ήτορ έχουσα πάντη επιστρέ φεται θηρων ό λεκουσα γενέθ λην 10 αύταρ επην τερ φθη θηροσκόπος ίοχέαιρα εύ φρήνη δε νόον χα λάσασ εύκαmicroπέα τόξα έρχεται ες microεηα δωmicroα κασνγνητοια φί λοιο Φοίβου Από λλωνος ∆ε λφων ες πίονα δηmicroον Μουσων και Χαρίτων κα λograveν χορograveν άρτυνέουσα 15 ένθα κατακρεmicroάσασα πα λίντονα τόξα καigrave igraveούς ηγεicircται χαρίεντα περigrave χροigrave κόσmicroον έχουσα εξάρχουσα χορούς αicirc δ άmicroβροσίην οπ ίεicircσαι ύmicroνευσιν Λητω κα λλίσ φυρον ως τέκε παicircδας αθανάτων βου λη τε καigrave εργmicroασιν εξοχ αρίστους 20 Χαίρετε τέκνα ∆ιograveς καigrave Λητους ηυκόmicroοιο αύταρ έηων ύmicroέων τε καigrave α λλης microνήσοmicro άοι δης

PARA AacuteRTEMIS Canto Aacutertemis das flechas de ouro a rumorosa223 digna224 virgem que caccedila225 os cervos e lanccedila o arco a proacutepria irmatilde de Apolo da espada dourada das montanhas sombrias e dos picos ventosos alegrando-se na caccedila estende o arco aacuteureo226 5 enviando flechas atrozes227 Tremem os cumes dos montes altos e a floresta densa ecoa forte com o grito das feras abala a terra e o mar com peixes Mas ela coraccedilatildeo forte228 volta-se a todos os lados destruindo feras229 10 Depois a caccediladora230 e arqueira231 se alegra satizfaz a mente e afrouxa o arco flexiacutevel e vai para a grande casa do irmatildeo amado Febo232 Apolo para a rica terra de Delfos para alinhar a danccedila233 das Musas e Graccedilas 15 Entatildeo pendura para traacutes o arco e as flechas conduz a danccedila e a organiza graciosamente234 e dirige os coros Elas lanccedilam a voz divina cantam como Leto de belo peacute pariu235 os melhores filhos (entre os imortais)236 na vontade e na accedilatildeo 20 Oh filhos de Zeus e Leto de fartos cabelos Eu237 me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

223 A palavra κελαδεινην significa ldquobarulhenta sonora rumorosardquo referindo-se a Aacutertemis devido agrave caccedila 224 De acordo com BAILLY ib p41 aleacutem de veneraacutevel digna de respeito αιδοίην tambeacutem significa envergonhada o que faz pensar em uma caracteriacutestica relacionada agrave virgindade 225 ελαφηβόλον (acusativo) tambeacutem eacute um epiacuteteto de Aacutertemis significando ldquoperseguidora de cervosrdquo Na falta de um termo equivalente em portuguecircs traduzimos por ldquoque caccedila os cervosrdquo usando uma oraccedilatildeo adjetiva para qualificar Aacutertemis 226 Arco aacuteureo ou arco dourado literalmente encontramos em grego παγχρυσεα ou seja com a conotaccedilatildeo de que o arco eacute ldquotodo douradordquo 227 A palavra grega στονόεντα eacute usada com o sentido de ldquoque faz gemer funestasrdquo daiacute termos escolhido em portuguecircs o termos ldquoatrozesrdquo 228 No original grego encontra-se έχουσα que significa ldquotendordquo ou ldquoaquelea que temrdquo (particiacutepio presente do verbo έχω)Usou-se um aposto explicativo com o mesmo sentido para fins de metrificaccedilatildeo 229 O verso 10 se traduzido literalmente fica ldquo volta-se para todos os lados destruindo a raccedila dos animais ferozesrdquo Na traduccedilatildeo eliminou-se a palavra γενέθλην isto eacute raccedila famiacutelia Achamos que a palavra ldquoferasrdquo em portuguecircs jaacute tem uma abrangecircncia de substantivo no plural referindo-se agrave espeacutecie como um todo 230 έηροσκόπος significa ldquoaquela que espreita os animaisrdquo Traduzimos pois com o sentido de ldquoaquela que caccedila os animaisrdquo portanto ldquoa caccediladorardquo 231 ίοχέαιρα epiacuteyeyo de Aacutertemis ldquoa que lanccedila flechasrdquo ou seja ldquoa arqueirardquo 232 Φοίβον traduzido geralmente como Febo que significa ldquoo brilhanterdquo e eacute um epiacuteteto de Apolo Funciona muitas vezes como nome proacuteprio (Ver GRIMAL ib p 167) 233 Quando o autor se refere agrave danccedila das Musas e das Graccedilas ele especifica καλόν χορόν o que quer dizer ldquobela danccedilardquo Por economia meacutetrica suprimimos a palavra ldquobelardquo pressupondo que a danccedila das Musas e das Graccedilas jaacute confere agrave danccedila um sentido de beleza 234 Em uma traduccedilatildeo literal o verso 17 apresenta-se como ldquoela conduziu proporcionando a ordem graciosa em torno da danccedilardquo Traduzimos ldquodirigir a ordem com graccedilardquo como ldquoorganizar com graccedilardquo 235 No texto grego estaacute especificado que Leto ldquopariu filhosrdquo Encontra-se a forma τέκε παίδας Como no verso seguinte (v20) encontra-se a forma αρίστους referindo-se ldquoaos melhore os mais excelentesrdquo transferiu-se a palavra ldquofilhosrdquo (παίδας) do verso 19 para o verso 20 236 O superlativo implica sempre que haacute uma comparaccedilatildeo Por razotildees meacutetricas colocou-se entre parecircnteses significando que natildeo faz parte da estrutura do verso 237 έγων achamos interessante manter na traduccedilatildeo o nominativo eacutepico ldquoeurdquo

127

XI

ΣΙΣ ΑΘΗΝΑΝ Παλλάδ Aθηναίην ερυσίπτολιν αρχomicro αεί δειν δεινήν η συν Aρηι microέλει πολεmicroήια έργα περθόmicroεναί τε πόληες αυτή τε πτόλεmicroοί τε και τ ερρνσατο λαograveν igraveόντα τε νισσόmicroενόν τε Xαicirc ρε θεά δός δ άmicromicroι τύχην ευδαιmicroονίην τε 5

PARA ATENA

A Palas Atena guardiatilde da polis238 canto terriacutevel239 que com Ares faz atos guerreiros de saques das polis de urros e de batalhas e salva as pessoas que na guerra combatem240 Oh deusa conceda-nos uma sorte boa 5

238 O termo grego ερυσίπτολιν eacute usado como epiacuteteto a Atena significando a protetora da cidade a guardiatilde 239 A palavra δεινήν nom δεινός quando se refere a Atena como eacute citado em BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilaised Hachette 2000 p 439 significa fort puissantterrible Daiacute o termo ser traduzido em portuguecircs em alguns contextos como terriacutevel a que tem poder e eacute extraordinaacuteria pois eacute uma divindade que possui tambeacutem um grito de guerra terriacutevel como se encontra no referido verbete e como confirma o verso 3 do Hino em questatildeo Em inglecircs equivalente a terriacutevel poderosa a traduccedilatildeo usada por EVELYN-WHITE HG in Hesiod The Homeric Hymns and Homerica London Loeb Classical Library 1982 eacute dread 240 ίόντα ( verbo είmicroί ) juntamente com a palvra λαόν significa ir agrave guerra e participar da luta Assim coloca BAILLY (id ib) agrave p 593 srsquoavancer au milieu de lrsquoarmeacutee ou de la foule (des guerriers)

128

XXVIII ΕΙΣ ΑΘΗΝΑΝ

Παλλάδ Aθηναίην κυδρην θβόν άρχοmicro άεί δειν γλανκώπιν πολυmicroητ ιν άmicroβίλίχον ητορ εχρυσαν παρθενον αίδοίην ερνσί πτολιν άλκηεσσαν Tριτογενή την αντος εγείνατο microητίετα Ζενς σεmicroνής εκ κε φαλής πολεmicroήια τενχε εχονσαν 5 χρύσεα παmicro φανοωντα σέβας δ εχε πάνταςορώντας αθανάτουςmiddot ή δε πρόσθεν ∆iograveς αίγιόχοιο εσσνmicroένως ώρουσεν ά π άθανάτοιο καρήνου σεiacuteσασ ograveξυν άκονταmiddot microέγας δ ελελiacuteζετ Όλυmicro πος δεινograveν υ πograve βρίmicroης γλανκώ πι δος άmicro φigrave δε γαicircα 10 σmicroερδαλέον iάχησεν εκινηθη δ άρα πόντος κύmicroασι πορ φυρέοισι κνκώmicroενος εκχντο δ άλmicroη εξα πίνης στήσεν δ Y περίονος άγλαograveς υιος iacuteππους ωκύποδας δηρograveν χρόνον είσότε κούρη εΐλετ απ αθανάτων ωmicroων θεοεiacuteκελα τεύχη 15 Παλλagraveς Άθηναίηγήθησε δε microητίετα Ζεύς Καigrave συ microεν οΰτω χαicircρε ∆iograveς τέκος αίηιoacuteχοιο αυτάρ εγώ καigrave σεicircο καigrave άλλης microνήσοmicro άοιδής

A ATENA

A Palas Atena canto a gloriosa241 deusa242 glaucoacutepida243 astuta com coraccedilatildeo indoacutecil virgem244 digna guardiatilde das cidades ousada Tritogecircnia245 o proacuteprio Zeus saacutebio a fez nascer de sua cabeccedila veneraacutevel portando armas246 5 aacuteureas toda brilhantes que impotildeem respeito247 aos imortais E ela frente a Zeus porta-eacutegide com iacutempeto saltou da cabeccedila imortal agitando a lanccedila aguda Ecoai Olimpo com espanto agrave forccedila da glaucoacutepida E a terra 10 gritou assustada O oceano se abalou agitou as ondas negras248 A aacutegua249 transbordou suacutebito O brilhante filho de Hipeacuterion250 parou os cavalos de peacutes aacutegeis ateacute que251 a virgem252 Palas Atena253 tirasse dos imortais 15 ombros as armas E Zeus saacutebio se alegrou Assim salve tu filha de Zeus que tem a eacutegide Depois me lembrarei de ti e de outro canto

241 O termo κυδρην eacute geralmente usado quando se refere a certas deusas como Atena e Leto Tem o sentido de ldquogloriosa ilustrerdquo ( A esse respeito ver BAILLY p1147) 242 A palavra θεόν estaacute no acusativo e possui a mesma forma para o masculino e para o femininoO que identifica o uso eacute o contexto ou o artigo definido Haacute um importante texto escrito por LORAUX Nicole em que ela comente sobre a questatildeo deusdeusa apontando para a generalidade indicando apenas um ser divino Eacute pois um problema de gecircnero como diz Loraux (In PANTEL Pauline S histoacuteria das Mulheres A Antiguidade Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 243 Depois de apelar Palas Atena o autor se remete a ela nomeando-a atraveacutes de uma seacuterie de epiacutetetos ldquoglaucoacutepida astuta virgem guardiatilde das cidade corajosa Tritogecircniardquo 244 O epiacuteteto παρθένον vem enfatizado pelo adjetivo αίδοίην o que como coloca Loraux em seu artigo supra-citado faz remeter agrave ideacuteia do divino do veneraacutevel em relaccedilatildeo agrave castidade de deuses como caracteriacutestica dos imortais 245 relaccedilatildeo ao epiacuteteto Τριτογενή haacute diversas interpretaccedilotildees quanto ao significado Uma das hipoacuteteses do epiacuteteto eacute de que ela nascera perto do lago Tritocircnis Poreacutem uma outra possibilidade eacute de se remeter ao termo eoacutelico que significaria ldquoa verdadeira filha de Zeusrdquo (BAILLY p 1964) 246 Atena nasceu carregando armas Como explicita o texto grego πολεmicroήια τεύχέ ou seja ldquoarmas beacutelicasrdquo 247 O que o autor diz literalmente nos versos 5 6 e 7 eacute que ldquoAtena estava portando armas de guerra douradas e toda brilhantes que impotildeem respeito quando os deuses (imortais) as vecircemrdquo 248 Traduzimos a palavra πορφυρέοωσι por ldquonegrasrdquo Literalmente essa palavra significa ldquoescuras da cor das sombrasrdquo 249 A palavra άλmicroη pode significar tanto a aacutegua do mar como a espuma das aacuteguas do mar Na ediccedilatildeo do Loeb Classical Library foi traduzida por foam (espuma) 250 ldquoO brilhante filho de Hipeacuterionrdquo significa pois o ldquoSolrdquo (Heacutelio) 251 ldquoAteacute querdquo indica um termo relacionado ao tempo que o precede e ao qual daacute continuidade No texto grego o autor enfatiza a accedilatildeo precedente colocando δρόν χρόνο είσότε ou seja ldquode longa duraccedilatildeo ateacute querdquo 252 Aqui a palavra usada referindo-se a Atena e designando a moccedila a virgem eacute a palavra ϊούρη e natildeo αρθένον Isso encaminha para uma reflexatildeo em relaccedilatildeo agrave escolha dos vocaacutebulos 253 No original grego o termo Palas Atena estaacute no verso 16 Na traduccedilatildeo transferimo-lo para o verso 15 por motivo de coerecircncia textual

129

XXIV ΣΙΣ ΕΣΤΙΑΝ

Έστiacuteη ητε ανακτος Άπό λλωνος εκάτοιο Πυθοicirc εν ήγαθέ η ίερograveν δόmicroον άmicro φι πο λεύεις αigraveεigrave σων πλοκάmicroων ά ποίλείβεται ύγρograveν ε λαιον ερχεο τόνδ άνα οίκον εν ερχεο θυmicroograveν εχουσα συν ∆ιigrave microητιόεντί χάριν δ άmicro ο πασσον άοιδ η 5

PARA HEacuteSTIA Heacutestia que ao deus254 Apolo que atira ao longe no divino Piacuteton serve na casa sacra255 sempre das mechas256 puras cai257 o oacuteleo uacutemido vem para esta casa vem tendo um coraccedilatildeo258 com Zeus que eacute saacutebio E concede graccedila ao canto2595

254 αυακτος significa ldquomestre cheferdquo principalmente em se tratando de Apolo Junto de εκάτοιο no mesmo verso ldquoo deus que atira ao longerdquo reforccedila o epiacuteteto que se usa para designar Apolo 255 ίερόν refere-se a δόmicroον Daiacute significar casa sagrada forte poderosa Usamos a traduccedilatildeo sacra por razotildees meacutetricas sem qualquer conotaccedilatildeo com que a palavra santa possa vir a ter dentro de uma visatildeo cristatilde 256 A palavra πλοκάmicroων quer dizer lsquomechasrsquo referindo-se a lsquomechas de cabelorsquo 257 O verbo άπολείβεται significa ldquodeixar cair gota a gotardquo quando se faz uma libaccedilatildeo Assim o verso 3 significa exatamente ldquosempre das mechas de cabelo intactas deixa cair gota a gota o oacuteleo uacutemidordquo 258 O vocaacutebulo θυmicroόν em uma significaccedilatildeo bem ampla ldquocoraccedilatildeo mente princiacutepio de vidardquo enfim relaciona-se ao que diz respeito agrave inteligecircncia e agrave vontade ao poder e ao desejo 259 Nesse verso (v 5) haacute tambeacutem ao palavra αmicroα que omitimos na traduccedilatildeo Essa palavra daacute a ideacuteia de simultaneidade Seria como se dissesse ldquoE ao mesmo tempo concede graccedila ao cantordquo Nesse caso estaria se referindo agraves accedilotildeesrsquo vir para casa unida a Zeus e dar graccedila ao cantorsquo

130

XXIX ΕΙΣ ΕΧΤΙΑΝ

Έστίη ή πάντων εν δώmicroασιν ύψηλοicircσιν αθανάτων τε θέων χαmicroαigrave ερχοmicroένων τ άνθρώττων εδρην άίδιον έλαχες πρεσβηίδα τιmicroήν καλograveν έχουσα γέρας καigrave τίmicroιον ου γαρ άτερ σου ειλαπίναι θνητοicircσιν iacuteν ου πρώτη πυmicroάτη τε 5 Έιστίη αρχόmicroενος σπενδει microελιηδέα οίνον καigrave συ microοι Άργει φόντα ∆ιος καigrave Μαιάδος υiέ αγγελε των microακάρων χρυσoacuteρραπι δωτορ εάων λαος ων επάρηγε συν αίδοίη τε φίλη τε ναίετε δώmicroατα καλά φίλα φρεσigraveν άλληλοισιν εiacuteδότες άmicro φότεροι γαρ επiχθονίων ανθρώπων 11 εiacuteδότες ερηmicroατα καλα νόω θ εσπεσθε καigrave ήβη Χαicircρε Κρόνου θύηατερ συ τε καigrave χρυσόρραπiς Έρmicroής αύτάρ εγών υmicroεων τε καigrave αλλης microνήσοmicro άοιδής

PARA HEacuteSTIA

Heacutestia que nas casas elevadas de todos 1 de deuses imortais e homens que vecircm agrave Terra260 recebeste um lugar eterno e honra digna tens bom privileacutegio e estima261 Pois sem ti natildeo haacute festim262 para os mortais se em primeiro e em uacuteltimo 5 quem vem natildeo263 oferece264 a Heacutestia o vinho doce Tu matador de Argo265 filho de Zeus e Maia266 nuacutencio dos deuses267 com bastatildeo268 doador de bens sendo do povo269 ajude-o com a nobre e querida Habitem a gloriosa casa cara a ambos270 10 que conheceis bem Pois ambos entre os terrestres sabeis as obras nobres da271 mente e da forccedila Oh filha de Cronos e tu Hermes do bastatildeo Pois me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

260 Eacute interessante perceber a construccedilatildeo desse verso O autor estabelece o contraste entre ldquodeuses imortaisrdquo ( άθανάτων θεών ) e os ldquohomens mortaisrdquo referindo-se a eles como ldquoos homens que vecircm agrave Terrardquo ( χαmicroαί έρχοmicroένων άνθρώπων ) mostrando a ideacuteia de transitoriedade no ato de vir e natildeo de qualificaacute-los como terrestres 261 A palavra grega τίmicroιον significa que a deusa tinha uma consideraccedilatildeo uma estima puacuteblica De fato Heacutestia se fazia representar em todas as casas na ldquolareira sagradardquo 262 ειλιπίναι significa banquetear celebrar um festim apoacutes um sacrifiacutecio Para fins de traduccedilatildeo usamos a expressatildeo ldquohaver um festimrdquo que corresponde a ldquobanquetearrdquo 263 A negativa ού (natildeo) encontra-se no verso 5 antes de πρώτη Poreacutem por motivo sintaacutetico transferiu-se a negativa para o verso 6 antes do verbo 264 O verbo σπενδει significa ldquooferecer fazendo uma libaccedilatildeordquo Portanto em um ritual a Heacutestia devia-se fazer em primeiro lugar e em uacuteltimo uma libaccedilatildeo de vinho agrave deusa Se isso natildeo fosse feito a pessoa natildeo podia participar da oferenda de sacrifiacutecio 265 Segundo o dicionaacuterio BAILLY p 259 o epiacuteteto ργειφόντα refere-se a Hermes ldquoo matador de Argosrdquo e eacute de origem desconhecida Haacute uma lenda que atribui a Hermes o fato de ter matado Argo (conhecido como Argos na forma latinizada) possuidor de uma forccedila espantosa e que tinha soacute um olho Em outras lendas ele possui uma multiplicidade de olhos Hermes matou Argo a pedido de Zeus segundo a lenda Haacute tambeacutem variaccedilotildees sobre como ele o matou 266 Natildeo se traduziram todas as palavras do verso 7 Foram suprimidos a conjunccedilatildeo e (καί ) iniciando o verso bem como a expressatildeo para mim (microοι) o que jaacute implica uma alteraccedilatildeo morfoloacutegica sintaacutetica e cultural na interpretaccedilatildeo de nossa traduccedilatildeo 267 No texto grego encontra-se a palavra microακάρων que significa honradosdaiacute sagrados Por isso refer-se aos deuses em oposiccedilatildeo aos homens 268 A palavra χρυσόρραπι tem o sentido de ldquobastatildeo de ourordquo e eacute usado referindo-se ao bastatildeo que Hermes carregava Diz a lenda que Hermes inventou a flauta e Apolo ficou tatildeo encantado com o instrumento musical que ofereceu seu cajado de ouro a Hermes em troca da flauta Daiacute para a frente Herme sempre carregou o bastatildeo de ouro 269 Decidimos traduzir λαος ών como lsquosendo do povordquo isto eacute junto com Heacutestia faziam parte de todas as casas e da cidade e eacute como se fizessem parte desse contexto humano Vimos outra traduccedilotildees como a de uma traduccedilatildeo de Vernant para o inglecircs em que se encontra ldquobe goodrdquo e Evelyn-White da Loeb Classical Library traduz por ldquobe favourablerdquo No entanto em nosso entendimento o verbo ών estaacute no particiacutepio presente daiacute ldquosendordquo Tambeacutem natildeo encontramos palavra que pudesse significar ou ldquobomrdquo ou ldquofavoraacutevelrdquo Tem-se pois nossa interpretaccedilatildeo na traduccedilatildeo desse verso 270 A palavra φρεσίν coraccedilotildees estaacute relacionada a ambos αλλήλοιειν referindo-se a Heacutestia e a Hermes Portanto a ldquoambos unidos no coraccedilatildeo na amizaderdquo 271 Em grego eacute usado o dativo nas palavras mante νόω e forccedila ήβη significando que eles Heacutestia e Hermes conhecem os trabalhos dos homens atraveacutes da inteligecircncia deles e atraveacutes da forccedila deles Eacute pois um instrumental Portanto a traduccedilatildeo para o portuguecircs natildeo implica que em grego eacute usado o caso genitivo

Page 5: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao

vii

AGRADECIMENTOS

ldquoO meu gesto de agradecimento envolve mais do que os nomes citados revela os abraccedilos que me ampararamrdquo

Agradeccedilo

Ao professor Dr Joaquim Brasil Fontes meu orientador pela confianccedila que depositou em meu trabalho e pela partilha de seu conhecimento

Aos professores Drs Norma Sandra de Almeida Ferreira Siacutelvio Donizetti Gallo Maria

Inecircs Ghillardi-Lucena Ana Helena Cizotto Belline que contribuiacuteram com sua presenccedila indispensaacutevel na constituiccedilatildeo da Banca e na leitura do texto

Agraves professoras Dras Elisa Angotti Kossovitch Liacutelian Martins da Silva e Letiacutecia Canedo

pelo incentivo e participaccedilatildeo na minha pesquisa Ao Dr Mauro Bilharinho Naves por seu apoio incansaacutevel e pelos diaacutelogos

esclarecedores sobre a mitologia grega Agrave amiga professora Linda Bishop da Silveira por suas leituras atentas do texto e das

traduccedilotildees em inglecircs Ao Pe Paulinho (Paulo Roberto Rodrigues) pelas suas orientaccedilotildees fundamentais no

campo da teologia A Michelle Risso por sua paciecircncia e alegria nos nossos ldquoencontros em gregordquo A ldquoFlavinha Felizrdquo por suas constantes formataccedilotildees no texto que eu sempre

ldquodesformatavardquo Aos funcionaacuterios da Secretaria Nadir Rita Antonio Carlos Gisleine Cleo pelo

atendimento soliacutecito e pelas indicaccedilotildees constantes e ao Ademiacutelson da Informaacutetica pela digitaccedilatildeo perfeita dos textos em grego

Ao grupo de pesquisa do GEPEDISC que me acolheu com simpatia Aos colegas de curso que direta ou indiretamente participaram do meu percurso

acadecircmico

ix

RESUMO

O objetivo deste estudo as deusas gregas virgens Aacutertemis Atena e Heacutestia eacute demarcar a

existecircncia e a significaccedilatildeo especial dessas deusas no mundo arcaico grego frente agrave posiccedilatildeo

ocupada por Afrodite como representaccedilatildeo do desejo O sistema miacutetico prevecirc a questatildeo do desejo

articulada ao lsquopoderrsquo conforme evidenciam as reflexotildees feitas a partir do corpus selecionado as

obras de Homero de Hesiacuteodo e os Hinos Homeacutericos referentes agraves deusas virgens e a Afrodite A

metodologia que orienta esta pesquisa segue uma linha antropoloacutegica comparativa incluindo

autores como Geertz e Detienne com enfoque no uso e na significaccedilatildeo da linguagem da

produccedilatildeo escrita dos rapsodos gregos O conceito de virgindade eacute direcionado pelo conceito de

desejo e parece necessaacuterio que se considerem as propriedades e os atributos de Afrodite para

definir as deusas gregas virgens que fruem ldquode um outro modo de desejo e de poderrdquo Esse

aspecto nos faz refletir sobre uma sociedade patriarcal e as formas de independecircncia feminina

como instacircncia de compromisso soacutecio-poliacutetico bem como sobre a manutenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

herdada da grande matildee (Magna Mater) e das Amazonas Uma possiacutevel indicaccedilatildeo a partir desses

dados eacute que o Cristianismo procurou dar continuidade a esse aspecto de gecircnero que promove a

civilizaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo da sociedade atraveacutes da figura da lsquomadrersquo como elemento de

significaccedilatildeo cultural

Palavras-chave Deusas gregas virgens Afrodite desejo poder sociedade patriarcal

civilizaccedilatildeo

xi

ABSTRACT

The aim of this study which focuses on the Virgin Greek goddesses Artemis Athene and

Hestia is to stress the existence and the special meaning of those goddesses in the archaic Greek

world compared with Aphroditersquos position as a representative of lsquodesirersquo The mythical system

comprises the matter of desire linked to the meaning of ldquopowerrdquo according to the evidence of

reflections made from the corpus selected Homerrsquos and Hesiodrsquos works and the Homeric Hymns

referring to the virgin goddesses and Aphrodite The methodology that orients this paper follows

authors such as Geertz and Detienne focusing on the use and meaning of the language in the

written production of the Greek rapsodes The concept of virginity is directed by the concept of

desire and it is necessary to consider Aphroditersquos properties and attributes to define the virgin

Greek goddesses who have another form of desire and power That aspect brings up

considerations on a patriarchal society and ways of feminine independence as a means of social-

political commitment as well as on the maintenance of a tradition inherited from the Great

Mother and the Amazons One possible direction arising from the above facts is that Christianity

tried to give sequence to this aspect of gender which promotes civilization and the organization

of society by way of the lsquomater figurersquo as an element of cultural significance

Key words Virgin Greek goddesses Aphrodite desire power patriarchal society civilization

xiii

SUMAacuteRIO

Dedicatoacuteria v

Agradecimentos vii

Resumo ix

Abstract xi

1- Introduccedilatildeo 1 2 - Encruzando Aspectos do Cosmo Natureza Deuses e Homens 5

21 - Fragmentos do Uno 5 22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees 10

3 - A questatildeo metodoloacutegica um olhar sobre a pesquisa bibliograacutefica 17 4 - O que eacute traduzir lsquoHomerorsquo e os rapsodos gregos Tentativas e riscos 43 5 - Que deusas satildeo essas 49

51 - Afrodite e a representaccedilatildeo do desejo 49 52 - Aacutertemis a liberdade e a virgindade 64 53 - Atena a deusa virgem da sabedoria e da guerra 71 54 - Heacutestia e a castidade 76

6 - A questatildeo da virgindade e as deusas virgens 85

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo 85 62 - O caraacuteter da virgindade no Cristianismo 96

7 - Conclusatildeo Ou indicaccedilatildeo de suposiccedilotildees 105 Referecircncias 115 Bibliografia 119 Anexos 121

Anexo A - Hinos Homeacutericos a Afrodite 121 Anexo B - Hinos Homeacutericos a Deusas virgens 125

1

1 ndash INTRODUCcedilAtildeO

ldquoOutros jaacute passaram por esta Senda por isso a novidade de tudo o que eu digo de novo estaacute na forccedila da repeticcedilatildeordquo1

Na condiccedilatildeo de professora de liacutenguas estamos sempre investigando o uso das palavras no

discurso como elas se articulam como elas se estabelecem como elas se traduzem como elas

ldquofingemrdquo ser contidas em supostas definiccedilotildees enfim estamos sempre atravessando o corredor

estreito das significaccedilotildees e das compreensotildees

Como se isso natildeo bastasse as palavras nos levam aos seus percursos ao longo dos

tempos agraves vezes revelando e agraves vezes ocultando estaacutegios de transformaccedilotildees por que passaram

Assim a palavra por si soacute jaacute nos coloca diante de uma rede que envolve sua histoacuteria sua

etimologia sua categoria sua funccedilatildeo E foi a palavra com todo esse contexto maacutegico que nos

cativou

Comeccedilamos perseguindo o conceito de virgindade na Greacutecia de Homero e de Hesiacuteodo e

nos deparamos com um entrelaccedilamento de fatos de conceitos de outras palavras de traduccedilotildees

de um mundo que todas as vezes que pensaacutevamos alcanccedilaacute-lo distanciava-se mais e fazia com

que tambeacutem a nossa pesquisa virasse uma lenda miacutetica em que os deuses superavam em muito o

trabalho humano que empreendiacuteamos

Mas nada ocorre por acaso A nossa iniciativa de trilhar a palavra nesse mundo numinoso

teve uma ponta de lembranccedila e de afeto no encontro com um grande mestre e amigo de tempos

tambeacutem passados Fizemos nosso o seu desafio e desta forma nasceu o nosso objeto de estudo

Fomos tomados pela curiosidade e pelo interesse quando o scholar o helenista professor Dr

Joaquim Brasil Fontes instigou-nos a pensar nas deusas gregas virgens carregadas de valores

de funccedilotildees de lendas que ainda fazem parte de nosso cotidiano e cujas raiacutezes estatildeo atreladas a

um tempo do qual natildeo se desvinculam apesar das transformaccedilotildees e dos ajustes por que vatildeo se

atualizando amoldando-se a novos perfis a novos modus vivendi transpondo espaccedilos

geograacuteficos e culturais atravessando filosofias e marcando a histoacuteria

1 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p 9

2

Tentamos diante do impacto da tarefa pensar como nesse grande eixo assinalado de

homens mortais a presenccedila de Deusdeuses afeta e determina a dimensatildeo humana Pensamos

tambeacutem na nossa experiecircncia de vida marcada por cultos e rituais apesar de todo o progresso da

ciecircncia e da tecnologia

Nossas salas de aulas - tambeacutem elas - se revestem de ritos como cenaacuterio para o estudo de

hipoacuteteses de buscas de discussotildees de valores de sustento do que se acredita ter a forccedila da

verdade E o que seria o entendimento de verdade em um momento teria feiccedilotildees e propostas

diferentes em outras culturas em outros tempos o que mostra que o estatuto de uma suposta

verdade se transfigura e tem um movimento flexiacutevel contiacutenuo propondo novas direccedilotildees e

determinando novos olhares

Nessa atmosfera de consideraccedilotildees foi colocada a questatildeo que encaminhou nossa busca

por princiacutepios que se prendem ao mundo grego - que tem sido objeto de tanto estudo - do qual

herdamos concepccedilotildees de vida e de arte de misteacuterio e de sagrado de sobrenatural e de mundano

se possiacutevel eacute destacar e separar esses princiacutepios norteadores do humano Por que teriam as deusas

gregas Heacutestia Palas Atena e Aacutertemis resistido ao casamento O que as teria movido para que se

mantivessem virgens Como seria entendida a eacutegide da virgindade naquela sociedade Que

mecanismo levaria a compreender os poderes dessas entidades marcadas por uma caracteriacutestica

que se opunha agraves grandes narrativas de relacionamentos de filhos gerados com uns e outros

deuses de traiccedilotildees de intrigas que envolviam deuses e deusas no grande cenaacuterio do mundo dos

homens gregos O que fundamenta a traduccedilatildeo e a compreensatildeo da palavra virgem na passagem

da liacutengua grega para a liacutenguacultura ocidental

Perguntas surgiam e determinavam outras perguntas Eram propostas investigaccedilotildees sobre

investigaccedilotildees leituras sobre leituras Hesiacuteodo e Homero foram se tornando familiares o alfabeto

grego foi se revelando real os questionamentos sobre a arte da traduccedilatildeo (seraacute uma arte) se

fizeram tambeacutem reais As deusas foram tomando forma e suas imagens se faziam presentes em

cada momento do dia atravessando a barreira do tempo e do espaccedilo Listaram-se conteuacutedos e

disciplinas que pudessem ajudar a nortear o trabalho Foram surgindo autores que comeccedilaram a

fornecer elementos para a investigaccedilatildeo Vernant Loraux Detienne Calame Parry Geertz

Freud Deleuze Lerner Buscava-se da mitologia agrave filosofia da cultura agrave psicanaacutelise do

discurso da oralidade agraves questotildees da traduccedilatildeo Natildeo que esse caminho tivesse sido inicialmente

3

planejado Ele foi surgindo como consequumlecircncia de necessidades em que uma busca conduz a

outra Foi se impondo como resultado de ldquoescavaccedilotildeesrdquo como dizia com humor o nosso

orientador Essa mesma procura ia fazendo que acontecessem ldquoexplosotildees de significadosrdquo e a

palavra o uso da linguagem foi se tornando cada vez mais o grande foco de nosso olhar

Dada a abrangecircncia de material e da temaacutetica do objeto que se propocircs examinar tivemos

que fazer escolhas e estabelecer limites como buacutessola indicadora de um caminho pois

correriacuteamos o risco de nos perdermos nas adjacecircncias e de natildeo chegarmos agrave estrada principal

Decidiu-se investigar o cenaacuterio que recebe os deusesdeusas gregos a mitologia (com

suas implicaccedilotildees culturais e histoacutericas) e a filosofia que os ampara Nesse estudo optou-se por

uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica que natildeo se concentrasse apenas nas estruturas caracteriacutesticas dos

fenocircmenos religiosos miacuteticos mas que buscasse a compreensatildeo do texto procurando entender a

partir do contexto histoacuterico-cultural o fenocircmeno de deusas que escolhem a virgindade como

expressatildeo de sua sexualidade (veja-se a ousadia e a impropriedade do termo na falta de outro

em relaccedilatildeo agraves deusas virgens) em um mundo arcaico Este fato provoca um discurso relevante e

significativo na histoacuteria da mitologia e atribui a Heacutestia Atena e Aacutertemis uma posiccedilatildeo especial no

cenaacuterio dos deuses e deusas

Alguns aspectos satildeo pertinentes nesse tipo de investigaccedilatildeo primeiro levar em conta a

inseparabilidade do que se atribui ao mito com os dados histoacutericos e geograacuteficos que fazem parte

da narrativa poeacutetica de Homero de Hesiacuteodo e de outros autores daquela eacutepoca e de eacutepocas

proacuteximas consequumlentemente a relevacircncia do contexto soacutecio-cultural com seus elementos

significativos Aleacutem disso natildeo se pode deixar de considerar que o conceito de mito prevecirc nas

tentativas de defini-lo consideraccedilotildees que hoje se colocam como religiatildeo justamente pelo fato de

representarem o contexto soacutecio-histoacuterico ao qual nos referimos Desta forma a natureza os

deuses os homens o sagrado o profano o mortal o imortal faziam parte de uma mesma

temaacutetica organizando-se e reorganizando-se de acordo com os valores e os niacuteveis sociais das

comunidades gregas

Reflexotildees sobre essas questotildees que compotildeem o objeto de nosso estudo satildeo feitas em um

capiacutetulo como forma de um esclarecimento do assunto e como direccedilatildeo para encaminhamento e

aprofundamento em outro momento que se fizer oportuno

4

Eacute preciso poreacutem que fique claro que o objetivo de uma pesquisa como esta natildeo eacute dar

respostas definitivas mas antes levantar hipoacuteteses Como jaacute bem colocou Sartre ldquoEacute proacuteprio de

uma pesquisa ser indefinida Nomear e defini-la eacute fechar o ciclo o que restardquo2

Assim seratildeo propostas questotildees investigativas em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees miacuteticas que

envolvem o feminino no mundo arcaico grego Enfocar as trecircs deusas virgens na sua

independecircncia e na sua recusa agrave submissatildeo masculina aos laccedilos do casamento agrave fecundaccedilatildeo e

principalmente agrave entrega do desejo agrave philia a eros ou seja a Aphrodite pressupotildee uma

compreensatildeo da virgindade grega em uma sociedade patriarcal

A posiccedilatildeo de Aacutertemis Atena e Heacutestia em relaccedilatildeo a Afrodite revela um emparelhamento e

prevecirc variaccedilotildees de traccedilos que determinam o feminino em um espaccedilo soacutecio-cultural em que se

movem deuses heroacuteis e homens mortais Estabelece-se aiacute a virgindade como uma forma de Ser

como um paradigma (embora o termo possa parecer estruturalista) representativo do domiacutenio

social

Estatildeo pois colocadas no mundo grego arcaico a valorizaccedilatildeo do feminino e as diferentes

formas de atuar frente ao Kosmo quer seja nas manifestaccedilotildees da astuacutecia e da inteligecircncia quer

seja nas questotildees do olhar e dos rituais quer seja no acircmbito do desejo e da interdiccedilatildeo

As deusas gregas virgens fazem parte da conjugaccedilatildeo do imenso tabuleiro que a epopeacuteia

grega fez conhecer contandocantando

2 SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967

5

2 - ENCRUZANDO ASPECTOS DO COSMO NATUREZA DEUSES E HOMENS

ldquo O divino que nos poemas homeacutericos se apresenta com tanta clareza eacute multiforme e contudo sempre idecircntico a si mesmo por toda a parte Exprime-se em todas as suas formas um espiacuterito excelso um destino elevado Natildeo querem os referidos poemas aportar uma revelaccedilatildeo religiosa ou propor uma doutrina sobre os deuses Soacute querem visualizar e formar no gozo da visatildeo assim em face deles se expotildee o reino inteiro do mundo terra e ceacuteu aacutegua e ar aacutervores bichos homens e deusesrdquo3

21 - Fragmentos do ldquoUnordquo

Apesar de o estudo que se empreendeu ter como foco a questatildeo da virgindade de trecircs

deusas Heacutestia Aacutertemis e Atena percebe-se que esse elo comum que as une em um mesmo

aspecto tambeacutem determina caracteriacutesticas individuais diferentes o que as coloca em posiccedilotildees

que destacam suas funccedilotildees e participaccedilatildeo na vida do homem grego Assim nessa trajetoacuteria que

se percorreu evidenciou-se que a virgindade pode estar relacionada a diferentes fatores quer

sejam eles sociais culturais histoacutericos poliacuteticos ou mesmo individuais Essa referecircncia jaacute

destaca a questatildeo do conceito a questatildeo do amor e do desejo a questatildeo do nefando e do

inefaacutevel a questatildeo do casamento e da ligaccedilatildeo sexual a questatildeo do masculino e do feminino

enfim a questatildeo do corpo do olhar e do poder

O primeiro aspecto que nos trouxe embaraccedilo foi quando se propocircs separar algumas

partes em capiacutetulos Notou-se que os conceitos se enredavam todos permeando a vida dos

deuses dos homens sem deixar de ter a natureza colocada lado a lado nesse complexo

organizacional aparentemente inseparaacutevel Confirmando essa revelaccedilatildeo a obra de autores como

Homero Hesiacuteodo e autorescantores (chamados homeacuteridas que se diziam descendentes de

Homero) que cantavam os poemas de seu suposto antepassado que se constituiu corpus do

trabalho entrecruzavam os imortais os mortais e a natureza no mesmo espaccedilo coacutesmico

Essa aparente unidade coacutesmica possibilitou para alguns filoacutesofos interpretaccedilotildees de uma

unidade do mito como a que apresenta Torrano (1996) quando se reporta agrave ldquodescriccedilatildeo geral

desta ontologia iacutensita no mito do mundordquo

3 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p 12

6

Em liacutengua grega nos versos de Homero e de Hesiacuteodo em que ldquoconsubstancia-se a

necessaacuteria unidade de ilatecircncia de mito de culto e de cantordquo4 Assim os mortais ldquotranseuntes

do mundordquo satildeo interpelados pelos deuses isto eacute pelo proacuteprio mundo

Essa colocaccedilatildeo de deuses com uma posiccedilatildeo fundada na imortalidade distingue-os dos

homens na sua mortalidade e os posiciona como formas eternas do mundo Isso jaacute reflete que de

algum modo deuses e homens situam-se ainda que no mesmo cosmo em planos diferentes Os

homens se vecircem interpelados no dizer de Torrano por algo que os ldquoultrapassardquo e eacute justamente

essa energia coacutesmica que daacute ao homem sua substacircncia e que o coloca em movimento para que

sua natureza no mundo ganhe significaccedilatildeo ao mesmo tempo em que o mundo tambeacutem adquire

sentido Nesse movimento de matildeo dupla o homem descobre a sua existecircncia no mundo e o

mundo eacute o princiacutepio constitutivo originaacuterio da forccedila vital infinita e inexauriacutevel Para melhor

entender citamos Torrano

O eterno eacute pensado nesse movimento em que se unem identidade e alteridade nessa unidade vive o ser dos Deuses eles satildeo os que vivem para sempre e de uma soacute vez essa infinitude inexauriacutevel de vezes5

Portanto mesmo em se ressaltando a ideacuteia de unidade o que implica uma visatildeo

estruturalista sobressai um aspecto essencial em nosso entendimento o significado do Cosmo soacute

pode adquirir sentido a partir de um cruzamento Eacute na convergecircncia de deuses e de homens de

imortais e de mortais de eternos e de transeuntes de planos pois diferenciados se natildeo na sua

origem pelo menos nas suas formas existenciais que reside o discernimento complexo do divino

e do humano

Mais ainda a palavra grega cosmo Ќόσmicroος remete agrave definiccedilatildeo de um orderly or

harmonious system6 isto quer dizer que cosmos eacute a antiacutetese de Caos por representar uma

organizaccedilatildeo ordenada harmoniosa Aleacutem desse significado a que se ateve nas deduccedilotildees

apresentadas ateacute aqui haacute ainda o registro de que Cosmo significa ldquoornamentosrdquo

4 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 p 11 5 TORRANO JAA idem p19 6 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008

7

A palavra Ќόσmicroον eacute usada por Homero com essa conotaccedilatildeo (ornamentos) no canto XIV

da Iliacuteada verso 187 O mesmo sistema que organiza ornamenta Entatildeo poderiacuteamos questionar

em um arroubo de ousadia se a virgindade dentro desse sistema organizado seria uma forma de

ornamento que qualifica as deusas virgens como um atributo especial Seria o epiacuteteto ldquovirgemrdquo

um efeito esteacutetico dessa revelaccedilatildeo que indica um modo de harmonia Ficam aiacute questionamentos

para tambeacutem eles se enredarem nesse complexo mundocosmo grego De qualquer modo esse

epiacuteteto direcionado a Heacutestia Aacutertemis e Atena revela o uso de uma teacutecnica mnemocircnica

relacionada a algum aspecto significativo da ordem coacutesmica no enfoque das atribuiccedilotildees dessas

deusas A repeticcedilatildeo das palavras parthenos e koreacute referentes a elas mereceu reflexotildees que estatildeo

encaminhadas ao longo deste trabalho

Repensando pois o assunto da virgindade viu-se que se estava diante de um conflito

deleuziano criar um conceito nesse espaccedilo ldquohabitadordquo por deuses e homens Ainda reportando-

se a Deleuze e Guattari7 descobriu-se que pelo menos por esse vieacutes (que segundo os autores

natildeo deve ser considerado metodoloacutegico) seguia-se a trilha certa pois que Deleuze e Gattari em

se tratando de definir o conceito ressaltam o fato de que cada um remete a outros conceitos e

que seus componentes por sua vez podem ser entendidos como outros conceitos Foi

exatamente essa inseparabilidade de vaacuterios aspectos relacionados a esse remeter histoacuterico de

outros conceitos que ocorreu enquanto se procurava realizar um exame da virgindade evocada

por Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena

Deleuze e Guattari apontam para um ponto primordial da investigaccedilatildeo no que diz

respeito a essas vibraccedilotildees e encruzamentos de conceitos (em onde nos inspiramos para o tiacutetulo

dessa primeira parte - se assim se pode considerar -) que eacute a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da

incompletude com que se depara frente a uma tarefa desse porte Como determinar com umas

poucas palavras juntadas formando uma proposiccedilatildeo - que faz parte das ciecircncias - como definir a

virgindade como um traccedilo uacutenico de deusas distintas Essa posiccedilatildeo deleuziana esteve presente em

todas as nossas consideraccedilotildees em momentos que apresentavam divergecircncias e que

encaminhavam para um discurso polissecircmico marcado por diferentes vozes Procurou-se ter

sempre presente a fala de Deleuze e Guattari

7 DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed341997

8

Os conceitos como totalidades fragmentaacuterias natildeo satildeo sequer os pedaccedilos de um quebra-cabeccedila pois seus contornos irregulares natildeo se correspondem Eles formam um muro mas eacute um muro de pedras secas e se tudo eacute tomado conjuntamente eacute por caminhos divergentes8

Chegou-se entatildeo a uma postura ora se se estaacute examinando a obra de poetas eacute a partir

de suas colocaccedilotildees que a arte tira perceptos e afectos o que exige dizer que se trabalhou com

criaccedilotildees com deduccedilotildees com interpretaccedilotildees baseadas em um contexto - rdquoponte moacutevelrdquo - e natildeo

com verdades loacutegicas e cientiacuteficas Deixamos as verdades conclusivas para o domiacutenio da ciecircncia

e da filosofia se for o caso Fica-se com as hipoacuteteses e com as conjeturas a partir do discurso

literaacuterio Fica-se com as narrativas miacuteticas que se prendem a questotildees histoacuterico-sociais

reveladoras de sentido fica-se com a manifestaccedilatildeo do poder social que direciona o discurso da

sociedade que tinha na sua Teogonia o relato das origens do mundo mas que eacute muito mais

revelador do que apresenta ser quando comparado aos relatos miacuteticos dos hititas e dos feniacutecios e

com as teogonias da Babilocircnia9

A questatildeo da verdade se entendida no domiacutenio do homem grego aleacutetheia diz Torrano

reportando-se a Heidegger e a Detienne seraacute ldquoilatecircnciardquo o que marca a presenccedila pois natildeo pode

ser ocultado Desta forma se assim entendido no movimento de serem virgens que as deusas

Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena se constituem como aquilo que aparece e marca uma verdade A

virgindade entendida pois como o traccedilo mais caracteriacutestico dessas deusas

No desvelar-se das formas divinas impera ilatecircncia como fundaccedilatildeo da presenccedila e dos vaacuterios modos de latecircncia e de aparecircncia10

Os deuses satildeo as formas miacuteticas que constituem os elementos que justificam a presenccedila

do homem no cosmo poreacutem estudar a mitologia grega eacute acima de tudo mexer na memoacuteria

social de um povo tentando captar a essecircncia das narrativas que apresentam o divino e o humano

lado a lado ora aproximando-os e fundindo-os ora distanciando-os e ressaltando uma paixatildeo ou

um sentimento que evidencie o sagrado pela marca desta ou daquela estranheza que chega a

tocar o fantaacutestico De qualquer forma caminham lado a lado homens e deuses o real e o

imaginaacuterio entrelaccedilando-se na vida ciacutevica e na vida religiosa

8 DELEUZE Gilles e GUATARI Feacutelix Idem p 35 9 A respeito das Teogonias verificar Marcel Detienne e JP Vernant 10 TORRANO JAA op cit p 18

9

Como bem definiu Vernant eacute impossiacutevel separar de qualquer estudo que examine

aspectos do mundo grego ldquoaquilo a que se chamaria de bom grado o estilo religioso gregordquo11

A referecircncia a essa posiccedilatildeo faz-se necessaacuteria para se entender o mundo grego com todas

as suas caracteriacutesticas filosoacutefico-culturais pois que direciona o olhar para uma eacutepoca em que o

politeiacutesmo natildeo implicava a onipotecircncia e a transcendecircncia como se entende no estatuto da

religiatildeo cristatilde Pelo contraacuterio os deuses gregos foram criados com o mundo e complementam-se

nas suas funccedilotildees e na sua multiplicidade Os deuses gregos fazem parte da gecircnese do mundo e

para Vernant satildeo antes considerados Potecircncias - natildeo apenas formas - e portanto tecircm aspectos

mundanos e divinos pois pertencem agrave organizaccedilatildeo do universo e agrave vida social dos homens

Acreditamos que essa posiccedilatildeo tambeacutem enfatiza a questatildeo do impulso da ilatecircncia a que se

atribui aos deuses na visatildeo fundamentalista A palavra potecircncia natildeo se refere simplesmente a

poder e a forccedila aplicada para a realizaccedilatildeo de um efeito mas tambeacutem um elemento gerador de um

impulso de uma energia organizando o espaccedilo (Kosmos) enquanto se define a presenccedila do

homem na terra

As ciecircncias humanas e a filosofia acabaram por criar uma ruptura com o pensamento

antigo na medida em que tentaram racionalizar e demonstrar a concepccedilatildeo de mundo da

Antiguidade Como esse natildeo eacute o foco de nosso objeto de estudo deu-se ecircnfase ao dizer

invocativo que a poesia de Homero de Hesiacuteodo e de outros rapsodos revela Como declara

Chacirctelet12 eacute essa concepccedilatildeo de mundo arcaico que marcaraacute uma tradiccedilatildeo essencialmente

diferente da tradiccedilatildeo que mais tarde as filosofias da Idade Medieval e da Idade Moderna teratildeo

de se haver no que diz respeito agrave organizaccedilatildeo religiosa ligada agrave revelaccedilatildeo cristatilde e agrave ordem

soacutecio-econocircmico-poliacutetica A natureza agrave qual os aedos se referem nada tem a ver com os siacutembolos

que a Idade Meacutedia se ldquoimporaacute decifrar nem com o sistema de equaccedilotildees e de maacutequinas que o

pensamento moderno iraacute proporrdquo 13

O que parece fundamental eacute tentar entender o pensamento da eacutepoca arcaica que expressa

a relaccedilatildeo do indiviacuteduo com tudo que o circunda

11 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p11 12 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 13 CHAcircTELET Franccedilois Idem p14

10

seu imaginaacuterio e seus deuses seus concidadatildeos e seus familiares as coisas que o fazem sofrer e as de que frui seu proacuteprio pensamento e os objetivos que lhe estabelecem14

Eacute exatamente com base nessa concepccedilatildeo de mundo que se eacute tentado a estabelecer o uno

como condiccedilatildeo essencial da Antiguidade Poreacutem como demonstram Deleuze e Guattari e como

questiona Chacirctelet a ideacuteia de aceitar uma concepccedilatildeo de mundo fechada sobre si mesmo eacute

tentadora poreacutem a Filosofia natildeo conseguiu elaborar uma linha uacutenica que possa conceituar ou

traccedilar um perfil fechado desse tempo Sobre isso diz Chacirctelet

Uns o tomaratildeo por ldquoperiacuteodo originaacuteriordquo inscrevendo sua marca indeleacutevel na ordem do espiacuterito outros progressistas agrave sua maneira veratildeo aiacute uma primeira etapa edificante na elaboraccedilatildeo do saber outros enfim ldquoregressistasrdquo a compreenderatildeo como marca de um passado que por natureza deve estar indefinidamente perdido15

Eacute nessa etapa da produccedilatildeo escrita ndash que podemos chamar de primeira ndash que nos detemos

nas aventuras de deuses e de heroacuteis na louvaccedilatildeo de entidades divinas na origem da organizaccedilatildeo

do cosmo Enfim no que se considera caracteriacutestico daquele periacuteodo a poesia eacutepica

Nesse campo que movimenta linguagem e cultura procuramos perseguir o conceito de

virgindade na representaccedilatildeo das deusas consideradas virgens sem fragmentaacute-las sem retiraacute-las

do panteatildeo grego mas concebendo-as como peccedilas do jogo de palavras que se vai compondo em

relaccedilatildeo aos outros deuses e deusas e em relaccedilatildeo ao desejo e agraves questotildees de gecircnero que perpassam

o humano desde o iniacutecio de sua origem escrita Portanto seraacute que desejo e poder se opotildeem agrave

virgindade ou fazem parte desse mesmo cosmo uno Fica aiacute mais uma pergunta

22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees

Eacute a partir da narrativa da criaccedilatildeo do mundo que se encontra a primeira referecircncia ao amor

e agrave fecundidade Assim sendo pode-se dizer que a virgindade estaacute subentendida nesse

mecanismo de misteacuterio e de forccedila que determina a procriaccedilatildeo Tanto em Homero quanto em

Hesiacuteodo encontram-se relatos narrativos da criaccedilatildeo do mundo Embora apresentem

interpretaccedilotildees diferentes a noccedilatildeo de fertilidade e de divindade feminina fecundada estaacute presente

nos conteuacutedos referentes a essas narrativas de tradiccedilatildeo mitoloacutegica dos deuses primordiais

14 CHAcircTELET Franccedilois Op cit p14 15 Idem

11

Na Iliacuteada XIV v 197 e seguintes no momento em que Hera estaacute dialogando com

Afrodite ela lhe fala de Oceano o pai de todos os deuses e da matildee primordial Teacutetis que a

acolheram e a nutriram e que naquele momento de discoacuterdia entre eles ela gostaria de ajudar

com o propoacutesito de que pusessem um fim nessa discoacuterdia reatando a afeiccedilatildeo e portanto

voltando a aproximarem-se do leito do matrimocircnio Reproduzimos a seguir um trecho da fala de

Hera a Afrodite no momento em que solicita sua ajuda Apresentamos a traduccedilatildeo de Murray

antes de examinarmos as palavras em grego de interesse para nosso estudo

ldquoGive me now love and desire wherewith thou 198 art wont to subdue all immortals and mortal men

E Hera continua referindo-se a Oceano e Teacutetishelliphelliphellip

Them am I faring to visit and will loose for them their endless strife 205 since now for a long timersquos space they hold aloof one from the other 206 from the marriage- bed and from love for that wrath hath come upon their heartshellip1617 207

Eacute interessante refletir sobre a escolha das palavras usadas por Homero nesses versos e a

significaccedilatildeo decorrente delas para nossas consideraccedilotildees sobre o universo feminino envolvendo

conceitos de virgindade de amor de desejo de fecundidade e ateacute mesmo de discoacuterdia entre os

sujeitos de gecircneros diferentes desde a narrativa da origem do mundo

Primeiramente o autor usa a palavra grega philotes (φιλότης) referindo-se ao amor

Segundo o dicionaacuterio Bailly (2000) essa palavra tem o significado de amor (amour) nesse

contexto (xiv v 198) Podemos pois inferir que eacute um tipo de amor que envolve laccedilos afetivos

ternura e amizade como seraacute posteriormente colocado pelos filoacutesofos No entanto a mesma

palavra philotes ou seja amor usada no verso 209 (ldquojoined together in loverdquo) acompanhada da

palavra όmicroωθήναι (omothenai) juntar e da palavra ευνής (euneacutes)isto eacute leito (XIV 206) tem

um significado de relaccedilatildeo iacutentima envolvendo pois uma noccedilatildeo de sexualidade

16 HOMER The Iliad v 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 17 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 ldquoDaacute-me o desejo e o feiticcedilo do amor com que sempre domaste (v 198) todos os deuses eternos e os homens de curta existecircncia (v199) vou visitaacute-los com o fim de compor-lhes antiga discoacuterdia (v 205) Haacute muito que ambos o leito apartaram desta arte se abstendo dos gratos elos do amor por se acharem inflados de coacutelerardquo (v 207)

12

Fica clara a relaccedilatildeo carnal como parte das atividades dos deuses e a questatildeo do leito

nupcial como local dos relacionamentos secretos Deuses e homens compartilhavam das mesmas

experiecircncias pois como jaacute fizemos referecircncia anteriormente viviam lado a lado O pensamento

poeacutetico tece o texto de forma tatildeo clara e objetiva que nos leva agrave investigaccedilatildeo do campo

semacircntico tais as palavras usadas para dizer de modo natildeo-velado de modo revelador e expliacutecito

o que Hera espera do compartilhamento que envolve o masculino e o feminino

Haacute vaacuterias outras passagens na Iliacuteada em que o autor se refere aos momentos de relaccedilotildees

iacutentimas entre os deuses mostrando que o desejo imeros [ιmicroερος] fazia parte do amor das

relaccedilotildees que se espera que aconteccedilam como atribuiccedilatildeo do universo de natureza divina Assim as

relaccedilotildees sexuais satildeo previsiacuteveis entre os deuses e eacute uma forma de manifestaccedilatildeo de amor entre os

gecircneros diferentes Haja vista que em sua fala Hera coloca que a discoacuterdia νειχεα entre esses

dois deuses primordiais Oceano e Teacutetis havia feito com que eles se afastassem do amor e

consequumlentemente do leito do casamento

Aleacutem disso parece que Homero como bom conhecedor da natureza humana coloca na

fala de Hera o pedido a Afrodite (deusa que subjuga os imortais e os mortais na questatildeo do amor)

de dar a Oceano e Teacutetis natildeo apenas amor mas amor e desejo pois que amor e desejo se

complementam e o desejo promove a manifestaccedilatildeo do amor quer atraveacutes dos sentimentos quer

atraveacutes dos contatos fiacutesicos como forma de expressatildeo e de representaccedilatildeo do sentimento

Eacute interessante observar que a forma Фιλοτήτος eacute usada nesses versos por Homero e que a

expressatildeo da presenccedila do desejo ou da representaccedilatildeo da sexualidade vem acompanhada de outras

palavras No entanto ainda no canto XIV Homero usa o termo ερος como no verso 315

significando entatildeo desejo

Essa variaccedilatildeo na escolha do leacutexico parece remeter a uma variaccedilatildeo semacircntica significativa

A expressatildeo ldquoamor e desejordquo ou seja philotes e imeros eacute entatildeo substituiacuteda por eros Para ερος

nesse contexto Il XIV315 Bailly apresenta a traduccedilatildeo para o francecircs passion amour [θεας

Ѓϋναιχος] correspondendo a ldquoamour pour une deacuteesse une femmerdquo18 Jaacute parece estar impliacutecita

em eros a questatildeo do desejo

18 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par SEacuteCHANT L et CHANTRAINE P Paris Hachette 2000 p 808

13

A presenccedila de Afrodite eacute evocada na combinaccedilatildeo de forccedilas que a deusa representa pois

sempre a acompanham Peithocirc a persuasatildeo alegre trapaceira e Apaacutete a ilusatildeo enganosa da

ternura O pensamento miacutetico eacute ambivalente na criaccedilatildeo de associaccedilotildees e se tece com diferentes

tons como ldquouma fita bordadardquo19

Fazemos nossas as palavras de Fontes quando ele se refere ao movimento das palavras agrave

multiplicidade de sentidos subjacentes a ela dentro do quadro cultural agrave mobilidade dos

conceitos que se enredam na tessitura do mundo miacutetico na composiccedilatildeo poeacutetica

O poema eacute com efeito como diraacute mais tarde Dioniacutesio de Halicarnasso um tecido precioso que nasce das matildeos do poeta quando ele reuacutene diversas liacutenguas numa soacute a nobre e a simples a elaborada e a natural a concisa e a extraordinaacuteria Mas o tecido de muitas cores onde os contraacuterios se misturam harmoniosamente eacute ele proacuteprio semelhante a Proteu o deus muacuteltiplo e inconstante que eacute aacutegua fogo aacutervoreleatildeo que reuacutene todas as formas numa soacute Da mesma maneira a seduccedilatildeo da palavra poeacutetica por meio dos prazeres do canto das medidas e dos ritmos eacute anaacuteloga agrave seduccedilatildeo exercida pela mulher por meio do lsquoencanto do olharrsquo (khaacuteris oacutepseoumls) pela lsquodoccedilura persuasiva da vozrsquo pela lsquoatraccedilatildeo da beleza do corpo20

Pois assim eacute que Homero e Hesiacuteodo misturaram em seus poemas deuses homens

paixotildees e desejos como pertencendo ao mesmo ceacuteu que os cobriam com voluacutepia agrave mesma aacutegua

que os inundava de espuma feacutertil agrave mesma terra que os acolhia com sua fecundidade criadora

As religiotildees de base cristatilde dessacralizaram a natureza e introduziram o modelo da

salvaccedilatildeo pessoal Em Homero ao contraacuterio a palavra tambeacutem fazia parte da phyacutesis mediando

deuses homens e natureza agrave qual tambeacutem pertencia

Assim em uma comparaccedilatildeo da postura e da feacute que move a religiatildeo grega em relaccedilatildeo agrave

religiatildeo cristatilde os gregos manifestavam uma atitude de respeito de preces de oferendas e de

sacrifiacutecios mas como parte de um empreendimento de trocas que experimentavam a partir da

adesatildeo de um costume jaacute estabelecido como suporte da proacutepria existecircncia e que por isso natildeo

precisava ser justificado Desde que havia cultos e rituais era porque eles se provaram

necessaacuterios Como seria possiacutevel conceber um deus transcendental se apenas mais tarde (por

volta do seacuteculo V aC) introduz-se o conceito de transcendecircncia com a filosofia platocircnica e o

mundo das Ideacuteias

19 Verificar sobre esse tema a obra de FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p247 20 FONTES Joaquim Brasil Idem p249

14

Para esclarecer essa questatildeo do movimento de pensamento ascensional nada melhor do

que reportar-se a Deleuze que discorrendo sobre imagens de filoacutesofos tece consideraccedilotildees sobre

o que se entende como princiacutepio filosoacutefico do meacutetodo ldquodas alturasrdquo como oposto ao sistema que

norteou o mundo fundamentalista grego Primeiro Deleuze questiona o que eacute orientar-se no

pensamento esclarecendo que cabe ao filoacutesofo efetuar uma operaccedilatildeo

Entatildeo determinada como ascensatildeo como conversatildeo isto eacute como o movimento de se voltar para o princiacutepio do alto do qual ele procede e de se determinar de se preencher e de se conhecer graccedilas a uma tal movimentaccedilatildeo21

Ora como poderiam os gregos que viveram antes de Platatildeo conseguir estabelecer um

pensamento que se vincula antes ao proacuteprio ato de pensar do que na experiecircncia da vida Essa

colocaccedilatildeo revela uma conclusatildeo baacutesica no entendimento da cultura grega politeiacutesta cuidava-se

dos estados da vida Ainda natildeo se colocava para os gregos o problema da orientaccedilatildeo do ato de

pensar Os deuses natildeo satildeo forccedilas naturais satildeo detentores de soberania exercendo poderes em

diferentes e diversos domiacutenios Para os gregos natildeo era preciso que houvesse uma revelaccedilatildeo para

fundamentar suas relaccedilotildees com o sobrenatural Elas eram representadas e perpetuadas na figura

dos deuses e nos cultos e rituais Fazia parte da vida como o uso do idioma como pertencente agrave

phyacutesis isto eacute agrave proacutepria natureza Acredita-se como Vernant que debruccedilar-se sobre o estudo de

um aspecto dos deuses leva a adentrar em um mundo em que

Entre o religioso e o social o domeacutestico e o ciacutevico portanto natildeo haacute oposiccedilatildeo nem corte niacutetido assim como entre sobrenatural e natural divino e mundano A religiatildeo grega natildeo constitui um setor agrave parte fechado em seus limites e superpondo-se agrave vida familiar profissional poliacutetica ou de lazer sem confundir-se com ela 22

Desta maneira viam os gregos em seus deuses valores e plenitudes que importam na

existecircncia terrestre Para que mais Todas as manifestaccedilotildees terrestres tinham seu lado sagrado

promovendo uma atitude dos cidadatildeos de se espelharem nos deuses natildeo de forma a reivindicar

favores individuais mas como exemplo de valores e do modo de ser que compotildeem a vida

Reforccedilando essa posiccedilatildeo da impossibilidade de uma separaccedilatildeo do que hoje se denomina

mitologia dos demais componentes culturais da sociedade grega podemos citar as palavras de

Berman DW no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo norte-americana do livro de Calame

21 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 p131 22 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p7

15

For the Greeks there is no ldquohistoryrdquo as distinct from the narrative (and until a relatively late date poetic) tradition and no ldquomythrdquo that is not implicated in the process of discourse production ldquoMythrdquo and ldquohistoryrdquo as defined in their modern senses cannot be separated 23

Esse enfoque reafirma o conceito de mito (mythos) usado por Aristoacuteteles em sua Poeacutetica

em que daacute especial relevacircncia ao mito ou seja agrave ldquohistoacuteriardquo Embora Aristoacuteteles esteja se

referindo especificamente aos componentes da trageacutedia podemos dilatar esse conceito no que se

refere agrave tradiccedilatildeo poeacutetica grega pois as narrativas de deuses e de heroacuteis tambeacutem continham

elementos que depois passaram a constituir partes integrantes da trageacutedia Estavam portanto

relacionados nos poemas eacutepicos o mito e a accedilatildeo o terror e a piedade o reconhecimento e a

questatildeo da verdade que seraacute examinada posteriormente tendo-se em vista os trabalhos de Veyne

e de Deleuze

O proacuteprio termo mito transforma-se pois o conceito eacute sempre acompanhado de um

constante processo de devir condiccedilatildeo de percepccedilatildeo da passagem de um mundo a outro

construindo-se e dissolvendo-se em outras coisas Assim natildeo podemos deixar de citar que no

tempo de Homero o conceito de mythos significava a palavra como se pode ver em um

pequeno trecho da Iliacuteada ldquoto be both a speaker of words and a doer of deedsrdquo (9443) 24 em

que mythos opotildee-se a ergon De acordo com Bailly somente apoacutes Homero o termo passa a ser

usado como faacutebula (ldquofablerdquo) particularmente com o sentido de lenda (leacutegende) em oposiccedilatildeo a

logos que ainda tendo como base Bailly25 a coloca como a palavra em geral (la parole)

Este cruzamento linguumliacutestico tenta revelar o ldquojogordquo de significados dos quais participavam

natureza deuses e homens formando o grande cenaacuterio do mundo grego Nesse mesmo cenaacuterio

trecircs personagens tinham uma atuaccedilatildeo que surpreendia pela caracteriacutestica que as diferenciava a

castidade e a forte determinaccedilatildeo de manterem-se virgens

23 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 p xvii ldquoPara os gregos natildeo haacute ldquohistoacuteriardquo como distinta da tradiccedilatildeo narrativa (e ateacute uma data relativamente recente poeacutetica) e nem mito que natildeo esteja enredado no processo de produccedilatildeo do discurso ldquoMitordquo e ldquohistoacuteriardquo como definidos em seus significados modernos natildeo podem ser separadosrdquo 24 HOMER Op cit p414 ldquohellip para ser tanto um orador de palavras quanto um realizador de accedilotildeesrdquo 25 BAILLY Anatole opcit

17

3 - A QUESTAtildeO METODOLOacuteGICA UM OLHAR SOBRE A PESQUISA BIBLIOGRAacuteFICA

Jaacute Aristoacuteteles tinha afastado a histoacuteria do mundo das ciecircncias precisamente porque ela se ocupa do particular que natildeo eacute um objeto da ciecircncia - cada fato histoacuterico soacute aconteceu e soacute aconteceraacute uma vez Esta singularidade constitui para muitos produtores ou consumidores de histoacuteria a sua principal atraccedilatildeo ldquoAmar o que nunca se veraacute duas vezesrdquo26

O objeto de estudo as deusas gregas virgens faz parte de um sistema do complexo

processo social e cultural de um povo Assim sendo o corpus selecionado como ponto de partida

remete a consideraccedilotildees explicaccedilotildees suposiccedilotildees e interpretaccedilotildees calcadas em uma posiccedilatildeo

teoacuterica

Como ler hinos e narrativas eacutepicas que falam das deusas das funccedilotildees e das caracteriacutesticas

que se pretendem conhecer e investigar sem optar por um caminho por uma demonstraccedilatildeo da

maneira como a histoacuteria coloca os modos de ser e de fazer dos homens em um dado tempo

Como o pensamento antropoloacutegico articula-se elaborando ldquoverdadesrdquo tradiccedilotildees inquestionaacuteveis

maneiras de agir coletivas que se aplicam a um povo delineando os traccedilos niacutetidos de seu perfil

independente de traccedilos iguais ou semelhantes em outros povos

As marcas que os nomeiam satildeo uacutenicas fazem-se peculiares distintas ldquofalamrdquo com

sotaque proacuteprio O homem se enraiacuteza ao solo funda-o e surge o nativo de um pedaccedilo geograacutefico

com uma identidade que lhe confere um nome localizado no espaccedilo vestiacutegios da sua construccedilatildeo

nesse cenaacuterio que se vai delimitando com contornos especiacuteficos Eacute nesse desenho do coraccedilatildeo

humano que a antropologia ausculta compara e prescreve Lanccedilou-se matildeo do estetoscoacutepio da

antropologia que examina o saber local que o investiga e como todo o envolvimento humano

tenta diagnosticar atraveacutes das pistas

O nosso olhar poreacutem natildeo se prende de modo exaustivo a uma uacutenica linha teoacuterica como

acircncora pretende ser sobretudo uma interpretaccedilatildeo uma contribuiccedilatildeo explicativa para o

fenocircmeno soacutecio-cultural da virgindade das deusas gregas com base em tudo o que jaacute foi dito e

revisto

26 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003

18

Quando se opta por uma linha epistemoloacutegica esse movimento jaacute determina que outras

teorias forneceratildeo posiccedilotildees antagocircnicas e outras ainda informaccedilotildees complementares A questatildeo

da verdade pertence pois ao seio da indagaccedilatildeo e nossa pesquisa natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilaacute-

la Propotildee-se apenas um pequeno vieacutes um ponto de vista a partir do acircngulo de nossa visatildeo jaacute por

si soacute especificada e direcionada pelo que a nossa individualidade eacute afetada pelo contexto cultural

que a determina

Nossa escolha por uma linha antropoloacutegica ou melhor pelo caraacuteter heterogecircneo dos

significados culturais justifica-se embora com propoacutesitos diferentes a partir das colocaccedilotildees

entatildeo feitas por Heroacutedoto (por volta de 450 a C) que acreditava que a vitoacuteria grega sobre os

persas natildeo se devia agrave bravura dos homens ou agrave vontade dos deuses mas ao resultado do conflito

entre culturas

Eacute pois com essa mesma interpretaccedilatildeo de levantar problemas e de descrever alguns

aspectos relevantes da diversidade cultural onde deusas gregas ditas virgens eram reverenciadas

ao lado de outras deusas e de deuses e de refletir sobre a evoluccedilatildeo do conceito da virgindade

atraveacutes dos tempos colocado em contextos diferentes que nossas indagaccedilotildees se apoacuteiam em uma

linha antropoloacutegica comparativa

Nesse percurso que se decidiu seguir verificou-se que muitas vezes dentro da busca pela

explicaccedilatildeo dos acontecimentos teorias divergem sobre os mesmos aspectos e alguns autores

criticam questionam levantam hipoacuteteses sobre outros autores e sobre os mesmos fatos

Descobrimos entatildeo que aleacutem do social as teorias encontram-se fatalmente ligadas a uma

posiccedilatildeo poliacutetica Assim sendo nosso trabalho como qualquer outro jaacute traz em si perigos pois

direciona a escolha dos acontecimentos e determina um estilo para representar as significaccedilotildees

culturais Como se isso natildeo bastasse os conceitos satildeo sempre ldquoprovisoacuteriosrdquo e movimentam-se

transfigurando-se para novas significaccedilotildees

Como diz Layton vamos procurar fazer uma ldquotraduccedilatildeo da culturardquo buscando o

entendimento dos ldquoaparentemente exoacuteticos costumesrdquo dos gregos da eacutepoca de Homero e de

Hesiacuteodo ldquocom os quais natildeo nos encontramos familiarizadosrdquo27

27 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 p11

19

De algum modo poreacutem nossa atenccedilatildeo se dirige para aspectos caracteriacutesticos do

comportamento social que o corpus selecionado revela sugerindo ligaccedilotildees entre aquilo que

lemos e aquilo que pode significar

Faz-se importante frisar que embora nossas propostas tragam em si preocupaccedilotildees de

caraacuteter social este estudo natildeo deve excluir consideraccedilotildees de enfoque do acircmbito da religiatildeo pois

que mito e religiatildeo se entrecruzam na dimensatildeo mitoloacutegica A religiatildeo como parte do estatuto

histoacuterico e das formas de pensar de agir de acreditar de um povo refletem um comportamento

obrigatoacuterio uma ldquoinfluecircncia coerciva sobre as consciecircncias individuais28rdquo

Em se priorizando preocupaccedilotildees culturais abrangentes verifica-se em um segundo

momento desta abordagem que o texto escrito eacute revelador de um significado soacutecio-histoacuterico-

cultural e parte-se dele como exemplo de um corpus usado na aacuterea da literatura que transcende o

aspecto linguumliacutestico nas suas significaccedilotildees muacuteltiplas na sua dinacircmica complexa nas suas tensotildees

geradoras de oposiccedilotildees nas suas metaacuteforas vigorosas nas suas narrativas extraordinaacuterias nas

descriccedilotildees ldquorepetitivasrdquo de dons e de atributos divinos e heroacuteicos

Aleacutem disso uma metodologia direcionada aos fazeres e agires humanos natildeo deve excluir

funccedilotildees pois satildeo elas que orientam o cumprimento das obrigaccedilotildees contratuais dos deveres

sociais e das crenccedilas morais previamente definidas e existentes no contexto cultural de forma

ampla exteriores ao individual

O estatuto impotildee-se aos sujeitos independentemente de seu desejo e para pertencer a um

grupo tem-se que seguir os mesmos ideais e as mesmas crenccedilas

Eacute com o pensamento voltado ao ato de criar de estabelecer normas e de verificar efeitos

de comportamentos que dirigem um povo que se deve tentar interpretar isto eacute entender do

exterior e agrave distacircncia grandes relatos da tradiccedilatildeo grega que datam do seacuteculo VIII-VII antes da

nossa era Toda a praacutetica narrada na escrita de Homero e de Hesiacuteodo constitui a representaccedilatildeo de

um sistema em accedilatildeo e natildeo pode pois ser surda e silenciosa aos sabores de uma eacutepoca Eacute nesse

trabalho que se percebe como a noccedilatildeo de mythos foi elaborada e se enraizou no solo grego Isso

conduz por seu turno agrave questatildeo do conceito

28 DURKHEIM apud LAYTON Op cit p 34

20

Como entender o mito e a mitologia Como ler esses relatos fantasiosos da tradiccedilatildeo

ldquodenunciada como inaceitaacutevel ou como natildeo sendo mais digna de credibilidade29rdquo como

questionava Tuciacutededes a partir de sua vertente histoacuterica

Recorremos agraves reflexotildees de Detienne30 sobre esse assunto Embora em um primeiro

momento (seacuteculo VII a C) a filosofia tenha atribuiacutedo ao mythos o sentido da narraccedilatildeo inventiva

e de relatos baacuterbaros a evoluccedilatildeo semacircntica do termo o conduz agrave conotaccedilatildeo de revoluccedilatildeo devido

agrave revelaccedilatildeo do partido dos sacircmios os mythiegravetai contra a tirania de Policrato

Com base no poema de Anacreonte de Samos no seacuteculo V aC a palavra mythos eacute usada

por Piacutendaro e por Heroacutedoto com restriccedilatildeo atribuindo-lhe o significado de ldquoo discurso dos outros

enquanto ilusoacuterio incriacutevel e estuacutepidordquo 31

Dessa forma os relatos histoacutericos procuram se apoiar nos logoi discursos

argumentativos enquanto os mythoi excluem a argumentaccedilatildeo raspando todo vestiacutegio de

observaccedilatildeo empiacuterica Assim nesse estado de coisas como coloca Detienne

Falar de mito eacute um modo de contar o escacircndalo de apontaacute-lo Mythos eacute uma palavra-gesto muito cocircmoda suficiente para denunciar a tolice a ficccedilatildeo ou o absurdo e confundi-los imediatamente32

Soacute no final do seacuteculo V eacute que o mythos deixa de ter sua conotaccedilatildeo de lugar-narrado (lieu-

dit) para se tornar discurso de uma forma de saber com base no que foi escrito pelos bioacutegrafos e

pelos poetas Eacute assim que o mito recortado da atividade histoacuterica designa um domiacutenio que

encerra a capacidade de narrar e de memorizar

Entramos pois no campo da memoacuteria fraacutegil e faliacutevel Quanto mais se distancia do

tempo menos criacutevel ela fica e mais e mais suas aacuteguas se engrossam tornando-se caudalosas

Natildeo eacute mais a verdade o que interessa o fato apontado desenhado em cima de si mesmo mas a

beleza do relato que envolve que narra o fabuloso que apresenta o inacreditaacutevel como prodiacutegio

Eacute com essa vestimenta leve e transparente que agora a chamada mitologia ndash os escritos

reunidos dos contemporacircneos ndash sofre a criacutetica de Platatildeo principalmente no que concerne aos

29 DETIENNE Marcel Os Gregos e Noacutes Uma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p39 30 DETIENNE Marcel Idem 31 DETIENNE Marcel Op cit 32 Idem p 41

21

aspectos formais e riacutetmicos para fins de memorizaccedilatildeo Para o filoacutesofo esse meio de expressatildeo

para estimular a memoacuteria e a comunicaccedilatildeo para privilegiar a audiccedilatildeo era

o sinal irrefutaacutevel de sua pertinecircncia ao mundo polimorfo e colorido de tudo que deleita a parte inferior da alma esse reino solitaacuterio onde as paixotildees e os desejos enlouquecem O discurso da mitologia natildeo somente eacute escandaloso ndash e o pesquisador da Repuacuteblica cataloga histoacuterias obscenas selvagens e absurdas - mas eacute perigoso pelos efeitos ilusoacuterios que acarreta a comunicaccedilatildeo da boca ao ouvido visto natildeo ser nem fiscalizada nem controlada33

Poreacutem como diz Detienne Platatildeo tentou inventar uma nova mitologia Pode-se pois

dizer que o filoacutesofo buscou trocar uma mentira por outra uma ldquobela mentira uacutetil capaz de

realizar para todos livremente tudo o que eacute justo34rdquo Assim nas suas Leis Platatildeo quer propor

uma nova tradiccedilatildeo substituindo o canto das musas e o murmuacuterio dos deuses narrados pelos

poetas dos seacuteculos anteriores

Ora eacute fundamental que se considere que eacute esse objeto que deve ser entendido na sua

riqueza humana na sua ambivalecircncia na sua multiplicidade de planos na variedade de niacuteveis de

sua significaccedilatildeo na diversidade dos contextos na singularidade de sua criaccedilatildeo Ou ainda como

diz Torrano acerca de sua anaacutelise sobre a Teogonia quando o corpus que se propotildee analisar

refere-se ao que chama de mitologia tambeacutem o estudo que se propotildee nada mais eacute do que um

ldquodiscurso sobre uma canccedilatildeo numinosa35rdquo veiacuteculo do saber de um tempo em um complexo

contexto cultural O que vale dizer pois que o mito eacute identificado por todos os leitores por seu

sentido relacional intriacutenseco pelas diferentes versotildees que ele pode conter e pelo contexto

etnograacutefico que subjaz aos seus planos significantes

Eacute com essa visatildeo que a anaacutelise se permite ser comparativa Nessa tentativa de comparar

conceitos e posiccedilotildees para alargar o entendimento do mito que nosso estudo evidencia a partir das

deusas gregas virgens que lanccedilamos matildeo de uma perspectiva social de linha antropoloacutegica geral

proposta por Durkheim

Para esse autor conceitos sociais gerais provocam o mesmo efeito da organizaccedilatildeo das

instituiccedilotildees isto eacute em determinados periacuteodos histoacutericos todas as sociedades estatildeo sujeitas a

condicionalismos que se apoderam das multidotildees e fazem-nas interagir e mover-se Assim ondas

33 Idem p 43 34 Idem p43 35 HESIgraveODO Teogonia A Origem dos deuses Estudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p13

22

de entusiasmo de paixatildeo de indignaccedilatildeo apoderam-se do povo de um paiacutes em um momento e o

impulsionam Acredita-se que essa posiccedilatildeo possa ser defendida na interpretaccedilatildeo de alguns

elementos significantes pois as narrativas miacuteticas e os rituais satildeo impelidos por uma forccedila ampla

que abrange todas as esferas A dinacircmica desse movimento perpassa a obra dos poetas em foco e

compotildee parte do conteuacutedo que acompanha o ritmo discursivo dos versos selecionados como

corpus

A chave fundamental de uma linha epistemoloacutegica calcada na antropologia eacute a de

compreender que cada sociedade delineia suas proacuteprias instituiccedilotildees que concebe seus padrotildees de

comportamento que desenha seus espaccedilos que considera as formas de sua organizaccedilatildeo social

que determina seus valores e impotildee sistemas Argumentando em favor de uma antropologia

comparada citamos uma posiccedilatildeo de Durkheim apud Layton

Uma vez que os fenocircmenos sociais natildeo podem ser controlados experimentalmente o uacutenico meacutetodo cientiacutefico apropriado para o trabalho do cientista eacute o comparativo36

ldquoA arte de construir comparaacuteveisrdquo como diz Detienne37 parece-nos pois um caminho

que permite colocar questotildees apontar direccedilotildees considerar diferenccedilas perceber as tensotildees e

acima de tudo dimensionar a necessidade de escolher uma categoria o que faz com que a

hipoacutetese levantada possa ganhar contornos de um desenho definido

Reproduzindo fielmente as palavras de Detienne38 inspirado no trabalho de Geertz tem-

se que

Se um historiador ou um etnoacutelogo debruccedilado sobre uma bem definida questatildeo local percebe que nossa representaccedilatildeo do que eacute uma ldquopessoardquo eacute uma ideacuteia bastante especial no conjunto das culturas do mundo ele comeccedila a antropologia Ao menos um primeiro passo O segundo poderia ser a descoberta do que ldquopara melhor analisar as formas simboacutelicas de uma cultura estrangeira eacute preciso bisbilhotar as peculiaridades de um outro povordquo

Portanto a centralidade da cultura enquanto conceito de base parece ser o ponto-chave

natildeo apenas dos estudos da antropologia americana mas tambeacutem de autores europeus como no

caso de Durkheim e de Detienne

No levantamento de hipoacuteteses da virgindade das deusas gregas deparamo-nos dentro

desse eixo diretivo cultural com o levantamento de algumas funccedilotildees peculiares a essas deusas

36 LAYTON Robert Opcit p37 37 DETIENNE Marcel Op cit p22-23 38 DETIENNE Marcel idem

23

que fazem parte dos atributos evocados pelos epiacutetetos Daiacute advecircm dois pontos que devem ser

considerados Primeiro em relaccedilatildeo ao uso de suas funccedilotildees como forma norteadora de propor

diferentes comportamentos Esse termo faz-se necessaacuterio esclarecer natildeo se vincula aos

conceitos propostos pela anaacutelise social funcionalista Natildeo se pretende agrave maneira de Radcliff

Brown descobrir leis classificatoacuterias do comportamento social propondo uma analogia orgacircnica

nem tampouco como Malinowski usar o termo ldquofunccedilatildeordquo em se considerando que a cultura se

alicerccedila nas necessidades bioloacutegicas primaacuterias do ser humano Em nossa perspectiva usamos

funccedilatildeo para indicar papeacuteis e posiccedilotildees destacados em relaccedilatildeo a essas deusas revelando atributos

que as distingam De fato como Ruth Benedict e Margaret Mead perceberam em suas pesquisas

e colocaram em suas obras aspectos da personalidade fazem parte do contexto cultural quando

se analisa a eacutetica e a moralidade bem como o impacto que esse aspecto determina na vida social

Achamos que a questatildeo relativa aos papeacuteis desempenhados pelas deusas virgens cria articulaccedilotildees

que favorecem o entendimento da virgindade como oposiccedilatildeo a uma outra circunstacircncia

resgatando e alargando a ideacuteia de ldquopoderrdquo que essa condiccedilatildeo pode oferecer no estudo das

relaccedilotildees sociais Essa tessitura convoca um acordo com um ldquocoacutedigo de eacuteticardquo se assim se pode

rotular das accedilotildees de uma comunidade que partilha valores comuns

As mudanccedilas que adviratildeo no conceito de virgindade prendem-se agraves criaccedilotildees da Igreja

cristatilde estabelecendo novas relaccedilotildees sociais mas mantendo e ressaltando um aspecto que seraacute

discutido no enfoque evolutivo da virgindade

O segundo ponto a ressaltar eacute a questatildeo dos epiacutetetos A pergunta que surge eacute quanto eacute de

fato revelado como atributo nos epiacutetetos Seraacute que o epiacuteteto acrescenta um conteuacutedo novo agraves

caracteriacutesticas das deusas ou eacute apenas um recurso ornamental repetitivo

A poesia de Homero eacute marcada pelo uso calculado dos pleonasmos isto eacute satildeo oacutebvios

mas natildeo inuacuteteis pois realizam uma completude riacutetmica um gesto sonoro aleacutem da comunicaccedilatildeo

do conteuacutedo Assim sendo o gecircnero eacutepico requer esse tipo de estrutura que se impotildee agrave vontade

do proacuteprio autor O epiacuteteto serve pois para preencher o verso hexacircmetro tendo uma funccedilatildeo

poeacutetica e provocando mesmo uma superposiccedilatildeo de tempos entre o tempo que estaacute sendo narrado

e o tempo39 que entra como anterior e posterior ao que se narra pois eacute o tempo que vale como

39 Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do tempo e dos epiacutetetos ver o artigo de RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

24

ornato Esse aspecto como se veraacute adiante cria dificuldades na traduccedilatildeo do grego para outras

liacutenguas pois apenas a natureza da liacutengua grega arcaica pode produzir esses epiacutetetos Eacute inerente agrave

disposiccedilatildeo gramatical da liacutengua do contexto que os accedilambarca A comparaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute

revela um impedimento e a traduccedilatildeo dessa cultura como diz Layton jaacute prevecirc um olhar distante e

uma voz indiziacutevel dos textos de Homero Por mais que se prenda ao conteuacutedo a qualidade do

ldquogeistrdquo 40 da forma nos escapa Como reproduzir a voz de Homero Fica aiacute o questionamento

Voltando agrave questatildeo dos epiacutetetos se eles revelam o que eacute sabido de antematildeo eles tambeacutem

oferecem uma conotaccedilatildeo conteudiacutestica de outro lado Como diz Rodrigues41 referindo-se a uma

das causas do uso de epiacutetetos

no fundo natildeo haacute repeticcedilotildees pois este mundo ndash todos sabem eacute progressista e heracliacutetico42 natildeo existiriam repeticcedilotildees absolutas pois repetir de qualquer forma eacute jaacute alterar43

O uso de epiacutetetos em Homero foi exaustivamente investigado por Milman Parry44 cuja

tese foi a de provar a excelecircncia da qualidade esteacutetica dos versos desse poeta comparando-o a

um escultor cujos traccedilos satildeo simples claros e quase impessoais na sua criaccedilatildeo espontacircnea O

que chamou a atenccedilatildeo de Parry na anaacutelise da obra homeacuterica quando comparou o poeta ao

escultor Fiacutedias foi justamente a habilidade de cruzar a tradiccedilatildeo com sua originalidade Dessa

forma repetindo as palavras de Parry

[The repeated words and phrases45] are like a rhythmic motif in the accompaniment of a musical composition strong and lovely regularly recurring while the theme may change to a tone of passion or quiet of discontent of gladness or grandeur

Para nosso trabalho o epiacuteteto propotildee uma quase que insistecircncia na descriccedilatildeo de uma

caracteriacutestica (parthenos) que parece ser imutaacutevel ou tatildeo recorrente se preferirmos quanto o

40 Usamos o termo geist como eacute usado em antropologia por Franz Boas o espiacuterito de um povo 41 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 42 Heracliacutetico referente a Heraacuteclito de Efeacuteso filoacutesofo preacute-socraacutetico que viveu provavelmente entre os seacuteculos VI e V a C Para esse filoacutesofo unidade regularidade e mudanccedila eterna satildeo qualidades fundamentais do que existe O fluir constante significa que ldquoningueacutem pode banhar-se duas vezes no mesmo riordquo porque esse muda assim como muda o homem In PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 pp 206-207 43 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 44 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 45 PARRY idib p xxv (As palavras e as frases repetidas) satildeo como um motivo riacutetmico no acompanhamento de uma composiccedilatildeo musical fortes e encantadoras regularmente recorrentes enquanto o tema pode mudar para um tom de paixatildeo ou quietude de descontentamento de alegria ou grandeza- traduccedilatildeo nossa

25

proacuteprio epiacuteteto Assim vemos uma dupla funccedilatildeo no epiacuteteto a de enfatizar um aspecto jaacute

conhecido de revelar sua natureza essencial e a de provocar uma compreensatildeo clara de sua

natureza esteacutetica

A questatildeo das consideraccedilotildees sobre o epiacuteteto traz em seu bojo uma outra dimensatildeo _ que

natildeo pode passar despercebida em uma anaacutelise cujo corpus eacute referente a poemas de autores

gregos da eacutepoca arcaica Eacute o caso da ecircnfase que se daacute agrave comunicaccedilatildeo nos poemas de Homero de

Hesiacuteodo e de outros poetas considerados ldquode segunda ordem porque foram tratados injustamente

pela tradiccedilatildeo humanista ocidental dos tempos modernosrdquo46 Sabemos que esse fato do uso dos

epiacutetetos tem sido discutido e alvo de polecircmicas Ainda assim vemos como positivo o fato de

que os mesmos epiacutetetos eram usados em diferentes situaccedilotildees por diferentes autores (em nosso

caso Homero e Hesiacuteodo) pois isso reforccedila o conceito de que havia um senso comum um

entendimento taacutecito um conhecimento abrangente em que a obra poeacutetica revela essa luz que

iluminava o mundo homeacuterico

Eacute por isso que natildeo podemos deixar de reforccedilar a colocaccedilatildeo de Torrano47 de que essas

metaacuteforas fixas criaram uma conotaccedilatildeo de encantamento maacutegico e do sagrado que o mundo dos

deuses evoca

Parry em seu estudo minucioso do epiacuteteto revelou os aspectos do estilo poeacutetico que

privilegiavam a oralidade ressaltando a significacircncia das foacutermulas para fins de comunicaccedilatildeo

Sobre isso Denys Page destacou as importantes descobertas de Parry48 comentando

It is not easy at first to grasp the full significance of Milman Parryrsquos discovery that the language of the Homeric poems is of a type unique in Greek literature ndash that it is to a very great extent a language of traditional formulas created in the course of a long period of time by poets who composed in the mind without the aid of writingThat the language of the Greek Epic is in this sense the creation of an oral poetry is a fact of proof in detail and the proofs offered by Milman Parry are of a quality not often to be found in literary studies49

46 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 p291 47 HESIacuteODO Opcit 48 PARRY Milman Op cit p xxvii 49 Natildeo eacute faacutecil em um primeiro momento perceber a significacircncia plena da descoberta de Milman Parry de que a linguagem dos poemas homeacutericos eacute de um tipo uacutenico na literatura grega ndash que eacute em grande parte uma linguagem de foacutermulas tradicionais criadas no curso de um longo periacuteodo de tempo por poetas que compunham na mente sem a ajuda da escritaQue a linguagem do eacutepico grego eacute neste sentido a criaccedilatildeo de uma poesia oral eacute um fato provado em detalhe e as provas oferecidas por Milman Parry satildeo de uma qualidade nem sempre encontrada nos estudos literaacuterios (traduccedilatildeo nossa)

26

A narrativa miacutetica como coloca Detienne50 comeccedila a fazer parte da tradiccedilatildeo oral no

momento em que ldquoexperimenta a prova da boca e do ouvidordquo Ela surge como produto da criaccedilatildeo

de um indiviacuteduo e pode se perpetuar Inspirado na distinccedilatildeo proposta por Leacutevi-Strauss Detienne

comenta a natureza da narrativa que pertence ao que se chama tradiccedilatildeo como tem sido nomeada

a poesia homeacuterica por Parry Os niacuteveis estruturados de memoralidade da histoacuteria podem ter

fundaccedilotildees comuns e dessa forma permaneceratildeo imutaacuteveis No entanto se os niacuteveis forem

probabilistas poderatildeo apresentar variaccedilotildees dependendo de como os narradores sucessivos vatildeo

acrescentando detalhes informaccedilotildees episoacutedios e portanto nesse continuum da transmissatildeo oral

uma histoacuteria enraizada na tradiccedilatildeo pode se tornar produtora de outras histoacuterias Como diz Leacutevi-

Strauss apud Detienne ldquoas obras individuais satildeo todas mitos em potencial mas eacute sua utilizaccedilatildeo

no modo coletivo que atualiza em cada caso seu mitismordquo51

Propotildee-se pois a partir daiacute uma abrangecircncia do aspecto cultural reconhecendo o miacutetico

nas culturas da palavra naquilo que ele enreda para construir seu esquema conceitual nas

diversidades de produccedilotildees que ele propotildee como expressatildeo de relatos de um tipo determinado

Dessa forma vecirc-se o mito como um gecircnero literaacuterio de manifestaccedilotildees da memoacuteria de uma

sociedade com suas crenccedilas e suas praacuteticas Eacute nesse cenaacuterio de riqueza cultural que os relatos

inesqueciacuteveis da sociedade grega de Hesiacuteodo e de Homero satildeo entendidos e revelam a

complexidade de uma religiatildeo politeiacutesta onde deuses imortais e outras potecircncias sobrenaturais

percorrem o mundo ao lado de indiviacuteduos mortais que convivem nesse mesmo mecanismo de

representaccedilotildees que o conhecimento miacutetico evoca

Mais uma vez verificamos que a anaacutelise da cultura enriquece os mitos e posiciona-os

possibilitando reconstruir e articular elementos dentro de uma visatildeo semacircntica sem reduzi-los

somente a algumas oposiccedilotildees ou apontar restriccedilotildees Oposiccedilotildees existem tambeacutem as diferenccedilas

mas elas satildeo consequumlecircncia de um conjunto mais amplo de um mecanismo complexo e quando

oposiccedilotildees e diferenccedilas forem evidenciadas no campo especiacutefico selecionado (das deusas

virgens) o propoacutesito eacute o de evidenciar aspectos que possam contribuir para situarem-se no

conjunto dessa anaacutelise combinatoacuteria apontando ou sugerindo novas relaccedilotildees interpretativas e

estabelecendo comparaccedilotildees ndash como parte da atitude investigatoacuteria que assumimos

50 DETIENNE Marcel Op cit 51 DETIENNE Marcel opcit p48

27

Nesse sentido a questatildeo do uso da oralidade e da escrita jaacute implica um aspecto

diferencial que tem sido amplamente investigado por antropoacutelogos que estudam e buscam o

entendimento dos nossos ldquoportos de origemrdquo como diz Detienne Assim sendo jaacute podemos

estabelecer uma primeira comparaccedilatildeo a mitologia surge a partir dos relatos escritos Antes o

que havia era o mito A mitologia eacute aquela que evoca a sociedade suas crenccedilas seu modus

faciendi traccedila enfim um mapa do tempo colocando o que se chama de ldquotradiccedilatildeo de uma eacutepocardquo

daquilo que se tem por verdadeiro

Embora seja do acircmbito da antropologia da sociologia e da linguumliacutestica pensar o fenocircmeno

da oralidade e da escrita foi Milman Parry segundo Ong52 o primeiro a dar um enfoque

decisivo nesse assunto

Foi ele quem apontou o contraste entre os modos de pensamento que subjazem a

expressatildeo oral e a produccedilatildeo escrita a partir de estudos literaacuterios tendo como corpus o texto da

Iliacuteada e o da Odisseacuteia A partir daiacute todos os autores de outras aacutereas tecircm sua obra como baacutesica

para o estudo que empreendem

Apesar de o nosso estudo natildeo privilegiar uma investigaccedilatildeo no que diz respeito aos

princiacutepios que norteiam o uso da escrita e o desenvolvimento da linguagem oral natildeo podemos

perder de vista que a forma de expressatildeo manifesta no corpus estaacute relacionada a essa

circunstacircncia Acabamos de verificar que o corpus selecionado por Milman Parry refere-se a

textos da eacutepoca arcaica grega e aponta a significacircncia desse fato Assim sendo o que se quer

ressaltar eacute que os textos escritos de alguma maneira direta ou indiretamente estatildeo relacionados

com os aspectos sonoros e com o contexto que a oralidade comprova para transmitir

significados

A fala como forma de expressatildeo e como maneira de manifestar o pensamento sempre

fascinou os estudos cientiacuteficos e provocou interesse nos pesquisadores de diversas aacutereas Por

isso como reflete Ong

En Ocidente entre los antiacuteguos griegos la fascinacioacuten se manifestoacute em la elaboracioacuten del arte minuciosamente elaborado y vasto de la retoacuterica la materia acadeacutemica mas completa de toda la cultura ocidental durante dos mil antildeos En el original griego techneacute rheacutetorikeacute ldquoarte de hablarrdquo (por lo comuacuten abreviado a solo rheacutetorikeacute) em esencia se referia al discurso oral aunque siendo un ldquoarterdquo o ciencia sistematizado o reflexivo ndash

52 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 p16

28

por ejemplo em el Arte Retoacuterica de Aristoacuteteles ndash la retoacuterica era y tuvo que ser un producto de la escritura53

Portanto a escritura jaacute veio como forma de representar a oralidade de se apoiar em seus

fundamentos e de organizar os componentes da linguagem calcados em princiacutepios do domiacutenio da

ciecircncia e da arte como no caso da retoacuterica Esse aspecto evidencia o uso dos relatos miacuteticos orais

que seguiam uma organizaccedilatildeo textual e a importacircncia do uso da linguagem oral nos estudos

sociais linguumliacutesticos e literaacuterios ou seja culturais

Ademais em se tratando da epopeacuteia podemos questionar como eacute possiacutevel mensurar

aquilo que ela traz em si dos textos que os rapsodos narravam pois conferindo o conceito em

grego Ong54 coloca que ldquorhapsoacuteidein lsquocantarrsquo en griego basicamente significa lsquocoser

cancionesrsquordquo Como reflete o autor citado o texto oral jaacute implica etimologicamente o conceito de

tecer Desta forma a base da poesia eacutepica eacute a oralidade

A poesia eacutepica evidencia pois um aspecto fundamental da construccedilatildeo e da fundaccedilatildeo do

que embasa o chatildeo grego pois eacute atraveacutes dela que os antropoacutelogos chegam a determinadas

constataccedilotildees que podem levar agrave compreensatildeo do ato de criar e do ato de viver na eacutepoca arcaica

A esse respeito diz Robert Aubreton

Eacute possiacutevel ainda ir mais longe e atraveacutes de Homero acompanhar toda a tradiccedilatildeo eacutepica Nascida durante o periacuteodo aqueu ndash o estudo histoacuterico no-lo provaraacute ndash e talvez filha da epopeacuteia cretense a epopeacuteia grega possuiacutea desde essa eacutepoca um jogo completo de foacutermulas que lhe eram proacuteprias que entraram na proacutepria tradiccedilatildeo do gecircnero

E mais

Atraveacutes de todas essas foacutermulas se revelava ao poeta todo um mundo antigo do qual ele conservaraacute a lembranccedila formas aqueacuteias eoacutelicas talvez se a tradiccedilatildeo eacutepica se tornara realmente essa com o correr dos tempos Mas o poeta Homero eacute um jocircnio puro e emprega as formas jocircnicas de seu tempo no meio dessa liacutengua herdada dum glorioso passado histoacuterico e literaacuterio55

Quanto a essa evidecircncia Ruigh56 eacute citado como um dos que acredita nos vestiacutegios de uma

traduccedilatildeo eacutepica micecircnica para depois se tornar eoacutelica e finalmente jocircnica

53 ONG WJ op citp 18-19 54 ONG WJ opcit p22 55 AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero 2ed Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1968 p90-91 56 RUIGHCJ apud AUBRETON opcit

29

Aubreton tambeacutem coloca que recuperando as caracteriacutesticas da poesia homeacuterica um fato

que deve ser levado em conta eacute a unidade real que a liacutengua homeacuterica manteacutem apesar de sua

formaccedilatildeo heterogecircnea

Os dados culturais satildeo pois de extrema relevacircncia no que diz respeito aos estudos

linguumliacutesticos e literaacuterios uma vez que interferem e direcionam o trabalho de traduccedilatildeo do corpus

selecionado

Outrossim os poemas homeacutericos e a Teogonia parecem ser um ponto de partida para o

entendimento do mundo dos deuses entre os gregos ou seja de sua religiatildeo Os deuses governam

o mundo subordinados a Zeus mas ao mesmo tempo conjuntamente com ele Cada um deles

tem atribuiccedilotildees determinadas Em relaccedilatildeo ao nosso objeto de estudo Afrodite eacute a deusa que

provoca o desejo conhecida hoje como a deusa do Amor Aacutertemis a deusa da caccedila deusa

virgem Atena deusa da astuacutecia ou seja deusa da guerra e da inteligecircncia tambeacutem virgem

Heacutestia a deusa do lar soliacutecita e virgem

Poreacutem embora essa possa ser uma classificaccedilatildeo geral o nosso enfoque metodoloacutegico

revela que natildeo pode haver uma rigidez nas funccedilotildees dos deuses Nos casos que nos interessam

por exemplo vecircem-se variaccedilotildees significativas quando se fazem analogias entre contextos

diferentes Assim embora Hera signifique a mulher de Zeus e por isso represente a fertilidade

em Eacutefeso Aacutertemis era reverenciada como deusa da fertilidade e ainda em outros lugares como

a deusa da lua misteriosa Atena a deusa guerreira dividia esse atributo com Ares tambeacutem deus

da guerra

Eacute justamente atraveacutes dos poetas que o mundo desses deuses ldquofala gregordquo isto eacute revela-se

com toda sua forccedila aos humanos revestindo-se mesmo na sua estranheza e na sua forma de

saber um jeito familiar conhecido que se cruza com as questotildees do mundo terrestre

Enfatizamos novamente a posiccedilatildeo de Vernant que privilegia o encruzamento soacutecio-religioso

nesse contexto entrelaccedilado

Se eacute cabiacutevel falar quanto agrave Greacutecia arcaica e claacutessica de ldquoreligiatildeo ciacutevicardquo eacute porque ali o religioso estaacute incluiacutedo no social e reciprocamente o social em todos os seus niacuteveis e na diversidade dos seus aspectos eacute penetrado de ponta a ponta pelo religioso57

57 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p7

30

Eacute a partir da constataccedilatildeo da integraccedilatildeo da religiatildeo com o social que os deuses comportam

diferentes dimensotildees Heacutestia tem o controle sobre a lareira de cada casa marca o centro fixo do

que se constitui como famiacutelia mas a mesma Heacutestia pode conjuntamente com Zeus exercer

controle sobre o que eacute considerada a Lareira comum da cidade

O que entatildeo nos perguntamos faz a originalidade das deusas virgens em relaccedilatildeo aos

outros deuses

Essa pergunta jaacute envolve pois um aspecto da especificidade que nossa investigaccedilatildeo

procura desvendar

Tem-se a impressatildeo a partir do que foi exposto de que os atributos dos deuses satildeo muito

menos precisos do que se pode supor e de que as funccedilotildees variam de acordo com os santuaacuterios

Haacute poreacutem uma marca comum invariaacutevel insistente em Aacutertemis Atena e Heacutestia a

virgindade

Embora alguns aspectos da concepccedilatildeo oliacutempica possam ser explicados agrave luz soacutecio-

histoacuterico-cultural como o caso de Zeus uma divindade masculina adaptado ao culto de um

povo guerreiro ideacuteia provavelmente introduzida pelos aqueus existe paralelamente a ideacuteia da

origem da criaccedilatildeo na Teogonia (v 117 e sgtes) onde a Terra (Gaia) parece ter ocupado lugar

privilegiado Assim a origem primeira daacute-se atraveacutes de uma divindade feminina relacionando

pois o conceito de vida e de fertilidade ao elemento feminino Do ponto de vista antropoloacutegico

essa posiccedilatildeo pertence agrave religiatildeo de povos sedentaacuterios de origem agriacutecola para quem sem

duacutevida a Terra eacute a fonte de toda a vida Parece pois uma atitude que fazia parte da Heacutelade da

eacutepoca dos egeus

Esse aspecto cultural eacute um dado que natildeo pode ser deixado de lado quando se reportam

aos epiacutetetos das deusas virgens e de outras naturalmente Alguns atributos podem estar

vinculados a vestiacutegios que a memoacuteria guardou e repetiu de eacutepocas anteriores e que refletem

aspectos de divindades zoomoacuterficas preacute-helecircnicas Exemplificamos com um epiacuteteto recorrente a

Atena glaucoacutepida ou de olhos glaucos

Em geral os dicionaacuterios definem esse termo relacionando-o ao brilho e agrave cor Em nossas

traduccedilotildees (verificamos que o mesmo se daacute em Torrano58) procuramos manter o uso de olhos

glaucos deixando a interpretaccedilatildeo final por conta do leitor porque o termo tambeacutem pode indicar

58 HESIacuteODO Op cit v888

31

ldquoolhos de corujardquo de acordo com alguns estudiosos do politeiacutesmo helecircnico estando dessa

forma referindo-se a uma divindade que teria um significado zoomoacuterfico

As interpretaccedilotildees revelam o movimento por que as culturas passam em um processo

contiacutenuo de construccedilatildeo de seu solo de seu saber de seu espaccedilo como naccedilatildeo constituiacuteda Assim

embora vinculadas agraves anteriores as concepccedilotildees vatildeo se transformando e quando os aqueus se

misturaram aos povos preacute-helecircnicos houve uma adaptaccedilatildeo no modus vivendi um consenso

reciacuteproco uma acomodaccedilatildeo que prevecirc concessotildees reciacuteprocas Essa adoccedilatildeo e recepccedilatildeo entre os

povos interferem tambeacutem no campo religioso e alguns deuses satildeo adotados outros confundidos

e outros ainda instalados Haacute tambeacutem aquelas divindades que perdem o caraacuteter sagrado Eacute assim

que algumas vezes surgem os heroacuteis Essa conjunccedilatildeo de tradiccedilotildees vai colocando camadas no

que se constitui o solo grego

Como jaacute anunciou a antropologia de linha estruturalista um fato que natildeo se pode ignorar

eacute que as culturas surgiram a partir de diversas comunidades que se acumularam no meio da

mesma espeacutecie por consentimento ou por alguma forma de negociaccedilatildeo produzindo conjuntos

distintos convencionais na organizaccedilatildeo do comportamento e na atribuiccedilatildeo de significados agraves

accedilotildees

Satildeo os traccedilos dessa evoluccedilatildeo cultural que a poesia eacutepica evidencia Por isso quando se

referem agraves deusas virgens os hinos homeacutericos ressaltam epiacutetetos das deusas que de alguma

forma estatildeo relacionados agrave conciliaccedilatildeo entre cultos e deuses Como jaacute se mencionou

anteriormente ao caso de Atena combinada com deuses zoomoacuterficos tambeacutem a mesma Atena

possui outros epiacutetetos que podem estar relacionados a outras divindades preacute-helecircnicas Como

explicar o epiacuteteto Tritogecircnia a ela atribuiacutedo e Atena Tritocircnia Levantam-se hipoacuteteses para esses

epiacutetetos relacionando-os a cultos e lugares onde a deusa era venerada mas os significados

podem ser interpretados de formas variadas

Essas suposiccedilotildees que vatildeo sendo levantadas fazem repensar a linha antropoloacutegica que

escolhemos para o nosso trabalho por isso eacute necessaacuterio apontar para uma consciecircncia sobre as

diferenccedilas humanas no mundo e como ela se articula jaacute que cada cultura eacute vista na sua

singularidade em uma determinada eacutepoca como ressaltamos no iniacutecio do capiacutetulo Poreacutem vale

lembrar que uma linha antropoloacutegica interpretativa volta-se para interpretaccedilotildees provisoacuterias e

parciais e mostra que seu principal objeto de estudo eacute a etnografia o que nos faz debruccedilar sobre

32

o homem e os textos culturais que ele produz Foi com esse pensamento que na nossa

Introduccedilatildeo tentamos apontar aspectos do mundo grego que nos fizessem entender a concepccedilatildeo

que tinham de seus deuses do cosmo a relaccedilatildeo dos homens com esses deuses e com o cosmo e

possivelmente procurar interpretar o atributo ou conceito ou valor eacutetico imposto pela

memorabilidade da virgindade De qualquer forma natildeo podemos deixar de concordar com

Crapanzano e Clifford59 que afirmam ldquoa parcialidade da verdade na antropologia e o caraacuteter de

ficccedilatildeo das etnografias construiacutedasrdquo

Eacute sobre a questatildeo do texto literaacuterio o corpus que escolhemos para investigaccedilatildeo que

queremos fazer alguns apontamentos

Quanto aos textos de Homero a Iliacuteada a Odisseacuteia e quanto aos textos de rapsodos que

compuseram os Hinos Homeacutericos haacute algumas interpretaccedilotildees pertinentes ndash de acordo com nosso

entendimento ndash sobre deles Uma dessas interpretaccedilotildees diz respeito a uma posiccedilatildeo eleita por

Homero isto eacute colocar uma divindade absoluta sobre as outras Zeus senhor do Olimpo sem

revelar tendecircncias sobre deuses ligados a esta ou agravequela cidade Isso denota uma imparcialidade

em Homero pois natildeo toma partido em relaccedilatildeo a um deus especiacutefico de uma cidade aleacutem de

mostrar vestiacutegios de deuses de outras raccedilas dos aqueus e dos egeus bem como de deuses

remanescentes de um periacuteodo preacute-helecircnico sem privilegiar apenas um ligado a uma poacutelis

Portanto os textos homeacutericos dissimulam a questatildeo do culto das divindades locais Seraacute que esse

aspecto revela uma tendecircncia ideoloacutegica Ateacute que ponto quer-se representar uma casta guerreira

fiel agrave organizaccedilatildeo aqueacuteia enaltecendo as estrateacutegias de combate e as narrativas de conflito

Um outro ponto aqui eacute que vale pensar um aspecto do corpus que ressaltamos a

virgindade das deusas pois em Homero eacute inegaacutevel os deuses imortais tambeacutem satildeo

humanizados em suas relaccedilotildees em suas funccedilotildees em seus sentimentos Os deuses participam

tanto das cenas militares quanto das familiares daquelas que fazem parte da vida de todos os

dias Assim a deusa guerreira que faz parte dos combates eacute virgem a deusa que estaacute presente

em cada lar zelando pela famiacutelia eacute virgem a deusa que cuida dos campos e dos animais e que

protege os partos e os adolescentes eacute virgem Pode-se questionar se Atena Heacutestia e Aacutertemis

possuem uma caracteriacutestica que faz parte apenas do feminino Parece-nos que as lendas natildeo

59 CRAPANZANO e CLIFFORD apud JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004 p47

33

mencionam guerreiros deuses e heroacuteis virgens Parece-nos que quando o teatro propocircs Hipoacutelito

dedicado agrave virgem Aacutertemis a deusa do Amor (Afrodite) vingou-se dele Assim estaria a

virgindade grega reservada e aceita soacute para o feminino A relaccedilatildeo pai-filha em Homero eacute dotada

de humanidade que fundamenta o coraccedilatildeo paterno A Iliacuteada mostra um Zeus (canto VIII)

cedendo agraves teimosias de Atena e mimando-a Caracteriacutesticas da fraqueza humana do pai Zeus

Afinal a mitologia narra essa filha nascida da proacutepria cabeccedila do pai armada e cheia do dom da

inteligecircncia e digna de um poder que faz parte de seu caraacuteter haja vista sua origem

Eis como Homero se aproveita da mitologia para que participe da sua saga guerreira

divina e humana

O texto de Homero faz suceder narrativas de cerimocircnias fuacutenebres tristes a episoacutedios

quase liacutericos Teraacute aiacute tambeacutem esse Homero eacutepico momentos de um lirismo cheio de frescor

pintando episoacutedios da vida entre o alegre e o triste Entre o cocircmico e o funesto

Mesmo nos Hinos sacros Homero lhes imprime um colorido humano Recupera os laccedilos

familiares e descreve cenas quase burlescas quando se reporta a Aacutertemis a irmatilde querida de

Apolo dando de beber aos cavalos Ele cita detalhes do cotidiano necessaacuterios que fazem parte

da vida humana

Descreve a mulher que atrai o erotismo exalando da espuma do mar da qual brota

Afrodite sempre desejaacutevel atraente que subjuga mortais e imortais ateacute o proacuteprio Zeus

Ningueacutem consegue domar essa forccedila desejante Soacute as deusas virgens

No canto a Atena destaca o seu poder que como jaacute foi dito eacute herdado do proacuteprio pai

Como guerreira estaacute envolvida em atos beacutelicos mas tambeacutem eacute protetora dos combatentes e zela

por eles

Os textos de Homero vatildeo pois aleacutem das lendas e dos testemunhos histoacutericos na sua

forma de tecer a poesia eacutepica Desse modo a sequumlecircncia temporal da sua narrativa natildeo importa

O que interessa eacute perceber que quando Homero tece a sua narraccedilatildeo ndash e aproveitamo-nos

aqui de um filatildeo da antropologia marxista ndash surgem vaacuterios sistemas cognitivos nesse mesmo

meio resultantes de reaccedilotildees agraves variadas condiccedilotildees materiais

Assim reforccedilamos a ideacuteia de que o mito narra as condiccedilotildees significativas das relaccedilotildees

sociais Essas relaccedilotildees podem sofrer transformaccedilotildees alterando todas as formas de significar de

um sistema social

34

Nesse aspecto as narrativas homeacutericas bem como os hinos homeacutericos reportam-se a

recursos naturais como quando apresentam caracteriacutesticas geograacuteficas relacionadas de algum

modo a uma forma de produccedilatildeo e a determinados tipos de atividades que revelam o

comportamento dos habitantes atraveacutes de seus deuses e de seus heroacuteis Mas ao mesmo tempo

em que essa constataccedilatildeo direciona para um conceito de produccedilatildeo ressaltado pela teoria marxista

quando Homero e outros autores teceram suas narrativas a transparecircncia de caracterizar um

discurso atraveacutes da escrita jaacute se perdeu Entatildeo como coloca Geertz60 tambeacutem quando o

observador interpreta significados quando a interpretaccedilatildeo se dirige a um povo construir

descriccedilotildees e significaccedilotildees sobre esse povo natildeo eacute muito diferente de construir uma obra de ficccedilatildeo

Como ele diz ldquonatildeo existe uma torre de marfimrdquo o que existe eacute a poliacutetica do escritor Dessa

forma uma anaacutelise etnograacutefica comparativa eacute constituiacuteda por quem a escreve

Assim de todo nosso percurso pelas deusas gregas virgens e pela virgindade enquanto

conceito atraveacutes do tempo pode-se dizer como Geertz natildeo eacute ldquomuito diferente de construir

romances sobre a vida na Franccedila rural do seacuteculo XIXrdquo61

De qualquer forma poreacutem os gregos da eacutepoca arcaica existiram independentemente do

que se conjeture sobre eles Do mesmo modo os textos de Homero e de Hesiacuteodo existem como

referecircncia ao nosso proacuteprio discurso sobre os gregos e sobre a Mitologia

Um ponto relevante de se considerar eacute a questatildeo levantada por Foucault62 de que um

estudo sobre o humano revela aspectos que se entrecruzam e se emaranham especificando o que

diz respeito aos homens agrave consciecircncia agrave origem e ao sujeito Isso como diz o mesmo Foucault

nos permite definir um espaccedilo para o qual se aponta apesar de o nosso discurso ser ldquoprecaacuterio e

incertordquo

Assim em se estabelecendo comparaccedilotildees no que diz respeito ao modo de narrar de

Homero e de Hesiacuteodo como jaacute foi dito Homero humaniza o divino Coloca lado a lado deuses

e homens emparelhando-os nos sentimentos e nas accedilotildees Hesiacuteodo ao contraacuterio propotildee uma

composiccedilatildeo que privilegia a experiecircncia sagrada como uma forma de narrar a concepccedilatildeo do

mundo arcaico O uso das foacutermulas e de expressotildees retornantes como marca da oralidade e da

linhagem dos deuses apresenta tambeacutem como a narrativa de Homero a justaposiccedilatildeo temporal 60 GEERTZ apud LAYTON Op cit p 277 61 GEERTZ apud LAYTONIdem p 277-278 62 FOUCAULT Michel A arqueologia do Saber 5ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977 p19

35

mostrando-se indiferente a uma cronologia estruturada O tempo se move como se move a Terra

em um fluir constante No entanto um aspecto determinante em sua obra eacute a forma como a

descriccedilatildeo da origem das linhagens se articula pelo

poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute conferido pela Memoacuteria (Musas)63

Tambeacutem em seus Hinos Homeacutericos Homero lanccedila matildeo do recurso de invocar o poder

das Musas e de ressaltar a importacircncia do canto que possibilita ao homem transcender suas

fronteiras geograacuteficas e terrenas e entrar em contato com o que o canto promove o mundo

audiacutevel dos sons que transporta e o mundo invisiacutevel das formas presentes Esse movimento de

entrar em contato com o mundo gera a experiecircncia divina

Hesiacuteodo aleacutem das concepccedilotildees da linguagem do tempo e do Ser enfatiza ndash e talvez

mesmo centralize ndash a concepccedilatildeo de Memoacuteria na descriccedilatildeo dos extensos cataacutelogos que como

coloca Torrano ldquose oferecem como um espetacular jogo mnemocircnicordquo64

Isso nos coloca frente a um conceito que para entendecirc-lo fez-nos procurar o lado oposto

a arte de esquecer Eacute assim que Weinrich65 inaugura sua discussatildeo sobre a memoacuteria reportando a

ceacutelebre histoacuteria de Simocircnides poeta grego que viveu por volta de 500 aC que ajudou a

identificar os mortos em uma sala cujo teto desabara apoacutes sua saiacuteda O recurso da memoacuteria

espacial teria sido o primeiro exemplo de uso de teacutecnica mnemocircnica Assim a morte suacutebita dos

ocupantes da sala estaria revelando ldquouma ameaccediladora cataacutestrofe do esquecimentordquo que

ldquotransforma o lembrar num problemardquo Portanto desde os poetas gregos ao ldquocantaremrdquo as

tradiccedilotildees a memoacuteria tem um lugar principal pois que o esquecimento apagaria os vestiacutegios de

uma histoacuteria Sem a arte das Musas e sem a voz poderosa da memoacuteria como poderia Hesiacuteodo

narrar a origem dos deuses que eacute a origem do proacuteprio cosmo Sem o poder da memoacuteria como

poderia Homero honrar os deuses reverenciando-os em suas caracteriacutesticas peculiares e narrar

assombrosas faccedilanhas que eram ditas da boca ao ouvido dos homens de seu tempo

O grande feito desses autoresndashaedos foi exatamente o de transformar a ldquomemoacuteriardquo em

fatos concretos no audiacutevel e no visiacutevel Aleacutem dos sons agora a imagem das cenas se

63 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos DeusesEstudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p16 64 HESIacuteODO Op cit p16 65 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 p30

36

representava nos caracteres escritos e tomava forma O que tentamos dizer de maneira trocircpega

Weinrich coloca de forma clara e concisa

O artista da memoacuteria que segue o exemplo de Simocircnides percebe em primeiro lugar para seus fins ndash no caso da retoacuterica isso eacute sempre a fala puacuteblica ndash uma constelaccedilatildeo fixa de ldquolugaresrdquo (em grego topoi latim loci) bem familiares sua residecircncia ou o foacuterum Nesses locais ele testemunha em sequecircncia ordenada os conteuacutedos isolados da memoacuteria depois de primeiro os ter transformado em ldquoimagensrdquo (grego phantasmata latim imaginatio)66

Mas ao lado da memoacuteria que promove imagens criadoras a criaccedilatildeo tambeacutem pode ser

aniquilada nas ldquoaacuteguas do esquecimentordquo Eacute assim que os gregos ndash e a Teogonia67 ndash apontam para

essa genealogia colocam Lete (ΛήӨην) filha da noite (Νүҳ) e de Eacuteris (Discoacuterdia em latim) como

o rio do Hades que permite que os mortos se esqueccedilam de suas lembranccedilas Esse campo de

significaccedilotildees do mundo grego parece conter comparaccedilotildees e contrastes para entender aspectos

inerentes ao humano Assim eles jaacute se baseavam em uma antropologia comparativa em suas

interpretaccedilotildees a arte de esquecer se emparelhava agrave arte de lembrar Em Weinrich68 encontramos

a menccedilatildeo de que Pausacircnias cita uma fonte do Lete na Boeacutecia ao lado da qual havia uma fonte de

Mnemosyne

Nos Hinos Homeacutericos69 o(s) autor(es) dirige-se (no caso de nossa pesquisa) agraves deusas

Aacutertemis Atena e Heacutestia comparando-as e colocando-as com outros deuses Assim quando se

reporta a Aacutertemis ldquoa que atira flechasrdquo menciona seu irmatildeo Apolo tambeacutem ele um ldquodeus que

atira flechasrdquo cujos atributos tecircm pontos semelhantes haja dada sua criaccedilatildeo Quando reverencia

Atena ldquoa deusa da inteligecircncia da astuacutecia (Meacutetis) aquela que participa dos atos beacutelicosrdquo coloca

ao seu lado Ares ldquoo deus que tambeacutem se ocupa da guerrardquo Em relaccedilatildeo a Heacutestia ldquoa deusa da

lareira dos lares e da pira das cidadesrdquo ldquoprotetora da famiacutelia e da polisrdquo une-a a Hermes no seu

movimento de ldquoajudar os homens doador de bens protetor dos caminhos e mensageiro dos

deusesrdquo

Nesse processo de contraste Homero e Hesiacuteodo ressaltaram o esquecimento (Lete filha

da noite escura) e a memoacuteria cujas filhas foram as musas inspiradoras Como coloca Torrano70

66 WEINRICH idem p31 67 HESIacuteODO Opcit p 117118 vs 225-232 68 WEINRICH Opcit p21 69 HESIOD THE HOMERIC HYMNS AND HOMERICA Translated by H G Evelyn-White LOEB Classical Librars 1982 70 HESIacuteODO Opcit p 70

37

a memoacuteria eacute ldquoa mais vigorosa negaccedilatildeo do Esquecimento em que se daacute o Natildeo-Serrdquo A memoacuteria

tem pois nesse sentido uma significaccedilatildeo de presentificar o Ser Isso revela um entendimento

inerente da memoacuteria que nomeia e situa o Ser que o coloca como sujeito da sua histoacuteria e da

Histoacuteria como parte de uma trajetoacuteria O proacuteprio tempo soacute teraacute significaccedilatildeo se fizer parte do

contexto da memoacuteria

Homero explicita claramente essa relaccedilatildeo entre o Ser e o Natildeo-Ser entre o Esquecimento

e a Memoacuteria na Odisseacuteia As drogas (os ρһаґmаkοn no Canto IX) e as artimanhas do amor

(Περικаλλέοs ευνές a cama esplecircndida referindo-se ao seu envolvimento com Circe no Canto X

e com Calipso v 450 451 por exemplo no canto XI quando narra ter sido recebido na cama e

ter tido os cuidados da ninfa em Ogiacutegia onde a deusa vive) interromperam por uns tempos o

propoacutesito de Odisseu retardando seu retorno agrave cidade e a casa uma vez que estivera sob o

comando do esquecimento Esse pertence ao paiacutes dos mortos e natildeo dos vivos como se entende

na narrativa homeacuterica Quando Odisseu volta a Ser quando chega a Iacutetaca sem reconhececirc-la

sentindo-se desolado clamando aos deuses eacute acolhido por Palas Atena que lhe descreve a terra

falando de seu solo feacutertil e de sua produccedilatildeo Entatildeo tendo sido recebido pela protetora de Atenas

Odisseu se recompotildee Estaacute pleno da memoacuteria As condiccedilotildees que levam Odisseu a esse estado de

ficar no esquecimento ou de fazer uso da memoacuteria indicam um estado representativo do Ser

quando o homem se coloca em um conflito entre mergulhar em um espiacuterito de aventura eliminar

o passado e atirar-se no mundo imaginaacuterio e manter-se preso agrave realidade ao mundo conhecido

do qual faz parte O personagem conhece pois um drama de foro iacutentimo que faz parte do

humano enquanto Ser mortal

Assim a epopeacuteia exprime alguns desejos inerentes ao humano no que concerne

sentimentos estados e fantasias Limites que ficam entre o real e o imaginaacuterio e revelam

essencialmente o ideal do homem comum de sua vida no campo no mar no poacutelis combinando

o maravilhoso o misterioso e o sagrado enfim tudo o que pode encantar e ser reconhecido por

esse mesmo homem Cabe ao cantor ao poeta reconstruir e relembrar os gestos que fazem parte

do mundo

Queremos dizer em outras palavras que a obra desses dois grandes gregos Homero e

Hesiacuteodo cobrem todos os aspectos da vida humana Jaacute nos referimos agraves recorrecircncias do Tempo e

do Ser jaacute mencionamos os recursos linguumliacutesticos referentes agrave escrita e agrave oralidade jaacute expusemos

38

o que o mytho pode revelar no contexto arcaico e como se enreda com a questatildeo da tradiccedilatildeo

miacutetica jaacute apontamos para o embrenhamento do social e do religioso jaacute falamos de algumas

caracteriacutesticas pertinentes das obras desses autores e jaacute indicamos nossa indagaccedilatildeo frente ao

objeto de estudo as deusas gregas virgens figuras recorrentes nessas obras citadas aleacutem de suas

representaccedilotildees em estaacutetuas e outras iconografias da eacutepoca bem como sua indicaccedilatildeo nas obras de

Heroacutedoto de Pausacircnias e de outros autores que se referiram agravequela eacutepoca E aiacute encontramos um

aspecto que foi colocado pelos poetas na sua acepccedilatildeo do humano a questatildeo de gecircnero

O feminino e o masculino envolvidos nos laccedilos dos desejos carnais a cama como

siacutembolo de amor uma forma de expressar a sexualidade A virgindade feminina representando

trecircs deusas que natildeo se subjugam agraves questotildees de Afrodite isto eacute ao hiacutemeros a forccedila desejante

que como vimos em Homero leva ao esquecimento e faz com que o homem perca seu rumo

desvie-se de sua rota retarde sua trajetoacuteria A virgindade colocada no feminino e no sagrado em

um mundo com tantos episoacutedios de relacionamentos desejantes com tantas lendas de traiccedilotildees ndash

se eacute que assim podemos chamaacute-las ndash e de procriaccedilatildeo revela uma particularidade a mais nesse

mundo grego a ser investigado e re-examinado Por que perguntamos Aacutertemis Atena e Heacutestia

se opunham de forma obstinada ao ldquoardor amorosordquo O que viam de incocircmodo na manifestaccedilatildeo

da sexualidade Ou melhor o que viam na virgindade

Do ponto de vista psicanaliacutetico (longe de noacutes a atitude de querermos colocar essas figuras

divinas no divatilde) o feminino sempre foi um ldquoembaraccedilordquo para os estudiosos da mente e do

comportamento humanos Conhece-se a famosa indagaccedilatildeo de Freud ldquowas will das weibrdquo71

Vaacuterios autores tentaram explicar justificar e mesmo responder essa indagaccedilatildeo freudiana Grant

em seu artigo sobre a feminilidade reporta-se ao fato de que a literatura analiacutetica ldquonatildeo paacutera de

mostrar que as consideraccedilotildees anatocircmicas natildeo satildeo iacutendices para falar da diferenccedila de identidade

sexual entre homens e mulheresrdquo72

De fato o que marca a sexualidade eacute algo que vai aleacutem da materialidade do corpo Por

isso colocou-se em paacuteginas anteriores a discussatildeo que propotildee a indicaccedilatildeo e a especificaccedilatildeo de

funccedilotildees em alguns momentos em que se reflete sobre aspectos sociais Reproduzindo as palavras

de Grant temos 71 O que quer uma mulher 72 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009

39

O fator preponderante que determinaraacute a questatildeo da diferenccedila sexual seraacute o resultado de uma leitura do corpo marcado por um oacutergatildeo sexual a que uma famiacutelia e um determinado sujeito em certas condiccedilotildees sociais podem proceder73

Grant indica pois que o oacutergatildeo sexual de um sujeito eacute representado pelo significante o

que vale dizer que a sociedade determina conceitos e valores ao masculino e ao feminino

Aleacutem dessa complexa problemaacutetica feminina Freud tambeacutem tentou enfocar e entender a

importacircncia das figuras materna e paterna no desenvolvimento da feminilidade e de alguma

forma a conclusatildeo eacute de que a figura predominante eacute a figura materna Entatildeo perguntamos como

pensar a feminilidade em Atena privada que foi da figura materna Ateacute seu nascimento deu-se

na representaccedilatildeo do masculino tendo ela nascido da cabeccedila do pai Como os antigos gregos

entendiam essa sua mitologia que colocava uma deusa cuja condiccedilatildeo de existecircncia cria um noacute

inarredaacutevel em relaccedilatildeo agrave figura da matildee

Aleacutem do mais Freud tentou responder o enigma da questatildeo que ele mesmo se havia

colocado e propocircs como soluccedilatildeo que ser mulher eacute ser matildee ou em outras palavras ter um filho

significa ter um falo

Apesar de as deusas virgens natildeo terem tido filhos natildeo podemos dizer que esse eacute um forte

argumento contra a feminilidade delas pois muitas outras mulheres inclusive em nosso mundo

contemporacircneo optam por natildeo terem filhos o que natildeo lhes nega a feminilidade

Aleacutem disso ainda um aspecto interessante apresentado por Riviegravere74 eacute que muitas

mulheres que preenchem caracteriacutesticas plenas ocupadas pelo feminino podem estar recorrendo a

maacutescaras de feminilidade revestindo-se apenas de suas aparecircncias As deusas virgens assumiram

sua virgindade sem constrangimento o que lhes confere o epiacuteteto de ldquoparthenosrdquo Portanto natildeo

foram mascaradas como diz Riviegravere a respeito das ldquomulheres-homensrdquo

Assim apesar de muitas especulaccedilotildees natildeo se esclarece muito o conflito que o feminino

pode evocar Ao lado de Freud que queria saber o que eacute uma mulher a nossa indagaccedilatildeo se volta

para o que eacute uma virgem

Talvez a resposta esteja dentro da proacutepria mitologia o que estaacute em jogo eacute a natureza de

todo e qualquer desejo (hiacutemeros) daiacute a importacircncia de Afrodite e de Eros ao longo da histoacuteria da

73 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 74 RIVIEgraveRE apud GRANT Op cit

40

humanidade Alem disso o amor e o desejo se inserem em um registro maior do Ser o da

propriedade privada o que vale dizer que haacute uma propriedade inviolaacutevel no espaccedilo social que eacute

o proacuteprio corpo Isso significa que apesar de as diferenccedilas anatocircmicas natildeo serem relevantes para

a constituiccedilatildeo do masculino e do feminino elas determinam uma significaccedilatildeo social e

ideoloacutegica uma vez que o corpo ao longo da Histoacuteria tem sido usado como mercadoria em um

sistema de trocas

As deusas virgens estavam cientes dessa inviolabilidade e sua privacidade subjetiva

inscrevia-se no discurso miacutetico

Frente a Afrodite ceder ao desejo e ser tomado por ele implicaria a Aacutertemis a Atena e a

Heacutestia ver transformado o valor de uso do seu gozo em valor de troca de desejo Por isso a

afirmaccedilatildeo da virgindade e o pedido ao pai (Zeus) para que pudessem manter esse caraacuteter de

castidade que caracteriza a intimidade subjetiva dessas deusas A autorizaccedilatildeo preacutevia ao outro (ao

pai) se imporia a elas para que pudessem usufruir do seu corpo sem o que esse corpo se

transformaria em valor de uso para o gozo de outro e portanto na posse interditada do que eacute

considerado ser intransferiacutevel Essa opccedilatildeo concretiza-se pois em um gesto com um sentido

simboacutelico evidente de registrar a subjetividade Poreacutem nossa proposta eacute de examinar cada uma

das deusas virgens comparando-as e interpretando caracteriacutesticas que julgamos amplas e que soacute

o contexto cultural nessa teia toda pode exprimir Aleacutem disso no processo de compreensatildeo da

virgindade ndash da mesma forma que memoacuteria e esquecimento se complementam ndash natildeo podemos

deixar de discutir o desejo enfocando a deusa do ldquoAmorrdquo e sua representaccedilatildeo para o

entendimento desse conceito no cosmo no que diz respeito a deuses e homens

Quando colocamos que essa posiccedilatildeo de destaque das deusas se daacute atraveacutes de um gesto

estamos interpretando o conteuacutedo ritualiacutestico que essa posiccedilatildeo comemora O rito de passagem

que se opera eacute singular e pleno de significaccedilatildeo As deusas em questatildeo romperam com uma

situaccedilatildeo codificada pelos valores culturais

Com efeito nas formas instituiacutedas do masculino ndash mortal ou imortal ndash e do feminino ndash

mortal ou imortal ndash na tradiccedilatildeo do Ocidente previam-se as relaccedilotildees de trocas entre os sexos

previam-se os rituais de iniciaccedilatildeo para o casamento previa-se a constituiccedilatildeo da famiacutelia previa-

se a procriaccedilatildeo previa-se a forccedila do desejo Nesse gesto de mudanccedila de posiccedilatildeo do feminino

condensa-se a virgindade Estaacute assim instituiacutedo o registro simboacutelico em que a palavra natildeo

41

consegue dar conta e torna-se insuficiente A abrangecircncia cultural e o aspecto do Ser

transcendem a substacircncia do conceito da virgindade A virgindade entre as mulheres (mortais)

passa a ser instaurada e aceita atraveacutes da atitude e da representaccedilatildeo simboacutelica das deusas

(sagradas) O ser humano comum espelha-se e exemplifica-se no divino Constituem-se

diferentes formas de significar

Discutiremos em outro capiacutetulo que como se isso natildeo bastasse ainda podemos descobrir

outros valores nesse gesto distinguindo cada uma dessas deusas na sua individualidade Isso

implica pois nuances e enfoques diferentes na forma de representaccedilatildeo que a virgindade assume

no sujeito E como o discurso freudiano atesta a sexualidade natildeo tem um sentido uniacutevoco mas

uma multiplicidade de significados Sobre essa situaccedilatildeo diz Birman

O sexual seria marcado pela polissemia natildeo podendo pois enquanto palavra e conceito ser reduzido a um campo restrito de referentes Assim a noccedilatildeo de complexidade perpassa o conceito de sexualidade estando entatildeo a dita polissemia inequivocamente articulada ao atributo da complexidade75

O caso da virgindade se a considerarmos como parte da sexualidade nos faz pensar que

ela eacute desalojada do plano comportamental e se aproxima mais da experiecircncia do senso comum

como pode ser compreendido nos registros do discurso do imaginaacuterio social Esse fato nos

permite concluir que natildeo podemos estabelecer normas e nos permite tambeacutem concordar com

Freud

Se bem que eacute oacutebvio o discurso poeacutetico natildeo seja exatamente o do senso comum pode-se dizer que aquele estaacute mais proacuteximo do imaginaacuterio popular do que o cientiacutefico76

Natildeo podemos deixar de reconhecer que os mitos e o discurso poeacutetico satildeo criaccedilotildees do

humano o que revela que foram as experiecircncias dos indiviacuteduos que forneceram elementos para

as epopeacuteias que falam de deusas e deusas de heroacuteis e de pessoas comuns de guerras e de

conflitos passionais

A complexidade a que se refere Birman (acima citado) encaminha a hipoacuteteses

inquietantes pois tambeacutem a representaccedilatildeo da virgindade pode estar vinculada a fatores que satildeo

indecifraacuteveis nesse campo elaacutestico da sexualidade Uma colocaccedilatildeo feita por Birman parece

oferecer um resumo sinteacutetico de uma questatildeo tatildeo ampla e profunda

75 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 p17 76 BIRMAN Joel idem p21

42

Com efeito a sexualidade se inscreve na fantasia antes de mais nada Esse eacute o campo por excelecircncia do erotismo Natildeo existiria pois sexualidade sem fantasia sendo essa sua mateacuteria-prima Seria entatildeo a partir da fantasia como fundamento que a sexualidade poderia assumir formas comportamentais diversificadas O comportamento seria pois o elo final de uma longa cadeia de relaccedilotildees que se inscreveriam primordialmente na fantasia do sujeito O sexo seria portanto um efeito distante do sexual por mais paradoxal que possa parecer essa afirmaccedilatildeo Em contrapartida se existe algo de enigmaacutetico e de obscuro no erotismo a fantasia seria o lugar crucial para o deciframento desse enigma e de iluminaccedilatildeo dessa obscuridade77

Esse enfoque na fantasia pode revelar que de algum modo a sexualidade se materializa

no registro do corpo Embora essa constataccedilatildeo pareccedila ser antagocircnica o que ocorre eacute que natildeo

existiria oposiccedilatildeo entre a fantasia e o corporal ou em outras palavras a sexualidade soacute pode ser

entendida se forem consideradas as forccedilas pulsionais

Eacute interessante pensar que na nossa constataccedilatildeo do mundo grego a incorporaccedilatildeo dos

valores existentes no imaginaacuterio da eacutepoca arcaica parecia identificar tanto o masculino quanto o

feminino com atributos de atividade no que diz respeito agraves deusas virgens Isso parece

evidenciar um consenso social entre os gregos Se Zeus era um deus ativo natildeo menos que ele era

Afrodite no terreno da sexualidade A seduccedilatildeo provocada por Afrodite foi positivamente

qualificada pois ela inscrevia no sujeito o desejo que eacute a marca insofismaacutevel do seu Ser

A questatildeo do desejo foi amplamente discutida por filoacutesofos e revela desde Platatildeo o que

Freud chamou de desamparo e Lacan de falta Em Platatildeo jaacute se encontra essa acepccedilatildeo de que o

desejo implica sempre a incompletude ou seja o sujeito desejante Por isso encontra-se em

Platatildeo como coloca Dumoulieacute78 que o ldquoo que anima o amor o que faz Eros viver eacute o desejo e o

desejo eacute carecircncia eacute faltardquo

O que interessa pois para entender o conceito de desejo eacute o que fundamenta o

pensamento grego E para os gregos da eacutepoca arcaica a relaccedilatildeo do homem com o Ser implicava

jaacute em si uma relaccedilatildeo de desejo Assim Afrodite se afirmava como eterna nesse movimento

coacutesmico de afirmar o desejo como princiacutepio fundador da eternidade do mundo Na Greacutecia cabia

aos mortais manter as tradiccedilotildees inauguradas pelos deuses e como ldquoguardiatildees da memoacuteriardquo

renovar as tradiccedilotildees atraveacutes dos ritos e dos relatos orais e escritos Por isso os aedos inspirados

pelo poder das musas podiam contar as faccedilanhas dos deuses e dos homens de forma que elas

passassem a pertencer ao visiacutevel e pudessem revelar a forccedila desejante do Ser

77 BIRMAN Joel opcit p62 78 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 p25

43

4 - O QUE Eacute TRADUZIR lsquoHOMEROrsquo TENTATIVAS E RISCOS

Assim eacute que a felicidade de um povo corta as asas a seu verso oferece escassa mateacuteria para admiraccedilatildeo e piedade E ainda que o prazer originado do gosto pelas espeacutecies sublimes de escrita possa fazer Vossa Senhoria lamentar o silecircncio das Musas estou persuadido de que vos ireis juntar a mim nos votos de que jamais possamos ser tema apropriado de um poema heroacuteico79

Como ldquoserrdquo um Homero grego em portuguecircs Ou um Hesiacuteodo Ou um rapsodo O

absurdo da indagaccedilatildeo jaacute leva a uma constataccedilatildeo oacutebvia da resposta

Citando um trecho das reflexotildees de Detienne temos que

a liacutengua veicula noccedilotildees o vocabulaacuterio eacute mais um sistema conceitual do que um leacutexico e as noccedilotildees linguumliacutesticas remetem agraves instituiccedilotildees isto eacute a esquemas diretores presentes nas teacutecnicas nos modos de vida nas relaccedilotildees sociais nos processos da palavra e do pensamento80

Se por um lado isso revela a impossibilidade da exatidatildeo em qualquer traduccedilatildeo por

mais teacutecnica e detalhada que ela seja por outro lado revela o desejo do pesquisador de se

aproximar de um estudo etnograacutefico bisbilhotando os textos no original descobrindo indicaccedilotildees

que o uso dos vocaacutebulos das colocaccedilotildees das alternacircncias das recorrecircncias possa significar

Jaacute vimos no capiacutetulo anterior que Milman Parry apontou para a importacircncia dos epiacutetetos

na poesia eacutepica grega Soacute quando se inteirou da profundidade da linguagem e da liacutengua esse

autor pocircde fazer descobertas significativas que introduziram por sua vez novos conceitos e um

novo olhar sobre os epiacutetetos na epopeacuteia e na forma de transmitir a tradiccedilatildeo Como coloca ainda

Detienne ldquoQuaisquer que sejam seus efeitos imediatos ou a longo prazo o escrever a lsquotradiccedilatildeorsquo

transforma virtualmente uma cultura baseada na oralidade na memoacuteria e no memoraacutevelrdquo81 Foi

desdobrando as dobras da epopeacuteia grega que Milman Parry pocircde verificar os desiacutegnios da

tradiccedilatildeo

Alguns aspectos da cultura satildeo dificilmente localizaacuteveis se natildeo houver investigaccedilatildeo do

campo linguumliacutestico e do semacircntico Eacute preciso ldquomaterializarrdquo a liacutengua alvo para conseguir perceber

ndash ainda que de longe e a distacircncia ndash o pensamento miacutetico

79 BLACKWELL apud LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 p 188 80 DETIENNE MarcelOs Gregos e Noacutes Uma Antropologia Comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p79 81 DETIENNE Marcel Opcit p63

44

O objetivo do tradutor eacute tentar entender o texto estrangeiro natildeo soacute na sua abrangecircncia

mas tambeacutem nos detalhes Aleacutem da visibilidade das imagens graacuteficas que compotildeem o texto ele

tem de captar os vatildeos invisiacuteveis Assim a dificuldade se faz dupla traduzir o diziacutevel e o

indiziacutevel

Venuti inaugura seu texto sobre traduccedilatildeo com a colocaccedilatildeo de que

o trabalho de traduccedilatildeo eacute governado por uma noccedilatildeo de equivalecircncia que evolui e varia equivalecircncia a uma interpretaccedilatildeo de uma forma e um conteuacutedo estrangeiros em geral realizada no processo de traduccedilatildeo e raras vezes articulada independentemente dele82

Daiacute jaacute se nota que natildeo haacute uma uacutenica forma de traduzir e que a traduccedilatildeo eacute atravessada pelo

conhecimento que o tradutor tem da liacutengua estrangeira da cultura alvo e de sua relaccedilatildeo com a

sua cultura de origem Esse referencial de valores culturais domeacutesticos indubitavelmente pode

afastar o tradutor do texto e o torna ldquomais estrangeirordquo Mas ao mesmo tempo tambeacutem a

traduccedilatildeo oferece uma domesticaccedilatildeo pois que o tradutor vai se familiarizando com a cultura

estrangeira no ato de traduzir Nesse sentido a traduccedilatildeo se presta para construir representaccedilotildees

de culturas estrangeiras

Esse movimento de se adequar a uma outra cultura construindo uma posiccedilatildeo de

inteligibilidade para o sujeito acaba tambeacutem criando uma postura ideoloacutegica A escolha de um

texto e de estrateacutegias de traduccedilatildeo pode direcionar o texto para diferentes visotildees e pode ateacute

mesmo mudar ou consolidar cacircnones e paradigmas conceituais aleacutem de influenciar metodologias

de pesquisa enfoques teacutecnicos e praacuteticas que satildeo parte da cultura domeacutestica

Na tentativa de traduzir o trabalho do tradutor reflete sua ideologia Por isso eacute

fundamental que se tenha em mente que o trabalho de traduccedilatildeo admite mais que uma abordagem

Assim por exemplo na tentativa de traduzir os Hinos Homeacutericos procuramos seguir as

pegadas do autor autores do texto original procurando palavras que recuperassem o uso dos

epiacutetetos empregando adjetivos e expressotildees que ressaltassem caracteriacutesticas dos deuses

selecionando verbos que retratassem accedilotildees referentes agrave eacutepoca arcaica ldquoinventandordquo termos que

dessem conta da representaccedilatildeo de imagens do cosmo

Ia surgindo assim uma aacuterea de trabalho inteiramente nova e foi nesse momento que

entendemos a acepccedilatildeo de Venuti a respeito dos ldquoefeitosrdquo da traduccedilatildeo mudamos o nosso modo de

82 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 p173

45

olhar o mundo grego As deusas virgens se presentificaram e a epopeacuteia tomou forma e ganhou

ritmo Parecia-nos impossiacutevel que em menos de um ano pudeacutessemos entender textos em grego

Seraacute que nos aproximamos de um processo de domesticaccedilatildeo

Poreacutem o que eacute fato conhecido eacute que haacute tambeacutem a ideologia do tradutor do tradutor

Dessa forma cada eacutepoca dita seus cacircnones e independentemente deles existe um

ldquocorporativismo acadecircmicordquo que determina estilos de traduccedilatildeo aceitaacuteveis e que se tornam

paradigmaacuteticos Essas avaliaccedilotildees institucionais nem sempre consideram todos os aspectos que

envolvem uma traduccedilatildeo Por exemplo a ediccedilatildeo chamada de LOEB eacute considerada ao lado da

traduccedilatildeo francesa de Jean Humbert des Belles Lettres um claacutessico_ como se chamam todas as

obras consagradas_ e no entanto o autor traduz os Hinos Homeacutericos sem a preocupaccedilatildeo de

manter a estrutura riacutetmica e a beleza poeacutetica dos versos Resume-se a traduzir o significado do

texto de forma ldquoconteudiacutesticardquo Nessa passagem de um idioma ao outro haacute tambeacutem uma

mudanccedila do gecircnero textual de poemas para uma narrativa factual Esse tipo de ocorrecircncia revela

a questatildeo da subjetividade do tradutor De qualquer forma as ediccedilotildees LOEB satildeo um cacircnone para

a traduccedilatildeo de textos gregos porque servem a certos interesses de um grupo especiacutefico Isso

explicita uma outra questatildeo ideoloacutegica qual seja a de que os cacircnones introduzidos pelos falantes

de liacutengua francesa e de liacutengua inglesa tecircm dominado o mundo ocidental Como dissemos as

escolas indicam a ldquopreferecircnciardquo de um momento de uma predominacircncia de poliacutetica linguumliacutestica e

hoje a obra de Caacutessola Inni Omerici eacute tida como um dos manuscritos mais apropriados dado o

seu embasamento de pesquisa e seleccedilatildeo cuidadosa do material

Essa constataccedilatildeo revela a dificuldade de um trabalho de traduccedilatildeo e demonstra que os

ldquoefeitosrdquo em geral refletem os interesses de um grupo cultural particular

De forma ousada quase um desafio na tentativa de correr riscos ao se traduzirem os

Hinos Homeacutericos para o portuguecircs procuramos fazer um trabalho em que acreditaacutevamos ndash e aiacute

entra a nossa individualidade ndash na investigaccedilatildeo do leacutexico no entendimento das funccedilotildees

sintaacuteticas na organizaccedilatildeo do texto e sobretudo na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees culturais

Fomos fazendo comentaacuterios tecendo consideraccedilotildees e propondo questionamentos de questotildees

natildeo resolvidas Aleacutem disso procurou-se manter uma preocupaccedilatildeo meacutetrica dos versos para tentar

conservar uma cadecircncia riacutetmica Mais uma vez a questatildeo da domesticaccedilatildeo e da equivalecircncia a

qual natildeo haacute como se evitar

46

Haacute ainda dois pontos a serem considerados por serem objeto de nosso interesse (1) que

desconhecemos qualquer traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos agraves deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia em

portuguecircs e dos Hinos V e VI referentes a Afrodite (2) que eacute preciso que se reconheccedila o caraacuteter

da poesia eacutepica

O estilo da poesia eacutepica eacute de inegaacutevel simplicidade conciliando a excelecircncia dos

costumes e a nobreza dos caracteres Eacute uma manifestaccedilatildeo do ldquomaravilhosordquo e do ldquoassombrosordquo

Tanto em Homero como nos rapsodos que o sucederam e que continuaram sua tradiccedilatildeo como

em Hesiacuteodo a histoacuteria dos deuses e dos heroacuteis eram colocadas para a representaccedilatildeo da

ocorrecircncia de fatos extraordinaacuterios e no caso dos Hinos Homeacutericos na exacerbaccedilatildeo de

verdadeiras louvaccedilotildees arrebatadoras dramaacuteticas enfatizando dons e atributos que movem as

paixotildees humanas que as engrandecem e que evocam clamam pela imitaccedilatildeo do que eacute grandioso

para o humano Como diz Lacerda referindo-se ao trabalho de Blackwell83 sobre a eacutepoca de

Homero

Blackwell como se acabou de verificar presumiu que o grego falado no tempo de Homero se encontrava em condiccedilotildees ideais para a composiccedilatildeo eacutepica O que o tornava tatildeo apropriado seria natildeo soacute a coloraccedilatildeo emotiva mas ainda a ausecircncia de artifiacutecios e sutilezas ldquoUma liacutengua totalmente polida no sentido modernordquo sentencia ldquonatildeo desceraacute agrave simplicidade de maneiras absolutamente necessaacuteria na poesia eacutepicardquo84

Esse aspecto ndash de uma simplicidade quase ingecircnua ndash que foi visto por muitos autores

como um lsquoprimitivismorsquo nos parece como coloca Lacerda ldquouma forma particular de poesia (e de

saber)rdquo85 E mais

Visto que o bom poeta imita a ldquonaturezardquo e natureza no caso quer dizer realidade circundante o poeta de uma eacutepoca polida soacute teraacute ecircxito em assuntos refinados86

Isso nos remete agrave questatildeo dos ldquoriscosrdquo que percebemos nas traduccedilotildees agraves vezes tatildeo

polidas apropriando-nos do termo de Blackwell que se tornam distantes da realidade da eacutepoca

dos deuses quando o efeito da poesia eacute muito mais feito pelo sublime do que pelo grandioso que

os tempos modernos inauguraram

83 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer( 1736) Reimpressatildeo reprograacutefica HildesheimNew York Georg Olms 1976 84 LACERDA Sonia Op cit p 186 85 LACERDA Sonia Idem p 186 86 LACERDA Sonia Idem p187

47

Eacute que Homero Hesiacuteodo e os rapsodos como bardos compositores participavam da

amaacutelgama de saberes miacuteticos (que perdemos atraveacutes dos tempos) e os esquemas linguumliacutesticos e os

motivos narrativos proporcionavam a esses poetas a substacircncia representativa e imageacutetica dos

poemas A forma de vida nesse mundo arcaico a religiatildeo ldquoacotoveladardquo com a realidade

cotidiana e a simplicidade da linguagem eram circunstacircncias essenciais para a elaboraccedilatildeo

ldquoliteraacuteriardquo de uma poesia eacutepicamiacutetica

Por isso querer traduzir os poemas desses bardos corre o risco de produzir uma forma

sincreacutetica ldquofalsardquo de poemas sem feiccedilatildeo na medida em que se afastam tanto da perspectiva da

faacutebula miacutetica quanto da linguagem metafoacuterica pois que a mitologia jaacute eacute intrinsecamente

metafoacuterica

Portanto optamos por traduzir os hinos homeacutericos na sua linearidade no entendimento

do movimento do leacutexico da multiplicidade das metaacuteforas na organizaccedilatildeo das faacutebulas sem

qualquer pretensatildeo ldquomimeacuteticardquo ou seja de imitar aquilo que faz parte da inerecircncia do mito

Pareceu-nos por isso saacutebia a posiccedilatildeo adotada por Faulkner87 quando em sua obra apresenta o

Hino Homeacuterico V a Afrodite em grego limitando-se a comentaacuterios linguumliacutesticos e semacircnticos do

texto a traduccedilotildees interpretativas de frases e expressotildees sem no entanto compor uma traduccedilatildeo

sua

Ainda no dizer de Lacerda reportando-se ao mesmo Blackwell

Da mesma maneira que lhe estatildeo vedados o surpreendente e o fabuloso ao poeta moderno eacute interdito descrever accedilotildees sublimes e caracteres heroacuteicos pois este satildeo estranhos aos costumes de seu tempo e agrave sua experiecircncia88

Seja como for parece-nos que a poesia eacutepica pode tambeacutem ser adaptada a tempos

modernos adquirindo um novo enfoque

87 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Oxford Oxford University Press 2008 88 LACERDA Sonia Opcit p188

49

5 - QUE DEUSAS SAtildeO ESSAS

ldquoLa fertilidad de la naturaleza y la fecundidad tanto de la tierra como de los seres humanos fueron consideradas como misterios sublimes y foram divinizadasrdquo89

51 - AFRODITE E A REPRESENTACcedilAtildeO DO DESEJO

Afrodite eacute consagrada como a deusa do amor a deusa Afrogeneacuteia (ΑФρογένεια) que

nasceu da espuma do mar

Como tudo se inicia A lenda mais conhecida nos conta que no princiacutepio Gaia a matildee

universal comeccedila criando a partir de si mesma quer dizer sem seu contraacuterio masculino o que

implica pois que natildeo houve uniatildeo sexual Esse tipo de reproduccedilatildeo nomeada de cissiparidade

deu origem a Urano o ceacuteu Entatildeo nesse momento comeccedilaram a unir-se Gaia e Urano dois

princiacutepios opostos para procriar filhos que tecircm uma individualidade que satildeo marcados por

atributos que tecircm uma funccedilatildeo como potecircncias coacutesmicas A uniatildeo do ceacuteu e da terra se faz sem

regras O ceacuteu acomoda-se sobre a terra cobrindo-a inteira e os filhos gerados natildeo podem sair da

matildee Gaia por falta de distacircncia entre esses dois pais coacutesmicos Inconformada a matildee (Gaia) pede

a um de seus filhos Crono que agrave noite enquanto o ceacuteu (Urano) se debruccedila sobre ela que ele

(Crono) o castre Assim Urano eacute castrado por um golpe de foice amaldiccediloa os filhos e deixa

Gaia liberta Ficam deste modo separados por um grande espaccedilo vazio apartados um do outro

onde os opostos mesmo quando se unem permanecem distintos

Isto posto jaacute se vecirc que natildeo se pode pensar em uniatildeo dos contraacuterios sem que essa ideacuteia

esteja relacionada a um conflito a uma luta de forccedila entre os dois sexos Eacute nessa tessitura de

ldquocorda esticadardquo entre o macho e a fecircmea que surge Afrodite o ldquoamorrdquo Vinda dos testiacuteculos

ensanguumlentados de Urano que caiacuteram na aacutegua ela chega inaugurando uma forma organizada de

engendrar por uniatildeo os contraacuterios presidindo o casamento em um espaccedilo (sociedade grega

patriarcal) em que a mulher tinha como finalidade a ldquoconstruccedilatildeordquo de seu lar (marido e filhos)

89 MAVROMATAKI Maria Mitologia GriegaAtenas Ediciones Xaitali 1997 p 5

50

Como dizem Vernant e Vidal-Naquet ldquonum mundo pautado pela lei de

complementaridade entre os opostos que ao mesmo tempo se afrontam e se harmonizamrdquo90

Outra lenda conta que Afrodite teria nascido da uniatildeo de Zeus91 com Dione uma das

deusas da primeira geraccedilatildeo divina cuja origem diverge segundo diferentes tradiccedilotildees Ora diz-se

que Dione era filha de Urano e Gaia ora de Teacutetis e Oceano como estaacute colocado na Teogonia de

Hesiacuteodo Essa lenda sobre o nascimento de Afrodite natildeo eacute amplamente conhecida e eacute menos

divulgada que a anterior jaacute tatildeo explorada pelos grandes artistas de todos os tempos quer sejam

eles pintores quer poetas

Entretanto verifica-se a alusatildeo a essa lenda na Iliacuteada V 312-374 quando Afrodite filha

de Zeus (v 312 ∆ιός θυγάτηρ ΆΦροδίτη) protege seu filho Eneacuteias (gerado com o mortal

Anquises) e eacute ferida pelo heroacutei Diomedes (por sua vez protegido de Atena) Afrodite entatildeo

corre para o colo de sua matildee Especificamente os versos 370-374 narram o encontro de matildee e

filha descrito com o lirismo da proteccedilatildeo materna e do consolo compreensivo que Dione oferece

a Afrodite

ή δ έν γούνασι πΐπτε ∆ιώνης δι΄ ΆΦροδίτη 370 microητρος έής ή δ αγκάς έλάζετο θυγατέρα ήν χειρί τέ microιν κατέρεξεν επος τ΄ έΦατ΄ έκ τ΄ όνόmicroαζε ldquoτίς νύ σε τοιάδ΄ έρεξε Φελόν τεκος Οΰρανιώνων microαψιδιως ώς ει τι κακόν ρέζουσαν ένωπήrdquo92 374 Mas Afrodite arremessa-se nos joelhos de Dione 370 sua matildee e ela tomou sua filha nos braccedilos com a matildeo acariciou-a e fez uso das palavras dizendo ldquoquem agora dos filhos de Urano querida crianccedila fez coisas a ti sem razatildeo como se vocecirc um mal tivesse praticado agrave frente de todosrdquo93 374

90 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 p 61 91 Zeus eacute considerado o deus mais importante do Panteatildeo grego Identifica-se com a luz tal como o raio e reina poderoso no Olimpo morada de todos os deuses Eacute filho de Crono e Reacuteia Crono devorava os filhos agrave medida que nasciam Quando Zeus nasceu Reacuteia deu uma pedra enrolada em um pano a Crono que pensando ser a crianccedila engoliu-a Desta forma Zeus foi salvo e mais tarde tomou o poder das matildeos do pai assim como Crono havia tirado o poder de Urano castrando-o 92 HOMER The Iliad v 1 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 93 Traduccedilatildeo nossa apenas para efeito de verificar o sentido do trecho que se refere agrave origem de Afrodite

51

Como se vecirc natildeo se pode deixar de considerar essa outra tradiccedilatildeo do nascimento de

Afrodite uma vez que a Iliacuteada que eacute uma das obras mais lidas aponta para esse fato que eacute

representativo de uma linhagem que privilegia o lugar do feminino na famiacutelia patriarcal dando

ecircnfase agrave figura materna

Um outro aspecto em Afrodite que merece ser destacado eacute a questatildeo do movimento

Afrodite eacute errante Diferentemente das deusas virgens que possuem um domiacutenio especifico

Afrodite perambula por diversos espaccedilos Ela chega mesmo a invadir a ldquoaacuterea delimitadardquo das

outras deusas

Melhor explicando essa ideacuteia podemos reportar-nos a trechos da Iliacuteada e da Odisseacuteia

bem como dos Hinos Homeacutericos reveladores de seu caraacuteter inquieto fugidio onipresente A

guerra estaacute pela sua natureza relacionada agraves atividades da deusa Palas Atena que herdou a

astuacutecia materna e o espiacuterito combatente do pai como eacute comentado adiante Poreacutem Afrodite entra

e move-se nesse espaccedilo envolvendo-se de forma que natildeo pode ser controlada Como jaacute vimos no

canto V da Iliacuteada (312-374) Afrodite vai ao campo de batalha e Diomedes lhe diz em altos

brados

Filha de Zeus94 poderoso conserva-te longe da luta 348 Ou seduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedila Se ainda sentires desejo de ver um combate de perto creio que soacute o nome ldquoguerrardquo haacute de grande pavor inspirar-te Atormentada Afrodite enquanto ele falava afastou-se95 352

As palavras de Diomedes deixam claro novamente essa tradiccedilatildeo da origem de Afrodite e

o fato de que a guerra natildeo eacute espaccedilo para seduccedilatildeo para o feminino que natildeo leva a seacuterio uma

atividade complementar que faz parte da organizaccedilatildeo poliacutetico-social do povo grego Atena ao

contraacuterio move-se dentro da batalha seu campo de domiacutenio como estrategista e essa eacute uma de

suas funccedilotildees

A propoacutesito a Iliacuteada relata um episoacutedio de guerra que se desenvolve a partir da

representaccedilatildeo do desejo Eacute vinculado agrave ideacuteia de uniatildeo e de conflito a que nos referimos

anteriormente que tem iniacutecio uma guerra que envolve deuses e deusas heroacuteis e homens O

conflito eacute gerado por Afrodite na sua proposta de manter o reinado da seduccedilatildeo Natildeo haacute homem

94 Grifo nosso 95 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 p 145

52

que resista agraves tentaccedilotildees de Afrodite ou melhor difiacutecil eacute resistir aos seus ardis femininos Como

diz Diomedes a ela ldquoseduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedilardquo96

Como se sabe e a tiacutetulo de recordaccedilatildeo a histoacuteria da Iliacuteada na verdade comeccedila no ldquoceacuteurdquo

Conta a lenda que em uma grande festa em que se celebrava o casamento a uniatildeo de Peleu e

Teacutetis todos os deuses haviam sido convidados exceto Discoacuterdia (Eacuteris) E por ser Discoacuterdia

insultada e indignada fez rolar uma maccedilatilde pelo chatildeo da entrada ndash chamada lsquopomo da discoacuterdiarsquo ndash

proacuteximo ao assento das deusas Hera Atena e Afrodite Quando Hera pegou a maccedilatilde leu o que

estava escrito ldquoPara a mais belardquo Como reaccedilatildeo feminina Hera imediatamente achou que a maccedilatilde

era para si proacutepria Atena reagiu e Afrodite enfaticamente disse que era para ela Nesse clima de

discoacuterdia foi chamado Zeus que cauteloso e conhecedor do perigo de apontar qualquer uma

delas como a mais bela pois as outras duas se vingariam decidiu nomear Paacuteris tambeacutem

conhecido como Alexandre um dos filhos de Priacuteamo para decidir a questatildeo Hermes o deus

mensageiro levou as trecircs ateacute o Monte Ida onde estava Paacuteris em Troacuteia Laacute cada uma delas

ofereceu uma forma de suborno a Paacuteris em troca do tiacutetulo

Atena propocircs conceder-lhe o dom de ser um guerreiro vitorioso Hera lhe ofereceu o

reinado sobre toda a Aacutesia e Afrodite ofereceu-lhe a mulher mais bela Helena de Esparta Paacuteris

entregou a maccedilatilde de ouro a Afrodite

Eacute interessante verificar que Afrodite gera um conflito tal que troianos e gregos lutam e

morrem pelo rapto de uma mulher pois Helena jaacute era casada com Menelau Aleacutem disso o

feminino revela-se nas outras duas deusas Hera e Atena em forma de vinganccedila Hera torna-se

inimiga de Troacuteia berccedilo de Paacuteris por quem ela e Atena foram preteridas Assim por ocasiatildeo do

rapto de Helena por Paacuteris Hera faz com que o navio em que estavam os dois se afaste do

caminho de Troacuteia e se dirija para Siacutedon na costa siacuteria

Afrodite torna-se protetora de Troacuteia durante a guerra

As deusas e suas reaccedilotildees revelam um caraacuteter humano em que as emoccedilotildees ocupam um

papel preponderante tornando a epopeacuteia homeacuterica real tocante e ateacute mesmo com um certo

ldquolirismordquo como jaacute rotulamos anteriormente em um momento de ousadia Mas os deuses ndash e

nesse caso as deusas ndash soacute fazem sentido se houver o ldquohumanordquo as paixotildees que determinam

concorrecircncias voluacutepias enganos oacutedios terriacuteveis desordens desmedidas lutas Em se

96 HOMERO Idem v 349

53

considerando esse aspecto fundamental do mito grego o certo e o errado o que pode e o que natildeo

pode o que deve e o que natildeo deve enfim valores morais que os homens estabeleceram ao

longo dos tempos eles natildeo existiam como valores eacuteticos entre os gregos da eacutepoca arcaica Desse

modo a moral de Afrodite eacute o desejo poder contra o qual os mortais nada podiam pois os

homens nada valiam sem seus deuses Em outras palavras as accedilotildees humanas (de Paacuteris e de

Helena) soacute existem por intervenccedilatildeo divina Cabe aos deuses a direccedilatildeo de suas intervenccedilotildees ainda

que possam parecer desleais mas que em geral tentam ajudar aquele ou aqueles que procuram

proteger Com a proteccedilatildeo dos deuses aos mortais nada eacute impossiacutevel e assim como Atena

protege Diomedes no combate Afrodite vela por Paacuteris o troiano contra Menelau que teve sua

mulher raptada

O canto III da Iliacuteada mostra um momento de grande forccedila e poder de Afrodite quando

Alexandre (Paacuteris) filho de Priacuteamo (de Troacuteia) luta com Menelau (marido ofendido) e embora

Menelau saia vencedor do embate (graccedilas agrave proteccedilatildeo de Atena) Afrodite salva Paacuteris da morte

(das investidas violentas das armas de Menelau) e o leva a salvo ateacute Helena A proacutepria Helena

reprova a atitude da deusa ante a vitoacuteria de Menelau poreacutem Afrodite chama-lhe a atenccedilatildeo para

seu poder dizendo

Natildeo me provoques criatura infeliz porque natildeo aconteccedila 414 que te abandone e te venha odiar quanto agora te prezo Se entre Acaios e Teucros97 fizesse surgir oacutedio infausto contra tu proacutepria haverias de ter um destino bem triste98 417

Ouvindo essas palavras Helena ficou cheia de medo (έδδεισεν v 418) e seguiu a deusa

que no texto homeacuterico eacute indicada com a palavra δαίmicroων v 420 com sentido de terriacutevel

poderosa de onde vem em portuguecircs o termo democircnio usado na traduccedilatildeo de Nunes

e sem dizer mais palavra se foi99 no veacuteu branco envolvida 419 sem que as troianas a vissem servia de guia o democircnio100 420

A influecircncia de Afrodite eacute decisiva na uniatildeo do casal Paacuteris-Helena e essa ligaccedilatildeo natildeo

dependeu do desejo dos mortais mas do ldquodestinordquo imposto pela deusa

97 Equivalente a gregos e troianos No texto Τρώων καί ∆αναών (v 417) sendo que ∆αναών significa descendente de Dacircnaos 98 HOMERO Op cit Canto III 414-417 p 115 99 Referindo-se a Helena 100 HOMERO Op cit Canto III 418-420 p 115

54

Afrodite tambeacutem protege na guerra de Troacuteia Eneacuteias seu filho com Anquises mas isso eacute

uma outra histoacuteria Aqui a lenda miacutetica enreda temas de conceitos que se sobrepotildeem primeiro a

questatildeo que existe entre a diferenccedila essencial da imortalidade dos deuses e da mortalidade

humana Eneacuteias eacute fruto de uma ligaccedilatildeo entre a deusa Afrodite e o mortal Anquises o que jaacute

revela que como descendente que tem traccedilos humanos natildeo goza do privileacutegio da imortalidade

Segundo apesar de Afrodite estar sempre tecendo a seduccedilatildeo e provocando a uniatildeo sexual entre

deuses e homens o Hino Homeacuterico V que faz parte de uma sequumlecircncia de trinta e trecircs hinos de

eacutepocas e autores diferentes posteriores agrave Iliacuteada e a Odisseacuteia mas que mantem tambeacutem uma

dicccedilatildeo eacutepico-narrativa narra a seduccedilatildeo da proacutepria Afrodite por Anquises e a concepccedilatildeo de

Eneacuteias Veja-se o trecho seguinte retirado do Hino Homeacuterico V 247-255 em que Afrodite

reconhece seu deslize por ter se deixado envolver por um homem mortal

∆ΰτάρ εmicroοί microέγ ονειδος έν αθαvάτοισι θεοΐσιν 247 Έσσεται ήmicroατα πάντα διαmicroπερές έίνεκασεΐο οί΄ πριυ ε΄microούς ο΄άρους και υητιας αΐς ποτε πάντας αθανάτους συνέmicroιξα καταθνητήσι γυναιξί 250 τάρβεσκον πάντας γάρ εmicroόν δάmicroνασκε νόηmicroα νΰν δέ δη ουκέτι microοι στοmicroα χείσετι έξονmicroήναι τούτο microετ΄ άθανάτοισν έπεί microαλα πολλόν α΄άο θην σχέτλιου οΰκ όνοταστόν άπεπλάγχθην δέ νόοιο παΐδα δ΄ ύπό ζώνη έθέmicroηv βροτώ εύνηθέΐοα101 255

E agora sobre mim uma grande censura entre os deuses imortais 247 haveraacute todos os dias continuamente por causa de vocecirc aqueles que se amedrontaram de minhas zombarias e ardis com os quais alguma vez fiz todos os imortais se envolverem com mulheres mortais 250 pois meu propoacutesito submeteu todos a mim Mas agora minha boca natildeo mais teraacute coragem de mencionar isso entre os imortais desde que fiquei grandemente atormentada infeliz sem palavras tendo perdido o juiacutezo trago uma crianccedila debaixo do cinto tendo colocado ao leito um mortal102 255

Algumas observaccedilotildees se fazem necessaacuterias (a) apesar de natildeo haver um conceito

estabelecido de eacutetica e moral entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos a ideacuteia que parece estar vinculada

com a palavra ŏνειδος (censura reprovaccedilatildeo) estaacute relacionada a um sentido de organizaccedilatildeo na

junccedilatildeo entre os opostos que a narrativa da histoacuteria da origem da separaccedilatildeo da terra e do ceacuteu trata

e agrave qual jaacute nos referimos Afrodite como deusa inquieta e errante voluptuosa e voluacutevel tinha a

101 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 p 67 102 Traduccedilatildeo nossa

55

intenccedilatildeo de desequilibrar de afetar a ordem entre os contraacuterios pois a contradiccedilatildeo estaacute associada

com a natureza primeira da condiccedilatildeo de procriaccedilatildeo Nesse jogo de ambivalecircncia tambeacutem os

imortais satildeo enredados pela mortalidade conhecendo a inseguranccedila a fraqueza a brevidade da

vida humana Assim a implicaccedilatildeo de censura daacute-se pelo fato de que os imortais atraveacutes dos

desiacutegnios do desejo reconhecem uma tensatildeo que estaacute colocada como uma realidade humana que

eles passam a identificar no seu relacionamento com os mortais E a presenccedila da morte natildeo podia

ser aceita pelos deuses que a viam como degradante e vil (b) Embora natildeo tenha sido citado no

trecho acima o mesmo Hino Homeacuterico V menciona que o proacuteprio Zeus o deus todo poderoso do

Olimpo que tambeacutem havia sido viacutetima das investidas de Afrodite para dar-lhe uma liccedilatildeo faz

com que ela proacutepria conheccedila um mortal em uma situaccedilatildeo que envolva a intimidade conjugal Eacute o

que revela o verso 255 com a palavra έύνηθεΐσα isto eacute colocar no leito nupcial onde se daacute a

uniatildeo dos opostos e onde se concretiza a concepccedilatildeo (c) Por isso Afrodite fala das consequumlecircncias

de seu ato pois entatildeo sabe que traz ldquouma crianccedila debaixo do seu cintordquo A palavra ζώνη ao

mesmo tempo que se refere a cinto refere-se agrave lsquocinturarsquo ao lsquoventrersquo

A partir daiacute temos pois uma outra consideraccedilatildeo a questatildeo da descendecircncia Essa tese eacute

amplamente discutida por Faulkner103 que comenta como essa temaacutetica (dos ldquoAineiadairdquo) eacute

delineada desde o proacutelogo do poema e estaacute presente nos jogos sedutores que Afrodite impotildee a

Anquises fazendo-se passar por filha de Otreu rei da Frigia Afrodite convence Anquises das

profecias do deus Hermes que previu a uniatildeo deles (Τέκνα Τεκεΐσθαι v 127) atraveacutes de

atividades conjugais e o nascimento de um filho Deste modo o que ela coloca ironicamente

como fraude vem a tornar-se verdade Nem Afrodite escapa de ldquosua bocardquo

As colocaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo a Eneacuteias filho de uma deusa com um mortal o destaque

sobre os atributos fiacutesicos favoraacuteveis de Afrodite e de Anquises a profecia de seu nascimento

parecem dar ecircnfase agrave famiacutelia descendente de Eneacuteias

O que Faulkner104 argumenta eacute que apesar de subtemas ligados ao poema como a ironia

de Afrodite suas zombarias a relaccedilatildeo deus imortal ndash homem mortal no Hino a Afrodite o poeta

pretendeu glorificar a linhagem de uma famiacutelia ldquoEneidanardquo (Aineiadai)

103 FAULKNER Andrew Op cit 104 FAULKNER Andrew Op cit

56

Ainda assim o que jaz como princiacutepio da linhagem eacute uma fraude o que natildeo deixa de ser

uma forma de violecircncia que vem sempre acompanhada do desejo talvez um sentimento de posse

(pois Afrodite queria apossar-se de Anquises dada a sua beleza) que emana do contexto do ser

amado Eacute Anquises que lhe provoca o desejo Retomando o que jaacute foi colocado no item 22 vecirc-

se claramente o jogo de forccedilas em Afrodite a seduccedilatildeo persuasiva (peithoacute) e a ilusatildeo enganosa

(Apaacuteteacute)

O que estaria sendo revelado nesse trecho dos Hinos Homeacutericos em que Afrodite natildeo

resiste aos encantos de Anquises Talvez que a questatildeo dos opostos ndash que envolve sempre uma

tensatildeo como jaacute vimos ndash se inicie pelo ldquoolharrdquo Assim toda genealogia humana passa pela

questatildeo de ldquoolharrdquo e do reconhecimento desse olhar ou seja pelo sexo que eacute uma forma de

apoderar-se isto eacute de poder Nesse sentido a condiccedilatildeo humana que resulta do contexto da

sexualidade pode vir a ser uma condiccedilatildeo traacutegica como foi demonstrado e explorado na trageacutedia

grega

Eneacuteias eacute gerado a partir da seduccedilatildeo e do erotismo A descendecircncia se daacute como

consequumlecircncia como resultado de um ldquofasciacuteniordquo105 como diratildeo os romanos Mas o que fica claro

na questatildeo genealoacutegica eacute que o resultado da ligaccedilatildeo entre os opostos eacute que levaraacute adiante esse ato

e que o proclamaraacute nas geraccedilotildees futuras Como coloca Quignard ldquonous sommes venus drsquoune

scegravene ougrave nous nrsquoeacutetions pasrdquo106

Assim o Hino Homeacuterico V a que estamos nos referindo enfatiza o olhar de Afrodite e

de Anquises A concepccedilatildeo de Eneacuteias deu-se pelo olhar A questatildeo do olhar natildeo poderia deixar de

ser considerada pelos saacutebios gregos

Quando Afrodite desejosa apresenta-se (vs 75 ndash 142) a Anquises como uma simples

mortal o que inaugura esse encontro eacute o olhar de Anquises pois ele percebe o objeto de amor agrave

sua frente Eacute o que diz o texto grego

Αγχίσης δ΄ δρόων107 έΦράξετο θαύmicroαιν΄εν τε 84 ει δός τε microέγεθός τε καί έίmicroατα σιγαλο΄εντα 85

105 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 p 11 O autor faz um estudo comparando a palavra romana ldquofascinusrdquo com a palavra grega ldquophallosrdquo Ele diz ldquoLe lsquofascinusrsquo arrecircte le regard au point qursquoil ne peut srsquoen deacutetacherrdquo ou seja que ldquoo fasciacutenio imobiliza o olhar a tal ponto que natildeo se pode desprender-se delerdquo 106 QUIGNARD Pascal Idem p 10 ldquoViemos de uma cena onde natildeo estaacutevamosrdquo 107 Grifo nosso para assinalar o verbo olhar que tambeacutem significa entender

57

Portanto Anquises quando a viu observou-a bem e admirou sua aparecircncia e suas

vestimentas

O autor descreve em poucas palavras o olhar de atraccedilatildeo de cobiccedila mesmo que faz parte

do jogo de seduccedilatildeo O olhar do mortal Anquises espelha a forma de exercer o olhar do masculino

e revela o entendimento da figura feminina no seu modo de Ser de portar-se de vestir-se de ser

mulher Isso indica o interesse do homem grego pelo belo e a descriccedilatildeo que se segue mostra o

olhar investigador e atento do poeta conhecedor do espaccedilo feminino de seu tempo

Apoacutes essa cena da descoberta pelo olhar Afrodite eacute conduzida de olhos ldquoabaixadosrdquo

(κατ΄ οmicromicroατα καλα βαλοΰσα v 156) ndash revelando modeacutestia ndash por Anquises Novamente o olhar

complementando o gesto decoro vergonha recato O que quer a deusa dizer com isso O texto

leva agrave accedilatildeo seguinte a uniatildeo de Anquises e Afrodite homem mortal e deusa imortal no mesmo

leito A respeito ocorre-nos um trecho das Eacuteleacutegies de Properce

Les yeux dans lrsquoamour sont les guides (oculi sunt in amore duces) Ocirc joie drsquoune nuit lumineuse Ocirc toi petit lit (lectule) heureux de mon plaisir Que de mots eacutechanges agrave la clarteacute des lampes Et la lumiegravere enleveacutee (sublato lumine) dans la nuit que de combats de lrsquoamour Une seule nuit peut faire de nrsquoimporte quel homme un dieu (nocte una quivis vel deus esse potest)108

O leito de Anquises que recebe Afrodite eacute cuidadosamente descrito no Hino Homeacuterico V

O cliacutemax do arrebatamento amoroso ocorre principalmente nos versos 155-167 Eacute quando o

leito que os acolhe revela a forccedila do heroacutei Anquises nas peles de ursos e de leotildees que jaacute se

submeteram a ele e agora jazem estendidos para receber Afrodite tambeacutem ela submissa a seu

poder e como aponta Faulkner para esse fato

By doing so109 the animal skins become more than just an abstract symbol of Anchisesrsquo power and underline Aphroditersquos own loss of power in the face of Anchisesrsquo momentary strenght she is now conquered on top of the very beasts she earlier controlled110

108 PROPERCE Eacuteleacutegies II 15 In QUIGNARD Pascal Op cit p 135 ldquoOs olhos no amor satildeo guias Oh alegria de uma noite luminosa Oh pequeno leito feliz de meu prazer Quantas palavras trocadas agrave claridade das lacircmpadas E a luz arrebatada na noite quantos combates do amor Uma uacutenica noite pode fazer de qualquer homem um deusrdquoTraduccedilatildeo nossa 109 ldquoBy doing sordquo estaacute relacionado agrave sentenccedila anterior referindo-se ao fato de que quando Afrodite estava atravessando o monte Ida para dirigir-se a casa de Anquises Afrodite submeteu os animais selvagens agrave doccedilura do seu desejo fazendo-os copular 110 FAULKNER op cit p 227 ldquoAo fazer isso as peles dos animais se tornam mais do que um siacutembolo abstrato do poder de Anquises e realccedilam a perda de poder da proacutepria Afrodite face agrave forccedila momentacircnea de Anquises agora ela eacute conquistada em cima dos proacuteprios animais que ela antes controlourdquo Traduccedilatildeo nossa

58

O mesmo autor chama a atenccedilatildeo para o fato de que quando Afrodite se despe sua perda

de forccedila pode ser comparada agraves cenas iniciais quando entatildeo sua aparecircncia estaacute recoberta pelas

roupas o que simbolizava antes seu poder enfraquece ao desnudar-se Segundo Quignard em

outros trechos de textos de Homero o mesmo verbo grego mignumi que eacute usado para referir-se

ao jugo de uma mulher eacute o que coloca agrave morte um adversaacuterio Afrodite foi vencida por um

mortal ou venceu-o o proacuteprio desejo

Em nosso ponto de vista natildeo pode ser deixado de lado o aspecto que favorece a posiccedilatildeo

de Anquises no intercurso propondo pois uma questatildeo de gecircnero na sociedade patriarcal Por

isso talvez Faulkner veja nessa atitude de forccedila de Anquises um poder transitoacuterio

Quando Anquises se aproxima de Afrodite a cena do ldquodespir-serdquo revela a fragilidade

feminina frente ao ldquophallosrdquo grego em uma sociedade que tinha a mulher como objeto de

submissatildeo ao homem e de procriaccedilatildeo Afrodite representa esse contexto feminino tanto na sua

submissatildeo agrave uniatildeo com Anquises quanto na profecia do filho que vai ser gerado pois eacute o que se

espera do leito nupcial

Especialmente os versos 162 163 164 165 revelam dois aspectos de grande importacircncia

Um deles eacute que a deusa Afrodite eacute descrita (e eacute tambeacutem representada na pintura e na escultura)

usando brincos e colares aleacutem de outras joacuteias A descriccedilatildeo do nome das joacuteias tem sido objeto de

estudo linguumliacutestico para a precisatildeo do significado delas e para entendimento da eacutepoca em que o

Hino V possa ter sido escrito Vaacuterios autores tecircm estudado o vocabulaacuterio diligentemente e em

Faulkner111 as palavras gregas έλικας e κάλυκάς tecircm um sentido incerto O consenso tem sido

optar pela traduccedilatildeo de brincos em forma de flor de botatildeo para κάλυκες enquanto tem-se suposto

que έλικας indique pulseira uma vez que o significado de έλικας estaacute relacionado com alguma

forma de espiral

Outro fato relacionado com esses versos eacute a forma como a accedilatildeo eacute descrita remetendo agrave

retirada das peccedilas de roupa criando um contexto eroacutetico e um prenuacutencio do ato sexual Daacute-se o

desvendamento de Afrodite no momento em que Anquises (λΰσε δέ οί ζώνην) desata o cinto dela

Afrodite foi subjugada A cena evoca um clima de misteacuterio enquanto Anquises e Afrodite estatildeo

ligados pela atraccedilatildeo do olhar Quando Afrodite eacute ldquodesnudadardquo no ato de ter seu cinto retirado o

olhar cede lugar para a concretizaccedilatildeo da accedilatildeo Agora o que interessa eacute a sombra da mortalidade

111 FAULKNER op cit p 168-169 230

59

que paira sobre eles ele um transgressor que se apropria da deusa ela atormentada pelo seu

gesto de fraqueza

Apoacutes o coito Afrodite recompotildee-se sozinha assume sua forma divina acorda Anquises

que ela havia feito adormecer Esse trecho (versos 168 ndash 183) revelam o terror que o sexo pode

provocar apoacutes a constataccedilatildeo do ato e evocam as reaccedilotildees sugeridas pelo olhar

Afrodite conclama Levante-se filho de Daacuterdano por que vocecirc adormeceu pesadamente

Considere se eu tenho a mesma aparecircncia de quando vocecirc me viu com seus olhos pela primeira

vez

No Hino Homeacuterico

Ορσεο ∆αρδανίδη τι νυ νηγρετον υπνον ίανεις 177 καί Φράσαι ει τοι όmicroοίη έγών ίνδάλλοmicroαι είναι οίην δη microε το πρωτον έν οΦθαλmicroοίσι νόησας 179

Quando Anquises acorda novamente revela-se a questatildeo do olhar pois ao ver o pescoccedilo

e os olhos adoraacuteveis de Afrodite (οmicromicroατα κάλ΄ ΆΦροδίτης v 181) ele se amedronta e dirige seu

olhar para outro lado (τάρβησέν τε καί οσσε παρακλιδόν ετραπευ αλλη v 182)

A presenccedila da deusa impotildee reverecircncia respeito e a atitude de Anquises desviar o olhar eacute

o que se espera diante do divino

A seguir as palavras que Anquises profere configuram-se como uma oraccedilatildeo Ele repete

que seu olhar (όΦθαλmicroοΐσιν v 185) havia captado o divino na aparecircncia de Afrodite embora ela

natildeo tenha dito a verdade Pede entatildeo que ela se apiede dele

Eacute interessante relacionar pois esses versos (188-190) em que Anquises se preocupa com

seu vigor e pede proteccedilatildeo agrave deusa para natildeo ser deixado paraliacutetico entre os homens castigado por

ter transgredido o sagrado com os versos 153-154 em que Anquises exclama que iria de boa

vontade para a casa de Hades (i eacute agrave morte) desde que ele tivesse ldquosubidordquo agrave cama da mulher

bela como as deusas (palavras que ele pronunciou a Afrodite antes do acasalamento julgando

ser ela uma jovem mortal)

Essas cenas refletem o poder do sexo masculino face ao desejo que o coito remete

Agrave cena de forccedila e domiacutenio do homem frente agrave submissatildeo feminina sucede o retorno agraves

origens e ele coloca-se diante da deusa agora vista como mater cheia de poder divino

implorando-lhe a vida ndash garantida pelo acolhimento do ventre feminino Vecirc-se pois nesse gesto

o eterno conflito de forccedila entre os gecircneros O poder do ldquophallosrdquo grego soberano no ato sexual

60

curva-se ao poder da mulher o feminino como princiacutepio das origens A esse respeito fazemos

nossas as beliacutessimas palavras de Quignard

La premiegravere domus est le ventre de la femme La deuxiegraveme domus est la domus dans laquelle lrsquohomme rapte les femmes pour se reproduire et reproduire la domus La troisiegraveme domus est la tombe112

Sabiamente o autor usa a palavra domus (grego δόmicroος) em seu texto o que fornece um

enredamento de sentidos contidos todos no mesmo contexto Pode-se pois entender como

ldquocasa habitaccedilatildeo quarto templo morada dos deuses famiacuteliardquo113

Como diz Quignard o homem cria raiacutezes com seu desejo vincula-se a ele da mesma

forma que o lactente com sua matildee Isso faz parte da cena histoacuterica em que a ontogecircnese do

homem estaacute enraizada na filogecircnese pois como mostraram os gregos atraveacutes do nascimento de

Afrodite a vida estaacute enraizada no universo quer seja atraveacutes da umidade do oceano no ritmo de

suas ondas quer seja atraveacutes do misteacuterio do ceacuteu na trilha de seus astros incandescentes quer

seja atraveacutes da terra que floresce que nutre que acolhe que se transforma e que frutifica

Dessa forma o desejo estaacute enraizado na histoacuteria da origem da terra e a chegada de

Afrodite estaacute vinculada natildeo apenas ao desejo mas tambeacutem agrave reproduccedilatildeo

Mas a histoacuteria do desejo apresenta outras variantes Assim de acordo com a tradiccedilatildeo

miacutetica Afrodite era casada com Hefesto (filho de Zeus e de Hera) deus protetor do fogo e um

haacutebil criador Diz tambeacutem a lenda que Hefesto era coxo e que o casamento de Afrodite e de

Hefesto foi imposto por Hera Era uma maneira de ldquounir el fuego de Hefesto con la fuerza

fecundadora de Afrodita la belleza del arte con la belleza de la naturalezardquo114

No canto VIII (versos 266-367) da Odisseacuteia Odisseu acompanha na voz de um aedo a

saga dos amores de Ares com a formosa Afrodite (Άρεος Φιλότητος εύστεΦάνου τ΄ΆΦροδίτης)

Apesar de o texto apresentar uma narrativa eroacutetica em que o casal de amantes eacute visto na

sua intimidade a palavra usada para representar a uniatildeo desse amor (seria uma forma de

significar a ligaccedilatildeo carnal atraveacutes da qual o desejo se concretiza) eacute Φιλότητος que em periacuteodo

posterior como jaacute se ressaltou anteriormente seraacute usado como amor que revela amizade 112 QUIGNARD op cit p 224 ldquoO primeiro domus eacute o ventre da mulher O segundo domus eacute o domus no qual o homem se apossa das mulheres para se reproduzir e reproduzir o domus O terceiro domus eacute a tumbardquo Traduccedilatildeo nossa Mantivemos o uso de domus como no original Diferentemente do autor consideramos a forma masculina do grego δόmicroος 113 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 p 151 114 MAUROMATAKI Maria Op cit p 87

61

Dando sequumlecircncia agrave histoacuteria de Hefesto e Afrodite Heacutelio o Sol contou a Hefesto sobre os

encontros secretos de Afrodite e Ares o deus da guerra Hefesto enraivecido planejou pegaacute-los

em uma armadilha (δόλον) e por isso teceu com seu engenho admiraacutevel uma rede de metal que

se assemelhava a uma teia de aranha tal o seu ardil em executaacute-la de forma que natildeo pudesse ser

vista Ares e Afrodite foram ao leito (λέχος δ΄ ήσχυνε και εύνην)115 na proacutepria casa de Hefesto

(ΗΦαιστοιο δόmicroοισι) pois Hefesto havia dito que ia se ausentar Ares ardia em desejo

(Φελότητος) e depois que os amantes adormeceram abraccedilados acordaram e viram-se envoltos na

rede fina impossibilitados de sair dali Para ridicularizaacute-los Hefesto chamou todos os deuses

para assistir a esse espetaacuteculo e dizia que Afrodite comprazia-se com Ares (novamente o verbo

Φιλεω) e natildeo com ele por ser coxo Apoacutes a intervenccedilatildeo de alguns deuses Hefesto finalmente

decidiu libertar os amantes

Alguns aspectos relacionados agrave questatildeo do desejo podem ser brevemente observados (a)

relacionado ao desejo estaacute a problemaacutetica da traiccedilatildeo Assim se entendermos o conceito de poder

subjacente agrave uniatildeo sexual verificamos que a situaccedilatildeo realmente pode ser equiparada a um

campo de batalha isto eacute haacute o(s) vencedor(es) e o(s) perdedor(es) (b) Em se tratando de uma

lenda simboacutelica constata-se que o deus envolvido eacute Ares que significa o deus da guerra

responsaacutevel pela violecircncia e pelos enfrentamentos entre os homens Ares eacute realmente descrito

como tendo um caraacuteter agressivo e explosivo e alguns autores explicam que esses atributos

estavam relacionados ao seu lugar de origem pois os antigos habitantes da Traacutecia tinham

costumes violentos e faziam uso da forccedila bruta Assim representa-se a uniatildeo sexual de forma

simboacutelica em que o ato de desejo (Afrodite) eacute subjugado pela forccedila violenta (Ares) (c) Eacute

interessante considerar como o marido traiacutedo procura uma estrateacutegia de vinganccedila calculada Sua

intenccedilatildeo eacute realmente o dano Daiacute a palavra lsquoδολοςrsquo (dolo) usada no texto (d) Todo ato de

traiccedilatildeo pressupotildee uma atitude de reparo Assim quando Afrodite eacute libertada vai a Ilha de Pafos

em Chipre onde eacute recebida pelas Caacuterites que a banham e a ungem com oacuteleo sagrado Isso

parece-nos uma forma de renovar a lsquovirgindadersquo o que equivaleria a um rito de purificaccedilatildeo como

o de Hera que durante os rituais em sua honra tinha sua virgindade renovada Tambeacutem depois o

cristianismo introduziraacute o batismo como ato de purificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo (e) O termo 115 A palavra λέχος tem o significado de ldquoleitordquo mas em alguns contextos tambeacutem pode significar ldquouniatildeo clandestinardquo Neste caso junto da palavra εύνην quer dizer ldquoleito nupcialrdquo o que proclama as atividades sexuais cf BAILLY op cit p 1185 Em PEREIRA opcit p 346 encontra-se aleacutem de lsquoleitorsquo a traduccedilatildeo lsquoninhorsquo e lsquotumbarsquo

62

empregado por Hefesto ao referir-se a Afrodite ao reclamar da situaccedilatildeo para Zeus eacute sugestivo

da propriedade de descontrole do desejo que escapa do domiacutenio do indiviacuteduo O aspecto de

irracionalidade que une animais humanos e deuses aproximando-os pela sua filogecircnese ndash como

jaacute se colocou antes ndash estaacute expresso na palavra κυνώπιδος que tem o sentido de expressar o lsquoolhar

de uma cadelarsquo revelando uma imprudecircncia e um atrevimento (f) A questatildeo do olhar nessa cena

eacute relevante pois haacute os olhares dos deuses sobre os amantes e sobre o trabalho astucioso de

Hefesto haacute o olhar de anguacutestia do marido traiacutedo haacute o olhar de Afrodite (g) Finalmente o que jaacute

se anunciou variadas vezes o conflito que o desejo pode gerar entre os sujeitos

Vejamos como Afrodite eacute descrita em Hesiacuteodo em se considerando seus atributos apoacutes

seu nascimento na espuma do mar vinda do ceacuteu isto eacute de Urano castrado Diz Hesiacuteodo sobre

essa deusa

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha 203 coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice116 206

Assim um uacutenico dever foi determinado a Afrodite as questotildees de Φιλότητά (amor) que

envolvem homens e deuses e portanto tambeacutem o gozo e os enganos Hesiacuteodo usa pois a

palavra philia referindo-se ao amor

Muitas outras lendas satildeo narradas sobre Afrodite tal a importacircncia da grande deusa do

Mediterracircneo Uma das histoacuterias fala dos filhos que Afrodite teve com Ares (Harmonia Deimo

Fobo e Eros) Eros acompanhava sempre a matildee com suas flechas provocando alegria e dor Em

um estaacutegio posterior quando a filosofia passou a indicar conceitos a palavra ερος (Eros)

comeccedilou a ser usada para indicar envolvimentos amorosos tendo-se mantido ateacute hoje em nossa

sociedade ao lado do adjetivo lsquoafrodisiacuteacorsquo reminiscecircncia de Afrodite

Quanto a Fobo embora natildeo haja lenda sobre ele passou a designar lsquofobiarsquo medo e

vincula-se de alguma forma agraves questotildees afetivas unindo ldquodesejordquo e ldquomedordquo o eterno conflito do

macho e da fecircmea

Em algumas representaccedilotildees iconograacuteficas Afrodite aparece com o epiacuteteto Panopla

Los griegos conferiacutean a su figura la idea de la ldquoguerrardquo en el terreno del amor y al mismo tiempo la vinculaban con el mundo de los muertos pues el amor y la muerte son elementos y condiciones indispensables para la renovacioacuten de los ciclos de la vida y de

116 Traduccedilatildeo de TORRANO J A A op cit p 117

63

los seres Asi fue adorada junto a Hermes como Subterracircnea y en algunos cementerios como Afrodita Escotia (de skotos = oscuridad)117

Afrodite recebeu outros epiacutetetos que remetem ao seu aspecto enigmaacutetico como Escoacutecia

(a lsquoescurarsquo) Androacutefonos (lsquoassassina de homensrsquo) Epitiacutembria (lsquodas tumbasrsquo) Quanto ao seu

epiacuteteto Melecircnis (lsquoa negrarsquo) Pausacircnias explica como causa o fato de que a maior parte dos atos

sexuais se daacute agrave noite Essa explicaccedilatildeo eacute considerada ingecircnua pelos autores comtemporacircneos pois

tambeacutem esse epiacuteteto parece estar relacionado agraves caracteriacutesticas de vida e morte que fazem parte

dos ciclos de fertilidade

Afrodite tambeacutem era conhecida como Afrodite Pandecircmica representando o aspecto

carnal e vulgar do amor Assim era vinculada com a prostituiccedilatildeo e vaacuterias prostitutas trabalhavam

em seu santuaacuterio em Acrocorinto Considerava-se que essas prostitutas tinham um caraacuteter

sagrado e uma delas imortalizou-se como modelo desnudo para que Praxiteles pudesse realizar

uma estaacutetua de Afrodite

Assim como o amor as histoacuterias de Afrodite satildeo interminaacuteveis

O domiacutenio de seu impeacuterio natildeo tem fronteiras e Eros seu filho igualmente herdou o

caraacuteter de peregrinaccedilatildeo de sua matildee Ambos matildee e filho aparecem na trageacutedia grega tendo sido

destacado o aspecto de perambulaccedilatildeodeliacuterio

Tomemos como exemplo um trecho da Antiacutegona de Soacutefocles (versos 785-790)

Vagas sobre as ondas 785 e penetras em rebanhos campestres De ti nenhum dos deuses escapa nenhum dos efecircmeros homens Quem tocas delira118 790

Quanto agrave Afrodite Euriacutepides (vs 447-450) destaca seu domiacutenio abrangente e revela

como essa propriedade inerente agrave deusa perpassa pelos mortais Natildeo haacute como resistir a ela que

estaacute em todas as partes no ceacuteu na terra e no mar fazendo florescer a vida Vejamos

Ela percorre o eacuteter ela estaacute nas ondas 447 do mar a Ciacutepria eacute dela que tudo floresce eacute ela a que semeia e a que daacute amor a quem devemos o nascimento da terra119 450

117 MAVROMATAKI Maria Op cit p 89 118 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 p 61 119 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 135

64

52 ndash AacuteRTEMIS A LIBERDADE E A VIRGINDADE

Poderiacuteamos introduzir os comentaacuterios sobre Aacutertemis iniciando-os com um

questionamento por que ndash apesar da nudez e dos olhares ndash desejou Aacutertemis manter-se virgem

Antes de explicarmos melhor nossa colocaccedilatildeo inicial vejamos quem eacute Aacutertemis

Filha de Leto e de Zeus nasceu junto com seu irmatildeo Apolo o que os colocou lado a lado

no panteatildeo grego e o que fez que tivessem muitos elementos em comum constituindo-se

Aacutertemis de acordo com a tradiccedilatildeo sua versatildeo feminina

Vaacuterias satildeo as lendas sobre Aacutertemis Em Hesiacuteodo os versos 918-920 dizem somente que

Leto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechas 918 prole admiraacutevel acima de toda a raccedila do Ceacuteu gerou unida em amor a Zeus porta-eacutegide120 920

Alguns comentaacuterios sobre esses trecircs versos parecem-nos dignos de consideraccedilatildeo Um

deles eacute o fato de que Hesiacuteodo jaacute coloca emparelhados Apolo e Aacutertemis considerando-os como

ldquoprole admiraacutevelrdquo sobre ldquotoda a raccedila do Ceacuteurdquo o que seraacute repetido no Hino Homeacuterico a Aacutertemis

(Hino XXVII ndash veja anexo B) O outro eacute a questatildeo da fecundidade como ato de amor (no texto

grego encontra-se novamente a palavra Φιλότητι)

De acordo com uma das lendas que Graves narra Leto pariu os filhos em Ortiacutegia perto

de Delos Assim que acabou de nascer Aacutertemis ajudou a matildee em seu outro parto pois o

nascimento de Apolo levou nove dias de trabalho121 Por isso foi adorada pelos deuses tambeacutem

como deusa do parto chegando mais tarde a ser confundida com Iliacutetia a deusa do parto

Recebeu o epiacuteteto de Aacutertemis Brauronia em Brauron onde havia um santuaacuterio dedicado a ela

As mulheres que tinham um parto normal faziam sacrifiacutecios em honra agrave deusa Outros fieacuteis

levavam agrave deusa como oferenda roupa de mulheres que haviam morrido no parto

Em Eacutefeso Aacutertemis tinha um outro epiacuteteto Era conhecida como Kuroacutetrofos pois se

encarregava de cuidar das crianccedilas Como Heacutestia tambeacutem era uma deusa da iniciaccedilatildeo que

ajudava os jovens no periacuteodo de transiccedilatildeo entre a adolescecircncia e a idade adulta Havia rituais

especiais invocando seu apoio Como parte da iniciaccedilatildeo algumas jovens deviam servir em seu

120 HESIacuteODO Op cit p 157 121 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 p 68

65

templo especialmente em Brauron para aprender como se dava a passagem para um outro

estaacutegio da vida No periacuteodo em que permaneciam nessa iniciaccedilatildeo as jovens eram chamadas de

akti do grego άrκτοι ou seja ldquoursasrdquo Um mito explicando esse periacuteodo de servidatildeo conta que

um urso das redondezas costumava visitar a cidade de Brauron regularmente As pessoas o

alimentavam e com isso o urso foi domesticado e ficou trataacutevel Poreacutem uma jovem o provocou

e ele enraivecido matou-a Segundo outra versatildeo ele arrancou os olhos dela O irmatildeo da garota

matou o urso o que fez com que Aacutertemis ficasse furiosa Daiacute para a frente ela ordenou que as

jovens agissem como urso domesticado em atitude de reparaccedilatildeo por sua morte

Isso parece deixar claro a ldquodomesticaccedilatildeordquo por que deveriam passar as jovens antes do

casamento favorecendo um comportamento doacutecil e submisso face ao esposo pois uma reaccedilatildeo de

insubordinaccedilatildeo deixaria enfurecido natildeo soacute o esposo como tambeacutem a divindade

Aacutertemis era conhecida ainda como Aacutertemis Ortia em Esparta laacute tambeacutem como iniciadora

de jovens que se encaminhavam para a idade adulta e portanto como cidadatildeos

Os gregos a consideravam uma deusa virgem afastada dos jogos enganosos da seduccedilatildeo

Talvez esse devesse ser um dos atributos das deusas (Aacutertemis e Heacutestia) para que pudessem servir

de guia agraves jovens ndash tambeacutem virgens ndash para uma etapa da vida de mudanccedila pessoal e social

considerando-se aiacute um movimento da vida de liberdade da jovem para as ldquoamarrasrdquo e a

dependecircncia de um esposo e de filhos

Aacutertemis ao contraacuterio continuava como deusa virgem livre e independente caccedilando nos

bosques e nas montanhas banhando-se nos rios bailando e soltando gritos de clamor vinculada

agraves suas origens ancestrais

Graves reporta-se a uma lenda narrada por Pausacircnias em que enquanto se banhava em

um rio Aacutertemis foi vista pelo priacutencipe caccedilador Acteacuteon filho de Aristeu Indignada transformou-

o em um cervo que foi perseguido e morto por sua proacutepria matilha122

Nessa lenda Acteacuteon eacute punido pelo seu olhar por ter devassado a nudez divina A reaccedilatildeo

de Aacutertemis diante desse gesto calado foi violenta evocando o conflito que o desejo cria entre os

contraacuterios O que o olhar de Acteacuteon significava Para Aacutertemis estava impliacutecito que ldquoO olhar

122 GRAVES Robert Op cit p 103

66

deseja sempre mais do que o que lhe eacute dado verrdquo123 Aacutertemis rejeita a seduccedilatildeo jogo enganador

que vem da caccedilada silenciosa do olhar Aacutertemis sai vencedora da cena em que Acteacuteon eacute

decomposto e desaparece como perdedor

Afrodite quando deseja conquistar Anquises estaacute cocircnscia de que a seduccedilatildeo eacute uma farsa e

que o seduzido (no caso Anquises) eacute o que deixa a marca de sua experiecircncia Por isso Anquises

suplica a salvaccedilatildeo a Afrodite

Acteacuteon poreacutem como sedutor perde seu rumo Na origem da liberdade Aacutertemis coloca a

sua virgindade Diferentemente do poder libertaacuterio o poder do desejo eacute ilusoacuterio e errante

Todas as tentativas de vida afetiva (philoacutetes) de que Aacutertemis participa satildeo enfrentadas

com violecircncia Temos pois a ambivalecircncia do desejo de independecircncia que se opotildee ao desejo da

persuasatildeo e do engano que eacute sempre sedutor doce mas tambeacutem enganador (verificar item 2)

Haacute particularmente dois epiacutetetos de Aacutertemis amplamente conhecidos

Um deles eacute Potnia Theron a deusa dos animais selvagens como refere-se Homero a ela

considerando seu aspecto poderoso e veneraacutevel O maior prazer de Aacutertemis era correr nos

bosques e caccedilar com seu arco de ouro (veja anexo Hino a Agravertemis) O veado era um de seus

animais prediletos aacutegil e veloz Estaacute relacionado agrave deusa na iconografia e em algumas lendas

como a que se viu sobre Aacutecteon A proacutepria deusa transformou-se em corccedila durante o caso com os

gecircmeos Aloiacutedas que na pressa de a atingirem mataram-se um ao outro Como deusa caccediladora

era tambeacutem adorada como senhora da natureza a que vivia no campo Dessa forma recebia

ainda o epiacuteteto de Agroacutetera protetora das plantas selvagens e das aacutervores Aleacutem disso era

conhecida por seu envolvimento com rios e lagos onde se banhava e em cujas margens

descansava danccedilava e cantava com as ninfas com as caacuterites e com as musas

Embora aacutegil e liberta em seu espaccedilo a floresta as montanhas o campo os rios e os lagos

a natureza acolhedora Aacutertemis se limita a esse contexto como soberana das feras e caccediladora

indomaacutevel Opotildee-se a Afrodite que na sua eterna mobilidade do desejo natildeo tem limites Como

coloca Fontes em seu estudo ldquoO territoacuterio das castitas eacute fechado e secreto enquanto o universal

domiacutenio de Afrodite expande-se do Ponto Euxino aos limites de Atlasrdquo124

123 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 p 9 124 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 34

67

Como defensora da virgindade tinha companheiras virgens de caccedila e de danccedila nas

margens dos rios e guardava sua castidade com o emblema protetor do arco e da flecha

Diferentemente de Eros cujas flechas tinham como alvo colocar o desejo em algueacutem Aacutertemis

usava suas flechas como proteccedilatildeo de sua virgindade e de sua selvageria pois a morte fazia parte

do ambiente da natureza (phyacutesei)

Nesse sentido Aacutertemis parece ser uma deusa de origem distante remontando agraves mulheres

ambiacuteguas conhecidas como Amazonas e que representavam um modelo miacutetico da mulher que se

privava do contato com os homens situando-se ldquono imaginaacuterio dos antigos natildeo apenas na

fronteira em que barbaacuterie e cultura se enfrentam e se contestam ela eacute radicalmente a outra

assombrada por uma dupla alteridaderdquo125

A questatildeo da dupla alteridade foi apontada por Lissarrague quando se reporta agraves

Amazonas como indica Fontes Esse eacute um aspecto interessante que revela como Aacutertemis mulher

e assassina feminina e baacuterbara caccediladora que habita as florestas densas e as montanhas ermas

natildeo tem cidade e que seria por isso ldquouma ameaccedila permanente para o mundo civilizadordquo126

imagem combatida pelo homem ateniense e civilizador representado nas figuras dos heroacuteis

Heacutercules e Teseu nas cenas iconograacuteficas em que atacam as Amazonas

Esse fato remete agrave questatildeo da tradiccedilatildeo revelando-se Aacutertemis um modelo miacutetico ldquodos

primoacuterdios de Atenas quando as mulheres eram autocircnomas facto monstruoso aos olhos dos

ateniensesrdquo127 De fato os homens atenienses valorizavam a sua posiccedilatildeo de forccedila e de ldquocidadatildeos

hoplitasrdquo considerando-se os defensores da cidade e Aacutertemis pode ter traccedilos semelhantes a essas

Amazonas de quem decerto reparte viacutenculos dessa autonomia recusando contato com os

homens o que a manteacutem uma deusa virgem com vaacuterias lendas em que mata homens jovens quer

seja para evitar o asseacutedio despertado pelo olhar quer seja por uma forma de vinganccedila violenta

Como jaacute mencionamos antes Aacutertemis era amplamente conhecida como Potnia Theron

Aleacutem disso como a Senhora de Eacutefeso

Em Eacutefeso seu templo tornou-se uma das sete maravilhas do mundo Laacute ela era venerada

como uma matildee deusa e de acordo com Graves ldquoela era adorada em sua segunda pessoa ou seja

125 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 22 126 LISSARRAGUE Franccedilois Afiguraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 p266 127 LISSARRAGUE Franccedilois Idem p267

68

como ninfa uma Afrodite orgiaacutestica com um consorte masculino sendo seus emblemas pessoais

a tamareira128 o cervo e a abelha129rdquo130

Isso reforccedila a dualidade de Aacutertemis ora como caccediladora-virgem de instinto selvagem e

primitivo agrave maneira das amazonas ora como suprema ninfa-deusa agrave maneira das antigas

sociedades totecircmicas

Outro aspecto jaacute destacado por noacutes eacute que muitas histoacuterias miacuteticas que envolvem Aacutertemis

ressaltam a questatildeo do olhar como preluacutedio de uma atitude libidinosa Aleacutem da famosa lenda de

Acteacuteon e a dos gecircmeos Aloiacutedas haacute um outro relato que mostra como a mulher era observada

pelo homem na Greacutecia antiga Falando da representaccedilatildeo feminina diz Lissarrague

Tratando-se da imagem das mulheres vimos jaacute a sua diversidade para concluir reiteramos que matildee ou esposa hetera ou muacutesica Amazona ou meacutenade a mulher eacute sempre dada em espetaacuteculo como um objecto aos olhos do homem grego o sujeito que olha131

Voltando ao nosso relato que destaca a importacircncia do olhar na cultura grega temos que

Alfeu um deus fluvial filho de Teacutetis apaixonou-se por Aacutertemis e ocultou-se perto de onde a

deusa se banhava com suas amigas as caacuterites e as ninfas para conseguir se unir a ela Aacutertemis

percebendo as intenccedilotildees de Alfeu cobriu com lodo branco seu rosto e das companheiras de

forma que Alfeu natildeo pudesse reconhececirc-la Na regiatildeo da Eacutelida Aacutertemis passou a ser chamada e

venerada como Aacutertemis Alfeacuteia132

Aleacutem de proteger a si proacutepria nessas histoacuterias em que preserva sua virgindade haacute outras

lendas que contam que Aacutertemis exigia de suas companheiras recato e preservaccedilatildeo de sua

condiccedilatildeo de castidade (autonomia) Assim uma lenda bastante conhecida eacute a que narra que

Calisto que fazia parte de seu grupo fora seduzida por Zeus e engravidara Zangada Aacutertemis

transformou-a em uma ursa e chamou a matilha para persegui-la e devoraacute-la Poreacutem Zeus

interveio pegando-a e levando-a para o ceacuteu onde a colocou entre as estrelas

128 De acordo com a lenda Leto deu a luz a Apolo ajudada pela receacutem-nascida Aacutertemis entre uma oliveira e uma tamareira no Monte Cinto em Delos 129 O siacutembolo da abelha estaacute relacionado a Afrodite Uracircnia (rainha da montanha) e nesse caso por comparaccedilatildeo a Aacutertemis Como deusa-ninfa Afrodite destruiu o rei sagrado com quem havia copulado no cume de uma montanha agrave maneira da abelha-mestra que aniquila o zangatildeo arrancando-lhe os oacutergatildeos sexuais 130 GRAVES Op cit p 87 131 LISSARRAGUE Franccedilois Op cit p268 132 GRAVES Op cit p 104 Refere-se a Pausacircnias (I 264) mencionando o fato de que a estaacutetua mais famosa de Aacutertemis em Atenas se chamava ldquoa do rosto brancordquo As sacerdotisas nos rituais em Letrini e Ortiacutegia cobriam seus rostos com argila branca

69

A lenda possui outras variantes e em todas a figura de Aacutertemis estaacute presente

Parece-nos que a imagem de Aacutertemis que figura na trageacutedia de Euriacutepides (Hipoacutelito) eacute

uma imagem renovada conciliando traccedilos da autonomia da virgindade com a jovem feminina

recatada sem os traccedilos de violecircncia daquela que pune as que natildeo a seguem como virgem e de

errante das florestas que a marcaram na eacutepoca arcaica

Teria havido talvez uma fusatildeo das duas alteridades prevalecendo a metaacutefora do feminino

no que concerne o afeto silencioso a atenccedilatildeo a ajuda

Assim na trageacutedia Euripidiana o Coro das mulheres de Trezena proclama

E costuma estar sujeito o equiliacutebrio instaacutevel do ser feminino a terriacuteveis embaraccedilos nos deliacuterios e nas dores do parto Este sopro dardejou um dia no meu ventre 165 mas gritei pela uracircnia sagitaacuteria propiacutecia aos partos Aacutertemis e muito venerada sempre com a graccedila divina ela me tem visitado133

A virgindade de Aacutertemis eacute exaltada em um relacionamento estreito com a natureza

(phyacutesei) nos seus aspectos intocaacuteveis Por isso Hipoacutelito oferece a Aacutertemis na peccedila do mesmo

nome flores colhidas em um campo imaculado

133 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 115

70

Diz Hipoacutelito agrave deusa Aacutertemis

Para ti oacute Soberana de um campo sem maacutecula eu trago esta grinalda que eu mesmo teci ali pastor natildeo ousa levar seu rebanho 75 nem o ferro jamais passou imaculado na primavera somente a abelha134 o percorre135

Poreacutem a deusa inviolaacutevel o seu lado casto e feminino pertence ao sagrado agravequele

espaccedilo em que os deuses tecircm um poder de determinar e direcionar o caminho dos mortais Isto

posto jaacute mostra que o excesso de admiraccedilatildeo ao tributo de castidade natildeo estaacute de acordo com a

natureza humana O que eacute adequado aos deuses estaacute muitas vezes distante do poder do homem

A trageacutedia de Euriacutepedes mostra que haacute duas forccedilas divinas entrelaccediladas no ldquoduelordquo da

trama Aacutertemis representando a castidade e Afrodite representando o desejo Tendo perdido a

proporccedilatildeo desse espaccedilo reservado aos deuses Hipoacutelito eacute punido por sua transgressatildeo pois a ira

dos deuses natildeo pode ser controlada

Esse paradoxo entre o desejo e a castidade faz parte de toda a histoacuteria da humanidade e

no Cristianismo a Histoacuteria vai registrar muitos fatos de envolvimento amoroso punidos como

ldquocrimesrdquo e muitas outras histoacuterias de supliacutecios de ldquosantosrdquo para atingir a castidade no intuito de

querer livrar-se do desejo que eacute biologicamente constituinte do humano

A deusa Aacutertemis faz parte do enredo de outra trageacutedia de Euriacutepides Ifigecircnia em Tauris

baseada em uma lenda que conta o sacrifiacutecio de Ifigecircnia filha de Agamenon

Segundo uma versatildeo agrave deusa comprazia a oferenda de sacrifiacutecio humano e tendo-se

zangado pelo fato de Agamenon gabar-se apoacutes atirar em um cervo de que ela natildeo poderia tecirc-lo

feito melhor ordenou como puniccedilatildeo que a filha dele Ifigecircnia fosse sacrificada em Aulis sem o

que natildeo haveria vento para que a frota dos barcos pudesse partir para a guerra de Troacuteia

Outra versatildeo que eacute a que Euriacutepedes usa em sua peccedila narra que quando Ifigecircnia ia ser

sacrificada Aacutertemis compadeceu-se dela e colocou em seu lugar um gamo Quanto agrave Ifigecircnia

transportou-a a Tauris em seu famoso santuaacuterio onde a jovem se tornou uma sacerdotisa A

lenda diz ainda que Ifigecircnia enviava os estrangeiros ao altar de Aacutertemis onde eram assassinados

durante os rituais como oferenda para honrar a deusa

134 Como jaacute comentamos anteriormente haacute a menccedilatildeo a um dos siacutembolos de Aacutertemis a abelha (ao lado da corccedila e da tamareira) destacando seu aspecto de feminilidade 135 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 109

71

Em sua trageacutedia Euriacutepides redime a imagem de Aacutertemis colocando na boca de Ifigecircnia

as seguintes palavras ldquoMen of this country being murderers impute their sordid practice to

divine command That any god is evil I do not believerdquo136

53 ndash ATENA A DEUSA VIRGEM DA SABEDORIA E DA GUERR A

Comeccedilamos sobre Atena ndash a grande deusa dos atenienses ndash indagando para os gregos de

Homero que sentido teria ela Por que ela teve uma forma de concepccedilatildeo e de nascimento que a

trouxe sob a forma de virgem Ao lado de sua imortalidade ndash comum a todos os deuses ndash ela foi

a uacutenica que manifestou desde o nascimento em sua natureza divina a ldquoimaculabilidaderdquo Por

que a sociedade grega ateniense voltava o seu olhar para a deusa mais sublime e mais reverente

ao lado de Zeus

Atena nasce jovem (que para os gregos a velhice era um estado de depauperamento)

imortal (jamais teria sua natureza obscurecida) bela (junto com o frescor da juventude pertence

aos deuses tambeacutem o dom da beleza) guerreira (saiu da cabeccedila do pai armada e ecoando gritos

beacutelicos) e virgem (o que a distancia mais do que os outros deusesda natureza humana)

Quando se confrontam homens e deuses o que os separa eacute justamente a expressatildeo

simboacutelica da corporalidade dos seres divinos Dessa forma a divindade grega afastava-se do

natural da realidade do humano elevando-se a um tipo de existecircncia superior

A ligaccedilatildeo de Atena com a forma de existecircncia terrena desfaz-se desde antes do seu

nascimento quando o parto podia simbolizar ldquogravidaderdquo do fundamento materno O misteacuterio de

seu nascimento a torna sublime pois ela chega com forma ritualiacutestica que celebra a vida Ela traz

uma forma de reconhecimento que pode ter um aspecto cultural profundo gerada nas entranhas

da matildee (Meacutetis uma entidade feminina) vem ao mundo pelo acolhimento do pai que a recebe

reconhecendo-lhe a sabedoria superior (ele aceita essa nova deusa renovaccedilatildeo de uma deusa

antiga de outro periacuteodo)

Se Zeus reconhece a verdade em Atena os cidadatildeos de Atenas recebem a filha de Zeus

como uma manifestaccedilatildeo advinda da profundeza maternal da terra imaculada na sua origem

136 EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt ldquoHomens deste paiacutes sendo assassinos imputam sua soacuterdida praacutetica agrave ordem divina Que algum deus seja malfazejo eu natildeo acreditordquo (traduccedilatildeo nossa)

72

Entretanto presente e passado fundem-se nessa nova forma de olhar o mundo e a forccedila viril

coloca-se como parte da elaboraccedilatildeo feminina o que produz a figura maacutescula saacutebia

determinada poderosa da filha de Zeus Portanto de acordo com a concepccedilatildeo do vasto universo

grego Atena era uma entidade de caraacuteter singular embora esse caraacuteter fizesse parte de um

mundo em si completo Um mundo bem diversificado mas completo eacute o que reflete a virgem

filha de Zeus Atena

Enquanto Afrodite emana o encanto que excita e arrebata a que com seu sorriso doce

cativa os sentidos Atena faz despertar a sabedoria as ldquoestrateacutegiasrdquo que direcionam para resolver

necessidades vitais Entatildeo os traccedilos que os deuses ostentam seja Afrodite com sua sedutora

doccedilura seja Aacutertemis com sua meiguice brincalhona seja Atena com sua astuacutecia complexa satildeo

traccedilos humanos o que significa que tecircm em si todo o sentido de domiacutenio da existecircncia humana

Atena pois remete ao seu olhar sobre os cidadatildeos de Atenas o olhar destes sobre ela

essa deusa armada cujo peito ostenta um escudo apavorante objeto de tantas reflexotildees

Referente a esse assunto coloca Otto

ldquoVemos uma deusa que coberta por seu escudo estaacute disposta a lutar e proteger Mas isso seria tudo que se pensava a seu respeito quando a crenccedila nela era viva Podemos chamaacute-la de Virgem do Escudo Virgem da Batalha Para essas perguntas natildeo temos resposta alguma Seja como for uma tal designaccedilatildeo natildeo convivia com Atena homeacuterica por muito que ela se mostre combativa e poderosa na luta ela eacute muito mais que uma deusa da batalha e eacute inimiga declarada dos espiacuteritos selvagens cujo ser se consuma na fruiccedilatildeo do tumulto de guerrardquo137

Essa uacuteltima colocaccedilatildeo de Otto nos faz pensar em uma provaacutevel diferenccedila entre a

virgindade de Atena e a de Aacutertemis A virgindade de Aacutertemis eacute ldquoindomaacutevelrdquo primitiva natildeo

ldquoexploradardquo mais ligada aos elementos terrestres e agrave natureza como sua representaccedilatildeo simboacutelica

enquanto que a virgindade de Atena eacute ontoloacutegica pois faz parte da elevaccedilatildeo e excelecircncia do ser

como forma de um aprimoramento da sabedoria quase que vinculada a uma postura espiritual

Poreacutem ambas no que concerne o aspecto da virgindade devem manter o viacutenculo com

deusesdeusas de eacutepocas anteriores

Desde a sua apariccedilatildeo vinda da cabeccedila do pai Atena aleacutem de revelar sua virgindade e sua

identidade guerreira apresenta o destaque de seus ldquoolhos glaucosrdquo (γλαυκώπιδα) o que segundo

alguns autores estaacute relacionado com olhos de coruja na sua sagacidade abrangente do olhar

137 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p36

73

Para outros autores refletiria a cor esverdeada do mar (veja anexo Hino Homeacuterico a Atena)

pois Atena eacute de natureza aquaacutetica quando ela nasceu diz o Hino Homeacuterico XXVIII ldquoo mar

furioso elevou-se no alvoroccedilo de ondas de escuro esplendorrdquo

Como guerreira ela incita os guerreiros antes da batalha e lhes daacute acircnimo138 Com sua

eacutegide agita os homens ao ardor beacutelico Mas natildeo soacute os incita ajuda-os tambeacutem na forccedila e no

poder do combate com sua presenccedila saacutebia para que os humanos (os gregos) natildeo fraquejem

Na Odisseacuteia quando Odisseu seu filho e seus poucos guerreiros fieacuteis que o acompanham

vecircem-se diante do inimigo nos momentos finais de disputa Atena ergue sua eacutegide e o inimigo

tomado de terror dissipa-se

A sua presenccedila miraculosa proclama o sublime e eacute suficiente para causar

estremecimentos para serenar combates para por fim a situaccedilotildees angustiantes

Seraacute que mais tarde tambeacutem os judeus cristatildeos vatildeo se inspirar nessa deusa mediterracircnea

para conferir a Maria tal poder

O seu olhar cruza-se com seu poder A sua eacutegide ao mesmo tempo que amedronta impotildee

respeito Atena tambeacutem eacute detentora de uma alteridade nessa forma de Poder ldquofeito maacutescarardquo

Nesse ponto o olhar de Atena cruza-se com o olhar de Gorgoacute139 e como diz Vernant

suscita

ldquoo medo em estado puro o Terror como dimensatildeo do sobrenatural Este medo com efeito natildeo eacute uma decorrecircncia nem algo motivado como o que provocaria a consciecircncia de um perigo Eacute um medo primeiro logo de entrada e por si mesma Gorgoacute suscita o pavor porque se apresenta no campo de batalha como um prodiacutegio (teacuteras) um monstro (peacutelōr) em forma de cabeccedila (kephaleacute) terriacutevel e assustadora (de ver e ouvir) (deineacute te smerdneacute) com um rosto de olho terriacutevel (blousurocircpis) lanccedilando um olhar de pavor (deinograven derkeacutenē)rdquo140

A lenda da Medusa se transfigurava em vaacuterias situaccedilotildees ligadas a Atena Uma delas dizia

que ela tinha sido viacutetima de uma metamorfose provocada pela ira de Atena Conta-se que Gorgoacute

138 A este respeito ver HOMERO Iliacuteada op cit canto 2 v446 e seguintes 139 Gorgoacute como eacute citado por VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 Refere-se a Goacutergona (τοργω) a Medusa mortal e filha de duas entidades mariacutetimas A cabeccedila da Goacutergona era rodeada de serpentes e seus olhos brilhantes e o olhar tatildeo penetrante que causava terror e petrificava Atena colocou a cabeccedila da Medusa morta por Perseu em sua eacutegide a fim de que os inimigos fossem petrificados 140 VERNANT Jean-Pierre ndash Idem p50

74

era uma bela jovem que ousara rivalizar sua beleza com a deusa Atena Como ela tinha muito

orgulho de seus cabelos longos Atena transformou-os em serpentes

Na tradiccedilatildeo grega os guerreiros espartanos manifestavam a sua selvageria atraveacutes dos

cabelos longos como crina de cavalo Por ocasiatildeo dos casamentos esses guerreiros mantinham

uma tradiccedilatildeo ritual de simular um rapto da moccedila com quem iam se casar A moccedila (koacuterai as

jovens virgens) raptada era entregue a uma mulher que lhe raspava o cabelo A selvageria da

cabeleira longa da mocinha que se assemelhava a ldquouma potranca em liberdaderdquo no dizer de

Vernant era cortada Continuando diz ele

Para a jovem noiva o ritual da cabeccedila raspada joga com estes dois simbolismos contraacuterios e que se reforccedilam em sua oposiccedilatildeo pois a esposa se deve distinguir-se da patheacuternos para entrar no estado conjugal teraacute tambeacutem no mesmo sentido de diferenciar-se nitidamente de seu marido141

O cortar o cabelo eacute uma forma de domesticaccedilatildeo como vimos em Aacutertemis de transformar

a selvageria da jovem virgem ndash excluiacuteda do casamento ndash para uma vida de submissatildeo a um

esposo e a uma vida de reproduccedilatildeo Da virgem agrave mulher casada e matildee

Aacutertemis manteacutem-se virgem na sua representatividade selvagem da natureza Atena

manteacutem-se virgem na representativa selvagem dos combates

Mas apesar de ser uma deusa guerreira Atena distingue-se radicalmente de Ares pois

enquanto o deus da guerra eacute sanguinolento furioso e desatinado Atena goza de um caraacuteter justo

equilibrado sereno Atenas eacute mais que uma guerreira eacute uma pacificadora Atena eacute prudente e

digna enquanto Ares eacute odioso e coleacuterico

Homero tanto na Iliacuteada quando Atena chama Aquiles agrave razatildeo como na Odisseacuteia

quando Atena encaminha Odisseu agrave sua razatildeo e ao seu destino parece revelar uma consideraccedilatildeo

pela moralidade antes um espiacuterito elevado pela prudecircncia e pela ponderaccedilatildeo do que uma atitude

triunfante frente a uma tensatildeo

Esses sentimentos nobres de Atena a unem aos heroacuteis Aquiles e Odisseu Natildeo eacute soacute a

arguacutecia beacutelica que conta mas a ponderaccedilatildeo refletida A prudecircncia tambeacutem ela eacute uma forma de

sagacidade

Assim o olhar de Terror ao qual Vernant se refere eacute tambeacutem um olhar de prudecircncia de

cautela que faz parar e refletir que natildeo pode ser visto em uma impetuosidade impensada

141 VERNANT Jean-Pierre op cit p59

75

Como coloca Otto em seu estudo sobre os deuses gregos

O que Atena mostra ao homem o que dele quer e lhe inspira eacute por certo audaacutecia vontade de vencer e valentia Mas tudo isso natildeo quer dizer nada sem prudecircncia e luacutecida clareza Daiacute eacute que emana sua atividade com a plenitude da essecircncia da deusa da vitoacuteria Procedendo dessa origem sua luz natildeo ilumina apenas o guerreiro em combate onde quer que feitos notaacuteveis se realizem e se crie o acircnimo heroacuteico ela estaacute presente

Sempre procurando pista e mexendo na questatildeo da virgindade pareceu-nos que em se

enfileirando as deusas virgens no ldquofrontatildeordquo de nosso ldquotemplordquo verifica-se que a virgindade de

Atena coloca-se em um plano diferente do da virgindade atribuiacuteda a Aacutertemis e a Heacutestia

Aacutertemis eacute um ser selvagem pertence a um poacutelo que vai da natureza inexplorada

primitiva a um mundo civilizado maculado por um novo agir Sua virgindade daacute-se nessa tensatildeo

de equiliacutebrio entre o velho e o novo entre o passado e o presente entre o selvagem e o

civilizado entre dois poacutelos sempre numa dupla alteridade

Heacutestia eacute um ser contemplativo Assim como Aacutertemis relaciona-se a um elemento da

terra ao fogo que a natureza acolhe em todos os seus muacuteltiplos sentidos (veja 54) pois o fogo

tambeacutem eacute constitutivo da terra Nesse sentido Heacutestia eacute uma figura ldquoabstratardquo e incorpoacuterea

Atena ao contraacuterio natildeo eacute nem selvagem nem contemplativa Ela eacute a representaccedilatildeo de

uma consciecircncia luacutecida em estado de justiccedila e de pureza Ela eacute nesse sentido mais proacutexima agrave

ideacuteia do que a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde iraacute colocarem seus deuses e santos Atena jaacute tem um

ldquoespiacuteritordquo refinado

Por isso em Atenas ela tambeacutem era chamada de Niacuteke e na sua estaacutetua Partheacutenos de

maacutermore e ouro esculpida por Fiacutedias ela carrega em sua matildeo a imagem de Niacuteke a que distribui

daacutedivas e a que decide sobre faccedilanhas

O Paacuterthenon como ficou sendo chamado o templo que acolhia a estaacutetua de Atena tinha

um compartimento onde habitavam as sacerdotisas da deusa Daiacute o questionamento se

Paacuterthenon referia-se simplesmente ao templo de Atena (lsquoRoom of de Maidenrsquo) ou incluiacutea esse

espaccedilo habitado pelas sacerdotisas virgens (lsquoRoom of tue Maindensrsquo)142

Mas Atena natildeo tem apenas o lado viril guerreiro dos projetos das estrateacutegias da accedilatildeo

Atena natildeo eacute esposa nem matildee mas eacute uma deusa criativa e revela seu aspecto feminino na periacutecia

e na arte

142 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004

76

Dizem os autores que eacute apenas em um periacuteodo tardio que Atena se torna patrona da arte e

das ciecircncias Surgem nessa eacutepoca outras lendas como a de Aracne quando Atena teria

transformado a princesa Coacutelofon na Liacutedia em aranha invejosa que ficara da habilidade de tecer

da princesa

Segundo algumas fontes isso revelaria uma antiga rivalidade comercial entre os

atenienses e os liacutedio-cariates indicando pois uma versatildeo mais tardia da lenda que natildeo tem nada

em comum com as caracteriacutesticas de Atena

Outra lenda que se refere a Atena eacute sobre a sua denominaccedilatildeo de Palas Atena Conta essa

lenda revelando a nobreza de caraacuteter de Atena que ela estava brincando de artes marciais com a

filha de Triton Palas Em um dado momento preocupado com essa brincadeira das meninas

Zeus colocou sua eacutegide e Palas olhando para cima para ver o que era distraiu-se e foi ferida por

Atena vindo a falecer Em homenagem agrave amiga e querendo recuperar sua memoacuteria Atena fez

uma imagem de madeira da figura de Palas e enrolou-a com a eacutegide colocando-a perto de Zeus

Daiacute a origem de seu epiacuteteto Palas que enaltece a dignidade de seus traccedilos

Em nossa leitura e pesquisa Atena pareceu-nos revelar mais especificamente a

caracteriacutestica de virgindade dos gregos da eacutepoca de Homero

54 - HEacuteSTIA E A CASTIDADE

Para entender a deusa Heacutestia pareceu-nos importante retomar as funccedilotildees de Afrodite

Enquanto Afrodite eacute toda corpoacuterea linda sedutora doce Heacutestia eacute pouco representada

fisicamente silenciosa meiga

Dissemos que em Afrodite seu poder eacute determinado pelo olhar da seduccedilatildeo (απάτη) e da

uniatildeo amorosa (Φιλότης) e que implica movimento constante provocar um desejo contiacutenuo entre

os homens e ateacute entre os deuses - que eacute quando atraveacutes do desejo aproximam-se dos mortais

conhecendo-os melhor

Heacutestia ao contraacuterio tem seu poder emanado pelo desejo da fixidez da constacircncia da

manutenccedilatildeo da ordem da famiacutelia do equiliacutebrio das relaccedilotildees familiares da preservaccedilatildeo da

harmonia e da paz do controle Silenciosa sempre presente colocada no espaccedilo central da casa

no umbigo da casa (οικω) como diziam os gregos seu olhar eacute atento e vigilante promovendo o

77

recato das virgens (παρθένος) antes do casamento ela tambeacutem uma virgem que cuida do espaccedilo

da famiacutelia impondo respeito e interditando o incesto

Heacutestia tem uma importacircncia primordial mas era pouco representada pois fazia de tal

forma parte do espaccedilo domeacutestico que a lareira da famiacutelia era chamada de heacutestia onde ardia o

fogo intermitente o altar sagrado em que se ofereciam os sacrifiacutecios

Sobre essa presenccedila na casa dos homens que habitam a superfiacutecie terrestre diz o Hino

Homeacuterico a Heacutestia (XXIX veja anexo B) que ela constitui natildeo soacute o centro do espaccedilo familiar

mas tambeacutem eacute uma presenccedila constante em todos os templos dos deuses (honra concedida a ela

por Zeus) Como Zeus tambeacutem ela era filha de Reacuteia e de Crono e era venerada como a deusa

mais antiga do panteatildeo grego Nas casas diz o mesmo hino os sacrifiacutecios eram sempre

oferecidos a ela Como vivia no meio dos mortais todas as festividades familiares comeccedilavam e

terminavam com rituais laudatoacuterios agrave deusa o que criava uma solidariedade entre os

participantes unindo-os pela identidade comum

Heacutestia natildeo significava o fogo propriamente dito mas a lareira da casa o altar dos

sacrifiacutecios O fogo que queima no altar mobiliza o olhar e estaacute presente como elemento de

purificaccedilatildeo como siacutembolo de marca civilizatoacuteria como chama do desejo da sexualidade

Como elemento de purificaccedilatildeo o fogo arde em homenagem aos deuses em um gesto de

honra e de respeito em uma atitude em que o olhar capta o crepitar da presenccedila do divino nas

chamas

O fogo tambeacutem eacute usado como um elemento de civilizaccedilatildeo pois a presenccedila da deusa

Heacutestia se estendia agraves cidades gregas como continuaccedilatildeo da famiacutelia Nessas piras do espaccedilo

puacuteblico ardia a chama eterna Considerava-se aiacute um lugar de altar sagrado onde os estrangeiros

eram recebidos e os lsquoembaixadoresrsquo prestavam juramentos Os guerreiros antes de irem agrave guerra

pegavam fogo do altar de Heacutestia para levar com eles e os colonizadores o levavam quando iam

fundar uma nova colocircnia A importacircncia de Heacutestia eacute pois ldquohumanizadorardquo uma vez ela se

integra e participa da condiccedilatildeo humana quer como conhecedora do espaccedilo familiar quer como

impulsionadora de um estaacutegio civilizatoacuterio A pira estaacute sempre recebendo o fogo que arde para a

renovaccedilatildeo do velho e para uma ldquoressurreiccedilatildeordquo perioacutedica

A lareira (a heacutestia) que mantinha o fogo tambeacutem tinha uma accedilatildeo relacionada com a

transmissatildeo dos ritos de iniciaccedilatildeo dos jovens (παρθένος) que passariam de um estaacutegio a outro

78

tanto do ponto de vista pessoal como no aspecto social A jovem virgem saiacutea do espaccedilo da casa

do pai para o seu novo espaccedilo familiar com o esposo onde se esperava que se desse a uniatildeo dos

sexos para fins de que a fertilidade na terra tivesse continuidade Nesse sentido Heacutestia era a

deusa que olhava atenta as chamas da accedilatildeo fecundante do desejo

Portanto o olhar que o fogo simboliza pode ser purificador iluminador fecundante Eacute o

olhar vigilante que daacute seguranccedila Comparando-se pois a purificaccedilatildeo pelo fogo relativo agraves

atividades da lareiraheacutestia e a purificaccedilatildeo pelas aacuteguas como vimos em Afrodite no seu

ldquobatismordquo na sua renovaccedilatildeo apoacutes a traiccedilatildeo ao marido poderiacuteamos deduzir que o fogo de que

Heacutestia cuidava era uma forma de purificaccedilatildeo que simbolizava a tradiccedilatildeo dos costumes

relacionada a importantes aspectos sociais dos quais a famiacutelia e as cidades faziam parte Nesse

sentido o fogo que Heacutestia cuida revela uma forma de compreender os estaacutegios por que passa o

feminino diante do masculino na sua histoacuteria terrestre A renovaccedilatildeo a transformaccedilatildeo a uniatildeo

sexual o interdito fazem parte da civilizaccedilatildeo

Quanto agrave aacutegua parece-nos que associada a Afrodite que representa o ceacuteu a terra e o

mar seu simbolismo eacute a purificaccedilatildeo do desejo Afrodite emerge das aacuteguas e esse processo a

remete agraves fontes de origem reconciliada com uma nascente divina de vida nova

Em eacutepocas seguintes agrave antiguidade grega o cristianismo se apropriaraacute da renovaccedilatildeo do

banho nas aacuteguas como forma de purificaccedilatildeo Assim diz o apoacutestolo Mateus (3 5-6) referindo-se

ao batismo que Joatildeo Batista fazia no deserto ldquoE eram por ele batizados no rio Jordatildeo

confessando seus pecadosrdquo O batismo tem pois como finalidade retirar o pecado assegurando

uma regeneraccedilatildeo Essa concepccedilatildeo portanto foi apropriada pelo Cristianismo dos povos de

civilizaccedilotildees anteriores

Heacutestia como significante da lareira da casa ocupava um espaccedilo feminino pois cabia agrave

mulher ocupar-se das atividades domeacutesticas e a casa (οικος) era seu lugar Era ali que a mulher

estava protegida dos perigos que a vida exterior poderia representar

A jovem ao casar-se ia para a casa do marido o que exigia a ela uma mudanccedila natildeo soacute

de casa como tambeacutem de estado de virgem a esposa e matildee Portanto isso implica uma

mobilidade Heacutestia ao contraacuterio continuava fixa e virgem na casa paterna Para a jovem essa

questatildeo espacial era tambeacutem social e pessoal

79

Vejamos o que diz Vernant sobre isso

Essa permanecircncia de Heacutestia natildeo eacute de natureza apenas espacial Como ela confere agrave casa o centro que a fixa no espaccedilo Heacutestia assegura ao grupo domeacutestico a sua perenidade no tempo eacute pela Heacutestia que a linhagem familiar se perpetua e se manteacutem semelhante a si mesma como se em cada geraccedilatildeo nova nascessem diretamente ldquoda lareirardquo os filhos legiacutetimos da casa143

Como aspecto de uma sociedade patriarcal os casamentos eram endogacircmicos mantendo

uma tradiccedilatildeo de hereditariedade puramente paterna Deste modo Heacutestia cuidava da questatildeo da

fecundidade dissociada portanto da questatildeo do desejo Ela cuidava para que houvesse atraveacutes

da filha a prolongaccedilatildeo da ldquolinhagem paternardquo sem a necessidade ldquode uma mulher lsquoestrangeirarsquo

para a procriaccedilatildeordquo 144

Esse tipo de lugar ocupado pela mulher revela um aspecto de passividade e uma

caracteriacutestica de dominaccedilatildeo do homem cujo poder eacute o de garantir a fecundaccedilatildeo

A mulher eacute a estranha na casa do marido agrave qual ele pertence e quer dar continuidade

pois eacute o pai que firma as raiacutezes nessa casa que deve ser cuidada pela mulher Nesse sentido vecirc-

se a mulher como um ldquodomusrdquo (como jaacute nos referimos anteriormente) do masculino no sentido

de receber e dar continuidade agrave linhagem participando como cuacutemplice do desejo do macho de

manter sua genealogia desconsiderando os seus proacuteprios desejos de mulher Agrave mulher cabe

submeter-se ao homem que preocupado com a sua linhagem vai conduzi-la como virgem ao

altar de Heacutestia vai unir-se a ela sexualmente e vai ser o progenitor dos filhos que viratildeo

Ora como jaacute foi comentado antes as relaccedilotildees do gecircnero envolvem conflitos e portanto eacute

natural que as donzelas (moccedilas solteiras) e as mulheres casadas enfrentassem tensotildees dentro da

estrutura familiar e que reagissem a determinadas imposiccedilotildees

Eacute o que mais tarde a trageacutedia vai mostrar as contradiccedilotildees da cena familiar gerando

oposiccedilotildees sofrimentos afetando relacionamentos alimentando oacutedios

Talvez por ser uma observadora constante da cena domeacutestica Heacutestia tenha se fixado na

sua condiccedilatildeo de παρθένος a deusa que remete a uma condiccedilatildeo do feminino ideal inacessiacutevel e

por isso sem sujeitar-se agrave submissatildeo do desejo carnal A ldquopurezardquo natildeo pode ser alcanccedilada pelo

humano pois ela eacute do espaccedilo divino No catolicismo as freiras e as santas manteratildeo a tradiccedilatildeo

do recato fazendo votos de castidade e remetendo-se ao enclausuramento de conventos Uma

143 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 199 144 VERNANT Jean-Pierre Idem p 199

80

forma de manter a ldquopurezardquo era abolindo as relaccedilotildees carnais O catolicismo pois teve suas

virgens que se encarregavam de vigiar o ldquopecadordquo

Mas natildeo eacute soacute a submissatildeo ao marido que a mulher deve aceitar Ela eacute considerada parte

de um comeacutercio de trocas dependente do acordo entre os homens pai e esposo Essa questatildeo eacute

de ampla complexidade pois envolve aspectos poliacutetico-econocircmicos aleacutem dos sociais

o termo οίκος tendo ao mesmo tempo um significado familiar e territorial podem-se compreender as reticecircncias que constituem obstaacuteculo em plena economia mercantil agraves operaccedilotildees de venda e de compra quando se trata de bens familiares (κληρος) compreende-se tambeacutem a recusa em conceder a um estrangeiro o direito de possuir uma terra dita ldquoda cidaderdquo porque ela deve permanecer como o privileacutegio e a marca do cidadatildeo ldquoautoacutectonerdquo145

Ou seja como mercadoria de troca de comeacutercio ou seja como um campo feacutertil em uma

sociedade agriacutecola a mulher era vista para fins de procriaccedilatildeo Como objeto de troca pertencia ao

marido como campo a ele lhe cabia frutificar o solo e fazer a colheita delimitando seu territoacuterio

em um clima de seguranccedila e de amizade domeacutestica

Portanto nesse tipo de sociedade a esterilidade ia contra os princiacutepios de continuaccedilatildeo

genealoacutegica Por isso era punida Natildeo se pode renunciar agrave deusa da fertilidade Afrodite zela

pela vida A uniatildeo entre os opostos faz parte da continuidade do mundo Renunciando ao coito o

homem estaacute impedindo a procriaccedilatildeo Euriacutepedes mostra em sua trageacutedia como Hipoacutelito foi

castigado por querer manter-se fiel a Aacutertemis isto eacute agrave virgindade

A abertura da peccedila daacute-se com as palavras de Afrodite sobre a abstinecircncia sexual

masculina na figura de Hipoacutelito Ser humano eacute sujeitar-se ao desejo Aleacutem disso Afrodite

determina o destino (como jaacute foi apontado no item sobre essa deusa) independentemente da

vontade do homem Faz parte do humano o enredamento o conflito a tensatildeo entre os opostos

pois assim foi determinado desde o iniacutecio dos tempos

Vejamos o que diz Afrodite em suas beliacutessimas palavras na traduccedilatildeo para a liacutengua

portuguesa de J B Fontes

Grande entre os seres mortais e natildeo sem renome 1 de deusa Ciacutepris eu sou chamada no ceacuteu Aqueles que do Ponto aos limites de Atlas habitam e contemplam o lume do sol eu favoreccedilo se veneram meu poder 5 enquanto abato quem pensa em mim com soberba

145 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 208

81

pois eacute inerente tambeacutem a raccedila dos deuses agradar-se com honras prestadas por homens Mostrarei logo a verdade destas palavras O filho de Teseu nascido da Amazona 10 Hipoacutelito que o casto Piteu instruiu eacute o uacutenico entre os cidadatildeos desta Trezena a dizer que dos Numes eu sou o pior o leito ele recusa evita o casamentordquo146 mas pela falta contra mim vou me vingar 147 21 de Hipoacutelito ainda hoje Muito avancei neste projeto resta-me pouco a fazer Vindo ele uma vez da casa de Piteu ver misteacuterios sagrados e neles sagrar-se 25 na terra de Pandiacuteon a bem nascida esposa de seu pai Fedra o viu e um violento amor tomou-lhe coraccedilatildeo segundo o meu desejo148

Reconhecemos em Heacutestia uma polaridade pois ao mesmo tempo que se opotildee a Afrodite

como virgem inicia e supervisiona com o olhar de seu altar as jovens que se preparam para o

casamento Assim como Afrodite Heacutestia se inscreve na natureza humana Tambeacutem ela conhece

o posicionamento do ldquoparrdquo ao lado do masculino no panteatildeo grego onde eacute colocada ao lado de

Hermes divindade que cuida da solidariedade do acolhimento entre os homens nas suas

andanccedilas ldquoexterioresrdquo

O Hino Homeacuterico a Heacutestia coloca-a lado a lado com Hermes complementando funccedilotildees

Assim como Heacutestia figura como virgem e protetora das jovens em uma posiccedilatildeo semelhante agrave da

matildee Hermes eacute o mensageiro que ajuda aqueles que necessitam Hermes eacute pois o ldquoαγγελεrdquo o

anjo que como Heacutestia conhece as accedilotildees humanas e procura ser favoraacutevel aos mortais

A questatildeo do gecircnero eacute altamente significativa na sociedade arcaica e ateacute hoje no mundo

contemporacircneo alguns pais anseiam pela vinda de um filho do sexo masculino Assim sendo o

pai em cujo lar soacute havia filhas esperava que a filha lhe desse um neto como herdeiro do ldquoκλεροςrdquo

paterno Nesse caso o filho seguiria a linhagem do avocirc e era ao mesmo tempo filho e irmatildeo de

sua proacutepria matildee Ainda assim a mulher via-se sujeita agraves condiccedilotildees de submeter-se se natildeo agrave casa

do marido agrave casa paterna Em seu estudo sobre Heacutestia Vernant faz uma consideraccedilatildeo que nos

parece importante em relaccedilatildeo a um outro aspecto da polaridade da deusa Diz ele

146 Grifo nosso 147 Grifo nosso 148 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 105

82

Assim se delineia no pensamento social dos gregos em face agrave imagem do homem agente exclusivo da obra geradora a imagem natildeo menos poderosa da mulher verdadeira fonte de vida em que se alimenta a fecundidade das ldquocasasrdquo A deusa do lar segundo os casos eacute suscetiacutevel de justificar tanto uma quanto outra dessas duas imagens opostas Com efeito Heacutestia nos parece ter a funccedilatildeo especiacutefica de marcar a ldquoincomunicabilidaderdquo dos diversos lares enraizados em um ponto definido do solo eles natildeo poderiam nunca se misturar mas permanecem ldquopurosrdquo ateacute na uniatildeo dos sexos e na alianccedila das famiacutelias149

Como coloca Vernant em seu texto a virgindade de Heacutestia eacute a que assegura agrave jovem

virgem antes do casamento o seu proacuteprio lar Apoacutes o casamento ela passaraacute a representar a casa

do marido submetendo-se a ele como senhor do οίκος

Como organizadora dos bens do lar no que diz respeito agrave concentraccedilatildeo de riqueza e a

delimitaccedilatildeo dos patrimocircnios familiares Heacutestia era conhecida com o epiacuteteto de Heacutestia Tamia

Enquanto cabia a Heacutestia cuidar dos tesouros que ficavam guardados dentro da casa nos cofres

(bronze ouro ferro tecidos) a Hermes cabia o cuidado na aacuterea externa dos rebanhos com seu

bastatildeo maacutegico Considerando-se a funccedilatildeo dessas divindades enquanto Heacutestia se ocupava da

conservaccedilatildeo dos bens Hermes encarregava-se do movimento da riqueza isto eacute da aquisiccedilatildeo ou

da perda de bens

Um outro epiacuteteto de Heacutestia eacute Heacutestia Koineacute Ela era assim denominada quando havia a

cerimocircnia da lavragem que periodicamente renovava o viacutenculo do povo ateniense ldquoautoacutectonerdquo

com a sua terra

Heacutestia tambeacutem era a divindade de um ritual divinatoacuterio na Acaia ao lado de Hermes

O Hino XXIV tambeacutem dedicado a Heacutestia (verificar anexo B) ressalta o poder

adiivinhatoacuterio da deusa prestando serviccedilos no templo de Apolo A ideacuteia de purificaccedilatildeo da deusa

eacute destacada no uso de oacuteleos que pendem das mechas de cabelo Em seu banho regenerador apoacutes

ser pega com Ares Afrodite tambeacutem eacute ungida com oacuteleo elemento de purificaccedilatildeo

Assim como Afrodite traz em si a ligaccedilatildeo com o ceacuteu (pai Urano) com a terra (matildee Gaia)

e com a aacutegua (tendo nascido na espuma do mar) Heacutestia manifesta em si o contato do ceacuteu da

terra e do mundo subterracircneo A lareira fixa na casa enraiacuteza-a na terra Por meio dela a famiacutelia

faz uma aproximaccedilatildeo com o mundo subterracircneo Aleacutem disso a lareira assim como se comunica

com o mundo infernal faz subir ateacute a morada dos deuses oliacutempicos a chama que vem do

149 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 216

83

cozimento dos alimentos Quanto ao οικος cujo centro eacute fixado por Heacutestia representa a

estabilidade no espaccedilo terrestre

Em Homero nada pudemos destacar sobre Heacutestia No entanto no Hino Homeacuterico V (veja

anexo A) dedicado a Afrodite encontra-se uma citaccedilatildeo de grande forccedila quando Heacutestia faz um

juramento sagrado a Zeus de manter-se virgem A cena descrita destaca Heacutestia colocando sua

matildeo na cabeccedila de Zeus como um modo solene de se fazer um juramento Desta maneira Heacutestia

estava resolutamente decidida a manter-se virgem Narra o hino que a deusa implorou a

virgindade a Zeus apoacutes ter sido cortejada por Poseidon e por Apolo

Heacutestia opotildee-se pois a Afrodite natildeo se submetendo a ela na questatildeo do envolvimento

amoroso (carnal) Poderiacuteamos finalizar essas consideraccedilotildees sobre Heacutestia levantando uma

pergunta seria uma forma de independecircncia para Heacutestia natildeo se deixar dominar por algueacutem (seja

deus ou mortal) do sexo masculino mas precisar da aprovaccedilatildeo de Zeus como autoridade

masculina maacutexima do panteatildeo oliacutempico Por que essa decisatildeo natildeo foi individual e teve que

passar pela ldquofigura paterna de Zeusrdquo Por que Zeus em vez de casamento passou a oferecer-lhe

a melhor porccedilatildeo (a primeira viacutetima) de todo sacrifiacutecio puacuteblico

85

6 - A QUESTAtildeO DA VIRGINDADE E AS DEUSAS VIRGENS

ldquoOne popular private offering consisted in dedicating to the deity the symbols of a phase of onersquos life that had ended such as the locks of children now adults or their toys or a bridersquos virginal clothesrdquo150

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo

Para se chegar agrave questatildeo da virgindade parece-nos que eacute preciso descobrir dentro do mito

as significaccedilotildees e as vozes que ficam agrave margem durante a Antiguidade pois satildeo subordinadas a

uma voz maior dominante

Desde o iniacutecio colocam-se as trecircs deusas virgens (Aacutertemis Atena e Heacutestia) distintas das

demais deusas formando pois um grupo agrave parte o que jaacute implica sua feiccedilatildeo diferencial

Isso revela que a ldquoliberdaderdquo individual feminina natildeo eacute compatiacutevel com a dominaccedilatildeo de

um valor de ldquomaioriardquo Portanto eacute preciso uma leitura plural do texto miacutetico para entender como

essa histoacuteria alternativa das deusas foi se constituindo atraveacutes dos tempos como enfatizamos em

nossa proposta metodoloacutegica

Trata-se pois de uma relevacircncia do tema haja vista sua pertinecircncia na questatildeo

mitoloacutegica que destaca de alguma forma quer seja atraveacutes do uso de um vocaacutebulo quer seja

atraveacutes do contexto miacutetico apesar do seu caraacuteter fantasioso a ideologia de uma eacutepoca em que

sobressai um traccedilo da virgindade de uma ldquoteologiardquo feminina

De fato a virgindade das deusas gregas permite-nos captar repercussotildees em diferentes

acircmbitos da sociedade pois o mito estaacute ldquoembrenhadordquo nela revelando justificando explicando

moldando os valores adaptando-os de modo a destacar experiecircncias que se tornam crenccedilas do

coletivo Satildeo vozes que perpassam e ultrapassam as fronteiras das poacutelis e satildeo acolhidas na

representaccedilatildeo simboacutelica dos princiacutepios sociais que a sociedade grega elabora

Portanto a virgindade de Aacutertemis Atena e Heacutestia ldquomexemrdquo com o eixo da memoacuteria

histoacuterica situam-se no eixo da realidade social e permeiam a questatildeo de gecircnero

150 RATTO Stefania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 p 152 ldquoUma oferenda privada popular consistia em dedicar agrave divindade os siacutembolos de uma fase da vida que jaacute tinha acabado tais como mechas de cabelo de crianccedilas agora adultas ou seus brinquedos ou roupas virginais de uma noivardquo (traduccedilatildeo nossa)

86

Certamente muito se tem dito sobre a Greacutecia sobre os deuses gregos sobre o homem

grego sobre as mulheres de Atenas sobre o patriarcalismo sobre o mito Poreacutem que

discussotildees podem dar conta de encaminhar a posiccedilatildeo dessas deusas no Olimpo grego

Vamos partir de um pressuposto de que o mito foi sendo construiacutedo e se adaptando de

acordo com as transformaccedilotildees por que a sociedade ia passando

Primeiro a sociedade marcadamente agriacutecola era uma sociedade que destacava a figura

da mulher Parece-nos pois que a grande deusa era privilegiada nesse espaccedilo Enfatizavam-se os

ritos de fertilidade e de procriaccedilatildeo

Dessa forma as deusas consideradas ldquoantigasrdquo vindas de outras culturas como Heacutestia

Demeacuteter Aacutertemis Atena tinham histoacuterias paralelas em outros lugares e caracteriacutesticas comuns agraves

deusas de outros povos bem como de deusas importantes quer seja nos ritos de fertilidade quer

nos ritos sagrados do fogo quer como grandes deusas ou ainda como Amazonas independentes

Poreacutem na Greacutecia os textos escritos de Homero e de Hesiacuteodo inauguram histoacuterias da

origem do mundo de todas as forccedilas da natureza de deuses e de heroacuteis Aiacute jaacute se coloca a

fertilidade da natureza e a fecundidade da terra como dos seres humanos como misteacuterios

sublimes e por isso divinizados Embora a primeira divindade que surja responsaacutevel pela

fecundaccedilatildeo seja a Terra uma forma de divindade feminina que implica uma retomada a um

primeiro padratildeo que resgata o feminino como procriando independentemente do masculino

ainda assim seu periacuteodo de independecircncia eacute limitado Logo que a matildee terra (Gaia) daacute agrave luz o

mito grego jaacute propotildee a origem dos opostos e a chegada do macho ao mundo gerando conflitos

na figura de Urano o ceacuteu

Parece-nos que a partir desse momento a Grande Matildee comeccedila a ocupar um lugar

secundaacuterio em uma sociedade que sucede agrave eacutepoca eminentemente agriacutecola em que as invasotildees

colocam toda ecircnfase nos guerreiros e o patriarcalismo inicia o seu domiacutenio

A partir dessas consideraccedilotildees trecircs aspectos podem ser destacados nesse poacutelo complexo

da sociedade grega primeiro como foi reorganizado o cenaacuterio dos deuses acomodando-se a uma

nova situaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico-econocircmica com aspectos diferenciados da fase anterior Segundo

como a mulher se posiciona nesse panorama e como suas funccedilotildees eram atribuiacutedas e

determinadas incluindo a questatildeo dos casamentos

87

Terceiro como a flexibilidade das palavras parthenos e koreacute referindo-se agraves moccedilas

solteiras e virgens em um contexto em transformaccedilatildeo pode ser significada face ao poder de

Afrodite

Enfocando o primeiro item das questotildees levantadas verificamos que a ldquoacomodaccedilatildeordquo dos

deuses oliacutempicos colocou como entidade suprema Zeus cuja forccedila e poder estavam relacionados

com o raio e com a sabedoria Estava instalado o masculino no centro do universo (kosmos)

grego A matildee que havia procriado Urano e Crono afastou-se para que eles pudessem presidir

colocando-se ela proacutepria em um plano diferenciado a que ofereceu o ventre feacutertil para que essa

prole pudesse existir e a que participou nas escolhas Ela entretanto posicionou-se aleacutem das

funccedilotildees oliacutempicas pois estas eram mais especiacuteficas para a vida do cotidiano do periacuteodo dito

arcaico Gaia a matildee primeira ficou conhecida como entidade primordial a base da fecundaccedilatildeo e

da criaccedilatildeo a que organizou o mundo e que jaacute estabelecida em um contexto amplo inaugurou o

princiacutepio de uma genealogia que se define com o nascimento de Zeus impondo-se sobre o pai

(Crono) Isso revela claramente que uma outra era tem iniacutecio agora eacute a vez em que o filho vai

reinar libertando antecedentes dessa aacutervore genealoacutegica e devolvendo agrave Terra a luz do

Relacircmpago o som do Trovatildeo e a forccedila da violecircncia A matildee Terra fica pois como base

ldquolongiacutenquardquo e Zeus fica como o centro do Olimpo

Desde o iniacutecio constata-se que a matildee reconhece os filhos e os privilegia Gaia a partir do

momento que copula com Urano passa a reconhececirc-lo como esposo e protege o filho Crono

incitando-o contra o pai que natildeo lhe ldquodava espaccedilordquo A mesma questatildeo se repete entre Crono e

sua irmatilde Reacuteia Quando comeccedilam a copular Reacuteia reconhece Crono como pai de seus filhos e

porque a lenda jaacute previa a ira dos filhos contra o pai tentando arrebatar-lhe o lugar Crono

zeloso de seu domiacutenio passa a devoraacute-los A matildee agora Reacuteia salva o filho Zeus de Crono

dando a este uacuteltimo uma pedra para engolir e escondendo Zeus em uma gruta onde eacute alimentado

por uma cabra

Esses aspectos justificam algumas constataccedilotildees (a) a matildee parece ter um viacutenculo de

afetividade com os filhos desde o nascimento reconhecendo-os como parte de sua prole gerados

em seu ventre (b) o pai considerado apenas pai bioloacutegico ainda natildeo assume os filhos Natildeo

existe pois nesses pais miacuteticos primordiais a ldquoadoccedilatildeordquo dos filhos que seraacute posteriormente

88

introduzida no direito romano151 (c) a lenda miacutetica destaca para um fato natural da vida com o

tempo os filhos assumem o lugar do pai ndash o cetro passa do mais velho ao mais novo ndash (d) a

cabra como participante na amamentaccedilatildeo das crianccedilas na falta do leite materno eacute tida como um

animal reverenciado entre os gregos na figura de Zeus que como infante necessitou da

alimentaccedilatildeo vinda de Amalteacuteia a cabra-ama tida em outras versotildees como ninfa

Essa linhagem a partir daiacute centrada em Zeus parece-nos revelar um periacuteodo de transiccedilatildeo

cedendo a fecundidade criativa lugar para o masculino dominante ocupar o governo do mundo

atraveacutes das armas que lhe satildeo atribuiacutedas o raio o trovatildeo e a violecircncia o poder de ldquofulminarrdquo

Passa-se da fecundidade feminina agrave dominaccedilatildeo masculina

Assim reorganizado o Olimpo instala a figura do pai todo-poderoso o masculino

predominante refletindo uma sociedade em que os cidadatildeos (pais e esposos) negociavam e

decidiam sobre as mulheres (filhas e esposas) protegiam as muralhas da cidade (os hoplitas) e

cuidavam da descendecircncia genealoacutegica atraveacutes da procriaccedilatildeo com as jovens mulheres porque a

continuaccedilatildeo da linhagem familiar era de grande importacircncia na sociedade grega

Isso posto mostra-nos a relevacircncia da deusa Afrodite para a reproduccedilatildeo da espeacutecie o

papel representativo da deusa Heacutestia como guardiatilde da casa e da famiacutelia com sua presenccedila fixa

constante atenta a significacircncia de Aacutertemis lsquoSenhora das Ferasrsquo responsaacutevel pela

lsquodomesticaccedilatildeo dos jovensrsquo as meninas de onze doze anos (as ursas) para enfrentamento do

casamento e dos partos e os rapazes para o preparo civilizatoacuterio que a cidadania impotildee e

finalmente Atena como orientadora das questotildees que precisam de uma direccedilatildeo saacutebia e astuta de

um rumo certeiro de estrateacutegias inteligentes da elaboraccedilatildeo paciente no trabalho manual no

cuidado com os cavalos no cultivo da oliveira Enfim uma deusa multifacetada para atender

necessidades em tempo de guerra e de paz de mulheres e de homens

De certa forma os deuses oliacutempicos refletiam todos os estados de coisas dos homens em

sua vida cotidiana

Uma forma de honrar os deuses e de implorar favores a eles era atraveacutes dos cultos e dos

rituais de sacrifiacutecio Assim o homem grego da eacutepoca arcaica mantinha um viacutenculo com o divino

com seus deuses e deusas atraveacutes da praacutetica de ritos fossem eles puacuteblicos ou privados Os 151 Discutimos sobre esse aspecto em um artigo de nossa autoria O olhar e a voz na construccedilatildeo do masculino ndash A questatildeo da paternidade in GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Masculino Campinas Editora Aliacutenea 2008

89

sacrifiacutecios coletivos oferecidos durante festivais sacros em geral incluiacuteam instrumentos

adequados e animais como viacutetimas Esse fato eacute revelador da continuidade de uma tradiccedilatildeo que se

mantinha dos tempos ancestrais Portanto mesclavam-se o antigo e o novo incorporando ritos a

deuses que tinham um ldquonovo formatordquo adaptados a uma sociedade guerreira cuja voz que se

fazia ouvir era a do masculino Da grande deusa passou-se ao deus supremo

Essa incorporaccedilatildeo da figura de deusas que mantinham sua autonomia vinculada ao

passado de grandes deusas sentadas no Olimpo venerando a figura de um reinado governado por

um deus coloca a mulher e o homem no bojo da historicidade de suas inter-relaccedilotildees

As deusas virgens do Olimpo parecem sugerir pistas de uma sociedade matriarcal anterior

e buscando rastrear seus atributos e funccedilotildees parece-nos que seus testemunhos da Antiguidade

Grega fazem-nos desvendar a ldquoinvisibilidade femininardquo

De fato eacute atraveacutes das deusas que se tem notiacutecia do papel das mulheres na sociedade As

meninas se preparavam para o casamento sob a ldquodomesticaccedilatildeordquo e orientaccedilatildeo de Aacutertemis e lhe

ofertavam seus brinquedos de infacircncia siacutembolos de uma fase que deixavam para traacutes No dia do

casamento em geral a noiva tomava banhos de purificaccedilatildeo indicadores de uma eacutepoca de

transformaccedilotildees pois os rituais de libaccedilatildeo faziam parte dos preparativos de fases muacuteltiplas dos

casamentos da Greacutecia antiga Um banquete era oferecido a Heacutestia na casa da noiva do qual ela

podia participar de rosto coberto por um veacuteu A menina tornava-se entatildeo ldquoinvisiacutevelrdquo escondida

atraveacutes do veacuteu uma presenccedila velada diante do noivo e da famiacutelia Heacutestia tambeacutem ldquoguiavardquo a

procissatildeo para a casa do noivo onde a jovem iria morar pois a matildee da noiva acompanhava o

trajeto carregando tochas acesas

Esses pedaccedilos de descriccedilotildees datildeo pistas a algumas reflexotildees importantes sobre o que hoje

se denomina estudo de gecircneros152 indicador de uma visatildeo da posiccedilatildeo ocupada pela mulher

naquela sociedade dominada por um pai Zeus que se configura como o soberano que representa

o poder diante de todos os outros deuses

152 Natildeo pretendemos explorar a questatildeo vinculada aos estudos de gecircnero cuja trajetoacuteria emerge da constataccedilatildeo de um conflito social na reinvidicaccedilatildeo de direitos tendo sido colocado nas ciecircncias sociais a partir de 1955 quando John Money propocircs o termo ldquopapel de gecircnerordquo atribuindo o conjunto de condutas referentes aos homens e agraves mulheres

90

A nossa leitura dessa categoria de gecircnero dentro de uma anaacutelise antropoloacutegica

comparativa parece superar um olhar que vecirc a mulher fortemente ldquovitimizadardquo dentro da

sociedade sem espaccedilo para a participaccedilatildeo e atuaccedilatildeo legiacutetima

De fato embora a praacutetica discursiva dominante fosse a voz de um pai supremo no

Olimpo outros deuses e deusas enredavam-se em um amplo sistema com diferentes funccedilotildees de

forma que ambos o feminino e o masculino colocavam-se em um mesmo patamar Entatildeo

questionamos o lsquopoderrsquo estaacute acima da questatildeo do gecircnero Zeus era pois o soberano acima de

todos os outros deuses e deusas e unido a deusas e a mulheres (humanas) simboliza o princiacutepio

masculino O princiacutepio era organizador tambeacutem pois representava a constituiccedilatildeo da famiacutelia em

que ambos os sexos satildeo contemplados De algum modo a Greacutecia arcaica preservava a funccedilatildeo

fecundadora da mulher pois ateacute mesmo as Amazonas mulheres independentes que se diziam

descendentes do deus da Guerra e da ninfa Harmonia mulheres que se governavam a si proacuteprias

sem recorrerem a homens usavam-nos no entanto para perpetuar a raccedila Diz a lenda que

conservavam os filhos do sexo feminino mutilando-lhes um seio para o manejo do arco e da

lanccedila Daiacute alguns autores fornecem o termo ά-microαξων (amazonas) como ldquoas que natildeo tecircm seiordquo

Nesse contexto a situaccedilatildeo de poder dentro da categoria de gecircnero eacute oposta tendo o

domiacutenio da situaccedilatildeo essas mulheres guerreiras cegavam os filhos do sexo masculino ou

deixavam-nos coxos

Aqui tambeacutem a questatildeo do olhar se coloca quer seja na mutilaccedilatildeo dos seios oacutergatildeos

femininos por excelecircncia quer seja na retirada dos olhos dos meninos

A deusa virgem Aacutertemis no seu repuacutedio ao olhar masculino e no seu firme propoacutesito de

manter-se virgem era a deusa cultuada por essas mulheres guerreiras e caccediladoras vinculadas agrave

divindade por um traccedilo que senatildeo por uma cultura no bioloacutegico pelo menos por uma biologia na

cultura Logo a questatildeo de gecircnero eacute ldquouma construccedilatildeo social e cultural um lsquomodo de ser no

mundorsquordquo153

153 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p17

91

Quando os textos falam sobre a posiccedilatildeo do as mulheres frente agraves divindades ainda assim

temos que destacar que elas tinham uma participaccedilatildeo ativa nas celebraccedilotildees apesar de natildeo serem

permitidas em lugares onde se realizavam sacrifiacutecios violentos e onde se comia carne de animais

sacrificados Esses espaccedilos eram reservados aos cidadatildeos adultos do sexo masculino dada a

ldquoferocidaderdquo e ldquoatrocidaderdquo dos atos Preservava-se a mulher por sua constituiccedilatildeo bioloacutegica ou

pela constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses rituais

Por outro lado alguns rituais que se realizavam no templo dedicado a Aacutertemis em

Brauron eram reservados apenas agraves jovens meninas de onze a quatorze anos as virgens que se

colocavam como ldquoursasrdquo antes do casamento

Seriam essas funccedilotildees marginais como coloca Ratto154 por uma questatildeo de gecircnero

significando aqui o contexto soacutecio-poliacutetico ou por uma questatildeo que envolve o bioloacutegico

Um outro aspecto que levanta uma discussatildeo quanto ao gecircnero com a carga semacircntica

que lhe eacute atribuiacuteda hoje eacute a situaccedilatildeo dos casamentos na Greacutecia antiga

Zeus unido a deusas simbolizava o princiacutepio masculino como jaacute se enfatizou e o esposo

legiacutetimo no casamento

A sociedade dos homens reproduzia esse estado de coisas atraveacutes de dois momentos que

ressaltavam a mudanccedila de posiccedilatildeo da mulher virgem um contrato formal entre o pai da noiva e o

noivo selado com a entrega do dote e a transferecircncia da jovem da casa do pai para a casa da

famiacutelia do noivo onde deveria perpetuar esse tipo de tradiccedilatildeo

Embora essa troca nos pareccedila altamente comercial (e natildeo deixa de ser um negoacutecio)

revela a preocupaccedilatildeo com as funccedilotildees femininas de procriaccedilatildeo de continuidade a uma genealogia

e do cuidado com a casa que era espaccedilo da alccedilada da mulher pois assim como Heacutestia as esposas

deviam zelar pelo lar e pela famiacutelia

154 RATTO Stefania Opcit ldquoIn Greece women took an active part in the celebration of the leading religious festivals though in marginal rolesrdquo p 140 [Na Greacutecia as mulheres tinham uma obrigaccedilatildeo ativa na celebraccedilatildeo dos festivais religiosos principais embora em funccedilotildees perifeacutericas (traduccedilatildeo nossa)] A autora menciona que em alguns festivais cabia agraves garotas lavar e vestir as estaacutetuas para o culto em outros festivais como as Pan-Ateneacuteias as jovens teciam os saiotes que eram carregados como oferendas agrave deusa Portanto parece que a autora quer dar ecircnfase natildeo ao tipo de funccedilatildeo em si executada pelas jovens mas ao fato de serem excluiacutedas da vida poliacutetica na participaccedilatildeo dos cultos de sacrifiacutecio e dos banquetes coletivos Vemos aiacute uma discussatildeo do ponto de vista de gecircnero como exposto nas ciecircncias sociais

92

Aleacutem disso a sociedade transitoacuteria na posiccedilatildeo que assumimos de um periacuteodo dominado

pela Grande Deusa a um patriarcalismo onde se impotildee a figura de um deus de um pai

dominante explicita a necessidade de preparar as jovens para uma nova etapa cuidando de sua

orientaccedilatildeo e favorecendo os aspectos transformadores que preparam para a aceitaccedilatildeo de papeacuteis

diferentes dos que tinham na casa do pai

Essa preocupaccedilatildeo que a famiacutelia grega manifesta embora um tanto condicionadora e

imposta por padrotildees sociais parecia revelar uma preocupaccedilatildeo com periacuteodos de iniciaccedilatildeo para

outras etapas da vida tanto puacuteblica quanto particular Acreditamos que essa forma de

sistematizar regras e normas sociais possa ter contribuiacutedo grandemente para a formaccedilatildeo do

pensamento filosoacutefico grego que inaugura uma outra etapa

Quanto agrave teologia das deusas virgens ela eacute integradora de vaacuterias dimensotildees da vida

humana no que concerne homens e mulheres ela eacute predominantemente comunitaacuteria e relacional

ela se coloca como contextual e concreta marcada pelo cotidiano da vida grega como lugar de

manifestaccedilatildeo do divino e ela eacute acima de tudo atuante no sentido de participar da vida dos

mortais de favorecer homens e mulheres de zelar no momento em que o feminino precisa da

presenccedila e da forccedila dessas potecircncias nas experiecircncias coletivas e isoladas como expressatildeo de

apoio e de solidariedade

A teologia das deusas virgens direciona para a teologia em que se coloca lado a lado o

masculino e o feminino em que deusas privilegiam a uniatildeo dos opostos a submissatildeo ao esposo

a experiecircncia da vida familiar As deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia rompem o silecircncio da

dependecircncia do feminino impondo a consciecircncia de uma postura autocircnoma de uma perspectiva

feminina que eacute capaz de significar por si soacute sem o viacutenculo de outras presenccedilas quer seja de um

esposo quer seja de um filho quer seja de um amante

Nessa perspectiva poderiacuteamos ousar propor que a teologia feminista das deusas virgens

situa na Antiguidade as origens de um movimento que iraacute se constituir seacuteculos depois

refletindo a questatildeo de gecircnero que se vai delineando em cada movimento histoacuterico

A primeira tensatildeo instala-se com os mitos de criaccedilatildeo das lendas gregas que a partir daiacute

colocam como figura central um deus conferindo-lhe o direito e o poder do pai ou seja a

introduccedilatildeo de um conceito de patriarcado

93

Nas palavras e na visatildeo de Freitas o patriarcado na eacutepoca arcaica deve ser entendido

como uma condiccedilatildeo de inter-relaccedilotildees sociais e de imposiccedilotildees

Mas essa compreensatildeo do termo deixa na sombra o fato de que o pai como chefe de famiacutelia na Antiguidade era tambeacutem senhor amo e esposo Portanto o patriarcado conota um complexo sistema de subordinaccedilatildeo e dominaccedilatildeo 155

As deusas virgens revelam pois um conflito que eacute constitutivo do dualismo simboacutelico de

gecircnero uma vez que estaacute enraizado na convicccedilatildeo de que a experiecircncia humana estaacute imersa em

experiecircncias sustentadas por organizaccedilotildees sociais e poliacuteticas e por instituiccedilotildees e organismos

religiosos permeando todas as relaccedilotildees com seus aspectos contraditoacuterios e ambiacuteguumlos

O problema da linguagem os epiacutetetos referentes agraves deusas e o leacutexico que se impocircs como

caracteriacutestica de algumas expressotildees e atributos peculiares eacute outra questatildeo que nos fez observar

algumas colocaccedilotildees levantadas no estudo dessa teologia feminina

Quando discutimos a metodologia de nossa pesquisa fizemos algumas consideraccedilotildees

sobre os epiacutetetos das deusas e apoiamo-nos na obra de Parry156 um estudioso dos versos homeacutericos

No entanto pretendemos retomar um aspecto que enfatiza o caraacuteter da virgindade e

discuti-lo de uma posiccedilatildeo comparativa (interpretativista)

Narrando sobre a genealogia oliacutempica Hesiacuteodo coloca que

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia157 mais saacutebia que os Deuses e os homens mortais Mas quando ia partir a Deusa de olhos glaucos158 Atena ele enganou suas entranhas com ardil com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo 890 por conselhos da Terra e do Ceacuteu159 constelado Estes lho indicaram para que a honra de rei natildeo tivesse em vez de Zeus outro dos Deuses perenes era destino que ela gerasse filhos prudentes primeiro a virgem160 de olhos glaucos161 Tritogecircnia162 igual ao pai no furor e na prudente vontade163

155 FREITAS Maria Carmelita de Op cit p 28-29 156 PARRY Millman Op cit 157 Em grego encontramos a palavra Μητιν (Meacutetis) uma divindade da primeira geraccedilatildeo eacute a personificaccedilatildeo da sabedoria e da Astuacutecia 158 Jaacute nos referimos ao epiacuteteto de Atena glaucoacutepida (γλαυκωπιν) 159 Referindo-se a Gaia (Γαίης forma poeacutetica) e Urano (Ούρανοΰ) 160 A palavra usada em grego eacute κούρην 161 Haacute repeticcedilatildeo na mesma estrofe do epiacuteteto γλαυκώπιdα 162 Tambeacutem haacute referecircncia ao epiacuteteto Τριτογένειαν Tritogecircnia ou Tritogeneacuteia que se refere ao lugar de seu nascimento Uma das versotildees eacute que teria sido agraves margens do lago Tritatildeo na Liacutebia 163 HESIacuteODO Op cit p 155

94

Veja-se que em seu primeiro casamento a esposa (Meacutetis) eacute literalmente engolida natildeo

deixando Zeus espaccedilo para uma situaccedilatildeo baacutesica do feminino de a mulher parir o filho que

espera

Assim nasce Atena da cabeccedila do pai (vs 924-926) virgem de olhos glaucos Tritogecircnia

guerreira infatigaacutevel semelhante ao pai no furor e na vontade Portanto essa deusa coloca-se jaacute

no iniciacuteo entre o masculino e o feminino uma deidade cujo aspectos bioloacutegicos natildeo satildeo

relevantes uma vez que

Para los griegos antiguos Atenea una de las diosas oliacutempicas maacutes importantes era la representacioacuten de la sabiduriacutea y la destreza En la manera en que se presenta su nacimiento que claros estos aspectos de su caraacuteter164

Aleacutem disso seu nascimento sem a figura materna indica um plano diferencial entre os

deuses entre o comportamento das deidades ancestrais e dos deuses oliacutempicos que iam surgindo

revelando provavelmente uma unificaccedilatildeo entre a cultura matriarcal e uma forma de

pratriarcalismo querendo apossar-se dos atributos da mulher Mas isso natildeo era uma forma de

desprezar o feminino na sua origem e na sua concepccedilatildeo pois Zeus engole Meacutetis para que

tambeacutem ele pudesse usufruir de sua sabedoria e tecirc-la dentro dele De certa forma ele assume a

individualizaccedilatildeo de Meacutetis e assumindo-a assume a paternidadematernidade de Atena em seu

nascimento ele estaacute reiterando que a figura da matildee existe e que tudo proveacutem dela

Diz Loraux a respeito do domiacutenio da matildee

[] a matildee eacute designada pela metoniacutemia da sua matriz ela proacutepria inteira numa parte de si mesma Fazer recuar ao maacuteximo os limites do tempo ou do espaccedilo para melhor encerrar a Deusa na sua lsquometrarsquo (local do materno no corpo das mulheres) tal eacute a operaccedilatildeo que natildeo nos parece possiacutevel escapar Mas como a Deusa eacute o todo porque como pensam os colaboradores os seus filhos natildeo tecircm necessidade de um Urano ciumento para ficarem para sempre presos nas profundezas do corpo materno tudo (Tudo) estaacute neste esconderijo no interior do grande continente feminino165

Atena nasce com a sabedoria materna da mulher pois e com a determinaccedilatildeo e forccedila do

pai mesclando qualidades femininas e masculinas De um lado a jovem virgem (κούρη) de

outro Atena terriacutevel (δειην) a guerreira infatigaacutevel

164 MAUROMATAKI Maria Op cit p 38 165 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 p 52

95

Na origem dos deuses Hesiacuteodo coloca a virgindade como atributo fixo ao lado de outros

que destacam Atena Usa em seu texto a palavra κούρη

O dicionaacuterio do autor francecircs Bailly apresenta para esse leacutexico a definiccedilatildeo ldquojeune fille c

a d jeune viergerdquo portanto uma jovem virgem oposto a έζευγmίνη ou seja ldquofemme marieeacuterdquo

(mulher casada)166

Este mesmo substantivo em Homero no plural Νύmicroφαι καυραι ∆ιός (Il 6 420)167 estaacute

se referindo agraves ninfas e tem um duplo sentido as ninfas filhas de Zeus isto eacute as ninfas virgens e

filhas de Zeus Nesse caso o termo Νύmicroφαι jaacute estaacute relacionado agrave ideacuteia de virgindade pois as

ninfas e as musas eram virgens (κουραι) Compara-se com Μοΰcαι Όλυmicroπιάδεα κοΰραι ∆ιδε

αιγιόχοιο168 traduzido por Torrano169 como ldquoMusas olimpiacuteades virgens170 de Zeus porta-eacutegiderdquo

Encontramos na Teogonia diversas vezes a referecircncia κούρη sempre traduzida por

virgem

No entanto o substantivo κoacuteρη tambeacutem toma a forma de nome proacuteprio referindo-se agrave

jovem filha de Demeacuteter Perseacutefone Nesse sentido a lenda enfatiza a matildee (Demeacuteter) e filha

(Perseacutefone) e o significado eacute o de filha tendo se estratificado como substantivo proacuteprio ( relativo

a Perseacutefone somente)

Em nossa leitura das obras e dos aspectos referentes agraves deusas virgens percebemos que

tambeacutem a palavra παρθένος eacute usada com o sentido de jovem e de virgem171 o adjetivo refere-se

agrave jovem pura e intacta ou a alguma coisa sem maacutecula como por exemplo παρθένιον φρέαρ ou

seja os poccedilos da Virgem perto de Elecircusis por isso capitalizado (senatildeo a leitura de παρθένιον

φρέαρ seria poccedilos de aacutegua liacutempida pura)

166 BAILLY Op cit p121 e 880 167 HOMERO Op cit p 292 (Em inglecircs daughters of Zeus) 168 HESIacuteODO Op cit p 162 v 1022 169 HESIacuteODO Op cit 170 Grifo nosso 171 Verificar entrada do leacutexico em BAILLY Op cit p 1489

96

Em Hesiacuteodo encontramos o uso de παρθένος referindo-se a jovens (provavelmente antes

do casamento) sem qualquer conexatildeo com as deusas de nossa investigaccedilatildeo Dizem os versos

204-205

Coube-lhe172 entre homens e deuses imortais As conversas de moccedilas (παρθένiacuteοvς) os sorrisos os enganos173 205

Aleacutem disso a estaacutetua de Atena em Atenas ldquocunhourdquo o termo partheacutenos como indicativo

de virgem bem como a constelaccedilatildeo de virgem conhecida em grego como PARTHEacuteNOS

Quais seriam os criteacuterios para a escolha de um ou de outro vocaacutebulo Fica aiacute a pergunta

que merece ter uma investigaccedilatildeo profunda dessa ocorrecircncia linguumliacutestica

Hipotetizamos que talvez a escolha do vocaacutebulo possa ter uma variaccedilatildeo devido agrave eacutepoca

oue agrave regiatildeo em que eacute usado

Percebemos que nos Hinos Homeacutericos compostos em periacuteodos posteriores e por

rapsodos diferentes a preferecircncia de emprego eacute a da palavra παρθένος referindo-se a qualquer

das trecircs deusas virgens

62 ndash O caraacuteter da virgindade no Cristianismo

Eacute interessante estabelecer um paralelo entre a mitologia grega e a religiatildeo cristatilde Se para

os gregos os mitos satildeo tidos como lendas que relacionam aos valores de uma eacutepoca o

Cristianismo emerge do pensamento judaico Os textos do Gecircnesis que satildeo tambeacutem simboacutelicos

e representativos de uma cultura tornaram-se poderosos documentos ldquoautecircnticosrdquo detentores de

ldquoverdadesrdquo emblemaacuteticas

Essas supostas verdades retratam ndash assim como os mitos gregos ndash visotildees da existecircncia

humana Elas contecircm como as lendas relaccedilotildees de gecircnero histoacuterias de terror e de piedade e

histoacuterias de amor e de poder

Aleacutem do contexto soacutecio-poliacutetico que orienta tanto o texto grego como o hebraico haacute a

questatildeo linguumliacutestica pois as traduccedilotildees requerem decisotildees interpretativas que como jaacute observamos

em capiacutetulo anterior satildeo motivadas de alguma forma pelas circunstacircncias e pela visatildeo de

172 Referindo-se agrave deusa Afrodite 173 HESIacuteODO Op cit p 117

97

mundo do tradutor Assim muitas vezes uma interpretaccedilatildeo direciona um texto a uma outra

cultura

Inuacutemeras vezes lendo textos em outras liacutenguas dizemos que gostariacuteamos de ldquopensarrdquo

como o falante nativo dessas liacutenguas ou seja de ter introjetada a sua cultura o que jaacute encaminha

para outros entendimentos

Portanto tanto a histoacuteria da ldquovirgindade das deusas gregasrdquo como a histoacuteria da

ldquovirgindade no Cristianismordquo jaacute estatildeo multifacetadas distorcidas e fragmentadas (como diria

Deleuze)

Continuando nosso paralelo proposto no iniacutecio temos dois relatos absolutamente

diferentes da criaccedilatildeo do mundo e dos seres humanos Enquanto os gregos divinizam o espaccedilo e

os homens surgem dentro desse espaccedilo sagrado na sua configuraccedilatildeo a tradiccedilatildeo hebraica coloca

Deus fora do mundo criando-o como espaccedilo para os mortais homens e mulheres Vecirc-se jaacute que

os deuses e os homens gregos habitam o mesmo cosmo em planos diferentes Para os hebreus

Deus estava aleacutem do cosmo o que implica que a humanidade habita outro espaccedilo e estaacute em outro

plano

No Olimpo circulam deuses e deusas e natildeo haacute questotildees motivadas por aspectos de

moralidade O mito eacute moldado atraveacutes de ritos iniciaacuteticos que prevecircem mudanccedilas de etapas e a

aquisiccedilatildeo de novos conhecimentos Haacute diferenccedilas que satildeo determinadas por funccedilotildees bioloacutegicas e

portanto por funccedilotildees sociais e uma das consequumlecircncias eacute o conflito natural as tensotildees que fazem

com que de alguma forma tambeacutem o mito apresente um enfoque binaacuterio

O Cristianismo poreacutem surge com um pensamento miacutetico binaacuterio O homem eacute criado por

Deus mas a etapa da ldquoquedardquo ndash atribuiacuteda agrave mulher ndash eacute inevitaacutevel

Esse pensamento hebraico inicial jaacute confere aos homens que eles sejam privados de

ingenuidade e de acesso a Deus o que lhes daacute consciecircncia discernimento e noccedilatildeo dessa

bipolaridade sexual

Eacute nesse contexto que surge a figura de Cristo tatildeo representativa que em nossos estudos

determinamos a eacutepoca arcaica grega em que se situam os textos de Homero por volta do seacuteculo

VIII antes da era Cristatilde tendo-o como referecircncia

Em Homero a menccedilatildeo da virgindade eacute pouco citada apenas para Atena e para Aacutertemis

sendo posteriormente ressaltada a virgindade de Aacutertemis e de Heacutestia aleacutem da de Atena nos

98

Hinos Homeacutericos Heacutestia era uma deusa silenciosa quase amorfa uma vez que provavelmente

vinculava-se agrave Grande Deusa dos ancestrais o que a fazia perder seus traccedilos definidos

Aleacutem disso dada a flexibilidade dos termos koreacute e partheacutenospodemos ateacute pensar em

uma possibilidade de eles estarem significando as ldquofilhasrdquo de Zeus antes do casamento sem uma

ecircnfase agrave questatildeo da virgindade em si mas do lsquoolharrsquo que conspurga a divindade Aacutertemis vinga-

se do olhar dos mortais Atena protege-se do olhar dos humanos

A proacutepria Afrodite enreda-se na questatildeo do olhar embora em seu caso a mortalidade de

Anquises seja superada pelo ato de procriaccedilatildeo e da descendecircncia dando continuidade ao

nascimento do heroacutei que eacute uma provaacutevel temaacutetica do Hino Homeacuterico a Afrodite V

A virgindade grega passa pois a ser conclamada a partir de Homero e de Hesiacuteodo (que

menciona Atena como κορή em seu nascimento) Os Hinos Homeacutericos jaacute de um periacuteodo

posterior ldquorecuperamrdquo esse aspecto e reorganizam os atributos dessas deusas virgens

enfatizando o epiacuteteto da virgindade e criando a lenda de um juramento de Heacutestia a Zeus para

manter-se virgem sempre Aiacute podemos supor que o mito passava por um periacuteodo de

transformaccedilatildeo acomodando-se a novos tempos fundindo aspectos de outras eacutepocas agrave era

arcaica

Em Homero na Iliacuteada e na Odisseacuteia do ponto de vista conceitual nota-se que o autor

apresenta uma teologia caracteriacutestica de seu tempo e como isso jaacute foi inuacutemeras vezes destacado

por diferentes autores os deuses movem-se ao lado dos humanos e repartem as mesmas

caracteriacutesticas

Dentro da Odisseacuteia e a Iliacuteada vatildeo sendo compostas narrativas dos deuses enredados em

situaccedilotildees que explicitam que assim como os homens eles estatildeo sujeitos a fatos que envolvem a

ldquosexualidaderdquo Eacute o que ouve Odisseu (Ulisses) sobre as aventuras de Afrodite com Ares a que jaacute

nos referimos

Hesiacuteodo remete-se na Teogonia agrave virgem Atena a Tritogecircnia filha de Zeus e de Meacutetis

(vs 886-896) Essa indicaccedilatildeo sobre o nascimento de Atena pode estar vinculada a uma deusa

Liacutebia (Neith) de uma eacutepoca em que as sacerdotisas-virgens (semelhante agraves Amazonas na sua

99

independecircncia e no seu caraacuteter guerreiro) entregavam-se todos os anos a um combate beacutelico Isso

justificaria os atributos de ldquovirgemrdquo ldquoTritogecircniardquo e ldquoguerreirardquo para Atena174

Fizemos essas regressotildees para chegar a uma observaccedilatildeo que consideramos importante

parece que a virgindade das deusas ancestrais estaacute bastante relacionada ao fato de natildeo

dependerem de um homem para terem sua identidade garantida embora pudessem mesmo ter

filhos da mesma forma que as Amazonas que mantinham sua ldquoprole femininardquo como forma de

dar continuidade agravequela ldquoespeacutecierdquo

Esse ponto tambeacutem supomos eacute resgatado pelo Cristianismo quando aponta para o fato

de que a matildee Maria eacute virgem O pai Joseacute teve sua figura obscurecida no Evangelho de Lucas e

tornou-se apenas um ldquosuporterdquo um pai fiacutesico provedor e silencioso na trajetoacuteria do filho na

superfiacutecie terrestre

Em Mateus o auto do nascimento de Jesus eacute significativamente mais curto que em Lucas

contando a histoacuteria da natividade com 31 versiacuteculos enquanto o de Lucas conta com 132

Falando da concepccedilatildeo de Jesus o evangelista refere-se ao dilema de Joseacute que eacute o personagem

principal

Diz Mateus (118-25) que Maria estava desposada com Joseacute e

Antes de coabitarem aconteceu que ela concebeu por virtude do Espiacuterito Santos Joseacute seu esposo que era homem de bem natildeo querendo difama-la rejeitaacute-la secretamente

Em seguida um anjo do senhor lhe diz

ldquoJoseacute filho de Davi natildeo temas receber Maria por esposa pois o que nela foi concebido vem do Espiacuterito Santordquo Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o senhor falou pelo profeta

174 Sobre essa referecircncia verificar a obra de PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) p 1157 Criacutetias no Timeu conta uma histoacuteria narrada a ele por um homem de aproximadamente noventa anos de idade comentando sobre o poeta Soacutelon e sobre sua narrativa (lsquoa veritable traditionrsquo) que ele havia trazido do Egito ldquoIn the Egyptian Delta at the head of which the rive nile divides thereis a certain district which is Called the district of Sais and the great city of the district is also called Sais and is the city from which king Amasis came The citizens have a deity for their foundress she is called in the Egyptian tongue Neith and is asserted by them to be the same whom the Hellenes call Athena They are great lovers of the Athenians and say that they are in some way related to themrdquo ldquoNo delta egiacutepcio do distrito eacute tambeacutem chamada de Sais e eacute a cidade na cabeceira do qual o rio Nilo se divide haacute um certo distrito chamado de distrito de Sais e a grande cidade de onde o Rei Amasis veio Os cidadotildees tecircm uma deidade para sua fundadora ela eacute chamada na liacutengua egiacutepcia de Neith e eacute afirmado por eles que ela eacute a mesma que os helenos chamam de Atena Eles satildeo grandes admiradores dos atenienses e dizem que eles satildeo de alguma forma relacionado a elesrdquo (traduccedilatildeo nossa)

100

Eis que a Virgem conceberaacute e daraacute aacute luz a um filho que se chamaraacute Emanuel (Isaiacuteas 714) que significa Deus conosco

Joseacute acatou as ordens quando acordou

Nessa fala de Mateus a revelaccedilatildeo se daacute atraveacutes de Joseacute

Finalmente Mateus acrescenta

E sem que ele a tivesse conhecido175 ela deu agrave luz o seu filho que recebeu o nome de Jesus176

O tributo ldquovirgemrdquo soacute eacute mencionado atraveacutes das palavras profeacuteticas de Isaiacuteas

O auto do nascimento em Lucas ao contraacuterio enfatiza Maria e coloca-a como receptora

da revelaccedilatildeo da virgindade

Diz o evangelho (Lucas 126-27)

o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiteacuteia Chamada Nazareacute a uma virgem177 com um homem que se chamava Joseacute da casa de Davi e o nome da virgem178 era Maria

Percebe-se a ecircnfase dada agrave Maria e a questatildeo da virgindade colocando Joseacute em segundo

plano

Apoacutes o anjo anunciar-lhe a concepccedilatildeo Maria pergunta ao anjo (134)

ldquoComo se faraacute isso pois natildeo conheccedilo homem179rdquo180

Portanto a questatildeo da virgindade tem um enfoque significativo e diferente em Mateus e

em Lucas para o primeiro evangelista Maria jaacute estava graacutevida ao desposar Joseacute Para o segundo

apesar de ser casada ela natildeo tinha relaccedilotildees maritais com Joseacute A revelaccedilatildeo do primeiro caso

para ser convincente ao marido daacute-se a ele atraveacutes de um sonho No segundo caso a moccedila

casada que se manteacutem ainda em estado de virgindade recebe a noticia do anjo estando desperta

175 Alguns autores colocam ldquonatildeo a conheceu maritalmenterdquo o que remete provavelmente agrave conotaccedilatildeo do texto original 176 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 177 Grifo nosso 178 Grifo nosso 179 Em BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 p 25 encontramos a traduccedilatildeo (de Vera Ribeiro) ldquoComo seraacute isso possiacutevel se sou virgemrdquo 180 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982

101

Em Mateus Maria eacute colocada como uma jovem graacutevida antes do matrimocircnio com a

justificativa de ter sido obra do Espiacuterito Santo Ora segundo dados histoacutericos da eacutepoca muitas

jovens judias eram estupradas por soldados romanos e este poderia ter sido o caso de Maria

Joseacute pertence agrave mesma tribo de Davi acolhe-a e ao filho para que o infante pudesse ser

reconhecido como cidadatildeo judeu filho que era de matildee judia

Parece-nos aqui tambeacutem que a questatildeo da gravidez de Maria deva ter enfoque poliacutetico-

social uma vez que a Igreja Catoacutelica em 649 no Conciacutelio Ecumecircnico do Latratildeo colocou a

virgindade de Maria antes durante e depois do parto de Jesus como dogma

Tentando pensar o conceito de dogma encontramos uma definiccedilatildeo bastante ampla e que

contempla vaacuterios aspectos inclusive o da inquestionabilidade por ter conexatildeo com revelaccedilatildeo

divina Temos pois que

Na Igreja Catoacutelica um dogma eacute uma verdade absoluta definitiva imutaacutevel infaliacutevel inquestionaacutevel e ldquoabsolutamente segura sobre a qual natildeo pode pairar nenhuma duacutevidardquo Uma vez proclamado solenemente ldquonenhum dogma pode serrdquo revogado ou ldquonegado nem mesmo pelo Papa ou por decisatildeo conciliarrdquo Por isso os dogmas constituem a base inalteraacutevel de toda a Doutrina Catoacutelica e qualquer catoacutelico eacute obrigado a aderir aceitar e acreditar nos dogmas de uma maneira irrevogaacutevel181

A virgindade de Maria atesta que Jesus eacute filho do Senhor e o dogma de sua virgindade

reafirma o fato que Jesus eacute o filho primogecircnito e uacutenico de Maria natildeo tendo tido irmatildeos carnais

Quando os textos biacuteblicos se referem aos ldquoirmatildeosrdquo de Jesus podem indicar qualquer parentesco

ou ateacute mesmo ldquoamigordquo em hebraico

Do ponto de vista teoloacutegico a virgindade de Maria revela um comportamento que vai

aleacutem de um dado bioloacutegico e fiacutesico pois ressalta uma decisatildeo pessoal consciente de se dedicar

a servir uma missatildeo Dizendo que aceitava a sua virgindade Maria estava se consagrando agrave

missatildeo que Deus lhe dava

Vemos este aspecto inteiramente semelhante ao das deusas virgens no que concerne

abdicar conscientemente de relaccedilotildees amorosas assumindo o celibato consagrado a uma missatildeo

quer seja como a Grande Deusa como a Grande protetora ou como a grande Amazona todas

tendo em comum o estigma de ldquomatildeesrdquo ldquovirgensrdquo dada a dimensatildeo da funccedilatildeo que ocupam

Inspiradas na missatildeo de Maria as freiras catoacutelicas vatildeo procurar seguir a trilha da

virgindade e da consagraccedilatildeo da vida a Deus

181 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009

102

Quando na enciacuteclica Redemptoris Mater de 1987 o Papa Joatildeo Paulo II refere-se ao dom

da maternidade de Maria podemos remeter-nos ao texto de Loraux182 jaacute por noacutes citado sobre o

poder do domiacutenio da matildee ldquoesse grande continente femininordquo que abarca tudo

Diz parte do item n39 da enciacuteclica Redemptoris Mater

As palavras lsquoEis a serva do Senhorrsquo comprovam o fato de ela desde o principio ter aceitado e entendido a proacutepria maternidade como dom total de si da sua pessoa a serviccedilo dos desiacutegnios salviacuteficos do Altiacutessimo E toda a participaccedilatildeo materna na vida de Jesus Cristo seu filho ela viveu-a ateacute o fim de um modo correspondente agrave sua vocaccedilatildeo para a virgindade183

Eacute interessante observar que a lsquovirgindadersquo eacute vista como vocaccedilatildeo uma vez que implica

reprimir o desejo negando os lsquotrabalhosrsquo da ldquoAacuteurea Afroditerdquo assumindo uma independecircncia

pessoal por um lado e uma dedicaccedilatildeo ilimitada a uma missatildeo por outro lado

No entanto essas consideraccedilotildees que foram colocadas ateacute aqui refletem uma crenccedila

corrente entre os cristatildeos catoacutelicos Mas a questatildeo da virgindade eacute questionada por estudiosos da

aacuterea da religiatildeo e da cultura Assim os professores Borg e Crossan184 investigam a virgindade da

Maria sob diferentes acircngulos

Uma delas eacute a suspeita que Mateus coloca no iniacutecio de sua paraacutebola sobre um presumido

adulteacuterio de Maria Qual teria sido a intenccedilatildeo do evangelista ao fazer tal colocaccedilatildeo se

questionam os autores Em Lucas natildeo haacute nada que diga como Joseacute descobriu ou reagiu diante da

gravidez de Maria e nem mesmo que ele tivesse tido algum problema com esse fato

Dizem os autores

Ainda que Mateus quisesse contar a histoacuteria inteiramente do ponto de vista de Joseacute ndash ao contraacuterio de Lucas que o fez do ponto de vista de Maria ndash ele poderia ter feito o anjo revelar tudo a Joseacute lsquoantesrsquo da concepccedilatildeo de Maria E se quisesse manter-se patriarcal poderia ter feito Joseacute dizer a Maria o que aconteceria com ela Portanto a pergunta persiste Na matriz contextual da tradiccedilatildeo grega romana e judaica de mulheres virginais esteacutereis ou idosas por que apenas Mateus levantou o espectro de uma aduacuteltera e natildeo de uma concepccedilatildeo divina

182 LORAUX Nicole Op cit 183 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 184 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p 123-155

103

Logo haacute uma acusaccedilatildeo anticristatilde de adulteacuterio e a concepccedilatildeo divina parece ser um modo

de encobrir esse adulteacuterio185 Para os autores Mateus baseou-se de maneira deliberada na

concepccedilatildeo de Moiseacutes dentro das versotildees midraacutesticas que eram correntes no seacuteculo I

Estabelecendo um paralelismo com a concepccedilatildeo de Jesus seguindo o esquema ldquodivoacuterciordquo (Joseacute

intenciona deixar Maria) ldquorevelaccedilatildeordquo (o anjo revela a Joseacute a concepccedilatildeo como obra do Espiacuterito

Santo) ldquorecasamentordquo (Joseacute assume Maria e o filho) Seria essa a causa de sua ecircnfase no

controle divino por meio de sonhos e profecias bem como no foco do ponto de vista masculino e

paterno e principalmente para defender o tema que Mateus acreditava ldquoJesus eacute o novo Moiseacutesrdquo

Segundo autores citados Lucas ao contraacuterio natildeo propotildee a virgindade de Maria como

revelaccedilatildeo profeacutetica mas antes como atributo divino estabelecendo mesmo um paralelo entre a

histoacuteria da concepccedilatildeo de Jesus (por uma virgem) e a histoacuteria da concepccedilatildeo de Joatildeo Batista (por

uma esteacuteril) (Lucas 1-2)186 Assim Lucas parece ressaltar o fato de que Jesus natildeo eacute simplesmente

um novo Joatildeo siacutembolo e siacutentese de um Antigo Testamento filho de matildee esteacuteril e idosa Jesus

vem de matildee casta e daacute iniacutecio a uma nova fase da Histoacuteria com ele comeccedila o Novo Testamento

A conclusatildeo desses fatos eacute que parece que havia uma preocupaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica no texto

desses evangelistas Mateus desejava resgatar a figura de Moiseacutes em Cristo e para isso

necessitava colocar o cumprimento das profecias Lucas desejava como se viu colocar Maria e

Cristo como modelos de uma nova era e sua ecircnfase natildeo eacute na profecia que ele nem menciona

mas na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo onde satildeo construiacutedas as figuras de Maria e do filho

Maria eacute pois rsquoabenccediloadarsquo e lsquoobediente agrave becircnccedilatildeo divinardquo e como a primeira cristatilde

perfeita ela eacute tambeacutem lsquovirgemrsquo quer dizer divina de acordo com a tradiccedilatildeo judaica e biacuteblica

(referindo-se aos casos de pais idosos e esteacutereis no Antigo Testamento e por analogia

introduzindo uma outra forma no Novo Testamento)

Comparando-se com Afrodite mesmo em sendo deusa sua concepccedilatildeo com Anquises ou

com Ares natildeo tem a tradiccedilatildeo da virgindade Apesar de ser matildee de heroacutei Eneacuteias considerado o

fundador de Roma ou de outros deuses como Eros um deus que se funde com as caracteriacutesticas

185 Borg e Crossan inspiraram-se em um texto de Oriacutegenes do seacuteculo III polemizando a obra do anticristatildeo Celsus do final do seacuteculo II relatando sobre o nascimento de Jesus e spbre a ldquofalsardquo virgindade de Maria a fim de aplacar os rumores sobre as circunstacircncias verdadeiras da presenccedila de soldados romanos que haviam vindo para sufocar uma revolta em Seacuteforis perto de Nazareacute proacuteximo da eacutepoca em que Jesus nasceu Haacute ateacute mesmo a menccedilatildeo do soldado como Panthera como trocadilho sarcaacutestico do termo grego patheacuternos a lsquovirgemrsquo 186 Biacuteblia Sagrada Op cit p 1345-1348

104

da matildee o intercurso sexual divino se dava de forma fiacutesica a tal ponto que Afrodite precisou

ldquopurificar-serdquo apoacutes sua relaccedilatildeo com Ares

Poreacutem o Cristianismo introduziu a virgindade nas relaccedilotildees humanas para que pudesse ser

exaltada a concepccedilatildeo divina e virginal de Jesus acima de todas as demais ndash especialmente sobre a

de Ceacutesar Augusto considerado ldquofilho de Apolordquo

Citando ainda Borg e Crossan eles dizem

Seja como for a virgindade a esterilidade a longevidade ou qualquer outra coisa que possamos imaginar satildeo simples maneiras de enfatizar sublinhar e ldquoprovarrdquo que a concepccedilatildeo foi divina Eacute essa concepccedilatildeo divina que importa Eacute a teologia do filho e natildeo a biologia da matildee que estaacute em jogo187

187 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p151

105

CONCLUSAtildeO OU INDICACcedilAtildeO DE SUPOSICcedilOtildeES

Uma primeira conclusatildeo a que se chega eacute que a genealogia parece ser um dado

importante e relevante entre os povos da Antiguidade Por isso o Evangelho de Mateus antes de

citar a concepccedilatildeo e o nascimento de Cristo coloca catorze geraccedilotildees que o precederam sem que

se saiba como possa ter sido essa informaccedilatildeo dos protocolos dada a Mateus A ecircnfase da

genealogia tambeacutem era comum entre os gregos todos os deuses incluindo as deusas virgens

tecircm sua genealogia nomeada Atena nasce da cabeccedila do pai supremo (Zeus) e foi gerada por uma

matildee com caracteriacutesticas astutas (Meacutetis) mas como protetora de Atenas haacute indiacutecios de que se

vinculava a uma deusa da Liacutebia e foi a filha de Zeus o que jaacute mostra sua ancestralidade

Aacutertemis tinha como pais Zeus e Leto e como Afrodite era de natureza uracircnica Aacutertemis

nasce com o seu duplo o irmatildeo Apolo tendo atributos comuns a ele Portanto Atena e Aacutertemis

ficam entre o masculino e o feminino distinguindo-se entre aspectos de estrateacutegia e de

belicosidade proacuteprios do masculino na conquista na independecircncia e no poder Por outro lado

caracterizam-se pela proteccedilatildeo e o acompanhamento ldquomaternosrdquo zelando para a soluccedilatildeo de

dificuldades e para os encaminhamentos de etapas da vida

Diferentemente de Aacutertemis e Atena Heacutestia eacute irmatilde de Zeus filha de Reacuteia e de Crono e foi

libertada do ventre de Crono por quem tinha sido engolida a partir do momento em que Zeus

com ldquoseu furor agarra as armas o trovatildeo o relacircmpago e o raio flamante e fere-o188 saltando do

Olimpordquo189

Todas as deidades quer sejam elas miacuteticas ou cristatildes tecircm o relato de um elenco

protocolar da genealogia como forma de apresentar a ligaccedilatildeo com um sistema simboacutelico que

garanta a coerecircncia interna com um princiacutepio organizador no sistema miacutetico ou com um

principio criador (o Verbo) no sistema cristatildeo

Tanto o sistema miacutetico como o sistema cristatildeo reproduzem o plano de uma vontade

divina O Cosmo vem do Caos (entidade primordial) mas soacute se organiza a partir da vitoacuteria de

Zeus que eacute colocado no centro do universo como deus supremo rodeado dos outros deuses que

188 Refere-se a Crono 189 HESIacuteODO Op cit p 153 vs 853-855

106

representam diferentes aspectos desse cosmo Com a morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo reorganiza-

se um novo sistema religioso tendo iniacutecio o Novo Testamento

Assim a genealogia das deusas virgens se constitui a partir da organizaccedilatildeo do cosmo

com Zeus e a genealogia cristatilde do Novo Testamento se organiza com Cristo Com ambos

comeccedila uma nova era

A genealogia dos deuses eacute importante para que seja resgatado nas narrativas feitas um

sentido histoacuterico que se ajuste agraves eacutepocas e agraves influecircncias soacutecio-poliacuteticas Nesse contexto

ldquoperambulamrdquo as divindades dominantes

Mas atraacutes da ldquogenealogia aparenterdquo existe uma genealogia anterior a que se apoacuteia em

diferentes raccedilas em diferentes tribos em diferentes periacuteodos histoacutericos em diferentes ideologias

Essas concepccedilotildees foram expressas nos mitos que misturavam temas e eacutepocas que tinham

versotildees de acordo com ldquoresquiacuteciosrdquo de diferentes vozes e que por isso alguns autores

denominaram de ldquosincreacuteticasrdquo

Isso acontece com muitos deuses e deusas e nosso objeto de estudo as deusas virgens

tambeacutem tem um viacutenculo com lendas e histoacuterias da Greacutecia marcadas por uma fertilidade agriacutecola

e por atividades guerreiras

Essa preocupaccedilatildeo de estabelecer ligaccedilotildees com um passado como base de evoluccedilotildees

sucessivas jaacute estava presente em alguns autores da eacutepoca arcaica e de acordo com Lovejoy e

Boas190 Hesiacuteodo foi considerado ldquoo primeiro testemunho do que chamaram de lsquoprimitivismo

cronoloacutegicorsquordquo

Por isso decifrar ldquoos mitosrdquo das deusas virgens e reconhecer o estatuto dessa virgindade

a elas atribuiacuteda parece ser possiacutevel apenas atraveacutes de suposiccedilotildees Interligando pois a figura de

Heacutestia a outras narrativas que compotildeem um mesmo perfil semacircntico percebemos que sua

presenccedila estaacute sempre vinculada ao fogo sagrado e portanto a um elemento da natureza Sua

representaccedilatildeo eacute tatildeo ldquoabstratardquo e incorpoacuterea que eacute difiacutecil determinar-lhe atributos Teria Heacutestia

pertencido a uma eacutepoca mais como principio abstrato do que como divindade com traccedilos

femininos distintos Teria Heacutestia alguma ligaccedilatildeo com Agni deus do fogo na Iacutendia Por que

190 Cf LE GOFF Jacques Op cit p 294

107

Em estreita conivecircncia com Heacutestia Zeus tem o controle tanto sobre a lareira privada de cada casa ndash no centro fixo que constitui como que o umbigo no qual se enraiacuteza a morada familiar ndash quando sobre a lareira comum da cidade no seio da aglomeraccedilatildeo na Heacutetia Koineacute onde velam os magistrados priacutetanes191

Teria sua virgindade sido ldquocriadardquo a partir da falta de histoacuterias que envolvessem Heacutestia

em questotildees amorosas

Por que soacute a partir dos Hinos Homeacuterico ndash em especial o Hino Homeacuterico V a Afrodite ndash

Heacutestia eacute colocada explicitamente como virgem (parthenos) fazendo um pedido ao pai para que

pudesse manter-se virgem e natildeo se casar

Ainda cavando pistas de genealogias anteriores das deusas virgens antes de levantarmos

nossas hipoacuteteses sobre a virgindade e o epiacuteteto lsquovirgemrsquo das deusas e de Maria procuramos

levantar questotildees sobre Atena Seu surgimento no mundo eacute diferente do das outras deusas

virgens pois nasce da cabeccedila do pai o que lhe garante um jeito diferente de Ser Duas outras

consideraccedilotildees sobre Atena que jaacute foram exploradas ao decorrer de nossas reflexotildees satildeo

colocadas aqui a tiacutetulo de recordaccedilatildeo primeiro Atena eacute a uacutenica deusa considerada

ontologicamente virgem pois ao nascer (veja-se v 895 em Hesiacuteodo) jaacute tem sua virgindade

garantida segundo a identificaccedilatildeo feita por Platatildeo bem como por Apolocircnio de Rodes de que

Atena seria procedente da Liacutebia Platatildeo a coloca como sendo a deusa Neith de eacutepoca anterior agrave

arcaica em que a paternidade natildeo era reconhecida um periacuteodo matriarcal em que Neith tinha

suas sacerdotisas-virgens que se entregavam todos os anos a um combate armado para fins de

conquistar a posiccedilatildeo de sacerdotisa-superior Portanto a virgindade de Atena a κoύρη de

nascimento parece ser colocada desde a sua origem quer se considere a Teogonia grega quer se

considere a versatildeo de sua genealogia Liacutebia

Quanto a Aacutertemis podemos hipotetizaacute-la como sendo ldquoderivadardquo da histoacuteria indo-

europeacuteia uma deusa a quem se vinculam as Amazonas demarcando o espaccedilo entre o mundo

primitivo e a civilizaccedilatildeo192

Da perspectiva genealoacutegica tanto em Mateus como em Lucas a virgindade de Maria eacute

preservada Diz Lucas 323193

191 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 192 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 24 193 BIBLIA SAGRADA p 1350

108

ldquoQuando Jesus comeccedilou o seu ministeacuterio tinha cerca de trinta anos e era tido como filho de Joseacute filho de Helirdquo

Em Mateus 116194 temos sobre a genealogia de Jesus

ldquoJacoacute gerou Joseacute esposo de Maria da qual nasceu Jesus que eacute chamado Cristordquo

Embora as genealogias sejam divergentes em relaccedilatildeo a Joseacute (o que atesta um problema de

reconhecimento de paternidade) haacute uma forma de representaccedilatildeo linguumliacutestica que preserva a

virgindade de Maria pois as descriccedilotildees natildeo permitem a suposiccedilatildeo de que Joseacute possa ser o pai

bioloacutegico de Jesus Em Lucas ldquoera tido comordquo portanto o que equivale a dizer que natildeo era em

Mateus ldquoda qual nasceu Jesusrdquo referindo-se a Maria e natildeo a Joseacute

Chegamos pois ao momento de ldquoenfrentarmosrdquo a virgindade definindo-a por traccedilos se

natildeo por conceitos

A primeira constataccedilatildeo que se chegou eacute que a ideacuteia de ldquocastidaderdquo eacute mais tardia e que a

virgindade no iniacutecio dos tempos vincula-se a uma forma de poder

Resgatando uma definiccedilatildeo relacionada ao poder quando jaacute se estava por volta da eacutepoca

217 aC narra a lenda que Claacuteudia Quinta sacerdotisa de Vesta ia sofrer processo que

terminaria com uma morte ritual o que significava que ia ser sepultada viva Claacuteudia ia ser

punida por ter infringido seu voto de virgindade ndash o que significava a missatildeo para a qual tinha

sido designada No entanto nessa mesma eacutepoca Aniacutebal devastava a Itaacutelia e como narra Cacircmara

Cascudo

A sibila de Cumes aconselhou a vinda da pedra negra de Pessinonte na Aacutesia menor tombada do ceacuteu e considerada como a viva encarnaccedilatildeo de Cibele O barco que trouxe a pedra negra encalhou no Rio Tibre e os auguacuterios anunciaram que uma virgem arrastaria a embarcaccedilatildeo da lama e a poria a nado195

Eacute ai que entra Claacuteudia Quinta que diante de todo o povo romano invoca a deusa Cibele

e amarrando o rostro do navio com o seu cinto de Vestal consegue puxaacute-lo facilmente Tendo

cumprido essa missatildeo de ldquocaraacuteter puacuteblicordquo Claacuteudia daacute a prova de sua virgindade

Assim Cacircmara Cascudo inicia seu capiacutetulo sobre virgindade dizendo

A virgindade explica as estoacuterias populares e na tradiccedilatildeo maacutegica a forccedila irresistiacutevel e os atos sobre-humanos de valentia196

194 Idem p 1285 195 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Supersticcedilatildeo no Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia 1985 p 286 196 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 286

109

Cacircmara Cascudo narra vaacuterias supersticcedilotildees e crenccedilas em que o poder da virgem cura

regenera recupera

Como Heacutestia soacute uma virgem podia ter a obrigaccedilatildeo de acender e guardar o fogo sagrado

da vestais em Roma

Cacircmara Cascudo cita vaacuterias caracteriacutesticas das deusas virgens que vimos ao longo de

nosso trabalho a forccedila fiacutesica a resistecircncia ao combate a ausecircncia de medo a solicitude o

cumprimento de obrigaccedilotildees a valentia inexpugnaacutevel a alegria expressa em cantos danccedilas e

urros como ldquoemanaccedilotildees da virgindaderdquo

Ora nesse sentido coloca-se a deusa Afrodite que se posicionou frente a frente com as

deusas ditas virgens nos Hinos Homeacutericos Para nossa surpresa tambeacutem Cacircmara Cascudo

apresenta uma lista reveladora de deusas virgens e laacute se encontra a uracircnia natildeo Aacutertemis mas

Afrodite Vejamos o que diz Cacircmara Cascudo pois esse aspecto relaciona-se com a hipoacutetese que

tentamos levantar

As virgens criadoras tiveram o culto mais profundo e natural Era o poder para a Vida e sempre o potencial mais puro Nari dos indus Muta-Iacutesis dos egiacutepcios Atar dos aacuterabes Astoret dos feniacutecios Afrodite-Anadiocircmene dos gregos Vesta dos romanos Luonatar dos finlandenses Herta dos germanos Dea dos gauleses Iza dos japoneses Ira dos oceacircnicos foram reverenciadas nessa invocaccedilatildeo espontacircnea e poderosa197

Dessa forma estavam relacionadas a pureza ndash que podia ser conseguida atraveacutes de ritos

de purificaccedilatildeo ndash e a ldquoenergiardquo A tradiccedilatildeo das virgens prevecirc uma forccedila e um poder a tal ponto

que ldquoa Virgo Potens irresistiacutevel teraacute a maior aacuterea de influencia religiosa que qualquer elemento

temaacutetico no mundo do passado histoacutericordquo198

A virgindade assim concebida eacute dom eacute poder e eacute forccedila sobrenatural

Na Greacutecia antiga isso nos faz pensar que o celibato era uma forma de preservar a

autonomia e portanto a forccedila e o poder das divindades para a missatildeo que deviam desempenhar

no cosmo Assim sendo nesse universo grego apenas Hera comparada agraves deusas Aacutertemis

Atena Heacutestia e Afrodite natildeo possuiacutea autonomia ldquoDesgastava-serdquo com os afazeres familiares

pois submissa ao marido Zeus estava sempre vigilante sobre suas conquistas amorosas e todas

as suas lendas de uma forma ou de outra vinculam-na ao masculino isto eacute a Zeus

197 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287 198 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287

110

Afrodite apesar de ser a deusa que promove a ldquophiliardquo e portanto natildeo ser virgem

tambeacutem tem autonomia move-se entre deuses e homens promovendo sua forccedila criadora

Mesmo seu casamento natildeo tem caraacuteter de submissatildeo ao masculino pois foi um casamento

arranjado por Hera ndash aquela que se dedica aos arranjos familiares ndash e aleacutem do mais aquele que eacute

tido como esposo eacute coxo e ldquosem importacircnciardquo dada a ausecircncia de valentia e brilho nas histoacuterias

em que Hefesto participa Ao contraacuterio seus atos satildeo secundaacuterios e pouco relevantes

Diferentemente de Hera Afrodite ndash virgem ou natildeo ndash tem uma importacircncia em si mesma

aos moldes de Aacutertemis Atena e Heacutestia

Aleacutem disso tanto as deusas virgens como Afrodite tecircm uma missatildeo no cosmo fora do

espaccedilo da casa Como diz Hesiacuteodo ldquoAtena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevelrdquo199

Referindo-se a Afrodite

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice200

Aacutertemis eacute tida como a ldquoverte-flechasrdquo ldquoLeto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechasrdquo201

O que queremos destacar eacute que aleacutem de uma missatildeo que exige uma certa autonomia das

deusas parece tambeacutem que o poder da virgindade eacute uma forma de preservar divindades de um

periacuteodo matriarcal quando ainda natildeo se destacava e natildeo se nomeava o masculino

Assim o celibato preserva a autonomia a liberdade de movimentos e incorpora

caracteriacutesticas de uma eacutepoca das grandes deusas

Nesse sentido a virgindade no Cristianismo pode ter um propoacutesito semelhante pois parte

da valorizaccedilatildeo do feminino e do celibato e como consequumlecircncia o sexo passa a ter uma

conotaccedilatildeo negativa no mundo judaico-cristatildeo o que natildeo havia ateacute entatildeo na tradiccedilatildeo judaica

Sobre esse assunto haacute uma beliacutessima discussatildeo encaminhada por Spong Diz ele entre

outros trechos sobre o aspecto da sexualidade

The Bible in general and the birth narratives in particular became a subtle unconscious source for the continued oppression of women The cultural assumption was made that the only proper way for a moral woman to conduct herself was to remain safely inside

199 HESIacuteODO Op cit p 157 v 925 200 HESIacuteODO Op cit p 117 vs 203-206 201 HESIacuteODO Op cit p 157 v 918

111

the sexually profective barriers provided first by her father and second by her husband202

Um aspecto positivo no Cristianismo ao proclamar a virgindade de Maria foi o fato de

nomear a matildee de colocaacute-la dentro da importacircncia da histoacuteria de nascimento da histoacuteria da

humanidade

A partir do retrato elaborado de Maria como matildee virgem tambeacutem hipotetizamos um

outro ponto de que o sofrimento eacute de alguma forma inerente ao aspecto da virgindade Se por

uma lado daacute autonomia em relaccedilatildeo agrave presenccedila de domiacutenio de um esposo de outro prevecirc uma

renuacutencia pessoal aos envolvimentos domeacutesticos frente a uma missatildeo mais ampla quase sempre

de ordem puacuteblica e que requer uma doaccedilatildeo Entatildeo perguntamos isso natildeo equivalia a ldquotrocarrdquo a

submissatildeo do marido pela submissatildeo a uma divindade Natildeo seria deixar de assumir o

compromisso terreno para assumir o sagrado

No Hino Homeacuterico a Afrodite Heacutestia submete-se ao pai Zeus solicitando-lhe permissatildeo

para natildeo se casar e manter-se virgem

Na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo em Lucas Maria submete-se aos desiacutegnios de Deus usando o termo

ldquoservardquo na sua fala de concordacircncia

Eacute preciso uma resignaccedilatildeo um poder e forccedila para manter o equiliacutebrio do Ser com o

desempenho de uma missatildeo Por isso vimos Aacutertemis sofrendo com o parto difiacutecil da matildee o que

coloca uma temeridade em um aspecto do feminino aiacute embora seja uma funccedilatildeo criadora

semelhante agrave da natureza Por isso reza a lenda ela passa a se dedicar agrave causa da mulher como

orientadora nos casamentos e protetora nos partos A mesma Aacutertemis afugenta os pretendentes

deuses e mortais para natildeo deixar que a seduccedilatildeo possa interferir em sua natureza de mulherdeusa

liberta ndash entre dois mundos entre duas culturas ndash no cumprimento da funccedilatildeo que lhe foi

atribuiacuteda a de ldquoverte-flechasrdquo

Atena eacute marcada pelo sofrimento de sua chegada sem matildee mas inaugura uma ldquogeraccedilatildeordquo

nova em que o pai recebe os filhos e os aceita Atena nasce virgem pois sua virgindade eacute

predeterminada bem como sua funccedilatildeo que requer poder e renuacutencia do aspecto feminino

202 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 A Biacuteblia em geral e as narrativas de nascimento em particular se tornaram uma fonte sutil inconsciente de opressatildeo contiacutenua das mulheres Foi feita a conjetura cultural de que o uacutenico meio adequado para uma mulher de moral se conduzir era permanecer segura dentro das barreiras protetoras da sexualidade fornecidas primeiro pelo pai e segundo pelo marido (traduccedilatildeo nossa)

112

particular Ela eacute assumida como virgem e guerreira Sua virgindade eacute colocada como fato seja

como representante de Atenas descendente de Zeus seja como descendente da deusa virgem

Neith da Liacutebia

Heacutestia tem uma missatildeo civilizatoacuteria de grande espectro cuida de cada casa conhece os

dramas da convivecircncia domeacutestica das relaccedilotildees de gecircneros da sociedade grega da poliacutetica que

circunda a pira puacuteblica Como poderia ao mesmo tempo essa grande deusa incorpoacuterea

matriarcal cuidar de esposo de filhos e de sua proacutepria casa

Afrodite tem uma missatildeo que tambeacutem transcende o particular o que nos fez pensar que

talvez dentro da histoacuteria da sociedade patriarcal apenas tenham autonomia e independecircncia em

sua missatildeo as virgens (as deusas gregas com funccedilotildees diferenciadas as vestais na sua funccedilatildeo de

guardiatildes do fogo sagrado agrave maneira de Heacutestia Maria na sua missatildeo Cristatilde as freiras em sua

missatildeo teoloacutegica) e as mulheres que se dedicaram ao amor sem deixar se submeter pelo

domiacutenio do masculino (Afrodite livre no seu agir independente na sua conduta (embora tivesse

um marido) as vestais prostitutas sagradas as concubinas as prostitutas profissionais)

Apesar de a virgindade conter especificidades e a tributos positivos Spong argumenta

que na histoacuteria do Cristianismo ela pode ser vista como um constructo ldquomachistardquo originaacuterio do

patriarcalismo Segundo o argumento que defende a mulher que aparecia de forma marcante ao

lado de Jesus era Maria Madalena

No entanto a tradiccedilatildeo apagou sua figura atuante e colocou-a com um caraacuteter

ldquoameaccediladorrdquo de prostituta dado o seu caraacuteter liberto condenada pelo pecado Essa mesma

tradiccedilatildeo recuperou a imagem de Maria que aparecia palidamente nos primeiros evangelhos Sua

expressatildeo de poder comeccedilou a ganhar impulso a partir do segundo seacuteculo da era cristatilde

Teria sido a categoria de virgindade moldada a partir dos gregos pagatildeos Teria o

Cristianismo se apossado dessa ideacuteia colocando a lsquovirgemrsquo como a lsquomulher idealrsquo para servir aos

propoacutesitos de um Pai divino

Parece que a maternidade foi tida como uma forma de puniccedilatildeo desde o iniacutecio da criaccedilatildeo

do mundo (veja o que se colocou em relaccedilatildeo a Aacutertemis) pelas tensotildees que subjazem ao ato de

reproduccedilatildeo atraveacutes do ldquoconhecimentordquo que Adatildeo tem de Eva Vejamos como coloca Spong

113

At the time of the fall when according to the literal text sin entered Godrsquos good creation Eve too was a virgin Adam did not ldquoKnowrdquo203 her until they were both banished form the Garden of Eden (Gen41) Childbirth the result of Adamrsquos ldquoknowingrdquo was part of Eversquos punishment

(Gen316) 204

Parece-nos pois que a ideacuteia de virgindade foi elaborada como um constructo social do

mundo pagatildeo procurando preservar o poder feminino frente a uma missatildeo ampla e de domiacutenio

do coletivo A proacutepria Afrodite em seu envolvimento sexual com Anquises exprimiu seu

sentimento de culpa e de vulnerabilidade diante das questotildees amorosas explicitando a

consequumlecircncia desse ato na produccedilatildeo de um filho

A forma que a Igreja encontrou para redimir os pecados foi o batismo inspirado tambeacutem

nos rituais gregos de purificaccedilatildeo como jaacute foi referido anteriormente

Finalmente antes de colocarmos um elenco de questotildees investigativas sobre a virgindade

ocorreu-nos refletir sobre um extremo da virgindade feminina que passa a ser significada na sua

lsquoabstraccedilatildeorsquo Assim em se estabelecendo um paralelo entre Heacutestia e Maria percebe-se que antes

dos Hinos Homeacutericos que satildeo produccedilotildees posteriores a Homero e a Hesiacuteodo bem como na

iconografia da eacutepoca a deusa Heacutestia eacute silenciosa e incorpoacuterea quase irreal como Maria

Poucos dados textuais existem a respeito de Heacutestia Entretanto muito se tem investigado

e muitas suposiccedilotildees tecircm sido escritas a seu respeito

Maria tambeacutem parece natildeo ter sido uma mulher real sendo a histoacuteria de sua vida

encoberta de silecircncio Como coloca Spong bispo de Newmark

ldquoA view of history however reveals that the price of Maryrsquos bodily assumption was the sacrifice of her sexual identity She entered the realm of the gods as one deprived of her humanity She was a virgin bride a virgin mother a perpetual virgin and a post partum virgin She was immaculately conceived at birth and bodily assumed at the moment of death Clearly she was not a real woman rdquo205

A palavra grega lsquopathernosrsquo que indica em um primeiro sentido lsquomoccedila antes do

casamentorsquo jaacute deixa evidente o significado de natildeo-comprometimento com um homem Assim a 203 O verbo ldquoconhecerrdquo em hebraico pode significar lsquopenetrarrsquo penetrar no outro para conhecer 204 SPONG John Shelby op cit p 210 ldquoNo tempo da queda quando de acordo com o texto literal o pecado entrou na admiraacutevel criaccedilatildeo de Deus Eva tambeacutem era uma virgem Adatildeo nada ldquoconheciardquo ateacute ambos serem banidos do Jardim do Eacuteden (Gen41) O parto resultado do ldquoconhecimentordquo de Adatildeo foi parte da puniccedilatildeo de Eva (Gen316)rdquo (traduccedilatildeo nossa) 205 SPONG John Shelby op cit p 218 ldquoUma visatildeo da histoacuteria entretanto revela que o preccedilo da assunccedilatildeo do corpo de Maria foi o sacrifiacutecio de sua identidade sexual Ela entrou para o reino dos deuses como algueacutem privado de sua humanidade Ela foi um noiva virgem uma matildee virgem uma virgem perpeacutetua e uma virgem poacutes-parto Ela foi concebida se maacutecula pelo nascimento e corporeamente elevada na hora da morte Claramente ela natildeo era uma mulher realrdquo

114

virgindade deve por extensatildeo garantir o sentido de natildeo-ligaccedilatildeo a um indiviacuteduo por viacutenculos

contratuais como era tido o casamento na Greacutecia arcaica Daiacute a moccedila antes do casamento

virgem

Segue abaixo o protocolo de nossas perguntas

bull Representa a virgindade uma forma de preservar a figura da deusamulher autocircnoma

como continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo matriarcal da cultura baseada nos mitos da

fecundidade

bull Esse aspecto de virgindade confere agrave deusamulher um poder de dedicaccedilatildeo a uma missatildeo

que tem um caraacuteter civilizador

bull Por que o Cristianismo preservou a figura da Virgem na figura da matildee

bull Qual o apelo agrave afetividade lsquophiliarsquo que as deusasmulheres virgens podem manifestar em

seu discurso pela histoacuteria Que tipo de imagem de si mesmo o homem grego pode ter a

partir do olhar das deusas virgens

E aqui entra a nossa conclusatildeo maior a questatildeo amorosa conduz a Afrodite e ao poder do

desejo Sem ela a virgindade natildeo teria expressatildeo

A questatildeo da virgindade e das deusas virgens soacute eacute impactante frente agrave forccedila de recusa a

Afrodite bem como ao compromisso com o masculino

Ficam aiacute propostas para novas discussotildees Embora o misteacuterio das deusas virgens deva

persistir porque faz parte da maneira de se conceber o divino

115

REFEREcircNCIAS

AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro (Ed USP) 2 ed 1968 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par Seacutechant L et Chantraine P Paris Hachette 2000 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer (1736) Reimpressatildeo reprograacutefica Hildesheim Georg Olms 1976 BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed34 1997 DETIENNE Marcel Os Gregos e NoacutesUma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007

116

EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 disponiacutevel em lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt Acesso em 29jun2009 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 FOUCAULT M A arqueologia do Saber Rio de Janeiro forense Universitaacuteria 5 ed 1977 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 FREUD Sigmund (1931) Sexualidade Feminina In Obras completas Estandart brasileira Trad Sob a direccedilatildeo de Jayme Salomatildeo Rio de Janeiro imago 1996 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004 GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Feminino Campinas Editora Aliacutenea 2008 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 HOMER The Iliad v 1 e 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 HOMER The Odyssey Translated by E V Rieu London Penguin Books 2003 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004

117

LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 LISSARRAGUE Franccedilois A figuraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 MAVROMATAKI Maria Mitologia Griega Atenas Ediciones Xaitali 1997 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 RATTO Stephania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

118

SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001

119

BIBLIOGRAFIA

APOLLODORUS The library v 1 e 2 Cambridge Harvard University Press 1990 ARISTOacuteTELES Poeacutetica 2ed Traduccedilatildeo de Eudoro de Souza Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1993 BACHOFEN Johann Jakob Mitologiacutea Arcaica y Derecho materno Edicioacuten de Andreacutes Ortiz-Oseacutes Barcelona Editorial Anthropos 1988 BEN VENISTE Eacutemile Se vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes vol 1 et 2 Paris Les Eacuteditions de Minuit 1969 DETIENNE Marcel Comparar o incomparaacutevel Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2004 DETIENNE Marcel VERNANT Jean-Pierre Les ruses de lrsquointelligence La Megravetis des Grecs France Flammarion 1974 DUMEacuteZIL Georges Lrsquooubli de lrsquohomme et lrsquohonneur des dieux Paris Eacuteditions Gallimard 1985 DUMEacuteZIL Georges Mito y epopeya v III ndash Historias Romanas Meacutexico Fondo de Cultura econoacutemica 1996 GRANT Robert M Augustus to Constantine The emergence of Christianity in the Roman World New York Barnes amp Noble 1996 ROSE H J A Handbook of Greek Mythology London Methuen amp Co Ltd 1985 SISSA Giulia Greek Virginity Translated by Arthur Goldhammer Cambridge Harvard University Press 1990 THOMAS Rosalind Letramento e oralidade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 VEYNE Paul Acreditaram os gregos nos mitos Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

121

ANEXO A ndash Hinos Homeacutericos ndash Afrodite

V

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗ

Μοΰσά microοι έννέπε εργα πολυχρύσσυ Άφροδίτης Κύπριδος ήτε θεοΐσιν έπί γλυκύν ϊmicroερον ώρσε καί τrsquo έδαmicroάσ σ ατο φΰλα καταθνητων άνθρφπων οίωνούς τε διιπετέας καί θηρία πάντα ήγέν οσ΄ήπειροσ πολλά τρέΦει ήδ΄ οσα πόντος 5 πασιν δrsquo έργα microέmicroηλεν έυστεφάνου Κυθερείης

Τρισσάς δrsquo ού δύναται πεπιθεΐν φρένας ούδrsquo άπατησαι΄

κούρην τrsquo αίγιόχοιο ∆ιός γλαυκώπιν Άθήνην΄ ού γάρ οί εϋαδεν έργα πολυχρύσου Άφροδίτης άλλrsquo αρα οί πόλεmicroοί τε άδον και εργον ΄΄Αρηος 10 ύσmicroΐναί τε microάχαι τε καί άγλαά έργrsquo άλεγύνειν πρώτη τέκτονας ανδρας έπιχθονίους έδίδαξε ποιησαι σατίνας τε και αρmicroατα ποικίλα χαλκω η δέ τε παρδενικας άπαλόχροας έν microεγάροισιν άγλαά εργrsquoέδίδαξεν έπι φρεσι θεΐσα έκάστη 15 ούδέ ποτrsquo Άρτέmicroιδα χρυσηλάκατον κελαδεινην δάmicroναται έν φιλότητι φιλοmicromicroειδης Άφροδίτη και γαρ τη αδε τόξα καί οΰρεσι θηρας έναίρειν φόρmicroιγγες τε χοροί τε διαπρύσιοί τrsquo όλολυγαί αλσεά τε σκιόεντα δικαίων τε πτόλις άνδρων 20 ούδε microεν αίδοίη κούρη αδε εργrsquo Άφροδίτης Ίστίη ην πρώτην τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης αΰτις δrsquo όπλοτάτην βουλη ∆ιός αίγιόχοιο πότνιαν ην έmicroνωντο Ποσειδάων καί Άπόλλων΄ η δε microαγrsquo ούκ εθελεν άλλά στερεως άπέειπεν΄ 25 ωmicroοσε δέ microέγαν ο δη τετελεσmicroένος έστίν

PARA AFRODITE206

Musa fale-me dos trabalhos da aacuteurea Afrodite a Ceacutepria que incita o doce desejo nos deuses e que subjuga as raccedilas dos homens mortais e os paacutessaros que voam no ceacuteu e todas as feras e tantas quantas a terra nutre e quantas tambeacutem o

[mar 5 a todos concernem os trabalhos da bem-coroada

[Citereacuteia Mas ela natildeo pode persuadir nem seduzir trecircs

[coraccedilotildees Primeiro a filha de Zeus que segura a eacutegide a

[glaucoacutepi da Atena pois ela natildeo se compraz nos trabalhos da aacuteurea

[Afrodite mas ama as guerra e os trabalhos de Ares 10 os combates e as batalhas e preparar esplecircndidos

[trabalhos beacutelicos Primeiramente ela ensina os artesatildeos da terra a fazer carros de guerra e vaacuterios carros ornados

[com bronze ela tambeacutem ensina as jovens virgens delicadas nas

[casas os esplecircndidos trabalhos e inspira cada uma delas15 e nem a clamorosa Aacutertemis das flecha de ouro a maacutevel Afrodite subjuga no amor pois a ela compraz arcos e flechas e matar feras nos

[montes as liras e os coros e os gritos agudos penetrantes os bosques ensombreados e as cidades dos homens

[civilizados 20 e nem agrave pura virgem Heacutestia compraz os trabalhos de Afrodite a qual foi a primeira nascida de Crono

206 Os hinos a Afrodite V e VI foram traduzidos com um enfoque diferente dos Hinos Homeacutericos dedicados a Aacutertemis Atena e Heacutestia as deusas virgens e nosso objeto de estudo Nestes hinos tivemos preocupaccedilatildeo com a mensagem do rapsodo explicitando caracteriacutesticas da Deusa no que diz respeito agrave sua chegada sobre o mar aos ornamentos que as horas lhe colocaram agrave beleza que encantou os imortais ao dom cativante que a deusa Afrodite emana subjugando deuses imortais e homens mortais Poreacutem resistem a esse poder de desejo ofuscante e opotildee-se a ele um outro tipo de poder o da virgindade As descriccedilotildees nesses hinos satildeo elaboradas como uma tela pintada com detalhes lsquofiletados a ourorsquo como as joacuteias que Afrodite porta e o explendor das violetas e o doce sorriso da deusa esparrama-se em cada linha do hino Assim nossa preocupaccedilatildeo foi antes com o ldquoconteuacutedordquo do que com a esteacutetica e com a meacutetrica pois natildeo poderiacuteamos ldquodistorcerrdquo o poema trazendo-o para o contexto de nosso seacuteculo Fizemos pois uma traduccedilatildeo livre de quaisquer amarras teoacutericas Ficam ai apenas ldquoideacuteiasrdquo sobre o que o rapsodo tentou colocar dentro da cultura de seu tempo

122

άψαmicroένη κεφαλης πατρός ∆ιος αίγιόχοιο παρθένος εσσεσθαι πάντrsquo ηmicroατα δΐα θεάων τη δε πατηρ Ζεύς δωκε καλόν γέρας άντι γάmicroοιο καί τε microέσω οΐκω κατrsquo αρrsquo εζετο πΐαρ έλοΰσα 30 πασιν δrsquo έν νηοΐσι θεων τιmicroάοχός έστι καί παρα πασι βροτοΐσι θεων πρέσβειρα τέτυκται

Τάων ού δύναται πεπιθειν φρένας ούδrsquo άπατησα των δrsquo αλλων οϋ πέρ τι πεφυγmicroένον εστrsquo Άφροδίτην οϋτε θεων microακάρων οϋτε θνητων άνθρώπων 35 καί τε παρεκ Ζηνος νόον ηγαγε τερπικεραύνου οστε microέγστός τrsquo έστί microεγίστης τrsquo εmicromicroορε τιmicroης καί τε τοΰ εϋτrsquo έθέλοι πυκιναλ φρένας έξαπαφαΰσα ρηιδίως συνέmicroιξε καταθνητησι γυναιξίν Ήρης έκλελαθοΰσα κασιγνήτης άλόχου τε 40 η microέγα είδος άρίστη έν άθανάτησι θεησι κυδίστην δrsquo αρα microιν τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης microήτηρ τε ΄Ρείη Ζεύς δrsquo αφθιτα microήδεα είδώς αίδοίην αλοχον ποιήσατο κέδνrsquo είδυΐαν Τη δε καί αύτη Ζεύς γλυκύν ΐmicroερον εmicroβαλε θυmicroω 45 άνδρι καταθνητω microιχθήmicroεναι οφρα τάχιστα microηδrsquo αύτη βροτέης εύνης άποεργmicroένη εϊη καί ποτrsquo έπευξαmicroένη εϊπη microετά πασι θεοΐσιν ήδύ γελοιήσασα φιλοmicromicroειδής Άφροδίτη ως ρα θεούς συνέmicroιξε καταθνητησι γυϖαιξί 50 καί τε καταθνητούλ υίεΐς τέκον άθανάτοισιν ως τε θεάς άνέmicroιξε καταθνητοΐς άνθπώποις

[de espiacuterito astuto e tambeacutem mais jovem pela vontade de Zeus que

[segura a eacutegide a soberana que Poseidon e Apolo procuraram para o

[casamento Mas ela de forma alguma natildeo consentindo

[firmemente recusou 25 E fez um grande juramento o qual foi cumprido ateacute

[o fim tocando a cabeccedila do pai Zeus que segura a eacutegide que seraacute virgem para sempre divina entre as deusas agrave qual o pai Zeus deu grande honra em lugar de

[casamento e ela assentou-se no centro da casa e recebe a melhor

[oferenda 30 em todos os templos ela eacute honrada e entre todos os mortais ela eacute colocada como

[veneraacutevel Deusas ela natildeo pode persuadir nem iludir coraccedilotildees mas dos outros natildeo haacute nenhum que tenha escapado

[de Afrodite Nem os deuses bem aventurados nem os homens

[mortais 35 e sem que Zeus que ama o raio desse conta ela

[conduziu o que eacute o maior e tem a maior diginidade e quando lhe apraz ela ilude facilmente o coraccedilatildeo

[saacutebio dele e o coloca junto de mulheres mortais tendo ocultado de sua irmatilde e esposa Hera 40 a qual eacute a maior em beleza entre os deuses imortais a mais gloriosa eacute ela nascida do astuto Crono e de Reacuteia sua matildee que a geraram e Zeus de

[sabedoria impecaacutevel feacute-la sua doce e cuidadosa esposa

123

VI

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗΝ

Α ίδοίην χρυσοστέφανον καλήν Άφροδίτην ασαmicroαι η πασης Κύπρου κρήδεmicroνα λέλογχεν είναλίης οθι microιν Ζεφύρου microένος ύγρόν άέντος ηνεικεν κατα κΰmicroα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης άφρώ ενι microαλακω την δε χρυσάmicroπυκες Ώραι 5 δέξαντrsquo άσπασίως περί δrsquoαmicroβροτα ειmicroατα εσσαν κρατί δrsquo έπrsquo άθανάτω στεφάνην εϋτυκτοϖ εθηκαν καλήν χρυσείην έν δε τρητοΐσι λοβοΐσιν ανθεmicrorsquo όρειχάλκου χρσοΐό τε τιmicroήεντος δειρη δrsquo άmicroφrsquo άπαλη καί στήθεσιν άργυφέοισιν 10 ορmicroοισι χρυσέοισιν έκόσmicroεον οίσι περ αύταί Ώραι κοσmicroείσθην χρυσάmicroπυκες όππότrsquo ϊοιεν ές χορόν ιmicroερόεντα θεων καί δώmicroατα πατρός αύτάρ έπειδη πάντα περί χροΐ κόσmicroον εθηκαν ηγον ές άθανάτους οΐ δrsquo ήσπάζοντο ίδόντεσ 15 χερσί τrsquo έδεξιόωντο καί ήρήσαντο εκαστος είναι κουριδίην άλοχον καί οϊκαδrsquo αγεσθαι είδος θαυmicroάζοντες ίοστεφάνου Κυθερείης

Χαΐρrsquo έλικοβλέφαρε γλυκυmicroείλιχε δος δrsquo έν άγωνι

νίκην τωδε φέρεσθαι έmicroην δrsquo εντυνον άοιδήν 20 αύτάρ έγώ καί σεΐο καί αλλης microνήσοmicrorsquo άοιδης

PARA AFRODITE

Cantarei veneraacutevel coroada de ouro bela Afrodite 1 a qual de toda Chipre Marinha rodeada de muralhas laacute onde o uacutemido vento Zeacutefiro207 ergueu-a sobre a onda do mar barulhento na espuma suave e as Horas208 adornadas de ouro 5 receberam-na com alegria vestiram-na com [vestimentas divinas e sobre a cabeccedila imortal colocaram a bela coroa de ouro bem feita e nas orelhas furadas ornamentos de oricalco209 e de ouro precioso e em volta do pescoccedilo macio e do peito resplandecente [de brancura 10 colares de ouro os quais filetados de ouro satildeo usados pelas proacuteprias Horas quando quer elas vatildeo para a casa do pai para o coro charmoso dos deuses e depois que a vestiram conduziram-na para os imortais os quais a acolheram15 e saudaram com as matildeos e cada um suplicou para ser o esposo unido a ela210 e levaacute-la para casa admirados pela beleza da Citereacuteia coroada de violetas Salve a de olhos vivazes suavemente cativante na assembleacuteia [dos deuses Decirc-me a vitoacuteria e conduze meu canto honrado 20 E depois eu me lembrarei de ti e de outra canccedilatildeo

207 microένος tem o sentido de forccedilas da natureza como a aacutegua o fogo o vento neste caso refere-se ao vento Zeacutefiro eacute um vento do oeste daiacute ter um significado de vento agradaacutevel Zeacutefiro era personificado como filho de Eoacutelico 208 As Horas representavam as divindades das Estaccedilotildees Eram as filhas de Zeus e de Teacutemis e irmatildes das Moiras (os destinos) Agraves Horas designa-se um duplo sentido de divindade da natureza presidindo o ciclo da vegetaccedilatildeo e de divindades da ordem promovendo estabilidade Soacute tardiamente elas passaram a significar as horas do dia 209 Oricalco eacute um tipo de metal semelhante ao cobre 210 ldquounido em casamento com uma esposardquo daiacute o ldquoesposo legiacutetimordquo Esse termo envolve por extensatildeo a noccedilatildeo de laccedilos conjugais e de leito conjugal

124

X

ΕΙΣ ΑΦΡ0∆1ΤΗΝ

Κν προ γενη Κνθέρειαν αείσοmicroαι ητε βροτοΐσι microεί λιχα δώρα δί δωσιν εφ ίmicroερτω δε προσώπφ αίεί microει διάεί καί εφ ιmicroερτograveν θέεί άνθος Χαicircρε θεά Σα λαmicroicircνος ευκτιmicroένης microε δέουσα είνα λίης τε Κύπρον δός δ ίmicroερόεσσαν άοι δήν5 αύτάρ εγω καί σείο καί αλ λης microνήσοmicro άοι δης

PARA AFRODITE

Canto a Citereacuteia211 de Chipre que aos homens daacute doces dons sobre sua face desejante212 estaacute sempre o sorriso e desejaacutevel213 eacute o brilho Oh deusa dama214 da bem-feita Salamina e da Chipre marinha215 daacute o canto atraente216 5 Entatildeo me lembrarei de ti e de outro canto

211 Como se verifica ao longo das consideraccedilotildees sobre alguns pontos do aspecto metodoloacutegico o uso de palavras pleonaacutesticas em Homero ocorre na posiccedilatildeo que assumimos como um ornato decorrente do proacuteprio gecircnero eacutepico e inerente ao contexto Assim ritmicamente colocam-se lado a lado

Kuπρογενη Kuθέρειαν ou seja a Citereacuteia nascida em Chipre Como acreditava-se que Afrodite havia surgido das ondas (aphros) fecundadas pelo secircmen de Urano

quando foi castrado por seu filho Cronos ela a Afrogeneacuteia nascida da espuma sai do mar em uma praia na ilha de Chipre 212 Encontram-se nos versos 2 3 e 5 do original grego respectivamente as palavras Ίmicroερτώ ίmicroερτόν ίmicroερόεσσαν nos versos indicados 213 Assim a repeticcedilatildeo na traduccedilatildeo procurou manter o sentido original Embora no verso 5 tenha-se usado o adjetivo atraente ele estaacute indicado como um equivalente do verbete significando o que faz aparecer o desejo Todas essas palavras possuem uma base comum ίmicroερός e se referem ao sentido de desejo que estaacute relacionado a Afrodite e portanto ao que se chama de Amor Encontra-se uma personificaccedilatildeo de microερος na Teogonia de Hesiacuteodo verso 64 p 108 na obra de TORRANO JAA Teogonia A Origem dos Deuses HESIacuteODO Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Em GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 haacute o seguinte comentaacuterio sobre HiacutemeroO gecircnio Hiacutemero eacute a personificaccedilatildeo do Desejo amoroso Acompanha Eros no cortejo de Afrodite e no cimo do Olimpo vive ao lado das Caacuteritas e das Musas Eacute uma simples abstraccedilatildeo e natildeo figura em nenhuma lenda p 229 Embora Grimal coloque como sendo uma abstraccedilatildeo acreditamos que ele natildeo esteja se referindo ao desejo como forma de amor platocircnico Na eacutepoca arcaica ίmicroερος em Homero e em Hesiacuteodo estaacute relacionado ao amor libidinoso o que provoca a atraccedilatildeo 214 O texto grego traz a palavra microεδέουσα que significa a que reina sobre Esse termo junto com a palavra Σαλαmicroίνος refere-se a Afrodite (verificar BAILLY Anatole Dictionnaire Grec FranccedilaisParis Hachette2000 p1236) Para a traduccedilatildeo pensou-se no aspecto semacircntico rainha ou dama da cidade e optou-se por motivo de versificaccedilatildeo pela palavra dama 215 A palavra referente a Chipre eacute είναλίης que significa marinha cercada de mar Optou-se pela traduccedilatildeo marinha por ter um significado abrangente daquilo que se relaciona com o mar e por uma questatildeo econocircmica sabendo-se que Chipre eacute uma ilha estaacute cercada de mar 216 Ver notas 212 e 213 acima

125

ANEXO B ndash Hinos Homeacuterico ndash Deusas virgens

IX

ΕΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ

Αρτεmicroιν υmicroνεί Μούσα κασιγνήτην Έκάτοιο παρθενον ιοχεα ιραν όmicroότρο φον Άπόλλωνος ηθιππονς αρσασα βαθυσχοίνοιο Μέ λητος ρίmicro φα δια Σmicroύρνης πα γχρυσεον άρmicroα διώκει έ ς Κ λάρον άmicro πε λόεσσαν otilde θ άργυρότοξος Απόλλων ήσται microιmicroνάζων έκατηβoacute λον ίοχέαιραν 6

Καigrave συ microεν ουτω χαicircρε θεαί θ άmicroα πάσαι άοι δη αύταρ έγώ σε πρώτα και έκ σέθεν άρχοmicro άείδειν σευ δ έγω άρ ξάmicroενο ς microεταβησοmicroαι α λλον έ ς ΰmicroνον

PARA AacuteRTEMIS Musa cante Aacutertemis irmatilde do Atirador217 virgem218

que lanccedila flechas criada com Apolo daacute aacutegua aos cavalos de Meles junto aos juncos219 veloz por Esmirna guia a charrete220

dourada a Klaros com vinhas221 onde o arqueiro Apolo estaacute agrave espera da deusa que atira flechas222 6 E assim salve tu e todas as deusas no canto Entatildeo primeiro a ti e de ti passo a cantar tendo comeccedilado de ti vou a outro hino

217 Εκάτοιο Εκάτος eacute um epiacuteteto de Apolo e eacute inclusive no texto grego grafado com maiuacutescula tambeacutem pois eacute uma outra forma de nomeaacute-lo Significa o que atira ao longe 218 παρθένον παρθένος Em BAILLY (idib p 1489) I vierge particul 1 jeune fille 2 fille non marrieacutee 3jeune femme non marrieacutee 4 qui est comme une jeune fille vierge pur intact II La statue drsquoAthegravena agrave Athegravenes Neste caso παρθένον refer-se a Aacutertemis 219 A palavra βαθυσχοίνοιο significa um lugar coberto de juncos caniccedilos por isso em geral estaacute situado perto de lugares uacutemidos e alagados podendo estar pero de rios ou do mar BAILLY (id Ib p 2041) apresenta como ldquoaux joncs eacutepais aux hautes herbesrdquo 220 άρmicroα tem o sentido de attelage drsquoougrave char char de guerre ( BAILLY ib p 270) Portanto indica que Aacutertemis conduzia seu carro sua carruage ou sua charrete que era toda dourada (παγχρύσεον) Escolhemos a traduccedilatildeo charrete por nos parecer mais adequada ao contexto 221 Αmicroπελόεις όεσσα όεο em BAILLY (ib p 102) couvert de vignes Isso nos daacute uma indicaccedilatildeo de uma regiatildeo agriacutecola em que predominava a cultura de vinhas 222 Εκατηβολον significa o que atira flechas ao longe e eacute um epiacuteteto usado tanto para Apolo como para Aacutertemis Nesse caso como vem junto da palavra ιοχέαιραν refere-se a Aacutertemis e eacute pleonaacutestico pois significa a deusa que atira flechas e eacute usado com o verbo citado que tambeacutem significa atirar flechas ao longe mas estaacute se referindo agrave deusa A palavra ιοχέαιραν tambeacutem aparece no verso 2 relacionada a Aacutertemis ao lado de outro atributo virgem Eacute uma forma recorrente em Homero

126

XXVII

ΣΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ Αρτεmicroιν άεί δω χρυση λάκατον κε λα δεινήν παρθένον αiacute δοίην έ λα φηβό λον ίοχέαιραν αύτοκασιγνήτην χρνσαόρου Άπό λλωνος η κατ δρη σκιoacuteεντα καigrave άκριας ηνεmicroοέσσας άγρη τερποmicroενη παγχρύσεα τόξα τιταίνει 5 πέmicroπουσα στονόεντα βε ληmiddot τροmicroέει δε κάρηνα ύψη λων ορέων ίάχει δ επι δάσκιος υ λη δεινograveν υπograve κ λαγγης θηρων φρίσσει δέ τε ηαicircα πόντος τ ιχθυόεις ή δ α λκιmicroον ήτορ έχουσα πάντη επιστρέ φεται θηρων ό λεκουσα γενέθ λην 10 αύταρ επην τερ φθη θηροσκόπος ίοχέαιρα εύ φρήνη δε νόον χα λάσασ εύκαmicroπέα τόξα έρχεται ες microεηα δωmicroα κασνγνητοια φί λοιο Φοίβου Από λλωνος ∆ε λφων ες πίονα δηmicroον Μουσων και Χαρίτων κα λograveν χορograveν άρτυνέουσα 15 ένθα κατακρεmicroάσασα πα λίντονα τόξα καigrave igraveούς ηγεicircται χαρίεντα περigrave χροigrave κόσmicroον έχουσα εξάρχουσα χορούς αicirc δ άmicroβροσίην οπ ίεicircσαι ύmicroνευσιν Λητω κα λλίσ φυρον ως τέκε παicircδας αθανάτων βου λη τε καigrave εργmicroασιν εξοχ αρίστους 20 Χαίρετε τέκνα ∆ιograveς καigrave Λητους ηυκόmicroοιο αύταρ έηων ύmicroέων τε καigrave α λλης microνήσοmicro άοι δης

PARA AacuteRTEMIS Canto Aacutertemis das flechas de ouro a rumorosa223 digna224 virgem que caccedila225 os cervos e lanccedila o arco a proacutepria irmatilde de Apolo da espada dourada das montanhas sombrias e dos picos ventosos alegrando-se na caccedila estende o arco aacuteureo226 5 enviando flechas atrozes227 Tremem os cumes dos montes altos e a floresta densa ecoa forte com o grito das feras abala a terra e o mar com peixes Mas ela coraccedilatildeo forte228 volta-se a todos os lados destruindo feras229 10 Depois a caccediladora230 e arqueira231 se alegra satizfaz a mente e afrouxa o arco flexiacutevel e vai para a grande casa do irmatildeo amado Febo232 Apolo para a rica terra de Delfos para alinhar a danccedila233 das Musas e Graccedilas 15 Entatildeo pendura para traacutes o arco e as flechas conduz a danccedila e a organiza graciosamente234 e dirige os coros Elas lanccedilam a voz divina cantam como Leto de belo peacute pariu235 os melhores filhos (entre os imortais)236 na vontade e na accedilatildeo 20 Oh filhos de Zeus e Leto de fartos cabelos Eu237 me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

223 A palavra κελαδεινην significa ldquobarulhenta sonora rumorosardquo referindo-se a Aacutertemis devido agrave caccedila 224 De acordo com BAILLY ib p41 aleacutem de veneraacutevel digna de respeito αιδοίην tambeacutem significa envergonhada o que faz pensar em uma caracteriacutestica relacionada agrave virgindade 225 ελαφηβόλον (acusativo) tambeacutem eacute um epiacuteteto de Aacutertemis significando ldquoperseguidora de cervosrdquo Na falta de um termo equivalente em portuguecircs traduzimos por ldquoque caccedila os cervosrdquo usando uma oraccedilatildeo adjetiva para qualificar Aacutertemis 226 Arco aacuteureo ou arco dourado literalmente encontramos em grego παγχρυσεα ou seja com a conotaccedilatildeo de que o arco eacute ldquotodo douradordquo 227 A palavra grega στονόεντα eacute usada com o sentido de ldquoque faz gemer funestasrdquo daiacute termos escolhido em portuguecircs o termos ldquoatrozesrdquo 228 No original grego encontra-se έχουσα que significa ldquotendordquo ou ldquoaquelea que temrdquo (particiacutepio presente do verbo έχω)Usou-se um aposto explicativo com o mesmo sentido para fins de metrificaccedilatildeo 229 O verso 10 se traduzido literalmente fica ldquo volta-se para todos os lados destruindo a raccedila dos animais ferozesrdquo Na traduccedilatildeo eliminou-se a palavra γενέθλην isto eacute raccedila famiacutelia Achamos que a palavra ldquoferasrdquo em portuguecircs jaacute tem uma abrangecircncia de substantivo no plural referindo-se agrave espeacutecie como um todo 230 έηροσκόπος significa ldquoaquela que espreita os animaisrdquo Traduzimos pois com o sentido de ldquoaquela que caccedila os animaisrdquo portanto ldquoa caccediladorardquo 231 ίοχέαιρα epiacuteyeyo de Aacutertemis ldquoa que lanccedila flechasrdquo ou seja ldquoa arqueirardquo 232 Φοίβον traduzido geralmente como Febo que significa ldquoo brilhanterdquo e eacute um epiacuteteto de Apolo Funciona muitas vezes como nome proacuteprio (Ver GRIMAL ib p 167) 233 Quando o autor se refere agrave danccedila das Musas e das Graccedilas ele especifica καλόν χορόν o que quer dizer ldquobela danccedilardquo Por economia meacutetrica suprimimos a palavra ldquobelardquo pressupondo que a danccedila das Musas e das Graccedilas jaacute confere agrave danccedila um sentido de beleza 234 Em uma traduccedilatildeo literal o verso 17 apresenta-se como ldquoela conduziu proporcionando a ordem graciosa em torno da danccedilardquo Traduzimos ldquodirigir a ordem com graccedilardquo como ldquoorganizar com graccedilardquo 235 No texto grego estaacute especificado que Leto ldquopariu filhosrdquo Encontra-se a forma τέκε παίδας Como no verso seguinte (v20) encontra-se a forma αρίστους referindo-se ldquoaos melhore os mais excelentesrdquo transferiu-se a palavra ldquofilhosrdquo (παίδας) do verso 19 para o verso 20 236 O superlativo implica sempre que haacute uma comparaccedilatildeo Por razotildees meacutetricas colocou-se entre parecircnteses significando que natildeo faz parte da estrutura do verso 237 έγων achamos interessante manter na traduccedilatildeo o nominativo eacutepico ldquoeurdquo

127

XI

ΣΙΣ ΑΘΗΝΑΝ Παλλάδ Aθηναίην ερυσίπτολιν αρχomicro αεί δειν δεινήν η συν Aρηι microέλει πολεmicroήια έργα περθόmicroεναί τε πόληες αυτή τε πτόλεmicroοί τε και τ ερρνσατο λαograveν igraveόντα τε νισσόmicroενόν τε Xαicirc ρε θεά δός δ άmicromicroι τύχην ευδαιmicroονίην τε 5

PARA ATENA

A Palas Atena guardiatilde da polis238 canto terriacutevel239 que com Ares faz atos guerreiros de saques das polis de urros e de batalhas e salva as pessoas que na guerra combatem240 Oh deusa conceda-nos uma sorte boa 5

238 O termo grego ερυσίπτολιν eacute usado como epiacuteteto a Atena significando a protetora da cidade a guardiatilde 239 A palavra δεινήν nom δεινός quando se refere a Atena como eacute citado em BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilaised Hachette 2000 p 439 significa fort puissantterrible Daiacute o termo ser traduzido em portuguecircs em alguns contextos como terriacutevel a que tem poder e eacute extraordinaacuteria pois eacute uma divindade que possui tambeacutem um grito de guerra terriacutevel como se encontra no referido verbete e como confirma o verso 3 do Hino em questatildeo Em inglecircs equivalente a terriacutevel poderosa a traduccedilatildeo usada por EVELYN-WHITE HG in Hesiod The Homeric Hymns and Homerica London Loeb Classical Library 1982 eacute dread 240 ίόντα ( verbo είmicroί ) juntamente com a palvra λαόν significa ir agrave guerra e participar da luta Assim coloca BAILLY (id ib) agrave p 593 srsquoavancer au milieu de lrsquoarmeacutee ou de la foule (des guerriers)

128

XXVIII ΕΙΣ ΑΘΗΝΑΝ

Παλλάδ Aθηναίην κυδρην θβόν άρχοmicro άεί δειν γλανκώπιν πολυmicroητ ιν άmicroβίλίχον ητορ εχρυσαν παρθενον αίδοίην ερνσί πτολιν άλκηεσσαν Tριτογενή την αντος εγείνατο microητίετα Ζενς σεmicroνής εκ κε φαλής πολεmicroήια τενχε εχονσαν 5 χρύσεα παmicro φανοωντα σέβας δ εχε πάνταςορώντας αθανάτουςmiddot ή δε πρόσθεν ∆iograveς αίγιόχοιο εσσνmicroένως ώρουσεν ά π άθανάτοιο καρήνου σεiacuteσασ ograveξυν άκονταmiddot microέγας δ ελελiacuteζετ Όλυmicro πος δεινograveν υ πograve βρίmicroης γλανκώ πι δος άmicro φigrave δε γαicircα 10 σmicroερδαλέον iάχησεν εκινηθη δ άρα πόντος κύmicroασι πορ φυρέοισι κνκώmicroενος εκχντο δ άλmicroη εξα πίνης στήσεν δ Y περίονος άγλαograveς υιος iacuteππους ωκύποδας δηρograveν χρόνον είσότε κούρη εΐλετ απ αθανάτων ωmicroων θεοεiacuteκελα τεύχη 15 Παλλagraveς Άθηναίηγήθησε δε microητίετα Ζεύς Καigrave συ microεν οΰτω χαicircρε ∆iograveς τέκος αίηιoacuteχοιο αυτάρ εγώ καigrave σεicircο καigrave άλλης microνήσοmicro άοιδής

A ATENA

A Palas Atena canto a gloriosa241 deusa242 glaucoacutepida243 astuta com coraccedilatildeo indoacutecil virgem244 digna guardiatilde das cidades ousada Tritogecircnia245 o proacuteprio Zeus saacutebio a fez nascer de sua cabeccedila veneraacutevel portando armas246 5 aacuteureas toda brilhantes que impotildeem respeito247 aos imortais E ela frente a Zeus porta-eacutegide com iacutempeto saltou da cabeccedila imortal agitando a lanccedila aguda Ecoai Olimpo com espanto agrave forccedila da glaucoacutepida E a terra 10 gritou assustada O oceano se abalou agitou as ondas negras248 A aacutegua249 transbordou suacutebito O brilhante filho de Hipeacuterion250 parou os cavalos de peacutes aacutegeis ateacute que251 a virgem252 Palas Atena253 tirasse dos imortais 15 ombros as armas E Zeus saacutebio se alegrou Assim salve tu filha de Zeus que tem a eacutegide Depois me lembrarei de ti e de outro canto

241 O termo κυδρην eacute geralmente usado quando se refere a certas deusas como Atena e Leto Tem o sentido de ldquogloriosa ilustrerdquo ( A esse respeito ver BAILLY p1147) 242 A palavra θεόν estaacute no acusativo e possui a mesma forma para o masculino e para o femininoO que identifica o uso eacute o contexto ou o artigo definido Haacute um importante texto escrito por LORAUX Nicole em que ela comente sobre a questatildeo deusdeusa apontando para a generalidade indicando apenas um ser divino Eacute pois um problema de gecircnero como diz Loraux (In PANTEL Pauline S histoacuteria das Mulheres A Antiguidade Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 243 Depois de apelar Palas Atena o autor se remete a ela nomeando-a atraveacutes de uma seacuterie de epiacutetetos ldquoglaucoacutepida astuta virgem guardiatilde das cidade corajosa Tritogecircniardquo 244 O epiacuteteto παρθένον vem enfatizado pelo adjetivo αίδοίην o que como coloca Loraux em seu artigo supra-citado faz remeter agrave ideacuteia do divino do veneraacutevel em relaccedilatildeo agrave castidade de deuses como caracteriacutestica dos imortais 245 relaccedilatildeo ao epiacuteteto Τριτογενή haacute diversas interpretaccedilotildees quanto ao significado Uma das hipoacuteteses do epiacuteteto eacute de que ela nascera perto do lago Tritocircnis Poreacutem uma outra possibilidade eacute de se remeter ao termo eoacutelico que significaria ldquoa verdadeira filha de Zeusrdquo (BAILLY p 1964) 246 Atena nasceu carregando armas Como explicita o texto grego πολεmicroήια τεύχέ ou seja ldquoarmas beacutelicasrdquo 247 O que o autor diz literalmente nos versos 5 6 e 7 eacute que ldquoAtena estava portando armas de guerra douradas e toda brilhantes que impotildeem respeito quando os deuses (imortais) as vecircemrdquo 248 Traduzimos a palavra πορφυρέοωσι por ldquonegrasrdquo Literalmente essa palavra significa ldquoescuras da cor das sombrasrdquo 249 A palavra άλmicroη pode significar tanto a aacutegua do mar como a espuma das aacuteguas do mar Na ediccedilatildeo do Loeb Classical Library foi traduzida por foam (espuma) 250 ldquoO brilhante filho de Hipeacuterionrdquo significa pois o ldquoSolrdquo (Heacutelio) 251 ldquoAteacute querdquo indica um termo relacionado ao tempo que o precede e ao qual daacute continuidade No texto grego o autor enfatiza a accedilatildeo precedente colocando δρόν χρόνο είσότε ou seja ldquode longa duraccedilatildeo ateacute querdquo 252 Aqui a palavra usada referindo-se a Atena e designando a moccedila a virgem eacute a palavra ϊούρη e natildeo αρθένον Isso encaminha para uma reflexatildeo em relaccedilatildeo agrave escolha dos vocaacutebulos 253 No original grego o termo Palas Atena estaacute no verso 16 Na traduccedilatildeo transferimo-lo para o verso 15 por motivo de coerecircncia textual

129

XXIV ΣΙΣ ΕΣΤΙΑΝ

Έστiacuteη ητε ανακτος Άπό λλωνος εκάτοιο Πυθοicirc εν ήγαθέ η ίερograveν δόmicroον άmicro φι πο λεύεις αigraveεigrave σων πλοκάmicroων ά ποίλείβεται ύγρograveν ε λαιον ερχεο τόνδ άνα οίκον εν ερχεο θυmicroograveν εχουσα συν ∆ιigrave microητιόεντί χάριν δ άmicro ο πασσον άοιδ η 5

PARA HEacuteSTIA Heacutestia que ao deus254 Apolo que atira ao longe no divino Piacuteton serve na casa sacra255 sempre das mechas256 puras cai257 o oacuteleo uacutemido vem para esta casa vem tendo um coraccedilatildeo258 com Zeus que eacute saacutebio E concede graccedila ao canto2595

254 αυακτος significa ldquomestre cheferdquo principalmente em se tratando de Apolo Junto de εκάτοιο no mesmo verso ldquoo deus que atira ao longerdquo reforccedila o epiacuteteto que se usa para designar Apolo 255 ίερόν refere-se a δόmicroον Daiacute significar casa sagrada forte poderosa Usamos a traduccedilatildeo sacra por razotildees meacutetricas sem qualquer conotaccedilatildeo com que a palavra santa possa vir a ter dentro de uma visatildeo cristatilde 256 A palavra πλοκάmicroων quer dizer lsquomechasrsquo referindo-se a lsquomechas de cabelorsquo 257 O verbo άπολείβεται significa ldquodeixar cair gota a gotardquo quando se faz uma libaccedilatildeo Assim o verso 3 significa exatamente ldquosempre das mechas de cabelo intactas deixa cair gota a gota o oacuteleo uacutemidordquo 258 O vocaacutebulo θυmicroόν em uma significaccedilatildeo bem ampla ldquocoraccedilatildeo mente princiacutepio de vidardquo enfim relaciona-se ao que diz respeito agrave inteligecircncia e agrave vontade ao poder e ao desejo 259 Nesse verso (v 5) haacute tambeacutem ao palavra αmicroα que omitimos na traduccedilatildeo Essa palavra daacute a ideacuteia de simultaneidade Seria como se dissesse ldquoE ao mesmo tempo concede graccedila ao cantordquo Nesse caso estaria se referindo agraves accedilotildeesrsquo vir para casa unida a Zeus e dar graccedila ao cantorsquo

130

XXIX ΕΙΣ ΕΧΤΙΑΝ

Έστίη ή πάντων εν δώmicroασιν ύψηλοicircσιν αθανάτων τε θέων χαmicroαigrave ερχοmicroένων τ άνθρώττων εδρην άίδιον έλαχες πρεσβηίδα τιmicroήν καλograveν έχουσα γέρας καigrave τίmicroιον ου γαρ άτερ σου ειλαπίναι θνητοicircσιν iacuteν ου πρώτη πυmicroάτη τε 5 Έιστίη αρχόmicroενος σπενδει microελιηδέα οίνον καigrave συ microοι Άργει φόντα ∆ιος καigrave Μαιάδος υiέ αγγελε των microακάρων χρυσoacuteρραπι δωτορ εάων λαος ων επάρηγε συν αίδοίη τε φίλη τε ναίετε δώmicroατα καλά φίλα φρεσigraveν άλληλοισιν εiacuteδότες άmicro φότεροι γαρ επiχθονίων ανθρώπων 11 εiacuteδότες ερηmicroατα καλα νόω θ εσπεσθε καigrave ήβη Χαicircρε Κρόνου θύηατερ συ τε καigrave χρυσόρραπiς Έρmicroής αύτάρ εγών υmicroεων τε καigrave αλλης microνήσοmicro άοιδής

PARA HEacuteSTIA

Heacutestia que nas casas elevadas de todos 1 de deuses imortais e homens que vecircm agrave Terra260 recebeste um lugar eterno e honra digna tens bom privileacutegio e estima261 Pois sem ti natildeo haacute festim262 para os mortais se em primeiro e em uacuteltimo 5 quem vem natildeo263 oferece264 a Heacutestia o vinho doce Tu matador de Argo265 filho de Zeus e Maia266 nuacutencio dos deuses267 com bastatildeo268 doador de bens sendo do povo269 ajude-o com a nobre e querida Habitem a gloriosa casa cara a ambos270 10 que conheceis bem Pois ambos entre os terrestres sabeis as obras nobres da271 mente e da forccedila Oh filha de Cronos e tu Hermes do bastatildeo Pois me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

260 Eacute interessante perceber a construccedilatildeo desse verso O autor estabelece o contraste entre ldquodeuses imortaisrdquo ( άθανάτων θεών ) e os ldquohomens mortaisrdquo referindo-se a eles como ldquoos homens que vecircm agrave Terrardquo ( χαmicroαί έρχοmicroένων άνθρώπων ) mostrando a ideacuteia de transitoriedade no ato de vir e natildeo de qualificaacute-los como terrestres 261 A palavra grega τίmicroιον significa que a deusa tinha uma consideraccedilatildeo uma estima puacuteblica De fato Heacutestia se fazia representar em todas as casas na ldquolareira sagradardquo 262 ειλιπίναι significa banquetear celebrar um festim apoacutes um sacrifiacutecio Para fins de traduccedilatildeo usamos a expressatildeo ldquohaver um festimrdquo que corresponde a ldquobanquetearrdquo 263 A negativa ού (natildeo) encontra-se no verso 5 antes de πρώτη Poreacutem por motivo sintaacutetico transferiu-se a negativa para o verso 6 antes do verbo 264 O verbo σπενδει significa ldquooferecer fazendo uma libaccedilatildeordquo Portanto em um ritual a Heacutestia devia-se fazer em primeiro lugar e em uacuteltimo uma libaccedilatildeo de vinho agrave deusa Se isso natildeo fosse feito a pessoa natildeo podia participar da oferenda de sacrifiacutecio 265 Segundo o dicionaacuterio BAILLY p 259 o epiacuteteto ργειφόντα refere-se a Hermes ldquoo matador de Argosrdquo e eacute de origem desconhecida Haacute uma lenda que atribui a Hermes o fato de ter matado Argo (conhecido como Argos na forma latinizada) possuidor de uma forccedila espantosa e que tinha soacute um olho Em outras lendas ele possui uma multiplicidade de olhos Hermes matou Argo a pedido de Zeus segundo a lenda Haacute tambeacutem variaccedilotildees sobre como ele o matou 266 Natildeo se traduziram todas as palavras do verso 7 Foram suprimidos a conjunccedilatildeo e (καί ) iniciando o verso bem como a expressatildeo para mim (microοι) o que jaacute implica uma alteraccedilatildeo morfoloacutegica sintaacutetica e cultural na interpretaccedilatildeo de nossa traduccedilatildeo 267 No texto grego encontra-se a palavra microακάρων que significa honradosdaiacute sagrados Por isso refer-se aos deuses em oposiccedilatildeo aos homens 268 A palavra χρυσόρραπι tem o sentido de ldquobastatildeo de ourordquo e eacute usado referindo-se ao bastatildeo que Hermes carregava Diz a lenda que Hermes inventou a flauta e Apolo ficou tatildeo encantado com o instrumento musical que ofereceu seu cajado de ouro a Hermes em troca da flauta Daiacute para a frente Herme sempre carregou o bastatildeo de ouro 269 Decidimos traduzir λαος ών como lsquosendo do povordquo isto eacute junto com Heacutestia faziam parte de todas as casas e da cidade e eacute como se fizessem parte desse contexto humano Vimos outra traduccedilotildees como a de uma traduccedilatildeo de Vernant para o inglecircs em que se encontra ldquobe goodrdquo e Evelyn-White da Loeb Classical Library traduz por ldquobe favourablerdquo No entanto em nosso entendimento o verbo ών estaacute no particiacutepio presente daiacute ldquosendordquo Tambeacutem natildeo encontramos palavra que pudesse significar ou ldquobomrdquo ou ldquofavoraacutevelrdquo Tem-se pois nossa interpretaccedilatildeo na traduccedilatildeo desse verso 270 A palavra φρεσίν coraccedilotildees estaacute relacionada a ambos αλλήλοιειν referindo-se a Heacutestia e a Hermes Portanto a ldquoambos unidos no coraccedilatildeo na amizaderdquo 271 Em grego eacute usado o dativo nas palavras mante νόω e forccedila ήβη significando que eles Heacutestia e Hermes conhecem os trabalhos dos homens atraveacutes da inteligecircncia deles e atraveacutes da forccedila deles Eacute pois um instrumental Portanto a traduccedilatildeo para o portuguecircs natildeo implica que em grego eacute usado o caso genitivo

Page 6: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao

ix

RESUMO

O objetivo deste estudo as deusas gregas virgens Aacutertemis Atena e Heacutestia eacute demarcar a

existecircncia e a significaccedilatildeo especial dessas deusas no mundo arcaico grego frente agrave posiccedilatildeo

ocupada por Afrodite como representaccedilatildeo do desejo O sistema miacutetico prevecirc a questatildeo do desejo

articulada ao lsquopoderrsquo conforme evidenciam as reflexotildees feitas a partir do corpus selecionado as

obras de Homero de Hesiacuteodo e os Hinos Homeacutericos referentes agraves deusas virgens e a Afrodite A

metodologia que orienta esta pesquisa segue uma linha antropoloacutegica comparativa incluindo

autores como Geertz e Detienne com enfoque no uso e na significaccedilatildeo da linguagem da

produccedilatildeo escrita dos rapsodos gregos O conceito de virgindade eacute direcionado pelo conceito de

desejo e parece necessaacuterio que se considerem as propriedades e os atributos de Afrodite para

definir as deusas gregas virgens que fruem ldquode um outro modo de desejo e de poderrdquo Esse

aspecto nos faz refletir sobre uma sociedade patriarcal e as formas de independecircncia feminina

como instacircncia de compromisso soacutecio-poliacutetico bem como sobre a manutenccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

herdada da grande matildee (Magna Mater) e das Amazonas Uma possiacutevel indicaccedilatildeo a partir desses

dados eacute que o Cristianismo procurou dar continuidade a esse aspecto de gecircnero que promove a

civilizaccedilatildeo e a organizaccedilatildeo da sociedade atraveacutes da figura da lsquomadrersquo como elemento de

significaccedilatildeo cultural

Palavras-chave Deusas gregas virgens Afrodite desejo poder sociedade patriarcal

civilizaccedilatildeo

xi

ABSTRACT

The aim of this study which focuses on the Virgin Greek goddesses Artemis Athene and

Hestia is to stress the existence and the special meaning of those goddesses in the archaic Greek

world compared with Aphroditersquos position as a representative of lsquodesirersquo The mythical system

comprises the matter of desire linked to the meaning of ldquopowerrdquo according to the evidence of

reflections made from the corpus selected Homerrsquos and Hesiodrsquos works and the Homeric Hymns

referring to the virgin goddesses and Aphrodite The methodology that orients this paper follows

authors such as Geertz and Detienne focusing on the use and meaning of the language in the

written production of the Greek rapsodes The concept of virginity is directed by the concept of

desire and it is necessary to consider Aphroditersquos properties and attributes to define the virgin

Greek goddesses who have another form of desire and power That aspect brings up

considerations on a patriarchal society and ways of feminine independence as a means of social-

political commitment as well as on the maintenance of a tradition inherited from the Great

Mother and the Amazons One possible direction arising from the above facts is that Christianity

tried to give sequence to this aspect of gender which promotes civilization and the organization

of society by way of the lsquomater figurersquo as an element of cultural significance

Key words Virgin Greek goddesses Aphrodite desire power patriarchal society civilization

xiii

SUMAacuteRIO

Dedicatoacuteria v

Agradecimentos vii

Resumo ix

Abstract xi

1- Introduccedilatildeo 1 2 - Encruzando Aspectos do Cosmo Natureza Deuses e Homens 5

21 - Fragmentos do Uno 5 22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees 10

3 - A questatildeo metodoloacutegica um olhar sobre a pesquisa bibliograacutefica 17 4 - O que eacute traduzir lsquoHomerorsquo e os rapsodos gregos Tentativas e riscos 43 5 - Que deusas satildeo essas 49

51 - Afrodite e a representaccedilatildeo do desejo 49 52 - Aacutertemis a liberdade e a virgindade 64 53 - Atena a deusa virgem da sabedoria e da guerra 71 54 - Heacutestia e a castidade 76

6 - A questatildeo da virgindade e as deusas virgens 85

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo 85 62 - O caraacuteter da virgindade no Cristianismo 96

7 - Conclusatildeo Ou indicaccedilatildeo de suposiccedilotildees 105 Referecircncias 115 Bibliografia 119 Anexos 121

Anexo A - Hinos Homeacutericos a Afrodite 121 Anexo B - Hinos Homeacutericos a Deusas virgens 125

1

1 ndash INTRODUCcedilAtildeO

ldquoOutros jaacute passaram por esta Senda por isso a novidade de tudo o que eu digo de novo estaacute na forccedila da repeticcedilatildeordquo1

Na condiccedilatildeo de professora de liacutenguas estamos sempre investigando o uso das palavras no

discurso como elas se articulam como elas se estabelecem como elas se traduzem como elas

ldquofingemrdquo ser contidas em supostas definiccedilotildees enfim estamos sempre atravessando o corredor

estreito das significaccedilotildees e das compreensotildees

Como se isso natildeo bastasse as palavras nos levam aos seus percursos ao longo dos

tempos agraves vezes revelando e agraves vezes ocultando estaacutegios de transformaccedilotildees por que passaram

Assim a palavra por si soacute jaacute nos coloca diante de uma rede que envolve sua histoacuteria sua

etimologia sua categoria sua funccedilatildeo E foi a palavra com todo esse contexto maacutegico que nos

cativou

Comeccedilamos perseguindo o conceito de virgindade na Greacutecia de Homero e de Hesiacuteodo e

nos deparamos com um entrelaccedilamento de fatos de conceitos de outras palavras de traduccedilotildees

de um mundo que todas as vezes que pensaacutevamos alcanccedilaacute-lo distanciava-se mais e fazia com

que tambeacutem a nossa pesquisa virasse uma lenda miacutetica em que os deuses superavam em muito o

trabalho humano que empreendiacuteamos

Mas nada ocorre por acaso A nossa iniciativa de trilhar a palavra nesse mundo numinoso

teve uma ponta de lembranccedila e de afeto no encontro com um grande mestre e amigo de tempos

tambeacutem passados Fizemos nosso o seu desafio e desta forma nasceu o nosso objeto de estudo

Fomos tomados pela curiosidade e pelo interesse quando o scholar o helenista professor Dr

Joaquim Brasil Fontes instigou-nos a pensar nas deusas gregas virgens carregadas de valores

de funccedilotildees de lendas que ainda fazem parte de nosso cotidiano e cujas raiacutezes estatildeo atreladas a

um tempo do qual natildeo se desvinculam apesar das transformaccedilotildees e dos ajustes por que vatildeo se

atualizando amoldando-se a novos perfis a novos modus vivendi transpondo espaccedilos

geograacuteficos e culturais atravessando filosofias e marcando a histoacuteria

1 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p 9

2

Tentamos diante do impacto da tarefa pensar como nesse grande eixo assinalado de

homens mortais a presenccedila de Deusdeuses afeta e determina a dimensatildeo humana Pensamos

tambeacutem na nossa experiecircncia de vida marcada por cultos e rituais apesar de todo o progresso da

ciecircncia e da tecnologia

Nossas salas de aulas - tambeacutem elas - se revestem de ritos como cenaacuterio para o estudo de

hipoacuteteses de buscas de discussotildees de valores de sustento do que se acredita ter a forccedila da

verdade E o que seria o entendimento de verdade em um momento teria feiccedilotildees e propostas

diferentes em outras culturas em outros tempos o que mostra que o estatuto de uma suposta

verdade se transfigura e tem um movimento flexiacutevel contiacutenuo propondo novas direccedilotildees e

determinando novos olhares

Nessa atmosfera de consideraccedilotildees foi colocada a questatildeo que encaminhou nossa busca

por princiacutepios que se prendem ao mundo grego - que tem sido objeto de tanto estudo - do qual

herdamos concepccedilotildees de vida e de arte de misteacuterio e de sagrado de sobrenatural e de mundano

se possiacutevel eacute destacar e separar esses princiacutepios norteadores do humano Por que teriam as deusas

gregas Heacutestia Palas Atena e Aacutertemis resistido ao casamento O que as teria movido para que se

mantivessem virgens Como seria entendida a eacutegide da virgindade naquela sociedade Que

mecanismo levaria a compreender os poderes dessas entidades marcadas por uma caracteriacutestica

que se opunha agraves grandes narrativas de relacionamentos de filhos gerados com uns e outros

deuses de traiccedilotildees de intrigas que envolviam deuses e deusas no grande cenaacuterio do mundo dos

homens gregos O que fundamenta a traduccedilatildeo e a compreensatildeo da palavra virgem na passagem

da liacutengua grega para a liacutenguacultura ocidental

Perguntas surgiam e determinavam outras perguntas Eram propostas investigaccedilotildees sobre

investigaccedilotildees leituras sobre leituras Hesiacuteodo e Homero foram se tornando familiares o alfabeto

grego foi se revelando real os questionamentos sobre a arte da traduccedilatildeo (seraacute uma arte) se

fizeram tambeacutem reais As deusas foram tomando forma e suas imagens se faziam presentes em

cada momento do dia atravessando a barreira do tempo e do espaccedilo Listaram-se conteuacutedos e

disciplinas que pudessem ajudar a nortear o trabalho Foram surgindo autores que comeccedilaram a

fornecer elementos para a investigaccedilatildeo Vernant Loraux Detienne Calame Parry Geertz

Freud Deleuze Lerner Buscava-se da mitologia agrave filosofia da cultura agrave psicanaacutelise do

discurso da oralidade agraves questotildees da traduccedilatildeo Natildeo que esse caminho tivesse sido inicialmente

3

planejado Ele foi surgindo como consequumlecircncia de necessidades em que uma busca conduz a

outra Foi se impondo como resultado de ldquoescavaccedilotildeesrdquo como dizia com humor o nosso

orientador Essa mesma procura ia fazendo que acontecessem ldquoexplosotildees de significadosrdquo e a

palavra o uso da linguagem foi se tornando cada vez mais o grande foco de nosso olhar

Dada a abrangecircncia de material e da temaacutetica do objeto que se propocircs examinar tivemos

que fazer escolhas e estabelecer limites como buacutessola indicadora de um caminho pois

correriacuteamos o risco de nos perdermos nas adjacecircncias e de natildeo chegarmos agrave estrada principal

Decidiu-se investigar o cenaacuterio que recebe os deusesdeusas gregos a mitologia (com

suas implicaccedilotildees culturais e histoacutericas) e a filosofia que os ampara Nesse estudo optou-se por

uma orientaccedilatildeo metodoloacutegica que natildeo se concentrasse apenas nas estruturas caracteriacutesticas dos

fenocircmenos religiosos miacuteticos mas que buscasse a compreensatildeo do texto procurando entender a

partir do contexto histoacuterico-cultural o fenocircmeno de deusas que escolhem a virgindade como

expressatildeo de sua sexualidade (veja-se a ousadia e a impropriedade do termo na falta de outro

em relaccedilatildeo agraves deusas virgens) em um mundo arcaico Este fato provoca um discurso relevante e

significativo na histoacuteria da mitologia e atribui a Heacutestia Atena e Aacutertemis uma posiccedilatildeo especial no

cenaacuterio dos deuses e deusas

Alguns aspectos satildeo pertinentes nesse tipo de investigaccedilatildeo primeiro levar em conta a

inseparabilidade do que se atribui ao mito com os dados histoacutericos e geograacuteficos que fazem parte

da narrativa poeacutetica de Homero de Hesiacuteodo e de outros autores daquela eacutepoca e de eacutepocas

proacuteximas consequumlentemente a relevacircncia do contexto soacutecio-cultural com seus elementos

significativos Aleacutem disso natildeo se pode deixar de considerar que o conceito de mito prevecirc nas

tentativas de defini-lo consideraccedilotildees que hoje se colocam como religiatildeo justamente pelo fato de

representarem o contexto soacutecio-histoacuterico ao qual nos referimos Desta forma a natureza os

deuses os homens o sagrado o profano o mortal o imortal faziam parte de uma mesma

temaacutetica organizando-se e reorganizando-se de acordo com os valores e os niacuteveis sociais das

comunidades gregas

Reflexotildees sobre essas questotildees que compotildeem o objeto de nosso estudo satildeo feitas em um

capiacutetulo como forma de um esclarecimento do assunto e como direccedilatildeo para encaminhamento e

aprofundamento em outro momento que se fizer oportuno

4

Eacute preciso poreacutem que fique claro que o objetivo de uma pesquisa como esta natildeo eacute dar

respostas definitivas mas antes levantar hipoacuteteses Como jaacute bem colocou Sartre ldquoEacute proacuteprio de

uma pesquisa ser indefinida Nomear e defini-la eacute fechar o ciclo o que restardquo2

Assim seratildeo propostas questotildees investigativas em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees miacuteticas que

envolvem o feminino no mundo arcaico grego Enfocar as trecircs deusas virgens na sua

independecircncia e na sua recusa agrave submissatildeo masculina aos laccedilos do casamento agrave fecundaccedilatildeo e

principalmente agrave entrega do desejo agrave philia a eros ou seja a Aphrodite pressupotildee uma

compreensatildeo da virgindade grega em uma sociedade patriarcal

A posiccedilatildeo de Aacutertemis Atena e Heacutestia em relaccedilatildeo a Afrodite revela um emparelhamento e

prevecirc variaccedilotildees de traccedilos que determinam o feminino em um espaccedilo soacutecio-cultural em que se

movem deuses heroacuteis e homens mortais Estabelece-se aiacute a virgindade como uma forma de Ser

como um paradigma (embora o termo possa parecer estruturalista) representativo do domiacutenio

social

Estatildeo pois colocadas no mundo grego arcaico a valorizaccedilatildeo do feminino e as diferentes

formas de atuar frente ao Kosmo quer seja nas manifestaccedilotildees da astuacutecia e da inteligecircncia quer

seja nas questotildees do olhar e dos rituais quer seja no acircmbito do desejo e da interdiccedilatildeo

As deusas gregas virgens fazem parte da conjugaccedilatildeo do imenso tabuleiro que a epopeacuteia

grega fez conhecer contandocantando

2 SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967

5

2 - ENCRUZANDO ASPECTOS DO COSMO NATUREZA DEUSES E HOMENS

ldquo O divino que nos poemas homeacutericos se apresenta com tanta clareza eacute multiforme e contudo sempre idecircntico a si mesmo por toda a parte Exprime-se em todas as suas formas um espiacuterito excelso um destino elevado Natildeo querem os referidos poemas aportar uma revelaccedilatildeo religiosa ou propor uma doutrina sobre os deuses Soacute querem visualizar e formar no gozo da visatildeo assim em face deles se expotildee o reino inteiro do mundo terra e ceacuteu aacutegua e ar aacutervores bichos homens e deusesrdquo3

21 - Fragmentos do ldquoUnordquo

Apesar de o estudo que se empreendeu ter como foco a questatildeo da virgindade de trecircs

deusas Heacutestia Aacutertemis e Atena percebe-se que esse elo comum que as une em um mesmo

aspecto tambeacutem determina caracteriacutesticas individuais diferentes o que as coloca em posiccedilotildees

que destacam suas funccedilotildees e participaccedilatildeo na vida do homem grego Assim nessa trajetoacuteria que

se percorreu evidenciou-se que a virgindade pode estar relacionada a diferentes fatores quer

sejam eles sociais culturais histoacutericos poliacuteticos ou mesmo individuais Essa referecircncia jaacute

destaca a questatildeo do conceito a questatildeo do amor e do desejo a questatildeo do nefando e do

inefaacutevel a questatildeo do casamento e da ligaccedilatildeo sexual a questatildeo do masculino e do feminino

enfim a questatildeo do corpo do olhar e do poder

O primeiro aspecto que nos trouxe embaraccedilo foi quando se propocircs separar algumas

partes em capiacutetulos Notou-se que os conceitos se enredavam todos permeando a vida dos

deuses dos homens sem deixar de ter a natureza colocada lado a lado nesse complexo

organizacional aparentemente inseparaacutevel Confirmando essa revelaccedilatildeo a obra de autores como

Homero Hesiacuteodo e autorescantores (chamados homeacuteridas que se diziam descendentes de

Homero) que cantavam os poemas de seu suposto antepassado que se constituiu corpus do

trabalho entrecruzavam os imortais os mortais e a natureza no mesmo espaccedilo coacutesmico

Essa aparente unidade coacutesmica possibilitou para alguns filoacutesofos interpretaccedilotildees de uma

unidade do mito como a que apresenta Torrano (1996) quando se reporta agrave ldquodescriccedilatildeo geral

desta ontologia iacutensita no mito do mundordquo

3 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p 12

6

Em liacutengua grega nos versos de Homero e de Hesiacuteodo em que ldquoconsubstancia-se a

necessaacuteria unidade de ilatecircncia de mito de culto e de cantordquo4 Assim os mortais ldquotranseuntes

do mundordquo satildeo interpelados pelos deuses isto eacute pelo proacuteprio mundo

Essa colocaccedilatildeo de deuses com uma posiccedilatildeo fundada na imortalidade distingue-os dos

homens na sua mortalidade e os posiciona como formas eternas do mundo Isso jaacute reflete que de

algum modo deuses e homens situam-se ainda que no mesmo cosmo em planos diferentes Os

homens se vecircem interpelados no dizer de Torrano por algo que os ldquoultrapassardquo e eacute justamente

essa energia coacutesmica que daacute ao homem sua substacircncia e que o coloca em movimento para que

sua natureza no mundo ganhe significaccedilatildeo ao mesmo tempo em que o mundo tambeacutem adquire

sentido Nesse movimento de matildeo dupla o homem descobre a sua existecircncia no mundo e o

mundo eacute o princiacutepio constitutivo originaacuterio da forccedila vital infinita e inexauriacutevel Para melhor

entender citamos Torrano

O eterno eacute pensado nesse movimento em que se unem identidade e alteridade nessa unidade vive o ser dos Deuses eles satildeo os que vivem para sempre e de uma soacute vez essa infinitude inexauriacutevel de vezes5

Portanto mesmo em se ressaltando a ideacuteia de unidade o que implica uma visatildeo

estruturalista sobressai um aspecto essencial em nosso entendimento o significado do Cosmo soacute

pode adquirir sentido a partir de um cruzamento Eacute na convergecircncia de deuses e de homens de

imortais e de mortais de eternos e de transeuntes de planos pois diferenciados se natildeo na sua

origem pelo menos nas suas formas existenciais que reside o discernimento complexo do divino

e do humano

Mais ainda a palavra grega cosmo Ќόσmicroος remete agrave definiccedilatildeo de um orderly or

harmonious system6 isto quer dizer que cosmos eacute a antiacutetese de Caos por representar uma

organizaccedilatildeo ordenada harmoniosa Aleacutem desse significado a que se ateve nas deduccedilotildees

apresentadas ateacute aqui haacute ainda o registro de que Cosmo significa ldquoornamentosrdquo

4 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 p 11 5 TORRANO JAA idem p19 6 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008

7

A palavra Ќόσmicroον eacute usada por Homero com essa conotaccedilatildeo (ornamentos) no canto XIV

da Iliacuteada verso 187 O mesmo sistema que organiza ornamenta Entatildeo poderiacuteamos questionar

em um arroubo de ousadia se a virgindade dentro desse sistema organizado seria uma forma de

ornamento que qualifica as deusas virgens como um atributo especial Seria o epiacuteteto ldquovirgemrdquo

um efeito esteacutetico dessa revelaccedilatildeo que indica um modo de harmonia Ficam aiacute questionamentos

para tambeacutem eles se enredarem nesse complexo mundocosmo grego De qualquer modo esse

epiacuteteto direcionado a Heacutestia Aacutertemis e Atena revela o uso de uma teacutecnica mnemocircnica

relacionada a algum aspecto significativo da ordem coacutesmica no enfoque das atribuiccedilotildees dessas

deusas A repeticcedilatildeo das palavras parthenos e koreacute referentes a elas mereceu reflexotildees que estatildeo

encaminhadas ao longo deste trabalho

Repensando pois o assunto da virgindade viu-se que se estava diante de um conflito

deleuziano criar um conceito nesse espaccedilo ldquohabitadordquo por deuses e homens Ainda reportando-

se a Deleuze e Guattari7 descobriu-se que pelo menos por esse vieacutes (que segundo os autores

natildeo deve ser considerado metodoloacutegico) seguia-se a trilha certa pois que Deleuze e Gattari em

se tratando de definir o conceito ressaltam o fato de que cada um remete a outros conceitos e

que seus componentes por sua vez podem ser entendidos como outros conceitos Foi

exatamente essa inseparabilidade de vaacuterios aspectos relacionados a esse remeter histoacuterico de

outros conceitos que ocorreu enquanto se procurava realizar um exame da virgindade evocada

por Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena

Deleuze e Guattari apontam para um ponto primordial da investigaccedilatildeo no que diz

respeito a essas vibraccedilotildees e encruzamentos de conceitos (em onde nos inspiramos para o tiacutetulo

dessa primeira parte - se assim se pode considerar -) que eacute a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da

incompletude com que se depara frente a uma tarefa desse porte Como determinar com umas

poucas palavras juntadas formando uma proposiccedilatildeo - que faz parte das ciecircncias - como definir a

virgindade como um traccedilo uacutenico de deusas distintas Essa posiccedilatildeo deleuziana esteve presente em

todas as nossas consideraccedilotildees em momentos que apresentavam divergecircncias e que

encaminhavam para um discurso polissecircmico marcado por diferentes vozes Procurou-se ter

sempre presente a fala de Deleuze e Guattari

7 DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed341997

8

Os conceitos como totalidades fragmentaacuterias natildeo satildeo sequer os pedaccedilos de um quebra-cabeccedila pois seus contornos irregulares natildeo se correspondem Eles formam um muro mas eacute um muro de pedras secas e se tudo eacute tomado conjuntamente eacute por caminhos divergentes8

Chegou-se entatildeo a uma postura ora se se estaacute examinando a obra de poetas eacute a partir

de suas colocaccedilotildees que a arte tira perceptos e afectos o que exige dizer que se trabalhou com

criaccedilotildees com deduccedilotildees com interpretaccedilotildees baseadas em um contexto - rdquoponte moacutevelrdquo - e natildeo

com verdades loacutegicas e cientiacuteficas Deixamos as verdades conclusivas para o domiacutenio da ciecircncia

e da filosofia se for o caso Fica-se com as hipoacuteteses e com as conjeturas a partir do discurso

literaacuterio Fica-se com as narrativas miacuteticas que se prendem a questotildees histoacuterico-sociais

reveladoras de sentido fica-se com a manifestaccedilatildeo do poder social que direciona o discurso da

sociedade que tinha na sua Teogonia o relato das origens do mundo mas que eacute muito mais

revelador do que apresenta ser quando comparado aos relatos miacuteticos dos hititas e dos feniacutecios e

com as teogonias da Babilocircnia9

A questatildeo da verdade se entendida no domiacutenio do homem grego aleacutetheia diz Torrano

reportando-se a Heidegger e a Detienne seraacute ldquoilatecircnciardquo o que marca a presenccedila pois natildeo pode

ser ocultado Desta forma se assim entendido no movimento de serem virgens que as deusas

Heacutestia Aacutertemis e Palas Atena se constituem como aquilo que aparece e marca uma verdade A

virgindade entendida pois como o traccedilo mais caracteriacutestico dessas deusas

No desvelar-se das formas divinas impera ilatecircncia como fundaccedilatildeo da presenccedila e dos vaacuterios modos de latecircncia e de aparecircncia10

Os deuses satildeo as formas miacuteticas que constituem os elementos que justificam a presenccedila

do homem no cosmo poreacutem estudar a mitologia grega eacute acima de tudo mexer na memoacuteria

social de um povo tentando captar a essecircncia das narrativas que apresentam o divino e o humano

lado a lado ora aproximando-os e fundindo-os ora distanciando-os e ressaltando uma paixatildeo ou

um sentimento que evidencie o sagrado pela marca desta ou daquela estranheza que chega a

tocar o fantaacutestico De qualquer forma caminham lado a lado homens e deuses o real e o

imaginaacuterio entrelaccedilando-se na vida ciacutevica e na vida religiosa

8 DELEUZE Gilles e GUATARI Feacutelix Idem p 35 9 A respeito das Teogonias verificar Marcel Detienne e JP Vernant 10 TORRANO JAA op cit p 18

9

Como bem definiu Vernant eacute impossiacutevel separar de qualquer estudo que examine

aspectos do mundo grego ldquoaquilo a que se chamaria de bom grado o estilo religioso gregordquo11

A referecircncia a essa posiccedilatildeo faz-se necessaacuteria para se entender o mundo grego com todas

as suas caracteriacutesticas filosoacutefico-culturais pois que direciona o olhar para uma eacutepoca em que o

politeiacutesmo natildeo implicava a onipotecircncia e a transcendecircncia como se entende no estatuto da

religiatildeo cristatilde Pelo contraacuterio os deuses gregos foram criados com o mundo e complementam-se

nas suas funccedilotildees e na sua multiplicidade Os deuses gregos fazem parte da gecircnese do mundo e

para Vernant satildeo antes considerados Potecircncias - natildeo apenas formas - e portanto tecircm aspectos

mundanos e divinos pois pertencem agrave organizaccedilatildeo do universo e agrave vida social dos homens

Acreditamos que essa posiccedilatildeo tambeacutem enfatiza a questatildeo do impulso da ilatecircncia a que se

atribui aos deuses na visatildeo fundamentalista A palavra potecircncia natildeo se refere simplesmente a

poder e a forccedila aplicada para a realizaccedilatildeo de um efeito mas tambeacutem um elemento gerador de um

impulso de uma energia organizando o espaccedilo (Kosmos) enquanto se define a presenccedila do

homem na terra

As ciecircncias humanas e a filosofia acabaram por criar uma ruptura com o pensamento

antigo na medida em que tentaram racionalizar e demonstrar a concepccedilatildeo de mundo da

Antiguidade Como esse natildeo eacute o foco de nosso objeto de estudo deu-se ecircnfase ao dizer

invocativo que a poesia de Homero de Hesiacuteodo e de outros rapsodos revela Como declara

Chacirctelet12 eacute essa concepccedilatildeo de mundo arcaico que marcaraacute uma tradiccedilatildeo essencialmente

diferente da tradiccedilatildeo que mais tarde as filosofias da Idade Medieval e da Idade Moderna teratildeo

de se haver no que diz respeito agrave organizaccedilatildeo religiosa ligada agrave revelaccedilatildeo cristatilde e agrave ordem

soacutecio-econocircmico-poliacutetica A natureza agrave qual os aedos se referem nada tem a ver com os siacutembolos

que a Idade Meacutedia se ldquoimporaacute decifrar nem com o sistema de equaccedilotildees e de maacutequinas que o

pensamento moderno iraacute proporrdquo 13

O que parece fundamental eacute tentar entender o pensamento da eacutepoca arcaica que expressa

a relaccedilatildeo do indiviacuteduo com tudo que o circunda

11 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p11 12 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 13 CHAcircTELET Franccedilois Idem p14

10

seu imaginaacuterio e seus deuses seus concidadatildeos e seus familiares as coisas que o fazem sofrer e as de que frui seu proacuteprio pensamento e os objetivos que lhe estabelecem14

Eacute exatamente com base nessa concepccedilatildeo de mundo que se eacute tentado a estabelecer o uno

como condiccedilatildeo essencial da Antiguidade Poreacutem como demonstram Deleuze e Guattari e como

questiona Chacirctelet a ideacuteia de aceitar uma concepccedilatildeo de mundo fechada sobre si mesmo eacute

tentadora poreacutem a Filosofia natildeo conseguiu elaborar uma linha uacutenica que possa conceituar ou

traccedilar um perfil fechado desse tempo Sobre isso diz Chacirctelet

Uns o tomaratildeo por ldquoperiacuteodo originaacuteriordquo inscrevendo sua marca indeleacutevel na ordem do espiacuterito outros progressistas agrave sua maneira veratildeo aiacute uma primeira etapa edificante na elaboraccedilatildeo do saber outros enfim ldquoregressistasrdquo a compreenderatildeo como marca de um passado que por natureza deve estar indefinidamente perdido15

Eacute nessa etapa da produccedilatildeo escrita ndash que podemos chamar de primeira ndash que nos detemos

nas aventuras de deuses e de heroacuteis na louvaccedilatildeo de entidades divinas na origem da organizaccedilatildeo

do cosmo Enfim no que se considera caracteriacutestico daquele periacuteodo a poesia eacutepica

Nesse campo que movimenta linguagem e cultura procuramos perseguir o conceito de

virgindade na representaccedilatildeo das deusas consideradas virgens sem fragmentaacute-las sem retiraacute-las

do panteatildeo grego mas concebendo-as como peccedilas do jogo de palavras que se vai compondo em

relaccedilatildeo aos outros deuses e deusas e em relaccedilatildeo ao desejo e agraves questotildees de gecircnero que perpassam

o humano desde o iniacutecio de sua origem escrita Portanto seraacute que desejo e poder se opotildeem agrave

virgindade ou fazem parte desse mesmo cosmo uno Fica aiacute mais uma pergunta

22 - Deuses e deusas o campo das significaccedilotildees

Eacute a partir da narrativa da criaccedilatildeo do mundo que se encontra a primeira referecircncia ao amor

e agrave fecundidade Assim sendo pode-se dizer que a virgindade estaacute subentendida nesse

mecanismo de misteacuterio e de forccedila que determina a procriaccedilatildeo Tanto em Homero quanto em

Hesiacuteodo encontram-se relatos narrativos da criaccedilatildeo do mundo Embora apresentem

interpretaccedilotildees diferentes a noccedilatildeo de fertilidade e de divindade feminina fecundada estaacute presente

nos conteuacutedos referentes a essas narrativas de tradiccedilatildeo mitoloacutegica dos deuses primordiais

14 CHAcircTELET Franccedilois Op cit p14 15 Idem

11

Na Iliacuteada XIV v 197 e seguintes no momento em que Hera estaacute dialogando com

Afrodite ela lhe fala de Oceano o pai de todos os deuses e da matildee primordial Teacutetis que a

acolheram e a nutriram e que naquele momento de discoacuterdia entre eles ela gostaria de ajudar

com o propoacutesito de que pusessem um fim nessa discoacuterdia reatando a afeiccedilatildeo e portanto

voltando a aproximarem-se do leito do matrimocircnio Reproduzimos a seguir um trecho da fala de

Hera a Afrodite no momento em que solicita sua ajuda Apresentamos a traduccedilatildeo de Murray

antes de examinarmos as palavras em grego de interesse para nosso estudo

ldquoGive me now love and desire wherewith thou 198 art wont to subdue all immortals and mortal men

E Hera continua referindo-se a Oceano e Teacutetishelliphelliphellip

Them am I faring to visit and will loose for them their endless strife 205 since now for a long timersquos space they hold aloof one from the other 206 from the marriage- bed and from love for that wrath hath come upon their heartshellip1617 207

Eacute interessante refletir sobre a escolha das palavras usadas por Homero nesses versos e a

significaccedilatildeo decorrente delas para nossas consideraccedilotildees sobre o universo feminino envolvendo

conceitos de virgindade de amor de desejo de fecundidade e ateacute mesmo de discoacuterdia entre os

sujeitos de gecircneros diferentes desde a narrativa da origem do mundo

Primeiramente o autor usa a palavra grega philotes (φιλότης) referindo-se ao amor

Segundo o dicionaacuterio Bailly (2000) essa palavra tem o significado de amor (amour) nesse

contexto (xiv v 198) Podemos pois inferir que eacute um tipo de amor que envolve laccedilos afetivos

ternura e amizade como seraacute posteriormente colocado pelos filoacutesofos No entanto a mesma

palavra philotes ou seja amor usada no verso 209 (ldquojoined together in loverdquo) acompanhada da

palavra όmicroωθήναι (omothenai) juntar e da palavra ευνής (euneacutes)isto eacute leito (XIV 206) tem

um significado de relaccedilatildeo iacutentima envolvendo pois uma noccedilatildeo de sexualidade

16 HOMER The Iliad v 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 17 HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 ldquoDaacute-me o desejo e o feiticcedilo do amor com que sempre domaste (v 198) todos os deuses eternos e os homens de curta existecircncia (v199) vou visitaacute-los com o fim de compor-lhes antiga discoacuterdia (v 205) Haacute muito que ambos o leito apartaram desta arte se abstendo dos gratos elos do amor por se acharem inflados de coacutelerardquo (v 207)

12

Fica clara a relaccedilatildeo carnal como parte das atividades dos deuses e a questatildeo do leito

nupcial como local dos relacionamentos secretos Deuses e homens compartilhavam das mesmas

experiecircncias pois como jaacute fizemos referecircncia anteriormente viviam lado a lado O pensamento

poeacutetico tece o texto de forma tatildeo clara e objetiva que nos leva agrave investigaccedilatildeo do campo

semacircntico tais as palavras usadas para dizer de modo natildeo-velado de modo revelador e expliacutecito

o que Hera espera do compartilhamento que envolve o masculino e o feminino

Haacute vaacuterias outras passagens na Iliacuteada em que o autor se refere aos momentos de relaccedilotildees

iacutentimas entre os deuses mostrando que o desejo imeros [ιmicroερος] fazia parte do amor das

relaccedilotildees que se espera que aconteccedilam como atribuiccedilatildeo do universo de natureza divina Assim as

relaccedilotildees sexuais satildeo previsiacuteveis entre os deuses e eacute uma forma de manifestaccedilatildeo de amor entre os

gecircneros diferentes Haja vista que em sua fala Hera coloca que a discoacuterdia νειχεα entre esses

dois deuses primordiais Oceano e Teacutetis havia feito com que eles se afastassem do amor e

consequumlentemente do leito do casamento

Aleacutem disso parece que Homero como bom conhecedor da natureza humana coloca na

fala de Hera o pedido a Afrodite (deusa que subjuga os imortais e os mortais na questatildeo do amor)

de dar a Oceano e Teacutetis natildeo apenas amor mas amor e desejo pois que amor e desejo se

complementam e o desejo promove a manifestaccedilatildeo do amor quer atraveacutes dos sentimentos quer

atraveacutes dos contatos fiacutesicos como forma de expressatildeo e de representaccedilatildeo do sentimento

Eacute interessante observar que a forma Фιλοτήτος eacute usada nesses versos por Homero e que a

expressatildeo da presenccedila do desejo ou da representaccedilatildeo da sexualidade vem acompanhada de outras

palavras No entanto ainda no canto XIV Homero usa o termo ερος como no verso 315

significando entatildeo desejo

Essa variaccedilatildeo na escolha do leacutexico parece remeter a uma variaccedilatildeo semacircntica significativa

A expressatildeo ldquoamor e desejordquo ou seja philotes e imeros eacute entatildeo substituiacuteda por eros Para ερος

nesse contexto Il XIV315 Bailly apresenta a traduccedilatildeo para o francecircs passion amour [θεας

Ѓϋναιχος] correspondendo a ldquoamour pour une deacuteesse une femmerdquo18 Jaacute parece estar impliacutecita

em eros a questatildeo do desejo

18 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par SEacuteCHANT L et CHANTRAINE P Paris Hachette 2000 p 808

13

A presenccedila de Afrodite eacute evocada na combinaccedilatildeo de forccedilas que a deusa representa pois

sempre a acompanham Peithocirc a persuasatildeo alegre trapaceira e Apaacutete a ilusatildeo enganosa da

ternura O pensamento miacutetico eacute ambivalente na criaccedilatildeo de associaccedilotildees e se tece com diferentes

tons como ldquouma fita bordadardquo19

Fazemos nossas as palavras de Fontes quando ele se refere ao movimento das palavras agrave

multiplicidade de sentidos subjacentes a ela dentro do quadro cultural agrave mobilidade dos

conceitos que se enredam na tessitura do mundo miacutetico na composiccedilatildeo poeacutetica

O poema eacute com efeito como diraacute mais tarde Dioniacutesio de Halicarnasso um tecido precioso que nasce das matildeos do poeta quando ele reuacutene diversas liacutenguas numa soacute a nobre e a simples a elaborada e a natural a concisa e a extraordinaacuteria Mas o tecido de muitas cores onde os contraacuterios se misturam harmoniosamente eacute ele proacuteprio semelhante a Proteu o deus muacuteltiplo e inconstante que eacute aacutegua fogo aacutervoreleatildeo que reuacutene todas as formas numa soacute Da mesma maneira a seduccedilatildeo da palavra poeacutetica por meio dos prazeres do canto das medidas e dos ritmos eacute anaacuteloga agrave seduccedilatildeo exercida pela mulher por meio do lsquoencanto do olharrsquo (khaacuteris oacutepseoumls) pela lsquodoccedilura persuasiva da vozrsquo pela lsquoatraccedilatildeo da beleza do corpo20

Pois assim eacute que Homero e Hesiacuteodo misturaram em seus poemas deuses homens

paixotildees e desejos como pertencendo ao mesmo ceacuteu que os cobriam com voluacutepia agrave mesma aacutegua

que os inundava de espuma feacutertil agrave mesma terra que os acolhia com sua fecundidade criadora

As religiotildees de base cristatilde dessacralizaram a natureza e introduziram o modelo da

salvaccedilatildeo pessoal Em Homero ao contraacuterio a palavra tambeacutem fazia parte da phyacutesis mediando

deuses homens e natureza agrave qual tambeacutem pertencia

Assim em uma comparaccedilatildeo da postura e da feacute que move a religiatildeo grega em relaccedilatildeo agrave

religiatildeo cristatilde os gregos manifestavam uma atitude de respeito de preces de oferendas e de

sacrifiacutecios mas como parte de um empreendimento de trocas que experimentavam a partir da

adesatildeo de um costume jaacute estabelecido como suporte da proacutepria existecircncia e que por isso natildeo

precisava ser justificado Desde que havia cultos e rituais era porque eles se provaram

necessaacuterios Como seria possiacutevel conceber um deus transcendental se apenas mais tarde (por

volta do seacuteculo V aC) introduz-se o conceito de transcendecircncia com a filosofia platocircnica e o

mundo das Ideacuteias

19 Verificar sobre esse tema a obra de FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p247 20 FONTES Joaquim Brasil Idem p249

14

Para esclarecer essa questatildeo do movimento de pensamento ascensional nada melhor do

que reportar-se a Deleuze que discorrendo sobre imagens de filoacutesofos tece consideraccedilotildees sobre

o que se entende como princiacutepio filosoacutefico do meacutetodo ldquodas alturasrdquo como oposto ao sistema que

norteou o mundo fundamentalista grego Primeiro Deleuze questiona o que eacute orientar-se no

pensamento esclarecendo que cabe ao filoacutesofo efetuar uma operaccedilatildeo

Entatildeo determinada como ascensatildeo como conversatildeo isto eacute como o movimento de se voltar para o princiacutepio do alto do qual ele procede e de se determinar de se preencher e de se conhecer graccedilas a uma tal movimentaccedilatildeo21

Ora como poderiam os gregos que viveram antes de Platatildeo conseguir estabelecer um

pensamento que se vincula antes ao proacuteprio ato de pensar do que na experiecircncia da vida Essa

colocaccedilatildeo revela uma conclusatildeo baacutesica no entendimento da cultura grega politeiacutesta cuidava-se

dos estados da vida Ainda natildeo se colocava para os gregos o problema da orientaccedilatildeo do ato de

pensar Os deuses natildeo satildeo forccedilas naturais satildeo detentores de soberania exercendo poderes em

diferentes e diversos domiacutenios Para os gregos natildeo era preciso que houvesse uma revelaccedilatildeo para

fundamentar suas relaccedilotildees com o sobrenatural Elas eram representadas e perpetuadas na figura

dos deuses e nos cultos e rituais Fazia parte da vida como o uso do idioma como pertencente agrave

phyacutesis isto eacute agrave proacutepria natureza Acredita-se como Vernant que debruccedilar-se sobre o estudo de

um aspecto dos deuses leva a adentrar em um mundo em que

Entre o religioso e o social o domeacutestico e o ciacutevico portanto natildeo haacute oposiccedilatildeo nem corte niacutetido assim como entre sobrenatural e natural divino e mundano A religiatildeo grega natildeo constitui um setor agrave parte fechado em seus limites e superpondo-se agrave vida familiar profissional poliacutetica ou de lazer sem confundir-se com ela 22

Desta maneira viam os gregos em seus deuses valores e plenitudes que importam na

existecircncia terrestre Para que mais Todas as manifestaccedilotildees terrestres tinham seu lado sagrado

promovendo uma atitude dos cidadatildeos de se espelharem nos deuses natildeo de forma a reivindicar

favores individuais mas como exemplo de valores e do modo de ser que compotildeem a vida

Reforccedilando essa posiccedilatildeo da impossibilidade de uma separaccedilatildeo do que hoje se denomina

mitologia dos demais componentes culturais da sociedade grega podemos citar as palavras de

Berman DW no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo norte-americana do livro de Calame

21 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 p131 22 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 p7

15

For the Greeks there is no ldquohistoryrdquo as distinct from the narrative (and until a relatively late date poetic) tradition and no ldquomythrdquo that is not implicated in the process of discourse production ldquoMythrdquo and ldquohistoryrdquo as defined in their modern senses cannot be separated 23

Esse enfoque reafirma o conceito de mito (mythos) usado por Aristoacuteteles em sua Poeacutetica

em que daacute especial relevacircncia ao mito ou seja agrave ldquohistoacuteriardquo Embora Aristoacuteteles esteja se

referindo especificamente aos componentes da trageacutedia podemos dilatar esse conceito no que se

refere agrave tradiccedilatildeo poeacutetica grega pois as narrativas de deuses e de heroacuteis tambeacutem continham

elementos que depois passaram a constituir partes integrantes da trageacutedia Estavam portanto

relacionados nos poemas eacutepicos o mito e a accedilatildeo o terror e a piedade o reconhecimento e a

questatildeo da verdade que seraacute examinada posteriormente tendo-se em vista os trabalhos de Veyne

e de Deleuze

O proacuteprio termo mito transforma-se pois o conceito eacute sempre acompanhado de um

constante processo de devir condiccedilatildeo de percepccedilatildeo da passagem de um mundo a outro

construindo-se e dissolvendo-se em outras coisas Assim natildeo podemos deixar de citar que no

tempo de Homero o conceito de mythos significava a palavra como se pode ver em um

pequeno trecho da Iliacuteada ldquoto be both a speaker of words and a doer of deedsrdquo (9443) 24 em

que mythos opotildee-se a ergon De acordo com Bailly somente apoacutes Homero o termo passa a ser

usado como faacutebula (ldquofablerdquo) particularmente com o sentido de lenda (leacutegende) em oposiccedilatildeo a

logos que ainda tendo como base Bailly25 a coloca como a palavra em geral (la parole)

Este cruzamento linguumliacutestico tenta revelar o ldquojogordquo de significados dos quais participavam

natureza deuses e homens formando o grande cenaacuterio do mundo grego Nesse mesmo cenaacuterio

trecircs personagens tinham uma atuaccedilatildeo que surpreendia pela caracteriacutestica que as diferenciava a

castidade e a forte determinaccedilatildeo de manterem-se virgens

23 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 p xvii ldquoPara os gregos natildeo haacute ldquohistoacuteriardquo como distinta da tradiccedilatildeo narrativa (e ateacute uma data relativamente recente poeacutetica) e nem mito que natildeo esteja enredado no processo de produccedilatildeo do discurso ldquoMitordquo e ldquohistoacuteriardquo como definidos em seus significados modernos natildeo podem ser separadosrdquo 24 HOMER Op cit p414 ldquohellip para ser tanto um orador de palavras quanto um realizador de accedilotildeesrdquo 25 BAILLY Anatole opcit

17

3 - A QUESTAtildeO METODOLOacuteGICA UM OLHAR SOBRE A PESQUISA BIBLIOGRAacuteFICA

Jaacute Aristoacuteteles tinha afastado a histoacuteria do mundo das ciecircncias precisamente porque ela se ocupa do particular que natildeo eacute um objeto da ciecircncia - cada fato histoacuterico soacute aconteceu e soacute aconteceraacute uma vez Esta singularidade constitui para muitos produtores ou consumidores de histoacuteria a sua principal atraccedilatildeo ldquoAmar o que nunca se veraacute duas vezesrdquo26

O objeto de estudo as deusas gregas virgens faz parte de um sistema do complexo

processo social e cultural de um povo Assim sendo o corpus selecionado como ponto de partida

remete a consideraccedilotildees explicaccedilotildees suposiccedilotildees e interpretaccedilotildees calcadas em uma posiccedilatildeo

teoacuterica

Como ler hinos e narrativas eacutepicas que falam das deusas das funccedilotildees e das caracteriacutesticas

que se pretendem conhecer e investigar sem optar por um caminho por uma demonstraccedilatildeo da

maneira como a histoacuteria coloca os modos de ser e de fazer dos homens em um dado tempo

Como o pensamento antropoloacutegico articula-se elaborando ldquoverdadesrdquo tradiccedilotildees inquestionaacuteveis

maneiras de agir coletivas que se aplicam a um povo delineando os traccedilos niacutetidos de seu perfil

independente de traccedilos iguais ou semelhantes em outros povos

As marcas que os nomeiam satildeo uacutenicas fazem-se peculiares distintas ldquofalamrdquo com

sotaque proacuteprio O homem se enraiacuteza ao solo funda-o e surge o nativo de um pedaccedilo geograacutefico

com uma identidade que lhe confere um nome localizado no espaccedilo vestiacutegios da sua construccedilatildeo

nesse cenaacuterio que se vai delimitando com contornos especiacuteficos Eacute nesse desenho do coraccedilatildeo

humano que a antropologia ausculta compara e prescreve Lanccedilou-se matildeo do estetoscoacutepio da

antropologia que examina o saber local que o investiga e como todo o envolvimento humano

tenta diagnosticar atraveacutes das pistas

O nosso olhar poreacutem natildeo se prende de modo exaustivo a uma uacutenica linha teoacuterica como

acircncora pretende ser sobretudo uma interpretaccedilatildeo uma contribuiccedilatildeo explicativa para o

fenocircmeno soacutecio-cultural da virgindade das deusas gregas com base em tudo o que jaacute foi dito e

revisto

26 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003

18

Quando se opta por uma linha epistemoloacutegica esse movimento jaacute determina que outras

teorias forneceratildeo posiccedilotildees antagocircnicas e outras ainda informaccedilotildees complementares A questatildeo

da verdade pertence pois ao seio da indagaccedilatildeo e nossa pesquisa natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilaacute-

la Propotildee-se apenas um pequeno vieacutes um ponto de vista a partir do acircngulo de nossa visatildeo jaacute por

si soacute especificada e direcionada pelo que a nossa individualidade eacute afetada pelo contexto cultural

que a determina

Nossa escolha por uma linha antropoloacutegica ou melhor pelo caraacuteter heterogecircneo dos

significados culturais justifica-se embora com propoacutesitos diferentes a partir das colocaccedilotildees

entatildeo feitas por Heroacutedoto (por volta de 450 a C) que acreditava que a vitoacuteria grega sobre os

persas natildeo se devia agrave bravura dos homens ou agrave vontade dos deuses mas ao resultado do conflito

entre culturas

Eacute pois com essa mesma interpretaccedilatildeo de levantar problemas e de descrever alguns

aspectos relevantes da diversidade cultural onde deusas gregas ditas virgens eram reverenciadas

ao lado de outras deusas e de deuses e de refletir sobre a evoluccedilatildeo do conceito da virgindade

atraveacutes dos tempos colocado em contextos diferentes que nossas indagaccedilotildees se apoacuteiam em uma

linha antropoloacutegica comparativa

Nesse percurso que se decidiu seguir verificou-se que muitas vezes dentro da busca pela

explicaccedilatildeo dos acontecimentos teorias divergem sobre os mesmos aspectos e alguns autores

criticam questionam levantam hipoacuteteses sobre outros autores e sobre os mesmos fatos

Descobrimos entatildeo que aleacutem do social as teorias encontram-se fatalmente ligadas a uma

posiccedilatildeo poliacutetica Assim sendo nosso trabalho como qualquer outro jaacute traz em si perigos pois

direciona a escolha dos acontecimentos e determina um estilo para representar as significaccedilotildees

culturais Como se isso natildeo bastasse os conceitos satildeo sempre ldquoprovisoacuteriosrdquo e movimentam-se

transfigurando-se para novas significaccedilotildees

Como diz Layton vamos procurar fazer uma ldquotraduccedilatildeo da culturardquo buscando o

entendimento dos ldquoaparentemente exoacuteticos costumesrdquo dos gregos da eacutepoca de Homero e de

Hesiacuteodo ldquocom os quais natildeo nos encontramos familiarizadosrdquo27

27 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 p11

19

De algum modo poreacutem nossa atenccedilatildeo se dirige para aspectos caracteriacutesticos do

comportamento social que o corpus selecionado revela sugerindo ligaccedilotildees entre aquilo que

lemos e aquilo que pode significar

Faz-se importante frisar que embora nossas propostas tragam em si preocupaccedilotildees de

caraacuteter social este estudo natildeo deve excluir consideraccedilotildees de enfoque do acircmbito da religiatildeo pois

que mito e religiatildeo se entrecruzam na dimensatildeo mitoloacutegica A religiatildeo como parte do estatuto

histoacuterico e das formas de pensar de agir de acreditar de um povo refletem um comportamento

obrigatoacuterio uma ldquoinfluecircncia coerciva sobre as consciecircncias individuais28rdquo

Em se priorizando preocupaccedilotildees culturais abrangentes verifica-se em um segundo

momento desta abordagem que o texto escrito eacute revelador de um significado soacutecio-histoacuterico-

cultural e parte-se dele como exemplo de um corpus usado na aacuterea da literatura que transcende o

aspecto linguumliacutestico nas suas significaccedilotildees muacuteltiplas na sua dinacircmica complexa nas suas tensotildees

geradoras de oposiccedilotildees nas suas metaacuteforas vigorosas nas suas narrativas extraordinaacuterias nas

descriccedilotildees ldquorepetitivasrdquo de dons e de atributos divinos e heroacuteicos

Aleacutem disso uma metodologia direcionada aos fazeres e agires humanos natildeo deve excluir

funccedilotildees pois satildeo elas que orientam o cumprimento das obrigaccedilotildees contratuais dos deveres

sociais e das crenccedilas morais previamente definidas e existentes no contexto cultural de forma

ampla exteriores ao individual

O estatuto impotildee-se aos sujeitos independentemente de seu desejo e para pertencer a um

grupo tem-se que seguir os mesmos ideais e as mesmas crenccedilas

Eacute com o pensamento voltado ao ato de criar de estabelecer normas e de verificar efeitos

de comportamentos que dirigem um povo que se deve tentar interpretar isto eacute entender do

exterior e agrave distacircncia grandes relatos da tradiccedilatildeo grega que datam do seacuteculo VIII-VII antes da

nossa era Toda a praacutetica narrada na escrita de Homero e de Hesiacuteodo constitui a representaccedilatildeo de

um sistema em accedilatildeo e natildeo pode pois ser surda e silenciosa aos sabores de uma eacutepoca Eacute nesse

trabalho que se percebe como a noccedilatildeo de mythos foi elaborada e se enraizou no solo grego Isso

conduz por seu turno agrave questatildeo do conceito

28 DURKHEIM apud LAYTON Op cit p 34

20

Como entender o mito e a mitologia Como ler esses relatos fantasiosos da tradiccedilatildeo

ldquodenunciada como inaceitaacutevel ou como natildeo sendo mais digna de credibilidade29rdquo como

questionava Tuciacutededes a partir de sua vertente histoacuterica

Recorremos agraves reflexotildees de Detienne30 sobre esse assunto Embora em um primeiro

momento (seacuteculo VII a C) a filosofia tenha atribuiacutedo ao mythos o sentido da narraccedilatildeo inventiva

e de relatos baacuterbaros a evoluccedilatildeo semacircntica do termo o conduz agrave conotaccedilatildeo de revoluccedilatildeo devido

agrave revelaccedilatildeo do partido dos sacircmios os mythiegravetai contra a tirania de Policrato

Com base no poema de Anacreonte de Samos no seacuteculo V aC a palavra mythos eacute usada

por Piacutendaro e por Heroacutedoto com restriccedilatildeo atribuindo-lhe o significado de ldquoo discurso dos outros

enquanto ilusoacuterio incriacutevel e estuacutepidordquo 31

Dessa forma os relatos histoacutericos procuram se apoiar nos logoi discursos

argumentativos enquanto os mythoi excluem a argumentaccedilatildeo raspando todo vestiacutegio de

observaccedilatildeo empiacuterica Assim nesse estado de coisas como coloca Detienne

Falar de mito eacute um modo de contar o escacircndalo de apontaacute-lo Mythos eacute uma palavra-gesto muito cocircmoda suficiente para denunciar a tolice a ficccedilatildeo ou o absurdo e confundi-los imediatamente32

Soacute no final do seacuteculo V eacute que o mythos deixa de ter sua conotaccedilatildeo de lugar-narrado (lieu-

dit) para se tornar discurso de uma forma de saber com base no que foi escrito pelos bioacutegrafos e

pelos poetas Eacute assim que o mito recortado da atividade histoacuterica designa um domiacutenio que

encerra a capacidade de narrar e de memorizar

Entramos pois no campo da memoacuteria fraacutegil e faliacutevel Quanto mais se distancia do

tempo menos criacutevel ela fica e mais e mais suas aacuteguas se engrossam tornando-se caudalosas

Natildeo eacute mais a verdade o que interessa o fato apontado desenhado em cima de si mesmo mas a

beleza do relato que envolve que narra o fabuloso que apresenta o inacreditaacutevel como prodiacutegio

Eacute com essa vestimenta leve e transparente que agora a chamada mitologia ndash os escritos

reunidos dos contemporacircneos ndash sofre a criacutetica de Platatildeo principalmente no que concerne aos

29 DETIENNE Marcel Os Gregos e Noacutes Uma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p39 30 DETIENNE Marcel Idem 31 DETIENNE Marcel Op cit 32 Idem p 41

21

aspectos formais e riacutetmicos para fins de memorizaccedilatildeo Para o filoacutesofo esse meio de expressatildeo

para estimular a memoacuteria e a comunicaccedilatildeo para privilegiar a audiccedilatildeo era

o sinal irrefutaacutevel de sua pertinecircncia ao mundo polimorfo e colorido de tudo que deleita a parte inferior da alma esse reino solitaacuterio onde as paixotildees e os desejos enlouquecem O discurso da mitologia natildeo somente eacute escandaloso ndash e o pesquisador da Repuacuteblica cataloga histoacuterias obscenas selvagens e absurdas - mas eacute perigoso pelos efeitos ilusoacuterios que acarreta a comunicaccedilatildeo da boca ao ouvido visto natildeo ser nem fiscalizada nem controlada33

Poreacutem como diz Detienne Platatildeo tentou inventar uma nova mitologia Pode-se pois

dizer que o filoacutesofo buscou trocar uma mentira por outra uma ldquobela mentira uacutetil capaz de

realizar para todos livremente tudo o que eacute justo34rdquo Assim nas suas Leis Platatildeo quer propor

uma nova tradiccedilatildeo substituindo o canto das musas e o murmuacuterio dos deuses narrados pelos

poetas dos seacuteculos anteriores

Ora eacute fundamental que se considere que eacute esse objeto que deve ser entendido na sua

riqueza humana na sua ambivalecircncia na sua multiplicidade de planos na variedade de niacuteveis de

sua significaccedilatildeo na diversidade dos contextos na singularidade de sua criaccedilatildeo Ou ainda como

diz Torrano acerca de sua anaacutelise sobre a Teogonia quando o corpus que se propotildee analisar

refere-se ao que chama de mitologia tambeacutem o estudo que se propotildee nada mais eacute do que um

ldquodiscurso sobre uma canccedilatildeo numinosa35rdquo veiacuteculo do saber de um tempo em um complexo

contexto cultural O que vale dizer pois que o mito eacute identificado por todos os leitores por seu

sentido relacional intriacutenseco pelas diferentes versotildees que ele pode conter e pelo contexto

etnograacutefico que subjaz aos seus planos significantes

Eacute com essa visatildeo que a anaacutelise se permite ser comparativa Nessa tentativa de comparar

conceitos e posiccedilotildees para alargar o entendimento do mito que nosso estudo evidencia a partir das

deusas gregas virgens que lanccedilamos matildeo de uma perspectiva social de linha antropoloacutegica geral

proposta por Durkheim

Para esse autor conceitos sociais gerais provocam o mesmo efeito da organizaccedilatildeo das

instituiccedilotildees isto eacute em determinados periacuteodos histoacutericos todas as sociedades estatildeo sujeitas a

condicionalismos que se apoderam das multidotildees e fazem-nas interagir e mover-se Assim ondas

33 Idem p 43 34 Idem p43 35 HESIgraveODO Teogonia A Origem dos deuses Estudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p13

22

de entusiasmo de paixatildeo de indignaccedilatildeo apoderam-se do povo de um paiacutes em um momento e o

impulsionam Acredita-se que essa posiccedilatildeo possa ser defendida na interpretaccedilatildeo de alguns

elementos significantes pois as narrativas miacuteticas e os rituais satildeo impelidos por uma forccedila ampla

que abrange todas as esferas A dinacircmica desse movimento perpassa a obra dos poetas em foco e

compotildee parte do conteuacutedo que acompanha o ritmo discursivo dos versos selecionados como

corpus

A chave fundamental de uma linha epistemoloacutegica calcada na antropologia eacute a de

compreender que cada sociedade delineia suas proacuteprias instituiccedilotildees que concebe seus padrotildees de

comportamento que desenha seus espaccedilos que considera as formas de sua organizaccedilatildeo social

que determina seus valores e impotildee sistemas Argumentando em favor de uma antropologia

comparada citamos uma posiccedilatildeo de Durkheim apud Layton

Uma vez que os fenocircmenos sociais natildeo podem ser controlados experimentalmente o uacutenico meacutetodo cientiacutefico apropriado para o trabalho do cientista eacute o comparativo36

ldquoA arte de construir comparaacuteveisrdquo como diz Detienne37 parece-nos pois um caminho

que permite colocar questotildees apontar direccedilotildees considerar diferenccedilas perceber as tensotildees e

acima de tudo dimensionar a necessidade de escolher uma categoria o que faz com que a

hipoacutetese levantada possa ganhar contornos de um desenho definido

Reproduzindo fielmente as palavras de Detienne38 inspirado no trabalho de Geertz tem-

se que

Se um historiador ou um etnoacutelogo debruccedilado sobre uma bem definida questatildeo local percebe que nossa representaccedilatildeo do que eacute uma ldquopessoardquo eacute uma ideacuteia bastante especial no conjunto das culturas do mundo ele comeccedila a antropologia Ao menos um primeiro passo O segundo poderia ser a descoberta do que ldquopara melhor analisar as formas simboacutelicas de uma cultura estrangeira eacute preciso bisbilhotar as peculiaridades de um outro povordquo

Portanto a centralidade da cultura enquanto conceito de base parece ser o ponto-chave

natildeo apenas dos estudos da antropologia americana mas tambeacutem de autores europeus como no

caso de Durkheim e de Detienne

No levantamento de hipoacuteteses da virgindade das deusas gregas deparamo-nos dentro

desse eixo diretivo cultural com o levantamento de algumas funccedilotildees peculiares a essas deusas

36 LAYTON Robert Opcit p37 37 DETIENNE Marcel Op cit p22-23 38 DETIENNE Marcel idem

23

que fazem parte dos atributos evocados pelos epiacutetetos Daiacute advecircm dois pontos que devem ser

considerados Primeiro em relaccedilatildeo ao uso de suas funccedilotildees como forma norteadora de propor

diferentes comportamentos Esse termo faz-se necessaacuterio esclarecer natildeo se vincula aos

conceitos propostos pela anaacutelise social funcionalista Natildeo se pretende agrave maneira de Radcliff

Brown descobrir leis classificatoacuterias do comportamento social propondo uma analogia orgacircnica

nem tampouco como Malinowski usar o termo ldquofunccedilatildeordquo em se considerando que a cultura se

alicerccedila nas necessidades bioloacutegicas primaacuterias do ser humano Em nossa perspectiva usamos

funccedilatildeo para indicar papeacuteis e posiccedilotildees destacados em relaccedilatildeo a essas deusas revelando atributos

que as distingam De fato como Ruth Benedict e Margaret Mead perceberam em suas pesquisas

e colocaram em suas obras aspectos da personalidade fazem parte do contexto cultural quando

se analisa a eacutetica e a moralidade bem como o impacto que esse aspecto determina na vida social

Achamos que a questatildeo relativa aos papeacuteis desempenhados pelas deusas virgens cria articulaccedilotildees

que favorecem o entendimento da virgindade como oposiccedilatildeo a uma outra circunstacircncia

resgatando e alargando a ideacuteia de ldquopoderrdquo que essa condiccedilatildeo pode oferecer no estudo das

relaccedilotildees sociais Essa tessitura convoca um acordo com um ldquocoacutedigo de eacuteticardquo se assim se pode

rotular das accedilotildees de uma comunidade que partilha valores comuns

As mudanccedilas que adviratildeo no conceito de virgindade prendem-se agraves criaccedilotildees da Igreja

cristatilde estabelecendo novas relaccedilotildees sociais mas mantendo e ressaltando um aspecto que seraacute

discutido no enfoque evolutivo da virgindade

O segundo ponto a ressaltar eacute a questatildeo dos epiacutetetos A pergunta que surge eacute quanto eacute de

fato revelado como atributo nos epiacutetetos Seraacute que o epiacuteteto acrescenta um conteuacutedo novo agraves

caracteriacutesticas das deusas ou eacute apenas um recurso ornamental repetitivo

A poesia de Homero eacute marcada pelo uso calculado dos pleonasmos isto eacute satildeo oacutebvios

mas natildeo inuacuteteis pois realizam uma completude riacutetmica um gesto sonoro aleacutem da comunicaccedilatildeo

do conteuacutedo Assim sendo o gecircnero eacutepico requer esse tipo de estrutura que se impotildee agrave vontade

do proacuteprio autor O epiacuteteto serve pois para preencher o verso hexacircmetro tendo uma funccedilatildeo

poeacutetica e provocando mesmo uma superposiccedilatildeo de tempos entre o tempo que estaacute sendo narrado

e o tempo39 que entra como anterior e posterior ao que se narra pois eacute o tempo que vale como

39 Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do tempo e dos epiacutetetos ver o artigo de RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

24

ornato Esse aspecto como se veraacute adiante cria dificuldades na traduccedilatildeo do grego para outras

liacutenguas pois apenas a natureza da liacutengua grega arcaica pode produzir esses epiacutetetos Eacute inerente agrave

disposiccedilatildeo gramatical da liacutengua do contexto que os accedilambarca A comparaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute

revela um impedimento e a traduccedilatildeo dessa cultura como diz Layton jaacute prevecirc um olhar distante e

uma voz indiziacutevel dos textos de Homero Por mais que se prenda ao conteuacutedo a qualidade do

ldquogeistrdquo 40 da forma nos escapa Como reproduzir a voz de Homero Fica aiacute o questionamento

Voltando agrave questatildeo dos epiacutetetos se eles revelam o que eacute sabido de antematildeo eles tambeacutem

oferecem uma conotaccedilatildeo conteudiacutestica de outro lado Como diz Rodrigues41 referindo-se a uma

das causas do uso de epiacutetetos

no fundo natildeo haacute repeticcedilotildees pois este mundo ndash todos sabem eacute progressista e heracliacutetico42 natildeo existiriam repeticcedilotildees absolutas pois repetir de qualquer forma eacute jaacute alterar43

O uso de epiacutetetos em Homero foi exaustivamente investigado por Milman Parry44 cuja

tese foi a de provar a excelecircncia da qualidade esteacutetica dos versos desse poeta comparando-o a

um escultor cujos traccedilos satildeo simples claros e quase impessoais na sua criaccedilatildeo espontacircnea O

que chamou a atenccedilatildeo de Parry na anaacutelise da obra homeacuterica quando comparou o poeta ao

escultor Fiacutedias foi justamente a habilidade de cruzar a tradiccedilatildeo com sua originalidade Dessa

forma repetindo as palavras de Parry

[The repeated words and phrases45] are like a rhythmic motif in the accompaniment of a musical composition strong and lovely regularly recurring while the theme may change to a tone of passion or quiet of discontent of gladness or grandeur

Para nosso trabalho o epiacuteteto propotildee uma quase que insistecircncia na descriccedilatildeo de uma

caracteriacutestica (parthenos) que parece ser imutaacutevel ou tatildeo recorrente se preferirmos quanto o

40 Usamos o termo geist como eacute usado em antropologia por Franz Boas o espiacuterito de um povo 41 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 42 Heracliacutetico referente a Heraacuteclito de Efeacuteso filoacutesofo preacute-socraacutetico que viveu provavelmente entre os seacuteculos VI e V a C Para esse filoacutesofo unidade regularidade e mudanccedila eterna satildeo qualidades fundamentais do que existe O fluir constante significa que ldquoningueacutem pode banhar-se duas vezes no mesmo riordquo porque esse muda assim como muda o homem In PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 pp 206-207 43 RODRIGUES Antonio Medina Op cit p451 44 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 45 PARRY idib p xxv (As palavras e as frases repetidas) satildeo como um motivo riacutetmico no acompanhamento de uma composiccedilatildeo musical fortes e encantadoras regularmente recorrentes enquanto o tema pode mudar para um tom de paixatildeo ou quietude de descontentamento de alegria ou grandeza- traduccedilatildeo nossa

25

proacuteprio epiacuteteto Assim vemos uma dupla funccedilatildeo no epiacuteteto a de enfatizar um aspecto jaacute

conhecido de revelar sua natureza essencial e a de provocar uma compreensatildeo clara de sua

natureza esteacutetica

A questatildeo das consideraccedilotildees sobre o epiacuteteto traz em seu bojo uma outra dimensatildeo _ que

natildeo pode passar despercebida em uma anaacutelise cujo corpus eacute referente a poemas de autores

gregos da eacutepoca arcaica Eacute o caso da ecircnfase que se daacute agrave comunicaccedilatildeo nos poemas de Homero de

Hesiacuteodo e de outros poetas considerados ldquode segunda ordem porque foram tratados injustamente

pela tradiccedilatildeo humanista ocidental dos tempos modernosrdquo46 Sabemos que esse fato do uso dos

epiacutetetos tem sido discutido e alvo de polecircmicas Ainda assim vemos como positivo o fato de

que os mesmos epiacutetetos eram usados em diferentes situaccedilotildees por diferentes autores (em nosso

caso Homero e Hesiacuteodo) pois isso reforccedila o conceito de que havia um senso comum um

entendimento taacutecito um conhecimento abrangente em que a obra poeacutetica revela essa luz que

iluminava o mundo homeacuterico

Eacute por isso que natildeo podemos deixar de reforccedilar a colocaccedilatildeo de Torrano47 de que essas

metaacuteforas fixas criaram uma conotaccedilatildeo de encantamento maacutegico e do sagrado que o mundo dos

deuses evoca

Parry em seu estudo minucioso do epiacuteteto revelou os aspectos do estilo poeacutetico que

privilegiavam a oralidade ressaltando a significacircncia das foacutermulas para fins de comunicaccedilatildeo

Sobre isso Denys Page destacou as importantes descobertas de Parry48 comentando

It is not easy at first to grasp the full significance of Milman Parryrsquos discovery that the language of the Homeric poems is of a type unique in Greek literature ndash that it is to a very great extent a language of traditional formulas created in the course of a long period of time by poets who composed in the mind without the aid of writingThat the language of the Greek Epic is in this sense the creation of an oral poetry is a fact of proof in detail and the proofs offered by Milman Parry are of a quality not often to be found in literary studies49

46 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 p291 47 HESIacuteODO Opcit 48 PARRY Milman Op cit p xxvii 49 Natildeo eacute faacutecil em um primeiro momento perceber a significacircncia plena da descoberta de Milman Parry de que a linguagem dos poemas homeacutericos eacute de um tipo uacutenico na literatura grega ndash que eacute em grande parte uma linguagem de foacutermulas tradicionais criadas no curso de um longo periacuteodo de tempo por poetas que compunham na mente sem a ajuda da escritaQue a linguagem do eacutepico grego eacute neste sentido a criaccedilatildeo de uma poesia oral eacute um fato provado em detalhe e as provas oferecidas por Milman Parry satildeo de uma qualidade nem sempre encontrada nos estudos literaacuterios (traduccedilatildeo nossa)

26

A narrativa miacutetica como coloca Detienne50 comeccedila a fazer parte da tradiccedilatildeo oral no

momento em que ldquoexperimenta a prova da boca e do ouvidordquo Ela surge como produto da criaccedilatildeo

de um indiviacuteduo e pode se perpetuar Inspirado na distinccedilatildeo proposta por Leacutevi-Strauss Detienne

comenta a natureza da narrativa que pertence ao que se chama tradiccedilatildeo como tem sido nomeada

a poesia homeacuterica por Parry Os niacuteveis estruturados de memoralidade da histoacuteria podem ter

fundaccedilotildees comuns e dessa forma permaneceratildeo imutaacuteveis No entanto se os niacuteveis forem

probabilistas poderatildeo apresentar variaccedilotildees dependendo de como os narradores sucessivos vatildeo

acrescentando detalhes informaccedilotildees episoacutedios e portanto nesse continuum da transmissatildeo oral

uma histoacuteria enraizada na tradiccedilatildeo pode se tornar produtora de outras histoacuterias Como diz Leacutevi-

Strauss apud Detienne ldquoas obras individuais satildeo todas mitos em potencial mas eacute sua utilizaccedilatildeo

no modo coletivo que atualiza em cada caso seu mitismordquo51

Propotildee-se pois a partir daiacute uma abrangecircncia do aspecto cultural reconhecendo o miacutetico

nas culturas da palavra naquilo que ele enreda para construir seu esquema conceitual nas

diversidades de produccedilotildees que ele propotildee como expressatildeo de relatos de um tipo determinado

Dessa forma vecirc-se o mito como um gecircnero literaacuterio de manifestaccedilotildees da memoacuteria de uma

sociedade com suas crenccedilas e suas praacuteticas Eacute nesse cenaacuterio de riqueza cultural que os relatos

inesqueciacuteveis da sociedade grega de Hesiacuteodo e de Homero satildeo entendidos e revelam a

complexidade de uma religiatildeo politeiacutesta onde deuses imortais e outras potecircncias sobrenaturais

percorrem o mundo ao lado de indiviacuteduos mortais que convivem nesse mesmo mecanismo de

representaccedilotildees que o conhecimento miacutetico evoca

Mais uma vez verificamos que a anaacutelise da cultura enriquece os mitos e posiciona-os

possibilitando reconstruir e articular elementos dentro de uma visatildeo semacircntica sem reduzi-los

somente a algumas oposiccedilotildees ou apontar restriccedilotildees Oposiccedilotildees existem tambeacutem as diferenccedilas

mas elas satildeo consequumlecircncia de um conjunto mais amplo de um mecanismo complexo e quando

oposiccedilotildees e diferenccedilas forem evidenciadas no campo especiacutefico selecionado (das deusas

virgens) o propoacutesito eacute o de evidenciar aspectos que possam contribuir para situarem-se no

conjunto dessa anaacutelise combinatoacuteria apontando ou sugerindo novas relaccedilotildees interpretativas e

estabelecendo comparaccedilotildees ndash como parte da atitude investigatoacuteria que assumimos

50 DETIENNE Marcel Op cit 51 DETIENNE Marcel opcit p48

27

Nesse sentido a questatildeo do uso da oralidade e da escrita jaacute implica um aspecto

diferencial que tem sido amplamente investigado por antropoacutelogos que estudam e buscam o

entendimento dos nossos ldquoportos de origemrdquo como diz Detienne Assim sendo jaacute podemos

estabelecer uma primeira comparaccedilatildeo a mitologia surge a partir dos relatos escritos Antes o

que havia era o mito A mitologia eacute aquela que evoca a sociedade suas crenccedilas seu modus

faciendi traccedila enfim um mapa do tempo colocando o que se chama de ldquotradiccedilatildeo de uma eacutepocardquo

daquilo que se tem por verdadeiro

Embora seja do acircmbito da antropologia da sociologia e da linguumliacutestica pensar o fenocircmeno

da oralidade e da escrita foi Milman Parry segundo Ong52 o primeiro a dar um enfoque

decisivo nesse assunto

Foi ele quem apontou o contraste entre os modos de pensamento que subjazem a

expressatildeo oral e a produccedilatildeo escrita a partir de estudos literaacuterios tendo como corpus o texto da

Iliacuteada e o da Odisseacuteia A partir daiacute todos os autores de outras aacutereas tecircm sua obra como baacutesica

para o estudo que empreendem

Apesar de o nosso estudo natildeo privilegiar uma investigaccedilatildeo no que diz respeito aos

princiacutepios que norteiam o uso da escrita e o desenvolvimento da linguagem oral natildeo podemos

perder de vista que a forma de expressatildeo manifesta no corpus estaacute relacionada a essa

circunstacircncia Acabamos de verificar que o corpus selecionado por Milman Parry refere-se a

textos da eacutepoca arcaica grega e aponta a significacircncia desse fato Assim sendo o que se quer

ressaltar eacute que os textos escritos de alguma maneira direta ou indiretamente estatildeo relacionados

com os aspectos sonoros e com o contexto que a oralidade comprova para transmitir

significados

A fala como forma de expressatildeo e como maneira de manifestar o pensamento sempre

fascinou os estudos cientiacuteficos e provocou interesse nos pesquisadores de diversas aacutereas Por

isso como reflete Ong

En Ocidente entre los antiacuteguos griegos la fascinacioacuten se manifestoacute em la elaboracioacuten del arte minuciosamente elaborado y vasto de la retoacuterica la materia acadeacutemica mas completa de toda la cultura ocidental durante dos mil antildeos En el original griego techneacute rheacutetorikeacute ldquoarte de hablarrdquo (por lo comuacuten abreviado a solo rheacutetorikeacute) em esencia se referia al discurso oral aunque siendo un ldquoarterdquo o ciencia sistematizado o reflexivo ndash

52 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 p16

28

por ejemplo em el Arte Retoacuterica de Aristoacuteteles ndash la retoacuterica era y tuvo que ser un producto de la escritura53

Portanto a escritura jaacute veio como forma de representar a oralidade de se apoiar em seus

fundamentos e de organizar os componentes da linguagem calcados em princiacutepios do domiacutenio da

ciecircncia e da arte como no caso da retoacuterica Esse aspecto evidencia o uso dos relatos miacuteticos orais

que seguiam uma organizaccedilatildeo textual e a importacircncia do uso da linguagem oral nos estudos

sociais linguumliacutesticos e literaacuterios ou seja culturais

Ademais em se tratando da epopeacuteia podemos questionar como eacute possiacutevel mensurar

aquilo que ela traz em si dos textos que os rapsodos narravam pois conferindo o conceito em

grego Ong54 coloca que ldquorhapsoacuteidein lsquocantarrsquo en griego basicamente significa lsquocoser

cancionesrsquordquo Como reflete o autor citado o texto oral jaacute implica etimologicamente o conceito de

tecer Desta forma a base da poesia eacutepica eacute a oralidade

A poesia eacutepica evidencia pois um aspecto fundamental da construccedilatildeo e da fundaccedilatildeo do

que embasa o chatildeo grego pois eacute atraveacutes dela que os antropoacutelogos chegam a determinadas

constataccedilotildees que podem levar agrave compreensatildeo do ato de criar e do ato de viver na eacutepoca arcaica

A esse respeito diz Robert Aubreton

Eacute possiacutevel ainda ir mais longe e atraveacutes de Homero acompanhar toda a tradiccedilatildeo eacutepica Nascida durante o periacuteodo aqueu ndash o estudo histoacuterico no-lo provaraacute ndash e talvez filha da epopeacuteia cretense a epopeacuteia grega possuiacutea desde essa eacutepoca um jogo completo de foacutermulas que lhe eram proacuteprias que entraram na proacutepria tradiccedilatildeo do gecircnero

E mais

Atraveacutes de todas essas foacutermulas se revelava ao poeta todo um mundo antigo do qual ele conservaraacute a lembranccedila formas aqueacuteias eoacutelicas talvez se a tradiccedilatildeo eacutepica se tornara realmente essa com o correr dos tempos Mas o poeta Homero eacute um jocircnio puro e emprega as formas jocircnicas de seu tempo no meio dessa liacutengua herdada dum glorioso passado histoacuterico e literaacuterio55

Quanto a essa evidecircncia Ruigh56 eacute citado como um dos que acredita nos vestiacutegios de uma

traduccedilatildeo eacutepica micecircnica para depois se tornar eoacutelica e finalmente jocircnica

53 ONG WJ op citp 18-19 54 ONG WJ opcit p22 55 AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero 2ed Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1968 p90-91 56 RUIGHCJ apud AUBRETON opcit

29

Aubreton tambeacutem coloca que recuperando as caracteriacutesticas da poesia homeacuterica um fato

que deve ser levado em conta eacute a unidade real que a liacutengua homeacuterica manteacutem apesar de sua

formaccedilatildeo heterogecircnea

Os dados culturais satildeo pois de extrema relevacircncia no que diz respeito aos estudos

linguumliacutesticos e literaacuterios uma vez que interferem e direcionam o trabalho de traduccedilatildeo do corpus

selecionado

Outrossim os poemas homeacutericos e a Teogonia parecem ser um ponto de partida para o

entendimento do mundo dos deuses entre os gregos ou seja de sua religiatildeo Os deuses governam

o mundo subordinados a Zeus mas ao mesmo tempo conjuntamente com ele Cada um deles

tem atribuiccedilotildees determinadas Em relaccedilatildeo ao nosso objeto de estudo Afrodite eacute a deusa que

provoca o desejo conhecida hoje como a deusa do Amor Aacutertemis a deusa da caccedila deusa

virgem Atena deusa da astuacutecia ou seja deusa da guerra e da inteligecircncia tambeacutem virgem

Heacutestia a deusa do lar soliacutecita e virgem

Poreacutem embora essa possa ser uma classificaccedilatildeo geral o nosso enfoque metodoloacutegico

revela que natildeo pode haver uma rigidez nas funccedilotildees dos deuses Nos casos que nos interessam

por exemplo vecircem-se variaccedilotildees significativas quando se fazem analogias entre contextos

diferentes Assim embora Hera signifique a mulher de Zeus e por isso represente a fertilidade

em Eacutefeso Aacutertemis era reverenciada como deusa da fertilidade e ainda em outros lugares como

a deusa da lua misteriosa Atena a deusa guerreira dividia esse atributo com Ares tambeacutem deus

da guerra

Eacute justamente atraveacutes dos poetas que o mundo desses deuses ldquofala gregordquo isto eacute revela-se

com toda sua forccedila aos humanos revestindo-se mesmo na sua estranheza e na sua forma de

saber um jeito familiar conhecido que se cruza com as questotildees do mundo terrestre

Enfatizamos novamente a posiccedilatildeo de Vernant que privilegia o encruzamento soacutecio-religioso

nesse contexto entrelaccedilado

Se eacute cabiacutevel falar quanto agrave Greacutecia arcaica e claacutessica de ldquoreligiatildeo ciacutevicardquo eacute porque ali o religioso estaacute incluiacutedo no social e reciprocamente o social em todos os seus niacuteveis e na diversidade dos seus aspectos eacute penetrado de ponta a ponta pelo religioso57

57 VERNANT Jean-Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p7

30

Eacute a partir da constataccedilatildeo da integraccedilatildeo da religiatildeo com o social que os deuses comportam

diferentes dimensotildees Heacutestia tem o controle sobre a lareira de cada casa marca o centro fixo do

que se constitui como famiacutelia mas a mesma Heacutestia pode conjuntamente com Zeus exercer

controle sobre o que eacute considerada a Lareira comum da cidade

O que entatildeo nos perguntamos faz a originalidade das deusas virgens em relaccedilatildeo aos

outros deuses

Essa pergunta jaacute envolve pois um aspecto da especificidade que nossa investigaccedilatildeo

procura desvendar

Tem-se a impressatildeo a partir do que foi exposto de que os atributos dos deuses satildeo muito

menos precisos do que se pode supor e de que as funccedilotildees variam de acordo com os santuaacuterios

Haacute poreacutem uma marca comum invariaacutevel insistente em Aacutertemis Atena e Heacutestia a

virgindade

Embora alguns aspectos da concepccedilatildeo oliacutempica possam ser explicados agrave luz soacutecio-

histoacuterico-cultural como o caso de Zeus uma divindade masculina adaptado ao culto de um

povo guerreiro ideacuteia provavelmente introduzida pelos aqueus existe paralelamente a ideacuteia da

origem da criaccedilatildeo na Teogonia (v 117 e sgtes) onde a Terra (Gaia) parece ter ocupado lugar

privilegiado Assim a origem primeira daacute-se atraveacutes de uma divindade feminina relacionando

pois o conceito de vida e de fertilidade ao elemento feminino Do ponto de vista antropoloacutegico

essa posiccedilatildeo pertence agrave religiatildeo de povos sedentaacuterios de origem agriacutecola para quem sem

duacutevida a Terra eacute a fonte de toda a vida Parece pois uma atitude que fazia parte da Heacutelade da

eacutepoca dos egeus

Esse aspecto cultural eacute um dado que natildeo pode ser deixado de lado quando se reportam

aos epiacutetetos das deusas virgens e de outras naturalmente Alguns atributos podem estar

vinculados a vestiacutegios que a memoacuteria guardou e repetiu de eacutepocas anteriores e que refletem

aspectos de divindades zoomoacuterficas preacute-helecircnicas Exemplificamos com um epiacuteteto recorrente a

Atena glaucoacutepida ou de olhos glaucos

Em geral os dicionaacuterios definem esse termo relacionando-o ao brilho e agrave cor Em nossas

traduccedilotildees (verificamos que o mesmo se daacute em Torrano58) procuramos manter o uso de olhos

glaucos deixando a interpretaccedilatildeo final por conta do leitor porque o termo tambeacutem pode indicar

58 HESIacuteODO Op cit v888

31

ldquoolhos de corujardquo de acordo com alguns estudiosos do politeiacutesmo helecircnico estando dessa

forma referindo-se a uma divindade que teria um significado zoomoacuterfico

As interpretaccedilotildees revelam o movimento por que as culturas passam em um processo

contiacutenuo de construccedilatildeo de seu solo de seu saber de seu espaccedilo como naccedilatildeo constituiacuteda Assim

embora vinculadas agraves anteriores as concepccedilotildees vatildeo se transformando e quando os aqueus se

misturaram aos povos preacute-helecircnicos houve uma adaptaccedilatildeo no modus vivendi um consenso

reciacuteproco uma acomodaccedilatildeo que prevecirc concessotildees reciacuteprocas Essa adoccedilatildeo e recepccedilatildeo entre os

povos interferem tambeacutem no campo religioso e alguns deuses satildeo adotados outros confundidos

e outros ainda instalados Haacute tambeacutem aquelas divindades que perdem o caraacuteter sagrado Eacute assim

que algumas vezes surgem os heroacuteis Essa conjunccedilatildeo de tradiccedilotildees vai colocando camadas no

que se constitui o solo grego

Como jaacute anunciou a antropologia de linha estruturalista um fato que natildeo se pode ignorar

eacute que as culturas surgiram a partir de diversas comunidades que se acumularam no meio da

mesma espeacutecie por consentimento ou por alguma forma de negociaccedilatildeo produzindo conjuntos

distintos convencionais na organizaccedilatildeo do comportamento e na atribuiccedilatildeo de significados agraves

accedilotildees

Satildeo os traccedilos dessa evoluccedilatildeo cultural que a poesia eacutepica evidencia Por isso quando se

referem agraves deusas virgens os hinos homeacutericos ressaltam epiacutetetos das deusas que de alguma

forma estatildeo relacionados agrave conciliaccedilatildeo entre cultos e deuses Como jaacute se mencionou

anteriormente ao caso de Atena combinada com deuses zoomoacuterficos tambeacutem a mesma Atena

possui outros epiacutetetos que podem estar relacionados a outras divindades preacute-helecircnicas Como

explicar o epiacuteteto Tritogecircnia a ela atribuiacutedo e Atena Tritocircnia Levantam-se hipoacuteteses para esses

epiacutetetos relacionando-os a cultos e lugares onde a deusa era venerada mas os significados

podem ser interpretados de formas variadas

Essas suposiccedilotildees que vatildeo sendo levantadas fazem repensar a linha antropoloacutegica que

escolhemos para o nosso trabalho por isso eacute necessaacuterio apontar para uma consciecircncia sobre as

diferenccedilas humanas no mundo e como ela se articula jaacute que cada cultura eacute vista na sua

singularidade em uma determinada eacutepoca como ressaltamos no iniacutecio do capiacutetulo Poreacutem vale

lembrar que uma linha antropoloacutegica interpretativa volta-se para interpretaccedilotildees provisoacuterias e

parciais e mostra que seu principal objeto de estudo eacute a etnografia o que nos faz debruccedilar sobre

32

o homem e os textos culturais que ele produz Foi com esse pensamento que na nossa

Introduccedilatildeo tentamos apontar aspectos do mundo grego que nos fizessem entender a concepccedilatildeo

que tinham de seus deuses do cosmo a relaccedilatildeo dos homens com esses deuses e com o cosmo e

possivelmente procurar interpretar o atributo ou conceito ou valor eacutetico imposto pela

memorabilidade da virgindade De qualquer forma natildeo podemos deixar de concordar com

Crapanzano e Clifford59 que afirmam ldquoa parcialidade da verdade na antropologia e o caraacuteter de

ficccedilatildeo das etnografias construiacutedasrdquo

Eacute sobre a questatildeo do texto literaacuterio o corpus que escolhemos para investigaccedilatildeo que

queremos fazer alguns apontamentos

Quanto aos textos de Homero a Iliacuteada a Odisseacuteia e quanto aos textos de rapsodos que

compuseram os Hinos Homeacutericos haacute algumas interpretaccedilotildees pertinentes ndash de acordo com nosso

entendimento ndash sobre deles Uma dessas interpretaccedilotildees diz respeito a uma posiccedilatildeo eleita por

Homero isto eacute colocar uma divindade absoluta sobre as outras Zeus senhor do Olimpo sem

revelar tendecircncias sobre deuses ligados a esta ou agravequela cidade Isso denota uma imparcialidade

em Homero pois natildeo toma partido em relaccedilatildeo a um deus especiacutefico de uma cidade aleacutem de

mostrar vestiacutegios de deuses de outras raccedilas dos aqueus e dos egeus bem como de deuses

remanescentes de um periacuteodo preacute-helecircnico sem privilegiar apenas um ligado a uma poacutelis

Portanto os textos homeacutericos dissimulam a questatildeo do culto das divindades locais Seraacute que esse

aspecto revela uma tendecircncia ideoloacutegica Ateacute que ponto quer-se representar uma casta guerreira

fiel agrave organizaccedilatildeo aqueacuteia enaltecendo as estrateacutegias de combate e as narrativas de conflito

Um outro ponto aqui eacute que vale pensar um aspecto do corpus que ressaltamos a

virgindade das deusas pois em Homero eacute inegaacutevel os deuses imortais tambeacutem satildeo

humanizados em suas relaccedilotildees em suas funccedilotildees em seus sentimentos Os deuses participam

tanto das cenas militares quanto das familiares daquelas que fazem parte da vida de todos os

dias Assim a deusa guerreira que faz parte dos combates eacute virgem a deusa que estaacute presente

em cada lar zelando pela famiacutelia eacute virgem a deusa que cuida dos campos e dos animais e que

protege os partos e os adolescentes eacute virgem Pode-se questionar se Atena Heacutestia e Aacutertemis

possuem uma caracteriacutestica que faz parte apenas do feminino Parece-nos que as lendas natildeo

59 CRAPANZANO e CLIFFORD apud JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004 p47

33

mencionam guerreiros deuses e heroacuteis virgens Parece-nos que quando o teatro propocircs Hipoacutelito

dedicado agrave virgem Aacutertemis a deusa do Amor (Afrodite) vingou-se dele Assim estaria a

virgindade grega reservada e aceita soacute para o feminino A relaccedilatildeo pai-filha em Homero eacute dotada

de humanidade que fundamenta o coraccedilatildeo paterno A Iliacuteada mostra um Zeus (canto VIII)

cedendo agraves teimosias de Atena e mimando-a Caracteriacutesticas da fraqueza humana do pai Zeus

Afinal a mitologia narra essa filha nascida da proacutepria cabeccedila do pai armada e cheia do dom da

inteligecircncia e digna de um poder que faz parte de seu caraacuteter haja vista sua origem

Eis como Homero se aproveita da mitologia para que participe da sua saga guerreira

divina e humana

O texto de Homero faz suceder narrativas de cerimocircnias fuacutenebres tristes a episoacutedios

quase liacutericos Teraacute aiacute tambeacutem esse Homero eacutepico momentos de um lirismo cheio de frescor

pintando episoacutedios da vida entre o alegre e o triste Entre o cocircmico e o funesto

Mesmo nos Hinos sacros Homero lhes imprime um colorido humano Recupera os laccedilos

familiares e descreve cenas quase burlescas quando se reporta a Aacutertemis a irmatilde querida de

Apolo dando de beber aos cavalos Ele cita detalhes do cotidiano necessaacuterios que fazem parte

da vida humana

Descreve a mulher que atrai o erotismo exalando da espuma do mar da qual brota

Afrodite sempre desejaacutevel atraente que subjuga mortais e imortais ateacute o proacuteprio Zeus

Ningueacutem consegue domar essa forccedila desejante Soacute as deusas virgens

No canto a Atena destaca o seu poder que como jaacute foi dito eacute herdado do proacuteprio pai

Como guerreira estaacute envolvida em atos beacutelicos mas tambeacutem eacute protetora dos combatentes e zela

por eles

Os textos de Homero vatildeo pois aleacutem das lendas e dos testemunhos histoacutericos na sua

forma de tecer a poesia eacutepica Desse modo a sequumlecircncia temporal da sua narrativa natildeo importa

O que interessa eacute perceber que quando Homero tece a sua narraccedilatildeo ndash e aproveitamo-nos

aqui de um filatildeo da antropologia marxista ndash surgem vaacuterios sistemas cognitivos nesse mesmo

meio resultantes de reaccedilotildees agraves variadas condiccedilotildees materiais

Assim reforccedilamos a ideacuteia de que o mito narra as condiccedilotildees significativas das relaccedilotildees

sociais Essas relaccedilotildees podem sofrer transformaccedilotildees alterando todas as formas de significar de

um sistema social

34

Nesse aspecto as narrativas homeacutericas bem como os hinos homeacutericos reportam-se a

recursos naturais como quando apresentam caracteriacutesticas geograacuteficas relacionadas de algum

modo a uma forma de produccedilatildeo e a determinados tipos de atividades que revelam o

comportamento dos habitantes atraveacutes de seus deuses e de seus heroacuteis Mas ao mesmo tempo

em que essa constataccedilatildeo direciona para um conceito de produccedilatildeo ressaltado pela teoria marxista

quando Homero e outros autores teceram suas narrativas a transparecircncia de caracterizar um

discurso atraveacutes da escrita jaacute se perdeu Entatildeo como coloca Geertz60 tambeacutem quando o

observador interpreta significados quando a interpretaccedilatildeo se dirige a um povo construir

descriccedilotildees e significaccedilotildees sobre esse povo natildeo eacute muito diferente de construir uma obra de ficccedilatildeo

Como ele diz ldquonatildeo existe uma torre de marfimrdquo o que existe eacute a poliacutetica do escritor Dessa

forma uma anaacutelise etnograacutefica comparativa eacute constituiacuteda por quem a escreve

Assim de todo nosso percurso pelas deusas gregas virgens e pela virgindade enquanto

conceito atraveacutes do tempo pode-se dizer como Geertz natildeo eacute ldquomuito diferente de construir

romances sobre a vida na Franccedila rural do seacuteculo XIXrdquo61

De qualquer forma poreacutem os gregos da eacutepoca arcaica existiram independentemente do

que se conjeture sobre eles Do mesmo modo os textos de Homero e de Hesiacuteodo existem como

referecircncia ao nosso proacuteprio discurso sobre os gregos e sobre a Mitologia

Um ponto relevante de se considerar eacute a questatildeo levantada por Foucault62 de que um

estudo sobre o humano revela aspectos que se entrecruzam e se emaranham especificando o que

diz respeito aos homens agrave consciecircncia agrave origem e ao sujeito Isso como diz o mesmo Foucault

nos permite definir um espaccedilo para o qual se aponta apesar de o nosso discurso ser ldquoprecaacuterio e

incertordquo

Assim em se estabelecendo comparaccedilotildees no que diz respeito ao modo de narrar de

Homero e de Hesiacuteodo como jaacute foi dito Homero humaniza o divino Coloca lado a lado deuses

e homens emparelhando-os nos sentimentos e nas accedilotildees Hesiacuteodo ao contraacuterio propotildee uma

composiccedilatildeo que privilegia a experiecircncia sagrada como uma forma de narrar a concepccedilatildeo do

mundo arcaico O uso das foacutermulas e de expressotildees retornantes como marca da oralidade e da

linhagem dos deuses apresenta tambeacutem como a narrativa de Homero a justaposiccedilatildeo temporal 60 GEERTZ apud LAYTON Op cit p 277 61 GEERTZ apud LAYTONIdem p 277-278 62 FOUCAULT Michel A arqueologia do Saber 5ed Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1977 p19

35

mostrando-se indiferente a uma cronologia estruturada O tempo se move como se move a Terra

em um fluir constante No entanto um aspecto determinante em sua obra eacute a forma como a

descriccedilatildeo da origem das linhagens se articula pelo

poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distacircncias espaciais e temporais um poder que soacute lhe eacute conferido pela Memoacuteria (Musas)63

Tambeacutem em seus Hinos Homeacutericos Homero lanccedila matildeo do recurso de invocar o poder

das Musas e de ressaltar a importacircncia do canto que possibilita ao homem transcender suas

fronteiras geograacuteficas e terrenas e entrar em contato com o que o canto promove o mundo

audiacutevel dos sons que transporta e o mundo invisiacutevel das formas presentes Esse movimento de

entrar em contato com o mundo gera a experiecircncia divina

Hesiacuteodo aleacutem das concepccedilotildees da linguagem do tempo e do Ser enfatiza ndash e talvez

mesmo centralize ndash a concepccedilatildeo de Memoacuteria na descriccedilatildeo dos extensos cataacutelogos que como

coloca Torrano ldquose oferecem como um espetacular jogo mnemocircnicordquo64

Isso nos coloca frente a um conceito que para entendecirc-lo fez-nos procurar o lado oposto

a arte de esquecer Eacute assim que Weinrich65 inaugura sua discussatildeo sobre a memoacuteria reportando a

ceacutelebre histoacuteria de Simocircnides poeta grego que viveu por volta de 500 aC que ajudou a

identificar os mortos em uma sala cujo teto desabara apoacutes sua saiacuteda O recurso da memoacuteria

espacial teria sido o primeiro exemplo de uso de teacutecnica mnemocircnica Assim a morte suacutebita dos

ocupantes da sala estaria revelando ldquouma ameaccediladora cataacutestrofe do esquecimentordquo que

ldquotransforma o lembrar num problemardquo Portanto desde os poetas gregos ao ldquocantaremrdquo as

tradiccedilotildees a memoacuteria tem um lugar principal pois que o esquecimento apagaria os vestiacutegios de

uma histoacuteria Sem a arte das Musas e sem a voz poderosa da memoacuteria como poderia Hesiacuteodo

narrar a origem dos deuses que eacute a origem do proacuteprio cosmo Sem o poder da memoacuteria como

poderia Homero honrar os deuses reverenciando-os em suas caracteriacutesticas peculiares e narrar

assombrosas faccedilanhas que eram ditas da boca ao ouvido dos homens de seu tempo

O grande feito desses autoresndashaedos foi exatamente o de transformar a ldquomemoacuteriardquo em

fatos concretos no audiacutevel e no visiacutevel Aleacutem dos sons agora a imagem das cenas se

63 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos DeusesEstudo e Traduccedilatildeo de JAA Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 p16 64 HESIacuteODO Op cit p16 65 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 p30

36

representava nos caracteres escritos e tomava forma O que tentamos dizer de maneira trocircpega

Weinrich coloca de forma clara e concisa

O artista da memoacuteria que segue o exemplo de Simocircnides percebe em primeiro lugar para seus fins ndash no caso da retoacuterica isso eacute sempre a fala puacuteblica ndash uma constelaccedilatildeo fixa de ldquolugaresrdquo (em grego topoi latim loci) bem familiares sua residecircncia ou o foacuterum Nesses locais ele testemunha em sequecircncia ordenada os conteuacutedos isolados da memoacuteria depois de primeiro os ter transformado em ldquoimagensrdquo (grego phantasmata latim imaginatio)66

Mas ao lado da memoacuteria que promove imagens criadoras a criaccedilatildeo tambeacutem pode ser

aniquilada nas ldquoaacuteguas do esquecimentordquo Eacute assim que os gregos ndash e a Teogonia67 ndash apontam para

essa genealogia colocam Lete (ΛήӨην) filha da noite (Νүҳ) e de Eacuteris (Discoacuterdia em latim) como

o rio do Hades que permite que os mortos se esqueccedilam de suas lembranccedilas Esse campo de

significaccedilotildees do mundo grego parece conter comparaccedilotildees e contrastes para entender aspectos

inerentes ao humano Assim eles jaacute se baseavam em uma antropologia comparativa em suas

interpretaccedilotildees a arte de esquecer se emparelhava agrave arte de lembrar Em Weinrich68 encontramos

a menccedilatildeo de que Pausacircnias cita uma fonte do Lete na Boeacutecia ao lado da qual havia uma fonte de

Mnemosyne

Nos Hinos Homeacutericos69 o(s) autor(es) dirige-se (no caso de nossa pesquisa) agraves deusas

Aacutertemis Atena e Heacutestia comparando-as e colocando-as com outros deuses Assim quando se

reporta a Aacutertemis ldquoa que atira flechasrdquo menciona seu irmatildeo Apolo tambeacutem ele um ldquodeus que

atira flechasrdquo cujos atributos tecircm pontos semelhantes haja dada sua criaccedilatildeo Quando reverencia

Atena ldquoa deusa da inteligecircncia da astuacutecia (Meacutetis) aquela que participa dos atos beacutelicosrdquo coloca

ao seu lado Ares ldquoo deus que tambeacutem se ocupa da guerrardquo Em relaccedilatildeo a Heacutestia ldquoa deusa da

lareira dos lares e da pira das cidadesrdquo ldquoprotetora da famiacutelia e da polisrdquo une-a a Hermes no seu

movimento de ldquoajudar os homens doador de bens protetor dos caminhos e mensageiro dos

deusesrdquo

Nesse processo de contraste Homero e Hesiacuteodo ressaltaram o esquecimento (Lete filha

da noite escura) e a memoacuteria cujas filhas foram as musas inspiradoras Como coloca Torrano70

66 WEINRICH idem p31 67 HESIacuteODO Opcit p 117118 vs 225-232 68 WEINRICH Opcit p21 69 HESIOD THE HOMERIC HYMNS AND HOMERICA Translated by H G Evelyn-White LOEB Classical Librars 1982 70 HESIacuteODO Opcit p 70

37

a memoacuteria eacute ldquoa mais vigorosa negaccedilatildeo do Esquecimento em que se daacute o Natildeo-Serrdquo A memoacuteria

tem pois nesse sentido uma significaccedilatildeo de presentificar o Ser Isso revela um entendimento

inerente da memoacuteria que nomeia e situa o Ser que o coloca como sujeito da sua histoacuteria e da

Histoacuteria como parte de uma trajetoacuteria O proacuteprio tempo soacute teraacute significaccedilatildeo se fizer parte do

contexto da memoacuteria

Homero explicita claramente essa relaccedilatildeo entre o Ser e o Natildeo-Ser entre o Esquecimento

e a Memoacuteria na Odisseacuteia As drogas (os ρһаґmаkοn no Canto IX) e as artimanhas do amor

(Περικаλλέοs ευνές a cama esplecircndida referindo-se ao seu envolvimento com Circe no Canto X

e com Calipso v 450 451 por exemplo no canto XI quando narra ter sido recebido na cama e

ter tido os cuidados da ninfa em Ogiacutegia onde a deusa vive) interromperam por uns tempos o

propoacutesito de Odisseu retardando seu retorno agrave cidade e a casa uma vez que estivera sob o

comando do esquecimento Esse pertence ao paiacutes dos mortos e natildeo dos vivos como se entende

na narrativa homeacuterica Quando Odisseu volta a Ser quando chega a Iacutetaca sem reconhececirc-la

sentindo-se desolado clamando aos deuses eacute acolhido por Palas Atena que lhe descreve a terra

falando de seu solo feacutertil e de sua produccedilatildeo Entatildeo tendo sido recebido pela protetora de Atenas

Odisseu se recompotildee Estaacute pleno da memoacuteria As condiccedilotildees que levam Odisseu a esse estado de

ficar no esquecimento ou de fazer uso da memoacuteria indicam um estado representativo do Ser

quando o homem se coloca em um conflito entre mergulhar em um espiacuterito de aventura eliminar

o passado e atirar-se no mundo imaginaacuterio e manter-se preso agrave realidade ao mundo conhecido

do qual faz parte O personagem conhece pois um drama de foro iacutentimo que faz parte do

humano enquanto Ser mortal

Assim a epopeacuteia exprime alguns desejos inerentes ao humano no que concerne

sentimentos estados e fantasias Limites que ficam entre o real e o imaginaacuterio e revelam

essencialmente o ideal do homem comum de sua vida no campo no mar no poacutelis combinando

o maravilhoso o misterioso e o sagrado enfim tudo o que pode encantar e ser reconhecido por

esse mesmo homem Cabe ao cantor ao poeta reconstruir e relembrar os gestos que fazem parte

do mundo

Queremos dizer em outras palavras que a obra desses dois grandes gregos Homero e

Hesiacuteodo cobrem todos os aspectos da vida humana Jaacute nos referimos agraves recorrecircncias do Tempo e

do Ser jaacute mencionamos os recursos linguumliacutesticos referentes agrave escrita e agrave oralidade jaacute expusemos

38

o que o mytho pode revelar no contexto arcaico e como se enreda com a questatildeo da tradiccedilatildeo

miacutetica jaacute apontamos para o embrenhamento do social e do religioso jaacute falamos de algumas

caracteriacutesticas pertinentes das obras desses autores e jaacute indicamos nossa indagaccedilatildeo frente ao

objeto de estudo as deusas gregas virgens figuras recorrentes nessas obras citadas aleacutem de suas

representaccedilotildees em estaacutetuas e outras iconografias da eacutepoca bem como sua indicaccedilatildeo nas obras de

Heroacutedoto de Pausacircnias e de outros autores que se referiram agravequela eacutepoca E aiacute encontramos um

aspecto que foi colocado pelos poetas na sua acepccedilatildeo do humano a questatildeo de gecircnero

O feminino e o masculino envolvidos nos laccedilos dos desejos carnais a cama como

siacutembolo de amor uma forma de expressar a sexualidade A virgindade feminina representando

trecircs deusas que natildeo se subjugam agraves questotildees de Afrodite isto eacute ao hiacutemeros a forccedila desejante

que como vimos em Homero leva ao esquecimento e faz com que o homem perca seu rumo

desvie-se de sua rota retarde sua trajetoacuteria A virgindade colocada no feminino e no sagrado em

um mundo com tantos episoacutedios de relacionamentos desejantes com tantas lendas de traiccedilotildees ndash

se eacute que assim podemos chamaacute-las ndash e de procriaccedilatildeo revela uma particularidade a mais nesse

mundo grego a ser investigado e re-examinado Por que perguntamos Aacutertemis Atena e Heacutestia

se opunham de forma obstinada ao ldquoardor amorosordquo O que viam de incocircmodo na manifestaccedilatildeo

da sexualidade Ou melhor o que viam na virgindade

Do ponto de vista psicanaliacutetico (longe de noacutes a atitude de querermos colocar essas figuras

divinas no divatilde) o feminino sempre foi um ldquoembaraccedilordquo para os estudiosos da mente e do

comportamento humanos Conhece-se a famosa indagaccedilatildeo de Freud ldquowas will das weibrdquo71

Vaacuterios autores tentaram explicar justificar e mesmo responder essa indagaccedilatildeo freudiana Grant

em seu artigo sobre a feminilidade reporta-se ao fato de que a literatura analiacutetica ldquonatildeo paacutera de

mostrar que as consideraccedilotildees anatocircmicas natildeo satildeo iacutendices para falar da diferenccedila de identidade

sexual entre homens e mulheresrdquo72

De fato o que marca a sexualidade eacute algo que vai aleacutem da materialidade do corpo Por

isso colocou-se em paacuteginas anteriores a discussatildeo que propotildee a indicaccedilatildeo e a especificaccedilatildeo de

funccedilotildees em alguns momentos em que se reflete sobre aspectos sociais Reproduzindo as palavras

de Grant temos 71 O que quer uma mulher 72 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009

39

O fator preponderante que determinaraacute a questatildeo da diferenccedila sexual seraacute o resultado de uma leitura do corpo marcado por um oacutergatildeo sexual a que uma famiacutelia e um determinado sujeito em certas condiccedilotildees sociais podem proceder73

Grant indica pois que o oacutergatildeo sexual de um sujeito eacute representado pelo significante o

que vale dizer que a sociedade determina conceitos e valores ao masculino e ao feminino

Aleacutem dessa complexa problemaacutetica feminina Freud tambeacutem tentou enfocar e entender a

importacircncia das figuras materna e paterna no desenvolvimento da feminilidade e de alguma

forma a conclusatildeo eacute de que a figura predominante eacute a figura materna Entatildeo perguntamos como

pensar a feminilidade em Atena privada que foi da figura materna Ateacute seu nascimento deu-se

na representaccedilatildeo do masculino tendo ela nascido da cabeccedila do pai Como os antigos gregos

entendiam essa sua mitologia que colocava uma deusa cuja condiccedilatildeo de existecircncia cria um noacute

inarredaacutevel em relaccedilatildeo agrave figura da matildee

Aleacutem do mais Freud tentou responder o enigma da questatildeo que ele mesmo se havia

colocado e propocircs como soluccedilatildeo que ser mulher eacute ser matildee ou em outras palavras ter um filho

significa ter um falo

Apesar de as deusas virgens natildeo terem tido filhos natildeo podemos dizer que esse eacute um forte

argumento contra a feminilidade delas pois muitas outras mulheres inclusive em nosso mundo

contemporacircneo optam por natildeo terem filhos o que natildeo lhes nega a feminilidade

Aleacutem disso ainda um aspecto interessante apresentado por Riviegravere74 eacute que muitas

mulheres que preenchem caracteriacutesticas plenas ocupadas pelo feminino podem estar recorrendo a

maacutescaras de feminilidade revestindo-se apenas de suas aparecircncias As deusas virgens assumiram

sua virgindade sem constrangimento o que lhes confere o epiacuteteto de ldquoparthenosrdquo Portanto natildeo

foram mascaradas como diz Riviegravere a respeito das ldquomulheres-homensrdquo

Assim apesar de muitas especulaccedilotildees natildeo se esclarece muito o conflito que o feminino

pode evocar Ao lado de Freud que queria saber o que eacute uma mulher a nossa indagaccedilatildeo se volta

para o que eacute uma virgem

Talvez a resposta esteja dentro da proacutepria mitologia o que estaacute em jogo eacute a natureza de

todo e qualquer desejo (hiacutemeros) daiacute a importacircncia de Afrodite e de Eros ao longo da histoacuteria da

73 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 74 RIVIEgraveRE apud GRANT Op cit

40

humanidade Alem disso o amor e o desejo se inserem em um registro maior do Ser o da

propriedade privada o que vale dizer que haacute uma propriedade inviolaacutevel no espaccedilo social que eacute

o proacuteprio corpo Isso significa que apesar de as diferenccedilas anatocircmicas natildeo serem relevantes para

a constituiccedilatildeo do masculino e do feminino elas determinam uma significaccedilatildeo social e

ideoloacutegica uma vez que o corpo ao longo da Histoacuteria tem sido usado como mercadoria em um

sistema de trocas

As deusas virgens estavam cientes dessa inviolabilidade e sua privacidade subjetiva

inscrevia-se no discurso miacutetico

Frente a Afrodite ceder ao desejo e ser tomado por ele implicaria a Aacutertemis a Atena e a

Heacutestia ver transformado o valor de uso do seu gozo em valor de troca de desejo Por isso a

afirmaccedilatildeo da virgindade e o pedido ao pai (Zeus) para que pudessem manter esse caraacuteter de

castidade que caracteriza a intimidade subjetiva dessas deusas A autorizaccedilatildeo preacutevia ao outro (ao

pai) se imporia a elas para que pudessem usufruir do seu corpo sem o que esse corpo se

transformaria em valor de uso para o gozo de outro e portanto na posse interditada do que eacute

considerado ser intransferiacutevel Essa opccedilatildeo concretiza-se pois em um gesto com um sentido

simboacutelico evidente de registrar a subjetividade Poreacutem nossa proposta eacute de examinar cada uma

das deusas virgens comparando-as e interpretando caracteriacutesticas que julgamos amplas e que soacute

o contexto cultural nessa teia toda pode exprimir Aleacutem disso no processo de compreensatildeo da

virgindade ndash da mesma forma que memoacuteria e esquecimento se complementam ndash natildeo podemos

deixar de discutir o desejo enfocando a deusa do ldquoAmorrdquo e sua representaccedilatildeo para o

entendimento desse conceito no cosmo no que diz respeito a deuses e homens

Quando colocamos que essa posiccedilatildeo de destaque das deusas se daacute atraveacutes de um gesto

estamos interpretando o conteuacutedo ritualiacutestico que essa posiccedilatildeo comemora O rito de passagem

que se opera eacute singular e pleno de significaccedilatildeo As deusas em questatildeo romperam com uma

situaccedilatildeo codificada pelos valores culturais

Com efeito nas formas instituiacutedas do masculino ndash mortal ou imortal ndash e do feminino ndash

mortal ou imortal ndash na tradiccedilatildeo do Ocidente previam-se as relaccedilotildees de trocas entre os sexos

previam-se os rituais de iniciaccedilatildeo para o casamento previa-se a constituiccedilatildeo da famiacutelia previa-

se a procriaccedilatildeo previa-se a forccedila do desejo Nesse gesto de mudanccedila de posiccedilatildeo do feminino

condensa-se a virgindade Estaacute assim instituiacutedo o registro simboacutelico em que a palavra natildeo

41

consegue dar conta e torna-se insuficiente A abrangecircncia cultural e o aspecto do Ser

transcendem a substacircncia do conceito da virgindade A virgindade entre as mulheres (mortais)

passa a ser instaurada e aceita atraveacutes da atitude e da representaccedilatildeo simboacutelica das deusas

(sagradas) O ser humano comum espelha-se e exemplifica-se no divino Constituem-se

diferentes formas de significar

Discutiremos em outro capiacutetulo que como se isso natildeo bastasse ainda podemos descobrir

outros valores nesse gesto distinguindo cada uma dessas deusas na sua individualidade Isso

implica pois nuances e enfoques diferentes na forma de representaccedilatildeo que a virgindade assume

no sujeito E como o discurso freudiano atesta a sexualidade natildeo tem um sentido uniacutevoco mas

uma multiplicidade de significados Sobre essa situaccedilatildeo diz Birman

O sexual seria marcado pela polissemia natildeo podendo pois enquanto palavra e conceito ser reduzido a um campo restrito de referentes Assim a noccedilatildeo de complexidade perpassa o conceito de sexualidade estando entatildeo a dita polissemia inequivocamente articulada ao atributo da complexidade75

O caso da virgindade se a considerarmos como parte da sexualidade nos faz pensar que

ela eacute desalojada do plano comportamental e se aproxima mais da experiecircncia do senso comum

como pode ser compreendido nos registros do discurso do imaginaacuterio social Esse fato nos

permite concluir que natildeo podemos estabelecer normas e nos permite tambeacutem concordar com

Freud

Se bem que eacute oacutebvio o discurso poeacutetico natildeo seja exatamente o do senso comum pode-se dizer que aquele estaacute mais proacuteximo do imaginaacuterio popular do que o cientiacutefico76

Natildeo podemos deixar de reconhecer que os mitos e o discurso poeacutetico satildeo criaccedilotildees do

humano o que revela que foram as experiecircncias dos indiviacuteduos que forneceram elementos para

as epopeacuteias que falam de deusas e deusas de heroacuteis e de pessoas comuns de guerras e de

conflitos passionais

A complexidade a que se refere Birman (acima citado) encaminha a hipoacuteteses

inquietantes pois tambeacutem a representaccedilatildeo da virgindade pode estar vinculada a fatores que satildeo

indecifraacuteveis nesse campo elaacutestico da sexualidade Uma colocaccedilatildeo feita por Birman parece

oferecer um resumo sinteacutetico de uma questatildeo tatildeo ampla e profunda

75 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 p17 76 BIRMAN Joel idem p21

42

Com efeito a sexualidade se inscreve na fantasia antes de mais nada Esse eacute o campo por excelecircncia do erotismo Natildeo existiria pois sexualidade sem fantasia sendo essa sua mateacuteria-prima Seria entatildeo a partir da fantasia como fundamento que a sexualidade poderia assumir formas comportamentais diversificadas O comportamento seria pois o elo final de uma longa cadeia de relaccedilotildees que se inscreveriam primordialmente na fantasia do sujeito O sexo seria portanto um efeito distante do sexual por mais paradoxal que possa parecer essa afirmaccedilatildeo Em contrapartida se existe algo de enigmaacutetico e de obscuro no erotismo a fantasia seria o lugar crucial para o deciframento desse enigma e de iluminaccedilatildeo dessa obscuridade77

Esse enfoque na fantasia pode revelar que de algum modo a sexualidade se materializa

no registro do corpo Embora essa constataccedilatildeo pareccedila ser antagocircnica o que ocorre eacute que natildeo

existiria oposiccedilatildeo entre a fantasia e o corporal ou em outras palavras a sexualidade soacute pode ser

entendida se forem consideradas as forccedilas pulsionais

Eacute interessante pensar que na nossa constataccedilatildeo do mundo grego a incorporaccedilatildeo dos

valores existentes no imaginaacuterio da eacutepoca arcaica parecia identificar tanto o masculino quanto o

feminino com atributos de atividade no que diz respeito agraves deusas virgens Isso parece

evidenciar um consenso social entre os gregos Se Zeus era um deus ativo natildeo menos que ele era

Afrodite no terreno da sexualidade A seduccedilatildeo provocada por Afrodite foi positivamente

qualificada pois ela inscrevia no sujeito o desejo que eacute a marca insofismaacutevel do seu Ser

A questatildeo do desejo foi amplamente discutida por filoacutesofos e revela desde Platatildeo o que

Freud chamou de desamparo e Lacan de falta Em Platatildeo jaacute se encontra essa acepccedilatildeo de que o

desejo implica sempre a incompletude ou seja o sujeito desejante Por isso encontra-se em

Platatildeo como coloca Dumoulieacute78 que o ldquoo que anima o amor o que faz Eros viver eacute o desejo e o

desejo eacute carecircncia eacute faltardquo

O que interessa pois para entender o conceito de desejo eacute o que fundamenta o

pensamento grego E para os gregos da eacutepoca arcaica a relaccedilatildeo do homem com o Ser implicava

jaacute em si uma relaccedilatildeo de desejo Assim Afrodite se afirmava como eterna nesse movimento

coacutesmico de afirmar o desejo como princiacutepio fundador da eternidade do mundo Na Greacutecia cabia

aos mortais manter as tradiccedilotildees inauguradas pelos deuses e como ldquoguardiatildees da memoacuteriardquo

renovar as tradiccedilotildees atraveacutes dos ritos e dos relatos orais e escritos Por isso os aedos inspirados

pelo poder das musas podiam contar as faccedilanhas dos deuses e dos homens de forma que elas

passassem a pertencer ao visiacutevel e pudessem revelar a forccedila desejante do Ser

77 BIRMAN Joel opcit p62 78 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 p25

43

4 - O QUE Eacute TRADUZIR lsquoHOMEROrsquo TENTATIVAS E RISCOS

Assim eacute que a felicidade de um povo corta as asas a seu verso oferece escassa mateacuteria para admiraccedilatildeo e piedade E ainda que o prazer originado do gosto pelas espeacutecies sublimes de escrita possa fazer Vossa Senhoria lamentar o silecircncio das Musas estou persuadido de que vos ireis juntar a mim nos votos de que jamais possamos ser tema apropriado de um poema heroacuteico79

Como ldquoserrdquo um Homero grego em portuguecircs Ou um Hesiacuteodo Ou um rapsodo O

absurdo da indagaccedilatildeo jaacute leva a uma constataccedilatildeo oacutebvia da resposta

Citando um trecho das reflexotildees de Detienne temos que

a liacutengua veicula noccedilotildees o vocabulaacuterio eacute mais um sistema conceitual do que um leacutexico e as noccedilotildees linguumliacutesticas remetem agraves instituiccedilotildees isto eacute a esquemas diretores presentes nas teacutecnicas nos modos de vida nas relaccedilotildees sociais nos processos da palavra e do pensamento80

Se por um lado isso revela a impossibilidade da exatidatildeo em qualquer traduccedilatildeo por

mais teacutecnica e detalhada que ela seja por outro lado revela o desejo do pesquisador de se

aproximar de um estudo etnograacutefico bisbilhotando os textos no original descobrindo indicaccedilotildees

que o uso dos vocaacutebulos das colocaccedilotildees das alternacircncias das recorrecircncias possa significar

Jaacute vimos no capiacutetulo anterior que Milman Parry apontou para a importacircncia dos epiacutetetos

na poesia eacutepica grega Soacute quando se inteirou da profundidade da linguagem e da liacutengua esse

autor pocircde fazer descobertas significativas que introduziram por sua vez novos conceitos e um

novo olhar sobre os epiacutetetos na epopeacuteia e na forma de transmitir a tradiccedilatildeo Como coloca ainda

Detienne ldquoQuaisquer que sejam seus efeitos imediatos ou a longo prazo o escrever a lsquotradiccedilatildeorsquo

transforma virtualmente uma cultura baseada na oralidade na memoacuteria e no memoraacutevelrdquo81 Foi

desdobrando as dobras da epopeacuteia grega que Milman Parry pocircde verificar os desiacutegnios da

tradiccedilatildeo

Alguns aspectos da cultura satildeo dificilmente localizaacuteveis se natildeo houver investigaccedilatildeo do

campo linguumliacutestico e do semacircntico Eacute preciso ldquomaterializarrdquo a liacutengua alvo para conseguir perceber

ndash ainda que de longe e a distacircncia ndash o pensamento miacutetico

79 BLACKWELL apud LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 p 188 80 DETIENNE MarcelOs Gregos e Noacutes Uma Antropologia Comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 p79 81 DETIENNE Marcel Opcit p63

44

O objetivo do tradutor eacute tentar entender o texto estrangeiro natildeo soacute na sua abrangecircncia

mas tambeacutem nos detalhes Aleacutem da visibilidade das imagens graacuteficas que compotildeem o texto ele

tem de captar os vatildeos invisiacuteveis Assim a dificuldade se faz dupla traduzir o diziacutevel e o

indiziacutevel

Venuti inaugura seu texto sobre traduccedilatildeo com a colocaccedilatildeo de que

o trabalho de traduccedilatildeo eacute governado por uma noccedilatildeo de equivalecircncia que evolui e varia equivalecircncia a uma interpretaccedilatildeo de uma forma e um conteuacutedo estrangeiros em geral realizada no processo de traduccedilatildeo e raras vezes articulada independentemente dele82

Daiacute jaacute se nota que natildeo haacute uma uacutenica forma de traduzir e que a traduccedilatildeo eacute atravessada pelo

conhecimento que o tradutor tem da liacutengua estrangeira da cultura alvo e de sua relaccedilatildeo com a

sua cultura de origem Esse referencial de valores culturais domeacutesticos indubitavelmente pode

afastar o tradutor do texto e o torna ldquomais estrangeirordquo Mas ao mesmo tempo tambeacutem a

traduccedilatildeo oferece uma domesticaccedilatildeo pois que o tradutor vai se familiarizando com a cultura

estrangeira no ato de traduzir Nesse sentido a traduccedilatildeo se presta para construir representaccedilotildees

de culturas estrangeiras

Esse movimento de se adequar a uma outra cultura construindo uma posiccedilatildeo de

inteligibilidade para o sujeito acaba tambeacutem criando uma postura ideoloacutegica A escolha de um

texto e de estrateacutegias de traduccedilatildeo pode direcionar o texto para diferentes visotildees e pode ateacute

mesmo mudar ou consolidar cacircnones e paradigmas conceituais aleacutem de influenciar metodologias

de pesquisa enfoques teacutecnicos e praacuteticas que satildeo parte da cultura domeacutestica

Na tentativa de traduzir o trabalho do tradutor reflete sua ideologia Por isso eacute

fundamental que se tenha em mente que o trabalho de traduccedilatildeo admite mais que uma abordagem

Assim por exemplo na tentativa de traduzir os Hinos Homeacutericos procuramos seguir as

pegadas do autor autores do texto original procurando palavras que recuperassem o uso dos

epiacutetetos empregando adjetivos e expressotildees que ressaltassem caracteriacutesticas dos deuses

selecionando verbos que retratassem accedilotildees referentes agrave eacutepoca arcaica ldquoinventandordquo termos que

dessem conta da representaccedilatildeo de imagens do cosmo

Ia surgindo assim uma aacuterea de trabalho inteiramente nova e foi nesse momento que

entendemos a acepccedilatildeo de Venuti a respeito dos ldquoefeitosrdquo da traduccedilatildeo mudamos o nosso modo de

82 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 p173

45

olhar o mundo grego As deusas virgens se presentificaram e a epopeacuteia tomou forma e ganhou

ritmo Parecia-nos impossiacutevel que em menos de um ano pudeacutessemos entender textos em grego

Seraacute que nos aproximamos de um processo de domesticaccedilatildeo

Poreacutem o que eacute fato conhecido eacute que haacute tambeacutem a ideologia do tradutor do tradutor

Dessa forma cada eacutepoca dita seus cacircnones e independentemente deles existe um

ldquocorporativismo acadecircmicordquo que determina estilos de traduccedilatildeo aceitaacuteveis e que se tornam

paradigmaacuteticos Essas avaliaccedilotildees institucionais nem sempre consideram todos os aspectos que

envolvem uma traduccedilatildeo Por exemplo a ediccedilatildeo chamada de LOEB eacute considerada ao lado da

traduccedilatildeo francesa de Jean Humbert des Belles Lettres um claacutessico_ como se chamam todas as

obras consagradas_ e no entanto o autor traduz os Hinos Homeacutericos sem a preocupaccedilatildeo de

manter a estrutura riacutetmica e a beleza poeacutetica dos versos Resume-se a traduzir o significado do

texto de forma ldquoconteudiacutesticardquo Nessa passagem de um idioma ao outro haacute tambeacutem uma

mudanccedila do gecircnero textual de poemas para uma narrativa factual Esse tipo de ocorrecircncia revela

a questatildeo da subjetividade do tradutor De qualquer forma as ediccedilotildees LOEB satildeo um cacircnone para

a traduccedilatildeo de textos gregos porque servem a certos interesses de um grupo especiacutefico Isso

explicita uma outra questatildeo ideoloacutegica qual seja a de que os cacircnones introduzidos pelos falantes

de liacutengua francesa e de liacutengua inglesa tecircm dominado o mundo ocidental Como dissemos as

escolas indicam a ldquopreferecircnciardquo de um momento de uma predominacircncia de poliacutetica linguumliacutestica e

hoje a obra de Caacutessola Inni Omerici eacute tida como um dos manuscritos mais apropriados dado o

seu embasamento de pesquisa e seleccedilatildeo cuidadosa do material

Essa constataccedilatildeo revela a dificuldade de um trabalho de traduccedilatildeo e demonstra que os

ldquoefeitosrdquo em geral refletem os interesses de um grupo cultural particular

De forma ousada quase um desafio na tentativa de correr riscos ao se traduzirem os

Hinos Homeacutericos para o portuguecircs procuramos fazer um trabalho em que acreditaacutevamos ndash e aiacute

entra a nossa individualidade ndash na investigaccedilatildeo do leacutexico no entendimento das funccedilotildees

sintaacuteticas na organizaccedilatildeo do texto e sobretudo na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees culturais

Fomos fazendo comentaacuterios tecendo consideraccedilotildees e propondo questionamentos de questotildees

natildeo resolvidas Aleacutem disso procurou-se manter uma preocupaccedilatildeo meacutetrica dos versos para tentar

conservar uma cadecircncia riacutetmica Mais uma vez a questatildeo da domesticaccedilatildeo e da equivalecircncia a

qual natildeo haacute como se evitar

46

Haacute ainda dois pontos a serem considerados por serem objeto de nosso interesse (1) que

desconhecemos qualquer traduccedilatildeo dos Hinos Homeacutericos agraves deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia em

portuguecircs e dos Hinos V e VI referentes a Afrodite (2) que eacute preciso que se reconheccedila o caraacuteter

da poesia eacutepica

O estilo da poesia eacutepica eacute de inegaacutevel simplicidade conciliando a excelecircncia dos

costumes e a nobreza dos caracteres Eacute uma manifestaccedilatildeo do ldquomaravilhosordquo e do ldquoassombrosordquo

Tanto em Homero como nos rapsodos que o sucederam e que continuaram sua tradiccedilatildeo como

em Hesiacuteodo a histoacuteria dos deuses e dos heroacuteis eram colocadas para a representaccedilatildeo da

ocorrecircncia de fatos extraordinaacuterios e no caso dos Hinos Homeacutericos na exacerbaccedilatildeo de

verdadeiras louvaccedilotildees arrebatadoras dramaacuteticas enfatizando dons e atributos que movem as

paixotildees humanas que as engrandecem e que evocam clamam pela imitaccedilatildeo do que eacute grandioso

para o humano Como diz Lacerda referindo-se ao trabalho de Blackwell83 sobre a eacutepoca de

Homero

Blackwell como se acabou de verificar presumiu que o grego falado no tempo de Homero se encontrava em condiccedilotildees ideais para a composiccedilatildeo eacutepica O que o tornava tatildeo apropriado seria natildeo soacute a coloraccedilatildeo emotiva mas ainda a ausecircncia de artifiacutecios e sutilezas ldquoUma liacutengua totalmente polida no sentido modernordquo sentencia ldquonatildeo desceraacute agrave simplicidade de maneiras absolutamente necessaacuteria na poesia eacutepicardquo84

Esse aspecto ndash de uma simplicidade quase ingecircnua ndash que foi visto por muitos autores

como um lsquoprimitivismorsquo nos parece como coloca Lacerda ldquouma forma particular de poesia (e de

saber)rdquo85 E mais

Visto que o bom poeta imita a ldquonaturezardquo e natureza no caso quer dizer realidade circundante o poeta de uma eacutepoca polida soacute teraacute ecircxito em assuntos refinados86

Isso nos remete agrave questatildeo dos ldquoriscosrdquo que percebemos nas traduccedilotildees agraves vezes tatildeo

polidas apropriando-nos do termo de Blackwell que se tornam distantes da realidade da eacutepoca

dos deuses quando o efeito da poesia eacute muito mais feito pelo sublime do que pelo grandioso que

os tempos modernos inauguraram

83 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer( 1736) Reimpressatildeo reprograacutefica HildesheimNew York Georg Olms 1976 84 LACERDA Sonia Op cit p 186 85 LACERDA Sonia Idem p 186 86 LACERDA Sonia Idem p187

47

Eacute que Homero Hesiacuteodo e os rapsodos como bardos compositores participavam da

amaacutelgama de saberes miacuteticos (que perdemos atraveacutes dos tempos) e os esquemas linguumliacutesticos e os

motivos narrativos proporcionavam a esses poetas a substacircncia representativa e imageacutetica dos

poemas A forma de vida nesse mundo arcaico a religiatildeo ldquoacotoveladardquo com a realidade

cotidiana e a simplicidade da linguagem eram circunstacircncias essenciais para a elaboraccedilatildeo

ldquoliteraacuteriardquo de uma poesia eacutepicamiacutetica

Por isso querer traduzir os poemas desses bardos corre o risco de produzir uma forma

sincreacutetica ldquofalsardquo de poemas sem feiccedilatildeo na medida em que se afastam tanto da perspectiva da

faacutebula miacutetica quanto da linguagem metafoacuterica pois que a mitologia jaacute eacute intrinsecamente

metafoacuterica

Portanto optamos por traduzir os hinos homeacutericos na sua linearidade no entendimento

do movimento do leacutexico da multiplicidade das metaacuteforas na organizaccedilatildeo das faacutebulas sem

qualquer pretensatildeo ldquomimeacuteticardquo ou seja de imitar aquilo que faz parte da inerecircncia do mito

Pareceu-nos por isso saacutebia a posiccedilatildeo adotada por Faulkner87 quando em sua obra apresenta o

Hino Homeacuterico V a Afrodite em grego limitando-se a comentaacuterios linguumliacutesticos e semacircnticos do

texto a traduccedilotildees interpretativas de frases e expressotildees sem no entanto compor uma traduccedilatildeo

sua

Ainda no dizer de Lacerda reportando-se ao mesmo Blackwell

Da mesma maneira que lhe estatildeo vedados o surpreendente e o fabuloso ao poeta moderno eacute interdito descrever accedilotildees sublimes e caracteres heroacuteicos pois este satildeo estranhos aos costumes de seu tempo e agrave sua experiecircncia88

Seja como for parece-nos que a poesia eacutepica pode tambeacutem ser adaptada a tempos

modernos adquirindo um novo enfoque

87 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Oxford Oxford University Press 2008 88 LACERDA Sonia Opcit p188

49

5 - QUE DEUSAS SAtildeO ESSAS

ldquoLa fertilidad de la naturaleza y la fecundidad tanto de la tierra como de los seres humanos fueron consideradas como misterios sublimes y foram divinizadasrdquo89

51 - AFRODITE E A REPRESENTACcedilAtildeO DO DESEJO

Afrodite eacute consagrada como a deusa do amor a deusa Afrogeneacuteia (ΑФρογένεια) que

nasceu da espuma do mar

Como tudo se inicia A lenda mais conhecida nos conta que no princiacutepio Gaia a matildee

universal comeccedila criando a partir de si mesma quer dizer sem seu contraacuterio masculino o que

implica pois que natildeo houve uniatildeo sexual Esse tipo de reproduccedilatildeo nomeada de cissiparidade

deu origem a Urano o ceacuteu Entatildeo nesse momento comeccedilaram a unir-se Gaia e Urano dois

princiacutepios opostos para procriar filhos que tecircm uma individualidade que satildeo marcados por

atributos que tecircm uma funccedilatildeo como potecircncias coacutesmicas A uniatildeo do ceacuteu e da terra se faz sem

regras O ceacuteu acomoda-se sobre a terra cobrindo-a inteira e os filhos gerados natildeo podem sair da

matildee Gaia por falta de distacircncia entre esses dois pais coacutesmicos Inconformada a matildee (Gaia) pede

a um de seus filhos Crono que agrave noite enquanto o ceacuteu (Urano) se debruccedila sobre ela que ele

(Crono) o castre Assim Urano eacute castrado por um golpe de foice amaldiccediloa os filhos e deixa

Gaia liberta Ficam deste modo separados por um grande espaccedilo vazio apartados um do outro

onde os opostos mesmo quando se unem permanecem distintos

Isto posto jaacute se vecirc que natildeo se pode pensar em uniatildeo dos contraacuterios sem que essa ideacuteia

esteja relacionada a um conflito a uma luta de forccedila entre os dois sexos Eacute nessa tessitura de

ldquocorda esticadardquo entre o macho e a fecircmea que surge Afrodite o ldquoamorrdquo Vinda dos testiacuteculos

ensanguumlentados de Urano que caiacuteram na aacutegua ela chega inaugurando uma forma organizada de

engendrar por uniatildeo os contraacuterios presidindo o casamento em um espaccedilo (sociedade grega

patriarcal) em que a mulher tinha como finalidade a ldquoconstruccedilatildeordquo de seu lar (marido e filhos)

89 MAVROMATAKI Maria Mitologia GriegaAtenas Ediciones Xaitali 1997 p 5

50

Como dizem Vernant e Vidal-Naquet ldquonum mundo pautado pela lei de

complementaridade entre os opostos que ao mesmo tempo se afrontam e se harmonizamrdquo90

Outra lenda conta que Afrodite teria nascido da uniatildeo de Zeus91 com Dione uma das

deusas da primeira geraccedilatildeo divina cuja origem diverge segundo diferentes tradiccedilotildees Ora diz-se

que Dione era filha de Urano e Gaia ora de Teacutetis e Oceano como estaacute colocado na Teogonia de

Hesiacuteodo Essa lenda sobre o nascimento de Afrodite natildeo eacute amplamente conhecida e eacute menos

divulgada que a anterior jaacute tatildeo explorada pelos grandes artistas de todos os tempos quer sejam

eles pintores quer poetas

Entretanto verifica-se a alusatildeo a essa lenda na Iliacuteada V 312-374 quando Afrodite filha

de Zeus (v 312 ∆ιός θυγάτηρ ΆΦροδίτη) protege seu filho Eneacuteias (gerado com o mortal

Anquises) e eacute ferida pelo heroacutei Diomedes (por sua vez protegido de Atena) Afrodite entatildeo

corre para o colo de sua matildee Especificamente os versos 370-374 narram o encontro de matildee e

filha descrito com o lirismo da proteccedilatildeo materna e do consolo compreensivo que Dione oferece

a Afrodite

ή δ έν γούνασι πΐπτε ∆ιώνης δι΄ ΆΦροδίτη 370 microητρος έής ή δ αγκάς έλάζετο θυγατέρα ήν χειρί τέ microιν κατέρεξεν επος τ΄ έΦατ΄ έκ τ΄ όνόmicroαζε ldquoτίς νύ σε τοιάδ΄ έρεξε Φελόν τεκος Οΰρανιώνων microαψιδιως ώς ει τι κακόν ρέζουσαν ένωπήrdquo92 374 Mas Afrodite arremessa-se nos joelhos de Dione 370 sua matildee e ela tomou sua filha nos braccedilos com a matildeo acariciou-a e fez uso das palavras dizendo ldquoquem agora dos filhos de Urano querida crianccedila fez coisas a ti sem razatildeo como se vocecirc um mal tivesse praticado agrave frente de todosrdquo93 374

90 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 p 61 91 Zeus eacute considerado o deus mais importante do Panteatildeo grego Identifica-se com a luz tal como o raio e reina poderoso no Olimpo morada de todos os deuses Eacute filho de Crono e Reacuteia Crono devorava os filhos agrave medida que nasciam Quando Zeus nasceu Reacuteia deu uma pedra enrolada em um pano a Crono que pensando ser a crianccedila engoliu-a Desta forma Zeus foi salvo e mais tarde tomou o poder das matildeos do pai assim como Crono havia tirado o poder de Urano castrando-o 92 HOMER The Iliad v 1 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 93 Traduccedilatildeo nossa apenas para efeito de verificar o sentido do trecho que se refere agrave origem de Afrodite

51

Como se vecirc natildeo se pode deixar de considerar essa outra tradiccedilatildeo do nascimento de

Afrodite uma vez que a Iliacuteada que eacute uma das obras mais lidas aponta para esse fato que eacute

representativo de uma linhagem que privilegia o lugar do feminino na famiacutelia patriarcal dando

ecircnfase agrave figura materna

Um outro aspecto em Afrodite que merece ser destacado eacute a questatildeo do movimento

Afrodite eacute errante Diferentemente das deusas virgens que possuem um domiacutenio especifico

Afrodite perambula por diversos espaccedilos Ela chega mesmo a invadir a ldquoaacuterea delimitadardquo das

outras deusas

Melhor explicando essa ideacuteia podemos reportar-nos a trechos da Iliacuteada e da Odisseacuteia

bem como dos Hinos Homeacutericos reveladores de seu caraacuteter inquieto fugidio onipresente A

guerra estaacute pela sua natureza relacionada agraves atividades da deusa Palas Atena que herdou a

astuacutecia materna e o espiacuterito combatente do pai como eacute comentado adiante Poreacutem Afrodite entra

e move-se nesse espaccedilo envolvendo-se de forma que natildeo pode ser controlada Como jaacute vimos no

canto V da Iliacuteada (312-374) Afrodite vai ao campo de batalha e Diomedes lhe diz em altos

brados

Filha de Zeus94 poderoso conserva-te longe da luta 348 Ou seduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedila Se ainda sentires desejo de ver um combate de perto creio que soacute o nome ldquoguerrardquo haacute de grande pavor inspirar-te Atormentada Afrodite enquanto ele falava afastou-se95 352

As palavras de Diomedes deixam claro novamente essa tradiccedilatildeo da origem de Afrodite e

o fato de que a guerra natildeo eacute espaccedilo para seduccedilatildeo para o feminino que natildeo leva a seacuterio uma

atividade complementar que faz parte da organizaccedilatildeo poliacutetico-social do povo grego Atena ao

contraacuterio move-se dentro da batalha seu campo de domiacutenio como estrategista e essa eacute uma de

suas funccedilotildees

A propoacutesito a Iliacuteada relata um episoacutedio de guerra que se desenvolve a partir da

representaccedilatildeo do desejo Eacute vinculado agrave ideacuteia de uniatildeo e de conflito a que nos referimos

anteriormente que tem iniacutecio uma guerra que envolve deuses e deusas heroacuteis e homens O

conflito eacute gerado por Afrodite na sua proposta de manter o reinado da seduccedilatildeo Natildeo haacute homem

94 Grifo nosso 95 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 p 145

52

que resista agraves tentaccedilotildees de Afrodite ou melhor difiacutecil eacute resistir aos seus ardis femininos Como

diz Diomedes a ela ldquoseduzir natildeo te basta mulheres privadas de forccedilardquo96

Como se sabe e a tiacutetulo de recordaccedilatildeo a histoacuteria da Iliacuteada na verdade comeccedila no ldquoceacuteurdquo

Conta a lenda que em uma grande festa em que se celebrava o casamento a uniatildeo de Peleu e

Teacutetis todos os deuses haviam sido convidados exceto Discoacuterdia (Eacuteris) E por ser Discoacuterdia

insultada e indignada fez rolar uma maccedilatilde pelo chatildeo da entrada ndash chamada lsquopomo da discoacuterdiarsquo ndash

proacuteximo ao assento das deusas Hera Atena e Afrodite Quando Hera pegou a maccedilatilde leu o que

estava escrito ldquoPara a mais belardquo Como reaccedilatildeo feminina Hera imediatamente achou que a maccedilatilde

era para si proacutepria Atena reagiu e Afrodite enfaticamente disse que era para ela Nesse clima de

discoacuterdia foi chamado Zeus que cauteloso e conhecedor do perigo de apontar qualquer uma

delas como a mais bela pois as outras duas se vingariam decidiu nomear Paacuteris tambeacutem

conhecido como Alexandre um dos filhos de Priacuteamo para decidir a questatildeo Hermes o deus

mensageiro levou as trecircs ateacute o Monte Ida onde estava Paacuteris em Troacuteia Laacute cada uma delas

ofereceu uma forma de suborno a Paacuteris em troca do tiacutetulo

Atena propocircs conceder-lhe o dom de ser um guerreiro vitorioso Hera lhe ofereceu o

reinado sobre toda a Aacutesia e Afrodite ofereceu-lhe a mulher mais bela Helena de Esparta Paacuteris

entregou a maccedilatilde de ouro a Afrodite

Eacute interessante verificar que Afrodite gera um conflito tal que troianos e gregos lutam e

morrem pelo rapto de uma mulher pois Helena jaacute era casada com Menelau Aleacutem disso o

feminino revela-se nas outras duas deusas Hera e Atena em forma de vinganccedila Hera torna-se

inimiga de Troacuteia berccedilo de Paacuteris por quem ela e Atena foram preteridas Assim por ocasiatildeo do

rapto de Helena por Paacuteris Hera faz com que o navio em que estavam os dois se afaste do

caminho de Troacuteia e se dirija para Siacutedon na costa siacuteria

Afrodite torna-se protetora de Troacuteia durante a guerra

As deusas e suas reaccedilotildees revelam um caraacuteter humano em que as emoccedilotildees ocupam um

papel preponderante tornando a epopeacuteia homeacuterica real tocante e ateacute mesmo com um certo

ldquolirismordquo como jaacute rotulamos anteriormente em um momento de ousadia Mas os deuses ndash e

nesse caso as deusas ndash soacute fazem sentido se houver o ldquohumanordquo as paixotildees que determinam

concorrecircncias voluacutepias enganos oacutedios terriacuteveis desordens desmedidas lutas Em se

96 HOMERO Idem v 349

53

considerando esse aspecto fundamental do mito grego o certo e o errado o que pode e o que natildeo

pode o que deve e o que natildeo deve enfim valores morais que os homens estabeleceram ao

longo dos tempos eles natildeo existiam como valores eacuteticos entre os gregos da eacutepoca arcaica Desse

modo a moral de Afrodite eacute o desejo poder contra o qual os mortais nada podiam pois os

homens nada valiam sem seus deuses Em outras palavras as accedilotildees humanas (de Paacuteris e de

Helena) soacute existem por intervenccedilatildeo divina Cabe aos deuses a direccedilatildeo de suas intervenccedilotildees ainda

que possam parecer desleais mas que em geral tentam ajudar aquele ou aqueles que procuram

proteger Com a proteccedilatildeo dos deuses aos mortais nada eacute impossiacutevel e assim como Atena

protege Diomedes no combate Afrodite vela por Paacuteris o troiano contra Menelau que teve sua

mulher raptada

O canto III da Iliacuteada mostra um momento de grande forccedila e poder de Afrodite quando

Alexandre (Paacuteris) filho de Priacuteamo (de Troacuteia) luta com Menelau (marido ofendido) e embora

Menelau saia vencedor do embate (graccedilas agrave proteccedilatildeo de Atena) Afrodite salva Paacuteris da morte

(das investidas violentas das armas de Menelau) e o leva a salvo ateacute Helena A proacutepria Helena

reprova a atitude da deusa ante a vitoacuteria de Menelau poreacutem Afrodite chama-lhe a atenccedilatildeo para

seu poder dizendo

Natildeo me provoques criatura infeliz porque natildeo aconteccedila 414 que te abandone e te venha odiar quanto agora te prezo Se entre Acaios e Teucros97 fizesse surgir oacutedio infausto contra tu proacutepria haverias de ter um destino bem triste98 417

Ouvindo essas palavras Helena ficou cheia de medo (έδδεισεν v 418) e seguiu a deusa

que no texto homeacuterico eacute indicada com a palavra δαίmicroων v 420 com sentido de terriacutevel

poderosa de onde vem em portuguecircs o termo democircnio usado na traduccedilatildeo de Nunes

e sem dizer mais palavra se foi99 no veacuteu branco envolvida 419 sem que as troianas a vissem servia de guia o democircnio100 420

A influecircncia de Afrodite eacute decisiva na uniatildeo do casal Paacuteris-Helena e essa ligaccedilatildeo natildeo

dependeu do desejo dos mortais mas do ldquodestinordquo imposto pela deusa

97 Equivalente a gregos e troianos No texto Τρώων καί ∆αναών (v 417) sendo que ∆αναών significa descendente de Dacircnaos 98 HOMERO Op cit Canto III 414-417 p 115 99 Referindo-se a Helena 100 HOMERO Op cit Canto III 418-420 p 115

54

Afrodite tambeacutem protege na guerra de Troacuteia Eneacuteias seu filho com Anquises mas isso eacute

uma outra histoacuteria Aqui a lenda miacutetica enreda temas de conceitos que se sobrepotildeem primeiro a

questatildeo que existe entre a diferenccedila essencial da imortalidade dos deuses e da mortalidade

humana Eneacuteias eacute fruto de uma ligaccedilatildeo entre a deusa Afrodite e o mortal Anquises o que jaacute

revela que como descendente que tem traccedilos humanos natildeo goza do privileacutegio da imortalidade

Segundo apesar de Afrodite estar sempre tecendo a seduccedilatildeo e provocando a uniatildeo sexual entre

deuses e homens o Hino Homeacuterico V que faz parte de uma sequumlecircncia de trinta e trecircs hinos de

eacutepocas e autores diferentes posteriores agrave Iliacuteada e a Odisseacuteia mas que mantem tambeacutem uma

dicccedilatildeo eacutepico-narrativa narra a seduccedilatildeo da proacutepria Afrodite por Anquises e a concepccedilatildeo de

Eneacuteias Veja-se o trecho seguinte retirado do Hino Homeacuterico V 247-255 em que Afrodite

reconhece seu deslize por ter se deixado envolver por um homem mortal

∆ΰτάρ εmicroοί microέγ ονειδος έν αθαvάτοισι θεοΐσιν 247 Έσσεται ήmicroατα πάντα διαmicroπερές έίνεκασεΐο οί΄ πριυ ε΄microούς ο΄άρους και υητιας αΐς ποτε πάντας αθανάτους συνέmicroιξα καταθνητήσι γυναιξί 250 τάρβεσκον πάντας γάρ εmicroόν δάmicroνασκε νόηmicroα νΰν δέ δη ουκέτι microοι στοmicroα χείσετι έξονmicroήναι τούτο microετ΄ άθανάτοισν έπεί microαλα πολλόν α΄άο θην σχέτλιου οΰκ όνοταστόν άπεπλάγχθην δέ νόοιο παΐδα δ΄ ύπό ζώνη έθέmicroηv βροτώ εύνηθέΐοα101 255

E agora sobre mim uma grande censura entre os deuses imortais 247 haveraacute todos os dias continuamente por causa de vocecirc aqueles que se amedrontaram de minhas zombarias e ardis com os quais alguma vez fiz todos os imortais se envolverem com mulheres mortais 250 pois meu propoacutesito submeteu todos a mim Mas agora minha boca natildeo mais teraacute coragem de mencionar isso entre os imortais desde que fiquei grandemente atormentada infeliz sem palavras tendo perdido o juiacutezo trago uma crianccedila debaixo do cinto tendo colocado ao leito um mortal102 255

Algumas observaccedilotildees se fazem necessaacuterias (a) apesar de natildeo haver um conceito

estabelecido de eacutetica e moral entre os filoacutesofos preacute-socraacuteticos a ideacuteia que parece estar vinculada

com a palavra ŏνειδος (censura reprovaccedilatildeo) estaacute relacionada a um sentido de organizaccedilatildeo na

junccedilatildeo entre os opostos que a narrativa da histoacuteria da origem da separaccedilatildeo da terra e do ceacuteu trata

e agrave qual jaacute nos referimos Afrodite como deusa inquieta e errante voluptuosa e voluacutevel tinha a

101 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 p 67 102 Traduccedilatildeo nossa

55

intenccedilatildeo de desequilibrar de afetar a ordem entre os contraacuterios pois a contradiccedilatildeo estaacute associada

com a natureza primeira da condiccedilatildeo de procriaccedilatildeo Nesse jogo de ambivalecircncia tambeacutem os

imortais satildeo enredados pela mortalidade conhecendo a inseguranccedila a fraqueza a brevidade da

vida humana Assim a implicaccedilatildeo de censura daacute-se pelo fato de que os imortais atraveacutes dos

desiacutegnios do desejo reconhecem uma tensatildeo que estaacute colocada como uma realidade humana que

eles passam a identificar no seu relacionamento com os mortais E a presenccedila da morte natildeo podia

ser aceita pelos deuses que a viam como degradante e vil (b) Embora natildeo tenha sido citado no

trecho acima o mesmo Hino Homeacuterico V menciona que o proacuteprio Zeus o deus todo poderoso do

Olimpo que tambeacutem havia sido viacutetima das investidas de Afrodite para dar-lhe uma liccedilatildeo faz

com que ela proacutepria conheccedila um mortal em uma situaccedilatildeo que envolva a intimidade conjugal Eacute o

que revela o verso 255 com a palavra έύνηθεΐσα isto eacute colocar no leito nupcial onde se daacute a

uniatildeo dos opostos e onde se concretiza a concepccedilatildeo (c) Por isso Afrodite fala das consequumlecircncias

de seu ato pois entatildeo sabe que traz ldquouma crianccedila debaixo do seu cintordquo A palavra ζώνη ao

mesmo tempo que se refere a cinto refere-se agrave lsquocinturarsquo ao lsquoventrersquo

A partir daiacute temos pois uma outra consideraccedilatildeo a questatildeo da descendecircncia Essa tese eacute

amplamente discutida por Faulkner103 que comenta como essa temaacutetica (dos ldquoAineiadairdquo) eacute

delineada desde o proacutelogo do poema e estaacute presente nos jogos sedutores que Afrodite impotildee a

Anquises fazendo-se passar por filha de Otreu rei da Frigia Afrodite convence Anquises das

profecias do deus Hermes que previu a uniatildeo deles (Τέκνα Τεκεΐσθαι v 127) atraveacutes de

atividades conjugais e o nascimento de um filho Deste modo o que ela coloca ironicamente

como fraude vem a tornar-se verdade Nem Afrodite escapa de ldquosua bocardquo

As colocaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo a Eneacuteias filho de uma deusa com um mortal o destaque

sobre os atributos fiacutesicos favoraacuteveis de Afrodite e de Anquises a profecia de seu nascimento

parecem dar ecircnfase agrave famiacutelia descendente de Eneacuteias

O que Faulkner104 argumenta eacute que apesar de subtemas ligados ao poema como a ironia

de Afrodite suas zombarias a relaccedilatildeo deus imortal ndash homem mortal no Hino a Afrodite o poeta

pretendeu glorificar a linhagem de uma famiacutelia ldquoEneidanardquo (Aineiadai)

103 FAULKNER Andrew Op cit 104 FAULKNER Andrew Op cit

56

Ainda assim o que jaz como princiacutepio da linhagem eacute uma fraude o que natildeo deixa de ser

uma forma de violecircncia que vem sempre acompanhada do desejo talvez um sentimento de posse

(pois Afrodite queria apossar-se de Anquises dada a sua beleza) que emana do contexto do ser

amado Eacute Anquises que lhe provoca o desejo Retomando o que jaacute foi colocado no item 22 vecirc-

se claramente o jogo de forccedilas em Afrodite a seduccedilatildeo persuasiva (peithoacute) e a ilusatildeo enganosa

(Apaacuteteacute)

O que estaria sendo revelado nesse trecho dos Hinos Homeacutericos em que Afrodite natildeo

resiste aos encantos de Anquises Talvez que a questatildeo dos opostos ndash que envolve sempre uma

tensatildeo como jaacute vimos ndash se inicie pelo ldquoolharrdquo Assim toda genealogia humana passa pela

questatildeo de ldquoolharrdquo e do reconhecimento desse olhar ou seja pelo sexo que eacute uma forma de

apoderar-se isto eacute de poder Nesse sentido a condiccedilatildeo humana que resulta do contexto da

sexualidade pode vir a ser uma condiccedilatildeo traacutegica como foi demonstrado e explorado na trageacutedia

grega

Eneacuteias eacute gerado a partir da seduccedilatildeo e do erotismo A descendecircncia se daacute como

consequumlecircncia como resultado de um ldquofasciacuteniordquo105 como diratildeo os romanos Mas o que fica claro

na questatildeo genealoacutegica eacute que o resultado da ligaccedilatildeo entre os opostos eacute que levaraacute adiante esse ato

e que o proclamaraacute nas geraccedilotildees futuras Como coloca Quignard ldquonous sommes venus drsquoune

scegravene ougrave nous nrsquoeacutetions pasrdquo106

Assim o Hino Homeacuterico V a que estamos nos referindo enfatiza o olhar de Afrodite e

de Anquises A concepccedilatildeo de Eneacuteias deu-se pelo olhar A questatildeo do olhar natildeo poderia deixar de

ser considerada pelos saacutebios gregos

Quando Afrodite desejosa apresenta-se (vs 75 ndash 142) a Anquises como uma simples

mortal o que inaugura esse encontro eacute o olhar de Anquises pois ele percebe o objeto de amor agrave

sua frente Eacute o que diz o texto grego

Αγχίσης δ΄ δρόων107 έΦράξετο θαύmicroαιν΄εν τε 84 ει δός τε microέγεθός τε καί έίmicroατα σιγαλο΄εντα 85

105 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 p 11 O autor faz um estudo comparando a palavra romana ldquofascinusrdquo com a palavra grega ldquophallosrdquo Ele diz ldquoLe lsquofascinusrsquo arrecircte le regard au point qursquoil ne peut srsquoen deacutetacherrdquo ou seja que ldquoo fasciacutenio imobiliza o olhar a tal ponto que natildeo se pode desprender-se delerdquo 106 QUIGNARD Pascal Idem p 10 ldquoViemos de uma cena onde natildeo estaacutevamosrdquo 107 Grifo nosso para assinalar o verbo olhar que tambeacutem significa entender

57

Portanto Anquises quando a viu observou-a bem e admirou sua aparecircncia e suas

vestimentas

O autor descreve em poucas palavras o olhar de atraccedilatildeo de cobiccedila mesmo que faz parte

do jogo de seduccedilatildeo O olhar do mortal Anquises espelha a forma de exercer o olhar do masculino

e revela o entendimento da figura feminina no seu modo de Ser de portar-se de vestir-se de ser

mulher Isso indica o interesse do homem grego pelo belo e a descriccedilatildeo que se segue mostra o

olhar investigador e atento do poeta conhecedor do espaccedilo feminino de seu tempo

Apoacutes essa cena da descoberta pelo olhar Afrodite eacute conduzida de olhos ldquoabaixadosrdquo

(κατ΄ οmicromicroατα καλα βαλοΰσα v 156) ndash revelando modeacutestia ndash por Anquises Novamente o olhar

complementando o gesto decoro vergonha recato O que quer a deusa dizer com isso O texto

leva agrave accedilatildeo seguinte a uniatildeo de Anquises e Afrodite homem mortal e deusa imortal no mesmo

leito A respeito ocorre-nos um trecho das Eacuteleacutegies de Properce

Les yeux dans lrsquoamour sont les guides (oculi sunt in amore duces) Ocirc joie drsquoune nuit lumineuse Ocirc toi petit lit (lectule) heureux de mon plaisir Que de mots eacutechanges agrave la clarteacute des lampes Et la lumiegravere enleveacutee (sublato lumine) dans la nuit que de combats de lrsquoamour Une seule nuit peut faire de nrsquoimporte quel homme un dieu (nocte una quivis vel deus esse potest)108

O leito de Anquises que recebe Afrodite eacute cuidadosamente descrito no Hino Homeacuterico V

O cliacutemax do arrebatamento amoroso ocorre principalmente nos versos 155-167 Eacute quando o

leito que os acolhe revela a forccedila do heroacutei Anquises nas peles de ursos e de leotildees que jaacute se

submeteram a ele e agora jazem estendidos para receber Afrodite tambeacutem ela submissa a seu

poder e como aponta Faulkner para esse fato

By doing so109 the animal skins become more than just an abstract symbol of Anchisesrsquo power and underline Aphroditersquos own loss of power in the face of Anchisesrsquo momentary strenght she is now conquered on top of the very beasts she earlier controlled110

108 PROPERCE Eacuteleacutegies II 15 In QUIGNARD Pascal Op cit p 135 ldquoOs olhos no amor satildeo guias Oh alegria de uma noite luminosa Oh pequeno leito feliz de meu prazer Quantas palavras trocadas agrave claridade das lacircmpadas E a luz arrebatada na noite quantos combates do amor Uma uacutenica noite pode fazer de qualquer homem um deusrdquoTraduccedilatildeo nossa 109 ldquoBy doing sordquo estaacute relacionado agrave sentenccedila anterior referindo-se ao fato de que quando Afrodite estava atravessando o monte Ida para dirigir-se a casa de Anquises Afrodite submeteu os animais selvagens agrave doccedilura do seu desejo fazendo-os copular 110 FAULKNER op cit p 227 ldquoAo fazer isso as peles dos animais se tornam mais do que um siacutembolo abstrato do poder de Anquises e realccedilam a perda de poder da proacutepria Afrodite face agrave forccedila momentacircnea de Anquises agora ela eacute conquistada em cima dos proacuteprios animais que ela antes controlourdquo Traduccedilatildeo nossa

58

O mesmo autor chama a atenccedilatildeo para o fato de que quando Afrodite se despe sua perda

de forccedila pode ser comparada agraves cenas iniciais quando entatildeo sua aparecircncia estaacute recoberta pelas

roupas o que simbolizava antes seu poder enfraquece ao desnudar-se Segundo Quignard em

outros trechos de textos de Homero o mesmo verbo grego mignumi que eacute usado para referir-se

ao jugo de uma mulher eacute o que coloca agrave morte um adversaacuterio Afrodite foi vencida por um

mortal ou venceu-o o proacuteprio desejo

Em nosso ponto de vista natildeo pode ser deixado de lado o aspecto que favorece a posiccedilatildeo

de Anquises no intercurso propondo pois uma questatildeo de gecircnero na sociedade patriarcal Por

isso talvez Faulkner veja nessa atitude de forccedila de Anquises um poder transitoacuterio

Quando Anquises se aproxima de Afrodite a cena do ldquodespir-serdquo revela a fragilidade

feminina frente ao ldquophallosrdquo grego em uma sociedade que tinha a mulher como objeto de

submissatildeo ao homem e de procriaccedilatildeo Afrodite representa esse contexto feminino tanto na sua

submissatildeo agrave uniatildeo com Anquises quanto na profecia do filho que vai ser gerado pois eacute o que se

espera do leito nupcial

Especialmente os versos 162 163 164 165 revelam dois aspectos de grande importacircncia

Um deles eacute que a deusa Afrodite eacute descrita (e eacute tambeacutem representada na pintura e na escultura)

usando brincos e colares aleacutem de outras joacuteias A descriccedilatildeo do nome das joacuteias tem sido objeto de

estudo linguumliacutestico para a precisatildeo do significado delas e para entendimento da eacutepoca em que o

Hino V possa ter sido escrito Vaacuterios autores tecircm estudado o vocabulaacuterio diligentemente e em

Faulkner111 as palavras gregas έλικας e κάλυκάς tecircm um sentido incerto O consenso tem sido

optar pela traduccedilatildeo de brincos em forma de flor de botatildeo para κάλυκες enquanto tem-se suposto

que έλικας indique pulseira uma vez que o significado de έλικας estaacute relacionado com alguma

forma de espiral

Outro fato relacionado com esses versos eacute a forma como a accedilatildeo eacute descrita remetendo agrave

retirada das peccedilas de roupa criando um contexto eroacutetico e um prenuacutencio do ato sexual Daacute-se o

desvendamento de Afrodite no momento em que Anquises (λΰσε δέ οί ζώνην) desata o cinto dela

Afrodite foi subjugada A cena evoca um clima de misteacuterio enquanto Anquises e Afrodite estatildeo

ligados pela atraccedilatildeo do olhar Quando Afrodite eacute ldquodesnudadardquo no ato de ter seu cinto retirado o

olhar cede lugar para a concretizaccedilatildeo da accedilatildeo Agora o que interessa eacute a sombra da mortalidade

111 FAULKNER op cit p 168-169 230

59

que paira sobre eles ele um transgressor que se apropria da deusa ela atormentada pelo seu

gesto de fraqueza

Apoacutes o coito Afrodite recompotildee-se sozinha assume sua forma divina acorda Anquises

que ela havia feito adormecer Esse trecho (versos 168 ndash 183) revelam o terror que o sexo pode

provocar apoacutes a constataccedilatildeo do ato e evocam as reaccedilotildees sugeridas pelo olhar

Afrodite conclama Levante-se filho de Daacuterdano por que vocecirc adormeceu pesadamente

Considere se eu tenho a mesma aparecircncia de quando vocecirc me viu com seus olhos pela primeira

vez

No Hino Homeacuterico

Ορσεο ∆αρδανίδη τι νυ νηγρετον υπνον ίανεις 177 καί Φράσαι ει τοι όmicroοίη έγών ίνδάλλοmicroαι είναι οίην δη microε το πρωτον έν οΦθαλmicroοίσι νόησας 179

Quando Anquises acorda novamente revela-se a questatildeo do olhar pois ao ver o pescoccedilo

e os olhos adoraacuteveis de Afrodite (οmicromicroατα κάλ΄ ΆΦροδίτης v 181) ele se amedronta e dirige seu

olhar para outro lado (τάρβησέν τε καί οσσε παρακλιδόν ετραπευ αλλη v 182)

A presenccedila da deusa impotildee reverecircncia respeito e a atitude de Anquises desviar o olhar eacute

o que se espera diante do divino

A seguir as palavras que Anquises profere configuram-se como uma oraccedilatildeo Ele repete

que seu olhar (όΦθαλmicroοΐσιν v 185) havia captado o divino na aparecircncia de Afrodite embora ela

natildeo tenha dito a verdade Pede entatildeo que ela se apiede dele

Eacute interessante relacionar pois esses versos (188-190) em que Anquises se preocupa com

seu vigor e pede proteccedilatildeo agrave deusa para natildeo ser deixado paraliacutetico entre os homens castigado por

ter transgredido o sagrado com os versos 153-154 em que Anquises exclama que iria de boa

vontade para a casa de Hades (i eacute agrave morte) desde que ele tivesse ldquosubidordquo agrave cama da mulher

bela como as deusas (palavras que ele pronunciou a Afrodite antes do acasalamento julgando

ser ela uma jovem mortal)

Essas cenas refletem o poder do sexo masculino face ao desejo que o coito remete

Agrave cena de forccedila e domiacutenio do homem frente agrave submissatildeo feminina sucede o retorno agraves

origens e ele coloca-se diante da deusa agora vista como mater cheia de poder divino

implorando-lhe a vida ndash garantida pelo acolhimento do ventre feminino Vecirc-se pois nesse gesto

o eterno conflito de forccedila entre os gecircneros O poder do ldquophallosrdquo grego soberano no ato sexual

60

curva-se ao poder da mulher o feminino como princiacutepio das origens A esse respeito fazemos

nossas as beliacutessimas palavras de Quignard

La premiegravere domus est le ventre de la femme La deuxiegraveme domus est la domus dans laquelle lrsquohomme rapte les femmes pour se reproduire et reproduire la domus La troisiegraveme domus est la tombe112

Sabiamente o autor usa a palavra domus (grego δόmicroος) em seu texto o que fornece um

enredamento de sentidos contidos todos no mesmo contexto Pode-se pois entender como

ldquocasa habitaccedilatildeo quarto templo morada dos deuses famiacuteliardquo113

Como diz Quignard o homem cria raiacutezes com seu desejo vincula-se a ele da mesma

forma que o lactente com sua matildee Isso faz parte da cena histoacuterica em que a ontogecircnese do

homem estaacute enraizada na filogecircnese pois como mostraram os gregos atraveacutes do nascimento de

Afrodite a vida estaacute enraizada no universo quer seja atraveacutes da umidade do oceano no ritmo de

suas ondas quer seja atraveacutes do misteacuterio do ceacuteu na trilha de seus astros incandescentes quer

seja atraveacutes da terra que floresce que nutre que acolhe que se transforma e que frutifica

Dessa forma o desejo estaacute enraizado na histoacuteria da origem da terra e a chegada de

Afrodite estaacute vinculada natildeo apenas ao desejo mas tambeacutem agrave reproduccedilatildeo

Mas a histoacuteria do desejo apresenta outras variantes Assim de acordo com a tradiccedilatildeo

miacutetica Afrodite era casada com Hefesto (filho de Zeus e de Hera) deus protetor do fogo e um

haacutebil criador Diz tambeacutem a lenda que Hefesto era coxo e que o casamento de Afrodite e de

Hefesto foi imposto por Hera Era uma maneira de ldquounir el fuego de Hefesto con la fuerza

fecundadora de Afrodita la belleza del arte con la belleza de la naturalezardquo114

No canto VIII (versos 266-367) da Odisseacuteia Odisseu acompanha na voz de um aedo a

saga dos amores de Ares com a formosa Afrodite (Άρεος Φιλότητος εύστεΦάνου τ΄ΆΦροδίτης)

Apesar de o texto apresentar uma narrativa eroacutetica em que o casal de amantes eacute visto na

sua intimidade a palavra usada para representar a uniatildeo desse amor (seria uma forma de

significar a ligaccedilatildeo carnal atraveacutes da qual o desejo se concretiza) eacute Φιλότητος que em periacuteodo

posterior como jaacute se ressaltou anteriormente seraacute usado como amor que revela amizade 112 QUIGNARD op cit p 224 ldquoO primeiro domus eacute o ventre da mulher O segundo domus eacute o domus no qual o homem se apossa das mulheres para se reproduzir e reproduzir o domus O terceiro domus eacute a tumbardquo Traduccedilatildeo nossa Mantivemos o uso de domus como no original Diferentemente do autor consideramos a forma masculina do grego δόmicroος 113 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 p 151 114 MAUROMATAKI Maria Op cit p 87

61

Dando sequumlecircncia agrave histoacuteria de Hefesto e Afrodite Heacutelio o Sol contou a Hefesto sobre os

encontros secretos de Afrodite e Ares o deus da guerra Hefesto enraivecido planejou pegaacute-los

em uma armadilha (δόλον) e por isso teceu com seu engenho admiraacutevel uma rede de metal que

se assemelhava a uma teia de aranha tal o seu ardil em executaacute-la de forma que natildeo pudesse ser

vista Ares e Afrodite foram ao leito (λέχος δ΄ ήσχυνε και εύνην)115 na proacutepria casa de Hefesto

(ΗΦαιστοιο δόmicroοισι) pois Hefesto havia dito que ia se ausentar Ares ardia em desejo

(Φελότητος) e depois que os amantes adormeceram abraccedilados acordaram e viram-se envoltos na

rede fina impossibilitados de sair dali Para ridicularizaacute-los Hefesto chamou todos os deuses

para assistir a esse espetaacuteculo e dizia que Afrodite comprazia-se com Ares (novamente o verbo

Φιλεω) e natildeo com ele por ser coxo Apoacutes a intervenccedilatildeo de alguns deuses Hefesto finalmente

decidiu libertar os amantes

Alguns aspectos relacionados agrave questatildeo do desejo podem ser brevemente observados (a)

relacionado ao desejo estaacute a problemaacutetica da traiccedilatildeo Assim se entendermos o conceito de poder

subjacente agrave uniatildeo sexual verificamos que a situaccedilatildeo realmente pode ser equiparada a um

campo de batalha isto eacute haacute o(s) vencedor(es) e o(s) perdedor(es) (b) Em se tratando de uma

lenda simboacutelica constata-se que o deus envolvido eacute Ares que significa o deus da guerra

responsaacutevel pela violecircncia e pelos enfrentamentos entre os homens Ares eacute realmente descrito

como tendo um caraacuteter agressivo e explosivo e alguns autores explicam que esses atributos

estavam relacionados ao seu lugar de origem pois os antigos habitantes da Traacutecia tinham

costumes violentos e faziam uso da forccedila bruta Assim representa-se a uniatildeo sexual de forma

simboacutelica em que o ato de desejo (Afrodite) eacute subjugado pela forccedila violenta (Ares) (c) Eacute

interessante considerar como o marido traiacutedo procura uma estrateacutegia de vinganccedila calculada Sua

intenccedilatildeo eacute realmente o dano Daiacute a palavra lsquoδολοςrsquo (dolo) usada no texto (d) Todo ato de

traiccedilatildeo pressupotildee uma atitude de reparo Assim quando Afrodite eacute libertada vai a Ilha de Pafos

em Chipre onde eacute recebida pelas Caacuterites que a banham e a ungem com oacuteleo sagrado Isso

parece-nos uma forma de renovar a lsquovirgindadersquo o que equivaleria a um rito de purificaccedilatildeo como

o de Hera que durante os rituais em sua honra tinha sua virgindade renovada Tambeacutem depois o

cristianismo introduziraacute o batismo como ato de purificaccedilatildeo e transformaccedilatildeo (e) O termo 115 A palavra λέχος tem o significado de ldquoleitordquo mas em alguns contextos tambeacutem pode significar ldquouniatildeo clandestinardquo Neste caso junto da palavra εύνην quer dizer ldquoleito nupcialrdquo o que proclama as atividades sexuais cf BAILLY op cit p 1185 Em PEREIRA opcit p 346 encontra-se aleacutem de lsquoleitorsquo a traduccedilatildeo lsquoninhorsquo e lsquotumbarsquo

62

empregado por Hefesto ao referir-se a Afrodite ao reclamar da situaccedilatildeo para Zeus eacute sugestivo

da propriedade de descontrole do desejo que escapa do domiacutenio do indiviacuteduo O aspecto de

irracionalidade que une animais humanos e deuses aproximando-os pela sua filogecircnese ndash como

jaacute se colocou antes ndash estaacute expresso na palavra κυνώπιδος que tem o sentido de expressar o lsquoolhar

de uma cadelarsquo revelando uma imprudecircncia e um atrevimento (f) A questatildeo do olhar nessa cena

eacute relevante pois haacute os olhares dos deuses sobre os amantes e sobre o trabalho astucioso de

Hefesto haacute o olhar de anguacutestia do marido traiacutedo haacute o olhar de Afrodite (g) Finalmente o que jaacute

se anunciou variadas vezes o conflito que o desejo pode gerar entre os sujeitos

Vejamos como Afrodite eacute descrita em Hesiacuteodo em se considerando seus atributos apoacutes

seu nascimento na espuma do mar vinda do ceacuteu isto eacute de Urano castrado Diz Hesiacuteodo sobre

essa deusa

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha 203 coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice116 206

Assim um uacutenico dever foi determinado a Afrodite as questotildees de Φιλότητά (amor) que

envolvem homens e deuses e portanto tambeacutem o gozo e os enganos Hesiacuteodo usa pois a

palavra philia referindo-se ao amor

Muitas outras lendas satildeo narradas sobre Afrodite tal a importacircncia da grande deusa do

Mediterracircneo Uma das histoacuterias fala dos filhos que Afrodite teve com Ares (Harmonia Deimo

Fobo e Eros) Eros acompanhava sempre a matildee com suas flechas provocando alegria e dor Em

um estaacutegio posterior quando a filosofia passou a indicar conceitos a palavra ερος (Eros)

comeccedilou a ser usada para indicar envolvimentos amorosos tendo-se mantido ateacute hoje em nossa

sociedade ao lado do adjetivo lsquoafrodisiacuteacorsquo reminiscecircncia de Afrodite

Quanto a Fobo embora natildeo haja lenda sobre ele passou a designar lsquofobiarsquo medo e

vincula-se de alguma forma agraves questotildees afetivas unindo ldquodesejordquo e ldquomedordquo o eterno conflito do

macho e da fecircmea

Em algumas representaccedilotildees iconograacuteficas Afrodite aparece com o epiacuteteto Panopla

Los griegos conferiacutean a su figura la idea de la ldquoguerrardquo en el terreno del amor y al mismo tiempo la vinculaban con el mundo de los muertos pues el amor y la muerte son elementos y condiciones indispensables para la renovacioacuten de los ciclos de la vida y de

116 Traduccedilatildeo de TORRANO J A A op cit p 117

63

los seres Asi fue adorada junto a Hermes como Subterracircnea y en algunos cementerios como Afrodita Escotia (de skotos = oscuridad)117

Afrodite recebeu outros epiacutetetos que remetem ao seu aspecto enigmaacutetico como Escoacutecia

(a lsquoescurarsquo) Androacutefonos (lsquoassassina de homensrsquo) Epitiacutembria (lsquodas tumbasrsquo) Quanto ao seu

epiacuteteto Melecircnis (lsquoa negrarsquo) Pausacircnias explica como causa o fato de que a maior parte dos atos

sexuais se daacute agrave noite Essa explicaccedilatildeo eacute considerada ingecircnua pelos autores comtemporacircneos pois

tambeacutem esse epiacuteteto parece estar relacionado agraves caracteriacutesticas de vida e morte que fazem parte

dos ciclos de fertilidade

Afrodite tambeacutem era conhecida como Afrodite Pandecircmica representando o aspecto

carnal e vulgar do amor Assim era vinculada com a prostituiccedilatildeo e vaacuterias prostitutas trabalhavam

em seu santuaacuterio em Acrocorinto Considerava-se que essas prostitutas tinham um caraacuteter

sagrado e uma delas imortalizou-se como modelo desnudo para que Praxiteles pudesse realizar

uma estaacutetua de Afrodite

Assim como o amor as histoacuterias de Afrodite satildeo interminaacuteveis

O domiacutenio de seu impeacuterio natildeo tem fronteiras e Eros seu filho igualmente herdou o

caraacuteter de peregrinaccedilatildeo de sua matildee Ambos matildee e filho aparecem na trageacutedia grega tendo sido

destacado o aspecto de perambulaccedilatildeodeliacuterio

Tomemos como exemplo um trecho da Antiacutegona de Soacutefocles (versos 785-790)

Vagas sobre as ondas 785 e penetras em rebanhos campestres De ti nenhum dos deuses escapa nenhum dos efecircmeros homens Quem tocas delira118 790

Quanto agrave Afrodite Euriacutepides (vs 447-450) destaca seu domiacutenio abrangente e revela

como essa propriedade inerente agrave deusa perpassa pelos mortais Natildeo haacute como resistir a ela que

estaacute em todas as partes no ceacuteu na terra e no mar fazendo florescer a vida Vejamos

Ela percorre o eacuteter ela estaacute nas ondas 447 do mar a Ciacutepria eacute dela que tudo floresce eacute ela a que semeia e a que daacute amor a quem devemos o nascimento da terra119 450

117 MAVROMATAKI Maria Op cit p 89 118 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 p 61 119 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 135

64

52 ndash AacuteRTEMIS A LIBERDADE E A VIRGINDADE

Poderiacuteamos introduzir os comentaacuterios sobre Aacutertemis iniciando-os com um

questionamento por que ndash apesar da nudez e dos olhares ndash desejou Aacutertemis manter-se virgem

Antes de explicarmos melhor nossa colocaccedilatildeo inicial vejamos quem eacute Aacutertemis

Filha de Leto e de Zeus nasceu junto com seu irmatildeo Apolo o que os colocou lado a lado

no panteatildeo grego e o que fez que tivessem muitos elementos em comum constituindo-se

Aacutertemis de acordo com a tradiccedilatildeo sua versatildeo feminina

Vaacuterias satildeo as lendas sobre Aacutertemis Em Hesiacuteodo os versos 918-920 dizem somente que

Leto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechas 918 prole admiraacutevel acima de toda a raccedila do Ceacuteu gerou unida em amor a Zeus porta-eacutegide120 920

Alguns comentaacuterios sobre esses trecircs versos parecem-nos dignos de consideraccedilatildeo Um

deles eacute o fato de que Hesiacuteodo jaacute coloca emparelhados Apolo e Aacutertemis considerando-os como

ldquoprole admiraacutevelrdquo sobre ldquotoda a raccedila do Ceacuteurdquo o que seraacute repetido no Hino Homeacuterico a Aacutertemis

(Hino XXVII ndash veja anexo B) O outro eacute a questatildeo da fecundidade como ato de amor (no texto

grego encontra-se novamente a palavra Φιλότητι)

De acordo com uma das lendas que Graves narra Leto pariu os filhos em Ortiacutegia perto

de Delos Assim que acabou de nascer Aacutertemis ajudou a matildee em seu outro parto pois o

nascimento de Apolo levou nove dias de trabalho121 Por isso foi adorada pelos deuses tambeacutem

como deusa do parto chegando mais tarde a ser confundida com Iliacutetia a deusa do parto

Recebeu o epiacuteteto de Aacutertemis Brauronia em Brauron onde havia um santuaacuterio dedicado a ela

As mulheres que tinham um parto normal faziam sacrifiacutecios em honra agrave deusa Outros fieacuteis

levavam agrave deusa como oferenda roupa de mulheres que haviam morrido no parto

Em Eacutefeso Aacutertemis tinha um outro epiacuteteto Era conhecida como Kuroacutetrofos pois se

encarregava de cuidar das crianccedilas Como Heacutestia tambeacutem era uma deusa da iniciaccedilatildeo que

ajudava os jovens no periacuteodo de transiccedilatildeo entre a adolescecircncia e a idade adulta Havia rituais

especiais invocando seu apoio Como parte da iniciaccedilatildeo algumas jovens deviam servir em seu

120 HESIacuteODO Op cit p 157 121 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 p 68

65

templo especialmente em Brauron para aprender como se dava a passagem para um outro

estaacutegio da vida No periacuteodo em que permaneciam nessa iniciaccedilatildeo as jovens eram chamadas de

akti do grego άrκτοι ou seja ldquoursasrdquo Um mito explicando esse periacuteodo de servidatildeo conta que

um urso das redondezas costumava visitar a cidade de Brauron regularmente As pessoas o

alimentavam e com isso o urso foi domesticado e ficou trataacutevel Poreacutem uma jovem o provocou

e ele enraivecido matou-a Segundo outra versatildeo ele arrancou os olhos dela O irmatildeo da garota

matou o urso o que fez com que Aacutertemis ficasse furiosa Daiacute para a frente ela ordenou que as

jovens agissem como urso domesticado em atitude de reparaccedilatildeo por sua morte

Isso parece deixar claro a ldquodomesticaccedilatildeordquo por que deveriam passar as jovens antes do

casamento favorecendo um comportamento doacutecil e submisso face ao esposo pois uma reaccedilatildeo de

insubordinaccedilatildeo deixaria enfurecido natildeo soacute o esposo como tambeacutem a divindade

Aacutertemis era conhecida ainda como Aacutertemis Ortia em Esparta laacute tambeacutem como iniciadora

de jovens que se encaminhavam para a idade adulta e portanto como cidadatildeos

Os gregos a consideravam uma deusa virgem afastada dos jogos enganosos da seduccedilatildeo

Talvez esse devesse ser um dos atributos das deusas (Aacutertemis e Heacutestia) para que pudessem servir

de guia agraves jovens ndash tambeacutem virgens ndash para uma etapa da vida de mudanccedila pessoal e social

considerando-se aiacute um movimento da vida de liberdade da jovem para as ldquoamarrasrdquo e a

dependecircncia de um esposo e de filhos

Aacutertemis ao contraacuterio continuava como deusa virgem livre e independente caccedilando nos

bosques e nas montanhas banhando-se nos rios bailando e soltando gritos de clamor vinculada

agraves suas origens ancestrais

Graves reporta-se a uma lenda narrada por Pausacircnias em que enquanto se banhava em

um rio Aacutertemis foi vista pelo priacutencipe caccedilador Acteacuteon filho de Aristeu Indignada transformou-

o em um cervo que foi perseguido e morto por sua proacutepria matilha122

Nessa lenda Acteacuteon eacute punido pelo seu olhar por ter devassado a nudez divina A reaccedilatildeo

de Aacutertemis diante desse gesto calado foi violenta evocando o conflito que o desejo cria entre os

contraacuterios O que o olhar de Acteacuteon significava Para Aacutertemis estava impliacutecito que ldquoO olhar

122 GRAVES Robert Op cit p 103

66

deseja sempre mais do que o que lhe eacute dado verrdquo123 Aacutertemis rejeita a seduccedilatildeo jogo enganador

que vem da caccedilada silenciosa do olhar Aacutertemis sai vencedora da cena em que Acteacuteon eacute

decomposto e desaparece como perdedor

Afrodite quando deseja conquistar Anquises estaacute cocircnscia de que a seduccedilatildeo eacute uma farsa e

que o seduzido (no caso Anquises) eacute o que deixa a marca de sua experiecircncia Por isso Anquises

suplica a salvaccedilatildeo a Afrodite

Acteacuteon poreacutem como sedutor perde seu rumo Na origem da liberdade Aacutertemis coloca a

sua virgindade Diferentemente do poder libertaacuterio o poder do desejo eacute ilusoacuterio e errante

Todas as tentativas de vida afetiva (philoacutetes) de que Aacutertemis participa satildeo enfrentadas

com violecircncia Temos pois a ambivalecircncia do desejo de independecircncia que se opotildee ao desejo da

persuasatildeo e do engano que eacute sempre sedutor doce mas tambeacutem enganador (verificar item 2)

Haacute particularmente dois epiacutetetos de Aacutertemis amplamente conhecidos

Um deles eacute Potnia Theron a deusa dos animais selvagens como refere-se Homero a ela

considerando seu aspecto poderoso e veneraacutevel O maior prazer de Aacutertemis era correr nos

bosques e caccedilar com seu arco de ouro (veja anexo Hino a Agravertemis) O veado era um de seus

animais prediletos aacutegil e veloz Estaacute relacionado agrave deusa na iconografia e em algumas lendas

como a que se viu sobre Aacutecteon A proacutepria deusa transformou-se em corccedila durante o caso com os

gecircmeos Aloiacutedas que na pressa de a atingirem mataram-se um ao outro Como deusa caccediladora

era tambeacutem adorada como senhora da natureza a que vivia no campo Dessa forma recebia

ainda o epiacuteteto de Agroacutetera protetora das plantas selvagens e das aacutervores Aleacutem disso era

conhecida por seu envolvimento com rios e lagos onde se banhava e em cujas margens

descansava danccedilava e cantava com as ninfas com as caacuterites e com as musas

Embora aacutegil e liberta em seu espaccedilo a floresta as montanhas o campo os rios e os lagos

a natureza acolhedora Aacutertemis se limita a esse contexto como soberana das feras e caccediladora

indomaacutevel Opotildee-se a Afrodite que na sua eterna mobilidade do desejo natildeo tem limites Como

coloca Fontes em seu estudo ldquoO territoacuterio das castitas eacute fechado e secreto enquanto o universal

domiacutenio de Afrodite expande-se do Ponto Euxino aos limites de Atlasrdquo124

123 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 p 9 124 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 34

67

Como defensora da virgindade tinha companheiras virgens de caccedila e de danccedila nas

margens dos rios e guardava sua castidade com o emblema protetor do arco e da flecha

Diferentemente de Eros cujas flechas tinham como alvo colocar o desejo em algueacutem Aacutertemis

usava suas flechas como proteccedilatildeo de sua virgindade e de sua selvageria pois a morte fazia parte

do ambiente da natureza (phyacutesei)

Nesse sentido Aacutertemis parece ser uma deusa de origem distante remontando agraves mulheres

ambiacuteguas conhecidas como Amazonas e que representavam um modelo miacutetico da mulher que se

privava do contato com os homens situando-se ldquono imaginaacuterio dos antigos natildeo apenas na

fronteira em que barbaacuterie e cultura se enfrentam e se contestam ela eacute radicalmente a outra

assombrada por uma dupla alteridaderdquo125

A questatildeo da dupla alteridade foi apontada por Lissarrague quando se reporta agraves

Amazonas como indica Fontes Esse eacute um aspecto interessante que revela como Aacutertemis mulher

e assassina feminina e baacuterbara caccediladora que habita as florestas densas e as montanhas ermas

natildeo tem cidade e que seria por isso ldquouma ameaccedila permanente para o mundo civilizadordquo126

imagem combatida pelo homem ateniense e civilizador representado nas figuras dos heroacuteis

Heacutercules e Teseu nas cenas iconograacuteficas em que atacam as Amazonas

Esse fato remete agrave questatildeo da tradiccedilatildeo revelando-se Aacutertemis um modelo miacutetico ldquodos

primoacuterdios de Atenas quando as mulheres eram autocircnomas facto monstruoso aos olhos dos

ateniensesrdquo127 De fato os homens atenienses valorizavam a sua posiccedilatildeo de forccedila e de ldquocidadatildeos

hoplitasrdquo considerando-se os defensores da cidade e Aacutertemis pode ter traccedilos semelhantes a essas

Amazonas de quem decerto reparte viacutenculos dessa autonomia recusando contato com os

homens o que a manteacutem uma deusa virgem com vaacuterias lendas em que mata homens jovens quer

seja para evitar o asseacutedio despertado pelo olhar quer seja por uma forma de vinganccedila violenta

Como jaacute mencionamos antes Aacutertemis era amplamente conhecida como Potnia Theron

Aleacutem disso como a Senhora de Eacutefeso

Em Eacutefeso seu templo tornou-se uma das sete maravilhas do mundo Laacute ela era venerada

como uma matildee deusa e de acordo com Graves ldquoela era adorada em sua segunda pessoa ou seja

125 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 22 126 LISSARRAGUE Franccedilois Afiguraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 p266 127 LISSARRAGUE Franccedilois Idem p267

68

como ninfa uma Afrodite orgiaacutestica com um consorte masculino sendo seus emblemas pessoais

a tamareira128 o cervo e a abelha129rdquo130

Isso reforccedila a dualidade de Aacutertemis ora como caccediladora-virgem de instinto selvagem e

primitivo agrave maneira das amazonas ora como suprema ninfa-deusa agrave maneira das antigas

sociedades totecircmicas

Outro aspecto jaacute destacado por noacutes eacute que muitas histoacuterias miacuteticas que envolvem Aacutertemis

ressaltam a questatildeo do olhar como preluacutedio de uma atitude libidinosa Aleacutem da famosa lenda de

Acteacuteon e a dos gecircmeos Aloiacutedas haacute um outro relato que mostra como a mulher era observada

pelo homem na Greacutecia antiga Falando da representaccedilatildeo feminina diz Lissarrague

Tratando-se da imagem das mulheres vimos jaacute a sua diversidade para concluir reiteramos que matildee ou esposa hetera ou muacutesica Amazona ou meacutenade a mulher eacute sempre dada em espetaacuteculo como um objecto aos olhos do homem grego o sujeito que olha131

Voltando ao nosso relato que destaca a importacircncia do olhar na cultura grega temos que

Alfeu um deus fluvial filho de Teacutetis apaixonou-se por Aacutertemis e ocultou-se perto de onde a

deusa se banhava com suas amigas as caacuterites e as ninfas para conseguir se unir a ela Aacutertemis

percebendo as intenccedilotildees de Alfeu cobriu com lodo branco seu rosto e das companheiras de

forma que Alfeu natildeo pudesse reconhececirc-la Na regiatildeo da Eacutelida Aacutertemis passou a ser chamada e

venerada como Aacutertemis Alfeacuteia132

Aleacutem de proteger a si proacutepria nessas histoacuterias em que preserva sua virgindade haacute outras

lendas que contam que Aacutertemis exigia de suas companheiras recato e preservaccedilatildeo de sua

condiccedilatildeo de castidade (autonomia) Assim uma lenda bastante conhecida eacute a que narra que

Calisto que fazia parte de seu grupo fora seduzida por Zeus e engravidara Zangada Aacutertemis

transformou-a em uma ursa e chamou a matilha para persegui-la e devoraacute-la Poreacutem Zeus

interveio pegando-a e levando-a para o ceacuteu onde a colocou entre as estrelas

128 De acordo com a lenda Leto deu a luz a Apolo ajudada pela receacutem-nascida Aacutertemis entre uma oliveira e uma tamareira no Monte Cinto em Delos 129 O siacutembolo da abelha estaacute relacionado a Afrodite Uracircnia (rainha da montanha) e nesse caso por comparaccedilatildeo a Aacutertemis Como deusa-ninfa Afrodite destruiu o rei sagrado com quem havia copulado no cume de uma montanha agrave maneira da abelha-mestra que aniquila o zangatildeo arrancando-lhe os oacutergatildeos sexuais 130 GRAVES Op cit p 87 131 LISSARRAGUE Franccedilois Op cit p268 132 GRAVES Op cit p 104 Refere-se a Pausacircnias (I 264) mencionando o fato de que a estaacutetua mais famosa de Aacutertemis em Atenas se chamava ldquoa do rosto brancordquo As sacerdotisas nos rituais em Letrini e Ortiacutegia cobriam seus rostos com argila branca

69

A lenda possui outras variantes e em todas a figura de Aacutertemis estaacute presente

Parece-nos que a imagem de Aacutertemis que figura na trageacutedia de Euriacutepides (Hipoacutelito) eacute

uma imagem renovada conciliando traccedilos da autonomia da virgindade com a jovem feminina

recatada sem os traccedilos de violecircncia daquela que pune as que natildeo a seguem como virgem e de

errante das florestas que a marcaram na eacutepoca arcaica

Teria havido talvez uma fusatildeo das duas alteridades prevalecendo a metaacutefora do feminino

no que concerne o afeto silencioso a atenccedilatildeo a ajuda

Assim na trageacutedia Euripidiana o Coro das mulheres de Trezena proclama

E costuma estar sujeito o equiliacutebrio instaacutevel do ser feminino a terriacuteveis embaraccedilos nos deliacuterios e nas dores do parto Este sopro dardejou um dia no meu ventre 165 mas gritei pela uracircnia sagitaacuteria propiacutecia aos partos Aacutertemis e muito venerada sempre com a graccedila divina ela me tem visitado133

A virgindade de Aacutertemis eacute exaltada em um relacionamento estreito com a natureza

(phyacutesei) nos seus aspectos intocaacuteveis Por isso Hipoacutelito oferece a Aacutertemis na peccedila do mesmo

nome flores colhidas em um campo imaculado

133 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 115

70

Diz Hipoacutelito agrave deusa Aacutertemis

Para ti oacute Soberana de um campo sem maacutecula eu trago esta grinalda que eu mesmo teci ali pastor natildeo ousa levar seu rebanho 75 nem o ferro jamais passou imaculado na primavera somente a abelha134 o percorre135

Poreacutem a deusa inviolaacutevel o seu lado casto e feminino pertence ao sagrado agravequele

espaccedilo em que os deuses tecircm um poder de determinar e direcionar o caminho dos mortais Isto

posto jaacute mostra que o excesso de admiraccedilatildeo ao tributo de castidade natildeo estaacute de acordo com a

natureza humana O que eacute adequado aos deuses estaacute muitas vezes distante do poder do homem

A trageacutedia de Euriacutepedes mostra que haacute duas forccedilas divinas entrelaccediladas no ldquoduelordquo da

trama Aacutertemis representando a castidade e Afrodite representando o desejo Tendo perdido a

proporccedilatildeo desse espaccedilo reservado aos deuses Hipoacutelito eacute punido por sua transgressatildeo pois a ira

dos deuses natildeo pode ser controlada

Esse paradoxo entre o desejo e a castidade faz parte de toda a histoacuteria da humanidade e

no Cristianismo a Histoacuteria vai registrar muitos fatos de envolvimento amoroso punidos como

ldquocrimesrdquo e muitas outras histoacuterias de supliacutecios de ldquosantosrdquo para atingir a castidade no intuito de

querer livrar-se do desejo que eacute biologicamente constituinte do humano

A deusa Aacutertemis faz parte do enredo de outra trageacutedia de Euriacutepides Ifigecircnia em Tauris

baseada em uma lenda que conta o sacrifiacutecio de Ifigecircnia filha de Agamenon

Segundo uma versatildeo agrave deusa comprazia a oferenda de sacrifiacutecio humano e tendo-se

zangado pelo fato de Agamenon gabar-se apoacutes atirar em um cervo de que ela natildeo poderia tecirc-lo

feito melhor ordenou como puniccedilatildeo que a filha dele Ifigecircnia fosse sacrificada em Aulis sem o

que natildeo haveria vento para que a frota dos barcos pudesse partir para a guerra de Troacuteia

Outra versatildeo que eacute a que Euriacutepedes usa em sua peccedila narra que quando Ifigecircnia ia ser

sacrificada Aacutertemis compadeceu-se dela e colocou em seu lugar um gamo Quanto agrave Ifigecircnia

transportou-a a Tauris em seu famoso santuaacuterio onde a jovem se tornou uma sacerdotisa A

lenda diz ainda que Ifigecircnia enviava os estrangeiros ao altar de Aacutertemis onde eram assassinados

durante os rituais como oferenda para honrar a deusa

134 Como jaacute comentamos anteriormente haacute a menccedilatildeo a um dos siacutembolos de Aacutertemis a abelha (ao lado da corccedila e da tamareira) destacando seu aspecto de feminilidade 135 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 109

71

Em sua trageacutedia Euriacutepides redime a imagem de Aacutertemis colocando na boca de Ifigecircnia

as seguintes palavras ldquoMen of this country being murderers impute their sordid practice to

divine command That any god is evil I do not believerdquo136

53 ndash ATENA A DEUSA VIRGEM DA SABEDORIA E DA GUERR A

Comeccedilamos sobre Atena ndash a grande deusa dos atenienses ndash indagando para os gregos de

Homero que sentido teria ela Por que ela teve uma forma de concepccedilatildeo e de nascimento que a

trouxe sob a forma de virgem Ao lado de sua imortalidade ndash comum a todos os deuses ndash ela foi

a uacutenica que manifestou desde o nascimento em sua natureza divina a ldquoimaculabilidaderdquo Por

que a sociedade grega ateniense voltava o seu olhar para a deusa mais sublime e mais reverente

ao lado de Zeus

Atena nasce jovem (que para os gregos a velhice era um estado de depauperamento)

imortal (jamais teria sua natureza obscurecida) bela (junto com o frescor da juventude pertence

aos deuses tambeacutem o dom da beleza) guerreira (saiu da cabeccedila do pai armada e ecoando gritos

beacutelicos) e virgem (o que a distancia mais do que os outros deusesda natureza humana)

Quando se confrontam homens e deuses o que os separa eacute justamente a expressatildeo

simboacutelica da corporalidade dos seres divinos Dessa forma a divindade grega afastava-se do

natural da realidade do humano elevando-se a um tipo de existecircncia superior

A ligaccedilatildeo de Atena com a forma de existecircncia terrena desfaz-se desde antes do seu

nascimento quando o parto podia simbolizar ldquogravidaderdquo do fundamento materno O misteacuterio de

seu nascimento a torna sublime pois ela chega com forma ritualiacutestica que celebra a vida Ela traz

uma forma de reconhecimento que pode ter um aspecto cultural profundo gerada nas entranhas

da matildee (Meacutetis uma entidade feminina) vem ao mundo pelo acolhimento do pai que a recebe

reconhecendo-lhe a sabedoria superior (ele aceita essa nova deusa renovaccedilatildeo de uma deusa

antiga de outro periacuteodo)

Se Zeus reconhece a verdade em Atena os cidadatildeos de Atenas recebem a filha de Zeus

como uma manifestaccedilatildeo advinda da profundeza maternal da terra imaculada na sua origem

136 EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt ldquoHomens deste paiacutes sendo assassinos imputam sua soacuterdida praacutetica agrave ordem divina Que algum deus seja malfazejo eu natildeo acreditordquo (traduccedilatildeo nossa)

72

Entretanto presente e passado fundem-se nessa nova forma de olhar o mundo e a forccedila viril

coloca-se como parte da elaboraccedilatildeo feminina o que produz a figura maacutescula saacutebia

determinada poderosa da filha de Zeus Portanto de acordo com a concepccedilatildeo do vasto universo

grego Atena era uma entidade de caraacuteter singular embora esse caraacuteter fizesse parte de um

mundo em si completo Um mundo bem diversificado mas completo eacute o que reflete a virgem

filha de Zeus Atena

Enquanto Afrodite emana o encanto que excita e arrebata a que com seu sorriso doce

cativa os sentidos Atena faz despertar a sabedoria as ldquoestrateacutegiasrdquo que direcionam para resolver

necessidades vitais Entatildeo os traccedilos que os deuses ostentam seja Afrodite com sua sedutora

doccedilura seja Aacutertemis com sua meiguice brincalhona seja Atena com sua astuacutecia complexa satildeo

traccedilos humanos o que significa que tecircm em si todo o sentido de domiacutenio da existecircncia humana

Atena pois remete ao seu olhar sobre os cidadatildeos de Atenas o olhar destes sobre ela

essa deusa armada cujo peito ostenta um escudo apavorante objeto de tantas reflexotildees

Referente a esse assunto coloca Otto

ldquoVemos uma deusa que coberta por seu escudo estaacute disposta a lutar e proteger Mas isso seria tudo que se pensava a seu respeito quando a crenccedila nela era viva Podemos chamaacute-la de Virgem do Escudo Virgem da Batalha Para essas perguntas natildeo temos resposta alguma Seja como for uma tal designaccedilatildeo natildeo convivia com Atena homeacuterica por muito que ela se mostre combativa e poderosa na luta ela eacute muito mais que uma deusa da batalha e eacute inimiga declarada dos espiacuteritos selvagens cujo ser se consuma na fruiccedilatildeo do tumulto de guerrardquo137

Essa uacuteltima colocaccedilatildeo de Otto nos faz pensar em uma provaacutevel diferenccedila entre a

virgindade de Atena e a de Aacutertemis A virgindade de Aacutertemis eacute ldquoindomaacutevelrdquo primitiva natildeo

ldquoexploradardquo mais ligada aos elementos terrestres e agrave natureza como sua representaccedilatildeo simboacutelica

enquanto que a virgindade de Atena eacute ontoloacutegica pois faz parte da elevaccedilatildeo e excelecircncia do ser

como forma de um aprimoramento da sabedoria quase que vinculada a uma postura espiritual

Poreacutem ambas no que concerne o aspecto da virgindade devem manter o viacutenculo com

deusesdeusas de eacutepocas anteriores

Desde a sua apariccedilatildeo vinda da cabeccedila do pai Atena aleacutem de revelar sua virgindade e sua

identidade guerreira apresenta o destaque de seus ldquoolhos glaucosrdquo (γλαυκώπιδα) o que segundo

alguns autores estaacute relacionado com olhos de coruja na sua sagacidade abrangente do olhar

137 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 p36

73

Para outros autores refletiria a cor esverdeada do mar (veja anexo Hino Homeacuterico a Atena)

pois Atena eacute de natureza aquaacutetica quando ela nasceu diz o Hino Homeacuterico XXVIII ldquoo mar

furioso elevou-se no alvoroccedilo de ondas de escuro esplendorrdquo

Como guerreira ela incita os guerreiros antes da batalha e lhes daacute acircnimo138 Com sua

eacutegide agita os homens ao ardor beacutelico Mas natildeo soacute os incita ajuda-os tambeacutem na forccedila e no

poder do combate com sua presenccedila saacutebia para que os humanos (os gregos) natildeo fraquejem

Na Odisseacuteia quando Odisseu seu filho e seus poucos guerreiros fieacuteis que o acompanham

vecircem-se diante do inimigo nos momentos finais de disputa Atena ergue sua eacutegide e o inimigo

tomado de terror dissipa-se

A sua presenccedila miraculosa proclama o sublime e eacute suficiente para causar

estremecimentos para serenar combates para por fim a situaccedilotildees angustiantes

Seraacute que mais tarde tambeacutem os judeus cristatildeos vatildeo se inspirar nessa deusa mediterracircnea

para conferir a Maria tal poder

O seu olhar cruza-se com seu poder A sua eacutegide ao mesmo tempo que amedronta impotildee

respeito Atena tambeacutem eacute detentora de uma alteridade nessa forma de Poder ldquofeito maacutescarardquo

Nesse ponto o olhar de Atena cruza-se com o olhar de Gorgoacute139 e como diz Vernant

suscita

ldquoo medo em estado puro o Terror como dimensatildeo do sobrenatural Este medo com efeito natildeo eacute uma decorrecircncia nem algo motivado como o que provocaria a consciecircncia de um perigo Eacute um medo primeiro logo de entrada e por si mesma Gorgoacute suscita o pavor porque se apresenta no campo de batalha como um prodiacutegio (teacuteras) um monstro (peacutelōr) em forma de cabeccedila (kephaleacute) terriacutevel e assustadora (de ver e ouvir) (deineacute te smerdneacute) com um rosto de olho terriacutevel (blousurocircpis) lanccedilando um olhar de pavor (deinograven derkeacutenē)rdquo140

A lenda da Medusa se transfigurava em vaacuterias situaccedilotildees ligadas a Atena Uma delas dizia

que ela tinha sido viacutetima de uma metamorfose provocada pela ira de Atena Conta-se que Gorgoacute

138 A este respeito ver HOMERO Iliacuteada op cit canto 2 v446 e seguintes 139 Gorgoacute como eacute citado por VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 Refere-se a Goacutergona (τοργω) a Medusa mortal e filha de duas entidades mariacutetimas A cabeccedila da Goacutergona era rodeada de serpentes e seus olhos brilhantes e o olhar tatildeo penetrante que causava terror e petrificava Atena colocou a cabeccedila da Medusa morta por Perseu em sua eacutegide a fim de que os inimigos fossem petrificados 140 VERNANT Jean-Pierre ndash Idem p50

74

era uma bela jovem que ousara rivalizar sua beleza com a deusa Atena Como ela tinha muito

orgulho de seus cabelos longos Atena transformou-os em serpentes

Na tradiccedilatildeo grega os guerreiros espartanos manifestavam a sua selvageria atraveacutes dos

cabelos longos como crina de cavalo Por ocasiatildeo dos casamentos esses guerreiros mantinham

uma tradiccedilatildeo ritual de simular um rapto da moccedila com quem iam se casar A moccedila (koacuterai as

jovens virgens) raptada era entregue a uma mulher que lhe raspava o cabelo A selvageria da

cabeleira longa da mocinha que se assemelhava a ldquouma potranca em liberdaderdquo no dizer de

Vernant era cortada Continuando diz ele

Para a jovem noiva o ritual da cabeccedila raspada joga com estes dois simbolismos contraacuterios e que se reforccedilam em sua oposiccedilatildeo pois a esposa se deve distinguir-se da patheacuternos para entrar no estado conjugal teraacute tambeacutem no mesmo sentido de diferenciar-se nitidamente de seu marido141

O cortar o cabelo eacute uma forma de domesticaccedilatildeo como vimos em Aacutertemis de transformar

a selvageria da jovem virgem ndash excluiacuteda do casamento ndash para uma vida de submissatildeo a um

esposo e a uma vida de reproduccedilatildeo Da virgem agrave mulher casada e matildee

Aacutertemis manteacutem-se virgem na sua representatividade selvagem da natureza Atena

manteacutem-se virgem na representativa selvagem dos combates

Mas apesar de ser uma deusa guerreira Atena distingue-se radicalmente de Ares pois

enquanto o deus da guerra eacute sanguinolento furioso e desatinado Atena goza de um caraacuteter justo

equilibrado sereno Atenas eacute mais que uma guerreira eacute uma pacificadora Atena eacute prudente e

digna enquanto Ares eacute odioso e coleacuterico

Homero tanto na Iliacuteada quando Atena chama Aquiles agrave razatildeo como na Odisseacuteia

quando Atena encaminha Odisseu agrave sua razatildeo e ao seu destino parece revelar uma consideraccedilatildeo

pela moralidade antes um espiacuterito elevado pela prudecircncia e pela ponderaccedilatildeo do que uma atitude

triunfante frente a uma tensatildeo

Esses sentimentos nobres de Atena a unem aos heroacuteis Aquiles e Odisseu Natildeo eacute soacute a

arguacutecia beacutelica que conta mas a ponderaccedilatildeo refletida A prudecircncia tambeacutem ela eacute uma forma de

sagacidade

Assim o olhar de Terror ao qual Vernant se refere eacute tambeacutem um olhar de prudecircncia de

cautela que faz parar e refletir que natildeo pode ser visto em uma impetuosidade impensada

141 VERNANT Jean-Pierre op cit p59

75

Como coloca Otto em seu estudo sobre os deuses gregos

O que Atena mostra ao homem o que dele quer e lhe inspira eacute por certo audaacutecia vontade de vencer e valentia Mas tudo isso natildeo quer dizer nada sem prudecircncia e luacutecida clareza Daiacute eacute que emana sua atividade com a plenitude da essecircncia da deusa da vitoacuteria Procedendo dessa origem sua luz natildeo ilumina apenas o guerreiro em combate onde quer que feitos notaacuteveis se realizem e se crie o acircnimo heroacuteico ela estaacute presente

Sempre procurando pista e mexendo na questatildeo da virgindade pareceu-nos que em se

enfileirando as deusas virgens no ldquofrontatildeordquo de nosso ldquotemplordquo verifica-se que a virgindade de

Atena coloca-se em um plano diferente do da virgindade atribuiacuteda a Aacutertemis e a Heacutestia

Aacutertemis eacute um ser selvagem pertence a um poacutelo que vai da natureza inexplorada

primitiva a um mundo civilizado maculado por um novo agir Sua virgindade daacute-se nessa tensatildeo

de equiliacutebrio entre o velho e o novo entre o passado e o presente entre o selvagem e o

civilizado entre dois poacutelos sempre numa dupla alteridade

Heacutestia eacute um ser contemplativo Assim como Aacutertemis relaciona-se a um elemento da

terra ao fogo que a natureza acolhe em todos os seus muacuteltiplos sentidos (veja 54) pois o fogo

tambeacutem eacute constitutivo da terra Nesse sentido Heacutestia eacute uma figura ldquoabstratardquo e incorpoacuterea

Atena ao contraacuterio natildeo eacute nem selvagem nem contemplativa Ela eacute a representaccedilatildeo de

uma consciecircncia luacutecida em estado de justiccedila e de pureza Ela eacute nesse sentido mais proacutexima agrave

ideacuteia do que a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde iraacute colocarem seus deuses e santos Atena jaacute tem um

ldquoespiacuteritordquo refinado

Por isso em Atenas ela tambeacutem era chamada de Niacuteke e na sua estaacutetua Partheacutenos de

maacutermore e ouro esculpida por Fiacutedias ela carrega em sua matildeo a imagem de Niacuteke a que distribui

daacutedivas e a que decide sobre faccedilanhas

O Paacuterthenon como ficou sendo chamado o templo que acolhia a estaacutetua de Atena tinha

um compartimento onde habitavam as sacerdotisas da deusa Daiacute o questionamento se

Paacuterthenon referia-se simplesmente ao templo de Atena (lsquoRoom of de Maidenrsquo) ou incluiacutea esse

espaccedilo habitado pelas sacerdotisas virgens (lsquoRoom of tue Maindensrsquo)142

Mas Atena natildeo tem apenas o lado viril guerreiro dos projetos das estrateacutegias da accedilatildeo

Atena natildeo eacute esposa nem matildee mas eacute uma deusa criativa e revela seu aspecto feminino na periacutecia

e na arte

142 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004

76

Dizem os autores que eacute apenas em um periacuteodo tardio que Atena se torna patrona da arte e

das ciecircncias Surgem nessa eacutepoca outras lendas como a de Aracne quando Atena teria

transformado a princesa Coacutelofon na Liacutedia em aranha invejosa que ficara da habilidade de tecer

da princesa

Segundo algumas fontes isso revelaria uma antiga rivalidade comercial entre os

atenienses e os liacutedio-cariates indicando pois uma versatildeo mais tardia da lenda que natildeo tem nada

em comum com as caracteriacutesticas de Atena

Outra lenda que se refere a Atena eacute sobre a sua denominaccedilatildeo de Palas Atena Conta essa

lenda revelando a nobreza de caraacuteter de Atena que ela estava brincando de artes marciais com a

filha de Triton Palas Em um dado momento preocupado com essa brincadeira das meninas

Zeus colocou sua eacutegide e Palas olhando para cima para ver o que era distraiu-se e foi ferida por

Atena vindo a falecer Em homenagem agrave amiga e querendo recuperar sua memoacuteria Atena fez

uma imagem de madeira da figura de Palas e enrolou-a com a eacutegide colocando-a perto de Zeus

Daiacute a origem de seu epiacuteteto Palas que enaltece a dignidade de seus traccedilos

Em nossa leitura e pesquisa Atena pareceu-nos revelar mais especificamente a

caracteriacutestica de virgindade dos gregos da eacutepoca de Homero

54 - HEacuteSTIA E A CASTIDADE

Para entender a deusa Heacutestia pareceu-nos importante retomar as funccedilotildees de Afrodite

Enquanto Afrodite eacute toda corpoacuterea linda sedutora doce Heacutestia eacute pouco representada

fisicamente silenciosa meiga

Dissemos que em Afrodite seu poder eacute determinado pelo olhar da seduccedilatildeo (απάτη) e da

uniatildeo amorosa (Φιλότης) e que implica movimento constante provocar um desejo contiacutenuo entre

os homens e ateacute entre os deuses - que eacute quando atraveacutes do desejo aproximam-se dos mortais

conhecendo-os melhor

Heacutestia ao contraacuterio tem seu poder emanado pelo desejo da fixidez da constacircncia da

manutenccedilatildeo da ordem da famiacutelia do equiliacutebrio das relaccedilotildees familiares da preservaccedilatildeo da

harmonia e da paz do controle Silenciosa sempre presente colocada no espaccedilo central da casa

no umbigo da casa (οικω) como diziam os gregos seu olhar eacute atento e vigilante promovendo o

77

recato das virgens (παρθένος) antes do casamento ela tambeacutem uma virgem que cuida do espaccedilo

da famiacutelia impondo respeito e interditando o incesto

Heacutestia tem uma importacircncia primordial mas era pouco representada pois fazia de tal

forma parte do espaccedilo domeacutestico que a lareira da famiacutelia era chamada de heacutestia onde ardia o

fogo intermitente o altar sagrado em que se ofereciam os sacrifiacutecios

Sobre essa presenccedila na casa dos homens que habitam a superfiacutecie terrestre diz o Hino

Homeacuterico a Heacutestia (XXIX veja anexo B) que ela constitui natildeo soacute o centro do espaccedilo familiar

mas tambeacutem eacute uma presenccedila constante em todos os templos dos deuses (honra concedida a ela

por Zeus) Como Zeus tambeacutem ela era filha de Reacuteia e de Crono e era venerada como a deusa

mais antiga do panteatildeo grego Nas casas diz o mesmo hino os sacrifiacutecios eram sempre

oferecidos a ela Como vivia no meio dos mortais todas as festividades familiares comeccedilavam e

terminavam com rituais laudatoacuterios agrave deusa o que criava uma solidariedade entre os

participantes unindo-os pela identidade comum

Heacutestia natildeo significava o fogo propriamente dito mas a lareira da casa o altar dos

sacrifiacutecios O fogo que queima no altar mobiliza o olhar e estaacute presente como elemento de

purificaccedilatildeo como siacutembolo de marca civilizatoacuteria como chama do desejo da sexualidade

Como elemento de purificaccedilatildeo o fogo arde em homenagem aos deuses em um gesto de

honra e de respeito em uma atitude em que o olhar capta o crepitar da presenccedila do divino nas

chamas

O fogo tambeacutem eacute usado como um elemento de civilizaccedilatildeo pois a presenccedila da deusa

Heacutestia se estendia agraves cidades gregas como continuaccedilatildeo da famiacutelia Nessas piras do espaccedilo

puacuteblico ardia a chama eterna Considerava-se aiacute um lugar de altar sagrado onde os estrangeiros

eram recebidos e os lsquoembaixadoresrsquo prestavam juramentos Os guerreiros antes de irem agrave guerra

pegavam fogo do altar de Heacutestia para levar com eles e os colonizadores o levavam quando iam

fundar uma nova colocircnia A importacircncia de Heacutestia eacute pois ldquohumanizadorardquo uma vez ela se

integra e participa da condiccedilatildeo humana quer como conhecedora do espaccedilo familiar quer como

impulsionadora de um estaacutegio civilizatoacuterio A pira estaacute sempre recebendo o fogo que arde para a

renovaccedilatildeo do velho e para uma ldquoressurreiccedilatildeordquo perioacutedica

A lareira (a heacutestia) que mantinha o fogo tambeacutem tinha uma accedilatildeo relacionada com a

transmissatildeo dos ritos de iniciaccedilatildeo dos jovens (παρθένος) que passariam de um estaacutegio a outro

78

tanto do ponto de vista pessoal como no aspecto social A jovem virgem saiacutea do espaccedilo da casa

do pai para o seu novo espaccedilo familiar com o esposo onde se esperava que se desse a uniatildeo dos

sexos para fins de que a fertilidade na terra tivesse continuidade Nesse sentido Heacutestia era a

deusa que olhava atenta as chamas da accedilatildeo fecundante do desejo

Portanto o olhar que o fogo simboliza pode ser purificador iluminador fecundante Eacute o

olhar vigilante que daacute seguranccedila Comparando-se pois a purificaccedilatildeo pelo fogo relativo agraves

atividades da lareiraheacutestia e a purificaccedilatildeo pelas aacuteguas como vimos em Afrodite no seu

ldquobatismordquo na sua renovaccedilatildeo apoacutes a traiccedilatildeo ao marido poderiacuteamos deduzir que o fogo de que

Heacutestia cuidava era uma forma de purificaccedilatildeo que simbolizava a tradiccedilatildeo dos costumes

relacionada a importantes aspectos sociais dos quais a famiacutelia e as cidades faziam parte Nesse

sentido o fogo que Heacutestia cuida revela uma forma de compreender os estaacutegios por que passa o

feminino diante do masculino na sua histoacuteria terrestre A renovaccedilatildeo a transformaccedilatildeo a uniatildeo

sexual o interdito fazem parte da civilizaccedilatildeo

Quanto agrave aacutegua parece-nos que associada a Afrodite que representa o ceacuteu a terra e o

mar seu simbolismo eacute a purificaccedilatildeo do desejo Afrodite emerge das aacuteguas e esse processo a

remete agraves fontes de origem reconciliada com uma nascente divina de vida nova

Em eacutepocas seguintes agrave antiguidade grega o cristianismo se apropriaraacute da renovaccedilatildeo do

banho nas aacuteguas como forma de purificaccedilatildeo Assim diz o apoacutestolo Mateus (3 5-6) referindo-se

ao batismo que Joatildeo Batista fazia no deserto ldquoE eram por ele batizados no rio Jordatildeo

confessando seus pecadosrdquo O batismo tem pois como finalidade retirar o pecado assegurando

uma regeneraccedilatildeo Essa concepccedilatildeo portanto foi apropriada pelo Cristianismo dos povos de

civilizaccedilotildees anteriores

Heacutestia como significante da lareira da casa ocupava um espaccedilo feminino pois cabia agrave

mulher ocupar-se das atividades domeacutesticas e a casa (οικος) era seu lugar Era ali que a mulher

estava protegida dos perigos que a vida exterior poderia representar

A jovem ao casar-se ia para a casa do marido o que exigia a ela uma mudanccedila natildeo soacute

de casa como tambeacutem de estado de virgem a esposa e matildee Portanto isso implica uma

mobilidade Heacutestia ao contraacuterio continuava fixa e virgem na casa paterna Para a jovem essa

questatildeo espacial era tambeacutem social e pessoal

79

Vejamos o que diz Vernant sobre isso

Essa permanecircncia de Heacutestia natildeo eacute de natureza apenas espacial Como ela confere agrave casa o centro que a fixa no espaccedilo Heacutestia assegura ao grupo domeacutestico a sua perenidade no tempo eacute pela Heacutestia que a linhagem familiar se perpetua e se manteacutem semelhante a si mesma como se em cada geraccedilatildeo nova nascessem diretamente ldquoda lareirardquo os filhos legiacutetimos da casa143

Como aspecto de uma sociedade patriarcal os casamentos eram endogacircmicos mantendo

uma tradiccedilatildeo de hereditariedade puramente paterna Deste modo Heacutestia cuidava da questatildeo da

fecundidade dissociada portanto da questatildeo do desejo Ela cuidava para que houvesse atraveacutes

da filha a prolongaccedilatildeo da ldquolinhagem paternardquo sem a necessidade ldquode uma mulher lsquoestrangeirarsquo

para a procriaccedilatildeordquo 144

Esse tipo de lugar ocupado pela mulher revela um aspecto de passividade e uma

caracteriacutestica de dominaccedilatildeo do homem cujo poder eacute o de garantir a fecundaccedilatildeo

A mulher eacute a estranha na casa do marido agrave qual ele pertence e quer dar continuidade

pois eacute o pai que firma as raiacutezes nessa casa que deve ser cuidada pela mulher Nesse sentido vecirc-

se a mulher como um ldquodomusrdquo (como jaacute nos referimos anteriormente) do masculino no sentido

de receber e dar continuidade agrave linhagem participando como cuacutemplice do desejo do macho de

manter sua genealogia desconsiderando os seus proacuteprios desejos de mulher Agrave mulher cabe

submeter-se ao homem que preocupado com a sua linhagem vai conduzi-la como virgem ao

altar de Heacutestia vai unir-se a ela sexualmente e vai ser o progenitor dos filhos que viratildeo

Ora como jaacute foi comentado antes as relaccedilotildees do gecircnero envolvem conflitos e portanto eacute

natural que as donzelas (moccedilas solteiras) e as mulheres casadas enfrentassem tensotildees dentro da

estrutura familiar e que reagissem a determinadas imposiccedilotildees

Eacute o que mais tarde a trageacutedia vai mostrar as contradiccedilotildees da cena familiar gerando

oposiccedilotildees sofrimentos afetando relacionamentos alimentando oacutedios

Talvez por ser uma observadora constante da cena domeacutestica Heacutestia tenha se fixado na

sua condiccedilatildeo de παρθένος a deusa que remete a uma condiccedilatildeo do feminino ideal inacessiacutevel e

por isso sem sujeitar-se agrave submissatildeo do desejo carnal A ldquopurezardquo natildeo pode ser alcanccedilada pelo

humano pois ela eacute do espaccedilo divino No catolicismo as freiras e as santas manteratildeo a tradiccedilatildeo

do recato fazendo votos de castidade e remetendo-se ao enclausuramento de conventos Uma

143 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 199 144 VERNANT Jean-Pierre Idem p 199

80

forma de manter a ldquopurezardquo era abolindo as relaccedilotildees carnais O catolicismo pois teve suas

virgens que se encarregavam de vigiar o ldquopecadordquo

Mas natildeo eacute soacute a submissatildeo ao marido que a mulher deve aceitar Ela eacute considerada parte

de um comeacutercio de trocas dependente do acordo entre os homens pai e esposo Essa questatildeo eacute

de ampla complexidade pois envolve aspectos poliacutetico-econocircmicos aleacutem dos sociais

o termo οίκος tendo ao mesmo tempo um significado familiar e territorial podem-se compreender as reticecircncias que constituem obstaacuteculo em plena economia mercantil agraves operaccedilotildees de venda e de compra quando se trata de bens familiares (κληρος) compreende-se tambeacutem a recusa em conceder a um estrangeiro o direito de possuir uma terra dita ldquoda cidaderdquo porque ela deve permanecer como o privileacutegio e a marca do cidadatildeo ldquoautoacutectonerdquo145

Ou seja como mercadoria de troca de comeacutercio ou seja como um campo feacutertil em uma

sociedade agriacutecola a mulher era vista para fins de procriaccedilatildeo Como objeto de troca pertencia ao

marido como campo a ele lhe cabia frutificar o solo e fazer a colheita delimitando seu territoacuterio

em um clima de seguranccedila e de amizade domeacutestica

Portanto nesse tipo de sociedade a esterilidade ia contra os princiacutepios de continuaccedilatildeo

genealoacutegica Por isso era punida Natildeo se pode renunciar agrave deusa da fertilidade Afrodite zela

pela vida A uniatildeo entre os opostos faz parte da continuidade do mundo Renunciando ao coito o

homem estaacute impedindo a procriaccedilatildeo Euriacutepedes mostra em sua trageacutedia como Hipoacutelito foi

castigado por querer manter-se fiel a Aacutertemis isto eacute agrave virgindade

A abertura da peccedila daacute-se com as palavras de Afrodite sobre a abstinecircncia sexual

masculina na figura de Hipoacutelito Ser humano eacute sujeitar-se ao desejo Aleacutem disso Afrodite

determina o destino (como jaacute foi apontado no item sobre essa deusa) independentemente da

vontade do homem Faz parte do humano o enredamento o conflito a tensatildeo entre os opostos

pois assim foi determinado desde o iniacutecio dos tempos

Vejamos o que diz Afrodite em suas beliacutessimas palavras na traduccedilatildeo para a liacutengua

portuguesa de J B Fontes

Grande entre os seres mortais e natildeo sem renome 1 de deusa Ciacutepris eu sou chamada no ceacuteu Aqueles que do Ponto aos limites de Atlas habitam e contemplam o lume do sol eu favoreccedilo se veneram meu poder 5 enquanto abato quem pensa em mim com soberba

145 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 208

81

pois eacute inerente tambeacutem a raccedila dos deuses agradar-se com honras prestadas por homens Mostrarei logo a verdade destas palavras O filho de Teseu nascido da Amazona 10 Hipoacutelito que o casto Piteu instruiu eacute o uacutenico entre os cidadatildeos desta Trezena a dizer que dos Numes eu sou o pior o leito ele recusa evita o casamentordquo146 mas pela falta contra mim vou me vingar 147 21 de Hipoacutelito ainda hoje Muito avancei neste projeto resta-me pouco a fazer Vindo ele uma vez da casa de Piteu ver misteacuterios sagrados e neles sagrar-se 25 na terra de Pandiacuteon a bem nascida esposa de seu pai Fedra o viu e um violento amor tomou-lhe coraccedilatildeo segundo o meu desejo148

Reconhecemos em Heacutestia uma polaridade pois ao mesmo tempo que se opotildee a Afrodite

como virgem inicia e supervisiona com o olhar de seu altar as jovens que se preparam para o

casamento Assim como Afrodite Heacutestia se inscreve na natureza humana Tambeacutem ela conhece

o posicionamento do ldquoparrdquo ao lado do masculino no panteatildeo grego onde eacute colocada ao lado de

Hermes divindade que cuida da solidariedade do acolhimento entre os homens nas suas

andanccedilas ldquoexterioresrdquo

O Hino Homeacuterico a Heacutestia coloca-a lado a lado com Hermes complementando funccedilotildees

Assim como Heacutestia figura como virgem e protetora das jovens em uma posiccedilatildeo semelhante agrave da

matildee Hermes eacute o mensageiro que ajuda aqueles que necessitam Hermes eacute pois o ldquoαγγελεrdquo o

anjo que como Heacutestia conhece as accedilotildees humanas e procura ser favoraacutevel aos mortais

A questatildeo do gecircnero eacute altamente significativa na sociedade arcaica e ateacute hoje no mundo

contemporacircneo alguns pais anseiam pela vinda de um filho do sexo masculino Assim sendo o

pai em cujo lar soacute havia filhas esperava que a filha lhe desse um neto como herdeiro do ldquoκλεροςrdquo

paterno Nesse caso o filho seguiria a linhagem do avocirc e era ao mesmo tempo filho e irmatildeo de

sua proacutepria matildee Ainda assim a mulher via-se sujeita agraves condiccedilotildees de submeter-se se natildeo agrave casa

do marido agrave casa paterna Em seu estudo sobre Heacutestia Vernant faz uma consideraccedilatildeo que nos

parece importante em relaccedilatildeo a um outro aspecto da polaridade da deusa Diz ele

146 Grifo nosso 147 Grifo nosso 148 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Op cit p 105

82

Assim se delineia no pensamento social dos gregos em face agrave imagem do homem agente exclusivo da obra geradora a imagem natildeo menos poderosa da mulher verdadeira fonte de vida em que se alimenta a fecundidade das ldquocasasrdquo A deusa do lar segundo os casos eacute suscetiacutevel de justificar tanto uma quanto outra dessas duas imagens opostas Com efeito Heacutestia nos parece ter a funccedilatildeo especiacutefica de marcar a ldquoincomunicabilidaderdquo dos diversos lares enraizados em um ponto definido do solo eles natildeo poderiam nunca se misturar mas permanecem ldquopurosrdquo ateacute na uniatildeo dos sexos e na alianccedila das famiacutelias149

Como coloca Vernant em seu texto a virgindade de Heacutestia eacute a que assegura agrave jovem

virgem antes do casamento o seu proacuteprio lar Apoacutes o casamento ela passaraacute a representar a casa

do marido submetendo-se a ele como senhor do οίκος

Como organizadora dos bens do lar no que diz respeito agrave concentraccedilatildeo de riqueza e a

delimitaccedilatildeo dos patrimocircnios familiares Heacutestia era conhecida com o epiacuteteto de Heacutestia Tamia

Enquanto cabia a Heacutestia cuidar dos tesouros que ficavam guardados dentro da casa nos cofres

(bronze ouro ferro tecidos) a Hermes cabia o cuidado na aacuterea externa dos rebanhos com seu

bastatildeo maacutegico Considerando-se a funccedilatildeo dessas divindades enquanto Heacutestia se ocupava da

conservaccedilatildeo dos bens Hermes encarregava-se do movimento da riqueza isto eacute da aquisiccedilatildeo ou

da perda de bens

Um outro epiacuteteto de Heacutestia eacute Heacutestia Koineacute Ela era assim denominada quando havia a

cerimocircnia da lavragem que periodicamente renovava o viacutenculo do povo ateniense ldquoautoacutectonerdquo

com a sua terra

Heacutestia tambeacutem era a divindade de um ritual divinatoacuterio na Acaia ao lado de Hermes

O Hino XXIV tambeacutem dedicado a Heacutestia (verificar anexo B) ressalta o poder

adiivinhatoacuterio da deusa prestando serviccedilos no templo de Apolo A ideacuteia de purificaccedilatildeo da deusa

eacute destacada no uso de oacuteleos que pendem das mechas de cabelo Em seu banho regenerador apoacutes

ser pega com Ares Afrodite tambeacutem eacute ungida com oacuteleo elemento de purificaccedilatildeo

Assim como Afrodite traz em si a ligaccedilatildeo com o ceacuteu (pai Urano) com a terra (matildee Gaia)

e com a aacutegua (tendo nascido na espuma do mar) Heacutestia manifesta em si o contato do ceacuteu da

terra e do mundo subterracircneo A lareira fixa na casa enraiacuteza-a na terra Por meio dela a famiacutelia

faz uma aproximaccedilatildeo com o mundo subterracircneo Aleacutem disso a lareira assim como se comunica

com o mundo infernal faz subir ateacute a morada dos deuses oliacutempicos a chama que vem do

149 VERNANT Jean-Pierre Op cit p 216

83

cozimento dos alimentos Quanto ao οικος cujo centro eacute fixado por Heacutestia representa a

estabilidade no espaccedilo terrestre

Em Homero nada pudemos destacar sobre Heacutestia No entanto no Hino Homeacuterico V (veja

anexo A) dedicado a Afrodite encontra-se uma citaccedilatildeo de grande forccedila quando Heacutestia faz um

juramento sagrado a Zeus de manter-se virgem A cena descrita destaca Heacutestia colocando sua

matildeo na cabeccedila de Zeus como um modo solene de se fazer um juramento Desta maneira Heacutestia

estava resolutamente decidida a manter-se virgem Narra o hino que a deusa implorou a

virgindade a Zeus apoacutes ter sido cortejada por Poseidon e por Apolo

Heacutestia opotildee-se pois a Afrodite natildeo se submetendo a ela na questatildeo do envolvimento

amoroso (carnal) Poderiacuteamos finalizar essas consideraccedilotildees sobre Heacutestia levantando uma

pergunta seria uma forma de independecircncia para Heacutestia natildeo se deixar dominar por algueacutem (seja

deus ou mortal) do sexo masculino mas precisar da aprovaccedilatildeo de Zeus como autoridade

masculina maacutexima do panteatildeo oliacutempico Por que essa decisatildeo natildeo foi individual e teve que

passar pela ldquofigura paterna de Zeusrdquo Por que Zeus em vez de casamento passou a oferecer-lhe

a melhor porccedilatildeo (a primeira viacutetima) de todo sacrifiacutecio puacuteblico

85

6 - A QUESTAtildeO DA VIRGINDADE E AS DEUSAS VIRGENS

ldquoOne popular private offering consisted in dedicating to the deity the symbols of a phase of onersquos life that had ended such as the locks of children now adults or their toys or a bridersquos virginal clothesrdquo150

61 - A virgindade e os mitos da criaccedilatildeo do mundo

Para se chegar agrave questatildeo da virgindade parece-nos que eacute preciso descobrir dentro do mito

as significaccedilotildees e as vozes que ficam agrave margem durante a Antiguidade pois satildeo subordinadas a

uma voz maior dominante

Desde o iniacutecio colocam-se as trecircs deusas virgens (Aacutertemis Atena e Heacutestia) distintas das

demais deusas formando pois um grupo agrave parte o que jaacute implica sua feiccedilatildeo diferencial

Isso revela que a ldquoliberdaderdquo individual feminina natildeo eacute compatiacutevel com a dominaccedilatildeo de

um valor de ldquomaioriardquo Portanto eacute preciso uma leitura plural do texto miacutetico para entender como

essa histoacuteria alternativa das deusas foi se constituindo atraveacutes dos tempos como enfatizamos em

nossa proposta metodoloacutegica

Trata-se pois de uma relevacircncia do tema haja vista sua pertinecircncia na questatildeo

mitoloacutegica que destaca de alguma forma quer seja atraveacutes do uso de um vocaacutebulo quer seja

atraveacutes do contexto miacutetico apesar do seu caraacuteter fantasioso a ideologia de uma eacutepoca em que

sobressai um traccedilo da virgindade de uma ldquoteologiardquo feminina

De fato a virgindade das deusas gregas permite-nos captar repercussotildees em diferentes

acircmbitos da sociedade pois o mito estaacute ldquoembrenhadordquo nela revelando justificando explicando

moldando os valores adaptando-os de modo a destacar experiecircncias que se tornam crenccedilas do

coletivo Satildeo vozes que perpassam e ultrapassam as fronteiras das poacutelis e satildeo acolhidas na

representaccedilatildeo simboacutelica dos princiacutepios sociais que a sociedade grega elabora

Portanto a virgindade de Aacutertemis Atena e Heacutestia ldquomexemrdquo com o eixo da memoacuteria

histoacuterica situam-se no eixo da realidade social e permeiam a questatildeo de gecircnero

150 RATTO Stefania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 p 152 ldquoUma oferenda privada popular consistia em dedicar agrave divindade os siacutembolos de uma fase da vida que jaacute tinha acabado tais como mechas de cabelo de crianccedilas agora adultas ou seus brinquedos ou roupas virginais de uma noivardquo (traduccedilatildeo nossa)

86

Certamente muito se tem dito sobre a Greacutecia sobre os deuses gregos sobre o homem

grego sobre as mulheres de Atenas sobre o patriarcalismo sobre o mito Poreacutem que

discussotildees podem dar conta de encaminhar a posiccedilatildeo dessas deusas no Olimpo grego

Vamos partir de um pressuposto de que o mito foi sendo construiacutedo e se adaptando de

acordo com as transformaccedilotildees por que a sociedade ia passando

Primeiro a sociedade marcadamente agriacutecola era uma sociedade que destacava a figura

da mulher Parece-nos pois que a grande deusa era privilegiada nesse espaccedilo Enfatizavam-se os

ritos de fertilidade e de procriaccedilatildeo

Dessa forma as deusas consideradas ldquoantigasrdquo vindas de outras culturas como Heacutestia

Demeacuteter Aacutertemis Atena tinham histoacuterias paralelas em outros lugares e caracteriacutesticas comuns agraves

deusas de outros povos bem como de deusas importantes quer seja nos ritos de fertilidade quer

nos ritos sagrados do fogo quer como grandes deusas ou ainda como Amazonas independentes

Poreacutem na Greacutecia os textos escritos de Homero e de Hesiacuteodo inauguram histoacuterias da

origem do mundo de todas as forccedilas da natureza de deuses e de heroacuteis Aiacute jaacute se coloca a

fertilidade da natureza e a fecundidade da terra como dos seres humanos como misteacuterios

sublimes e por isso divinizados Embora a primeira divindade que surja responsaacutevel pela

fecundaccedilatildeo seja a Terra uma forma de divindade feminina que implica uma retomada a um

primeiro padratildeo que resgata o feminino como procriando independentemente do masculino

ainda assim seu periacuteodo de independecircncia eacute limitado Logo que a matildee terra (Gaia) daacute agrave luz o

mito grego jaacute propotildee a origem dos opostos e a chegada do macho ao mundo gerando conflitos

na figura de Urano o ceacuteu

Parece-nos que a partir desse momento a Grande Matildee comeccedila a ocupar um lugar

secundaacuterio em uma sociedade que sucede agrave eacutepoca eminentemente agriacutecola em que as invasotildees

colocam toda ecircnfase nos guerreiros e o patriarcalismo inicia o seu domiacutenio

A partir dessas consideraccedilotildees trecircs aspectos podem ser destacados nesse poacutelo complexo

da sociedade grega primeiro como foi reorganizado o cenaacuterio dos deuses acomodando-se a uma

nova situaccedilatildeo soacutecio-poliacutetico-econocircmica com aspectos diferenciados da fase anterior Segundo

como a mulher se posiciona nesse panorama e como suas funccedilotildees eram atribuiacutedas e

determinadas incluindo a questatildeo dos casamentos

87

Terceiro como a flexibilidade das palavras parthenos e koreacute referindo-se agraves moccedilas

solteiras e virgens em um contexto em transformaccedilatildeo pode ser significada face ao poder de

Afrodite

Enfocando o primeiro item das questotildees levantadas verificamos que a ldquoacomodaccedilatildeordquo dos

deuses oliacutempicos colocou como entidade suprema Zeus cuja forccedila e poder estavam relacionados

com o raio e com a sabedoria Estava instalado o masculino no centro do universo (kosmos)

grego A matildee que havia procriado Urano e Crono afastou-se para que eles pudessem presidir

colocando-se ela proacutepria em um plano diferenciado a que ofereceu o ventre feacutertil para que essa

prole pudesse existir e a que participou nas escolhas Ela entretanto posicionou-se aleacutem das

funccedilotildees oliacutempicas pois estas eram mais especiacuteficas para a vida do cotidiano do periacuteodo dito

arcaico Gaia a matildee primeira ficou conhecida como entidade primordial a base da fecundaccedilatildeo e

da criaccedilatildeo a que organizou o mundo e que jaacute estabelecida em um contexto amplo inaugurou o

princiacutepio de uma genealogia que se define com o nascimento de Zeus impondo-se sobre o pai

(Crono) Isso revela claramente que uma outra era tem iniacutecio agora eacute a vez em que o filho vai

reinar libertando antecedentes dessa aacutervore genealoacutegica e devolvendo agrave Terra a luz do

Relacircmpago o som do Trovatildeo e a forccedila da violecircncia A matildee Terra fica pois como base

ldquolongiacutenquardquo e Zeus fica como o centro do Olimpo

Desde o iniacutecio constata-se que a matildee reconhece os filhos e os privilegia Gaia a partir do

momento que copula com Urano passa a reconhececirc-lo como esposo e protege o filho Crono

incitando-o contra o pai que natildeo lhe ldquodava espaccedilordquo A mesma questatildeo se repete entre Crono e

sua irmatilde Reacuteia Quando comeccedilam a copular Reacuteia reconhece Crono como pai de seus filhos e

porque a lenda jaacute previa a ira dos filhos contra o pai tentando arrebatar-lhe o lugar Crono

zeloso de seu domiacutenio passa a devoraacute-los A matildee agora Reacuteia salva o filho Zeus de Crono

dando a este uacuteltimo uma pedra para engolir e escondendo Zeus em uma gruta onde eacute alimentado

por uma cabra

Esses aspectos justificam algumas constataccedilotildees (a) a matildee parece ter um viacutenculo de

afetividade com os filhos desde o nascimento reconhecendo-os como parte de sua prole gerados

em seu ventre (b) o pai considerado apenas pai bioloacutegico ainda natildeo assume os filhos Natildeo

existe pois nesses pais miacuteticos primordiais a ldquoadoccedilatildeordquo dos filhos que seraacute posteriormente

88

introduzida no direito romano151 (c) a lenda miacutetica destaca para um fato natural da vida com o

tempo os filhos assumem o lugar do pai ndash o cetro passa do mais velho ao mais novo ndash (d) a

cabra como participante na amamentaccedilatildeo das crianccedilas na falta do leite materno eacute tida como um

animal reverenciado entre os gregos na figura de Zeus que como infante necessitou da

alimentaccedilatildeo vinda de Amalteacuteia a cabra-ama tida em outras versotildees como ninfa

Essa linhagem a partir daiacute centrada em Zeus parece-nos revelar um periacuteodo de transiccedilatildeo

cedendo a fecundidade criativa lugar para o masculino dominante ocupar o governo do mundo

atraveacutes das armas que lhe satildeo atribuiacutedas o raio o trovatildeo e a violecircncia o poder de ldquofulminarrdquo

Passa-se da fecundidade feminina agrave dominaccedilatildeo masculina

Assim reorganizado o Olimpo instala a figura do pai todo-poderoso o masculino

predominante refletindo uma sociedade em que os cidadatildeos (pais e esposos) negociavam e

decidiam sobre as mulheres (filhas e esposas) protegiam as muralhas da cidade (os hoplitas) e

cuidavam da descendecircncia genealoacutegica atraveacutes da procriaccedilatildeo com as jovens mulheres porque a

continuaccedilatildeo da linhagem familiar era de grande importacircncia na sociedade grega

Isso posto mostra-nos a relevacircncia da deusa Afrodite para a reproduccedilatildeo da espeacutecie o

papel representativo da deusa Heacutestia como guardiatilde da casa e da famiacutelia com sua presenccedila fixa

constante atenta a significacircncia de Aacutertemis lsquoSenhora das Ferasrsquo responsaacutevel pela

lsquodomesticaccedilatildeo dos jovensrsquo as meninas de onze doze anos (as ursas) para enfrentamento do

casamento e dos partos e os rapazes para o preparo civilizatoacuterio que a cidadania impotildee e

finalmente Atena como orientadora das questotildees que precisam de uma direccedilatildeo saacutebia e astuta de

um rumo certeiro de estrateacutegias inteligentes da elaboraccedilatildeo paciente no trabalho manual no

cuidado com os cavalos no cultivo da oliveira Enfim uma deusa multifacetada para atender

necessidades em tempo de guerra e de paz de mulheres e de homens

De certa forma os deuses oliacutempicos refletiam todos os estados de coisas dos homens em

sua vida cotidiana

Uma forma de honrar os deuses e de implorar favores a eles era atraveacutes dos cultos e dos

rituais de sacrifiacutecio Assim o homem grego da eacutepoca arcaica mantinha um viacutenculo com o divino

com seus deuses e deusas atraveacutes da praacutetica de ritos fossem eles puacuteblicos ou privados Os 151 Discutimos sobre esse aspecto em um artigo de nossa autoria O olhar e a voz na construccedilatildeo do masculino ndash A questatildeo da paternidade in GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Masculino Campinas Editora Aliacutenea 2008

89

sacrifiacutecios coletivos oferecidos durante festivais sacros em geral incluiacuteam instrumentos

adequados e animais como viacutetimas Esse fato eacute revelador da continuidade de uma tradiccedilatildeo que se

mantinha dos tempos ancestrais Portanto mesclavam-se o antigo e o novo incorporando ritos a

deuses que tinham um ldquonovo formatordquo adaptados a uma sociedade guerreira cuja voz que se

fazia ouvir era a do masculino Da grande deusa passou-se ao deus supremo

Essa incorporaccedilatildeo da figura de deusas que mantinham sua autonomia vinculada ao

passado de grandes deusas sentadas no Olimpo venerando a figura de um reinado governado por

um deus coloca a mulher e o homem no bojo da historicidade de suas inter-relaccedilotildees

As deusas virgens do Olimpo parecem sugerir pistas de uma sociedade matriarcal anterior

e buscando rastrear seus atributos e funccedilotildees parece-nos que seus testemunhos da Antiguidade

Grega fazem-nos desvendar a ldquoinvisibilidade femininardquo

De fato eacute atraveacutes das deusas que se tem notiacutecia do papel das mulheres na sociedade As

meninas se preparavam para o casamento sob a ldquodomesticaccedilatildeordquo e orientaccedilatildeo de Aacutertemis e lhe

ofertavam seus brinquedos de infacircncia siacutembolos de uma fase que deixavam para traacutes No dia do

casamento em geral a noiva tomava banhos de purificaccedilatildeo indicadores de uma eacutepoca de

transformaccedilotildees pois os rituais de libaccedilatildeo faziam parte dos preparativos de fases muacuteltiplas dos

casamentos da Greacutecia antiga Um banquete era oferecido a Heacutestia na casa da noiva do qual ela

podia participar de rosto coberto por um veacuteu A menina tornava-se entatildeo ldquoinvisiacutevelrdquo escondida

atraveacutes do veacuteu uma presenccedila velada diante do noivo e da famiacutelia Heacutestia tambeacutem ldquoguiavardquo a

procissatildeo para a casa do noivo onde a jovem iria morar pois a matildee da noiva acompanhava o

trajeto carregando tochas acesas

Esses pedaccedilos de descriccedilotildees datildeo pistas a algumas reflexotildees importantes sobre o que hoje

se denomina estudo de gecircneros152 indicador de uma visatildeo da posiccedilatildeo ocupada pela mulher

naquela sociedade dominada por um pai Zeus que se configura como o soberano que representa

o poder diante de todos os outros deuses

152 Natildeo pretendemos explorar a questatildeo vinculada aos estudos de gecircnero cuja trajetoacuteria emerge da constataccedilatildeo de um conflito social na reinvidicaccedilatildeo de direitos tendo sido colocado nas ciecircncias sociais a partir de 1955 quando John Money propocircs o termo ldquopapel de gecircnerordquo atribuindo o conjunto de condutas referentes aos homens e agraves mulheres

90

A nossa leitura dessa categoria de gecircnero dentro de uma anaacutelise antropoloacutegica

comparativa parece superar um olhar que vecirc a mulher fortemente ldquovitimizadardquo dentro da

sociedade sem espaccedilo para a participaccedilatildeo e atuaccedilatildeo legiacutetima

De fato embora a praacutetica discursiva dominante fosse a voz de um pai supremo no

Olimpo outros deuses e deusas enredavam-se em um amplo sistema com diferentes funccedilotildees de

forma que ambos o feminino e o masculino colocavam-se em um mesmo patamar Entatildeo

questionamos o lsquopoderrsquo estaacute acima da questatildeo do gecircnero Zeus era pois o soberano acima de

todos os outros deuses e deusas e unido a deusas e a mulheres (humanas) simboliza o princiacutepio

masculino O princiacutepio era organizador tambeacutem pois representava a constituiccedilatildeo da famiacutelia em

que ambos os sexos satildeo contemplados De algum modo a Greacutecia arcaica preservava a funccedilatildeo

fecundadora da mulher pois ateacute mesmo as Amazonas mulheres independentes que se diziam

descendentes do deus da Guerra e da ninfa Harmonia mulheres que se governavam a si proacuteprias

sem recorrerem a homens usavam-nos no entanto para perpetuar a raccedila Diz a lenda que

conservavam os filhos do sexo feminino mutilando-lhes um seio para o manejo do arco e da

lanccedila Daiacute alguns autores fornecem o termo ά-microαξων (amazonas) como ldquoas que natildeo tecircm seiordquo

Nesse contexto a situaccedilatildeo de poder dentro da categoria de gecircnero eacute oposta tendo o

domiacutenio da situaccedilatildeo essas mulheres guerreiras cegavam os filhos do sexo masculino ou

deixavam-nos coxos

Aqui tambeacutem a questatildeo do olhar se coloca quer seja na mutilaccedilatildeo dos seios oacutergatildeos

femininos por excelecircncia quer seja na retirada dos olhos dos meninos

A deusa virgem Aacutertemis no seu repuacutedio ao olhar masculino e no seu firme propoacutesito de

manter-se virgem era a deusa cultuada por essas mulheres guerreiras e caccediladoras vinculadas agrave

divindade por um traccedilo que senatildeo por uma cultura no bioloacutegico pelo menos por uma biologia na

cultura Logo a questatildeo de gecircnero eacute ldquouma construccedilatildeo social e cultural um lsquomodo de ser no

mundorsquordquo153

153 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 p17

91

Quando os textos falam sobre a posiccedilatildeo do as mulheres frente agraves divindades ainda assim

temos que destacar que elas tinham uma participaccedilatildeo ativa nas celebraccedilotildees apesar de natildeo serem

permitidas em lugares onde se realizavam sacrifiacutecios violentos e onde se comia carne de animais

sacrificados Esses espaccedilos eram reservados aos cidadatildeos adultos do sexo masculino dada a

ldquoferocidaderdquo e ldquoatrocidaderdquo dos atos Preservava-se a mulher por sua constituiccedilatildeo bioloacutegica ou

pela constituiccedilatildeo soacutecio-poliacutetica desses rituais

Por outro lado alguns rituais que se realizavam no templo dedicado a Aacutertemis em

Brauron eram reservados apenas agraves jovens meninas de onze a quatorze anos as virgens que se

colocavam como ldquoursasrdquo antes do casamento

Seriam essas funccedilotildees marginais como coloca Ratto154 por uma questatildeo de gecircnero

significando aqui o contexto soacutecio-poliacutetico ou por uma questatildeo que envolve o bioloacutegico

Um outro aspecto que levanta uma discussatildeo quanto ao gecircnero com a carga semacircntica

que lhe eacute atribuiacuteda hoje eacute a situaccedilatildeo dos casamentos na Greacutecia antiga

Zeus unido a deusas simbolizava o princiacutepio masculino como jaacute se enfatizou e o esposo

legiacutetimo no casamento

A sociedade dos homens reproduzia esse estado de coisas atraveacutes de dois momentos que

ressaltavam a mudanccedila de posiccedilatildeo da mulher virgem um contrato formal entre o pai da noiva e o

noivo selado com a entrega do dote e a transferecircncia da jovem da casa do pai para a casa da

famiacutelia do noivo onde deveria perpetuar esse tipo de tradiccedilatildeo

Embora essa troca nos pareccedila altamente comercial (e natildeo deixa de ser um negoacutecio)

revela a preocupaccedilatildeo com as funccedilotildees femininas de procriaccedilatildeo de continuidade a uma genealogia

e do cuidado com a casa que era espaccedilo da alccedilada da mulher pois assim como Heacutestia as esposas

deviam zelar pelo lar e pela famiacutelia

154 RATTO Stefania Opcit ldquoIn Greece women took an active part in the celebration of the leading religious festivals though in marginal rolesrdquo p 140 [Na Greacutecia as mulheres tinham uma obrigaccedilatildeo ativa na celebraccedilatildeo dos festivais religiosos principais embora em funccedilotildees perifeacutericas (traduccedilatildeo nossa)] A autora menciona que em alguns festivais cabia agraves garotas lavar e vestir as estaacutetuas para o culto em outros festivais como as Pan-Ateneacuteias as jovens teciam os saiotes que eram carregados como oferendas agrave deusa Portanto parece que a autora quer dar ecircnfase natildeo ao tipo de funccedilatildeo em si executada pelas jovens mas ao fato de serem excluiacutedas da vida poliacutetica na participaccedilatildeo dos cultos de sacrifiacutecio e dos banquetes coletivos Vemos aiacute uma discussatildeo do ponto de vista de gecircnero como exposto nas ciecircncias sociais

92

Aleacutem disso a sociedade transitoacuteria na posiccedilatildeo que assumimos de um periacuteodo dominado

pela Grande Deusa a um patriarcalismo onde se impotildee a figura de um deus de um pai

dominante explicita a necessidade de preparar as jovens para uma nova etapa cuidando de sua

orientaccedilatildeo e favorecendo os aspectos transformadores que preparam para a aceitaccedilatildeo de papeacuteis

diferentes dos que tinham na casa do pai

Essa preocupaccedilatildeo que a famiacutelia grega manifesta embora um tanto condicionadora e

imposta por padrotildees sociais parecia revelar uma preocupaccedilatildeo com periacuteodos de iniciaccedilatildeo para

outras etapas da vida tanto puacuteblica quanto particular Acreditamos que essa forma de

sistematizar regras e normas sociais possa ter contribuiacutedo grandemente para a formaccedilatildeo do

pensamento filosoacutefico grego que inaugura uma outra etapa

Quanto agrave teologia das deusas virgens ela eacute integradora de vaacuterias dimensotildees da vida

humana no que concerne homens e mulheres ela eacute predominantemente comunitaacuteria e relacional

ela se coloca como contextual e concreta marcada pelo cotidiano da vida grega como lugar de

manifestaccedilatildeo do divino e ela eacute acima de tudo atuante no sentido de participar da vida dos

mortais de favorecer homens e mulheres de zelar no momento em que o feminino precisa da

presenccedila e da forccedila dessas potecircncias nas experiecircncias coletivas e isoladas como expressatildeo de

apoio e de solidariedade

A teologia das deusas virgens direciona para a teologia em que se coloca lado a lado o

masculino e o feminino em que deusas privilegiam a uniatildeo dos opostos a submissatildeo ao esposo

a experiecircncia da vida familiar As deusas Aacutertemis Atena e Heacutestia rompem o silecircncio da

dependecircncia do feminino impondo a consciecircncia de uma postura autocircnoma de uma perspectiva

feminina que eacute capaz de significar por si soacute sem o viacutenculo de outras presenccedilas quer seja de um

esposo quer seja de um filho quer seja de um amante

Nessa perspectiva poderiacuteamos ousar propor que a teologia feminista das deusas virgens

situa na Antiguidade as origens de um movimento que iraacute se constituir seacuteculos depois

refletindo a questatildeo de gecircnero que se vai delineando em cada movimento histoacuterico

A primeira tensatildeo instala-se com os mitos de criaccedilatildeo das lendas gregas que a partir daiacute

colocam como figura central um deus conferindo-lhe o direito e o poder do pai ou seja a

introduccedilatildeo de um conceito de patriarcado

93

Nas palavras e na visatildeo de Freitas o patriarcado na eacutepoca arcaica deve ser entendido

como uma condiccedilatildeo de inter-relaccedilotildees sociais e de imposiccedilotildees

Mas essa compreensatildeo do termo deixa na sombra o fato de que o pai como chefe de famiacutelia na Antiguidade era tambeacutem senhor amo e esposo Portanto o patriarcado conota um complexo sistema de subordinaccedilatildeo e dominaccedilatildeo 155

As deusas virgens revelam pois um conflito que eacute constitutivo do dualismo simboacutelico de

gecircnero uma vez que estaacute enraizado na convicccedilatildeo de que a experiecircncia humana estaacute imersa em

experiecircncias sustentadas por organizaccedilotildees sociais e poliacuteticas e por instituiccedilotildees e organismos

religiosos permeando todas as relaccedilotildees com seus aspectos contraditoacuterios e ambiacuteguumlos

O problema da linguagem os epiacutetetos referentes agraves deusas e o leacutexico que se impocircs como

caracteriacutestica de algumas expressotildees e atributos peculiares eacute outra questatildeo que nos fez observar

algumas colocaccedilotildees levantadas no estudo dessa teologia feminina

Quando discutimos a metodologia de nossa pesquisa fizemos algumas consideraccedilotildees

sobre os epiacutetetos das deusas e apoiamo-nos na obra de Parry156 um estudioso dos versos homeacutericos

No entanto pretendemos retomar um aspecto que enfatiza o caraacuteter da virgindade e

discuti-lo de uma posiccedilatildeo comparativa (interpretativista)

Narrando sobre a genealogia oliacutempica Hesiacuteodo coloca que

Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia157 mais saacutebia que os Deuses e os homens mortais Mas quando ia partir a Deusa de olhos glaucos158 Atena ele enganou suas entranhas com ardil com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo 890 por conselhos da Terra e do Ceacuteu159 constelado Estes lho indicaram para que a honra de rei natildeo tivesse em vez de Zeus outro dos Deuses perenes era destino que ela gerasse filhos prudentes primeiro a virgem160 de olhos glaucos161 Tritogecircnia162 igual ao pai no furor e na prudente vontade163

155 FREITAS Maria Carmelita de Op cit p 28-29 156 PARRY Millman Op cit 157 Em grego encontramos a palavra Μητιν (Meacutetis) uma divindade da primeira geraccedilatildeo eacute a personificaccedilatildeo da sabedoria e da Astuacutecia 158 Jaacute nos referimos ao epiacuteteto de Atena glaucoacutepida (γλαυκωπιν) 159 Referindo-se a Gaia (Γαίης forma poeacutetica) e Urano (Ούρανοΰ) 160 A palavra usada em grego eacute κούρην 161 Haacute repeticcedilatildeo na mesma estrofe do epiacuteteto γλαυκώπιdα 162 Tambeacutem haacute referecircncia ao epiacuteteto Τριτογένειαν Tritogecircnia ou Tritogeneacuteia que se refere ao lugar de seu nascimento Uma das versotildees eacute que teria sido agraves margens do lago Tritatildeo na Liacutebia 163 HESIacuteODO Op cit p 155

94

Veja-se que em seu primeiro casamento a esposa (Meacutetis) eacute literalmente engolida natildeo

deixando Zeus espaccedilo para uma situaccedilatildeo baacutesica do feminino de a mulher parir o filho que

espera

Assim nasce Atena da cabeccedila do pai (vs 924-926) virgem de olhos glaucos Tritogecircnia

guerreira infatigaacutevel semelhante ao pai no furor e na vontade Portanto essa deusa coloca-se jaacute

no iniciacuteo entre o masculino e o feminino uma deidade cujo aspectos bioloacutegicos natildeo satildeo

relevantes uma vez que

Para los griegos antiguos Atenea una de las diosas oliacutempicas maacutes importantes era la representacioacuten de la sabiduriacutea y la destreza En la manera en que se presenta su nacimiento que claros estos aspectos de su caraacuteter164

Aleacutem disso seu nascimento sem a figura materna indica um plano diferencial entre os

deuses entre o comportamento das deidades ancestrais e dos deuses oliacutempicos que iam surgindo

revelando provavelmente uma unificaccedilatildeo entre a cultura matriarcal e uma forma de

pratriarcalismo querendo apossar-se dos atributos da mulher Mas isso natildeo era uma forma de

desprezar o feminino na sua origem e na sua concepccedilatildeo pois Zeus engole Meacutetis para que

tambeacutem ele pudesse usufruir de sua sabedoria e tecirc-la dentro dele De certa forma ele assume a

individualizaccedilatildeo de Meacutetis e assumindo-a assume a paternidadematernidade de Atena em seu

nascimento ele estaacute reiterando que a figura da matildee existe e que tudo proveacutem dela

Diz Loraux a respeito do domiacutenio da matildee

[] a matildee eacute designada pela metoniacutemia da sua matriz ela proacutepria inteira numa parte de si mesma Fazer recuar ao maacuteximo os limites do tempo ou do espaccedilo para melhor encerrar a Deusa na sua lsquometrarsquo (local do materno no corpo das mulheres) tal eacute a operaccedilatildeo que natildeo nos parece possiacutevel escapar Mas como a Deusa eacute o todo porque como pensam os colaboradores os seus filhos natildeo tecircm necessidade de um Urano ciumento para ficarem para sempre presos nas profundezas do corpo materno tudo (Tudo) estaacute neste esconderijo no interior do grande continente feminino165

Atena nasce com a sabedoria materna da mulher pois e com a determinaccedilatildeo e forccedila do

pai mesclando qualidades femininas e masculinas De um lado a jovem virgem (κούρη) de

outro Atena terriacutevel (δειην) a guerreira infatigaacutevel

164 MAUROMATAKI Maria Op cit p 38 165 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 p 52

95

Na origem dos deuses Hesiacuteodo coloca a virgindade como atributo fixo ao lado de outros

que destacam Atena Usa em seu texto a palavra κούρη

O dicionaacuterio do autor francecircs Bailly apresenta para esse leacutexico a definiccedilatildeo ldquojeune fille c

a d jeune viergerdquo portanto uma jovem virgem oposto a έζευγmίνη ou seja ldquofemme marieeacuterdquo

(mulher casada)166

Este mesmo substantivo em Homero no plural Νύmicroφαι καυραι ∆ιός (Il 6 420)167 estaacute

se referindo agraves ninfas e tem um duplo sentido as ninfas filhas de Zeus isto eacute as ninfas virgens e

filhas de Zeus Nesse caso o termo Νύmicroφαι jaacute estaacute relacionado agrave ideacuteia de virgindade pois as

ninfas e as musas eram virgens (κουραι) Compara-se com Μοΰcαι Όλυmicroπιάδεα κοΰραι ∆ιδε

αιγιόχοιο168 traduzido por Torrano169 como ldquoMusas olimpiacuteades virgens170 de Zeus porta-eacutegiderdquo

Encontramos na Teogonia diversas vezes a referecircncia κούρη sempre traduzida por

virgem

No entanto o substantivo κoacuteρη tambeacutem toma a forma de nome proacuteprio referindo-se agrave

jovem filha de Demeacuteter Perseacutefone Nesse sentido a lenda enfatiza a matildee (Demeacuteter) e filha

(Perseacutefone) e o significado eacute o de filha tendo se estratificado como substantivo proacuteprio ( relativo

a Perseacutefone somente)

Em nossa leitura das obras e dos aspectos referentes agraves deusas virgens percebemos que

tambeacutem a palavra παρθένος eacute usada com o sentido de jovem e de virgem171 o adjetivo refere-se

agrave jovem pura e intacta ou a alguma coisa sem maacutecula como por exemplo παρθένιον φρέαρ ou

seja os poccedilos da Virgem perto de Elecircusis por isso capitalizado (senatildeo a leitura de παρθένιον

φρέαρ seria poccedilos de aacutegua liacutempida pura)

166 BAILLY Op cit p121 e 880 167 HOMERO Op cit p 292 (Em inglecircs daughters of Zeus) 168 HESIacuteODO Op cit p 162 v 1022 169 HESIacuteODO Op cit 170 Grifo nosso 171 Verificar entrada do leacutexico em BAILLY Op cit p 1489

96

Em Hesiacuteodo encontramos o uso de παρθένος referindo-se a jovens (provavelmente antes

do casamento) sem qualquer conexatildeo com as deusas de nossa investigaccedilatildeo Dizem os versos

204-205

Coube-lhe172 entre homens e deuses imortais As conversas de moccedilas (παρθένiacuteοvς) os sorrisos os enganos173 205

Aleacutem disso a estaacutetua de Atena em Atenas ldquocunhourdquo o termo partheacutenos como indicativo

de virgem bem como a constelaccedilatildeo de virgem conhecida em grego como PARTHEacuteNOS

Quais seriam os criteacuterios para a escolha de um ou de outro vocaacutebulo Fica aiacute a pergunta

que merece ter uma investigaccedilatildeo profunda dessa ocorrecircncia linguumliacutestica

Hipotetizamos que talvez a escolha do vocaacutebulo possa ter uma variaccedilatildeo devido agrave eacutepoca

oue agrave regiatildeo em que eacute usado

Percebemos que nos Hinos Homeacutericos compostos em periacuteodos posteriores e por

rapsodos diferentes a preferecircncia de emprego eacute a da palavra παρθένος referindo-se a qualquer

das trecircs deusas virgens

62 ndash O caraacuteter da virgindade no Cristianismo

Eacute interessante estabelecer um paralelo entre a mitologia grega e a religiatildeo cristatilde Se para

os gregos os mitos satildeo tidos como lendas que relacionam aos valores de uma eacutepoca o

Cristianismo emerge do pensamento judaico Os textos do Gecircnesis que satildeo tambeacutem simboacutelicos

e representativos de uma cultura tornaram-se poderosos documentos ldquoautecircnticosrdquo detentores de

ldquoverdadesrdquo emblemaacuteticas

Essas supostas verdades retratam ndash assim como os mitos gregos ndash visotildees da existecircncia

humana Elas contecircm como as lendas relaccedilotildees de gecircnero histoacuterias de terror e de piedade e

histoacuterias de amor e de poder

Aleacutem do contexto soacutecio-poliacutetico que orienta tanto o texto grego como o hebraico haacute a

questatildeo linguumliacutestica pois as traduccedilotildees requerem decisotildees interpretativas que como jaacute observamos

em capiacutetulo anterior satildeo motivadas de alguma forma pelas circunstacircncias e pela visatildeo de

172 Referindo-se agrave deusa Afrodite 173 HESIacuteODO Op cit p 117

97

mundo do tradutor Assim muitas vezes uma interpretaccedilatildeo direciona um texto a uma outra

cultura

Inuacutemeras vezes lendo textos em outras liacutenguas dizemos que gostariacuteamos de ldquopensarrdquo

como o falante nativo dessas liacutenguas ou seja de ter introjetada a sua cultura o que jaacute encaminha

para outros entendimentos

Portanto tanto a histoacuteria da ldquovirgindade das deusas gregasrdquo como a histoacuteria da

ldquovirgindade no Cristianismordquo jaacute estatildeo multifacetadas distorcidas e fragmentadas (como diria

Deleuze)

Continuando nosso paralelo proposto no iniacutecio temos dois relatos absolutamente

diferentes da criaccedilatildeo do mundo e dos seres humanos Enquanto os gregos divinizam o espaccedilo e

os homens surgem dentro desse espaccedilo sagrado na sua configuraccedilatildeo a tradiccedilatildeo hebraica coloca

Deus fora do mundo criando-o como espaccedilo para os mortais homens e mulheres Vecirc-se jaacute que

os deuses e os homens gregos habitam o mesmo cosmo em planos diferentes Para os hebreus

Deus estava aleacutem do cosmo o que implica que a humanidade habita outro espaccedilo e estaacute em outro

plano

No Olimpo circulam deuses e deusas e natildeo haacute questotildees motivadas por aspectos de

moralidade O mito eacute moldado atraveacutes de ritos iniciaacuteticos que prevecircem mudanccedilas de etapas e a

aquisiccedilatildeo de novos conhecimentos Haacute diferenccedilas que satildeo determinadas por funccedilotildees bioloacutegicas e

portanto por funccedilotildees sociais e uma das consequumlecircncias eacute o conflito natural as tensotildees que fazem

com que de alguma forma tambeacutem o mito apresente um enfoque binaacuterio

O Cristianismo poreacutem surge com um pensamento miacutetico binaacuterio O homem eacute criado por

Deus mas a etapa da ldquoquedardquo ndash atribuiacuteda agrave mulher ndash eacute inevitaacutevel

Esse pensamento hebraico inicial jaacute confere aos homens que eles sejam privados de

ingenuidade e de acesso a Deus o que lhes daacute consciecircncia discernimento e noccedilatildeo dessa

bipolaridade sexual

Eacute nesse contexto que surge a figura de Cristo tatildeo representativa que em nossos estudos

determinamos a eacutepoca arcaica grega em que se situam os textos de Homero por volta do seacuteculo

VIII antes da era Cristatilde tendo-o como referecircncia

Em Homero a menccedilatildeo da virgindade eacute pouco citada apenas para Atena e para Aacutertemis

sendo posteriormente ressaltada a virgindade de Aacutertemis e de Heacutestia aleacutem da de Atena nos

98

Hinos Homeacutericos Heacutestia era uma deusa silenciosa quase amorfa uma vez que provavelmente

vinculava-se agrave Grande Deusa dos ancestrais o que a fazia perder seus traccedilos definidos

Aleacutem disso dada a flexibilidade dos termos koreacute e partheacutenospodemos ateacute pensar em

uma possibilidade de eles estarem significando as ldquofilhasrdquo de Zeus antes do casamento sem uma

ecircnfase agrave questatildeo da virgindade em si mas do lsquoolharrsquo que conspurga a divindade Aacutertemis vinga-

se do olhar dos mortais Atena protege-se do olhar dos humanos

A proacutepria Afrodite enreda-se na questatildeo do olhar embora em seu caso a mortalidade de

Anquises seja superada pelo ato de procriaccedilatildeo e da descendecircncia dando continuidade ao

nascimento do heroacutei que eacute uma provaacutevel temaacutetica do Hino Homeacuterico a Afrodite V

A virgindade grega passa pois a ser conclamada a partir de Homero e de Hesiacuteodo (que

menciona Atena como κορή em seu nascimento) Os Hinos Homeacutericos jaacute de um periacuteodo

posterior ldquorecuperamrdquo esse aspecto e reorganizam os atributos dessas deusas virgens

enfatizando o epiacuteteto da virgindade e criando a lenda de um juramento de Heacutestia a Zeus para

manter-se virgem sempre Aiacute podemos supor que o mito passava por um periacuteodo de

transformaccedilatildeo acomodando-se a novos tempos fundindo aspectos de outras eacutepocas agrave era

arcaica

Em Homero na Iliacuteada e na Odisseacuteia do ponto de vista conceitual nota-se que o autor

apresenta uma teologia caracteriacutestica de seu tempo e como isso jaacute foi inuacutemeras vezes destacado

por diferentes autores os deuses movem-se ao lado dos humanos e repartem as mesmas

caracteriacutesticas

Dentro da Odisseacuteia e a Iliacuteada vatildeo sendo compostas narrativas dos deuses enredados em

situaccedilotildees que explicitam que assim como os homens eles estatildeo sujeitos a fatos que envolvem a

ldquosexualidaderdquo Eacute o que ouve Odisseu (Ulisses) sobre as aventuras de Afrodite com Ares a que jaacute

nos referimos

Hesiacuteodo remete-se na Teogonia agrave virgem Atena a Tritogecircnia filha de Zeus e de Meacutetis

(vs 886-896) Essa indicaccedilatildeo sobre o nascimento de Atena pode estar vinculada a uma deusa

Liacutebia (Neith) de uma eacutepoca em que as sacerdotisas-virgens (semelhante agraves Amazonas na sua

99

independecircncia e no seu caraacuteter guerreiro) entregavam-se todos os anos a um combate beacutelico Isso

justificaria os atributos de ldquovirgemrdquo ldquoTritogecircniardquo e ldquoguerreirardquo para Atena174

Fizemos essas regressotildees para chegar a uma observaccedilatildeo que consideramos importante

parece que a virgindade das deusas ancestrais estaacute bastante relacionada ao fato de natildeo

dependerem de um homem para terem sua identidade garantida embora pudessem mesmo ter

filhos da mesma forma que as Amazonas que mantinham sua ldquoprole femininardquo como forma de

dar continuidade agravequela ldquoespeacutecierdquo

Esse ponto tambeacutem supomos eacute resgatado pelo Cristianismo quando aponta para o fato

de que a matildee Maria eacute virgem O pai Joseacute teve sua figura obscurecida no Evangelho de Lucas e

tornou-se apenas um ldquosuporterdquo um pai fiacutesico provedor e silencioso na trajetoacuteria do filho na

superfiacutecie terrestre

Em Mateus o auto do nascimento de Jesus eacute significativamente mais curto que em Lucas

contando a histoacuteria da natividade com 31 versiacuteculos enquanto o de Lucas conta com 132

Falando da concepccedilatildeo de Jesus o evangelista refere-se ao dilema de Joseacute que eacute o personagem

principal

Diz Mateus (118-25) que Maria estava desposada com Joseacute e

Antes de coabitarem aconteceu que ela concebeu por virtude do Espiacuterito Santos Joseacute seu esposo que era homem de bem natildeo querendo difama-la rejeitaacute-la secretamente

Em seguida um anjo do senhor lhe diz

ldquoJoseacute filho de Davi natildeo temas receber Maria por esposa pois o que nela foi concebido vem do Espiacuterito Santordquo Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o senhor falou pelo profeta

174 Sobre essa referecircncia verificar a obra de PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) p 1157 Criacutetias no Timeu conta uma histoacuteria narrada a ele por um homem de aproximadamente noventa anos de idade comentando sobre o poeta Soacutelon e sobre sua narrativa (lsquoa veritable traditionrsquo) que ele havia trazido do Egito ldquoIn the Egyptian Delta at the head of which the rive nile divides thereis a certain district which is Called the district of Sais and the great city of the district is also called Sais and is the city from which king Amasis came The citizens have a deity for their foundress she is called in the Egyptian tongue Neith and is asserted by them to be the same whom the Hellenes call Athena They are great lovers of the Athenians and say that they are in some way related to themrdquo ldquoNo delta egiacutepcio do distrito eacute tambeacutem chamada de Sais e eacute a cidade na cabeceira do qual o rio Nilo se divide haacute um certo distrito chamado de distrito de Sais e a grande cidade de onde o Rei Amasis veio Os cidadotildees tecircm uma deidade para sua fundadora ela eacute chamada na liacutengua egiacutepcia de Neith e eacute afirmado por eles que ela eacute a mesma que os helenos chamam de Atena Eles satildeo grandes admiradores dos atenienses e dizem que eles satildeo de alguma forma relacionado a elesrdquo (traduccedilatildeo nossa)

100

Eis que a Virgem conceberaacute e daraacute aacute luz a um filho que se chamaraacute Emanuel (Isaiacuteas 714) que significa Deus conosco

Joseacute acatou as ordens quando acordou

Nessa fala de Mateus a revelaccedilatildeo se daacute atraveacutes de Joseacute

Finalmente Mateus acrescenta

E sem que ele a tivesse conhecido175 ela deu agrave luz o seu filho que recebeu o nome de Jesus176

O tributo ldquovirgemrdquo soacute eacute mencionado atraveacutes das palavras profeacuteticas de Isaiacuteas

O auto do nascimento em Lucas ao contraacuterio enfatiza Maria e coloca-a como receptora

da revelaccedilatildeo da virgindade

Diz o evangelho (Lucas 126-27)

o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiteacuteia Chamada Nazareacute a uma virgem177 com um homem que se chamava Joseacute da casa de Davi e o nome da virgem178 era Maria

Percebe-se a ecircnfase dada agrave Maria e a questatildeo da virgindade colocando Joseacute em segundo

plano

Apoacutes o anjo anunciar-lhe a concepccedilatildeo Maria pergunta ao anjo (134)

ldquoComo se faraacute isso pois natildeo conheccedilo homem179rdquo180

Portanto a questatildeo da virgindade tem um enfoque significativo e diferente em Mateus e

em Lucas para o primeiro evangelista Maria jaacute estava graacutevida ao desposar Joseacute Para o segundo

apesar de ser casada ela natildeo tinha relaccedilotildees maritais com Joseacute A revelaccedilatildeo do primeiro caso

para ser convincente ao marido daacute-se a ele atraveacutes de um sonho No segundo caso a moccedila

casada que se manteacutem ainda em estado de virgindade recebe a noticia do anjo estando desperta

175 Alguns autores colocam ldquonatildeo a conheceu maritalmenterdquo o que remete provavelmente agrave conotaccedilatildeo do texto original 176 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 177 Grifo nosso 178 Grifo nosso 179 Em BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 p 25 encontramos a traduccedilatildeo (de Vera Ribeiro) ldquoComo seraacute isso possiacutevel se sou virgemrdquo 180 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982

101

Em Mateus Maria eacute colocada como uma jovem graacutevida antes do matrimocircnio com a

justificativa de ter sido obra do Espiacuterito Santo Ora segundo dados histoacutericos da eacutepoca muitas

jovens judias eram estupradas por soldados romanos e este poderia ter sido o caso de Maria

Joseacute pertence agrave mesma tribo de Davi acolhe-a e ao filho para que o infante pudesse ser

reconhecido como cidadatildeo judeu filho que era de matildee judia

Parece-nos aqui tambeacutem que a questatildeo da gravidez de Maria deva ter enfoque poliacutetico-

social uma vez que a Igreja Catoacutelica em 649 no Conciacutelio Ecumecircnico do Latratildeo colocou a

virgindade de Maria antes durante e depois do parto de Jesus como dogma

Tentando pensar o conceito de dogma encontramos uma definiccedilatildeo bastante ampla e que

contempla vaacuterios aspectos inclusive o da inquestionabilidade por ter conexatildeo com revelaccedilatildeo

divina Temos pois que

Na Igreja Catoacutelica um dogma eacute uma verdade absoluta definitiva imutaacutevel infaliacutevel inquestionaacutevel e ldquoabsolutamente segura sobre a qual natildeo pode pairar nenhuma duacutevidardquo Uma vez proclamado solenemente ldquonenhum dogma pode serrdquo revogado ou ldquonegado nem mesmo pelo Papa ou por decisatildeo conciliarrdquo Por isso os dogmas constituem a base inalteraacutevel de toda a Doutrina Catoacutelica e qualquer catoacutelico eacute obrigado a aderir aceitar e acreditar nos dogmas de uma maneira irrevogaacutevel181

A virgindade de Maria atesta que Jesus eacute filho do Senhor e o dogma de sua virgindade

reafirma o fato que Jesus eacute o filho primogecircnito e uacutenico de Maria natildeo tendo tido irmatildeos carnais

Quando os textos biacuteblicos se referem aos ldquoirmatildeosrdquo de Jesus podem indicar qualquer parentesco

ou ateacute mesmo ldquoamigordquo em hebraico

Do ponto de vista teoloacutegico a virgindade de Maria revela um comportamento que vai

aleacutem de um dado bioloacutegico e fiacutesico pois ressalta uma decisatildeo pessoal consciente de se dedicar

a servir uma missatildeo Dizendo que aceitava a sua virgindade Maria estava se consagrando agrave

missatildeo que Deus lhe dava

Vemos este aspecto inteiramente semelhante ao das deusas virgens no que concerne

abdicar conscientemente de relaccedilotildees amorosas assumindo o celibato consagrado a uma missatildeo

quer seja como a Grande Deusa como a Grande protetora ou como a grande Amazona todas

tendo em comum o estigma de ldquomatildeesrdquo ldquovirgensrdquo dada a dimensatildeo da funccedilatildeo que ocupam

Inspiradas na missatildeo de Maria as freiras catoacutelicas vatildeo procurar seguir a trilha da

virgindade e da consagraccedilatildeo da vida a Deus

181 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009

102

Quando na enciacuteclica Redemptoris Mater de 1987 o Papa Joatildeo Paulo II refere-se ao dom

da maternidade de Maria podemos remeter-nos ao texto de Loraux182 jaacute por noacutes citado sobre o

poder do domiacutenio da matildee ldquoesse grande continente femininordquo que abarca tudo

Diz parte do item n39 da enciacuteclica Redemptoris Mater

As palavras lsquoEis a serva do Senhorrsquo comprovam o fato de ela desde o principio ter aceitado e entendido a proacutepria maternidade como dom total de si da sua pessoa a serviccedilo dos desiacutegnios salviacuteficos do Altiacutessimo E toda a participaccedilatildeo materna na vida de Jesus Cristo seu filho ela viveu-a ateacute o fim de um modo correspondente agrave sua vocaccedilatildeo para a virgindade183

Eacute interessante observar que a lsquovirgindadersquo eacute vista como vocaccedilatildeo uma vez que implica

reprimir o desejo negando os lsquotrabalhosrsquo da ldquoAacuteurea Afroditerdquo assumindo uma independecircncia

pessoal por um lado e uma dedicaccedilatildeo ilimitada a uma missatildeo por outro lado

No entanto essas consideraccedilotildees que foram colocadas ateacute aqui refletem uma crenccedila

corrente entre os cristatildeos catoacutelicos Mas a questatildeo da virgindade eacute questionada por estudiosos da

aacuterea da religiatildeo e da cultura Assim os professores Borg e Crossan184 investigam a virgindade da

Maria sob diferentes acircngulos

Uma delas eacute a suspeita que Mateus coloca no iniacutecio de sua paraacutebola sobre um presumido

adulteacuterio de Maria Qual teria sido a intenccedilatildeo do evangelista ao fazer tal colocaccedilatildeo se

questionam os autores Em Lucas natildeo haacute nada que diga como Joseacute descobriu ou reagiu diante da

gravidez de Maria e nem mesmo que ele tivesse tido algum problema com esse fato

Dizem os autores

Ainda que Mateus quisesse contar a histoacuteria inteiramente do ponto de vista de Joseacute ndash ao contraacuterio de Lucas que o fez do ponto de vista de Maria ndash ele poderia ter feito o anjo revelar tudo a Joseacute lsquoantesrsquo da concepccedilatildeo de Maria E se quisesse manter-se patriarcal poderia ter feito Joseacute dizer a Maria o que aconteceria com ela Portanto a pergunta persiste Na matriz contextual da tradiccedilatildeo grega romana e judaica de mulheres virginais esteacutereis ou idosas por que apenas Mateus levantou o espectro de uma aduacuteltera e natildeo de uma concepccedilatildeo divina

182 LORAUX Nicole Op cit 183 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 184 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p 123-155

103

Logo haacute uma acusaccedilatildeo anticristatilde de adulteacuterio e a concepccedilatildeo divina parece ser um modo

de encobrir esse adulteacuterio185 Para os autores Mateus baseou-se de maneira deliberada na

concepccedilatildeo de Moiseacutes dentro das versotildees midraacutesticas que eram correntes no seacuteculo I

Estabelecendo um paralelismo com a concepccedilatildeo de Jesus seguindo o esquema ldquodivoacuterciordquo (Joseacute

intenciona deixar Maria) ldquorevelaccedilatildeordquo (o anjo revela a Joseacute a concepccedilatildeo como obra do Espiacuterito

Santo) ldquorecasamentordquo (Joseacute assume Maria e o filho) Seria essa a causa de sua ecircnfase no

controle divino por meio de sonhos e profecias bem como no foco do ponto de vista masculino e

paterno e principalmente para defender o tema que Mateus acreditava ldquoJesus eacute o novo Moiseacutesrdquo

Segundo autores citados Lucas ao contraacuterio natildeo propotildee a virgindade de Maria como

revelaccedilatildeo profeacutetica mas antes como atributo divino estabelecendo mesmo um paralelo entre a

histoacuteria da concepccedilatildeo de Jesus (por uma virgem) e a histoacuteria da concepccedilatildeo de Joatildeo Batista (por

uma esteacuteril) (Lucas 1-2)186 Assim Lucas parece ressaltar o fato de que Jesus natildeo eacute simplesmente

um novo Joatildeo siacutembolo e siacutentese de um Antigo Testamento filho de matildee esteacuteril e idosa Jesus

vem de matildee casta e daacute iniacutecio a uma nova fase da Histoacuteria com ele comeccedila o Novo Testamento

A conclusatildeo desses fatos eacute que parece que havia uma preocupaccedilatildeo soacutecio-poliacutetica no texto

desses evangelistas Mateus desejava resgatar a figura de Moiseacutes em Cristo e para isso

necessitava colocar o cumprimento das profecias Lucas desejava como se viu colocar Maria e

Cristo como modelos de uma nova era e sua ecircnfase natildeo eacute na profecia que ele nem menciona

mas na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo onde satildeo construiacutedas as figuras de Maria e do filho

Maria eacute pois rsquoabenccediloadarsquo e lsquoobediente agrave becircnccedilatildeo divinardquo e como a primeira cristatilde

perfeita ela eacute tambeacutem lsquovirgemrsquo quer dizer divina de acordo com a tradiccedilatildeo judaica e biacuteblica

(referindo-se aos casos de pais idosos e esteacutereis no Antigo Testamento e por analogia

introduzindo uma outra forma no Novo Testamento)

Comparando-se com Afrodite mesmo em sendo deusa sua concepccedilatildeo com Anquises ou

com Ares natildeo tem a tradiccedilatildeo da virgindade Apesar de ser matildee de heroacutei Eneacuteias considerado o

fundador de Roma ou de outros deuses como Eros um deus que se funde com as caracteriacutesticas

185 Borg e Crossan inspiraram-se em um texto de Oriacutegenes do seacuteculo III polemizando a obra do anticristatildeo Celsus do final do seacuteculo II relatando sobre o nascimento de Jesus e spbre a ldquofalsardquo virgindade de Maria a fim de aplacar os rumores sobre as circunstacircncias verdadeiras da presenccedila de soldados romanos que haviam vindo para sufocar uma revolta em Seacuteforis perto de Nazareacute proacuteximo da eacutepoca em que Jesus nasceu Haacute ateacute mesmo a menccedilatildeo do soldado como Panthera como trocadilho sarcaacutestico do termo grego patheacuternos a lsquovirgemrsquo 186 Biacuteblia Sagrada Op cit p 1345-1348

104

da matildee o intercurso sexual divino se dava de forma fiacutesica a tal ponto que Afrodite precisou

ldquopurificar-serdquo apoacutes sua relaccedilatildeo com Ares

Poreacutem o Cristianismo introduziu a virgindade nas relaccedilotildees humanas para que pudesse ser

exaltada a concepccedilatildeo divina e virginal de Jesus acima de todas as demais ndash especialmente sobre a

de Ceacutesar Augusto considerado ldquofilho de Apolordquo

Citando ainda Borg e Crossan eles dizem

Seja como for a virgindade a esterilidade a longevidade ou qualquer outra coisa que possamos imaginar satildeo simples maneiras de enfatizar sublinhar e ldquoprovarrdquo que a concepccedilatildeo foi divina Eacute essa concepccedilatildeo divina que importa Eacute a teologia do filho e natildeo a biologia da matildee que estaacute em jogo187

187 BORG Marcus J amp CROSSAN John Dominic op cit p151

105

CONCLUSAtildeO OU INDICACcedilAtildeO DE SUPOSICcedilOtildeES

Uma primeira conclusatildeo a que se chega eacute que a genealogia parece ser um dado

importante e relevante entre os povos da Antiguidade Por isso o Evangelho de Mateus antes de

citar a concepccedilatildeo e o nascimento de Cristo coloca catorze geraccedilotildees que o precederam sem que

se saiba como possa ter sido essa informaccedilatildeo dos protocolos dada a Mateus A ecircnfase da

genealogia tambeacutem era comum entre os gregos todos os deuses incluindo as deusas virgens

tecircm sua genealogia nomeada Atena nasce da cabeccedila do pai supremo (Zeus) e foi gerada por uma

matildee com caracteriacutesticas astutas (Meacutetis) mas como protetora de Atenas haacute indiacutecios de que se

vinculava a uma deusa da Liacutebia e foi a filha de Zeus o que jaacute mostra sua ancestralidade

Aacutertemis tinha como pais Zeus e Leto e como Afrodite era de natureza uracircnica Aacutertemis

nasce com o seu duplo o irmatildeo Apolo tendo atributos comuns a ele Portanto Atena e Aacutertemis

ficam entre o masculino e o feminino distinguindo-se entre aspectos de estrateacutegia e de

belicosidade proacuteprios do masculino na conquista na independecircncia e no poder Por outro lado

caracterizam-se pela proteccedilatildeo e o acompanhamento ldquomaternosrdquo zelando para a soluccedilatildeo de

dificuldades e para os encaminhamentos de etapas da vida

Diferentemente de Aacutertemis e Atena Heacutestia eacute irmatilde de Zeus filha de Reacuteia e de Crono e foi

libertada do ventre de Crono por quem tinha sido engolida a partir do momento em que Zeus

com ldquoseu furor agarra as armas o trovatildeo o relacircmpago e o raio flamante e fere-o188 saltando do

Olimpordquo189

Todas as deidades quer sejam elas miacuteticas ou cristatildes tecircm o relato de um elenco

protocolar da genealogia como forma de apresentar a ligaccedilatildeo com um sistema simboacutelico que

garanta a coerecircncia interna com um princiacutepio organizador no sistema miacutetico ou com um

principio criador (o Verbo) no sistema cristatildeo

Tanto o sistema miacutetico como o sistema cristatildeo reproduzem o plano de uma vontade

divina O Cosmo vem do Caos (entidade primordial) mas soacute se organiza a partir da vitoacuteria de

Zeus que eacute colocado no centro do universo como deus supremo rodeado dos outros deuses que

188 Refere-se a Crono 189 HESIacuteODO Op cit p 153 vs 853-855

106

representam diferentes aspectos desse cosmo Com a morte e ressurreiccedilatildeo de Cristo reorganiza-

se um novo sistema religioso tendo iniacutecio o Novo Testamento

Assim a genealogia das deusas virgens se constitui a partir da organizaccedilatildeo do cosmo

com Zeus e a genealogia cristatilde do Novo Testamento se organiza com Cristo Com ambos

comeccedila uma nova era

A genealogia dos deuses eacute importante para que seja resgatado nas narrativas feitas um

sentido histoacuterico que se ajuste agraves eacutepocas e agraves influecircncias soacutecio-poliacuteticas Nesse contexto

ldquoperambulamrdquo as divindades dominantes

Mas atraacutes da ldquogenealogia aparenterdquo existe uma genealogia anterior a que se apoacuteia em

diferentes raccedilas em diferentes tribos em diferentes periacuteodos histoacutericos em diferentes ideologias

Essas concepccedilotildees foram expressas nos mitos que misturavam temas e eacutepocas que tinham

versotildees de acordo com ldquoresquiacuteciosrdquo de diferentes vozes e que por isso alguns autores

denominaram de ldquosincreacuteticasrdquo

Isso acontece com muitos deuses e deusas e nosso objeto de estudo as deusas virgens

tambeacutem tem um viacutenculo com lendas e histoacuterias da Greacutecia marcadas por uma fertilidade agriacutecola

e por atividades guerreiras

Essa preocupaccedilatildeo de estabelecer ligaccedilotildees com um passado como base de evoluccedilotildees

sucessivas jaacute estava presente em alguns autores da eacutepoca arcaica e de acordo com Lovejoy e

Boas190 Hesiacuteodo foi considerado ldquoo primeiro testemunho do que chamaram de lsquoprimitivismo

cronoloacutegicorsquordquo

Por isso decifrar ldquoos mitosrdquo das deusas virgens e reconhecer o estatuto dessa virgindade

a elas atribuiacuteda parece ser possiacutevel apenas atraveacutes de suposiccedilotildees Interligando pois a figura de

Heacutestia a outras narrativas que compotildeem um mesmo perfil semacircntico percebemos que sua

presenccedila estaacute sempre vinculada ao fogo sagrado e portanto a um elemento da natureza Sua

representaccedilatildeo eacute tatildeo ldquoabstratardquo e incorpoacuterea que eacute difiacutecil determinar-lhe atributos Teria Heacutestia

pertencido a uma eacutepoca mais como principio abstrato do que como divindade com traccedilos

femininos distintos Teria Heacutestia alguma ligaccedilatildeo com Agni deus do fogo na Iacutendia Por que

190 Cf LE GOFF Jacques Op cit p 294

107

Em estreita conivecircncia com Heacutestia Zeus tem o controle tanto sobre a lareira privada de cada casa ndash no centro fixo que constitui como que o umbigo no qual se enraiacuteza a morada familiar ndash quando sobre a lareira comum da cidade no seio da aglomeraccedilatildeo na Heacutetia Koineacute onde velam os magistrados priacutetanes191

Teria sua virgindade sido ldquocriadardquo a partir da falta de histoacuterias que envolvessem Heacutestia

em questotildees amorosas

Por que soacute a partir dos Hinos Homeacuterico ndash em especial o Hino Homeacuterico V a Afrodite ndash

Heacutestia eacute colocada explicitamente como virgem (parthenos) fazendo um pedido ao pai para que

pudesse manter-se virgem e natildeo se casar

Ainda cavando pistas de genealogias anteriores das deusas virgens antes de levantarmos

nossas hipoacuteteses sobre a virgindade e o epiacuteteto lsquovirgemrsquo das deusas e de Maria procuramos

levantar questotildees sobre Atena Seu surgimento no mundo eacute diferente do das outras deusas

virgens pois nasce da cabeccedila do pai o que lhe garante um jeito diferente de Ser Duas outras

consideraccedilotildees sobre Atena que jaacute foram exploradas ao decorrer de nossas reflexotildees satildeo

colocadas aqui a tiacutetulo de recordaccedilatildeo primeiro Atena eacute a uacutenica deusa considerada

ontologicamente virgem pois ao nascer (veja-se v 895 em Hesiacuteodo) jaacute tem sua virgindade

garantida segundo a identificaccedilatildeo feita por Platatildeo bem como por Apolocircnio de Rodes de que

Atena seria procedente da Liacutebia Platatildeo a coloca como sendo a deusa Neith de eacutepoca anterior agrave

arcaica em que a paternidade natildeo era reconhecida um periacuteodo matriarcal em que Neith tinha

suas sacerdotisas-virgens que se entregavam todos os anos a um combate armado para fins de

conquistar a posiccedilatildeo de sacerdotisa-superior Portanto a virgindade de Atena a κoύρη de

nascimento parece ser colocada desde a sua origem quer se considere a Teogonia grega quer se

considere a versatildeo de sua genealogia Liacutebia

Quanto a Aacutertemis podemos hipotetizaacute-la como sendo ldquoderivadardquo da histoacuteria indo-

europeacuteia uma deusa a quem se vinculam as Amazonas demarcando o espaccedilo entre o mundo

primitivo e a civilizaccedilatildeo192

Da perspectiva genealoacutegica tanto em Mateus como em Lucas a virgindade de Maria eacute

preservada Diz Lucas 323193

191 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 192 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007 p 24 193 BIBLIA SAGRADA p 1350

108

ldquoQuando Jesus comeccedilou o seu ministeacuterio tinha cerca de trinta anos e era tido como filho de Joseacute filho de Helirdquo

Em Mateus 116194 temos sobre a genealogia de Jesus

ldquoJacoacute gerou Joseacute esposo de Maria da qual nasceu Jesus que eacute chamado Cristordquo

Embora as genealogias sejam divergentes em relaccedilatildeo a Joseacute (o que atesta um problema de

reconhecimento de paternidade) haacute uma forma de representaccedilatildeo linguumliacutestica que preserva a

virgindade de Maria pois as descriccedilotildees natildeo permitem a suposiccedilatildeo de que Joseacute possa ser o pai

bioloacutegico de Jesus Em Lucas ldquoera tido comordquo portanto o que equivale a dizer que natildeo era em

Mateus ldquoda qual nasceu Jesusrdquo referindo-se a Maria e natildeo a Joseacute

Chegamos pois ao momento de ldquoenfrentarmosrdquo a virgindade definindo-a por traccedilos se

natildeo por conceitos

A primeira constataccedilatildeo que se chegou eacute que a ideacuteia de ldquocastidaderdquo eacute mais tardia e que a

virgindade no iniacutecio dos tempos vincula-se a uma forma de poder

Resgatando uma definiccedilatildeo relacionada ao poder quando jaacute se estava por volta da eacutepoca

217 aC narra a lenda que Claacuteudia Quinta sacerdotisa de Vesta ia sofrer processo que

terminaria com uma morte ritual o que significava que ia ser sepultada viva Claacuteudia ia ser

punida por ter infringido seu voto de virgindade ndash o que significava a missatildeo para a qual tinha

sido designada No entanto nessa mesma eacutepoca Aniacutebal devastava a Itaacutelia e como narra Cacircmara

Cascudo

A sibila de Cumes aconselhou a vinda da pedra negra de Pessinonte na Aacutesia menor tombada do ceacuteu e considerada como a viva encarnaccedilatildeo de Cibele O barco que trouxe a pedra negra encalhou no Rio Tibre e os auguacuterios anunciaram que uma virgem arrastaria a embarcaccedilatildeo da lama e a poria a nado195

Eacute ai que entra Claacuteudia Quinta que diante de todo o povo romano invoca a deusa Cibele

e amarrando o rostro do navio com o seu cinto de Vestal consegue puxaacute-lo facilmente Tendo

cumprido essa missatildeo de ldquocaraacuteter puacuteblicordquo Claacuteudia daacute a prova de sua virgindade

Assim Cacircmara Cascudo inicia seu capiacutetulo sobre virgindade dizendo

A virgindade explica as estoacuterias populares e na tradiccedilatildeo maacutegica a forccedila irresistiacutevel e os atos sobre-humanos de valentia196

194 Idem p 1285 195 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Supersticcedilatildeo no Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia 1985 p 286 196 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 286

109

Cacircmara Cascudo narra vaacuterias supersticcedilotildees e crenccedilas em que o poder da virgem cura

regenera recupera

Como Heacutestia soacute uma virgem podia ter a obrigaccedilatildeo de acender e guardar o fogo sagrado

da vestais em Roma

Cacircmara Cascudo cita vaacuterias caracteriacutesticas das deusas virgens que vimos ao longo de

nosso trabalho a forccedila fiacutesica a resistecircncia ao combate a ausecircncia de medo a solicitude o

cumprimento de obrigaccedilotildees a valentia inexpugnaacutevel a alegria expressa em cantos danccedilas e

urros como ldquoemanaccedilotildees da virgindaderdquo

Ora nesse sentido coloca-se a deusa Afrodite que se posicionou frente a frente com as

deusas ditas virgens nos Hinos Homeacutericos Para nossa surpresa tambeacutem Cacircmara Cascudo

apresenta uma lista reveladora de deusas virgens e laacute se encontra a uracircnia natildeo Aacutertemis mas

Afrodite Vejamos o que diz Cacircmara Cascudo pois esse aspecto relaciona-se com a hipoacutetese que

tentamos levantar

As virgens criadoras tiveram o culto mais profundo e natural Era o poder para a Vida e sempre o potencial mais puro Nari dos indus Muta-Iacutesis dos egiacutepcios Atar dos aacuterabes Astoret dos feniacutecios Afrodite-Anadiocircmene dos gregos Vesta dos romanos Luonatar dos finlandenses Herta dos germanos Dea dos gauleses Iza dos japoneses Ira dos oceacircnicos foram reverenciadas nessa invocaccedilatildeo espontacircnea e poderosa197

Dessa forma estavam relacionadas a pureza ndash que podia ser conseguida atraveacutes de ritos

de purificaccedilatildeo ndash e a ldquoenergiardquo A tradiccedilatildeo das virgens prevecirc uma forccedila e um poder a tal ponto

que ldquoa Virgo Potens irresistiacutevel teraacute a maior aacuterea de influencia religiosa que qualquer elemento

temaacutetico no mundo do passado histoacutericordquo198

A virgindade assim concebida eacute dom eacute poder e eacute forccedila sobrenatural

Na Greacutecia antiga isso nos faz pensar que o celibato era uma forma de preservar a

autonomia e portanto a forccedila e o poder das divindades para a missatildeo que deviam desempenhar

no cosmo Assim sendo nesse universo grego apenas Hera comparada agraves deusas Aacutertemis

Atena Heacutestia e Afrodite natildeo possuiacutea autonomia ldquoDesgastava-serdquo com os afazeres familiares

pois submissa ao marido Zeus estava sempre vigilante sobre suas conquistas amorosas e todas

as suas lendas de uma forma ou de outra vinculam-na ao masculino isto eacute a Zeus

197 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287 198 CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Op cit p 287

110

Afrodite apesar de ser a deusa que promove a ldquophiliardquo e portanto natildeo ser virgem

tambeacutem tem autonomia move-se entre deuses e homens promovendo sua forccedila criadora

Mesmo seu casamento natildeo tem caraacuteter de submissatildeo ao masculino pois foi um casamento

arranjado por Hera ndash aquela que se dedica aos arranjos familiares ndash e aleacutem do mais aquele que eacute

tido como esposo eacute coxo e ldquosem importacircnciardquo dada a ausecircncia de valentia e brilho nas histoacuterias

em que Hefesto participa Ao contraacuterio seus atos satildeo secundaacuterios e pouco relevantes

Diferentemente de Hera Afrodite ndash virgem ou natildeo ndash tem uma importacircncia em si mesma

aos moldes de Aacutertemis Atena e Heacutestia

Aleacutem disso tanto as deusas virgens como Afrodite tecircm uma missatildeo no cosmo fora do

espaccedilo da casa Como diz Hesiacuteodo ldquoAtena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevelrdquo199

Referindo-se a Afrodite

Esta honra tem decircs o comeccedilo e na partilha coube-lhe entre homens e deuses imortais as conversas de moccedilas os sorrisos os enganos o doce gozo o amor e a meiguice200

Aacutertemis eacute tida como a ldquoverte-flechasrdquo ldquoLeto gerou Apolo e Aacutertemis verte-flechasrdquo201

O que queremos destacar eacute que aleacutem de uma missatildeo que exige uma certa autonomia das

deusas parece tambeacutem que o poder da virgindade eacute uma forma de preservar divindades de um

periacuteodo matriarcal quando ainda natildeo se destacava e natildeo se nomeava o masculino

Assim o celibato preserva a autonomia a liberdade de movimentos e incorpora

caracteriacutesticas de uma eacutepoca das grandes deusas

Nesse sentido a virgindade no Cristianismo pode ter um propoacutesito semelhante pois parte

da valorizaccedilatildeo do feminino e do celibato e como consequumlecircncia o sexo passa a ter uma

conotaccedilatildeo negativa no mundo judaico-cristatildeo o que natildeo havia ateacute entatildeo na tradiccedilatildeo judaica

Sobre esse assunto haacute uma beliacutessima discussatildeo encaminhada por Spong Diz ele entre

outros trechos sobre o aspecto da sexualidade

The Bible in general and the birth narratives in particular became a subtle unconscious source for the continued oppression of women The cultural assumption was made that the only proper way for a moral woman to conduct herself was to remain safely inside

199 HESIacuteODO Op cit p 157 v 925 200 HESIacuteODO Op cit p 117 vs 203-206 201 HESIacuteODO Op cit p 157 v 918

111

the sexually profective barriers provided first by her father and second by her husband202

Um aspecto positivo no Cristianismo ao proclamar a virgindade de Maria foi o fato de

nomear a matildee de colocaacute-la dentro da importacircncia da histoacuteria de nascimento da histoacuteria da

humanidade

A partir do retrato elaborado de Maria como matildee virgem tambeacutem hipotetizamos um

outro ponto de que o sofrimento eacute de alguma forma inerente ao aspecto da virgindade Se por

uma lado daacute autonomia em relaccedilatildeo agrave presenccedila de domiacutenio de um esposo de outro prevecirc uma

renuacutencia pessoal aos envolvimentos domeacutesticos frente a uma missatildeo mais ampla quase sempre

de ordem puacuteblica e que requer uma doaccedilatildeo Entatildeo perguntamos isso natildeo equivalia a ldquotrocarrdquo a

submissatildeo do marido pela submissatildeo a uma divindade Natildeo seria deixar de assumir o

compromisso terreno para assumir o sagrado

No Hino Homeacuterico a Afrodite Heacutestia submete-se ao pai Zeus solicitando-lhe permissatildeo

para natildeo se casar e manter-se virgem

Na lsquoAnunciaccedilatildeorsquo em Lucas Maria submete-se aos desiacutegnios de Deus usando o termo

ldquoservardquo na sua fala de concordacircncia

Eacute preciso uma resignaccedilatildeo um poder e forccedila para manter o equiliacutebrio do Ser com o

desempenho de uma missatildeo Por isso vimos Aacutertemis sofrendo com o parto difiacutecil da matildee o que

coloca uma temeridade em um aspecto do feminino aiacute embora seja uma funccedilatildeo criadora

semelhante agrave da natureza Por isso reza a lenda ela passa a se dedicar agrave causa da mulher como

orientadora nos casamentos e protetora nos partos A mesma Aacutertemis afugenta os pretendentes

deuses e mortais para natildeo deixar que a seduccedilatildeo possa interferir em sua natureza de mulherdeusa

liberta ndash entre dois mundos entre duas culturas ndash no cumprimento da funccedilatildeo que lhe foi

atribuiacuteda a de ldquoverte-flechasrdquo

Atena eacute marcada pelo sofrimento de sua chegada sem matildee mas inaugura uma ldquogeraccedilatildeordquo

nova em que o pai recebe os filhos e os aceita Atena nasce virgem pois sua virgindade eacute

predeterminada bem como sua funccedilatildeo que requer poder e renuacutencia do aspecto feminino

202 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 A Biacuteblia em geral e as narrativas de nascimento em particular se tornaram uma fonte sutil inconsciente de opressatildeo contiacutenua das mulheres Foi feita a conjetura cultural de que o uacutenico meio adequado para uma mulher de moral se conduzir era permanecer segura dentro das barreiras protetoras da sexualidade fornecidas primeiro pelo pai e segundo pelo marido (traduccedilatildeo nossa)

112

particular Ela eacute assumida como virgem e guerreira Sua virgindade eacute colocada como fato seja

como representante de Atenas descendente de Zeus seja como descendente da deusa virgem

Neith da Liacutebia

Heacutestia tem uma missatildeo civilizatoacuteria de grande espectro cuida de cada casa conhece os

dramas da convivecircncia domeacutestica das relaccedilotildees de gecircneros da sociedade grega da poliacutetica que

circunda a pira puacuteblica Como poderia ao mesmo tempo essa grande deusa incorpoacuterea

matriarcal cuidar de esposo de filhos e de sua proacutepria casa

Afrodite tem uma missatildeo que tambeacutem transcende o particular o que nos fez pensar que

talvez dentro da histoacuteria da sociedade patriarcal apenas tenham autonomia e independecircncia em

sua missatildeo as virgens (as deusas gregas com funccedilotildees diferenciadas as vestais na sua funccedilatildeo de

guardiatildes do fogo sagrado agrave maneira de Heacutestia Maria na sua missatildeo Cristatilde as freiras em sua

missatildeo teoloacutegica) e as mulheres que se dedicaram ao amor sem deixar se submeter pelo

domiacutenio do masculino (Afrodite livre no seu agir independente na sua conduta (embora tivesse

um marido) as vestais prostitutas sagradas as concubinas as prostitutas profissionais)

Apesar de a virgindade conter especificidades e a tributos positivos Spong argumenta

que na histoacuteria do Cristianismo ela pode ser vista como um constructo ldquomachistardquo originaacuterio do

patriarcalismo Segundo o argumento que defende a mulher que aparecia de forma marcante ao

lado de Jesus era Maria Madalena

No entanto a tradiccedilatildeo apagou sua figura atuante e colocou-a com um caraacuteter

ldquoameaccediladorrdquo de prostituta dado o seu caraacuteter liberto condenada pelo pecado Essa mesma

tradiccedilatildeo recuperou a imagem de Maria que aparecia palidamente nos primeiros evangelhos Sua

expressatildeo de poder comeccedilou a ganhar impulso a partir do segundo seacuteculo da era cristatilde

Teria sido a categoria de virgindade moldada a partir dos gregos pagatildeos Teria o

Cristianismo se apossado dessa ideacuteia colocando a lsquovirgemrsquo como a lsquomulher idealrsquo para servir aos

propoacutesitos de um Pai divino

Parece que a maternidade foi tida como uma forma de puniccedilatildeo desde o iniacutecio da criaccedilatildeo

do mundo (veja o que se colocou em relaccedilatildeo a Aacutertemis) pelas tensotildees que subjazem ao ato de

reproduccedilatildeo atraveacutes do ldquoconhecimentordquo que Adatildeo tem de Eva Vejamos como coloca Spong

113

At the time of the fall when according to the literal text sin entered Godrsquos good creation Eve too was a virgin Adam did not ldquoKnowrdquo203 her until they were both banished form the Garden of Eden (Gen41) Childbirth the result of Adamrsquos ldquoknowingrdquo was part of Eversquos punishment

(Gen316) 204

Parece-nos pois que a ideacuteia de virgindade foi elaborada como um constructo social do

mundo pagatildeo procurando preservar o poder feminino frente a uma missatildeo ampla e de domiacutenio

do coletivo A proacutepria Afrodite em seu envolvimento sexual com Anquises exprimiu seu

sentimento de culpa e de vulnerabilidade diante das questotildees amorosas explicitando a

consequumlecircncia desse ato na produccedilatildeo de um filho

A forma que a Igreja encontrou para redimir os pecados foi o batismo inspirado tambeacutem

nos rituais gregos de purificaccedilatildeo como jaacute foi referido anteriormente

Finalmente antes de colocarmos um elenco de questotildees investigativas sobre a virgindade

ocorreu-nos refletir sobre um extremo da virgindade feminina que passa a ser significada na sua

lsquoabstraccedilatildeorsquo Assim em se estabelecendo um paralelo entre Heacutestia e Maria percebe-se que antes

dos Hinos Homeacutericos que satildeo produccedilotildees posteriores a Homero e a Hesiacuteodo bem como na

iconografia da eacutepoca a deusa Heacutestia eacute silenciosa e incorpoacuterea quase irreal como Maria

Poucos dados textuais existem a respeito de Heacutestia Entretanto muito se tem investigado

e muitas suposiccedilotildees tecircm sido escritas a seu respeito

Maria tambeacutem parece natildeo ter sido uma mulher real sendo a histoacuteria de sua vida

encoberta de silecircncio Como coloca Spong bispo de Newmark

ldquoA view of history however reveals that the price of Maryrsquos bodily assumption was the sacrifice of her sexual identity She entered the realm of the gods as one deprived of her humanity She was a virgin bride a virgin mother a perpetual virgin and a post partum virgin She was immaculately conceived at birth and bodily assumed at the moment of death Clearly she was not a real woman rdquo205

A palavra grega lsquopathernosrsquo que indica em um primeiro sentido lsquomoccedila antes do

casamentorsquo jaacute deixa evidente o significado de natildeo-comprometimento com um homem Assim a 203 O verbo ldquoconhecerrdquo em hebraico pode significar lsquopenetrarrsquo penetrar no outro para conhecer 204 SPONG John Shelby op cit p 210 ldquoNo tempo da queda quando de acordo com o texto literal o pecado entrou na admiraacutevel criaccedilatildeo de Deus Eva tambeacutem era uma virgem Adatildeo nada ldquoconheciardquo ateacute ambos serem banidos do Jardim do Eacuteden (Gen41) O parto resultado do ldquoconhecimentordquo de Adatildeo foi parte da puniccedilatildeo de Eva (Gen316)rdquo (traduccedilatildeo nossa) 205 SPONG John Shelby op cit p 218 ldquoUma visatildeo da histoacuteria entretanto revela que o preccedilo da assunccedilatildeo do corpo de Maria foi o sacrifiacutecio de sua identidade sexual Ela entrou para o reino dos deuses como algueacutem privado de sua humanidade Ela foi um noiva virgem uma matildee virgem uma virgem perpeacutetua e uma virgem poacutes-parto Ela foi concebida se maacutecula pelo nascimento e corporeamente elevada na hora da morte Claramente ela natildeo era uma mulher realrdquo

114

virgindade deve por extensatildeo garantir o sentido de natildeo-ligaccedilatildeo a um indiviacuteduo por viacutenculos

contratuais como era tido o casamento na Greacutecia arcaica Daiacute a moccedila antes do casamento

virgem

Segue abaixo o protocolo de nossas perguntas

bull Representa a virgindade uma forma de preservar a figura da deusamulher autocircnoma

como continuaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo matriarcal da cultura baseada nos mitos da

fecundidade

bull Esse aspecto de virgindade confere agrave deusamulher um poder de dedicaccedilatildeo a uma missatildeo

que tem um caraacuteter civilizador

bull Por que o Cristianismo preservou a figura da Virgem na figura da matildee

bull Qual o apelo agrave afetividade lsquophiliarsquo que as deusasmulheres virgens podem manifestar em

seu discurso pela histoacuteria Que tipo de imagem de si mesmo o homem grego pode ter a

partir do olhar das deusas virgens

E aqui entra a nossa conclusatildeo maior a questatildeo amorosa conduz a Afrodite e ao poder do

desejo Sem ela a virgindade natildeo teria expressatildeo

A questatildeo da virgindade e das deusas virgens soacute eacute impactante frente agrave forccedila de recusa a

Afrodite bem como ao compromisso com o masculino

Ficam aiacute propostas para novas discussotildees Embora o misteacuterio das deusas virgens deva

persistir porque faz parte da maneira de se conceber o divino

115

REFEREcircNCIAS

AUBRETON R Introduccedilatildeo a Homero Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro (Ed USP) 2 ed 1968 BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilais Eacutedition revue par Seacutechant L et Chantraine P Paris Hachette 2000 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Lucas Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIacuteBLIA Evangelho Segundo Satildeo Mateus Portuguecircs Biacuteblia Sagrada Traduccedilatildeo dos originais mediante a versatildeo dos monges de Maredsous (Beacutelgica) 36 ed Satildeo Paulo Ave Maria 1982 BIRMAN Joel Cartografias do Feminino Satildeo Paulo Editora 34 1999 BLACKWELL Thomas An Inquiry into the life and writings of Homer (1736) Reimpressatildeo reprograacutefica Hildesheim Georg Olms 1976 BORG Marcus J e CROSSAN John Dominic O primeiro natal Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 CALAME Claude Myth and History in Ancient Greece The symbolic creation of a colony New Jersey English Translation by Princeton University press 2003 CHAcircTELET Franccedilois (direccedilatildeo) Histoacuteria da Filosofia Ideacuteias Doutrinas (vol1 A filosofia Pagatilde) Rio de Janeiro Zahar Editores 1973 COSMOS Disponiacutevel em lthttpenwikipediaorgwikiCosmosgt Acesso em 12jun2008 DELEUZE Gilles Loacutegica do Sentido 4 ed 2 reimpressatildeo Satildeo Paulo Perspectiva 2006 DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix O que eacute a Filosofia 2 ed Rio de Janeiro Ed34 1997 DETIENNE Marcel Os Gregos e NoacutesUma antropologia comparada da Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 DOGMAS Disponiacutevel em lt httpdogmasdaigrejacatolicacombr gt Acesso em 5jun2009 DUMOULIEacute Camille O Desejo Rio de Janeiro Editora Vozes 2005 EURIacutePEDES SEcircNECA RACINE Hipoacutelito e Fedra trecircs trageacutedias Estudo traduccedilatildeo e notas de Joaquim Brasil Fontes Satildeo Paulo Iluminuras 2007

116

EURIPEDES Iphigenia in Tauris 390 disponiacutevel em lthttphomepagemaecomcparadaGMLArtemishtmlgt Acesso em 29jun2009 FAULKNER Andrew The Homeric Hymn to Aphrodite Introduction text and commentary Oxford Oxford University Press 2008 FONTES Joaquim Brasil Eros tecelatildeo de mitos Satildeo Paulo Iluminuras 2003 FOUCAULT M A arqueologia do Saber Rio de Janeiro forense Universitaacuteria 5 ed 1977 FREITAS Maria Carmelita de GecircneroTeologia feminista interpolaccedilotildees e perspectivas para a teologia ndash Relevacircncia do tema In SOTER (org) Gecircnero e Teologia Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 FREUD Sigmund (1931) Sexualidade Feminina In Obras completas Estandart brasileira Trad Sob a direccedilatildeo de Jayme Salomatildeo Rio de Janeiro imago 1996 GEDDES amp GROSSET Ancient Grecce Myth E History Written by H B Cotteril Scotland Geddes e Grosset 2004 GHILARDI-LUCENA Maria Inecircs e OLIVEIRA Francisco (orgs) Representaccedilotildees do Feminino Campinas Editora Aliacutenea 2008 GRANT Walkiria Helena A Mascarada e a Feminilidade Psicol USP Satildeo Paulo v9 n2 disponiacutevel em httpwwwscielobr Acesso em 23 jan 2009 GRAVES Robert O grande livro dos mitos gregos Rio de Janeiro Ediouro 2008 GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 HESIacuteODO Teogonia A Origem dos Deuses Estudo e traduccedilatildeo de J A A Torrano Satildeo Paulo Iluminuras 2003 HOMER The Iliad v 1 e 2 Translated by A T Murray The Loeb Classical Library 1988 HOMER The Odyssey Translated by E V Rieu London Penguin Books 2003 HOMERO Iliacuteada 4ed Traduccedilatildeo dos versos de Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2004 JORDAtildeO Patriacutecia A Antropologia poacutes-moderna uma nova concepccedilatildeo da etnografia e seus sujeitos In Revista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FFC UNESP v4 n1 2004

117

LACERDA Sonia Metamorfoses de Homero Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2003 LAYTON Robert Introduccedilatildeo agrave Teoria em Antropologia Portugal Ediccedilotildees 70 1997 LE GOFF Jacques Histoacuteria e Memoacuteria 5 ed Campinas SP Editora da UNICAMP 2003 LISSARRAGUE Franccedilois A figuraccedilatildeo das mulheres In PANTEL Pauline Schmitt (direccedilatildeo) A Antiguidade v1 Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 LORAUX Nicole O que eacute uma deusa In PANTEL Pauline Schmitt (dir) A Antiguidade v 1 Porto Ediccedilotildees Afrontamentos 1990 MAVROMATAKI Maria Mitologia Griega Atenas Ediciones Xaitali 1997 NOVAES Adauto De olhos vendados In _____ (org) O olhar 9 reimpressatildeo Satildeo Paulo Companhia das Letras 2002 ONG W J Qualidad y Escritura Meacutexico Fondo de cultura Econocircmica 1999 OTTO Walter Friedrich Os Deuses da Greacutecia a imagem do divino na visatildeo do espiacuterito grego Traduccedilatildeo de Ordep Serra Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 PARRY Milman The making of Homeric Verse Edited by PARRY Adam New York Oxford University Press 1987 PEREIRA Isidro S J Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs e Portuguecircs-Grego Braga Livraria A I 1998 PLATAtildeO The Included Dialogues of Plato Including the letters Edited by Edith Hamilton and Huntington Cairns New York Bollingen Foundation 1961 (Timaeus) PRIETO Maria Helena Urentildea Dicionaacuterio de Literatura Grega LisboaSatildeo Paulo Editorial Verbo 2001 PROCLAMACcedilAtildeO DA IMACULADA CONCEICcedilAtildeO DE MARIA Disponiacutevel em lthttpwwwfranciscanosorgbrnossaorigemespeciaisproclamaccedilatildeodaimaculadaconceiccedilatildeodeMaria gt Acesso em 30jun2009 QUIGNARD Pascal Le sexe et lrsquoeffroi Paris Eacuteditions Gallimard 1994 RATTO Stephania Greece Translated by Rosanna M Giammanco Frongia Berkeley University of California Press 2008 RODRIGUES Antonio Medina A poeacutetica da Indiferenccedila In NOVAES Adauto Poetas que Pensaram o Mundo Satildeo Paulo Cia das Letras 2005

118

SARTRE Jean-Paul Questatildeo de Meacutetodo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeacuteia do Livro 1967 SOacuteFOCLES Antiacutegona Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM 2008 SPONG John Shelby Born of a woman New York 1st ed Harper San Francisco 1992 TORRANO JAA O Sentido de Zeus O Mito do Mundo e o Modo Miacutetico de Ser no Mundo Satildeo Paulo Iluminuras 1996 VENUTI Lawrence A traduccedilatildeo e a Formaccedilatildeo de Identidades Culturais In SIGNORINI Inecircs (Org)Campinas SP Mercado das letras 2001 VERNANT Jean-Pierre A morte nos olhos 2ed Rio de Janeiro Jorge Zahar editores 1991 VERNANT Jean Pierre Mito e Religiatildeo na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2006 VERNANT Jean-Pierre Mito e pensamento entre os gregos 2 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 VERNANT Jean-Pierre VIDAL-NAQUET Pierre Mito e trageacutedia na Greacutecia antiga Satildeo Paulo Perspectiva 1999 WEINRICH Harald Lete Arte e Criacutetica do Esquecimento Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001

119

BIBLIOGRAFIA

APOLLODORUS The library v 1 e 2 Cambridge Harvard University Press 1990 ARISTOacuteTELES Poeacutetica 2ed Traduccedilatildeo de Eudoro de Souza Satildeo Paulo Ars Poeacutetica 1993 BACHOFEN Johann Jakob Mitologiacutea Arcaica y Derecho materno Edicioacuten de Andreacutes Ortiz-Oseacutes Barcelona Editorial Anthropos 1988 BEN VENISTE Eacutemile Se vocabulaire des institutions indo-europeacuteennes vol 1 et 2 Paris Les Eacuteditions de Minuit 1969 DETIENNE Marcel Comparar o incomparaacutevel Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2004 DETIENNE Marcel VERNANT Jean-Pierre Les ruses de lrsquointelligence La Megravetis des Grecs France Flammarion 1974 DUMEacuteZIL Georges Lrsquooubli de lrsquohomme et lrsquohonneur des dieux Paris Eacuteditions Gallimard 1985 DUMEacuteZIL Georges Mito y epopeya v III ndash Historias Romanas Meacutexico Fondo de Cultura econoacutemica 1996 GRANT Robert M Augustus to Constantine The emergence of Christianity in the Roman World New York Barnes amp Noble 1996 ROSE H J A Handbook of Greek Mythology London Methuen amp Co Ltd 1985 SISSA Giulia Greek Virginity Translated by Arthur Goldhammer Cambridge Harvard University Press 1990 THOMAS Rosalind Letramento e oralidade na Greacutecia Antiga Satildeo Paulo Odysseus Editora 2005 VEYNE Paul Acreditaram os gregos nos mitos Lisboa Ediccedilotildees 70 1983

121

ANEXO A ndash Hinos Homeacutericos ndash Afrodite

V

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗ

Μοΰσά microοι έννέπε εργα πολυχρύσσυ Άφροδίτης Κύπριδος ήτε θεοΐσιν έπί γλυκύν ϊmicroερον ώρσε καί τrsquo έδαmicroάσ σ ατο φΰλα καταθνητων άνθρφπων οίωνούς τε διιπετέας καί θηρία πάντα ήγέν οσ΄ήπειροσ πολλά τρέΦει ήδ΄ οσα πόντος 5 πασιν δrsquo έργα microέmicroηλεν έυστεφάνου Κυθερείης

Τρισσάς δrsquo ού δύναται πεπιθεΐν φρένας ούδrsquo άπατησαι΄

κούρην τrsquo αίγιόχοιο ∆ιός γλαυκώπιν Άθήνην΄ ού γάρ οί εϋαδεν έργα πολυχρύσου Άφροδίτης άλλrsquo αρα οί πόλεmicroοί τε άδον και εργον ΄΄Αρηος 10 ύσmicroΐναί τε microάχαι τε καί άγλαά έργrsquo άλεγύνειν πρώτη τέκτονας ανδρας έπιχθονίους έδίδαξε ποιησαι σατίνας τε και αρmicroατα ποικίλα χαλκω η δέ τε παρδενικας άπαλόχροας έν microεγάροισιν άγλαά εργrsquoέδίδαξεν έπι φρεσι θεΐσα έκάστη 15 ούδέ ποτrsquo Άρτέmicroιδα χρυσηλάκατον κελαδεινην δάmicroναται έν φιλότητι φιλοmicromicroειδης Άφροδίτη και γαρ τη αδε τόξα καί οΰρεσι θηρας έναίρειν φόρmicroιγγες τε χοροί τε διαπρύσιοί τrsquo όλολυγαί αλσεά τε σκιόεντα δικαίων τε πτόλις άνδρων 20 ούδε microεν αίδοίη κούρη αδε εργrsquo Άφροδίτης Ίστίη ην πρώτην τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης αΰτις δrsquo όπλοτάτην βουλη ∆ιός αίγιόχοιο πότνιαν ην έmicroνωντο Ποσειδάων καί Άπόλλων΄ η δε microαγrsquo ούκ εθελεν άλλά στερεως άπέειπεν΄ 25 ωmicroοσε δέ microέγαν ο δη τετελεσmicroένος έστίν

PARA AFRODITE206

Musa fale-me dos trabalhos da aacuteurea Afrodite a Ceacutepria que incita o doce desejo nos deuses e que subjuga as raccedilas dos homens mortais e os paacutessaros que voam no ceacuteu e todas as feras e tantas quantas a terra nutre e quantas tambeacutem o

[mar 5 a todos concernem os trabalhos da bem-coroada

[Citereacuteia Mas ela natildeo pode persuadir nem seduzir trecircs

[coraccedilotildees Primeiro a filha de Zeus que segura a eacutegide a

[glaucoacutepi da Atena pois ela natildeo se compraz nos trabalhos da aacuteurea

[Afrodite mas ama as guerra e os trabalhos de Ares 10 os combates e as batalhas e preparar esplecircndidos

[trabalhos beacutelicos Primeiramente ela ensina os artesatildeos da terra a fazer carros de guerra e vaacuterios carros ornados

[com bronze ela tambeacutem ensina as jovens virgens delicadas nas

[casas os esplecircndidos trabalhos e inspira cada uma delas15 e nem a clamorosa Aacutertemis das flecha de ouro a maacutevel Afrodite subjuga no amor pois a ela compraz arcos e flechas e matar feras nos

[montes as liras e os coros e os gritos agudos penetrantes os bosques ensombreados e as cidades dos homens

[civilizados 20 e nem agrave pura virgem Heacutestia compraz os trabalhos de Afrodite a qual foi a primeira nascida de Crono

206 Os hinos a Afrodite V e VI foram traduzidos com um enfoque diferente dos Hinos Homeacutericos dedicados a Aacutertemis Atena e Heacutestia as deusas virgens e nosso objeto de estudo Nestes hinos tivemos preocupaccedilatildeo com a mensagem do rapsodo explicitando caracteriacutesticas da Deusa no que diz respeito agrave sua chegada sobre o mar aos ornamentos que as horas lhe colocaram agrave beleza que encantou os imortais ao dom cativante que a deusa Afrodite emana subjugando deuses imortais e homens mortais Poreacutem resistem a esse poder de desejo ofuscante e opotildee-se a ele um outro tipo de poder o da virgindade As descriccedilotildees nesses hinos satildeo elaboradas como uma tela pintada com detalhes lsquofiletados a ourorsquo como as joacuteias que Afrodite porta e o explendor das violetas e o doce sorriso da deusa esparrama-se em cada linha do hino Assim nossa preocupaccedilatildeo foi antes com o ldquoconteuacutedordquo do que com a esteacutetica e com a meacutetrica pois natildeo poderiacuteamos ldquodistorcerrdquo o poema trazendo-o para o contexto de nosso seacuteculo Fizemos pois uma traduccedilatildeo livre de quaisquer amarras teoacutericas Ficam ai apenas ldquoideacuteiasrdquo sobre o que o rapsodo tentou colocar dentro da cultura de seu tempo

122

άψαmicroένη κεφαλης πατρός ∆ιος αίγιόχοιο παρθένος εσσεσθαι πάντrsquo ηmicroατα δΐα θεάων τη δε πατηρ Ζεύς δωκε καλόν γέρας άντι γάmicroοιο καί τε microέσω οΐκω κατrsquo αρrsquo εζετο πΐαρ έλοΰσα 30 πασιν δrsquo έν νηοΐσι θεων τιmicroάοχός έστι καί παρα πασι βροτοΐσι θεων πρέσβειρα τέτυκται

Τάων ού δύναται πεπιθειν φρένας ούδrsquo άπατησα των δrsquo αλλων οϋ πέρ τι πεφυγmicroένον εστrsquo Άφροδίτην οϋτε θεων microακάρων οϋτε θνητων άνθρώπων 35 καί τε παρεκ Ζηνος νόον ηγαγε τερπικεραύνου οστε microέγστός τrsquo έστί microεγίστης τrsquo εmicromicroορε τιmicroης καί τε τοΰ εϋτrsquo έθέλοι πυκιναλ φρένας έξαπαφαΰσα ρηιδίως συνέmicroιξε καταθνητησι γυναιξίν Ήρης έκλελαθοΰσα κασιγνήτης άλόχου τε 40 η microέγα είδος άρίστη έν άθανάτησι θεησι κυδίστην δrsquo αρα microιν τέκετο Κρόνος άγκυλοmicroήτης microήτηρ τε ΄Ρείη Ζεύς δrsquo αφθιτα microήδεα είδώς αίδοίην αλοχον ποιήσατο κέδνrsquo είδυΐαν Τη δε καί αύτη Ζεύς γλυκύν ΐmicroερον εmicroβαλε θυmicroω 45 άνδρι καταθνητω microιχθήmicroεναι οφρα τάχιστα microηδrsquo αύτη βροτέης εύνης άποεργmicroένη εϊη καί ποτrsquo έπευξαmicroένη εϊπη microετά πασι θεοΐσιν ήδύ γελοιήσασα φιλοmicromicroειδής Άφροδίτη ως ρα θεούς συνέmicroιξε καταθνητησι γυϖαιξί 50 καί τε καταθνητούλ υίεΐς τέκον άθανάτοισιν ως τε θεάς άνέmicroιξε καταθνητοΐς άνθπώποις

[de espiacuterito astuto e tambeacutem mais jovem pela vontade de Zeus que

[segura a eacutegide a soberana que Poseidon e Apolo procuraram para o

[casamento Mas ela de forma alguma natildeo consentindo

[firmemente recusou 25 E fez um grande juramento o qual foi cumprido ateacute

[o fim tocando a cabeccedila do pai Zeus que segura a eacutegide que seraacute virgem para sempre divina entre as deusas agrave qual o pai Zeus deu grande honra em lugar de

[casamento e ela assentou-se no centro da casa e recebe a melhor

[oferenda 30 em todos os templos ela eacute honrada e entre todos os mortais ela eacute colocada como

[veneraacutevel Deusas ela natildeo pode persuadir nem iludir coraccedilotildees mas dos outros natildeo haacute nenhum que tenha escapado

[de Afrodite Nem os deuses bem aventurados nem os homens

[mortais 35 e sem que Zeus que ama o raio desse conta ela

[conduziu o que eacute o maior e tem a maior diginidade e quando lhe apraz ela ilude facilmente o coraccedilatildeo

[saacutebio dele e o coloca junto de mulheres mortais tendo ocultado de sua irmatilde e esposa Hera 40 a qual eacute a maior em beleza entre os deuses imortais a mais gloriosa eacute ela nascida do astuto Crono e de Reacuteia sua matildee que a geraram e Zeus de

[sabedoria impecaacutevel feacute-la sua doce e cuidadosa esposa

123

VI

ΕΙΣ ΑΦΡΟ∆ΙΤΗΝ

Α ίδοίην χρυσοστέφανον καλήν Άφροδίτην ασαmicroαι η πασης Κύπρου κρήδεmicroνα λέλογχεν είναλίης οθι microιν Ζεφύρου microένος ύγρόν άέντος ηνεικεν κατα κΰmicroα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης άφρώ ενι microαλακω την δε χρυσάmicroπυκες Ώραι 5 δέξαντrsquo άσπασίως περί δrsquoαmicroβροτα ειmicroατα εσσαν κρατί δrsquo έπrsquo άθανάτω στεφάνην εϋτυκτοϖ εθηκαν καλήν χρυσείην έν δε τρητοΐσι λοβοΐσιν ανθεmicrorsquo όρειχάλκου χρσοΐό τε τιmicroήεντος δειρη δrsquo άmicroφrsquo άπαλη καί στήθεσιν άργυφέοισιν 10 ορmicroοισι χρυσέοισιν έκόσmicroεον οίσι περ αύταί Ώραι κοσmicroείσθην χρυσάmicroπυκες όππότrsquo ϊοιεν ές χορόν ιmicroερόεντα θεων καί δώmicroατα πατρός αύτάρ έπειδη πάντα περί χροΐ κόσmicroον εθηκαν ηγον ές άθανάτους οΐ δrsquo ήσπάζοντο ίδόντεσ 15 χερσί τrsquo έδεξιόωντο καί ήρήσαντο εκαστος είναι κουριδίην άλοχον καί οϊκαδrsquo αγεσθαι είδος θαυmicroάζοντες ίοστεφάνου Κυθερείης

Χαΐρrsquo έλικοβλέφαρε γλυκυmicroείλιχε δος δrsquo έν άγωνι

νίκην τωδε φέρεσθαι έmicroην δrsquo εντυνον άοιδήν 20 αύτάρ έγώ καί σεΐο καί αλλης microνήσοmicrorsquo άοιδης

PARA AFRODITE

Cantarei veneraacutevel coroada de ouro bela Afrodite 1 a qual de toda Chipre Marinha rodeada de muralhas laacute onde o uacutemido vento Zeacutefiro207 ergueu-a sobre a onda do mar barulhento na espuma suave e as Horas208 adornadas de ouro 5 receberam-na com alegria vestiram-na com [vestimentas divinas e sobre a cabeccedila imortal colocaram a bela coroa de ouro bem feita e nas orelhas furadas ornamentos de oricalco209 e de ouro precioso e em volta do pescoccedilo macio e do peito resplandecente [de brancura 10 colares de ouro os quais filetados de ouro satildeo usados pelas proacuteprias Horas quando quer elas vatildeo para a casa do pai para o coro charmoso dos deuses e depois que a vestiram conduziram-na para os imortais os quais a acolheram15 e saudaram com as matildeos e cada um suplicou para ser o esposo unido a ela210 e levaacute-la para casa admirados pela beleza da Citereacuteia coroada de violetas Salve a de olhos vivazes suavemente cativante na assembleacuteia [dos deuses Decirc-me a vitoacuteria e conduze meu canto honrado 20 E depois eu me lembrarei de ti e de outra canccedilatildeo

207 microένος tem o sentido de forccedilas da natureza como a aacutegua o fogo o vento neste caso refere-se ao vento Zeacutefiro eacute um vento do oeste daiacute ter um significado de vento agradaacutevel Zeacutefiro era personificado como filho de Eoacutelico 208 As Horas representavam as divindades das Estaccedilotildees Eram as filhas de Zeus e de Teacutemis e irmatildes das Moiras (os destinos) Agraves Horas designa-se um duplo sentido de divindade da natureza presidindo o ciclo da vegetaccedilatildeo e de divindades da ordem promovendo estabilidade Soacute tardiamente elas passaram a significar as horas do dia 209 Oricalco eacute um tipo de metal semelhante ao cobre 210 ldquounido em casamento com uma esposardquo daiacute o ldquoesposo legiacutetimordquo Esse termo envolve por extensatildeo a noccedilatildeo de laccedilos conjugais e de leito conjugal

124

X

ΕΙΣ ΑΦΡ0∆1ΤΗΝ

Κν προ γενη Κνθέρειαν αείσοmicroαι ητε βροτοΐσι microεί λιχα δώρα δί δωσιν εφ ίmicroερτω δε προσώπφ αίεί microει διάεί καί εφ ιmicroερτograveν θέεί άνθος Χαicircρε θεά Σα λαmicroicircνος ευκτιmicroένης microε δέουσα είνα λίης τε Κύπρον δός δ ίmicroερόεσσαν άοι δήν5 αύτάρ εγω καί σείο καί αλ λης microνήσοmicro άοι δης

PARA AFRODITE

Canto a Citereacuteia211 de Chipre que aos homens daacute doces dons sobre sua face desejante212 estaacute sempre o sorriso e desejaacutevel213 eacute o brilho Oh deusa dama214 da bem-feita Salamina e da Chipre marinha215 daacute o canto atraente216 5 Entatildeo me lembrarei de ti e de outro canto

211 Como se verifica ao longo das consideraccedilotildees sobre alguns pontos do aspecto metodoloacutegico o uso de palavras pleonaacutesticas em Homero ocorre na posiccedilatildeo que assumimos como um ornato decorrente do proacuteprio gecircnero eacutepico e inerente ao contexto Assim ritmicamente colocam-se lado a lado

Kuπρογενη Kuθέρειαν ou seja a Citereacuteia nascida em Chipre Como acreditava-se que Afrodite havia surgido das ondas (aphros) fecundadas pelo secircmen de Urano

quando foi castrado por seu filho Cronos ela a Afrogeneacuteia nascida da espuma sai do mar em uma praia na ilha de Chipre 212 Encontram-se nos versos 2 3 e 5 do original grego respectivamente as palavras Ίmicroερτώ ίmicroερτόν ίmicroερόεσσαν nos versos indicados 213 Assim a repeticcedilatildeo na traduccedilatildeo procurou manter o sentido original Embora no verso 5 tenha-se usado o adjetivo atraente ele estaacute indicado como um equivalente do verbete significando o que faz aparecer o desejo Todas essas palavras possuem uma base comum ίmicroερός e se referem ao sentido de desejo que estaacute relacionado a Afrodite e portanto ao que se chama de Amor Encontra-se uma personificaccedilatildeo de microερος na Teogonia de Hesiacuteodo verso 64 p 108 na obra de TORRANO JAA Teogonia A Origem dos Deuses HESIacuteODO Satildeo Paulo Iluminuras 2003 Em GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da MitologiaGrega e Romana Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2000 haacute o seguinte comentaacuterio sobre HiacutemeroO gecircnio Hiacutemero eacute a personificaccedilatildeo do Desejo amoroso Acompanha Eros no cortejo de Afrodite e no cimo do Olimpo vive ao lado das Caacuteritas e das Musas Eacute uma simples abstraccedilatildeo e natildeo figura em nenhuma lenda p 229 Embora Grimal coloque como sendo uma abstraccedilatildeo acreditamos que ele natildeo esteja se referindo ao desejo como forma de amor platocircnico Na eacutepoca arcaica ίmicroερος em Homero e em Hesiacuteodo estaacute relacionado ao amor libidinoso o que provoca a atraccedilatildeo 214 O texto grego traz a palavra microεδέουσα que significa a que reina sobre Esse termo junto com a palavra Σαλαmicroίνος refere-se a Afrodite (verificar BAILLY Anatole Dictionnaire Grec FranccedilaisParis Hachette2000 p1236) Para a traduccedilatildeo pensou-se no aspecto semacircntico rainha ou dama da cidade e optou-se por motivo de versificaccedilatildeo pela palavra dama 215 A palavra referente a Chipre eacute είναλίης que significa marinha cercada de mar Optou-se pela traduccedilatildeo marinha por ter um significado abrangente daquilo que se relaciona com o mar e por uma questatildeo econocircmica sabendo-se que Chipre eacute uma ilha estaacute cercada de mar 216 Ver notas 212 e 213 acima

125

ANEXO B ndash Hinos Homeacuterico ndash Deusas virgens

IX

ΕΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ

Αρτεmicroιν υmicroνεί Μούσα κασιγνήτην Έκάτοιο παρθενον ιοχεα ιραν όmicroότρο φον Άπόλλωνος ηθιππονς αρσασα βαθυσχοίνοιο Μέ λητος ρίmicro φα δια Σmicroύρνης πα γχρυσεον άρmicroα διώκει έ ς Κ λάρον άmicro πε λόεσσαν otilde θ άργυρότοξος Απόλλων ήσται microιmicroνάζων έκατηβoacute λον ίοχέαιραν 6

Καigrave συ microεν ουτω χαicircρε θεαί θ άmicroα πάσαι άοι δη αύταρ έγώ σε πρώτα και έκ σέθεν άρχοmicro άείδειν σευ δ έγω άρ ξάmicroενο ς microεταβησοmicroαι α λλον έ ς ΰmicroνον

PARA AacuteRTEMIS Musa cante Aacutertemis irmatilde do Atirador217 virgem218

que lanccedila flechas criada com Apolo daacute aacutegua aos cavalos de Meles junto aos juncos219 veloz por Esmirna guia a charrete220

dourada a Klaros com vinhas221 onde o arqueiro Apolo estaacute agrave espera da deusa que atira flechas222 6 E assim salve tu e todas as deusas no canto Entatildeo primeiro a ti e de ti passo a cantar tendo comeccedilado de ti vou a outro hino

217 Εκάτοιο Εκάτος eacute um epiacuteteto de Apolo e eacute inclusive no texto grego grafado com maiuacutescula tambeacutem pois eacute uma outra forma de nomeaacute-lo Significa o que atira ao longe 218 παρθένον παρθένος Em BAILLY (idib p 1489) I vierge particul 1 jeune fille 2 fille non marrieacutee 3jeune femme non marrieacutee 4 qui est comme une jeune fille vierge pur intact II La statue drsquoAthegravena agrave Athegravenes Neste caso παρθένον refer-se a Aacutertemis 219 A palavra βαθυσχοίνοιο significa um lugar coberto de juncos caniccedilos por isso em geral estaacute situado perto de lugares uacutemidos e alagados podendo estar pero de rios ou do mar BAILLY (id Ib p 2041) apresenta como ldquoaux joncs eacutepais aux hautes herbesrdquo 220 άρmicroα tem o sentido de attelage drsquoougrave char char de guerre ( BAILLY ib p 270) Portanto indica que Aacutertemis conduzia seu carro sua carruage ou sua charrete que era toda dourada (παγχρύσεον) Escolhemos a traduccedilatildeo charrete por nos parecer mais adequada ao contexto 221 Αmicroπελόεις όεσσα όεο em BAILLY (ib p 102) couvert de vignes Isso nos daacute uma indicaccedilatildeo de uma regiatildeo agriacutecola em que predominava a cultura de vinhas 222 Εκατηβολον significa o que atira flechas ao longe e eacute um epiacuteteto usado tanto para Apolo como para Aacutertemis Nesse caso como vem junto da palavra ιοχέαιραν refere-se a Aacutertemis e eacute pleonaacutestico pois significa a deusa que atira flechas e eacute usado com o verbo citado que tambeacutem significa atirar flechas ao longe mas estaacute se referindo agrave deusa A palavra ιοχέαιραν tambeacutem aparece no verso 2 relacionada a Aacutertemis ao lado de outro atributo virgem Eacute uma forma recorrente em Homero

126

XXVII

ΣΙΣ ΑΡΤΕΜΙΝ Αρτεmicroιν άεί δω χρυση λάκατον κε λα δεινήν παρθένον αiacute δοίην έ λα φηβό λον ίοχέαιραν αύτοκασιγνήτην χρνσαόρου Άπό λλωνος η κατ δρη σκιoacuteεντα καigrave άκριας ηνεmicroοέσσας άγρη τερποmicroενη παγχρύσεα τόξα τιταίνει 5 πέmicroπουσα στονόεντα βε ληmiddot τροmicroέει δε κάρηνα ύψη λων ορέων ίάχει δ επι δάσκιος υ λη δεινograveν υπograve κ λαγγης θηρων φρίσσει δέ τε ηαicircα πόντος τ ιχθυόεις ή δ α λκιmicroον ήτορ έχουσα πάντη επιστρέ φεται θηρων ό λεκουσα γενέθ λην 10 αύταρ επην τερ φθη θηροσκόπος ίοχέαιρα εύ φρήνη δε νόον χα λάσασ εύκαmicroπέα τόξα έρχεται ες microεηα δωmicroα κασνγνητοια φί λοιο Φοίβου Από λλωνος ∆ε λφων ες πίονα δηmicroον Μουσων και Χαρίτων κα λograveν χορograveν άρτυνέουσα 15 ένθα κατακρεmicroάσασα πα λίντονα τόξα καigrave igraveούς ηγεicircται χαρίεντα περigrave χροigrave κόσmicroον έχουσα εξάρχουσα χορούς αicirc δ άmicroβροσίην οπ ίεicircσαι ύmicroνευσιν Λητω κα λλίσ φυρον ως τέκε παicircδας αθανάτων βου λη τε καigrave εργmicroασιν εξοχ αρίστους 20 Χαίρετε τέκνα ∆ιograveς καigrave Λητους ηυκόmicroοιο αύταρ έηων ύmicroέων τε καigrave α λλης microνήσοmicro άοι δης

PARA AacuteRTEMIS Canto Aacutertemis das flechas de ouro a rumorosa223 digna224 virgem que caccedila225 os cervos e lanccedila o arco a proacutepria irmatilde de Apolo da espada dourada das montanhas sombrias e dos picos ventosos alegrando-se na caccedila estende o arco aacuteureo226 5 enviando flechas atrozes227 Tremem os cumes dos montes altos e a floresta densa ecoa forte com o grito das feras abala a terra e o mar com peixes Mas ela coraccedilatildeo forte228 volta-se a todos os lados destruindo feras229 10 Depois a caccediladora230 e arqueira231 se alegra satizfaz a mente e afrouxa o arco flexiacutevel e vai para a grande casa do irmatildeo amado Febo232 Apolo para a rica terra de Delfos para alinhar a danccedila233 das Musas e Graccedilas 15 Entatildeo pendura para traacutes o arco e as flechas conduz a danccedila e a organiza graciosamente234 e dirige os coros Elas lanccedilam a voz divina cantam como Leto de belo peacute pariu235 os melhores filhos (entre os imortais)236 na vontade e na accedilatildeo 20 Oh filhos de Zeus e Leto de fartos cabelos Eu237 me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

223 A palavra κελαδεινην significa ldquobarulhenta sonora rumorosardquo referindo-se a Aacutertemis devido agrave caccedila 224 De acordo com BAILLY ib p41 aleacutem de veneraacutevel digna de respeito αιδοίην tambeacutem significa envergonhada o que faz pensar em uma caracteriacutestica relacionada agrave virgindade 225 ελαφηβόλον (acusativo) tambeacutem eacute um epiacuteteto de Aacutertemis significando ldquoperseguidora de cervosrdquo Na falta de um termo equivalente em portuguecircs traduzimos por ldquoque caccedila os cervosrdquo usando uma oraccedilatildeo adjetiva para qualificar Aacutertemis 226 Arco aacuteureo ou arco dourado literalmente encontramos em grego παγχρυσεα ou seja com a conotaccedilatildeo de que o arco eacute ldquotodo douradordquo 227 A palavra grega στονόεντα eacute usada com o sentido de ldquoque faz gemer funestasrdquo daiacute termos escolhido em portuguecircs o termos ldquoatrozesrdquo 228 No original grego encontra-se έχουσα que significa ldquotendordquo ou ldquoaquelea que temrdquo (particiacutepio presente do verbo έχω)Usou-se um aposto explicativo com o mesmo sentido para fins de metrificaccedilatildeo 229 O verso 10 se traduzido literalmente fica ldquo volta-se para todos os lados destruindo a raccedila dos animais ferozesrdquo Na traduccedilatildeo eliminou-se a palavra γενέθλην isto eacute raccedila famiacutelia Achamos que a palavra ldquoferasrdquo em portuguecircs jaacute tem uma abrangecircncia de substantivo no plural referindo-se agrave espeacutecie como um todo 230 έηροσκόπος significa ldquoaquela que espreita os animaisrdquo Traduzimos pois com o sentido de ldquoaquela que caccedila os animaisrdquo portanto ldquoa caccediladorardquo 231 ίοχέαιρα epiacuteyeyo de Aacutertemis ldquoa que lanccedila flechasrdquo ou seja ldquoa arqueirardquo 232 Φοίβον traduzido geralmente como Febo que significa ldquoo brilhanterdquo e eacute um epiacuteteto de Apolo Funciona muitas vezes como nome proacuteprio (Ver GRIMAL ib p 167) 233 Quando o autor se refere agrave danccedila das Musas e das Graccedilas ele especifica καλόν χορόν o que quer dizer ldquobela danccedilardquo Por economia meacutetrica suprimimos a palavra ldquobelardquo pressupondo que a danccedila das Musas e das Graccedilas jaacute confere agrave danccedila um sentido de beleza 234 Em uma traduccedilatildeo literal o verso 17 apresenta-se como ldquoela conduziu proporcionando a ordem graciosa em torno da danccedilardquo Traduzimos ldquodirigir a ordem com graccedilardquo como ldquoorganizar com graccedilardquo 235 No texto grego estaacute especificado que Leto ldquopariu filhosrdquo Encontra-se a forma τέκε παίδας Como no verso seguinte (v20) encontra-se a forma αρίστους referindo-se ldquoaos melhore os mais excelentesrdquo transferiu-se a palavra ldquofilhosrdquo (παίδας) do verso 19 para o verso 20 236 O superlativo implica sempre que haacute uma comparaccedilatildeo Por razotildees meacutetricas colocou-se entre parecircnteses significando que natildeo faz parte da estrutura do verso 237 έγων achamos interessante manter na traduccedilatildeo o nominativo eacutepico ldquoeurdquo

127

XI

ΣΙΣ ΑΘΗΝΑΝ Παλλάδ Aθηναίην ερυσίπτολιν αρχomicro αεί δειν δεινήν η συν Aρηι microέλει πολεmicroήια έργα περθόmicroεναί τε πόληες αυτή τε πτόλεmicroοί τε και τ ερρνσατο λαograveν igraveόντα τε νισσόmicroενόν τε Xαicirc ρε θεά δός δ άmicromicroι τύχην ευδαιmicroονίην τε 5

PARA ATENA

A Palas Atena guardiatilde da polis238 canto terriacutevel239 que com Ares faz atos guerreiros de saques das polis de urros e de batalhas e salva as pessoas que na guerra combatem240 Oh deusa conceda-nos uma sorte boa 5

238 O termo grego ερυσίπτολιν eacute usado como epiacuteteto a Atena significando a protetora da cidade a guardiatilde 239 A palavra δεινήν nom δεινός quando se refere a Atena como eacute citado em BAILLY Anatole Dictionnaire Grec Franccedilaised Hachette 2000 p 439 significa fort puissantterrible Daiacute o termo ser traduzido em portuguecircs em alguns contextos como terriacutevel a que tem poder e eacute extraordinaacuteria pois eacute uma divindade que possui tambeacutem um grito de guerra terriacutevel como se encontra no referido verbete e como confirma o verso 3 do Hino em questatildeo Em inglecircs equivalente a terriacutevel poderosa a traduccedilatildeo usada por EVELYN-WHITE HG in Hesiod The Homeric Hymns and Homerica London Loeb Classical Library 1982 eacute dread 240 ίόντα ( verbo είmicroί ) juntamente com a palvra λαόν significa ir agrave guerra e participar da luta Assim coloca BAILLY (id ib) agrave p 593 srsquoavancer au milieu de lrsquoarmeacutee ou de la foule (des guerriers)

128

XXVIII ΕΙΣ ΑΘΗΝΑΝ

Παλλάδ Aθηναίην κυδρην θβόν άρχοmicro άεί δειν γλανκώπιν πολυmicroητ ιν άmicroβίλίχον ητορ εχρυσαν παρθενον αίδοίην ερνσί πτολιν άλκηεσσαν Tριτογενή την αντος εγείνατο microητίετα Ζενς σεmicroνής εκ κε φαλής πολεmicroήια τενχε εχονσαν 5 χρύσεα παmicro φανοωντα σέβας δ εχε πάνταςορώντας αθανάτουςmiddot ή δε πρόσθεν ∆iograveς αίγιόχοιο εσσνmicroένως ώρουσεν ά π άθανάτοιο καρήνου σεiacuteσασ ograveξυν άκονταmiddot microέγας δ ελελiacuteζετ Όλυmicro πος δεινograveν υ πograve βρίmicroης γλανκώ πι δος άmicro φigrave δε γαicircα 10 σmicroερδαλέον iάχησεν εκινηθη δ άρα πόντος κύmicroασι πορ φυρέοισι κνκώmicroενος εκχντο δ άλmicroη εξα πίνης στήσεν δ Y περίονος άγλαograveς υιος iacuteππους ωκύποδας δηρograveν χρόνον είσότε κούρη εΐλετ απ αθανάτων ωmicroων θεοεiacuteκελα τεύχη 15 Παλλagraveς Άθηναίηγήθησε δε microητίετα Ζεύς Καigrave συ microεν οΰτω χαicircρε ∆iograveς τέκος αίηιoacuteχοιο αυτάρ εγώ καigrave σεicircο καigrave άλλης microνήσοmicro άοιδής

A ATENA

A Palas Atena canto a gloriosa241 deusa242 glaucoacutepida243 astuta com coraccedilatildeo indoacutecil virgem244 digna guardiatilde das cidades ousada Tritogecircnia245 o proacuteprio Zeus saacutebio a fez nascer de sua cabeccedila veneraacutevel portando armas246 5 aacuteureas toda brilhantes que impotildeem respeito247 aos imortais E ela frente a Zeus porta-eacutegide com iacutempeto saltou da cabeccedila imortal agitando a lanccedila aguda Ecoai Olimpo com espanto agrave forccedila da glaucoacutepida E a terra 10 gritou assustada O oceano se abalou agitou as ondas negras248 A aacutegua249 transbordou suacutebito O brilhante filho de Hipeacuterion250 parou os cavalos de peacutes aacutegeis ateacute que251 a virgem252 Palas Atena253 tirasse dos imortais 15 ombros as armas E Zeus saacutebio se alegrou Assim salve tu filha de Zeus que tem a eacutegide Depois me lembrarei de ti e de outro canto

241 O termo κυδρην eacute geralmente usado quando se refere a certas deusas como Atena e Leto Tem o sentido de ldquogloriosa ilustrerdquo ( A esse respeito ver BAILLY p1147) 242 A palavra θεόν estaacute no acusativo e possui a mesma forma para o masculino e para o femininoO que identifica o uso eacute o contexto ou o artigo definido Haacute um importante texto escrito por LORAUX Nicole em que ela comente sobre a questatildeo deusdeusa apontando para a generalidade indicando apenas um ser divino Eacute pois um problema de gecircnero como diz Loraux (In PANTEL Pauline S histoacuteria das Mulheres A Antiguidade Porto Ediccedilotildees Afrontamento 1990 243 Depois de apelar Palas Atena o autor se remete a ela nomeando-a atraveacutes de uma seacuterie de epiacutetetos ldquoglaucoacutepida astuta virgem guardiatilde das cidade corajosa Tritogecircniardquo 244 O epiacuteteto παρθένον vem enfatizado pelo adjetivo αίδοίην o que como coloca Loraux em seu artigo supra-citado faz remeter agrave ideacuteia do divino do veneraacutevel em relaccedilatildeo agrave castidade de deuses como caracteriacutestica dos imortais 245 relaccedilatildeo ao epiacuteteto Τριτογενή haacute diversas interpretaccedilotildees quanto ao significado Uma das hipoacuteteses do epiacuteteto eacute de que ela nascera perto do lago Tritocircnis Poreacutem uma outra possibilidade eacute de se remeter ao termo eoacutelico que significaria ldquoa verdadeira filha de Zeusrdquo (BAILLY p 1964) 246 Atena nasceu carregando armas Como explicita o texto grego πολεmicroήια τεύχέ ou seja ldquoarmas beacutelicasrdquo 247 O que o autor diz literalmente nos versos 5 6 e 7 eacute que ldquoAtena estava portando armas de guerra douradas e toda brilhantes que impotildeem respeito quando os deuses (imortais) as vecircemrdquo 248 Traduzimos a palavra πορφυρέοωσι por ldquonegrasrdquo Literalmente essa palavra significa ldquoescuras da cor das sombrasrdquo 249 A palavra άλmicroη pode significar tanto a aacutegua do mar como a espuma das aacuteguas do mar Na ediccedilatildeo do Loeb Classical Library foi traduzida por foam (espuma) 250 ldquoO brilhante filho de Hipeacuterionrdquo significa pois o ldquoSolrdquo (Heacutelio) 251 ldquoAteacute querdquo indica um termo relacionado ao tempo que o precede e ao qual daacute continuidade No texto grego o autor enfatiza a accedilatildeo precedente colocando δρόν χρόνο είσότε ou seja ldquode longa duraccedilatildeo ateacute querdquo 252 Aqui a palavra usada referindo-se a Atena e designando a moccedila a virgem eacute a palavra ϊούρη e natildeo αρθένον Isso encaminha para uma reflexatildeo em relaccedilatildeo agrave escolha dos vocaacutebulos 253 No original grego o termo Palas Atena estaacute no verso 16 Na traduccedilatildeo transferimo-lo para o verso 15 por motivo de coerecircncia textual

129

XXIV ΣΙΣ ΕΣΤΙΑΝ

Έστiacuteη ητε ανακτος Άπό λλωνος εκάτοιο Πυθοicirc εν ήγαθέ η ίερograveν δόmicroον άmicro φι πο λεύεις αigraveεigrave σων πλοκάmicroων ά ποίλείβεται ύγρograveν ε λαιον ερχεο τόνδ άνα οίκον εν ερχεο θυmicroograveν εχουσα συν ∆ιigrave microητιόεντί χάριν δ άmicro ο πασσον άοιδ η 5

PARA HEacuteSTIA Heacutestia que ao deus254 Apolo que atira ao longe no divino Piacuteton serve na casa sacra255 sempre das mechas256 puras cai257 o oacuteleo uacutemido vem para esta casa vem tendo um coraccedilatildeo258 com Zeus que eacute saacutebio E concede graccedila ao canto2595

254 αυακτος significa ldquomestre cheferdquo principalmente em se tratando de Apolo Junto de εκάτοιο no mesmo verso ldquoo deus que atira ao longerdquo reforccedila o epiacuteteto que se usa para designar Apolo 255 ίερόν refere-se a δόmicroον Daiacute significar casa sagrada forte poderosa Usamos a traduccedilatildeo sacra por razotildees meacutetricas sem qualquer conotaccedilatildeo com que a palavra santa possa vir a ter dentro de uma visatildeo cristatilde 256 A palavra πλοκάmicroων quer dizer lsquomechasrsquo referindo-se a lsquomechas de cabelorsquo 257 O verbo άπολείβεται significa ldquodeixar cair gota a gotardquo quando se faz uma libaccedilatildeo Assim o verso 3 significa exatamente ldquosempre das mechas de cabelo intactas deixa cair gota a gota o oacuteleo uacutemidordquo 258 O vocaacutebulo θυmicroόν em uma significaccedilatildeo bem ampla ldquocoraccedilatildeo mente princiacutepio de vidardquo enfim relaciona-se ao que diz respeito agrave inteligecircncia e agrave vontade ao poder e ao desejo 259 Nesse verso (v 5) haacute tambeacutem ao palavra αmicroα que omitimos na traduccedilatildeo Essa palavra daacute a ideacuteia de simultaneidade Seria como se dissesse ldquoE ao mesmo tempo concede graccedila ao cantordquo Nesse caso estaria se referindo agraves accedilotildeesrsquo vir para casa unida a Zeus e dar graccedila ao cantorsquo

130

XXIX ΕΙΣ ΕΧΤΙΑΝ

Έστίη ή πάντων εν δώmicroασιν ύψηλοicircσιν αθανάτων τε θέων χαmicroαigrave ερχοmicroένων τ άνθρώττων εδρην άίδιον έλαχες πρεσβηίδα τιmicroήν καλograveν έχουσα γέρας καigrave τίmicroιον ου γαρ άτερ σου ειλαπίναι θνητοicircσιν iacuteν ου πρώτη πυmicroάτη τε 5 Έιστίη αρχόmicroενος σπενδει microελιηδέα οίνον καigrave συ microοι Άργει φόντα ∆ιος καigrave Μαιάδος υiέ αγγελε των microακάρων χρυσoacuteρραπι δωτορ εάων λαος ων επάρηγε συν αίδοίη τε φίλη τε ναίετε δώmicroατα καλά φίλα φρεσigraveν άλληλοισιν εiacuteδότες άmicro φότεροι γαρ επiχθονίων ανθρώπων 11 εiacuteδότες ερηmicroατα καλα νόω θ εσπεσθε καigrave ήβη Χαicircρε Κρόνου θύηατερ συ τε καigrave χρυσόρραπiς Έρmicroής αύτάρ εγών υmicroεων τε καigrave αλλης microνήσοmicro άοιδής

PARA HEacuteSTIA

Heacutestia que nas casas elevadas de todos 1 de deuses imortais e homens que vecircm agrave Terra260 recebeste um lugar eterno e honra digna tens bom privileacutegio e estima261 Pois sem ti natildeo haacute festim262 para os mortais se em primeiro e em uacuteltimo 5 quem vem natildeo263 oferece264 a Heacutestia o vinho doce Tu matador de Argo265 filho de Zeus e Maia266 nuacutencio dos deuses267 com bastatildeo268 doador de bens sendo do povo269 ajude-o com a nobre e querida Habitem a gloriosa casa cara a ambos270 10 que conheceis bem Pois ambos entre os terrestres sabeis as obras nobres da271 mente e da forccedila Oh filha de Cronos e tu Hermes do bastatildeo Pois me lembrarei de voacutes e de outra canccedilatildeo

260 Eacute interessante perceber a construccedilatildeo desse verso O autor estabelece o contraste entre ldquodeuses imortaisrdquo ( άθανάτων θεών ) e os ldquohomens mortaisrdquo referindo-se a eles como ldquoos homens que vecircm agrave Terrardquo ( χαmicroαί έρχοmicroένων άνθρώπων ) mostrando a ideacuteia de transitoriedade no ato de vir e natildeo de qualificaacute-los como terrestres 261 A palavra grega τίmicroιον significa que a deusa tinha uma consideraccedilatildeo uma estima puacuteblica De fato Heacutestia se fazia representar em todas as casas na ldquolareira sagradardquo 262 ειλιπίναι significa banquetear celebrar um festim apoacutes um sacrifiacutecio Para fins de traduccedilatildeo usamos a expressatildeo ldquohaver um festimrdquo que corresponde a ldquobanquetearrdquo 263 A negativa ού (natildeo) encontra-se no verso 5 antes de πρώτη Poreacutem por motivo sintaacutetico transferiu-se a negativa para o verso 6 antes do verbo 264 O verbo σπενδει significa ldquooferecer fazendo uma libaccedilatildeordquo Portanto em um ritual a Heacutestia devia-se fazer em primeiro lugar e em uacuteltimo uma libaccedilatildeo de vinho agrave deusa Se isso natildeo fosse feito a pessoa natildeo podia participar da oferenda de sacrifiacutecio 265 Segundo o dicionaacuterio BAILLY p 259 o epiacuteteto ργειφόντα refere-se a Hermes ldquoo matador de Argosrdquo e eacute de origem desconhecida Haacute uma lenda que atribui a Hermes o fato de ter matado Argo (conhecido como Argos na forma latinizada) possuidor de uma forccedila espantosa e que tinha soacute um olho Em outras lendas ele possui uma multiplicidade de olhos Hermes matou Argo a pedido de Zeus segundo a lenda Haacute tambeacutem variaccedilotildees sobre como ele o matou 266 Natildeo se traduziram todas as palavras do verso 7 Foram suprimidos a conjunccedilatildeo e (καί ) iniciando o verso bem como a expressatildeo para mim (microοι) o que jaacute implica uma alteraccedilatildeo morfoloacutegica sintaacutetica e cultural na interpretaccedilatildeo de nossa traduccedilatildeo 267 No texto grego encontra-se a palavra microακάρων que significa honradosdaiacute sagrados Por isso refer-se aos deuses em oposiccedilatildeo aos homens 268 A palavra χρυσόρραπι tem o sentido de ldquobastatildeo de ourordquo e eacute usado referindo-se ao bastatildeo que Hermes carregava Diz a lenda que Hermes inventou a flauta e Apolo ficou tatildeo encantado com o instrumento musical que ofereceu seu cajado de ouro a Hermes em troca da flauta Daiacute para a frente Herme sempre carregou o bastatildeo de ouro 269 Decidimos traduzir λαος ών como lsquosendo do povordquo isto eacute junto com Heacutestia faziam parte de todas as casas e da cidade e eacute como se fizessem parte desse contexto humano Vimos outra traduccedilotildees como a de uma traduccedilatildeo de Vernant para o inglecircs em que se encontra ldquobe goodrdquo e Evelyn-White da Loeb Classical Library traduz por ldquobe favourablerdquo No entanto em nosso entendimento o verbo ών estaacute no particiacutepio presente daiacute ldquosendordquo Tambeacutem natildeo encontramos palavra que pudesse significar ou ldquobomrdquo ou ldquofavoraacutevelrdquo Tem-se pois nossa interpretaccedilatildeo na traduccedilatildeo desse verso 270 A palavra φρεσίν coraccedilotildees estaacute relacionada a ambos αλλήλοιειν referindo-se a Heacutestia e a Hermes Portanto a ldquoambos unidos no coraccedilatildeo na amizaderdquo 271 Em grego eacute usado o dativo nas palavras mante νόω e forccedila ήβη significando que eles Heacutestia e Hermes conhecem os trabalhos dos homens atraveacutes da inteligecircncia deles e atraveacutes da forccedila deles Eacute pois um instrumental Portanto a traduccedilatildeo para o portuguecircs natildeo implica que em grego eacute usado o caso genitivo

Page 7: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 8: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 9: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 10: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 11: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 12: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 13: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 14: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 16: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 18: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 19: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 20: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 21: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 22: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 23: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 24: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 25: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 26: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 27: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 28: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 29: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 30: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 31: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 32: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 33: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 34: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 35: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 36: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 37: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 38: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 39: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 40: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 41: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 42: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 43: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 44: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 45: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 46: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 47: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 48: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 49: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 50: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 51: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 52: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 53: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 54: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 55: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 56: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 57: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 58: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 59: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 60: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 61: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 62: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 63: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 64: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 65: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 66: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 67: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 68: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 69: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 70: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 71: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 72: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 73: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 74: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 75: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 76: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 77: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 78: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 79: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 80: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 81: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 82: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 83: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 84: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 85: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 86: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 87: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 88: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 89: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 90: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 91: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 92: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 93: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 94: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 95: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 96: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 97: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 98: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 99: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 100: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 101: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 102: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 103: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 104: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 105: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 106: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 107: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 108: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 109: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 110: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 111: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 112: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 113: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 114: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 115: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 116: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 117: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 118: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 119: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 120: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 121: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 122: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 123: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 124: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 125: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 126: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 127: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 128: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 129: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 130: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 131: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 132: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 133: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao
Page 134: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE … · 2020. 5. 6. · AS DEUSAS GREGAS VIRGENS FACE AO PODER DE AFRODITE Vera Lúcia Crepaldi Pereira Dissertação apresentada ao

Recommended