UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ROSALINA TELLIS GONÇALVES
LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA:
A PRODUÇÃO DE GENERO TEXTUAL ORAL VALORIZADA POR UMA PRÁTICA
REFLEXIVA
VITÓRIA
2007
ROSALINA TELLIS GONÇALVES
LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA:
A PRODUÇÃO DE GENERO TEXTUAL ORAL VALORIZADA POR UMA PRÁTICA
REFLEXIVA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, na linha de pesquisa Educação e Linguagens. Orientador: Profª Drª Gerda Margit Schütz Foerste.
VITÓRIA
2007
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Gonçalves, Rosalina Tellis, 1972- G635l Linguagem oral na educação infantil indígena : a produção de gênero
textual oral valorizada por uma prática reflexiva / Rosalina Tellis Gonçalves. – 2007.
186 f. : il. Orientadora: Gerda Margit Schütz Foerste. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação. 1. Comunicação oral. 2. Gêneros literários. 3. Textos infantis. 4.
Educação de crianças. 5. Índios – Educação. I. Foerste, Gerda Margit Schütz. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
A José Bernardo Gonçalves (in memoriam), meu pai, pelo esforço na criação dos filhos. A Celita Tellis, minha mãe, por todo o carinho e incentivo em todos os meus estudos.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida, pela fundamental parceria em todos os instantes de
minha jornada e pela oportunidade para realizar este trabalho.
Às crianças indígenas da aldeia Tupinikim “Pau Brasil”, que me acolheram
permitindo conhecê-las e desenvolver esta pesquisa, e a todos os seus familiares
pela confiança e carinho.
A todos os educadores da Educação Infantil Indígena de Aracruz e, em especial, à
educadora tupinikim Kátia Cilene pela acolhida em sua sala de aula.
À Secretaria Municipal de Educação de Aracruz que propiciou minha disponibilidade
para freqüentar o curso de Mestrado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação pela oportunidade de atuar na linha
de pesquisa, Educação e Linguagens.
À Professora Drª Edivanda Mugrabi pela orientação dada em boa parte da
construção deste trabalho.
À Zélia Forechi, Graça Cota e Kalna Teao pelas importantes contribuições acerca da
questão indígena.
À Alina pela fundamental e primorosa contribuição na revisão
A todos os amigos que torceram pelo meu sucesso e, em especial Wirlândia por
todo o companheirismo, incondicional estímulo e partilha de dúvidas.
Aos professores da banca examinadora Vera Vasconcellos, Cláudia Gontijo, Erineu
Foerste por suas valiosas considerações e em especial à professora Gerda Foerste
pelas sábias palavras, confiança e serenidade na continuidade e finalização da
orientação deste trabalho.
A todos os meus familiares e em especial à minha irmã Alessandra.
Tal como a chuva e a neve caem do céu e para lá não volvem sem ter regado a terra,
sem ter fecundado, e feito germinar as plantas,
sem dar o grão a semear e o pão a comer, assim acontece à palavra que minha boca
profere: não volta sem ter produzido seu efeito,
sem ter executado minha vontade e cumprido sua missão. (ISA 55, 10-11)
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1-
Capacidade de linguagem inerentes à produção de texto.......................
66
QUADRO 2-
A metáfora do trânsito em analogia com a conversação........................
69
QUADRO 3-
Atendimento escolar à população infantil indígena em Aracruz-1996
89
QUADRO 4-
Esferas sociais de comunicação.............................................................
106
QUADRO 5-
Síntese das atividades realizadas nas rodas de conversa......................
127
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - Oferta escolar para a população indígena no Brasil -2005....................
82
TABELA 2 - Educação infantil indígena nas aldeias-2005.........................................
90
TABELA 3 - Educação infantil indígena nas aldeias -2006........................................
90
LISTA DE IMAGENS
FOTO 1- Aldeia de Pau Brasil................................................................................ 36
FOTO 2- Outdoor sobre os conflitos pela posse da terra.........................................38
FOTO 3- Outdoor sobre os conflitos pela posse da terra...................................... 39
FOTO 4- Escola onde realizamos a pesquisa........................................................ 93
FOTO 5- Roda de conversa.....................................................................................97
FOTO 6- Passeio pela aldeia de Pau Brasil............................................................ 98
FOTO 7- Desenho do lixo avistado na aldeia......................................................... 98
FOTO 8- Alunos dispostos em pequenos grupos na sala de aula..........................113
FOTO 9- Leitura de texto na roda........................................................................... 121
MAPA 1- Aracruz no Estado do Espírito Santo...................................................... 34
MAPA 2- A disposição das aldeias em Aracruz-ES............................................... 35
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
AC - Análise da Conversação
CIMI - Conselho Indigenista Missionário
COFAVI - Companhia Ferro e Aço de Vitória
CNE - Conselho Nacional de Educação
EEI - Educação Escolar Indígena
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
GT - Grupo Técnico da FUNAI
IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas
IDEA - Instituto Para o Desenvolvimento e Educação de Adultos
INEP - Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
IPE - Instituto de Pesquisa em Educação
LDB - Lei de Diretrizes e Bases
MEC - Ministério da Educação e Cultura
PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais
PdT - Pedagogia do Texto
PMA - Prefeitura Municipal de Aracruz
PPGE - Programa de Pós-Graduação em Educação
RCNE/Indígena - Referencial Curricular Nacional de Educação Indígena
RCNE/Infantil - Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil
SEF - Secretaria de Educação Federal
SEDU - Secretaria Estadual de Educação
SEMED - Secretaria Municipal de Educação
SPI - Serviço de Proteção ao Índio
UFES - Universidade Federal do Espírito Santo
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................. 15
ABSTRACT............................................................................................ 16
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
17
1- PARA INÍCIO DE CONVERSA UM POUCO DE HISTÓRIA: E OS
OBJETIVOS DA INVESTIGAÇÃO.........................................................
20
1.1- ALGUMAS REFERÊNCIAS AO PERCURSO HISTÓRICO DA
EDUCAÇÃO INFANTIL BRASILEIRA....................................................
20
1.2- ALGUMAS REFERÊNCIAS AO PERCURSO HISTÓRICO
DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA..................................................
23
1.3- REFERÊNCIAS AO CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO......................... 33
1.4- OS OBJETIVOS DA INVESTIGAÇÃO.................................................... 40
2- LINGUAGEM E EDUCAÇÃO: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS............. 45
2.1- A CONCEPÇÃO DE DESENVOLVIMENTO E DE APRENDIZAGEM A
PARTIR DO REFERENCIAL HISTÓRICO-CULTURAL........................
45
2.2- CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONCEPÇÃO BAKHTINIANA
DE LINGUAGEM....................................................................................
49
2.3- A LINGUAGEM ORAL COMO OBJETO DE ENSINO E
DE APRENDIZAGEM.............................................................................
56
2.4- O ENSINO-APRENDIZAGEM NAS ALDEIAS E AS CAPACIDADES
DE LINGUAGEM.....................................................................................
62
2.5- A “CONVERSA”: UM GÊNERO TEXTUAL A SER EXPLORADO
NA EDUCAÇÃO INFANTIL.......................................................................
67
2.6- E O QUE DIZEM AS CRIANÇAS SOBRE AS RODAS
DE CONVERSA?..................................................................................
74
3- A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA: OS SUJEITOS, O PROBLEMA E OS
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DE INVESTIGAÇÃO............
82
3.1- A FORMAÇÃO DO EDUCADOR INDÍGENA PARA A EDUCAÇÃO
INFANTIL EM ARACRUZ – ES...............................................................
87
3.2- A ESCOLA INDÍGENA INFANTIL EM ARACRUZ – ES......................... 89
3.3- OS SUJEITOS DA PESQUISA................................................................ 90
3.4- O PROBLEMA DE INVESTIGAÇÃO....................................................... 94
3.5- A PESQUISA PARTICIPANTE DE CARÁTER ETNOGRÁFICO........... 104
4- ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS: ALGUNS IMPACTOS
NA PRODUÇÃO TEXTUAL ORAL DE CRIANÇAS DA EDUCAÇÃO
INFANTIL...............................................................................................
111
4.1- ATIVIDADES DE LINGUAGEM ORAL FREQUENTEMENTE
REALIZADAS NAS SALAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA
TUPINIKIM..............................................................................................
112
4.1.1- Organização de calendário.................................................................... 114
4.1.2- Roda de Conversa.................................................................................. 117
4.2- É POSSÍVEL ABORDAR O ORAL COMO OBJETO DE ENSINO EM
CLASSES DE EDUCAÇÃO INFANTIL.................................................
122
4.2.1- Formação continuada e a realização de seqüências didáticas.............. 123
4.2.2- O desenvolvimento da segunda seqüência didática............................. 126
4.2.2.1- As rodas de conversa e suas caracterizações....................................... 126
4.2.2.2- Os episódios de conversa (subsídios para a produção da primeira
versão de três textos orais).....................................................................
128
4.2.2.3- Análise da produção da primeira versão de três textos orais................. 131
4.2.2.4- Os episódios de conversa (subsídios para a produção da segunda
versão de três textos orais).....................................................................
136
4.2.2.5- Análise da produção da segunda versão de três textos orais..................139
4.3- A PRODUÇÃO DE TEXTO ORAL VALORIZADA POR UMA PRÁTICA
REFLEXIVA............................................................................................
143
4.3.1- Os episódios de conversa (subsídios para a produção da terceira
versão do texto de Le).............................................................................
143
4.3.2- Análise da produção da terceira versão do texto de Lê.......................... 147
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................... 151
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................... 156
APÊNDICE............................................................................................. 169
APÊNDICE A- Primeira seqüência didática.................................................................... 170
APÊNDICE B- Segunda seqüência didática...................................................................
171
APÊNDICE C- Questões elaboradas com as crianças para a entrevista com o
cacique....................................................................................................
173
APÊNDICE D-
Questões dinamizadoras da conversa na nona roda -2ª seqüência.......
174
ANEXOS................................................................................................ 175
ANEXO A – CONVENÇÕES PARA A TRANSCRIÇÃO DAS FITAS..........................
176
ANEXO B – FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA
INDÍGENA..............................................................................................
177
ANEXO C- FOLHA DO DIÁRIO DE CAMPO............................................................ 179
ANEXO D- ROTEIRO DA ENTREVISTA COM A PROFESSORA........................... 180
ANEXO E- FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DAS CRIANÇAS.............. 183
RESUMO
Este trabalho é desenvolvido no contexto da educação escolar infantil indígena com
o objetivo de investigar o lugar da linguagem oral nos instantes de produção de
gêneros textuais orais específicos. Parte do pressuposto de que a oralidade não
deve servir apenas como um veículo no desenvolvimento de atividades rotineiras na
escola de educação infantil. Trata-se de uma pesquisa participante de caráter
etnográfico que realiza intervenção em processos de ensino do oral a partir do
trabalho colaborativo com os educadores da educação infantil que também envolve
o programa de extensão ”Formação Continuada de Educadores indígenas” da
Universidade Federal do Espírito Santo. Os aportes teóricos da abordagem histórico-
cultural em Vigotski (2001) e enunciativo-discursiva em Bakhtin (2003, 2004) bem
como as contribuições de Schneuwly (2004) são fundamentais para a realização
deste estudo. Foram utilizados, como procedimentos para a coleta de dados,
videogravações, fotografias, diário de bordo, questionário e entrevistas semi-
estruturadas, individuais e em grupos focais. Para a efetivação da pesquisa, a
“conversa na roda” foi tomada como um espaço de interação verbal importante, e na
formação continuada dos educadores, duas seqüências didáticas foram planejadas,
materializando-se em contextos precisos de produção textual oral das crianças. Nas
primeiras análises dos dados, obtidos por meio de estudo exploratório, foi
constatado que a atividade oral realizada na roda de conversa, na perspectiva do
educador e na concepção da criança, só era validada quando respaldada pela
escrita. Com a utilização de seqüências didáticas e o exercício reflexivo sobre as
práticas cotidianas de oralidade, um ambiente mais discursivo se instaurou e
proporcionou aos sujeitos confrontar diferentes saberes e tomar a linguagem oral
como objeto particular de estudo e análise.
Palavras-chave: Educação infantil. Linguagem oral. Ensino. Educação Escolar
Indígena
ABSTRACT
This study is developed in the context of the Indians Children Education aiming at
investigating the place of the oral language during the production of specific oral
textual genders. It assumes that the oral language should not work only as a gadget
in the development of the every day activities in the children education school. It is
about a participant research with ethnographic character that interferes in the oral
teaching process, through the collaborative work with the educators. It also involves
the extension program called “Continuing Formation of Indian Educators” (Formação
Continuada de Educadores Indígenas) of the Espírito Santo State Federal University.
The theoretical basis of the historical-cultural approach in Vigotski (2001) and the
enunciatively-discursive in Bakhtin (2003, 2004), as well as contributions of
Schneuwly (2004) are fundamental for the study accomplishment. It uses as
procedures for data collection tape recordings, pictures, journals, questionnaires and
individual and group semi-structured interviews. For the research effectuation, the
“group chatting” was taken as an important verbal interaction space and, in the
educators’ continuing formation, two didactical sequences were planned materializing
themselves in precise contexts of the children oral textual production. In the first
analysis of data, through exploratory study, it was observed that the oral activity
during the group chatting, in the educator perspective and the child conception, was
only valued when supported by the writing. With the use of the didactical sequences
and the reflexive exercise about the oral everyday practices, a more discursive
environment was created, what has provided the confrontation of different knowledge
and the belief of the oral language as a particular object of studies and analysis.
Keywords: Children education. Oral language. Teaching. Indian School Education
17
CONSIDERAÇÕES INICIAIS1
A oralidade é prática social interativa indissoluvelmente associada às condições de
comunicação.
Em especial na tradição indígena, a oralidade sempre foi e ainda é um importante
mecanismo de manutenção de tradição entre as gerações constituindo-se como um
dos mais importantes e fundamentais meios de propagação da cultura e da história,
ao resgatar como foram vividas as mudanças pelos povos.
No contexto da educação educativa infantil indígena estamos atenta a observar que
a prática social interativa da oralidade apresenta-se por meio de diferentes gêneros
textuais. Assim, numa perspectiva que compreenda a linguagem oral como objeto de
ensino, dentro da relação de ensino-aprendizagem, focalizamos as observações na
educação escolar das crianças pequenas para quem a interação social se processa
em grande parte pela comunicação oral.
O atendimento escolar às crianças pequenas expandiu-se nas últimas décadas no
Brasil e no mundo, em virtude de uma intensa urbanização, pela maior participação
feminina no mercado de trabalho e pelas mudanças ocorridas na organização e
estruturação das famílias. Em decorrência desse quadro social, houve maior
demanda por uma educação institucional para crianças. E nas aldeias de alguns
povos indígenas, várias mudanças sociais também ocorreram desencadeando um
quadro em que as famílias solicitam espaços para que as crianças possam ter
acesso a conhecimentos diversos que venham a fortalecer a “causa” indígena. Com
a promulgação da Constituição Federal de 1988, tornou-se legalmente garantido às
comunidades indígenas o direito à diferença, em formas particulares de organização
escolar. Desde os anos 90, a escolarização desses povos tem-se fortalecido no
1 Esta pesquisa desenvolveu-se inicialmente sob orientação da Profª Drª Edivanda Mugrabi (abril/2005 a fev/2007). Posteriormente, com o afastamento da mesma por motivos pessoais, assumiu a Profª Drª Gerda Margit Schütz Foerste, a partir da aprovação (março/2007), pelo colegiado do programa de Pós-graduação em Educação/CE/UFES, dando assim continuidade e término aos tramites finais da orientação (agos/2007).
18
País, como fruto de reivindicações das comunidades que lutam para efetivar os
direitos garantidos em lei.
No Espírito Santo, o ensino escolar às crianças das pequenas em aldeias Tupinikim
e Guarani iniciou-se por volta de 1996, quando um grupo de índios fez o Curso do
Magistério Indígena. A luta por tal escolarização surgiu da necessidade de também
manter um atendimento escolar às crianças pequenas, com um currículo voltado
para as realidades de suas etnias. O presente estudo propõe discutir uma das
vertentes do atendimento escolar as crianças pequenas, ou seja: a linguagem oral
nos processos educativos, na perspectiva que vê a linguagem oral como objeto
particular de ensino, exigindo organização planejada do educador e esforço
intelectual do aluno.
Utilizando o procedimento seqüência didática, realizamos oficinas de aprendizagem
para a produção de gêneros orais específicos que serviram como recurso a
potencializar entre os alunos práticas de linguagem novas a serem
ensinadas/aprendidas na educação infantil, uma vez que contribuem para o
desenvolvimento de capacidades de ação, discursivas e lingüístico-discursivas.
Assim, todo o processo de construção e eixo de investigação estará, pois,
constituído na interface das discussões sobre a educação infantil, a educação
indígena e o ensino da linguagem oral.
Para melhor compreensão do objeto de estudo, a estruturação do trabalho
apresentar-se-á organizada em quatro capítulos. O capítulo primeiro fará uma
explanação sobre algumas referências ao percurso histórico da educação infantil
brasileira e à educação escolar indígena, apresentando, ainda, considerações
particulares ao contexto pesquisado e os objetivos que delimitaram os eixos
investigativos.
O segundo capítulo trará os pressupostos teóricos norteadores da investigação
Inicialmente, apresentaremos a concepção de desenvolvimento e de aprendizagem
na perspectiva dos estudos de Vigotski (1995, 2001). Em seguida, discutiremos a
concepção enunciativo-discursiva, tendo por base as contribuições de Bakhtin
(2003, 2004) sobre os estudos da linguagem. Em continuidade, abordaremos a
19
linguagem oral como objeto de ensino e de aprendizagem, baseando-nos em
estudos de Schneuwly e Dolz (1999, 2004). Com base em Faundez (1999), Mugrabi
(2002), Faundez e Mugrabi (2006), Faundez (2006) teceremos alguns comentários
acerca da PdT, uma abordagem educativa atualmente utilizada no ensino escolar
das aldeias indígenas do município de Aracruz. A partir daí, referendando-nos em
Kerbrat-Orecchioni (1996) e em Mugrabi (2002), abordaremos um conceito de texto
explorando a “conversa” como um gênero textual a ser trabalhado e discutido
teoricamente na educação infantil.
O terceiro capítulo focalizará as particularidades da escola indígena no município de
Aracruz/ES, situando a formação do profissional da educação infantil e, em
seqüência, contextualizando os sujeitos pesquisados. O fio condutor desta
apresentação é a idéia de que a criança, juntamente com seus congêneres, contribui
para a produção/reprodução da cultura. Ou seja, é sujeito histórico das relações
sociais no contexto histórico e geográfico de sua comunidade. O capítulo ainda
apresentará observações dos caminhos que percorremos para desenvolver a
investigação, mostrando as linhas gerais delineadoras do problema investigado,
sinalizando o exercício reflexivo sobre as práticas cotidianas de oralidade como
possibilidades de se potencializar o ambiente da educação infantil como espaços
discursivos.
O quarto capítulo será dedicado à descrição, análise e discussão de dados que
obtivemos, tomando em conta nossas questões de investigação e o referencial
teórico que subsidiou toda a pesquisa.
As considerações finais serão contempladas com nossas reflexões acerca de todo o
trabalho realizado. Apresentaremos alguns elementos colaboradores ao debate
sobre um novo olhar que observa a educação infantil como instância primeira para a
realização de processo educativo consciente, intencionado social.
20
1 - PARA INÍCIO DE CONVERSA: UM POUCO DE HISTÓRIA E OS OBJETIVOS
DA INVESTIGAÇÃO
1.1 - ALGUMAS REFERÊNCIAS AO PERCURSO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO
INFANTIL BRASILEIRA
A história da educação infantil brasileira é recente e recua aos anos 1970. De acordo
com Rosemberg (2005), é possível destacar três grandes períodos nesse percurso:
o primeiro entre o final dos anos 1970 e final dos anos 1980, correspondente à
implantação de modelo assistencialista que preconizava uma educação pré-escolar
compensatória de carências às populações pobres, exigindo poucas verbas do
Estado para sua manutenção. Esse período se caracterizou também por uma
superposição de responsabilidades dos setores da assistência, da educação, da
saúde e do trabalho (Rosemberg, 2005). A autora ainda aborda que, desse período,
restou à educação infantil brasileira a herança de uma educação não formal
utilizando-se
[...] espaços físicos, material pedagógico e mão de obra improvisada; a criação de creches e pré-escolas comunitárias; sua municipalização; o recurso a educadores leigos com formação inferior ao curso normal ou secundário; a retenção de crianças com 7 anos e mais nos programas de educação infantil; a consolidação das nomenclaturas – creches, pré-escolas e classes de alfabetização (Rosemberg, 2005, p. 28).
O segundo período iniciou-se com a abertura política após a ditadura militar, dando
início a diversas ações de movimentos sociais organizados, que culminaram – a
partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 – com o reconhecimento à
criança de zero a seis anos do direito à educação complementar àquela recebida na
família, ou seja, o direito de ser reconhecida como um sujeito de direitos. Nunes
(2005), ao discutir o reconhecimento social da infância no Brasil, de sua menoridade
à condição de cidadãos, aponta como importantes elementos desse reconhecimento
os padrões de intervenção social compostos de políticas sociais e o entendimento
de que a educação infantil não é apenas um elemento a mais das políticas voltadas
para a infância.
21
Como sujeitos de direitos, não podem tornar-se objetos de ações disciplinares ou repressivas que atentem contra a sua peculiar condição de desenvolvimento e/ou que atentem contra os direitos humanos [...] A criança deve ser priorizada [...] em atendimento prestado por órgãos públicos [...] (Nunes, 2005, p. 89-90).
A partir deste período, a educação infantil brasileira passou a contar com um número
expressivo de pesquisadores da área da infância e com a elaboração de políticas
nacionais que, questionando o modelo anterior assistencialista, promoveram uma
concepção do educar equivalente ao cuidar. Vasconcelos (2005, p. 117), ao tratar da
infância e políticas de Educação Infantil, apresenta que “[...] é o investimento na
formação inicial e continuada dos profissionais que atuam na educação dos
pequeninos [...]” o elemento fundamental para a consolidação de uma educação de
qualidade. Rosemberg (2005, p. 30), chama a atenção para o fato de que é nesse
período, que
[...] a hegemonia de uma concepção de educação infantil não diferencia creches de pré-escolas pelo padrão de qualidade, pela formação dos educadores e pela responsabilidade administrativa. Consideram-se as instâncias educacionais como regulamentação, fiscalização, financiamento e oferta da educação infantil [...] (Rosemberg, 2005, p. 30).
O terceiro período se instala com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases, nº
9.394/96. Essa lei apresenta, de forma incisiva, a necessidade de abordar e se
estreitar o vínculo entre o atendimento e a educação de crianças de zero a seis
anos. Segundo Rosemberg (2005), a aprovação dessa lei coincide com o momento
histórico vivido pelo País com a eleição de um Governo Federal que apóia
alterações na concepção de Estado, em que esse, se inserindo em uma hegemonia
neoliberal, faculta uma política social referendada em razões econômicas
globalizadas. Ou seja, em razões que defendem a instituição de um sistema de
governo no qual o indivíduo tenha mais importância do que o Estado, sob a
argumentação de que quanto menor a participação do Estado na economia, maior
será o poder dos indivíduos e mais rapidamente a sociedade poderá se desenvolver
e progredir, para o bem dos cidadãos.
22
Ghiraldelli (2002, p. 11), ao discutir questões relacionadas com a infância, em
tempos de um governo neoliberal, pontua a inerente capacidade de tal doutrina “[...]
colaborar na proliferação das mazelas sociais na medida em que pretendem de
maneiras variadas, deslocar de uma vez por todas a educação para o campo da
iniciativa privada [...]”.
Assim sendo, é importante salientar que, no período da década de 1990, dá-se, no
Brasil, a entrada de ações organizadas pelo Banco Mundial que “[...] elaboram e
divulgam modelos de política educacional, redefinindo prioridades e estratégias à luz
dos conceitos de rede de proteção social e de focalização de políticas sociais para
populações pobres” (Rosemberg, 2005, p. 32). Desse modo, é inserido, de maneira
velada, o conceito de “desenvolvimento infantil” atrelado à idéia de que este pode
ser implantado por quaisquer que sejam os membros da sociedade. Para
Rosemberg (2005), após a promulgação da LDB, a educação infantil vivia um
momento um tanto quanto conturbado, pois, de um lado, buscava a regulação de
serviços e, por outro uma tentativa de reafirmar uma concepção de atendimento
assistencialista à criança pequena, com o que também concorda Bujes (2001).
Com a visão de que as crianças, desde que nascem, são sujeitos de cultura, e que, por conseguinte, têm o direito a educar-se, busca-se superar as práticas assistencialistas (onde a criança é apenas objeto cuidado da assistência) e práticas escolarização precoce (onde apenas se valorizam as habilidades para ‘ler, escrever e contar’) (Bujes, 2001 apud Vasconcelos, 2005, p. 129).
Desse modo, segundo Ghiraldelli (2002, p. 38-39), altera-se o conceito de infância,
apresentando a criança como “[...] um corpo que consome coisas de criança”. Por
conseguinte, há uma nova atribuição à função pedagógica, pois esta “[...] deve
pensar numa escola para alguém que é apenas consumidor – consumidor de
técnicas – só podendo pensar em fazer da escola uma empresa” . A escola dos
tempos neoliberais, afirma Ghiraldelli (2002), é, então, a junção dessas duas
necessidades. Entretanto pensamos que mais do que oferecer o acesso seria
necessário também garantir que ele, de fato, contribuísse na superação de
desigualdades sociais via educação conforme afirma Vasconcellos (2005, p.143). A
autora esclarece que seria por meio da defesa do direito pela “[...] garantia de vagas
23
na educação infantil [...]” que poderíamos superar a política de exclusão, e “[...]
superar desigualdades regionais e socioeconômicas”. Em nosso trabalho, por tratar-
se da questão indígena, os fatos apontados acima assumem dimensão relevante,
pois o tratamento escolar à educação infantil indígena é recente. Iniciada com uma
proposta assistencialista e posteriormente se contextualizado com a proposta da
causa indígena que foi resultante das lutas no percurso das mudanças políticas do
País. A seguir, apresentaremos algumas referências ao percurso histórico da
educação [principalmente] escolar indígena no Brasil e no Espírito Santo, de
maneira que essa contextualização nos forneça elementos para o entendimento de
questões relacionadas ao nosso contexto investigado.
1.2 - ALGUMAS REFERÊNCIAS AO PERCURSO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL
Ocorreu, ao longo da História, uma drástica redução populacional de diversas etnias,
em decorrência de seguidos massacres, doenças e de uma postura excludente e
preconceituosa dos invasores europeus. Tal postura do colonizador primava por
divulgar, a todo instante, uma certa “superioridade européia” em detrimento da
cultura e particularidades dos povos indígenas.
Assim, desconsiderando seus saberes, desconsiderava-se o que poderia ser
chamada de educação indígena já existente e praticada (seus costumes, tradições,
valores, crenças, mitos), para fazer valer uma educação vinda de fora (catequização,
civilização e integração forçada dos índios à sociedade nacional), ou seja, uma
educação para o índio que se prolongou por mais de 500 anos de História do Brasil.
Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que a população
indígena obteve um dispositivo que lhes garantiu fortalecimento legalmente
reconhecido. A partir daí, diversas ações voltaram-se para fazer valer o que estava
garantido na Constituição.
Muitos autores (Fernandes, 1964; Fernandes, 1976; Freire, 2004) já se debruçaram
sobre o estudo da educação indígena e várias são as fontes históricas utilizadas a
demonstrar que os indígenas, habitantes das terras que foram denominadas “Brasil”,
24
eram produtores de saberes e também detentores de formas de educação próprias,
de pedagogias próprias. Muitos documentos que comprovam o percurso desses
saberes já foram localizados, analisados e identificados em arquivos de âmbito
estadual (Monteiro, 1994) e nacional (Freire, 1995, 1996). Segundo Freire (2004) é
possível propor um agrupamento desses documentos de acordo com a sua natureza
ou a periodização da história tradicional do Brasil.
Desse modo vemos que, no Período Colonial, há uma farta documentação que foi
deixada por missionários, sobretudo jesuítas, ou ainda produzida pela Coroa
portuguesa, ou pelos diretores de índios, 2 a qual pode ser encontrada em arquivos
europeus ou brasileiros: correspondência para a administração colonial, narrativas
epistolares, relatórios das visitas às aldeias, crônicas, cartas régias, regimento das
missões, listas de matrículas de índios, mapas de índios ausentes e outros. Do
Período Imperial, é possível consultar os relatórios das Diretorias de Índios (1845),
os documentos de catequese elaborados pelos Capuchinhos, os relatos de viajantes
ao longo do século XIX e os relatórios do Ministério dos Negócios da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas (1861). Do Período Republicano, valiosas informações
podem ser encontradas em relatórios de órgãos governamentais, censos parciais e
mapas de alunos de escolas de aldeias e arredores que funcionavam no século XX,
informações elaboradas por missões de diferentes ordens religiosas, além de ofícios,
memorandos, planos de serviço, quadros, tabelas, memórias e relatórios produzidos
por órgãos administrativos. Sobre as últimas décadas do século XX e agora na
contemporaneidade do século XXI, as documentações originaram-se de diversas e
diferentes fontes: os próprios povos indígenas, universidades, Ministério da
Educação, Conselho Nacional de Educação, Conselhos Estaduais de Educação,
Secretarias de Educação (municipais e estaduais), Conselho Indigenista Missionário
e Funai.
Com relação a essas fontes, destaque ainda deve ser dado aos diários de classe de
professores, às atas e relatórios de reuniões, documentos oficiais e publicações do
2O diretor de índio era um encarregado por aldeia, diferente do diretor-geral que era encarregado de província. Ambos os cargos foram criados pelo Governo Imperial da época, a partir da assinatura de um decreto de 24-6-1845. O diretor de índio deveria ser nomeado pelo Imperador e, se possível, ser um missionário. O decreto de 1845 regulamentava as missões de catequese e civilização dos índios (Cota, 2000).
25
Ministério de Educação e Cultura (MEC) na década de 1990, que incluem diretrizes,
normas decretos, leis, censos escolares, pareceres e resoluções do Conselho
Nacional de educação (CNE) e documentos diversos sobre cursos de educação
bilíngüe, bem como de documentações de programas e projetos de implantação de
escolas indígenas, pesquisas e projetos desenvolvidos por universidade e algumas
dissertações3 de pós-graduação (Freire, 2003). Em alguns desses documentos,
embora por vezes fragmentadas, dispersas ou mesmo freqüentemente impregnadas
de etnocentrismo, é possível reconstituir, após cinco séculos de história do Brasil,
elementos que informam sobre certos princípios pedagógicos do sistema de
educação tradicional oral das aldeias do litoral do Brasil, habitadas por alguns povos
indígenas, 4 dentre eles, os Tupinikim.
Fernandes (1964, apud Freire, 2004), em estudos referentes à etnia Tupinambá,
observou que a educação desse povo era norteada, entre outros, por três valores: o
valor da tradição oral, o valor da ação e o valor do exemplo. A transmissão desses
valores/saberes se processava no intercâmbio cotidiano, por meio de contatos
pessoais e diretos. A aprendizagem se dava em todo momento e pode-se dizer que
todos contribuíam para a educação do conjunto da população. Freire (2004) pontua
que a observação acima é passível de críticas, uma vez que esquematiza e idealiza
a figura do indígena. Mas argumenta, ainda, que há méritos em Fernandes, uma vez
que, pioneiramente, chama a atenção para a existência de um discurso construído
pelos indígenas sobre as suas próprias práticas pedagógicas que até então não
haviam sido consideradas. De acordo com Cota (2000, p. 26-27) devido à
semelhança cultural entre os Tupinikim e os demais povos Tupi, pode-se afirmar que
“[...] entre estes povos o principal objetivo da educação era o de assimilar o indivíduo
à ordem social tribal”. Dessa forma, a autora argumenta que “[...] não existiam
especialistas em educação”. Outro aspecto importante que salienta é que, para “[...]
estes índios a educação era um processo que acontecia ao longo da vida” cujo
principal objetivo era a transmissão de conhecimentos, dos quais faziam parte não
somente conteúdos, mas principalmente atitudes, convicções e aspirações, que “[...]
3 Cf. Cota, 2000; Padilha, 2004; Marcilino, 2005; Neves, 2005; Godinho, 2006; Teao, 2007; Magalhães, 2007. 4 Os povos que habitavam o litoral brasileiro eram de origem Tupi (Tupinikim, Tamoio, Kaeté, Potiguára, Tobajara). Ocupavam uma extensa faixa do litoral brasileiro que ia do Ceará ao Estado de São Paulo e possuíam semelhanças lingüísticas e culturais.
26
tinham de ser assimiladas para que a pessoa pudesse ser um autêntico Tupinikim,
Tupinambá, Tamoio, etc”.
Na observação das práticas pedagógicas indígenas, registros históricos mostram
que, no século XVI, o colonizador europeu criticou incisivamente os procedimentos
de correção de erros dos indígenas. Missionários jesuítas identificaram que na forma
de transmitir costumes e valores, os indígenas “[...] amam os filhos
extraordinariamente, [porém] nenhum gênero de castigo tem para os filhos, nem há
pai nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em filho” (Cardim, 1980, p. 91,
apud Freire, 2004, p. 16). Cronistas como Pero de Magalhães Gandavo, provedor da
Fazenda na Bahia, entre 1565 e 1570, observou também que os índios “[...] criam
seus filhos viciosamente, sem nenhuma maneira de castigo” (Gandavo, 1980, apud
Freire, 2004, p. 16). Freire (2004) sinaliza ainda que este tipo de relação em que a
criança é socializada sem nenhuma forma de repressão, é observável ainda hoje no
século XXI, sobretudo em aldeias Guarani do Rio de Janeiro e do Espírito Santo.
Pelas observações acima, é possível afirmar que o colonizador não reconhecia a
maneira de educar dos indígenas como sendo práticas pedagógicas resultantes de
uma reflexão coletiva. Interpretavam-nas como negligência ou falta de princípios
pedagógicos. O estranhamento diante das pedagogias indígenas levou o
colonizador a efetivar imposição de outra forma de educação e de catequização
como instrumento civilizatório. O colonizador, em uma violenta imposição de
costumes seus aos gentios, ignorava a visão de mundo desses povos, obrigando-os
a falar o português, a acreditar em outro Deus e a abandonar hábitos culturais que
eles, os indígenas, já cultivavam ao longo de muitos anos. Assim, o entendimento
nunca se efetivava, porque, para o colonizador, se o índio parecia gentil e amável,
tornava-se um alvo fácil de submissão à escravidão. Entretanto, se demonstrava
ciência de sua condição de donos das terras e reagia à invasão, era considerado
selvagem, sanguinário e carente de uma domesticação emergente.5
[...] a inexistência da escola, da sala de aula, do docente, do currículo, de horários, de uma disciplina rígida, de punições de castigos corretivos permitiu-lhes concluir que os povos indígenas não tinham educação e
5 Conf. Lima (1995) e Teixeira (1995).
27
precisavam ser civilizados, de acordo com o modelo europeu de educação escolarizada (Freire, 2004, p. 16).
Sob a ótica dos colonizadores, os indígenas estavam sempre em um grau de
inferioridade e, portanto, seus modos próprios de ser, eram menosprezados. Por
outro lado, era do interesse do colonizador estreitar relações entre os nativos de
modo a obter vantagens para explorar a terra desconhecida na busca de ouro ou na
expansão agrícola ou pastoril. Como a língua diferente impossibilitava o contato
entre brancos e índios, grande foi a repressão que os europeus impuseram aos
nativos para eliminar suas línguas nativas, impondo-lhes a língua do colonizador.
Certamente, a proibição ao uso da língua nativa e imposição do idioma português
deu-se porque os colonizadores entendiam que a utilização das línguas nativas
reforçava as tradições e costumes tribais que eles queriam exterminar.
Garcia (2005) analisa o empenho da Coroa Portuguesa em fazer campanha para
disseminar o idioma português no período colonial e propagar a idéia de que, com
uma série de leis, iriam transformar os índios em súditos da Coroa, iguais aos
colonos. A autora esclarece que assim os colonizadores pretendiam eliminar as
diferenças características dos povos indígenas, fazendo deles pessoas “civilizadas”.
De acordo com Garcia (2005), na segunda metade do século XVIII, a Coroa
Portuguesa organizou, em 1757, um conjunto de leis sistematizadas num texto
chamado Diretório dos Índios6 (Garcia, 2005). Por intermédio dessas leis, a Coroa
promoveu, no início da década de 1770, a fundação de duas instituições. 7 Com
elas, os colonizadores pretendiam impor o uso do idioma português, uma vez que
entendiam ser essa uma importante arma de dominação e controle político dos
6 O Diretório dos Índios, publicado em 1757, foi concebido com o objetivo de inserir os índios na sociedade portuguesa como homens livres e vassalos do rei, substituindo os hábitos culturais dos indígenas por costumes europeus. O Diretório estipulava uma série de mudanças: a substituição das línguas indígenas pelo português; o incentivo aos casamentos mistos de índias e portugueses; a transformação das aldeias em vilas, entre outras (Garcia, 2005). Por trás dessa política, existia o interesse de manipular os indígenas para a defesa do território colonizado. Uma vez tratados como vassalos do rei, os indígenas defenderiam as fronteiras, incrementariam a agricultura e pagariam impostos. Apesar de, inicialmente, ter sido elaborado para a Amazônia, o Diretório foi estendido a todo o restante da colônia. No entanto, dada a diversidade dos indígenas, sofreu uma série de alterações. Fracassando em suas intenções, foi abolido em 1798 (Garcia, 2005). 7 Essas duas instituições de ensino para os índios eram: uma escola para os meninos e um recolhimento para as meninas atendendo a uma população com idade mínima de seis anos e a máxima de doze anos. Foram fundadas na aldeia Nossa Senhora dos Anjos que foi povoada por índios Guarani, trazidos dos Sete Povos das Missões por Gomes Freire de Andrade, no final da década de 1750. Nos dias atuais, onde antes fora a referida aldeia, hoje se localiza a cidade de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, RS.
28
súditos e, gradativamente, impor-lhes costumes ocidentais europeus. As crianças
deveriam ser convertidas à fé católica, vestindo-se como os brancos e sendo
disciplinadas para o trabalho (Garcia, 2005). Em sua educação, recebiam castigos
físicos, quando utilizavam a língua própria, pois não havia lugar para as
manifestações culturais dos indígenas. O que se ensinava era essencialmente os
elementos da cultura portuguesa, desconsiderando-se toda a herança cultural dos
antepassados dos educandos indígenas, assim como suas experiências anteriores.
Os colonizadores consideravam que as instituições e os ensinamentos europeus
eram universais e, não detectando vestígios desses ensinamentos entre os
indígenas, concluíam serem estes carentes de práticas educativas consistentes. A
inexistência de escolas, salas de aulas, currículos, horários para atividades,
punições aos erros, no modelo educativo dos povos indígenas 8, reforçou nos
colonizadores a necessidade de implementar um processo de “civilização” dos
indígenas, segundo os moldes europeus, para torná-los “pessoas de bem”, no qual a
escola para índios assumia uma função essencialmente civilizatória. Com isso, a
oferta de programas de educação escolar às comunidades indígenas esteve
pautada pela catequização, civilização e integração forçada dos índios à sociedade
nacional dando-se o início da implantação do que estamos definindo como educação
escolar para índios.
No desenvolvimento dessa educação, algumas iniciativas se propunham a
acompanhar como ela se realizava. Dessa forma, em 1861, o poeta Antônio
Gonçalves Dias, após ser nomeado para o cargo de visitador das escolas do
Solimões, pelo presidente da Província do Amazonas, viajou pelo rio Solimões até
os limites com o Peru e a Colômbia e pelo rio Negro até Cucuí, na fronteira com a
Venezuela, visitando escolas encontradas no curso da viagem. O objetivo principal
da viagem era observar e registrar as condições da instrução primária em escolas
com predominância de alunos indígenas que sequer falavam a língua portuguesa. O
resultado dessa viagem foram dois relatórios que procuraram apresentar
informações “[...] acerca do progresso ou regresso da instrução primária naqueles
lugares” (Gonçalves Dias, 1861-2002, p. 7). O poeta, visitando as regiões de Coari,
8 Cf.: IBASE. Educação escolar em Terras Brasilis, tempo de novo descobrimento. Rio de Janeiro: 2004, p. 16.
29
Tefé, Alvarães, Fonte Boa, Olivença e Tabatinga, produziu um primeiro relatório
sobre as condições dos lugares visitados apresentando informações diversas tais
como: os dados estatísticos sobre os alunos; os horários de funcionamento das
escolas; o currículo e livros didáticos utilizados; a situação dos professores no que
compete à formação, seleção, remuneração, aposentadoria; a evasão dos alunos.
Tudo isso porque lhe foi possível assistir às aulas, entrevistar professores, verificar
cadernos dos alunos, conferir e confrontar os números referentes aos alunos
efetivamente matriculados e os que estavam presentes.
Nos registros, Gonçalves Dias (1861-2002) chama a atenção para dois problemas
que considera mais graves e relevantes: a questão da formação dos professores e a
evasão escolar. Sobre a formação dos professores, pontua que “[...] a primeira falta
que se nota é a insuficiência dos mestres” (Gonçalves Dias, 1861-2002, p. 5).
Acrescenta ele, que “[...] se considera profissão de mestre como recurso para
indivíduo sem habilitações para outra indústria qualquer, ou como um meio de
aumentar vencimentos” (Gonçalves Dias, 1861-2002, p. 5). Sobre a evasão,
assegura ele, que o grande e principal motivo é devido “[...] a falta de suficientes
meios de subsistência ou a carência dos gêneros de primeira necessidade” (p. 11)
uma vez que esta ausência de recursos contribuiu para que “[... ] a gente menos
remediada se retirasse com seus filhos para outros lugares” (Gonçalves Dias, 1861-
2002, p.11).
Para o diálogo com a nossa pesquisa, a discussão dos dados apresentados por
Garcia (2005) e Gonçalves Dias (1861) reporta-nos a reflexões acerca de questões
referentes à educação escolar nas comunidades Tupinikim e Guarani na atualidade.
Nessas localidades, no período anterior à estruturação de uma educação
caracterizada como indígena, ou seja, do que estamos definindo como educação
escolar indígena, tinha-se um quadro com características semelhantes às
apresentadas pelos autores acima citados apresentando dados preocupantes sobre
uma grande maioria de alunos que não concluíam o ensino fundamental em
períodos de escolarização regular, altos índices de evasão de alunos e o ensino
oferecido por educadores não indígenas. A exposição de uma educadora Tupinikim
e coordenadora pedagógica da Educação Indígena no município demonstra a
expressão de importância do projeto de educação escolar indígena. Em seu
30
depoimento, justifica de maneira explícita, a necessidade de uma instituição escolar
indígena que não sirva como instrumento de imposição de valores alheios e
negação de identidades e culturas diferenciadas, mas, sim, uma escola aliada ao
revigoramento da cultura já bastante desgastada.
O fato de ter educador indígena está ainda em fase de construção e muita coisa ainda tem de se rever. Coisas que assim as crianças não viam na família estão vendo na escola, né? Que, às vezes os pais contam histórias, né contam histórias do que se fazia... muitas coisas... igual... as crianças aprendem a fazer trabalhar com pintura a ver artesanato... e antes na família.... Qual a família que está mais centrada? Na verdade pro comércio a criança tem contato o tempo todo com isso... agora a família que não tem isso que os pais trabalham fora praticamente isso não existe, não tem ou então tem muito pouco. E ai assim... é interessante você tendo o educador indígena eles tentam colocar que dentro da família vai trabalhar isso e aí vem lugar para trabalhar uma pesquisa sobre o que os pais falaram das plantas medicinais, do cacicado, da história e acaba que envolve bastante (EDUCADORA TUPINIKIM, Coordenadora da Educação Indígena).
Com o desenvolvimento do projeto de educação diferenciada e intercultural
indígena, esse quadro mudou consideravelmente. Resultante de lutas, em 1988, a
promulgação da Constituição Federal Brasileira reconhece aos povos indígenas o
direito a um ensino fundamental diferenciado, assegurando o uso de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem (art. 210). O direito à diferença é
também garantido no reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições (art. 231) e à difusão de suas manifestações culturais (art. 215).
O Decreto nº 26/91 atribuiu ao Ministério de Educação Escolar a responsabilidade
de coordenar, subsidiar e assessorar as ações referentes à educação escolar
indígena no País e, aos Estados e Municípios, sua execução, antes delegada à
Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Em 1993, o MEC estabelece que os projetos
de educação indígena devem estar pautados nos princípios da diferença,
especificidade, interculturalidade e bilingüismo. Em 1996, a Lei nº 9.394, em seus
arts. 78 e 79, confirma o direito a uma educação diferenciada às populações
indígenas.
Assim, as comunidades puderam articular formas particulares de organização
escolar. Adiante explicitaremos mais a esse respeito. Por ora, convém, na síntese
deste breve relato, ressaltar que, entre as etnias Tupinikim e Guarani do município
de Aracruz – ES, desde os anos 1990, esses dois povos têm vislumbrado, na
31
educação escolar, uma possibilidade de recuperação e revitalização de sua cultura e
de suas tradições.
É pertinente também observar que uma nova ordem social emerge a partir da
mudança de sensibilidade ligada à aparição de novos modos de representação e de
novas formas de relação social sendo, assim, necessário repensar a questão da
tradição, pois é ela, ou seria ela, o elo de conexão entre os períodos de geração em
geração na transmissão oral de rituais, de costumes, de valores espirituais, de
memória.
Hoje é diferente pelo fato do contexto que a gente vive hoje, né? Porque antes, igual, assim... eu até me lembro quando eu era criança... eu não estudava... na minha época, há vinte anos atrás eu não estudava, eu acompanhava a minha mãe em todo lugar que ela ia. Ia pra roça... Igual, ela trabalhava às vezes no Coqueiral lavando roupa de alguma família... aí todas as crianças eram assim. Iam fazer farinha com os pais... Tudo era com os pais (EDUCADORA TUPINIKIM, coordenadora da Educação Indígena).
Na atualidade, reafirmando o que nos diz a educadora Tupinikim, muito se mudou da
cultura e tradições da comunidade Tupinikim e, portanto, o repensar sobre a tradição
faz-se urgente, uma vez que é ela, a tradição, que envolve o controle do tempo e se
relaciona com a repetição. Giddens (1997) aponta que a tradição funciona como
orientadora para o passado e também para o futuro. No que se refere ao passado,
acena que ele passa a ter pesada influência sobre o presente, pois, [...] a tradição é
uma orientação para o passado de tal forma que o passado tem uma pesada
influência ou, mais precisamente, é constituída para ter uma pesada influência sobre
o presente (Giddens, 1997, p. 80).
Sobre o futuro, as práticas tradicionais estabelecidas são utilizadas como forma de
reorganizá-lo de modo que o futuro seja modelado sem que se tenha a necessidade
de esculpi-lo como um território separado. Dessa feita, a repetição, chega a fazer o
futuro voltar ao passado, enquanto também aproxima o passado para reconstituir o
futuro (Giddens, 1997). Recuperando mais uma vez a fala da educadora, expomos
localmente o quão drásticas foram as conseqüências da séria invasão do
colonizador e de como essa violação deixou marcas profundas a ponto de
32
desrefenciar o sujeito de sua condição de sujeito comprometendo perdas
relacionadas com sua língua, costumes, suas tradições.
Todos diziam que nós não somos porque não falamos... até pouco tempo quando passava um ônibus lá que ia visitar as aldeias eu cansei de ver cansei de falar papai também já cansou de falar “ah, eu vim aqui visitar os índios, a gente queria conhecer um pouco a aldeia, visitar os índio”. A gente falava “é lá pra baixo”, que era os Guarani. Nossa! A gente falou muito isso. Papai falou... outras pessoas... E até na rua quando a gente estava lá a gente via quando os ônibus passava e alguém parava... eu já vi papai falando, eu já falei, e já vi várias pessoas já falando (EDUCADORA TUPINIKIM, coordenadora da Educação Indígena).
Então, diante da reconstrução de práticas que reestruturem o futuro, a
ressignificação do conceito de ser índio também se modela. Nesse sentido, as
conexões e as formas de relação social são freqüentemente muito próximas, pois as
ações cotidianas dos indivíduos são produções/movimentos locais, sendo, pois, em
algumas vezes, também globais. Ou seja, há buscas de demarcação de espaços
locais, no que se refere ao indivíduo e suas às particularidades e de caracterizações
globais, no tocante ao indivíduo e à sua relação de pertença no todo.
[...] primeiro é preciso se identificar como índio e o grupo também identificar a gente como índio pertencente àquele grupo... e ... sei lá.... é... fazer né é... conhecer a nossa história, poder reconhecer, poder defender, argumentar sobre a nossa história, da nossa identidade como índio o que a gente tem o que a gente perdeu, por que, poder mesmo divulgar essa cultura que a gente tem hoje e que muito já se perdeu muitas coisas. É, poder lutar né... conhecer e lutar sobre as nossas questões que a gente tem hoje territorial, cultural, e outra coisas (EDUCADORA TUPINIKIM, coordenadora da Educação Indígena).
Diante da emergencial necessidade de reafirmação cultural, o Projeto de Educação
Indígena adquire relevância sobremaneira, pois, como já foi dito, amparados em um
referencial legal, é possível aos indígenas adquirirem escolarização durante o
processo de formação, garantindo-lhes que índios trabalhassem com índios e, a
partir dessa ação, possibilitasse em toda a comunidade mudanças outras.
Foi a educação que deu conta de fazer esse processo de resgate dessa identidade porque quando nós fizemos o curso de formação foi pensando deles serem índio para trabalhar com índio. Só que foi muito além disso. E aí nós começamos a ver que não só eles mas os outros índio porque estava na família e eles incentivando a comunidade eles estavam trabalhando com os valores da comunidade étnica, né então outras coisa como a mulher ser vista como colaboradora da aldeia né como uma
33
provocadora de situações, assumir lideranças que até então não era vista era apenas uma atividade tipicamente de homem Tantos trabalhos pela luta pela terra, que ela entendeu que a participação dela era importante. Tudo isso é fruto da educação (EX-COORDENADORA da Educação Indígena no município de Aracruz).
Outro exemplo significativo disso é o atual ensino da língua dos ancestrais dos
Tupinikim, o Tupi. As comunidades dessa etnia desejam recuperar sua língua nativa
e vêem na educação oferecida nas escolas das aldeias um espaço privilegiado para
isso. Desde 2004, é oferecido, em todas as turmas das escolas Tupinikim (ou seja,
da educação infantil à 6ª série), 9 o ensino do Tupi. Quanto à comunidade Guarani,
esta ainda mantém preservada a língua de seus ancestrais (o Guarani), assim como
muitos rituais e costumes de sua tradição sendo para este grupo, a Língua
Portuguesa considerada como segunda língua. Por certo, faz-se necessário algum
estudo que melhor investigue como tem se dado este processo de ensino nas
aldeias, e principalmente de como os sujeitos envolvidos têm se relacionado com
esta ação.
1.3 - REFERÊNCIAS AO CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO
O município de Aracruz (Mapa 1) está localizado ao norte do Estado do Espírito
Santo (ES), distanciando-se da capital, Vitória, cerca de 83 km. Na referida cidade,
vivem duas etnias, Tupinikim e Guarani, compondo uma população indígena
constituída de 637 famílias e totalizando 2.580 pessoas. 10
9 A instituição do ensino fundamental está sendo gradual. É um projeto novo que em cada ano é estabelecida uma nova série. Em 2005, havia da educação infantil até a 5ª série. Em 2006, tem-se da educação infantil à 6ª com a perspectiva de, até 2008, haver o ensino fundamental completo, até a 8ª série. 10 Dados fornecidos pelo Censo Demográfico Indígena (FUNAI, 2006). Esse Censo é sempre realizado no segundo semestre de cada ano par.
34
Mapa 1: Aracruz no Estado do Espírito Santo
O povo Guarani, intitulado Guarani Mbyá, chegou à cidade na década de 1960, após
longa migração iniciada a partir de 1940. Em Ladeira (1992), encontramos aportes
que justificam ser esta uma das últimas migrações do povo Mbyá, quando eles
saíram forçados da Região Sul do Brasil, expulsos de suas terras por fazendeiros
desejosos de desenvolver nessa região o plantio da erva-mate.
Em Ciccarone (1996), temos um retrato da trajetória da migração contada por
algumas narrativas que demonstraram as dificuldades, angústias e incertezas
surgidas e ou encontradas pelas famílias peregrinas ao longo do percurso entre os
Estados do Rio grande do Sul, Paraná, São Paulo, Minas Gerais até a chegada ao
Espírito Santo. Atualmente, segundo o Censo Demográfico Indígena (FUNAI, 2006),
no município de Aracruz, a população Guarani compreende 64 famílias totalizando
265 índios que vivem nas aldeias de Mboapy Pindo (Boa Esperança), Tekoa Porá
(Três Palmeiras) e de Piraquê-Açu. A maioria da população Guarani é bilíngüe e
apresenta a língua e a religião como fontes de orgulho e expressão, verdadeiros e
fundamentais elementos da cultura Guarani. Em nosso contexto de investigação,
apesar de, em alguns momentos, fazermos algumas referências ao povo Guarani,
desenvolveremos, ao longo do trabalho, considerações mais específicas à
comunidade Tupinikim, uma vez que a nossa investigação foi realizada da referida
etnia.
35
A população Tupinikim conta com cerca de 2.315 habitantes e encontra-se
distribuída (Mapa 2) em quatro aldeias (Irajá, Caieiras Velhas, Pau Brasil e
Comboios) em uma área de 7.559 hectares. Em tempos passados, a etnia Tupinikim
vivia basicamente da caça, da pesca, da coleta e da agricultura, tendo uma
economia de subsistência totalmente ligada à natureza. Viviam de acordo com sua
cultura, preservando costumes, tradições e idiomas. Entretanto, ao longo de mais de
500 anos de colonização européia, esse povo foi perdendo, progressivamente, o
território dos ancestrais e sendo diretamente influenciado por profundas alterações
culturais que incidiram na perda de sua língua materna e de algumas tradições. Para
a realização desta investigação, inserimo-nos no contexto da aldeia de Pau Brasil.
Mapa 2: A disposição das aldeias em Aracruz-ES
Pouco se sabe sobre a origem da aldeia de Pau Brasil (Foto 1), mas o Sr. Antônio
dos Santos (conhecido Seu Antonino), um ex-cacique de 70 anos, lembra-se, com
saudades, dos tempos passados. Em entrevista concedida no dia 29-11-2006, a um
grupo de crianças da educação infantil da aldeia, Seu Antonino disse:
Quando eu nasci, esta aldeia já tinha permanecido eu não posso contar em que ano só sei dizer que eu nasci em 36 e certamente esta aldeia já
36
existia. As vez, não chamava aldeia porque realmente tudo foi chamado de aldeia quando a Funai apareceu, né? A se chamar de Aldeia. Mas a aldeia é realmente essa mesmo. Porque a gente sentava com os mais velhos que moravam aqui porque também a gente conheceu alguns ainda né... alguns. E eu não era daqui era da aldeia lá de Cantagalo, mas, sempre permaneci aqui. Passava por aqui, o caminho era aqui mesmo e depois que a gente se formou rapaz jovem a gente começou a brincar com os outros jovens daqui. E a gente nem pode nem contar porque eu mesmo nem sei, mas, sei que ela é bem antiga. Ela é.
E sobre a origem do nome da aldeia, completou “[...] é porque existia muita madeira
de Pau Brasil aqui nesta região... então certamente aqui era o central, era onde
existia mais madeira de pau-brasil... é por isso, pois, que é falado e colocado o nome
de pau Brasil” (SEU ANTÔNIO, ex-cacique, 70 anos).
Foto 1: Aldeia de Pau Brasil
A aldeia de Pau Brasil está localizada a 31 km da sede Aracruz, em uma área de
1.579 hectares, com uma população de 417 habitantes, sendo 101 famílias e a
maior faixa etária populacional compreendida entre 41-54 anos. Nessa aldeia, os
habitantes, índios Tupinikim, sobrevivem da agricultura, trabalhando com a produção
e comercialização de produtos, como mandioca (farinha), milho, feijão, café, coco e
laranja. O artesanato é outra forma de reafirmação de sua cultura. Os objetos são
feitos de fibras vegetais, couro, madeira, sementes e revelando em sua confecção
artesanal a expressão de suas identidades singulares.
37
No caso do artesanato em couro, os tambores – emblemáticos da expressão étnica – manifestam-se na complexa articulação de diferentes tradições, cuja riqueza de significados dá origem a um universo simbólico peculiar que, tecido com fios da memória, criam elos entre mitos, histórias e vida cotidiana. [...] assim, como em diversas sociedades tradicionais, cada instrumento é uma pessoa, portadora de uma feição e de uma musicalidade próprias.(Ciccarone, 2004)
Em virtude de precárias condições financeiras, a subsistência com recursos próprios
da aldeia já não se fazem suficiente. Assim, vários índios saem e prestam serviços
em empreiteiras contratadas pela Aracruz Celulose. No que concerne a essa grande
empresa, é de fundamental importância pontuar que, ao longo de desenvolvimento
de nossa pesquisa, a comunidade indígena de Aracruz passou por diversos embates
com a multinacional, no que se refere à luta pela terra.
Ao longo dos séculos, os indígenas perderam gradativamente suas terras.11 Essa
perda de território tem provocado grandes alterações culturais, uma vez que a terra
representa a base de sustentação da cultura, pois, “[...] para a cultura indígena, a
terra é o centro de um sistema de hábitos e valores que compõem sua identidade”
(PROCESSO 1.353/97, fls. 901, apud do RELATÓRIO GT Portaria nº 0783/94). Os
documentos históricos corroboram dados em favor dos indígenas ao afirmar e
indicar-lhes a posse do território.
[...] de acordo com o Livro Tombo de Nova Almeida: ‘Em 1610, os índios Tupinikim receberam do representante da coroa portuguesa no Espírito Santo, donatário e presidente da província Francisco Aguiar Coutinho, a ‘doação’ de uma sesmaria de terras de seis léguas em quadro. Em 1760 a área foi demarcada, com aproximadamente 61 quilômetros no sentido Norte-Sul e 49 quilômetros no sentido Leste-Oeste’. Esse território foi medido de um lugar chamado Patranha (entre Jacaraípe e Capuaba) indo até Comboios. A sesmaria foi confirmada por Alvará em 1760. E, e em 1860, D. Pedro II visitou a aldeia Tupinikim e ratificou a doação das terras (CARTA ABERTA À POPULAÇÃO, 15-9-2006).
11 Em 1940, contrariando a Constituição Federal, o governo brasileiro concedeu à Companhia de Ferro e Aço de Vitória (COFAVI) 10 mil hectares para a produção de carvão vegetal. Em 1967, a Aracruz Celulose comprou os 10 mil hectares da COFAVI e iniciou grande desmatamento para se efetivar a plantação de eucalipto. Em virtude dos confrontos, a multinacional reivindica essas terras como suas. Os índios contestam.
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Para os indígenas, o lugar é uma referência pragmática do mundo, uma vez que traz
em si uma rigidez, diante de solicitações e ordens precisas e condicionadas, mas
também possibilita diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade
(Santos apud Ciccarone, 2004). Sendo assim, o lugar, sua terra é a sua garantia
possível de dar continuidade ao seu modo de vida, que, ao longo de anos, vem
sofrendo alterações provocadas pelo entorno da sociedade envolvente, não índia.
No período de realização de nossa coleta de dados, a Aracruz Celulose, objetivando
provar a não existência de povos Tupinikim na região, empenhou-se em algumas
ações que tiveram como mote desqualificar e ridicularizar a identidade indígena
aracruzense. Para tanto, utilizando-se de estratégias de comunicação coercitivas
veiculadas pela imprensa, nas escolas e instituições do município, desconsiderou as
documentações históricas de mais de 400 anos. Valendo-se de seu poderio
econômico, a Multinacional patrocinou campanhas (utilizando cartilhas, outdoors,
sites da empresa) com o objetivo explícito de instigar a sociedade envolvente a se
pronunciar de modo totalmente preconceituoso contra a população indígena. Abaixo
temos alguns exemplos dos outdoors que circularam pela cidade.
Foto 2: Outdoor sobre os conflitos pela posse da terra
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Foto 3: Outdoor sobre os conflitos pela posse da terra
Em atitude de repúdio e manifestação de indignação a esse tipo de atitude, e
principalmente para esclarecer historicamente a população sobre algumas
informações deturpadas, transmitidas pela Multinacional, os indígenas fizeram
veicular uma carta aberta, na qual, respaldados em documentação histórica, afirmam
que tanto a presença do indígena naquela região como a posse das terras que a
empresa reivindica são de natureza legítima das comunidades indígenas de Aracruz
esclarecendo, a partir das evidências, a existência da etnia indígena desde o século
XVI.
[...] os Tupinikim ocupavam uma faixa de terra situada entre Camamu (BA) e o rio São Mateus (ou Cricaré), alcançando a Província do Espírito Santo”, mas, historiadores e alguns viajantes como Jean de Léry, que passou pelo território espírito-santense em 1557 e Gabriel Soares de Sousa (1587), confirmam a presença dos Tupinikim no século XVI não só na região entre Camamu e o rio São Mateus, mas também na Região de Aracruz. Esses índios também viviam na região do rio Piraquê-Açu, onde em 1556 foi fundada pelo jesuíta Afonso Brás a Aldeia Nova (Nova Almeida). Coutinho (2006:127) afirma: ‘[...], a Aldeia de Reis Magos tornou-se um centro de atração já havia índios de várias tribos, pelos menos Temiminó, Goitacaz, Tupinikim, Parnaubi, e até os bravios Aimoré, [...]’. De acordo com John Hemming, a população Tupinikim do sul da Bahia até o Espírito Santo era em 1.500, de 55 mil habitantes. Há registros da etnia Tupinikim na região de Aracruz nos escritos de André Thevet, Hans Staden, dos jesuítas José de Anchieta e de Fernão Cardim (COMUNIDADES INDÍGENAS TUPINIKIM E GUARANI, 2006. grifos do autor).
A demarcação dessas terras é uma antiga reivindicação dos indígenas e estudos da
FUNAI confirmam e reiteram o direito às terras que esses povos tradicionalmente
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ocupam. Esses conflitos envolvem a todos na comunidade indígena, tornando-se
também, tema de discussão em momentos de roda de conversa com as crianças da
educação infantil, organizados pela educadora.
1.4 - OS OBJETIVOS DA INVESTIGAÇÃO
A oralidade na tradição indígena, sempre foi e ainda é um importante elo de
manutenção de tradição entre as gerações, na contação de histórias, de lendas, na
preservação mitológica, nas conversas informais. Ou seja, como um dos mais
importantes e fundamentais meios de propagação da cultura, utilizado
historicamente pelas comunidades indígenas como recurso na defesa de seus
direitos, reivindicação de posse das terras e demarcação das mesmas.
Nessa investigação, estamos atenta a trabalhar a linguagem oral numa perspectiva
que a compreenda como um processo de ensino dentro da relação de ensino-
aprendizagem nos propondo principalmente pensar no ensino de gêneros orais que
mais se afastam do protótipo dos gêneros utilizados na fala, realizados em espaços
públicos e não aprendidos no cotidiano. Por isso, pensamos que a temática aqui
pesquisada possui caráter social e histórico para a educação indígena, e o conjunto
da educação nacional, pois a linguagem oral tem ocupado um lugar central em
debates em nível nacional.
Com efeito, nas orientações curriculares nacionais, tais como os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), o Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil (RCNE/Infantil12) e o Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas (RCNE/ Indígena 13), é possível encontrar referências explícitas ao
trabalho em sala de aula com a linguagem oral, mas queremos discutir se a
12 Esse documento compreende três volumes. O volume I aborda reflexão sobre as concepções de criança, de educação, de instituição e do profissional, as quais fundamentam os objetivos gerais da Educação Infantil. O volume II discute Formação Pessoal e Social. O volume III apresenta reflexões acerca da construção de diferentes linguagens pelas crianças e as relações que estabelecem com os objetos de conhecimento como: Movimento, Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade e Matemática. 13 Esse documento é composto de duas partes: na primeira, apresentam-se os fundamentos gerais da educação indígena e um breve histórico; na segunda, as orientações pedagógicas para cada componente curricular (Línguas, Matemática, História, Geografia, Ciências, Artes e Educação Física).
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linguagem oral apresenta o caráter de objeto de ensino. O documento contém
referências sobre diferentes formas de se abordar a linguagem oral. No entanto, no
que diz respeito ao RCNEI/Infantil, identificamos uma ambigüidade flagrante com
respeito ao status da linguagem oral: de um lado, há a idéia segundo a qual, em
algumas práticas, a aprendizagem da linguagem oral se dá de forma natural por isso
o seu ensino não requer “[...] ações educativas planejadas com a intenção de
favorecer essa aprendizagem” (Brasil, 1998, p. 119); de outro lado, incentiva uma
intervenção direta do adulto “para ensinar às crianças pequenas listas de palavras,
cuja aprendizagem se dá de forma cumulativa” (Brasil, 1998, p. 119).
Na pesquisa, então, trazemos ao debate acadêmico que as atividades de linguagem
oral podem ser efetivamente planejadas a fim de criar as condições para que o
aluno se aproprie de características peculiares dos diferentes gêneros orais,
utilizando-os em diversas situações de produção. Em especial, interessa-nos
valorizar a linguagem oral, por meio de uma prática reflexiva.
Outra faceta da ambigüidade do Referencial Curricular Infantil, com respeito ao
status da linguagem oral na educação infantil, é evidente, quando pontua que, em
muitas instituições, o trabalho com a linguagem oral se restringe a atividades como a
“roda de conversa” que seria marcada por um monólogo do professor em face do
aluno (MEC/SEF, 1998, p. 119). É possível que, nesse aspecto, o Referencial
Curricular tenha razão, e isso será objeto de nossa atenção no momento em que
relatarmos os resultados de um estudo exploratório que realizamos como parte de
nossa pesquisa. No que concerne ao Referencial Curricular Nacional para a
Educação Indígena (RCNE-Indígena) no item reservado ao ensino de Línguas, são
apresentadas “[...] sugestões para o ensino aprendizagem da linguagem oral,
linguagem escrita e de práticas de análise lingüística” (MEC, 1998 p. 131).
Pelas orientações oferecidas por esse documento, no que se refere ao
desenvolvimento da linguagem oral, “[...] o professor deve reservar um tempo em
sua sala de aula” para atividades onde a criança possa desenvolver a oralidade ao
contar e comentar fatos; conversar e trocar idéias e opiniões sobre assuntos
diversos; conversar sobre idéias polêmicas; descrever processos de construção de
algum objeto; fazer dramatizações.
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Outra atividade também considerada uma forma eficaz para desenvolver a
linguagem oral é a leitura de pequenos textos com conteúdos e vocabulário
apropriado à idade do aluno, sob o argumento de que, nessas situações, os alunos
aprendem novas palavras e expressões. Vê-se aí uma valorização de práticas
verbais, sem sentido explícito dos gêneros orais, e a idéia de desenvolvimento da
linguagem oral na criança provocado por aumento do vocabulário.
Tendo em vista os diferentes elementos apresentados, esta investigação, ao inserir-
se no ambiente da educação infantil indígena e trazendo a discussão sobre as
questões que envolvem a apropriação da linguagem oral, torna-se muito mais
provocadora. Isso porque a aquisição da linguagem oral pelas crianças, indígenas
ou não, começa por uma aprendizagem incidental. Pelas interações com seus pais
e/ou aqueles que dela cuidam, a criança vai desenvolvendo diferentes dimensões da
linguagem oral. No entanto, ao considerarmos a escola um espaço institucional de
circulação de saber sistematizado, torna-se também necessário questionar: qual o
lugar da linguagem oral na educação infantil? Esse questionamento constitui,
precisamente, o nosso problema central de investigação tendo como foco
privilegiado a educação escolar indígena. Em consonância, encaminhamos a análise
investigativa a partir de quatro questões:
a) Que atividades de linguagem oral são freqüentemente realizadas nas salas de
educação infantil indígena?
b) É possível abordar o oral como objeto de ensino em classes de educação
infantil?
c) A partir da realização de oficinas pedagógicas centradas em gêneros orais como
objeto de ensino, qual poderá ser o impacto delas nas produções orais das
crianças de quatro, cinco e seis anos?
d) Como o ensino aprendizagem da oralidade na educação infantil pode contribuir
para o resgate e preservação da cultura Tupinikim?
Para operacionalizar as questões apresentadas, definimos nossas metas da
seguinte maneira:
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a) estudar as práticas de linguagem oral na educação infantil indígena;
b) elaborar com os educadores indígenas oficinas pedagógicas centradas em
práticas de linguagem oral;
c) analisar o impacto das oficinas de aprendizagem nas produções orais das
crianças.
Além das necessidades dos próprios educadores indígenas, uma investigação como
esta pode ser justificada de diferentes maneiras. Por um lado, a nossa experiência
como professora de classes de educação infantil em escola da Rede Municipal de
Educação de Aracruz, mostrou-nos que, ao entrar no contexto escolar, por volta dos
três ou quatro anos, a criança já possui um domínio relativo do oral que lhe permite
comunicar desejos ou alegria em momentos em que conversa com seus pares, ao
contar algum fato ocorrido, ao conversar com membros da família, ou mesmo ao
persuadir os pais quanto a algo que deseja, entre outras situações cotidianas. Esse
domínio da linguagem demonstra que o desenvolvimento da fala é, antes de tudo, o
desenvolvimento de sua experiência cultural que se dá prioritariamente por meio da
conversação (como a contação de histórias, por exemplo) que foi aprendida no dia-
a-dia com as pessoas com as quais a criança convive e com as quais compartilha
referências culturais.
Por outro lado, faltam estudos relativos à linguagem oral na educação infantil, pois,
na proposta de que essa modalidade de ensino é também espaço para educar as
crianças pequenas, muitos estudos estão voltados para as questões relativas à
socialização das crianças, à organização das instituições, ao desenvolvimento
cognitivo (leitura, escrita, arte) ou, mais recentemente, à formação do professor de
educação infantil. A título de exemplo, podemos nos reportar às dissertações
defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE / UFES), no
período de 1981 a 2002. Em 20 anos de programa e num total de 209 dissertações
defendidas, oito, ou seja, apenas 3,8%, referiam-se aos sujeitos da educação
infantil. Vale ressaltar ainda que nenhuma delas abordava a educação infantil
indígena e nem as práticas ensino da linguagem oral.
Outra razão considera que o processo de investigação poderá trazer substanciais
reflexões para a educação infantil em geral e para a educação infantil indígena em
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particular, de modo a procurar compatibilizar as aspirações de um ensino específico
e diferenciado, intercultural e de qualidade com uma proposta que promova o
desenvolvimento de novas capacidades nos alunos, permitindo-lhes aprender a
língua na perspectiva de aprender a se comunicar em situações diversas.
Por fim, as experiências de educação infantil, em aldeias indígenas aracruzenses,
sendo relativamente novas, suscitam o desenvolvimento de um maior número de
investigações, o que trará maior fundamentação teórica, possibilitando, assim,
relacionar o fazer pedagógico com uma ação política que vise à melhoria da vida
social e da escola real.
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2 - LINGUAGEM E EDUCAÇÃO: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Este trabalho fundamentou-se em pressupostos vigotskianos, no que se refere à
concepção de ensino-aprendizagem, e bakhtinianos, no que concerne à concepção
de linguagem, por entendermos o processo de ensino-aprendizagem como de
natureza social em que a linguagem (seja oral, seja escrita) é elemento essencial na
constituição dos sujeitos e na compreensão do mundo. Apresentaremos,
inicialmente, alguns conceitos propostos por Vigotski, no que se refere à concepção
de aprendizagem e de desenvolvimento. Em seguida, discutiremos acerca de
algumas contribuições de Bakhtin (2001, 2004), Desse autor tomaremos de
empréstimo as reflexões sobre gêneros primários e gêneros secundários,
enunciação, compreensão responsiva e acento apreciativo. Logo após,
apresentaremos alguns elementos teóricos acerca da conversação, como um
gênero que privilegiaremos em nosso trabalho empírico.
2.1 - A CONCEPÇÃO DE DESENVOLVIMENTO E DE APRENDIZAGEM A PARTIR
DO REFERENCIAL HISTÓRICO-CULTURAL
Ao trazermos as contribuições de Vigotski ao nosso debate, constatamos que, em
seus estudos, o autor verificou que a criança, desde o nascimento, vivencia
intercâmbios de comunicação nos momentos em que interage com aqueles que
dela cuida. Um bebê que ainda não sabe articular palavras ou nem é capaz de
compreender claramente os seus significados, consegue expressar suas
necessidades fisiológicas, os seus estados emocionais por meio de gestos, sons,
expressões, demonstrando, que é a necessidade de contato social que impulsiona o
desenvolvimento da linguagem. A linguagem funciona como uma ponte de ligação
entre a criança e o outro desempenhando papel fundante na constituição das
pessoas.
No percurso do desenvolvimento infantil, as palavras não são inventadas, são
produtos de relações socioculturais históricas produzidas pelas crianças de maneira
significada. Ou seja, têm elas poder de regular e conferir um caráter mediador às
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relações entre as demais pessoas e adquirem significado figurado à medida que se
relacionam com uma imagem ou operacionalização “[...] en el lenguaje infantil los
signos no aparecen como inventados por los niños: los reciben de la gente que les
rodea y tan solo después toman conciencia o descubren las funciones de tales
signos”. (Vigotski, 1995, p. 179).
Para o autor, ao longo do desenvolvimento infantil, quando a criança toma
consciência de um determinado saber, significa que ela é capaz de transferi-lo do
plano da ação para o plano da linguagem. Ou seja, “[...] a tomada de consciência e
a apreensão ocupam o primeiro plano no desenvolvimento [...]” (Vigotski, 2001, p.
325) de modo que a criança tenha condições de falar sobre o conhecimento do qual
se apropriou. Assim, segundo a observação de Vigotski, a escola deveria levar o
indivíduo a se apropriar dos conhecimentos que são construídos historicamente.
Dessa forma, o autor traz a discussão sobre a necessidad