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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO ROSALINA TELLIS...

Date post: 11-Aug-2020
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ROSALINA TELLIS GONÇALVES LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA: A PRODUÇÃO DE GENERO TEXTUAL ORAL VALORIZADA POR UMA PRÁTICA REFLEXIVA VITÓRIA 2007
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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

    CENTRO DE EDUCAÇÃO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

    ROSALINA TELLIS GONÇALVES

    LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA:

    A PRODUÇÃO DE GENERO TEXTUAL ORAL VALORIZADA POR UMA PRÁTICA

    REFLEXIVA

    VITÓRIA

    2007

  • ROSALINA TELLIS GONÇALVES

    LINGUAGEM ORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA:

    A PRODUÇÃO DE GENERO TEXTUAL ORAL VALORIZADA POR UMA PRÁTICA

    REFLEXIVA

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação, na linha de pesquisa Educação e Linguagens. Orientador: Profª Drª Gerda Margit Schütz Foerste.

    VITÓRIA

    2007

  • Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

    Gonçalves, Rosalina Tellis, 1972- G635l Linguagem oral na educação infantil indígena : a produção de gênero

    textual oral valorizada por uma prática reflexiva / Rosalina Tellis Gonçalves. – 2007.

    186 f. : il. Orientadora: Gerda Margit Schütz Foerste. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,

    Centro de Educação. 1. Comunicação oral. 2. Gêneros literários. 3. Textos infantis. 4.

    Educação de crianças. 5. Índios – Educação. I. Foerste, Gerda Margit Schütz. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

    CDU: 37

  • A José Bernardo Gonçalves (in memoriam), meu pai, pelo esforço na criação dos filhos. A Celita Tellis, minha mãe, por todo o carinho e incentivo em todos os meus estudos.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, pelo dom da vida, pela fundamental parceria em todos os instantes de

    minha jornada e pela oportunidade para realizar este trabalho.

    Às crianças indígenas da aldeia Tupinikim “Pau Brasil”, que me acolheram

    permitindo conhecê-las e desenvolver esta pesquisa, e a todos os seus familiares

    pela confiança e carinho.

    A todos os educadores da Educação Infantil Indígena de Aracruz e, em especial, à

    educadora tupinikim Kátia Cilene pela acolhida em sua sala de aula.

    À Secretaria Municipal de Educação de Aracruz que propiciou minha disponibilidade

    para freqüentar o curso de Mestrado.

    Ao Programa de Pós-Graduação em Educação pela oportunidade de atuar na linha

    de pesquisa, Educação e Linguagens.

    À Professora Drª Edivanda Mugrabi pela orientação dada em boa parte da

    construção deste trabalho.

    À Zélia Forechi, Graça Cota e Kalna Teao pelas importantes contribuições acerca da

    questão indígena.

    À Alina pela fundamental e primorosa contribuição na revisão

    A todos os amigos que torceram pelo meu sucesso e, em especial Wirlândia por

    todo o companheirismo, incondicional estímulo e partilha de dúvidas.

    Aos professores da banca examinadora Vera Vasconcellos, Cláudia Gontijo, Erineu

    Foerste por suas valiosas considerações e em especial à professora Gerda Foerste

  • pelas sábias palavras, confiança e serenidade na continuidade e finalização da

    orientação deste trabalho.

    A todos os meus familiares e em especial à minha irmã Alessandra.

  • Tal como a chuva e a neve caem do céu e para lá não volvem sem ter regado a terra,

    sem ter fecundado, e feito germinar as plantas,

    sem dar o grão a semear e o pão a comer, assim acontece à palavra que minha boca

    profere: não volta sem ter produzido seu efeito,

    sem ter executado minha vontade e cumprido sua missão. (ISA 55, 10-11)

  • LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1-

    Capacidade de linguagem inerentes à produção de texto.......................

    66

    QUADRO 2-

    A metáfora do trânsito em analogia com a conversação........................

    69

    QUADRO 3-

    Atendimento escolar à população infantil indígena em Aracruz-1996

    89

    QUADRO 4-

    Esferas sociais de comunicação.............................................................

    106

    QUADRO 5-

    Síntese das atividades realizadas nas rodas de conversa......................

    127

  • LISTA DE TABELAS

    TABELA 1 - Oferta escolar para a população indígena no Brasil -2005....................

    82

    TABELA 2 - Educação infantil indígena nas aldeias-2005.........................................

    90

    TABELA 3 - Educação infantil indígena nas aldeias -2006........................................

    90

  • LISTA DE IMAGENS

    FOTO 1- Aldeia de Pau Brasil................................................................................ 36

    FOTO 2- Outdoor sobre os conflitos pela posse da terra.........................................38

    FOTO 3- Outdoor sobre os conflitos pela posse da terra...................................... 39

    FOTO 4- Escola onde realizamos a pesquisa........................................................ 93

    FOTO 5- Roda de conversa.....................................................................................97

    FOTO 6- Passeio pela aldeia de Pau Brasil............................................................ 98

    FOTO 7- Desenho do lixo avistado na aldeia......................................................... 98

    FOTO 8- Alunos dispostos em pequenos grupos na sala de aula..........................113

    FOTO 9- Leitura de texto na roda........................................................................... 121

    MAPA 1- Aracruz no Estado do Espírito Santo...................................................... 34

    MAPA 2- A disposição das aldeias em Aracruz-ES............................................... 35

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES

    AC - Análise da Conversação

    CIMI - Conselho Indigenista Missionário

    COFAVI - Companhia Ferro e Aço de Vitória

    CNE - Conselho Nacional de Educação

    EEI - Educação Escolar Indígena

    FUNAI - Fundação Nacional do Índio

    GT - Grupo Técnico da FUNAI

    IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

    IDEA - Instituto Para o Desenvolvimento e Educação de Adultos

    INEP - Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

    IPE - Instituto de Pesquisa em Educação

    LDB - Lei de Diretrizes e Bases

    MEC - Ministério da Educação e Cultura

    PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais

    PdT - Pedagogia do Texto

    PMA - Prefeitura Municipal de Aracruz

    PPGE - Programa de Pós-Graduação em Educação

    RCNE/Indígena - Referencial Curricular Nacional de Educação Indígena

    RCNE/Infantil - Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil

    SEF - Secretaria de Educação Federal

    SEDU - Secretaria Estadual de Educação

    SEMED - Secretaria Municipal de Educação

    SPI - Serviço de Proteção ao Índio

    UFES - Universidade Federal do Espírito Santo

  • SUMÁRIO

    RESUMO................................................................................................. 15

    ABSTRACT............................................................................................ 16

    CONSIDERAÇÕES INICIAIS

    17

    1- PARA INÍCIO DE CONVERSA UM POUCO DE HISTÓRIA: E OS

    OBJETIVOS DA INVESTIGAÇÃO.........................................................

    20

    1.1- ALGUMAS REFERÊNCIAS AO PERCURSO HISTÓRICO DA

    EDUCAÇÃO INFANTIL BRASILEIRA....................................................

    20

    1.2- ALGUMAS REFERÊNCIAS AO PERCURSO HISTÓRICO

    DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA..................................................

    23

    1.3- REFERÊNCIAS AO CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO......................... 33

    1.4- OS OBJETIVOS DA INVESTIGAÇÃO.................................................... 40

    2- LINGUAGEM E EDUCAÇÃO: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS............. 45

    2.1- A CONCEPÇÃO DE DESENVOLVIMENTO E DE APRENDIZAGEM A

    PARTIR DO REFERENCIAL HISTÓRICO-CULTURAL........................

    45

    2.2- CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONCEPÇÃO BAKHTINIANA

    DE LINGUAGEM....................................................................................

    49

    2.3- A LINGUAGEM ORAL COMO OBJETO DE ENSINO E

    DE APRENDIZAGEM.............................................................................

    56

    2.4- O ENSINO-APRENDIZAGEM NAS ALDEIAS E AS CAPACIDADES

    DE LINGUAGEM.....................................................................................

    62

    2.5- A “CONVERSA”: UM GÊNERO TEXTUAL A SER EXPLORADO

    NA EDUCAÇÃO INFANTIL.......................................................................

    67

    2.6- E O QUE DIZEM AS CRIANÇAS SOBRE AS RODAS

    DE CONVERSA?..................................................................................

    74

  • 3- A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO

    ESCOLAR INDÍGENA: OS SUJEITOS, O PROBLEMA E OS

    PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DE INVESTIGAÇÃO............

    82

    3.1- A FORMAÇÃO DO EDUCADOR INDÍGENA PARA A EDUCAÇÃO

    INFANTIL EM ARACRUZ – ES...............................................................

    87

    3.2- A ESCOLA INDÍGENA INFANTIL EM ARACRUZ – ES......................... 89

    3.3- OS SUJEITOS DA PESQUISA................................................................ 90

    3.4- O PROBLEMA DE INVESTIGAÇÃO....................................................... 94

    3.5- A PESQUISA PARTICIPANTE DE CARÁTER ETNOGRÁFICO........... 104

    4- ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS: ALGUNS IMPACTOS

    NA PRODUÇÃO TEXTUAL ORAL DE CRIANÇAS DA EDUCAÇÃO

    INFANTIL...............................................................................................

    111

    4.1- ATIVIDADES DE LINGUAGEM ORAL FREQUENTEMENTE

    REALIZADAS NAS SALAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA

    TUPINIKIM..............................................................................................

    112

    4.1.1- Organização de calendário.................................................................... 114

    4.1.2- Roda de Conversa.................................................................................. 117

    4.2- É POSSÍVEL ABORDAR O ORAL COMO OBJETO DE ENSINO EM

    CLASSES DE EDUCAÇÃO INFANTIL.................................................

    122

    4.2.1- Formação continuada e a realização de seqüências didáticas.............. 123

    4.2.2- O desenvolvimento da segunda seqüência didática............................. 126

    4.2.2.1- As rodas de conversa e suas caracterizações....................................... 126

    4.2.2.2- Os episódios de conversa (subsídios para a produção da primeira

    versão de três textos orais).....................................................................

    128

    4.2.2.3- Análise da produção da primeira versão de três textos orais................. 131

    4.2.2.4- Os episódios de conversa (subsídios para a produção da segunda

    versão de três textos orais).....................................................................

    136

    4.2.2.5- Análise da produção da segunda versão de três textos orais..................139

    4.3- A PRODUÇÃO DE TEXTO ORAL VALORIZADA POR UMA PRÁTICA

    REFLEXIVA............................................................................................

    143

    4.3.1- Os episódios de conversa (subsídios para a produção da terceira

    versão do texto de Le).............................................................................

    143

  • 4.3.2- Análise da produção da terceira versão do texto de Lê.......................... 147

    CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................... 151

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................... 156

    APÊNDICE............................................................................................. 169

    APÊNDICE A- Primeira seqüência didática.................................................................... 170

    APÊNDICE B- Segunda seqüência didática...................................................................

    171

    APÊNDICE C- Questões elaboradas com as crianças para a entrevista com o

    cacique....................................................................................................

    173

    APÊNDICE D-

    Questões dinamizadoras da conversa na nona roda -2ª seqüência.......

    174

    ANEXOS................................................................................................ 175

    ANEXO A – CONVENÇÕES PARA A TRANSCRIÇÃO DAS FITAS..........................

    176

    ANEXO B – FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA

    INDÍGENA..............................................................................................

    177

    ANEXO C- FOLHA DO DIÁRIO DE CAMPO............................................................ 179

    ANEXO D- ROTEIRO DA ENTREVISTA COM A PROFESSORA........................... 180

    ANEXO E- FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DAS CRIANÇAS.............. 183

  • RESUMO

    Este trabalho é desenvolvido no contexto da educação escolar infantil indígena com

    o objetivo de investigar o lugar da linguagem oral nos instantes de produção de

    gêneros textuais orais específicos. Parte do pressuposto de que a oralidade não

    deve servir apenas como um veículo no desenvolvimento de atividades rotineiras na

    escola de educação infantil. Trata-se de uma pesquisa participante de caráter

    etnográfico que realiza intervenção em processos de ensino do oral a partir do

    trabalho colaborativo com os educadores da educação infantil que também envolve

    o programa de extensão ”Formação Continuada de Educadores indígenas” da

    Universidade Federal do Espírito Santo. Os aportes teóricos da abordagem histórico-

    cultural em Vigotski (2001) e enunciativo-discursiva em Bakhtin (2003, 2004) bem

    como as contribuições de Schneuwly (2004) são fundamentais para a realização

    deste estudo. Foram utilizados, como procedimentos para a coleta de dados,

    videogravações, fotografias, diário de bordo, questionário e entrevistas semi-

    estruturadas, individuais e em grupos focais. Para a efetivação da pesquisa, a

    “conversa na roda” foi tomada como um espaço de interação verbal importante, e na

    formação continuada dos educadores, duas seqüências didáticas foram planejadas,

    materializando-se em contextos precisos de produção textual oral das crianças. Nas

    primeiras análises dos dados, obtidos por meio de estudo exploratório, foi

    constatado que a atividade oral realizada na roda de conversa, na perspectiva do

    educador e na concepção da criança, só era validada quando respaldada pela

    escrita. Com a utilização de seqüências didáticas e o exercício reflexivo sobre as

    práticas cotidianas de oralidade, um ambiente mais discursivo se instaurou e

    proporcionou aos sujeitos confrontar diferentes saberes e tomar a linguagem oral

    como objeto particular de estudo e análise.

    Palavras-chave: Educação infantil. Linguagem oral. Ensino. Educação Escolar

    Indígena

  • ABSTRACT

    This study is developed in the context of the Indians Children Education aiming at

    investigating the place of the oral language during the production of specific oral

    textual genders. It assumes that the oral language should not work only as a gadget

    in the development of the every day activities in the children education school. It is

    about a participant research with ethnographic character that interferes in the oral

    teaching process, through the collaborative work with the educators. It also involves

    the extension program called “Continuing Formation of Indian Educators” (Formação

    Continuada de Educadores Indígenas) of the Espírito Santo State Federal University.

    The theoretical basis of the historical-cultural approach in Vigotski (2001) and the

    enunciatively-discursive in Bakhtin (2003, 2004), as well as contributions of

    Schneuwly (2004) are fundamental for the study accomplishment. It uses as

    procedures for data collection tape recordings, pictures, journals, questionnaires and

    individual and group semi-structured interviews. For the research effectuation, the

    “group chatting” was taken as an important verbal interaction space and, in the

    educators’ continuing formation, two didactical sequences were planned materializing

    themselves in precise contexts of the children oral textual production. In the first

    analysis of data, through exploratory study, it was observed that the oral activity

    during the group chatting, in the educator perspective and the child conception, was

    only valued when supported by the writing. With the use of the didactical sequences

    and the reflexive exercise about the oral everyday practices, a more discursive

    environment was created, what has provided the confrontation of different knowledge

    and the belief of the oral language as a particular object of studies and analysis.

    Keywords: Children education. Oral language. Teaching. Indian School Education

  • 17

    CONSIDERAÇÕES INICIAIS1

    A oralidade é prática social interativa indissoluvelmente associada às condições de

    comunicação.

    Em especial na tradição indígena, a oralidade sempre foi e ainda é um importante

    mecanismo de manutenção de tradição entre as gerações constituindo-se como um

    dos mais importantes e fundamentais meios de propagação da cultura e da história,

    ao resgatar como foram vividas as mudanças pelos povos.

    No contexto da educação educativa infantil indígena estamos atenta a observar que

    a prática social interativa da oralidade apresenta-se por meio de diferentes gêneros

    textuais. Assim, numa perspectiva que compreenda a linguagem oral como objeto de

    ensino, dentro da relação de ensino-aprendizagem, focalizamos as observações na

    educação escolar das crianças pequenas para quem a interação social se processa

    em grande parte pela comunicação oral.

    O atendimento escolar às crianças pequenas expandiu-se nas últimas décadas no

    Brasil e no mundo, em virtude de uma intensa urbanização, pela maior participação

    feminina no mercado de trabalho e pelas mudanças ocorridas na organização e

    estruturação das famílias. Em decorrência desse quadro social, houve maior

    demanda por uma educação institucional para crianças. E nas aldeias de alguns

    povos indígenas, várias mudanças sociais também ocorreram desencadeando um

    quadro em que as famílias solicitam espaços para que as crianças possam ter

    acesso a conhecimentos diversos que venham a fortalecer a “causa” indígena. Com

    a promulgação da Constituição Federal de 1988, tornou-se legalmente garantido às

    comunidades indígenas o direito à diferença, em formas particulares de organização

    escolar. Desde os anos 90, a escolarização desses povos tem-se fortalecido no

    1 Esta pesquisa desenvolveu-se inicialmente sob orientação da Profª Drª Edivanda Mugrabi (abril/2005 a fev/2007). Posteriormente, com o afastamento da mesma por motivos pessoais, assumiu a Profª Drª Gerda Margit Schütz Foerste, a partir da aprovação (março/2007), pelo colegiado do programa de Pós-graduação em Educação/CE/UFES, dando assim continuidade e término aos tramites finais da orientação (agos/2007).

  • 18

    País, como fruto de reivindicações das comunidades que lutam para efetivar os

    direitos garantidos em lei.

    No Espírito Santo, o ensino escolar às crianças das pequenas em aldeias Tupinikim

    e Guarani iniciou-se por volta de 1996, quando um grupo de índios fez o Curso do

    Magistério Indígena. A luta por tal escolarização surgiu da necessidade de também

    manter um atendimento escolar às crianças pequenas, com um currículo voltado

    para as realidades de suas etnias. O presente estudo propõe discutir uma das

    vertentes do atendimento escolar as crianças pequenas, ou seja: a linguagem oral

    nos processos educativos, na perspectiva que vê a linguagem oral como objeto

    particular de ensino, exigindo organização planejada do educador e esforço

    intelectual do aluno.

    Utilizando o procedimento seqüência didática, realizamos oficinas de aprendizagem

    para a produção de gêneros orais específicos que serviram como recurso a

    potencializar entre os alunos práticas de linguagem novas a serem

    ensinadas/aprendidas na educação infantil, uma vez que contribuem para o

    desenvolvimento de capacidades de ação, discursivas e lingüístico-discursivas.

    Assim, todo o processo de construção e eixo de investigação estará, pois,

    constituído na interface das discussões sobre a educação infantil, a educação

    indígena e o ensino da linguagem oral.

    Para melhor compreensão do objeto de estudo, a estruturação do trabalho

    apresentar-se-á organizada em quatro capítulos. O capítulo primeiro fará uma

    explanação sobre algumas referências ao percurso histórico da educação infantil

    brasileira e à educação escolar indígena, apresentando, ainda, considerações

    particulares ao contexto pesquisado e os objetivos que delimitaram os eixos

    investigativos.

    O segundo capítulo trará os pressupostos teóricos norteadores da investigação

    Inicialmente, apresentaremos a concepção de desenvolvimento e de aprendizagem

    na perspectiva dos estudos de Vigotski (1995, 2001). Em seguida, discutiremos a

    concepção enunciativo-discursiva, tendo por base as contribuições de Bakhtin

    (2003, 2004) sobre os estudos da linguagem. Em continuidade, abordaremos a

  • 19

    linguagem oral como objeto de ensino e de aprendizagem, baseando-nos em

    estudos de Schneuwly e Dolz (1999, 2004). Com base em Faundez (1999), Mugrabi

    (2002), Faundez e Mugrabi (2006), Faundez (2006) teceremos alguns comentários

    acerca da PdT, uma abordagem educativa atualmente utilizada no ensino escolar

    das aldeias indígenas do município de Aracruz. A partir daí, referendando-nos em

    Kerbrat-Orecchioni (1996) e em Mugrabi (2002), abordaremos um conceito de texto

    explorando a “conversa” como um gênero textual a ser trabalhado e discutido

    teoricamente na educação infantil.

    O terceiro capítulo focalizará as particularidades da escola indígena no município de

    Aracruz/ES, situando a formação do profissional da educação infantil e, em

    seqüência, contextualizando os sujeitos pesquisados. O fio condutor desta

    apresentação é a idéia de que a criança, juntamente com seus congêneres, contribui

    para a produção/reprodução da cultura. Ou seja, é sujeito histórico das relações

    sociais no contexto histórico e geográfico de sua comunidade. O capítulo ainda

    apresentará observações dos caminhos que percorremos para desenvolver a

    investigação, mostrando as linhas gerais delineadoras do problema investigado,

    sinalizando o exercício reflexivo sobre as práticas cotidianas de oralidade como

    possibilidades de se potencializar o ambiente da educação infantil como espaços

    discursivos.

    O quarto capítulo será dedicado à descrição, análise e discussão de dados que

    obtivemos, tomando em conta nossas questões de investigação e o referencial

    teórico que subsidiou toda a pesquisa.

    As considerações finais serão contempladas com nossas reflexões acerca de todo o

    trabalho realizado. Apresentaremos alguns elementos colaboradores ao debate

    sobre um novo olhar que observa a educação infantil como instância primeira para a

    realização de processo educativo consciente, intencionado social.

  • 20

    1 - PARA INÍCIO DE CONVERSA: UM POUCO DE HISTÓRIA E OS OBJETIVOS

    DA INVESTIGAÇÃO

    1.1 - ALGUMAS REFERÊNCIAS AO PERCURSO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO

    INFANTIL BRASILEIRA

    A história da educação infantil brasileira é recente e recua aos anos 1970. De acordo

    com Rosemberg (2005), é possível destacar três grandes períodos nesse percurso:

    o primeiro entre o final dos anos 1970 e final dos anos 1980, correspondente à

    implantação de modelo assistencialista que preconizava uma educação pré-escolar

    compensatória de carências às populações pobres, exigindo poucas verbas do

    Estado para sua manutenção. Esse período se caracterizou também por uma

    superposição de responsabilidades dos setores da assistência, da educação, da

    saúde e do trabalho (Rosemberg, 2005). A autora ainda aborda que, desse período,

    restou à educação infantil brasileira a herança de uma educação não formal

    utilizando-se

    [...] espaços físicos, material pedagógico e mão de obra improvisada; a criação de creches e pré-escolas comunitárias; sua municipalização; o recurso a educadores leigos com formação inferior ao curso normal ou secundário; a retenção de crianças com 7 anos e mais nos programas de educação infantil; a consolidação das nomenclaturas – creches, pré-escolas e classes de alfabetização (Rosemberg, 2005, p. 28).

    O segundo período iniciou-se com a abertura política após a ditadura militar, dando

    início a diversas ações de movimentos sociais organizados, que culminaram – a

    partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 – com o reconhecimento à

    criança de zero a seis anos do direito à educação complementar àquela recebida na

    família, ou seja, o direito de ser reconhecida como um sujeito de direitos. Nunes

    (2005), ao discutir o reconhecimento social da infância no Brasil, de sua menoridade

    à condição de cidadãos, aponta como importantes elementos desse reconhecimento

    os padrões de intervenção social compostos de políticas sociais e o entendimento

    de que a educação infantil não é apenas um elemento a mais das políticas voltadas

    para a infância.

  • 21

    Como sujeitos de direitos, não podem tornar-se objetos de ações disciplinares ou repressivas que atentem contra a sua peculiar condição de desenvolvimento e/ou que atentem contra os direitos humanos [...] A criança deve ser priorizada [...] em atendimento prestado por órgãos públicos [...] (Nunes, 2005, p. 89-90).

    A partir deste período, a educação infantil brasileira passou a contar com um número

    expressivo de pesquisadores da área da infância e com a elaboração de políticas

    nacionais que, questionando o modelo anterior assistencialista, promoveram uma

    concepção do educar equivalente ao cuidar. Vasconcelos (2005, p. 117), ao tratar da

    infância e políticas de Educação Infantil, apresenta que “[...] é o investimento na

    formação inicial e continuada dos profissionais que atuam na educação dos

    pequeninos [...]” o elemento fundamental para a consolidação de uma educação de

    qualidade. Rosemberg (2005, p. 30), chama a atenção para o fato de que é nesse

    período, que

    [...] a hegemonia de uma concepção de educação infantil não diferencia creches de pré-escolas pelo padrão de qualidade, pela formação dos educadores e pela responsabilidade administrativa. Consideram-se as instâncias educacionais como regulamentação, fiscalização, financiamento e oferta da educação infantil [...] (Rosemberg, 2005, p. 30).

    O terceiro período se instala com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases, nº

    9.394/96. Essa lei apresenta, de forma incisiva, a necessidade de abordar e se

    estreitar o vínculo entre o atendimento e a educação de crianças de zero a seis

    anos. Segundo Rosemberg (2005), a aprovação dessa lei coincide com o momento

    histórico vivido pelo País com a eleição de um Governo Federal que apóia

    alterações na concepção de Estado, em que esse, se inserindo em uma hegemonia

    neoliberal, faculta uma política social referendada em razões econômicas

    globalizadas. Ou seja, em razões que defendem a instituição de um sistema de

    governo no qual o indivíduo tenha mais importância do que o Estado, sob a

    argumentação de que quanto menor a participação do Estado na economia, maior

    será o poder dos indivíduos e mais rapidamente a sociedade poderá se desenvolver

    e progredir, para o bem dos cidadãos.

  • 22

    Ghiraldelli (2002, p. 11), ao discutir questões relacionadas com a infância, em

    tempos de um governo neoliberal, pontua a inerente capacidade de tal doutrina “[...]

    colaborar na proliferação das mazelas sociais na medida em que pretendem de

    maneiras variadas, deslocar de uma vez por todas a educação para o campo da

    iniciativa privada [...]”.

    Assim sendo, é importante salientar que, no período da década de 1990, dá-se, no

    Brasil, a entrada de ações organizadas pelo Banco Mundial que “[...] elaboram e

    divulgam modelos de política educacional, redefinindo prioridades e estratégias à luz

    dos conceitos de rede de proteção social e de focalização de políticas sociais para

    populações pobres” (Rosemberg, 2005, p. 32). Desse modo, é inserido, de maneira

    velada, o conceito de “desenvolvimento infantil” atrelado à idéia de que este pode

    ser implantado por quaisquer que sejam os membros da sociedade. Para

    Rosemberg (2005), após a promulgação da LDB, a educação infantil vivia um

    momento um tanto quanto conturbado, pois, de um lado, buscava a regulação de

    serviços e, por outro uma tentativa de reafirmar uma concepção de atendimento

    assistencialista à criança pequena, com o que também concorda Bujes (2001).

    Com a visão de que as crianças, desde que nascem, são sujeitos de cultura, e que, por conseguinte, têm o direito a educar-se, busca-se superar as práticas assistencialistas (onde a criança é apenas objeto cuidado da assistência) e práticas escolarização precoce (onde apenas se valorizam as habilidades para ‘ler, escrever e contar’) (Bujes, 2001 apud Vasconcelos, 2005, p. 129).

    Desse modo, segundo Ghiraldelli (2002, p. 38-39), altera-se o conceito de infância,

    apresentando a criança como “[...] um corpo que consome coisas de criança”. Por

    conseguinte, há uma nova atribuição à função pedagógica, pois esta “[...] deve

    pensar numa escola para alguém que é apenas consumidor – consumidor de

    técnicas – só podendo pensar em fazer da escola uma empresa” . A escola dos

    tempos neoliberais, afirma Ghiraldelli (2002), é, então, a junção dessas duas

    necessidades. Entretanto pensamos que mais do que oferecer o acesso seria

    necessário também garantir que ele, de fato, contribuísse na superação de

    desigualdades sociais via educação conforme afirma Vasconcellos (2005, p.143). A

    autora esclarece que seria por meio da defesa do direito pela “[...] garantia de vagas

  • 23

    na educação infantil [...]” que poderíamos superar a política de exclusão, e “[...]

    superar desigualdades regionais e socioeconômicas”. Em nosso trabalho, por tratar-

    se da questão indígena, os fatos apontados acima assumem dimensão relevante,

    pois o tratamento escolar à educação infantil indígena é recente. Iniciada com uma

    proposta assistencialista e posteriormente se contextualizado com a proposta da

    causa indígena que foi resultante das lutas no percurso das mudanças políticas do

    País. A seguir, apresentaremos algumas referências ao percurso histórico da

    educação [principalmente] escolar indígena no Brasil e no Espírito Santo, de

    maneira que essa contextualização nos forneça elementos para o entendimento de

    questões relacionadas ao nosso contexto investigado.

    1.2 - ALGUMAS REFERÊNCIAS AO PERCURSO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO

    ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL

    Ocorreu, ao longo da História, uma drástica redução populacional de diversas etnias,

    em decorrência de seguidos massacres, doenças e de uma postura excludente e

    preconceituosa dos invasores europeus. Tal postura do colonizador primava por

    divulgar, a todo instante, uma certa “superioridade européia” em detrimento da

    cultura e particularidades dos povos indígenas.

    Assim, desconsiderando seus saberes, desconsiderava-se o que poderia ser

    chamada de educação indígena já existente e praticada (seus costumes, tradições,

    valores, crenças, mitos), para fazer valer uma educação vinda de fora (catequização,

    civilização e integração forçada dos índios à sociedade nacional), ou seja, uma

    educação para o índio que se prolongou por mais de 500 anos de História do Brasil.

    Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que a população

    indígena obteve um dispositivo que lhes garantiu fortalecimento legalmente

    reconhecido. A partir daí, diversas ações voltaram-se para fazer valer o que estava

    garantido na Constituição.

    Muitos autores (Fernandes, 1964; Fernandes, 1976; Freire, 2004) já se debruçaram

    sobre o estudo da educação indígena e várias são as fontes históricas utilizadas a

    demonstrar que os indígenas, habitantes das terras que foram denominadas “Brasil”,

  • 24

    eram produtores de saberes e também detentores de formas de educação próprias,

    de pedagogias próprias. Muitos documentos que comprovam o percurso desses

    saberes já foram localizados, analisados e identificados em arquivos de âmbito

    estadual (Monteiro, 1994) e nacional (Freire, 1995, 1996). Segundo Freire (2004) é

    possível propor um agrupamento desses documentos de acordo com a sua natureza

    ou a periodização da história tradicional do Brasil.

    Desse modo vemos que, no Período Colonial, há uma farta documentação que foi

    deixada por missionários, sobretudo jesuítas, ou ainda produzida pela Coroa

    portuguesa, ou pelos diretores de índios, 2 a qual pode ser encontrada em arquivos

    europeus ou brasileiros: correspondência para a administração colonial, narrativas

    epistolares, relatórios das visitas às aldeias, crônicas, cartas régias, regimento das

    missões, listas de matrículas de índios, mapas de índios ausentes e outros. Do

    Período Imperial, é possível consultar os relatórios das Diretorias de Índios (1845),

    os documentos de catequese elaborados pelos Capuchinhos, os relatos de viajantes

    ao longo do século XIX e os relatórios do Ministério dos Negócios da Agricultura,

    Comércio e Obras Públicas (1861). Do Período Republicano, valiosas informações

    podem ser encontradas em relatórios de órgãos governamentais, censos parciais e

    mapas de alunos de escolas de aldeias e arredores que funcionavam no século XX,

    informações elaboradas por missões de diferentes ordens religiosas, além de ofícios,

    memorandos, planos de serviço, quadros, tabelas, memórias e relatórios produzidos

    por órgãos administrativos. Sobre as últimas décadas do século XX e agora na

    contemporaneidade do século XXI, as documentações originaram-se de diversas e

    diferentes fontes: os próprios povos indígenas, universidades, Ministério da

    Educação, Conselho Nacional de Educação, Conselhos Estaduais de Educação,

    Secretarias de Educação (municipais e estaduais), Conselho Indigenista Missionário

    e Funai.

    Com relação a essas fontes, destaque ainda deve ser dado aos diários de classe de

    professores, às atas e relatórios de reuniões, documentos oficiais e publicações do

    2O diretor de índio era um encarregado por aldeia, diferente do diretor-geral que era encarregado de província. Ambos os cargos foram criados pelo Governo Imperial da época, a partir da assinatura de um decreto de 24-6-1845. O diretor de índio deveria ser nomeado pelo Imperador e, se possível, ser um missionário. O decreto de 1845 regulamentava as missões de catequese e civilização dos índios (Cota, 2000).

  • 25

    Ministério de Educação e Cultura (MEC) na década de 1990, que incluem diretrizes,

    normas decretos, leis, censos escolares, pareceres e resoluções do Conselho

    Nacional de educação (CNE) e documentos diversos sobre cursos de educação

    bilíngüe, bem como de documentações de programas e projetos de implantação de

    escolas indígenas, pesquisas e projetos desenvolvidos por universidade e algumas

    dissertações3 de pós-graduação (Freire, 2003). Em alguns desses documentos,

    embora por vezes fragmentadas, dispersas ou mesmo freqüentemente impregnadas

    de etnocentrismo, é possível reconstituir, após cinco séculos de história do Brasil,

    elementos que informam sobre certos princípios pedagógicos do sistema de

    educação tradicional oral das aldeias do litoral do Brasil, habitadas por alguns povos

    indígenas, 4 dentre eles, os Tupinikim.

    Fernandes (1964, apud Freire, 2004), em estudos referentes à etnia Tupinambá,

    observou que a educação desse povo era norteada, entre outros, por três valores: o

    valor da tradição oral, o valor da ação e o valor do exemplo. A transmissão desses

    valores/saberes se processava no intercâmbio cotidiano, por meio de contatos

    pessoais e diretos. A aprendizagem se dava em todo momento e pode-se dizer que

    todos contribuíam para a educação do conjunto da população. Freire (2004) pontua

    que a observação acima é passível de críticas, uma vez que esquematiza e idealiza

    a figura do indígena. Mas argumenta, ainda, que há méritos em Fernandes, uma vez

    que, pioneiramente, chama a atenção para a existência de um discurso construído

    pelos indígenas sobre as suas próprias práticas pedagógicas que até então não

    haviam sido consideradas. De acordo com Cota (2000, p. 26-27) devido à

    semelhança cultural entre os Tupinikim e os demais povos Tupi, pode-se afirmar que

    “[...] entre estes povos o principal objetivo da educação era o de assimilar o indivíduo

    à ordem social tribal”. Dessa forma, a autora argumenta que “[...] não existiam

    especialistas em educação”. Outro aspecto importante que salienta é que, para “[...]

    estes índios a educação era um processo que acontecia ao longo da vida” cujo

    principal objetivo era a transmissão de conhecimentos, dos quais faziam parte não

    somente conteúdos, mas principalmente atitudes, convicções e aspirações, que “[...]

    3 Cf. Cota, 2000; Padilha, 2004; Marcilino, 2005; Neves, 2005; Godinho, 2006; Teao, 2007; Magalhães, 2007. 4 Os povos que habitavam o litoral brasileiro eram de origem Tupi (Tupinikim, Tamoio, Kaeté, Potiguára, Tobajara). Ocupavam uma extensa faixa do litoral brasileiro que ia do Ceará ao Estado de São Paulo e possuíam semelhanças lingüísticas e culturais.

  • 26

    tinham de ser assimiladas para que a pessoa pudesse ser um autêntico Tupinikim,

    Tupinambá, Tamoio, etc”.

    Na observação das práticas pedagógicas indígenas, registros históricos mostram

    que, no século XVI, o colonizador europeu criticou incisivamente os procedimentos

    de correção de erros dos indígenas. Missionários jesuítas identificaram que na forma

    de transmitir costumes e valores, os indígenas “[...] amam os filhos

    extraordinariamente, [porém] nenhum gênero de castigo tem para os filhos, nem há

    pai nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em filho” (Cardim, 1980, p. 91,

    apud Freire, 2004, p. 16). Cronistas como Pero de Magalhães Gandavo, provedor da

    Fazenda na Bahia, entre 1565 e 1570, observou também que os índios “[...] criam

    seus filhos viciosamente, sem nenhuma maneira de castigo” (Gandavo, 1980, apud

    Freire, 2004, p. 16). Freire (2004) sinaliza ainda que este tipo de relação em que a

    criança é socializada sem nenhuma forma de repressão, é observável ainda hoje no

    século XXI, sobretudo em aldeias Guarani do Rio de Janeiro e do Espírito Santo.

    Pelas observações acima, é possível afirmar que o colonizador não reconhecia a

    maneira de educar dos indígenas como sendo práticas pedagógicas resultantes de

    uma reflexão coletiva. Interpretavam-nas como negligência ou falta de princípios

    pedagógicos. O estranhamento diante das pedagogias indígenas levou o

    colonizador a efetivar imposição de outra forma de educação e de catequização

    como instrumento civilizatório. O colonizador, em uma violenta imposição de

    costumes seus aos gentios, ignorava a visão de mundo desses povos, obrigando-os

    a falar o português, a acreditar em outro Deus e a abandonar hábitos culturais que

    eles, os indígenas, já cultivavam ao longo de muitos anos. Assim, o entendimento

    nunca se efetivava, porque, para o colonizador, se o índio parecia gentil e amável,

    tornava-se um alvo fácil de submissão à escravidão. Entretanto, se demonstrava

    ciência de sua condição de donos das terras e reagia à invasão, era considerado

    selvagem, sanguinário e carente de uma domesticação emergente.5

    [...] a inexistência da escola, da sala de aula, do docente, do currículo, de horários, de uma disciplina rígida, de punições de castigos corretivos permitiu-lhes concluir que os povos indígenas não tinham educação e

    5 Conf. Lima (1995) e Teixeira (1995).

  • 27

    precisavam ser civilizados, de acordo com o modelo europeu de educação escolarizada (Freire, 2004, p. 16).

    Sob a ótica dos colonizadores, os indígenas estavam sempre em um grau de

    inferioridade e, portanto, seus modos próprios de ser, eram menosprezados. Por

    outro lado, era do interesse do colonizador estreitar relações entre os nativos de

    modo a obter vantagens para explorar a terra desconhecida na busca de ouro ou na

    expansão agrícola ou pastoril. Como a língua diferente impossibilitava o contato

    entre brancos e índios, grande foi a repressão que os europeus impuseram aos

    nativos para eliminar suas línguas nativas, impondo-lhes a língua do colonizador.

    Certamente, a proibição ao uso da língua nativa e imposição do idioma português

    deu-se porque os colonizadores entendiam que a utilização das línguas nativas

    reforçava as tradições e costumes tribais que eles queriam exterminar.

    Garcia (2005) analisa o empenho da Coroa Portuguesa em fazer campanha para

    disseminar o idioma português no período colonial e propagar a idéia de que, com

    uma série de leis, iriam transformar os índios em súditos da Coroa, iguais aos

    colonos. A autora esclarece que assim os colonizadores pretendiam eliminar as

    diferenças características dos povos indígenas, fazendo deles pessoas “civilizadas”.

    De acordo com Garcia (2005), na segunda metade do século XVIII, a Coroa

    Portuguesa organizou, em 1757, um conjunto de leis sistematizadas num texto

    chamado Diretório dos Índios6 (Garcia, 2005). Por intermédio dessas leis, a Coroa

    promoveu, no início da década de 1770, a fundação de duas instituições. 7 Com

    elas, os colonizadores pretendiam impor o uso do idioma português, uma vez que

    entendiam ser essa uma importante arma de dominação e controle político dos

    6 O Diretório dos Índios, publicado em 1757, foi concebido com o objetivo de inserir os índios na sociedade portuguesa como homens livres e vassalos do rei, substituindo os hábitos culturais dos indígenas por costumes europeus. O Diretório estipulava uma série de mudanças: a substituição das línguas indígenas pelo português; o incentivo aos casamentos mistos de índias e portugueses; a transformação das aldeias em vilas, entre outras (Garcia, 2005). Por trás dessa política, existia o interesse de manipular os indígenas para a defesa do território colonizado. Uma vez tratados como vassalos do rei, os indígenas defenderiam as fronteiras, incrementariam a agricultura e pagariam impostos. Apesar de, inicialmente, ter sido elaborado para a Amazônia, o Diretório foi estendido a todo o restante da colônia. No entanto, dada a diversidade dos indígenas, sofreu uma série de alterações. Fracassando em suas intenções, foi abolido em 1798 (Garcia, 2005). 7 Essas duas instituições de ensino para os índios eram: uma escola para os meninos e um recolhimento para as meninas atendendo a uma população com idade mínima de seis anos e a máxima de doze anos. Foram fundadas na aldeia Nossa Senhora dos Anjos que foi povoada por índios Guarani, trazidos dos Sete Povos das Missões por Gomes Freire de Andrade, no final da década de 1750. Nos dias atuais, onde antes fora a referida aldeia, hoje se localiza a cidade de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, RS.

  • 28

    súditos e, gradativamente, impor-lhes costumes ocidentais europeus. As crianças

    deveriam ser convertidas à fé católica, vestindo-se como os brancos e sendo

    disciplinadas para o trabalho (Garcia, 2005). Em sua educação, recebiam castigos

    físicos, quando utilizavam a língua própria, pois não havia lugar para as

    manifestações culturais dos indígenas. O que se ensinava era essencialmente os

    elementos da cultura portuguesa, desconsiderando-se toda a herança cultural dos

    antepassados dos educandos indígenas, assim como suas experiências anteriores.

    Os colonizadores consideravam que as instituições e os ensinamentos europeus

    eram universais e, não detectando vestígios desses ensinamentos entre os

    indígenas, concluíam serem estes carentes de práticas educativas consistentes. A

    inexistência de escolas, salas de aulas, currículos, horários para atividades,

    punições aos erros, no modelo educativo dos povos indígenas 8, reforçou nos

    colonizadores a necessidade de implementar um processo de “civilização” dos

    indígenas, segundo os moldes europeus, para torná-los “pessoas de bem”, no qual a

    escola para índios assumia uma função essencialmente civilizatória. Com isso, a

    oferta de programas de educação escolar às comunidades indígenas esteve

    pautada pela catequização, civilização e integração forçada dos índios à sociedade

    nacional dando-se o início da implantação do que estamos definindo como educação

    escolar para índios.

    No desenvolvimento dessa educação, algumas iniciativas se propunham a

    acompanhar como ela se realizava. Dessa forma, em 1861, o poeta Antônio

    Gonçalves Dias, após ser nomeado para o cargo de visitador das escolas do

    Solimões, pelo presidente da Província do Amazonas, viajou pelo rio Solimões até

    os limites com o Peru e a Colômbia e pelo rio Negro até Cucuí, na fronteira com a

    Venezuela, visitando escolas encontradas no curso da viagem. O objetivo principal

    da viagem era observar e registrar as condições da instrução primária em escolas

    com predominância de alunos indígenas que sequer falavam a língua portuguesa. O

    resultado dessa viagem foram dois relatórios que procuraram apresentar

    informações “[...] acerca do progresso ou regresso da instrução primária naqueles

    lugares” (Gonçalves Dias, 1861-2002, p. 7). O poeta, visitando as regiões de Coari,

    8 Cf.: IBASE. Educação escolar em Terras Brasilis, tempo de novo descobrimento. Rio de Janeiro: 2004, p. 16.

  • 29

    Tefé, Alvarães, Fonte Boa, Olivença e Tabatinga, produziu um primeiro relatório

    sobre as condições dos lugares visitados apresentando informações diversas tais

    como: os dados estatísticos sobre os alunos; os horários de funcionamento das

    escolas; o currículo e livros didáticos utilizados; a situação dos professores no que

    compete à formação, seleção, remuneração, aposentadoria; a evasão dos alunos.

    Tudo isso porque lhe foi possível assistir às aulas, entrevistar professores, verificar

    cadernos dos alunos, conferir e confrontar os números referentes aos alunos

    efetivamente matriculados e os que estavam presentes.

    Nos registros, Gonçalves Dias (1861-2002) chama a atenção para dois problemas

    que considera mais graves e relevantes: a questão da formação dos professores e a

    evasão escolar. Sobre a formação dos professores, pontua que “[...] a primeira falta

    que se nota é a insuficiência dos mestres” (Gonçalves Dias, 1861-2002, p. 5).

    Acrescenta ele, que “[...] se considera profissão de mestre como recurso para

    indivíduo sem habilitações para outra indústria qualquer, ou como um meio de

    aumentar vencimentos” (Gonçalves Dias, 1861-2002, p. 5). Sobre a evasão,

    assegura ele, que o grande e principal motivo é devido “[...] a falta de suficientes

    meios de subsistência ou a carência dos gêneros de primeira necessidade” (p. 11)

    uma vez que esta ausência de recursos contribuiu para que “[... ] a gente menos

    remediada se retirasse com seus filhos para outros lugares” (Gonçalves Dias, 1861-

    2002, p.11).

    Para o diálogo com a nossa pesquisa, a discussão dos dados apresentados por

    Garcia (2005) e Gonçalves Dias (1861) reporta-nos a reflexões acerca de questões

    referentes à educação escolar nas comunidades Tupinikim e Guarani na atualidade.

    Nessas localidades, no período anterior à estruturação de uma educação

    caracterizada como indígena, ou seja, do que estamos definindo como educação

    escolar indígena, tinha-se um quadro com características semelhantes às

    apresentadas pelos autores acima citados apresentando dados preocupantes sobre

    uma grande maioria de alunos que não concluíam o ensino fundamental em

    períodos de escolarização regular, altos índices de evasão de alunos e o ensino

    oferecido por educadores não indígenas. A exposição de uma educadora Tupinikim

    e coordenadora pedagógica da Educação Indígena no município demonstra a

    expressão de importância do projeto de educação escolar indígena. Em seu

  • 30

    depoimento, justifica de maneira explícita, a necessidade de uma instituição escolar

    indígena que não sirva como instrumento de imposição de valores alheios e

    negação de identidades e culturas diferenciadas, mas, sim, uma escola aliada ao

    revigoramento da cultura já bastante desgastada.

    O fato de ter educador indígena está ainda em fase de construção e muita coisa ainda tem de se rever. Coisas que assim as crianças não viam na família estão vendo na escola, né? Que, às vezes os pais contam histórias, né contam histórias do que se fazia... muitas coisas... igual... as crianças aprendem a fazer trabalhar com pintura a ver artesanato... e antes na família.... Qual a família que está mais centrada? Na verdade pro comércio a criança tem contato o tempo todo com isso... agora a família que não tem isso que os pais trabalham fora praticamente isso não existe, não tem ou então tem muito pouco. E ai assim... é interessante você tendo o educador indígena eles tentam colocar que dentro da família vai trabalhar isso e aí vem lugar para trabalhar uma pesquisa sobre o que os pais falaram das plantas medicinais, do cacicado, da história e acaba que envolve bastante (EDUCADORA TUPINIKIM, Coordenadora da Educação Indígena).

    Com o desenvolvimento do projeto de educação diferenciada e intercultural

    indígena, esse quadro mudou consideravelmente. Resultante de lutas, em 1988, a

    promulgação da Constituição Federal Brasileira reconhece aos povos indígenas o

    direito a um ensino fundamental diferenciado, assegurando o uso de suas línguas

    maternas e processos próprios de aprendizagem (art. 210). O direito à diferença é

    também garantido no reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas,

    crenças e tradições (art. 231) e à difusão de suas manifestações culturais (art. 215).

    O Decreto nº 26/91 atribuiu ao Ministério de Educação Escolar a responsabilidade

    de coordenar, subsidiar e assessorar as ações referentes à educação escolar

    indígena no País e, aos Estados e Municípios, sua execução, antes delegada à

    Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Em 1993, o MEC estabelece que os projetos

    de educação indígena devem estar pautados nos princípios da diferença,

    especificidade, interculturalidade e bilingüismo. Em 1996, a Lei nº 9.394, em seus

    arts. 78 e 79, confirma o direito a uma educação diferenciada às populações

    indígenas.

    Assim, as comunidades puderam articular formas particulares de organização

    escolar. Adiante explicitaremos mais a esse respeito. Por ora, convém, na síntese

    deste breve relato, ressaltar que, entre as etnias Tupinikim e Guarani do município

    de Aracruz – ES, desde os anos 1990, esses dois povos têm vislumbrado, na

  • 31

    educação escolar, uma possibilidade de recuperação e revitalização de sua cultura e

    de suas tradições.

    É pertinente também observar que uma nova ordem social emerge a partir da

    mudança de sensibilidade ligada à aparição de novos modos de representação e de

    novas formas de relação social sendo, assim, necessário repensar a questão da

    tradição, pois é ela, ou seria ela, o elo de conexão entre os períodos de geração em

    geração na transmissão oral de rituais, de costumes, de valores espirituais, de

    memória.

    Hoje é diferente pelo fato do contexto que a gente vive hoje, né? Porque antes, igual, assim... eu até me lembro quando eu era criança... eu não estudava... na minha época, há vinte anos atrás eu não estudava, eu acompanhava a minha mãe em todo lugar que ela ia. Ia pra roça... Igual, ela trabalhava às vezes no Coqueiral lavando roupa de alguma família... aí todas as crianças eram assim. Iam fazer farinha com os pais... Tudo era com os pais (EDUCADORA TUPINIKIM, coordenadora da Educação Indígena).

    Na atualidade, reafirmando o que nos diz a educadora Tupinikim, muito se mudou da

    cultura e tradições da comunidade Tupinikim e, portanto, o repensar sobre a tradição

    faz-se urgente, uma vez que é ela, a tradição, que envolve o controle do tempo e se

    relaciona com a repetição. Giddens (1997) aponta que a tradição funciona como

    orientadora para o passado e também para o futuro. No que se refere ao passado,

    acena que ele passa a ter pesada influência sobre o presente, pois, [...] a tradição é

    uma orientação para o passado de tal forma que o passado tem uma pesada

    influência ou, mais precisamente, é constituída para ter uma pesada influência sobre

    o presente (Giddens, 1997, p. 80).

    Sobre o futuro, as práticas tradicionais estabelecidas são utilizadas como forma de

    reorganizá-lo de modo que o futuro seja modelado sem que se tenha a necessidade

    de esculpi-lo como um território separado. Dessa feita, a repetição, chega a fazer o

    futuro voltar ao passado, enquanto também aproxima o passado para reconstituir o

    futuro (Giddens, 1997). Recuperando mais uma vez a fala da educadora, expomos

    localmente o quão drásticas foram as conseqüências da séria invasão do

    colonizador e de como essa violação deixou marcas profundas a ponto de

  • 32

    desrefenciar o sujeito de sua condição de sujeito comprometendo perdas

    relacionadas com sua língua, costumes, suas tradições.

    Todos diziam que nós não somos porque não falamos... até pouco tempo quando passava um ônibus lá que ia visitar as aldeias eu cansei de ver cansei de falar papai também já cansou de falar “ah, eu vim aqui visitar os índios, a gente queria conhecer um pouco a aldeia, visitar os índio”. A gente falava “é lá pra baixo”, que era os Guarani. Nossa! A gente falou muito isso. Papai falou... outras pessoas... E até na rua quando a gente estava lá a gente via quando os ônibus passava e alguém parava... eu já vi papai falando, eu já falei, e já vi várias pessoas já falando (EDUCADORA TUPINIKIM, coordenadora da Educação Indígena).

    Então, diante da reconstrução de práticas que reestruturem o futuro, a

    ressignificação do conceito de ser índio também se modela. Nesse sentido, as

    conexões e as formas de relação social são freqüentemente muito próximas, pois as

    ações cotidianas dos indivíduos são produções/movimentos locais, sendo, pois, em

    algumas vezes, também globais. Ou seja, há buscas de demarcação de espaços

    locais, no que se refere ao indivíduo e suas às particularidades e de caracterizações

    globais, no tocante ao indivíduo e à sua relação de pertença no todo.

    [...] primeiro é preciso se identificar como índio e o grupo também identificar a gente como índio pertencente àquele grupo... e ... sei lá.... é... fazer né é... conhecer a nossa história, poder reconhecer, poder defender, argumentar sobre a nossa história, da nossa identidade como índio o que a gente tem o que a gente perdeu, por que, poder mesmo divulgar essa cultura que a gente tem hoje e que muito já se perdeu muitas coisas. É, poder lutar né... conhecer e lutar sobre as nossas questões que a gente tem hoje territorial, cultural, e outra coisas (EDUCADORA TUPINIKIM, coordenadora da Educação Indígena).

    Diante da emergencial necessidade de reafirmação cultural, o Projeto de Educação

    Indígena adquire relevância sobremaneira, pois, como já foi dito, amparados em um

    referencial legal, é possível aos indígenas adquirirem escolarização durante o

    processo de formação, garantindo-lhes que índios trabalhassem com índios e, a

    partir dessa ação, possibilitasse em toda a comunidade mudanças outras.

    Foi a educação que deu conta de fazer esse processo de resgate dessa identidade porque quando nós fizemos o curso de formação foi pensando deles serem índio para trabalhar com índio. Só que foi muito além disso. E aí nós começamos a ver que não só eles mas os outros índio porque estava na família e eles incentivando a comunidade eles estavam trabalhando com os valores da comunidade étnica, né então outras coisa como a mulher ser vista como colaboradora da aldeia né como uma

  • 33

    provocadora de situações, assumir lideranças que até então não era vista era apenas uma atividade tipicamente de homem Tantos trabalhos pela luta pela terra, que ela entendeu que a participação dela era importante. Tudo isso é fruto da educação (EX-COORDENADORA da Educação Indígena no município de Aracruz).

    Outro exemplo significativo disso é o atual ensino da língua dos ancestrais dos

    Tupinikim, o Tupi. As comunidades dessa etnia desejam recuperar sua língua nativa

    e vêem na educação oferecida nas escolas das aldeias um espaço privilegiado para

    isso. Desde 2004, é oferecido, em todas as turmas das escolas Tupinikim (ou seja,

    da educação infantil à 6ª série), 9 o ensino do Tupi. Quanto à comunidade Guarani,

    esta ainda mantém preservada a língua de seus ancestrais (o Guarani), assim como

    muitos rituais e costumes de sua tradição sendo para este grupo, a Língua

    Portuguesa considerada como segunda língua. Por certo, faz-se necessário algum

    estudo que melhor investigue como tem se dado este processo de ensino nas

    aldeias, e principalmente de como os sujeitos envolvidos têm se relacionado com

    esta ação.

    1.3 - REFERÊNCIAS AO CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO

    O município de Aracruz (Mapa 1) está localizado ao norte do Estado do Espírito

    Santo (ES), distanciando-se da capital, Vitória, cerca de 83 km. Na referida cidade,

    vivem duas etnias, Tupinikim e Guarani, compondo uma população indígena

    constituída de 637 famílias e totalizando 2.580 pessoas. 10

    9 A instituição do ensino fundamental está sendo gradual. É um projeto novo que em cada ano é estabelecida uma nova série. Em 2005, havia da educação infantil até a 5ª série. Em 2006, tem-se da educação infantil à 6ª com a perspectiva de, até 2008, haver o ensino fundamental completo, até a 8ª série. 10 Dados fornecidos pelo Censo Demográfico Indígena (FUNAI, 2006). Esse Censo é sempre realizado no segundo semestre de cada ano par.

  • 34

    Mapa 1: Aracruz no Estado do Espírito Santo

    O povo Guarani, intitulado Guarani Mbyá, chegou à cidade na década de 1960, após

    longa migração iniciada a partir de 1940. Em Ladeira (1992), encontramos aportes

    que justificam ser esta uma das últimas migrações do povo Mbyá, quando eles

    saíram forçados da Região Sul do Brasil, expulsos de suas terras por fazendeiros

    desejosos de desenvolver nessa região o plantio da erva-mate.

    Em Ciccarone (1996), temos um retrato da trajetória da migração contada por

    algumas narrativas que demonstraram as dificuldades, angústias e incertezas

    surgidas e ou encontradas pelas famílias peregrinas ao longo do percurso entre os

    Estados do Rio grande do Sul, Paraná, São Paulo, Minas Gerais até a chegada ao

    Espírito Santo. Atualmente, segundo o Censo Demográfico Indígena (FUNAI, 2006),

    no município de Aracruz, a população Guarani compreende 64 famílias totalizando

    265 índios que vivem nas aldeias de Mboapy Pindo (Boa Esperança), Tekoa Porá

    (Três Palmeiras) e de Piraquê-Açu. A maioria da população Guarani é bilíngüe e

    apresenta a língua e a religião como fontes de orgulho e expressão, verdadeiros e

    fundamentais elementos da cultura Guarani. Em nosso contexto de investigação,

    apesar de, em alguns momentos, fazermos algumas referências ao povo Guarani,

    desenvolveremos, ao longo do trabalho, considerações mais específicas à

    comunidade Tupinikim, uma vez que a nossa investigação foi realizada da referida

    etnia.

  • 35

    A população Tupinikim conta com cerca de 2.315 habitantes e encontra-se

    distribuída (Mapa 2) em quatro aldeias (Irajá, Caieiras Velhas, Pau Brasil e

    Comboios) em uma área de 7.559 hectares. Em tempos passados, a etnia Tupinikim

    vivia basicamente da caça, da pesca, da coleta e da agricultura, tendo uma

    economia de subsistência totalmente ligada à natureza. Viviam de acordo com sua

    cultura, preservando costumes, tradições e idiomas. Entretanto, ao longo de mais de

    500 anos de colonização européia, esse povo foi perdendo, progressivamente, o

    território dos ancestrais e sendo diretamente influenciado por profundas alterações

    culturais que incidiram na perda de sua língua materna e de algumas tradições. Para

    a realização desta investigação, inserimo-nos no contexto da aldeia de Pau Brasil.

    Mapa 2: A disposição das aldeias em Aracruz-ES

    Pouco se sabe sobre a origem da aldeia de Pau Brasil (Foto 1), mas o Sr. Antônio

    dos Santos (conhecido Seu Antonino), um ex-cacique de 70 anos, lembra-se, com

    saudades, dos tempos passados. Em entrevista concedida no dia 29-11-2006, a um

    grupo de crianças da educação infantil da aldeia, Seu Antonino disse:

    Quando eu nasci, esta aldeia já tinha permanecido eu não posso contar em que ano só sei dizer que eu nasci em 36 e certamente esta aldeia já

  • 36

    existia. As vez, não chamava aldeia porque realmente tudo foi chamado de aldeia quando a Funai apareceu, né? A se chamar de Aldeia. Mas a aldeia é realmente essa mesmo. Porque a gente sentava com os mais velhos que moravam aqui porque também a gente conheceu alguns ainda né... alguns. E eu não era daqui era da aldeia lá de Cantagalo, mas, sempre permaneci aqui. Passava por aqui, o caminho era aqui mesmo e depois que a gente se formou rapaz jovem a gente começou a brincar com os outros jovens daqui. E a gente nem pode nem contar porque eu mesmo nem sei, mas, sei que ela é bem antiga. Ela é.

    E sobre a origem do nome da aldeia, completou “[...] é porque existia muita madeira

    de Pau Brasil aqui nesta região... então certamente aqui era o central, era onde

    existia mais madeira de pau-brasil... é por isso, pois, que é falado e colocado o nome

    de pau Brasil” (SEU ANTÔNIO, ex-cacique, 70 anos).

    Foto 1: Aldeia de Pau Brasil

    A aldeia de Pau Brasil está localizada a 31 km da sede Aracruz, em uma área de

    1.579 hectares, com uma população de 417 habitantes, sendo 101 famílias e a

    maior faixa etária populacional compreendida entre 41-54 anos. Nessa aldeia, os

    habitantes, índios Tupinikim, sobrevivem da agricultura, trabalhando com a produção

    e comercialização de produtos, como mandioca (farinha), milho, feijão, café, coco e

    laranja. O artesanato é outra forma de reafirmação de sua cultura. Os objetos são

    feitos de fibras vegetais, couro, madeira, sementes e revelando em sua confecção

    artesanal a expressão de suas identidades singulares.

  • 37

    No caso do artesanato em couro, os tambores – emblemáticos da expressão étnica – manifestam-se na complexa articulação de diferentes tradições, cuja riqueza de significados dá origem a um universo simbólico peculiar que, tecido com fios da memória, criam elos entre mitos, histórias e vida cotidiana. [...] assim, como em diversas sociedades tradicionais, cada instrumento é uma pessoa, portadora de uma feição e de uma musicalidade próprias.(Ciccarone, 2004)

    Em virtude de precárias condições financeiras, a subsistência com recursos próprios

    da aldeia já não se fazem suficiente. Assim, vários índios saem e prestam serviços

    em empreiteiras contratadas pela Aracruz Celulose. No que concerne a essa grande

    empresa, é de fundamental importância pontuar que, ao longo de desenvolvimento

    de nossa pesquisa, a comunidade indígena de Aracruz passou por diversos embates

    com a multinacional, no que se refere à luta pela terra.

    Ao longo dos séculos, os indígenas perderam gradativamente suas terras.11 Essa

    perda de território tem provocado grandes alterações culturais, uma vez que a terra

    representa a base de sustentação da cultura, pois, “[...] para a cultura indígena, a

    terra é o centro de um sistema de hábitos e valores que compõem sua identidade”

    (PROCESSO 1.353/97, fls. 901, apud do RELATÓRIO GT Portaria nº 0783/94). Os

    documentos históricos corroboram dados em favor dos indígenas ao afirmar e

    indicar-lhes a posse do território.

    [...] de acordo com o Livro Tombo de Nova Almeida: ‘Em 1610, os índios Tupinikim receberam do representante da coroa portuguesa no Espírito Santo, donatário e presidente da província Francisco Aguiar Coutinho, a ‘doação’ de uma sesmaria de terras de seis léguas em quadro. Em 1760 a área foi demarcada, com aproximadamente 61 quilômetros no sentido Norte-Sul e 49 quilômetros no sentido Leste-Oeste’. Esse território foi medido de um lugar chamado Patranha (entre Jacaraípe e Capuaba) indo até Comboios. A sesmaria foi confirmada por Alvará em 1760. E, e em 1860, D. Pedro II visitou a aldeia Tupinikim e ratificou a doação das terras (CARTA ABERTA À POPULAÇÃO, 15-9-2006).

    11 Em 1940, contrariando a Constituição Federal, o governo brasileiro concedeu à Companhia de Ferro e Aço de Vitória (COFAVI) 10 mil hectares para a produção de carvão vegetal. Em 1967, a Aracruz Celulose comprou os 10 mil hectares da COFAVI e iniciou grande desmatamento para se efetivar a plantação de eucalipto. Em virtude dos confrontos, a multinacional reivindica essas terras como suas. Os índios contestam.

  • 38

    Para os indígenas, o lugar é uma referência pragmática do mundo, uma vez que traz

    em si uma rigidez, diante de solicitações e ordens precisas e condicionadas, mas

    também possibilita diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade

    (Santos apud Ciccarone, 2004). Sendo assim, o lugar, sua terra é a sua garantia

    possível de dar continuidade ao seu modo de vida, que, ao longo de anos, vem

    sofrendo alterações provocadas pelo entorno da sociedade envolvente, não índia.

    No período de realização de nossa coleta de dados, a Aracruz Celulose, objetivando

    provar a não existência de povos Tupinikim na região, empenhou-se em algumas

    ações que tiveram como mote desqualificar e ridicularizar a identidade indígena

    aracruzense. Para tanto, utilizando-se de estratégias de comunicação coercitivas

    veiculadas pela imprensa, nas escolas e instituições do município, desconsiderou as

    documentações históricas de mais de 400 anos. Valendo-se de seu poderio

    econômico, a Multinacional patrocinou campanhas (utilizando cartilhas, outdoors,

    sites da empresa) com o objetivo explícito de instigar a sociedade envolvente a se

    pronunciar de modo totalmente preconceituoso contra a população indígena. Abaixo

    temos alguns exemplos dos outdoors que circularam pela cidade.

    Foto 2: Outdoor sobre os conflitos pela posse da terra

  • 39

    Foto 3: Outdoor sobre os conflitos pela posse da terra

    Em atitude de repúdio e manifestação de indignação a esse tipo de atitude, e

    principalmente para esclarecer historicamente a população sobre algumas

    informações deturpadas, transmitidas pela Multinacional, os indígenas fizeram

    veicular uma carta aberta, na qual, respaldados em documentação histórica, afirmam

    que tanto a presença do indígena naquela região como a posse das terras que a

    empresa reivindica são de natureza legítima das comunidades indígenas de Aracruz

    esclarecendo, a partir das evidências, a existência da etnia indígena desde o século

    XVI.

    [...] os Tupinikim ocupavam uma faixa de terra situada entre Camamu (BA) e o rio São Mateus (ou Cricaré), alcançando a Província do Espírito Santo”, mas, historiadores e alguns viajantes como Jean de Léry, que passou pelo território espírito-santense em 1557 e Gabriel Soares de Sousa (1587), confirmam a presença dos Tupinikim no século XVI não só na região entre Camamu e o rio São Mateus, mas também na Região de Aracruz. Esses índios também viviam na região do rio Piraquê-Açu, onde em 1556 foi fundada pelo jesuíta Afonso Brás a Aldeia Nova (Nova Almeida). Coutinho (2006:127) afirma: ‘[...], a Aldeia de Reis Magos tornou-se um centro de atração já havia índios de várias tribos, pelos menos Temiminó, Goitacaz, Tupinikim, Parnaubi, e até os bravios Aimoré, [...]’. De acordo com John Hemming, a população Tupinikim do sul da Bahia até o Espírito Santo era em 1.500, de 55 mil habitantes. Há registros da etnia Tupinikim na região de Aracruz nos escritos de André Thevet, Hans Staden, dos jesuítas José de Anchieta e de Fernão Cardim (COMUNIDADES INDÍGENAS TUPINIKIM E GUARANI, 2006. grifos do autor).

    A demarcação dessas terras é uma antiga reivindicação dos indígenas e estudos da

    FUNAI confirmam e reiteram o direito às terras que esses povos tradicionalmente

  • 40

    ocupam. Esses conflitos envolvem a todos na comunidade indígena, tornando-se

    também, tema de discussão em momentos de roda de conversa com as crianças da

    educação infantil, organizados pela educadora.

    1.4 - OS OBJETIVOS DA INVESTIGAÇÃO

    A oralidade na tradição indígena, sempre foi e ainda é um importante elo de

    manutenção de tradição entre as gerações, na contação de histórias, de lendas, na

    preservação mitológica, nas conversas informais. Ou seja, como um dos mais

    importantes e fundamentais meios de propagação da cultura, utilizado

    historicamente pelas comunidades indígenas como recurso na defesa de seus

    direitos, reivindicação de posse das terras e demarcação das mesmas.

    Nessa investigação, estamos atenta a trabalhar a linguagem oral numa perspectiva

    que a compreenda como um processo de ensino dentro da relação de ensino-

    aprendizagem nos propondo principalmente pensar no ensino de gêneros orais que

    mais se afastam do protótipo dos gêneros utilizados na fala, realizados em espaços

    públicos e não aprendidos no cotidiano. Por isso, pensamos que a temática aqui

    pesquisada possui caráter social e histórico para a educação indígena, e o conjunto

    da educação nacional, pois a linguagem oral tem ocupado um lugar central em

    debates em nível nacional.

    Com efeito, nas orientações curriculares nacionais, tais como os Parâmetros

    Curriculares Nacionais (PCNs), o Referencial Curricular Nacional para a Educação

    Infantil (RCNE/Infantil12) e o Referencial Curricular Nacional para as Escolas

    Indígenas (RCNE/ Indígena 13), é possível encontrar referências explícitas ao

    trabalho em sala de aula com a linguagem oral, mas queremos discutir se a

    12 Esse documento compreende três volumes. O volume I aborda reflexão sobre as concepções de criança, de educação, de instituição e do profissional, as quais fundamentam os objetivos gerais da Educação Infantil. O volume II discute Formação Pessoal e Social. O volume III apresenta reflexões acerca da construção de diferentes linguagens pelas crianças e as relações que estabelecem com os objetos de conhecimento como: Movimento, Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade e Matemática. 13 Esse documento é composto de duas partes: na primeira, apresentam-se os fundamentos gerais da educação indígena e um breve histórico; na segunda, as orientações pedagógicas para cada componente curricular (Línguas, Matemática, História, Geografia, Ciências, Artes e Educação Física).

  • 41

    linguagem oral apresenta o caráter de objeto de ensino. O documento contém

    referências sobre diferentes formas de se abordar a linguagem oral. No entanto, no

    que diz respeito ao RCNEI/Infantil, identificamos uma ambigüidade flagrante com

    respeito ao status da linguagem oral: de um lado, há a idéia segundo a qual, em

    algumas práticas, a aprendizagem da linguagem oral se dá de forma natural por isso

    o seu ensino não requer “[...] ações educativas planejadas com a intenção de

    favorecer essa aprendizagem” (Brasil, 1998, p. 119); de outro lado, incentiva uma

    intervenção direta do adulto “para ensinar às crianças pequenas listas de palavras,

    cuja aprendizagem se dá de forma cumulativa” (Brasil, 1998, p. 119).

    Na pesquisa, então, trazemos ao debate acadêmico que as atividades de linguagem

    oral podem ser efetivamente planejadas a fim de criar as condições para que o

    aluno se aproprie de características peculiares dos diferentes gêneros orais,

    utilizando-os em diversas situações de produção. Em especial, interessa-nos

    valorizar a linguagem oral, por meio de uma prática reflexiva.

    Outra faceta da ambigüidade do Referencial Curricular Infantil, com respeito ao

    status da linguagem oral na educação infantil, é evidente, quando pontua que, em

    muitas instituições, o trabalho com a linguagem oral se restringe a atividades como a

    “roda de conversa” que seria marcada por um monólogo do professor em face do

    aluno (MEC/SEF, 1998, p. 119). É possível que, nesse aspecto, o Referencial

    Curricular tenha razão, e isso será objeto de nossa atenção no momento em que

    relatarmos os resultados de um estudo exploratório que realizamos como parte de

    nossa pesquisa. No que concerne ao Referencial Curricular Nacional para a

    Educação Indígena (RCNE-Indígena) no item reservado ao ensino de Línguas, são

    apresentadas “[...] sugestões para o ensino aprendizagem da linguagem oral,

    linguagem escrita e de práticas de análise lingüística” (MEC, 1998 p. 131).

    Pelas orientações oferecidas por esse documento, no que se refere ao

    desenvolvimento da linguagem oral, “[...] o professor deve reservar um tempo em

    sua sala de aula” para atividades onde a criança possa desenvolver a oralidade ao

    contar e comentar fatos; conversar e trocar idéias e opiniões sobre assuntos

    diversos; conversar sobre idéias polêmicas; descrever processos de construção de

    algum objeto; fazer dramatizações.

  • 42

    Outra atividade também considerada uma forma eficaz para desenvolver a

    linguagem oral é a leitura de pequenos textos com conteúdos e vocabulário

    apropriado à idade do aluno, sob o argumento de que, nessas situações, os alunos

    aprendem novas palavras e expressões. Vê-se aí uma valorização de práticas

    verbais, sem sentido explícito dos gêneros orais, e a idéia de desenvolvimento da

    linguagem oral na criança provocado por aumento do vocabulário.

    Tendo em vista os diferentes elementos apresentados, esta investigação, ao inserir-

    se no ambiente da educação infantil indígena e trazendo a discussão sobre as

    questões que envolvem a apropriação da linguagem oral, torna-se muito mais

    provocadora. Isso porque a aquisição da linguagem oral pelas crianças, indígenas

    ou não, começa por uma aprendizagem incidental. Pelas interações com seus pais

    e/ou aqueles que dela cuidam, a criança vai desenvolvendo diferentes dimensões da

    linguagem oral. No entanto, ao considerarmos a escola um espaço institucional de

    circulação de saber sistematizado, torna-se também necessário questionar: qual o

    lugar da linguagem oral na educação infantil? Esse questionamento constitui,

    precisamente, o nosso problema central de investigação tendo como foco

    privilegiado a educação escolar indígena. Em consonância, encaminhamos a análise

    investigativa a partir de quatro questões:

    a) Que atividades de linguagem oral são freqüentemente realizadas nas salas de

    educação infantil indígena?

    b) É possível abordar o oral como objeto de ensino em classes de educação

    infantil?

    c) A partir da realização de oficinas pedagógicas centradas em gêneros orais como

    objeto de ensino, qual poderá ser o impacto delas nas produções orais das

    crianças de quatro, cinco e seis anos?

    d) Como o ensino aprendizagem da oralidade na educação infantil pode contribuir

    para o resgate e preservação da cultura Tupinikim?

    Para operacionalizar as questões apresentadas, definimos nossas metas da

    seguinte maneira:

  • 43

    a) estudar as práticas de linguagem oral na educação infantil indígena;

    b) elaborar com os educadores indígenas oficinas pedagógicas centradas em

    práticas de linguagem oral;

    c) analisar o impacto das oficinas de aprendizagem nas produções orais das

    crianças.

    Além das necessidades dos próprios educadores indígenas, uma investigação como

    esta pode ser justificada de diferentes maneiras. Por um lado, a nossa experiência

    como professora de classes de educação infantil em escola da Rede Municipal de

    Educação de Aracruz, mostrou-nos que, ao entrar no contexto escolar, por volta dos

    três ou quatro anos, a criança já possui um domínio relativo do oral que lhe permite

    comunicar desejos ou alegria em momentos em que conversa com seus pares, ao

    contar algum fato ocorrido, ao conversar com membros da família, ou mesmo ao

    persuadir os pais quanto a algo que deseja, entre outras situações cotidianas. Esse

    domínio da linguagem demonstra que o desenvolvimento da fala é, antes de tudo, o

    desenvolvimento de sua experiência cultural que se dá prioritariamente por meio da

    conversação (como a contação de histórias, por exemplo) que foi aprendida no dia-

    a-dia com as pessoas com as quais a criança convive e com as quais compartilha

    referências culturais.

    Por outro lado, faltam estudos relativos à linguagem oral na educação infantil, pois,

    na proposta de que essa modalidade de ensino é também espaço para educar as

    crianças pequenas, muitos estudos estão voltados para as questões relativas à

    socialização das crianças, à organização das instituições, ao desenvolvimento

    cognitivo (leitura, escrita, arte) ou, mais recentemente, à formação do professor de

    educação infantil. A título de exemplo, podemos nos reportar às dissertações

    defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE / UFES), no

    período de 1981 a 2002. Em 20 anos de programa e num total de 209 dissertações

    defendidas, oito, ou seja, apenas 3,8%, referiam-se aos sujeitos da educação

    infantil. Vale ressaltar ainda que nenhuma delas abordava a educação infantil

    indígena e nem as práticas ensino da linguagem oral.

    Outra razão considera que o processo de investigação poderá trazer substanciais

    reflexões para a educação infantil em geral e para a educação infantil indígena em

  • 44

    particular, de modo a procurar compatibilizar as aspirações de um ensino específico

    e diferenciado, intercultural e de qualidade com uma proposta que promova o

    desenvolvimento de novas capacidades nos alunos, permitindo-lhes aprender a

    língua na perspectiva de aprender a se comunicar em situações diversas.

    Por fim, as experiências de educação infantil, em aldeias indígenas aracruzenses,

    sendo relativamente novas, suscitam o desenvolvimento de um maior número de

    investigações, o que trará maior fundamentação teórica, possibilitando, assim,

    relacionar o fazer pedagógico com uma ação política que vise à melhoria da vida

    social e da escola real.

  • 45

    2 - LINGUAGEM E EDUCAÇÃO: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

    Este trabalho fundamentou-se em pressupostos vigotskianos, no que se refere à

    concepção de ensino-aprendizagem, e bakhtinianos, no que concerne à concepção

    de linguagem, por entendermos o processo de ensino-aprendizagem como de

    natureza social em que a linguagem (seja oral, seja escrita) é elemento essencial na

    constituição dos sujeitos e na compreensão do mundo. Apresentaremos,

    inicialmente, alguns conceitos propostos por Vigotski, no que se refere à concepção

    de aprendizagem e de desenvolvimento. Em seguida, discutiremos acerca de

    algumas contribuições de Bakhtin (2001, 2004), Desse autor tomaremos de

    empréstimo as reflexões sobre gêneros primários e gêneros secundários,

    enunciação, compreensão responsiva e acento apreciativo. Logo após,

    apresentaremos alguns elementos teóricos acerca da conversação, como um

    gênero que privilegiaremos em nosso trabalho empírico.

    2.1 - A CONCEPÇÃO DE DESENVOLVIMENTO E DE APRENDIZAGEM A PARTIR

    DO REFERENCIAL HISTÓRICO-CULTURAL

    Ao trazermos as contribuições de Vigotski ao nosso debate, constatamos que, em

    seus estudos, o autor verificou que a criança, desde o nascimento, vivencia

    intercâmbios de comunicação nos momentos em que interage com aqueles que

    dela cuida. Um bebê que ainda não sabe articular palavras ou nem é capaz de

    compreender claramente os seus significados, consegue expressar suas

    necessidades fisiológicas, os seus estados emocionais por meio de gestos, sons,

    expressões, demonstrando, que é a necessidade de contato social que impulsiona o

    desenvolvimento da linguagem. A linguagem funciona como uma ponte de ligação

    entre a criança e o outro desempenhando papel fundante na constituição das

    pessoas.

    No percurso do desenvolvimento infantil, as palavras não são inventadas, são

    produtos de relações socioculturais históricas produzidas pelas crianças de maneira

    significada. Ou seja, têm elas poder de regular e conferir um caráter mediador às

  • 46

    relações entre as demais pessoas e adquirem significado figurado à medida que se

    relacionam com uma imagem ou operacionalização “[...] en el lenguaje infantil los

    signos no aparecen como inventados por los niños: los reciben de la gente que les

    rodea y tan solo después toman conciencia o descubren las funciones de tales

    signos”. (Vigotski, 1995, p. 179).

    Para o autor, ao longo do desenvolvimento infantil, quando a criança toma

    consciência de um determinado saber, significa que ela é capaz de transferi-lo do

    plano da ação para o plano da linguagem. Ou seja, “[...] a tomada de consciência e

    a apreensão ocupam o primeiro plano no desenvolvimento [...]” (Vigotski, 2001, p.

    325) de modo que a criança tenha condições de falar sobre o conhecimento do qual

    se apropriou. Assim, segundo a observação de Vigotski, a escola deveria levar o

    indivíduo a se apropriar dos conhecimentos que são construídos historicamente.

    Dessa forma, o autor traz a discussão sobre a necessidad


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