UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANAacute
Fernando Luiacutes Barreto de Morais
AS NOCcedilOtildeES DE MASCULINO(ἄρρεν) E FEMININO(θῆλυ)
NO TRATADO DA MUacuteSICA DE ARISTIDES QUINTILIANO
CURITIBA
2014
FERNANDO LUIacuteS B DE MORAIS
AS NOCcedilOtildeES DE MASCULINO(ἄρρεν) E FEMININO(θῆλυ)
NO TRATADO DA MUacuteSICA DE ARISTIDES QUINTILIANO
Monografia apresentada agrave disciplina
Orientaccedilatildeo Monograacutefica II como
requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de
Bacharel em Letras
Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Juacutenior
CURITIBA
2012
Y a-t-il une possibiliteacute pour que dans le creacutepuscule
nous puissions saisir quelque chose de ce qui a eacuteteacute
lrsquoaurore Y a-t-il quelque chose qui dans le dernier
moment reponde au premier moment Nous sommes
peut-ecirctre dans une nuit qui va preacuteceacuteder un nouveau
jour
Nous sommes agrave la veille du plus enorme changement
sur la terre Est-ce que dans cette nuit nous ne
pouvons pas avoir quelques clarteacutes sur ce quit fut
lrsquoaube de la penseacutee humaine et sur lrsquooriginaire agrave
venir
Martin Heidegger
(Arnoux 1960 p8 apud M Jean Wahl Lrsquoideacutee drsquoecirctre chez Heidegger 1951)
RESUMO
O tratado Da Muacutesica de Aristides Quintiliano eacute provavelmente o mais completo registro da
estreita relaccedilatildeo entre reflexatildeo filosoacutefica e teoria musical na Greacutecia Antiga Neste trabalho
busco de iniacutecio mapear o perfil descritivo das noccedilotildees de masculino (ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
centrais no tratado de Quintiliano para a concepccedilatildeo da muacutesica como um sistema
cosmoloacutegico e um saber interdisciplinar Em seguida interrogo o estatuto loacutegico e ontoloacutegico
desses conceitos e por fim busco compreender o raciociacutecio analoacutegico decorrente do emprego
que Quintiliano daacute a essas noccedilotildees
Palavras-chave Da Muacutesica Aristides Quintiliano Masculino Feminino
ABSTRACT
Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the
close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this
work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine
(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of
music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the
logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical
reasoning they seem to imply
Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine
SUMAacuteRIO
1 Introduccedilatildeo 7
2 Masculino e feminino 10
21 Meacutelos e rhythmoacutes 10
22 Corpo e alma 13
23 Os conceitos 18
24 As letras 20
25 As vogais e o solfejo 22
26 A muacutesica das esferas 30
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33
4 Agrave guisa de conclusatildeo 42
BIBLIOGRAFIA 43
7
1 Introduccedilatildeo
A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja
assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos
de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso
que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o
enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes
dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua
enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para
si um universo cada vez mais cubista
Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos
natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute
compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e
ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o
quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer
uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem
absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica
literaacuteria) a um mesmo par de conceitos
Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria
musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos
convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados
aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que
demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo
Aristoacuteteles e Platatildeo
Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por
Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius
Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da
Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador
Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as
alternativas)
1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12
8
Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra
Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte
por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii
Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores
concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo
No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos
Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que
data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs
principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo
completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)
Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino
(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico
Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais
na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso
de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns
com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes
Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o
emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more
musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais
detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo
descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica
Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria
estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados
Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e
natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas
cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte
do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens
traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num
segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e
feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano
se deteacutem
Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte
musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto
9
ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
10
2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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FERNANDO LUIacuteS B DE MORAIS
AS NOCcedilOtildeES DE MASCULINO(ἄρρεν) E FEMININO(θῆλυ)
NO TRATADO DA MUacuteSICA DE ARISTIDES QUINTILIANO
Monografia apresentada agrave disciplina
Orientaccedilatildeo Monograacutefica II como
requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de
Bacharel em Letras
Orientador Prof Dr Roosevelt Arauacutejo da Rocha Juacutenior
CURITIBA
2012
Y a-t-il une possibiliteacute pour que dans le creacutepuscule
nous puissions saisir quelque chose de ce qui a eacuteteacute
lrsquoaurore Y a-t-il quelque chose qui dans le dernier
moment reponde au premier moment Nous sommes
peut-ecirctre dans une nuit qui va preacuteceacuteder un nouveau
jour
Nous sommes agrave la veille du plus enorme changement
sur la terre Est-ce que dans cette nuit nous ne
pouvons pas avoir quelques clarteacutes sur ce quit fut
lrsquoaube de la penseacutee humaine et sur lrsquooriginaire agrave
venir
Martin Heidegger
(Arnoux 1960 p8 apud M Jean Wahl Lrsquoideacutee drsquoecirctre chez Heidegger 1951)
RESUMO
O tratado Da Muacutesica de Aristides Quintiliano eacute provavelmente o mais completo registro da
estreita relaccedilatildeo entre reflexatildeo filosoacutefica e teoria musical na Greacutecia Antiga Neste trabalho
busco de iniacutecio mapear o perfil descritivo das noccedilotildees de masculino (ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
centrais no tratado de Quintiliano para a concepccedilatildeo da muacutesica como um sistema
cosmoloacutegico e um saber interdisciplinar Em seguida interrogo o estatuto loacutegico e ontoloacutegico
desses conceitos e por fim busco compreender o raciociacutecio analoacutegico decorrente do emprego
que Quintiliano daacute a essas noccedilotildees
Palavras-chave Da Muacutesica Aristides Quintiliano Masculino Feminino
ABSTRACT
Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the
close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this
work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine
(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of
music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the
logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical
reasoning they seem to imply
Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine
SUMAacuteRIO
1 Introduccedilatildeo 7
2 Masculino e feminino 10
21 Meacutelos e rhythmoacutes 10
22 Corpo e alma 13
23 Os conceitos 18
24 As letras 20
25 As vogais e o solfejo 22
26 A muacutesica das esferas 30
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33
4 Agrave guisa de conclusatildeo 42
BIBLIOGRAFIA 43
7
1 Introduccedilatildeo
A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja
assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos
de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso
que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o
enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes
dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua
enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para
si um universo cada vez mais cubista
Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos
natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute
compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e
ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o
quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer
uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem
absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica
literaacuteria) a um mesmo par de conceitos
Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria
musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos
convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados
aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que
demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo
Aristoacuteteles e Platatildeo
Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por
Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius
Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da
Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador
Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as
alternativas)
1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12
8
Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra
Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte
por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii
Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores
concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo
No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos
Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que
data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs
principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo
completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)
Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino
(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico
Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais
na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso
de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns
com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes
Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o
emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more
musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais
detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo
descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica
Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria
estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados
Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e
natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas
cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte
do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens
traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num
segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e
feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano
se deteacutem
Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte
musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto
9
ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
10
2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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Ibrasa 1990
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Y a-t-il une possibiliteacute pour que dans le creacutepuscule
nous puissions saisir quelque chose de ce qui a eacuteteacute
lrsquoaurore Y a-t-il quelque chose qui dans le dernier
moment reponde au premier moment Nous sommes
peut-ecirctre dans une nuit qui va preacuteceacuteder un nouveau
jour
Nous sommes agrave la veille du plus enorme changement
sur la terre Est-ce que dans cette nuit nous ne
pouvons pas avoir quelques clarteacutes sur ce quit fut
lrsquoaube de la penseacutee humaine et sur lrsquooriginaire agrave
venir
Martin Heidegger
(Arnoux 1960 p8 apud M Jean Wahl Lrsquoideacutee drsquoecirctre chez Heidegger 1951)
RESUMO
O tratado Da Muacutesica de Aristides Quintiliano eacute provavelmente o mais completo registro da
estreita relaccedilatildeo entre reflexatildeo filosoacutefica e teoria musical na Greacutecia Antiga Neste trabalho
busco de iniacutecio mapear o perfil descritivo das noccedilotildees de masculino (ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
centrais no tratado de Quintiliano para a concepccedilatildeo da muacutesica como um sistema
cosmoloacutegico e um saber interdisciplinar Em seguida interrogo o estatuto loacutegico e ontoloacutegico
desses conceitos e por fim busco compreender o raciociacutecio analoacutegico decorrente do emprego
que Quintiliano daacute a essas noccedilotildees
Palavras-chave Da Muacutesica Aristides Quintiliano Masculino Feminino
ABSTRACT
Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the
close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this
work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine
(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of
music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the
logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical
reasoning they seem to imply
Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine
SUMAacuteRIO
1 Introduccedilatildeo 7
2 Masculino e feminino 10
21 Meacutelos e rhythmoacutes 10
22 Corpo e alma 13
23 Os conceitos 18
24 As letras 20
25 As vogais e o solfejo 22
26 A muacutesica das esferas 30
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33
4 Agrave guisa de conclusatildeo 42
BIBLIOGRAFIA 43
7
1 Introduccedilatildeo
A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja
assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos
de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso
que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o
enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes
dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua
enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para
si um universo cada vez mais cubista
Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos
natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute
compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e
ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o
quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer
uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem
absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica
literaacuteria) a um mesmo par de conceitos
Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria
musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos
convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados
aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que
demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo
Aristoacuteteles e Platatildeo
Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por
Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius
Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da
Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador
Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as
alternativas)
1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12
8
Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra
Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte
por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii
Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores
concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo
No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos
Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que
data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs
principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo
completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)
Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino
(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico
Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais
na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso
de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns
com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes
Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o
emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more
musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais
detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo
descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica
Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria
estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados
Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e
natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas
cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte
do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens
traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num
segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e
feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano
se deteacutem
Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte
musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto
9
ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
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2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
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Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
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relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
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no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
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atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
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Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
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Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
BIBLIOGRAFIA
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RESUMO
O tratado Da Muacutesica de Aristides Quintiliano eacute provavelmente o mais completo registro da
estreita relaccedilatildeo entre reflexatildeo filosoacutefica e teoria musical na Greacutecia Antiga Neste trabalho
busco de iniacutecio mapear o perfil descritivo das noccedilotildees de masculino (ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
centrais no tratado de Quintiliano para a concepccedilatildeo da muacutesica como um sistema
cosmoloacutegico e um saber interdisciplinar Em seguida interrogo o estatuto loacutegico e ontoloacutegico
desses conceitos e por fim busco compreender o raciociacutecio analoacutegico decorrente do emprego
que Quintiliano daacute a essas noccedilotildees
Palavras-chave Da Muacutesica Aristides Quintiliano Masculino Feminino
ABSTRACT
Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the
close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this
work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine
(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of
music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the
logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical
reasoning they seem to imply
Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine
SUMAacuteRIO
1 Introduccedilatildeo 7
2 Masculino e feminino 10
21 Meacutelos e rhythmoacutes 10
22 Corpo e alma 13
23 Os conceitos 18
24 As letras 20
25 As vogais e o solfejo 22
26 A muacutesica das esferas 30
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33
4 Agrave guisa de conclusatildeo 42
BIBLIOGRAFIA 43
7
1 Introduccedilatildeo
A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja
assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos
de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso
que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o
enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes
dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua
enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para
si um universo cada vez mais cubista
Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos
natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute
compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e
ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o
quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer
uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem
absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica
literaacuteria) a um mesmo par de conceitos
Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria
musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos
convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados
aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que
demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo
Aristoacuteteles e Platatildeo
Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por
Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius
Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da
Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador
Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as
alternativas)
1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12
8
Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra
Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte
por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii
Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores
concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo
No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos
Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que
data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs
principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo
completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)
Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino
(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico
Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais
na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso
de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns
com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes
Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o
emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more
musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais
detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo
descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica
Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria
estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados
Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e
natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas
cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte
do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens
traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num
segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e
feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano
se deteacutem
Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte
musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto
9
ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
10
2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
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fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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ABSTRACT
Aristides Quintilianusrsquo On music is probably the most accomplished treatise documenting the
close connection between philosophical thought and musical theory in Ancient Greece In this
work I intend to scrutinize through descriptive lens at first the notions of masculine
(ἄρρεν) and feminine (θῆλυ) which play a substantial role in Quintilianusrsquo conception of
music as a cosmological system and interdisciplinary science Then I ask questions about the
logical and ontological basis of those notions and finally I try to understand the analogical
reasoning they seem to imply
Keywords On music Aristides Quintilianus Masculine Feminine
SUMAacuteRIO
1 Introduccedilatildeo 7
2 Masculino e feminino 10
21 Meacutelos e rhythmoacutes 10
22 Corpo e alma 13
23 Os conceitos 18
24 As letras 20
25 As vogais e o solfejo 22
26 A muacutesica das esferas 30
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33
4 Agrave guisa de conclusatildeo 42
BIBLIOGRAFIA 43
7
1 Introduccedilatildeo
A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja
assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos
de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso
que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o
enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes
dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua
enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para
si um universo cada vez mais cubista
Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos
natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute
compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e
ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o
quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer
uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem
absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica
literaacuteria) a um mesmo par de conceitos
Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria
musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos
convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados
aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que
demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo
Aristoacuteteles e Platatildeo
Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por
Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius
Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da
Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador
Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as
alternativas)
1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12
8
Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra
Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte
por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii
Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores
concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo
No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos
Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que
data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs
principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo
completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)
Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino
(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico
Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais
na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso
de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns
com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes
Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o
emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more
musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais
detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo
descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica
Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria
estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados
Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e
natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas
cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte
do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens
traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num
segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e
feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano
se deteacutem
Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte
musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto
9
ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
10
2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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SUMAacuteRIO
1 Introduccedilatildeo 7
2 Masculino e feminino 10
21 Meacutelos e rhythmoacutes 10
22 Corpo e alma 13
23 Os conceitos 18
24 As letras 20
25 As vogais e o solfejo 22
26 A muacutesica das esferas 30
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico 33
4 Agrave guisa de conclusatildeo 42
BIBLIOGRAFIA 43
7
1 Introduccedilatildeo
A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja
assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos
de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso
que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o
enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes
dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua
enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para
si um universo cada vez mais cubista
Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos
natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute
compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e
ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o
quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer
uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem
absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica
literaacuteria) a um mesmo par de conceitos
Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria
musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos
convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados
aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que
demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo
Aristoacuteteles e Platatildeo
Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por
Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius
Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da
Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador
Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as
alternativas)
1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12
8
Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra
Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte
por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii
Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores
concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo
No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos
Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que
data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs
principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo
completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)
Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino
(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico
Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais
na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso
de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns
com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes
Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o
emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more
musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais
detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo
descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica
Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria
estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados
Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e
natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas
cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte
do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens
traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num
segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e
feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano
se deteacutem
Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte
musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto
9
ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
10
2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
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Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
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Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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7
1 Introduccedilatildeo
A abstraccedilatildeo eacute o pecado original de toda ciecircncia e eacute perfeitamente natural que seja
assim Nossa linguagem natildeo pode pretender abarcar numa visada uacutenica os muacuteltiplos aspectos
de um objeto qualquer sem multiplicar ao mesmo tempo as razotildees de equiacutevoco Eacute por isso
que para a compreensatildeo de um uacutenico objeto satildeo necessaacuterias dezenas de ciecircncias que o
enfoquem sob os diversos pontos de vista O uacutenico incoveniente eacute que no mais das vezes
dezenas de aspectos natildeo chegam a formar um objeto de modo que enquanto o olho continua
enxergando um mundo onde a cabeccedila estaacute sobre o pescoccedilo a inteligecircncia vai compondo para
si um universo cada vez mais cubista
Este trabalho fiquem tranquilos natildeo pretende atacar este problema pelo menos
natildeo diretamente Nosso objetivo eacute expor (e na medida do possiacutevel quem sabe ateacute
compreender) como mediante o emprego de uma ferramenta intelectual simples (e
ultrapassada segundo a opiniatildeo corrente que com frequecircncia esquece ou sequer percebe o
quanto a ela tem recorrido) nosso autor pretendeu romper fronteiras ontoloacutegicas e oferecer
uma descriccedilatildeo unificada do mundo submetendo nesse processo conhecimentos de ordem
absolutamente heterogecircnea (que vatildeo da astronomia agrave ciecircncia poliacutetica da psicologia agrave criacutetica
literaacuteria) a um mesmo par de conceitos
Nosso autor chama-se Aristides Quintiliano e o seu livro eacute o tratado de teoria
musical intitulado Da Muacutesica (ΠΕΡΙ ΜΟΥΣΙΚΗΣ ΤΡΙΤΟΝ) obra em que todos os esforccedilos
convergem para um objetivo bastante ambicioso integrar numa visatildeo unitaacuteria os variados
aspectos daquilo que a cultura grega um dia produziu sob o nome de μουσική empreitada que
demanda uma articulaccedilatildeo entre duas vertentes rivais no campo da teoria musical a tradiccedilatildeo
pitagoacuterica e a tradiccedilatildeo aristoxecircnica Nos bastidores dessa articulaccedilatildeo onipresentemente estatildeo
Aristoacuteteles e Platatildeo
Desconhece-se quem tenha sido historicamente o indiviacuteduo que atende por
Aristides Quintiliano Alguns sustentam1 que tenha sido um escravo de Marcus Fabius
Quintilianus outros que tenha sido seu filho e outros ainda que seja o proacuteprio autor da
Institutio oratoria Haacute tambeacutem a hipoacutetese de que tenha sido um saacutebio da corte do imperador
Adriano embora natildeo se possa precisar qual deles exatamente (por ora satildeo duas as
alternativas)
1 Para mais detalhes sobre essas hipoacuteteses Mathiesen 1983 p11-12
8
Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra
Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte
por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii
Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores
concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo
No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos
Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que
data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs
principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo
completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)
Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino
(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico
Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais
na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso
de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns
com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes
Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o
emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more
musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais
detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo
descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica
Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria
estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados
Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e
natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas
cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte
do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens
traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num
segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e
feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano
se deteacutem
Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte
musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto
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ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
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2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
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no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
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atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
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Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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8
Agrave indecisatildeo quanto agrave identidade do autor soma-se a incerteza na dataccedilatildeo da obra
Quintilino por um lado cita Ciacutecero (assassinado em 43 aC) e de outro foi usado como fonte
por Martianus Capella na redaccedilatildeo do livro IX do seu De nuptiis Philologiae et Mercurii
Como a redaccedilatildeo do De nuptiis eacute datada da primeira metade do seacutecV dC os comentadores
concordam em situar o De muacutesica e seu autor entre o I e o IV seacuteculos depois de Cristo
No conjunto da tratadiacutestica musical grega o De muacutesica ocupa ao lado dos
Elementos Harmocircnicos de Aristoacutexeno (segunda metade do seacutecIV aC) e da Harmocircnica (que
data de meados do seacutec II dC) de Ptolomeu um lugar de destaque Dentre esses trecircs
principais tratados no entanto o de Quintiliano eacute o uacutenico a nos oferecer uma ldquoexposiccedilatildeo
completa dos aspectos filosoacuteficos da muacutesica gregardquo (COLOMBER L GIL B 1996 p19)
Este trabalho objetiva abordar apenas um desses aspectos filosoacuteficos as noccedilotildees de masculino
(ἄρρεν) e feminino (θῆλυ)
No De muacutesica as noccedilotildees de masculino e feminino cumprem um papel estrateacutegico
Eacute essa dualidade que como princiacutepio estruturante fundamenta a doutrina dos eacutethe musicais
na sua interaccedilatildeo simpaacutetico-eacutetico-pedagoacutegica com as potecircncias da alma Trata-se aleacutem disso
de um princiacutepio que atua sobre todo o mundo corpoacutereo analogando os entes deste mundo uns
com os outros e estes mesmos por sua vez com as realidades celestes
Todavia embora Quintiliano apoiado na ferramenta da analogia e mediante o
emprego das noccedilotildees de masculino e feminino alcance conceber e expor uma visatildeo more
musicale demonstrata unitaacuteria do universo nem por isso se daacute o trabalho de tratar mais
detidamente dessas duas noccedilotildees e se insinua fazecirc-lo eacute sempre em funccedilatildeo de um objetivo
descritivo imediato Quanto agrave analogia expediente dos mais frequentes no De muacutesica
Quintiliano natildeo chega a abordaacute-la como uma teoria em si mesma embora expediente e teoria
estejam ambos em seu tratado indissociaacutevel e necessariamente ligados
Meu objetivo aqui eacute tratar particularmente das noccedilotildees de masculino e feminino e
natildeo do modo como essas noccedilotildees fundamentam as doutrinas esteacuteticas poliacuteticas pedagoacutegicas
cosmoloacutegicas ou metafiacutesicas relacionadas agrave reflexatildeo musical grega Assim na primeira parte
do trabalho busco traccedilar um perfil descritivo inicial partindo para isso das passagens
traduzidas e comentadas em que Quintiliano emprega ilustra ou explica essas noccedilotildees Num
segundo momento tento sondar o estatuto loacutegico e ontoloacutegico das noccedilotildees de masculino e
feminino sem no entanto extrapolar o acircmbito estritamente cosmoloacutegico no qual Quintiliano
se deteacutem
Como Quintiliano divide o tratado em trecircs livros ndash um primeiro dedicado agrave arte
musical propriamente dita ou muacutesica audiacutevel um segundo que trata da muacutesica enquanto
9
ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
10
2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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9
ferramenta pedagoacutegica e imagem da alma e um terceiro livro no qual aborda os fundamentos
matemaacuteticos e cosmoloacutegicos dos livros anteriores ndash e como as noccedilotildees de masculino e
feminino satildeo abordadas sempre a propoacutesito mas sem ordem aparente ao longo de todos os
trecircs livros resulta absolutamente impossiacutevel natildeo avanccedilar em saltos Pretendi minimizar esse
inconveniente seguindo estritamente a ordem da exposiccedilatildeo (teria seguido a ordem das razotildees
se tivesse encontrado alguma) Tentei tambeacutem nos comentaacuterios agraves passagens preencher os
hiatos expositivos informando o contexto de onde cada passagem foi retirada
Na seleccedilatildeo das passagens a analisar foi preciso excluir algumas (natildeo muitas) cujo
conteuacutedo natildeo fosse especialmente relevante para o objetivo deste trabalho Os trechos
excluiacutedos constituem-se sobretudo de informaccedilotildees jaacute dadas ou de simples menccedilotildees dos
termos masculino e feminino Fico grato a quem me possa informar alguma omissatildeo
imperdoaacutevel
Disse acima que as noccedilotildees de masculino e feminino tecircm papel estrateacutegico no
tratado de Aristides Quintiliano Natildeo eacute sem estrateacutegia igualmente que essas noccedilotildees satildeo
apresentadas ao leitor A Q abre os capiacutetulos iniciais do livro I expondo os motivos (a
ignoracircncia e leviandade dos seus contemporacircneos com relaccedilatildeo agrave musica) e o escopo da sua
iniciativa A muacutesica para ele natildeo eacute um divertimento banal mas a ordem impliacutecita por traacutes da
natureza
Concluiacutedo o preacircmbulo ele desce das alturas e passa a tratar da muacutesica stricto
sensu No capiacutetulo 5 do livro I propotildee uma divisatildeo da mateacuteria em duas partes muacutesica praacutetica
e muacutesica teoacuterica Cada parte por sua vez eacute subdividida em duas outras A teoacuterica em muacutesica
da natureza e teacutecnica musical a praacutetica tambeacutem chamada educativa em composiccedilatildeo (ou uso)
musical e expressatildeo musical Quintiliano aborda a seguir os dois primeiros aspectos da
teacutecnica musical o ritmo e o meacutelos Eacute soacute entatildeo que menciona pela primeira vez os termos
masculino e feminino
10
2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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10
2 Masculino e feminino
21 Meacutelos e rhythmoacutes
Como vimos eacute somente apoacutes ter tratado da teoria harmocircnica (Livro I caps 6-12)
e da teoria riacutetmica (caps 13-19) que A Q emprega pela primeira vez os termos ἄρρεν e θῆλυ
Diz ele (I 1925-30)
τινὲς δὲ τῶν παλαιῶν τὸν μὲν ῥυθμὸν ἄρρεν ἀπεκάλουν τὸ δὲ μέλος θῆλυ τὸ μὲν
γὰρ μέλος ἀνενέργητόν τ ἐστὶ καὶ ἀσχημάτιστον ὕλης ἐπέχον λόγον διὰ τὴν πρὸς
τοὐναντίον ἐπιτηδειότητα ὁ δὲ ῥυθμὸς πλάττει τε αὐτὸ καὶ κινεῖ τεταγμένως
ποιοῦντος λόγον ἐπέχων πρὸς τὸ ποιούμενον
Alguns dos antigos chamavam o ritmo de masculino e o meacutelos de feminino pois o
meacutelos eacute sem atualidade e sem forma possuindo o logos da mateacuteria pela sua aptidatildeo
para os contraacuterios ao passo que o ritmo move ordenadamente o meacutelos e o modela
possuindo o logos do criador com relaccedilatildeo ao que eacute criado
Evidentemente o meacutelos sem atualidade e sem forma mencionado nesta passagem
natildeo eacute exatamente o mesmo que capiacutetulos atraacutes (I 121-3) A Q definiu como meacutelos teacuteleion
ou meacutelos perfeito (aquele que combina harmonia ritmo e dicccedilatildeo) mas o meacutelos em sentido
proacuteprio (ἰδιαίτερον) e estrito um entrelaccedilamento de sons desiguais quanto agrave altura tonal isto
eacute de sons que se articulam desde a perspectiva de uma oposiccedilatildeo qualitativa de base a
oposiccedilatildeo entre grave e agudo
Tambeacutem a noccedilatildeo de ritmo eacute aqui empregada em sentido restrito e sequer
corresponde agrave totalidade daquilo que dentro do escopo da teoria musical e segundo o proacuteprio
A Q (I 1319-20) estaacute submetido agrave ordenaccedilatildeo riacutetmica os movimentos do corpo da melodia
e da dicccedilatildeo ou seja a danccedila a muacutesica e a poesia
No iniacutecio do capiacutetulo 13 Livro I A Q estabelece trecircs acepccedilotildees para o termo
ritmo conforme os objetos aos quais o termo seja aplicado Haacute assim o ritmo dos corpos
imoacuteveis o dos corpos moacuteveis e o ritmo em sentido proacuteprio (ἰδίως) que eacute o ritmo quando
aplicado agrave voz (ἐπὶ φωνῆς) ou ao som Eacute com respeito a esta uacuteltima acepccedilatildeo que diz ele (I
136-8) o ritmo se organiza segundo uma oposiccedilatildeo de estados denominados aacutersis e theacutesis
ruiacutedo e repouso (ἄρσιν καὶ θέσιν ψόφον καὶ ἠρεμίαν)
Certamente natildeo eacute coincidecircncia o fato de que cada termo da dualidade ritmo-
melodia se articule internamente tambeacutem segundo uma oposiccedilatildeo qualitativa Mais adiante
teremos ocasiatildeo de interrogar como essas (e outras) oposiccedilotildees especiacuteficas se articulam entre
si e todas por sua vez com a dualidade masculino-feminino a que A Q nos introduz
formalmente na passagem citada mas com a qual assim nos parece ele conta desde o iniacutecio
11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
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Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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11
Em I 236-7 A Q nos daacute uma pista ao fazer da interaccedilatildeo entre os dissimilares a
condiccedilatildeo necessaacuteria de tudo o que vem a ser Embora Quintiliano nessa passagem designe
esses dissimilares (ἀνομοίων) como ldquoγεννωμένωνrdquo termo que Mathiesen (1983 p108)
traduz como ldquoprogenitoresrdquo o princiacutepio que ele aiacute enuncia natildeo poderia pela natureza do
assunto (ritmo e meacutetrica) estar circunscrito ao acircmbito exclusivo da reproduccedilatildeo sexuada
Em nota ao trecho (I 1925-30) reproduzido acima Barker (1990 p445) apoacutes
apontar a origem aristoteacutelica dos conceitos de agente e mateacuteria considera problemaacutetica a
fonte de sua associaccedilatildeo com as noccedilotildees de masculino e feminino embora essa associaccedilatildeo seja
mencionada tambeacutem em Aristoacuteteles
The terms of this distinction between matter and agent are Peripatetic and their
use here recalls Aristotles account of the male and female contributions to
reproduction (eg De Gen An 730b) Similar conceptions of the roles of melody
and rhythm are suggested by ps-Ar Probs xix49We cannot confidently identify
the origin of the application of sexual distinctions to music (used extensively by
Aristides in Book 11) and specifically of the equation of rhythm with male melody
with female such ideas may possibly be connected with the school of Damon
Colomer e Gil (1996 p96) satildeo mais especiacuteficos ao apontar uma possiacutevel origem
aristoxecircnica para a aplicaccedilatildeo das noccedilotildees aristoteacutelicas de ato e mateacuteria ao par ritmo e meacutelos
hipoacutetese que no fundo o proacuteprio Barker natildeo descarta jaacute que como diz os Elementa
Rhythmica satildeo ldquoa major source for the section on rhythmics in chs 13-19 of 12 Arist Quint
De Mus Book 1rdquo (1990 p193)
De fato nos Elementa Rhythmica (Livro II fr03) Aristoacutexeno refere-se ao ritmo e
ao ritmaacutevel (ῥυθμιζομένου) como duas naturezas especiacuteficas (δύο τινὰς φύσεις) as quais
estariam uma para outra como a forma (τὸ σχῆμα) estaacute para o que eacute formado (τὸ
σχηματιζόμενον) Aristoacutexeno eacute a princiacutepio ateacute mais abrangente que A Q jaacute que a relaccedilatildeo eacute
estendida a todos os ritmaacuteveis (corpo melodia e dicccedilatildeo) e natildeo exclusiva e especificamente ao
meacutelos Poreacutem para que natildeo haja duacutevida ele faz questatildeo de explicitar a relaccedilatildeo entre ritmo e
meacutelos ao mencionar adiante (fr04) que ldquoo mesmo [loacutegos] se aplica ao meacutelos e ao que quer
que tenha surgido para ser submetido ao ritmordquo2
Para A Q o meacutelos eacute ldquoἀσχημάτιστονrdquo3 informe para Aristoacutexeno eacute
ldquoσχηματιζόμενονrdquo algo que padece a forma Aleacutem de natildeo haver diferenccedila conceitual
2 Ὁ αὐτὸς δὲ λόγος καὶ ἐπὶ τοῦ μέλους καὶ εἴ τι ἄλλο πέφυκε ῥυθμίζεσθαι ou na traduccedilatildeo de Barker (1990
p185) ldquoThe same can be said about melody too and about anything else whose nature it is to be made rhythmic
[rhythmizesthai]rdquo 3 Quintiliano tambeacutem denomina o meacutelos ldquoἀνενέργητόνrdquo o que obviamente remete ao conceito de ato (ἐνέργεια
ou ἐντελέχεια) por oposiccedilatildeo agrave potecircncia (δuacuteναμις) termo que A Q emprega com relaccedilatildeo aos graus da escala O
12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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12
relevante entre os dois termos ambos apontam para uma acepccedilatildeo mais abrangente e mais
primitiva do rhythmoacutes Segundo Colomer e Gil (op cit loc cit) ldquoos termos rhythmoacutes e
schecircma foram a princiacutepio quase sinocircnimos embora depois a palavra rhythmoacutes se tenha
aplicado preferencialmente agrave forma em movimento e schecircma agrave forma estaacuteticardquo Ora essa
identificaccedilatildeo originaacuteria se esclarece a primeira e a segunda acepccedilotildees atribuiacutedas por A Q ao
termo ritmo (o ritmo dos corpos imoacuteveis e dos corpos moacuteveis) igualmente demonstra a
profunda unidade que coere aquelas trecircs acepccedilotildees pois em todas predomina a ideia de uma
determinaccedilatildeo formal
Haacute no entanto apesar dos paralelismos (mesmo no tocante agrave ordem de
exposiccedilatildeo) uma diferenccedila notaacutevel entre os textos de Aristoacutexeno e de Aristides Quintiliano Eacute
que Aristoacutexeno embora visivelmente preocupado esmiuccedilar a diferenccedila entre o ritmo e os
ritmaacuteveis natildeo recore para isso agraves noccedilotildees de masculino e feminino O tratado de Aristoacutexeno
tudo indica foi uma das principais fontes dos caps 13-19 do Livro I de A Q mas certamente
natildeo foi a uacutenica
Embora como sugerem Colomer e Gil o ingresso na teoria musical dos termos
masculino e feminino possa ter tido origem damoniana (e natildeo ser portanto histoacuterica e
originalmente pitagoacuterica) natildeo haacute duacutevida de que os termos ἄρρεν e θῆλυ fazem parte do
vocabulaacuterio filosoacutefico pitagoacuterico Sabemos disso porque Aristoacuteteles (Metafiacutesica 986a25) os
elenca entre famosos dez princiacutepios pitagoacutericos Noutra passagem da Metafiacutesica (988a2-10)
em que critica a concepccedilatildeo pitagoacuterico-platocircnica da diacuteada Aristoacuteteles natildeo somente explica a
conexatildeo entre as noccedilotildees de forma e mateacuteria e o par masculino-feminino mas afirma o caraacuteter
principial deste uacuteltimo
Com efeito eles pretendem derivar da mateacuteria uma multiplicidade se
bem que a Forma soacute gere uma vez ora o que observamos eacute que a mesa eacute
feita de um pedaccedilo de mateacuteria enquanto o homem que aplica a forma
apesar de ser um faz muitas mesas E a relaccedilatildeo entre macho e fecircmea
assemelha-se a esta pois a fecircmea eacute emprenhada numa soacute coacutepula ao passo
que o macho emprenha muitas fecircmeas E todavia estes fatos satildeo imagens
daqueles primeiros princiacutepios Eis aiacute pois como se pronunciou Platatildeo
acerca destes problemas pelo que ficou ditou eacute evidente que ele usou
apenas duas causas a essencial e a material ()
Se os fatos aparentemente desconexos da reproduccedilatildeo sexuada e da fabricaccedilatildeo de
uma mesa satildeo imagens ou imitaccedilotildees (μιμήματα) daqueles princiacutepios (τῶν ἀρχῶν ἐκείνων)
isto eacute dos princiacutepios essencial e substancial ndash ou em linguagem aristoteacutelica da causa material
e da causa formal ndash natildeo somente eacute liacutecito contar com a manifestaccedilatildeo desses princiacutepios tambeacutem
fato de que na passagem em tela ele recorra ao expediente privativo em vez empregar os termos proacuteprios natildeo
obscurece a distinccedilatildeo conceitual
13
no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
BIBLIOGRAFIA
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
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_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro
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no acircmbito da muacutesica mas se torna imperioso recorrer a eles quando se deseja como deseja
Quintiliano oferecer um vislumbre do cosmo total desde o microcosmo particular da muacutesica
Eacute o que trataremos de observar a seguir
22 Corpo e alma
Apoacutes ter introduzido no fim do cap19 as noccedilotildees de masculino e feminino A Q
natildeo volta a mencionaacute-las em nenhum momento ateacute o final do Livro I Natildeo quer isso dizer
todavia que ele jaacute natildeo as leve em conta ou pelo menos que natildeo as subentenda de algum
modo Em todo caso soacute deveraacute retomaacute-las em caraacuteter expliacutecito e operativo a partir do cap8
do Livro II
Φαίνεταί μοι τοίνυν ἡ ψυχή πόρρω μὲν τῶνδε ἡνίκα ἐστὶν ὁμιλοῦσα τῷ
κρείττονι λόγῳ τε ὁμέστιος εἶναι καὶ καθαρεύειν ἐπιθυμίας ἐπὰν δὲ ἐπὶ
τάδε ἀγκλίνῃ καὶ τὴν ἐνταῦθα διατριβὴν πείρᾳ μαθεῖν ἐπιχειρήσῃ
τηνικαῦτα αὐτῇ σώματός τε ἐγγίνεται χρεία καὶ σῶμα ἐπιζητεῖ
πρόσφορον ὑπόκειται δ αὐτῇ θεωρεῖν τὴν ἐν τούτοις διπλόην
ἀρρενότητά τέ φημι καὶ θηλύτητα ἥτις οὐκ ἐν ἐμψύχοις μόνοις ἄρα ἦν
ἀλλὰ κἀν τοῖς φύσει μόνῃ διοικουμένοις φυτῶν τε ὅσα μετάλλων τε
γένη καὶ ἀρωμάτων καὶ γὰρ τούτων δυάς τις ἐπιφαίνεται ἤτοι δι
ἁπαλότητος ἢ λειότητος ἢ εὐχροίας ἢ εὐωδίας ἢ καὶ τῶν ἐναντίων τὴν
ἑτέραν ἐπιδεικνυμένων φύσιν
Parece-me de fato que a alma quando distante das coisas e em comeacutercio
com o superior coabita com a razatildeo e estaacute livre de desejos mas quando
inclina-se para as coisas daqui e intenta aprender atraveacutes da experiecircncia
um modo de existir no tempo entatildeo sendo-lhe necessaacuterio um corpo ela
busca um corpo que lhe seja adequado E eacute da natureza da alma no
tocante aos corpos atentar para a dualidade ou seja para a masculinidade
e para a feminilidade dualidade presente natildeo soacute nos corpos animados
mas tambeacutem nos governados por uma soacute natureza tais como os gecircneros
das plantas dos metais e dos aromas pois tambeacutem neles se manifesta
certa dualidade pois seja pela brandura ou pela suavidade pela bela
aparecircncia ou pelo bom odor seja pelas qualidades contraacuterias apontam
para uma ou outra natureza (II 81-12)
Uma raacutepida contextualizaccedilatildeo nos permitiraacute compreender melhor tanto esta quanto
as demais passagens do cap8 Todo o livro II eacute dedicado agravequilo que no cap5 do livro I A Q
havia definido como muacutesica praacutetica (πρακτικόν) ou educativa (παιδευτικόν) Antes poreacutem de
tratar do seu tema propriamente A Q sente a necessidade de responder agraves objeccedilotildees dos
ceacuteticos4 (dentre os quais ningueacutem menos que Ciacutecero a quem Quintiliano poreacutem hesita em
4 ldquoEacute possiacutevel que os educadores romanos pensassem como Epicuro para quem a muacutesica natildeo tinha qualquer
significado aleacutem de um jogo de sons e concordassem com Ciacutecero que afirmava lsquoque a muacutesica natildeo tem utilidade
alguma aleacutem de um prazer infantil sem valor nenhum posto que natildeo pode guiar-nos agrave felicidadersquo Segundo o
autor romano Corneacutelius Nepos do seacutec I d C lsquoningueacutem ignora que a muacutesica segundo o estado de nossos
costumes natildeo conveacutem a um personagem importantersquo apesar de ter sido levada entre os gregos como lsquodigna de
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atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
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Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
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mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
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Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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14
atribuir juiacutezos desfavoraacuteveis acerca da muacutesica) fundamentar a proacutepria ideia de uma formaccedilatildeo
moral atraveacutes da muacutesica E como a accedilatildeo da muacutesica sobre a alma depende tanto da capacidade
ativa da primeira quanto da capacidade receptiva da uacuteltima eacute por esta que ele comeccedila
A alma diz eacute responsaacutevel por dotar de certo ritmo e de ordem (ῥυθμοῦ τινος καὶ
τάξεως) as coisas deste mundo (τῶν ἐνθαδί) Poderiacuteamos dizer embora Quintiliano natildeo o faccedila
aqui explicitamente que a alma portanto eacute masculina em relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Mas
para que possa ser isso eacute preciso que natildeo seja apenas isso De fato diz A Q a alma natildeo
possui uma natureza ou potecircncia uacutenica (οὐδὲ τῶν μονήρη τινὰ φύσιν ἢ δύναμιν ἐχόντων) mas
certa natureza dupla (διπλῆς τινος φύσεως)
A duplicidade da alma consiste em ter sido dotada pelo administrador de todas as
coisas (ὁ τὸ σύπαν διοικῶν) de uma substacircncia divina na qual habita a razatildeo (λoacuteγος) e de
uma substacircncia mundana ou irracional (ἄλογος) na qual habita o desejo (ἐπιθυμία) As duas
naturezas ou potecircncias satildeo necessaacuterias para que a alma atue sobre o mundo corpoacutereo e essa
natureza duacuteplice sem a qual ela seria ineficaz pode-se definir assim a alma soacute eacute ativa em
relaccedilatildeo ao mundo corpoacutereo na medida em que eacute passiva em relaccedilatildeo ao mundo racional Ora a
muacutesica diz Quintiliano no iniacutecio do cap3 do livro II estaacute para a alma irracional assim como a
filosofia estaacute para a alma racional Desse modo ao submeter-se agrave muacutesica a alma irracional
submete-se igualmente agrave razatildeo pois a muacutesica eacute no fundo razatildeo transformada em mateacuteria
sensiacutevel tal como a alma mesma
Isso poreacutem natildeo eacute tudo Entre as duas naturezas da alma haacute um ponto intermeacutedio
que ao submeter o desejo agrave razatildeo confere unidade agraves duas metades Esse ponto intermeacutedio eacute
a memoacuteria (μνήμη) Memoacuteria eacute claro das belezas eternas do mundo suprassensiacutevel5 Desse
modo o dualismo aniacutemico resolve-se num elemento intermediaacuterio resultante da interaccedilatildeo
entre os polos extremos com os quais forma afinal uma triacuteade
Paralelamente a alma (tomada como unidade natildeo mais segundo a interaccedilatildeo das
suas partes) sendo a um soacute tempo ativa (frente ao mundo sensiacutevel) e passiva (perante o
mundo racional) eacute ela proacutepria um ponto intermeacutedio resultante da interaccedilatildeo entre polos
opostos com os quais por sua vez tambeacutem compotildee uma triacuteade As partes e o todo o
microcosmo e macrocosmo assim espelham-se mutuamente
consideraccedilatildeo e estimarsquo rdquo CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-
kagathiacutea Classica (Brasil) 2412 73-85 2011 5 Mesmo se desconsiderarmos esse elemento doutrinal platocircnico a memoacuteria seria ainda uma bela e eficaz
imagem da uniatildeo entre o corpoacutereo e o incorpoacutereo pois a memoacuteria eacute uma operaccedilatildeo estritamente mental cujos
objetos no entanto satildeo todos oriundos da experiecircncia sensiacutevel
15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
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necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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15
Mas a porccedilatildeo desejante (ou irracional) da alma possui igualmente as suas partes
A Q as denomina desejante (ἐπιθυμητική) a qual tende ao relaxamento (ou relaxaccedilatildeo
indulgecircncia) excessivo e impulsiva (θυμικὴ) que tende a uma tensatildeo igualmente desmedida
Fica claro desde logo embora Quintiliano reserve esse comentaacuterio para mais adiante que as
duas porccedilotildees da alma irracional formam uma oposiccedilatildeo do tipo ativo-passivo ou masculino-
feminino restando saber qual seria nesse caso o ponto intermeacutedio
O ponto intermeacutedio satildeo dois por um lado (e acima) a proacutepria porccedilatildeo racional da
alma que eacute inteiriccedila e natildeo se constitui de partes por outro (e abaixo) as paixotildees que resultam
(como A Q descreveraacute a seguir) da mescla entre as potecircncias ativa e passiva da alma As
triacuteades formadas portanto satildeo tambeacutem duas mas de tipos diferentes numa o ponto
intermeacutedio estaacute hierarquicamente acima dos termos opostos noutra hierarquicamente abaixo
A razatildeo da eficaacutecia persuasiva da muacutesica sobre a alma irracional reside
argumenta Quintiliano nas peculiaridades do seu aparato mimeacutetico que lhe permite produzir
a imitaccedilatildeo com mateacuteria similar agrave do objeto imitado Curiosamente esse aparato mimeacutetico eacute
tambeacutem triaacutedico pois a muacutesica imita6 os eacutethe e as paixotildees da alma com os conceitos
(ἐννοίαις) as palavras com as harmonias e a modulaccedilatildeo da voz (ἁρμονίαις καὶ φωνῆς
πλάσει) e a accedilatildeo com os ritmos e o movimento do corpo (ῥυθμοῖς καὶ κινήσει σώματος) A
muacutesica portanto abarca o universo inteiro da accedilatildeo humana desde o seu nascedouro (nos
movimentos afetivos e intelectuais da alma) ateacute sua exteriorizaccedilatildeo em forma de atos e
palavras
Ora sendo a muacutesica sobretudo uma terapia das paixotildees da alma (παθῶν ψυχικῶν
θεραπεία) cabe ao conceito (que siacutentese do conteuacutedo racional a transmitir e da impressatildeo
esteacutetico-emocional a causar estaacute relacionado ao movimentos internos da alma de onde brotam
as accedilotildees) o papel de guiar os elementos do meacutelos perfeito (dicccedilatildeo harmonia e ritmo) O cap8
e os seguintes a comeccedilar pelo trecho acima citado satildeo dedicados justamente a explicar
primeiro como se geram as paixotildees da alma e depois como a muacutesica eacute capaz de imitaacute-las e
de nelas intervir
De iniacutecio A Q trata da dualidade masculino-feminino como uma particularidade
do mundo corpoacutereo a que a alma tem de se submeter Reforccedila o caraacuteter especificamente
corpoacutereo dessa dualidade o fato de que ela natildeo se manifeste apenas em corpos animados (οὐκ
ἐν ἐμψύχοις μόνοις) mas tambeacutem em corpos governados por uma soacute natureza (ἀλλὰ κἀν τοῖς
φύσει μόνῃ διοικουμένοις) Essa observaccedilatildeo parece decorrer da necessidade de distinguir a jaacute
6 II 438-40
16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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16
mencionada duplicidade da alma (razatildeo por que seria natural esperar que somente os corpos
animados estivessem submetidos agrave dualidade a dualidade ao menos entre corpo e alma) do
dualismo propriamente corpoacutereo Em todo caso embora tipicamente corpoacuterea a dualidade
masculino-feminino tambeacutem aqui natildeo se restringe ao fenocircmeno bioloacutegico da diferenciaccedilatildeo
sexual Aleacutem disso essa dualidade natildeo corresponde exatamente a duas espeacutecies opostas de
seres mas a dois polos de um eixo que atravessa de ponta a ponta o mundo corpoacutereo
alcanccedilando portanto e internamente todos os seres nele existentes Desse modo cada ente
particular pode ser tomado como uma resultante da interaccedilatildeo entre os dois princiacutepios em
relaccedilatildeo aos quais ele estabelece por sua vez um ponto intermeacutedio isto eacute uma mescla E eacute
precisamente na produccedilatildeo dessa mescla que o dualismo aniacutemico e o dualismo corpoacutereo se
articulam (II 816-28)
οὐ μόνον οὖν ἐφίεται σώματος ἀλλὰ καὶ τούτου ποιοῦ τινος ἢ γὰρ ἄρρεν
ἠγάπηκεν ἢ θῆλυ καὶ τούτων ὁτὲ μὲν ἄκρατον θάτερον ὁτὲ δὲ ἐξ ἀμφοῖν
ἔχον δεινήν τινα καὶ ὄντως ἄτοπον μίξιν αὐτίκα κἂν μὴ φύσει τοῦ
τοιούτου τύχωσι σώματος αὐταὶ ταῖς σφετέραις τροπαῖς μετερρύθμισάν
τε καὶ ἐς τὸ αὑταῖς ὅμοιον μετέστησαν οὕτως ἐν μὲν ἄρρεσι θῆλυς
ἐπιτρέχει μορφή δι ἣν καὶ ὁ βίος ὦπται τοιοῦτος ἐν δὲ γυναιξὶν ἀνδρεῖον
εἶδος ᾧ καὶ τὸ ἦθος ὅμοιον τεκμαιρόμεθα καὶ ἄνδρες μὴν ἀγένειοι καὶ
γενειάσκουσι γυναῖκες καί τις ἄρρην ἔβλεψεν ὑγρὸν καὶ γυναῖκες γοργὸν
προσεῖδον ὥστε καὶ τῶν ἠθῶν ἕκαστα θηράσεις ἑκάστῃ μορφῇ συνῳδά
A alma portanto natildeo soacute deseja um corpo mas certo tipo de corpo um
corpo masculino ou um corpo feminino Deseja dentre esses agraves vezes um
corpo puro de um tipo ou de outro agraves vezes um corpo que possua uma
curiosa e paradoxal mistura de ambos Assim quando natildeo conseguem
obter naturalmente esse determinado corpo as almas o remodelam
mediante torneios e o transformam em algo semelhante a si mesmas
Dessa forma sobre um corpo masculino recai uma forma feminina (razatildeo
por que tambeacutem sua vida assim se mostra) ou ainda sobre um corpo
feminino uma forma masculina no que tambeacutem assinalamos um eacutethos
similar Haacute homens imberbes e mulheres barbadas homens de lacircnguido
olhar e mulheres com mirada de Goacutergona de modo que cada eacutethos veraacutes
corresponde a uma fisionomia
Uma vez estabelecido o princiacutepio de que o dualismo aniacutemico de algum modo rege
o dualismo corpoacutereo A Q sente-se agrave vontade para tratar de um nos termos do outro
recorrendo para isso aos termos masculino e feminino (II 828-39)
ἐκ δὲ τῆς πρὸς τὸ ἄρρεν ἢ θῆλυ προσπαθείας ἢ πρὸς ἀμφότερον τὰ πάθη
συνίσταται περὶ ψυχήν τὸ μὲν οὖν θῆλυ λίαν ἀνειμένον ᾧ συνᾴδει τὸ
ἐπιθυμητικόν τὸ δ ἄρρεν σφοδρόν τε καὶ δραστήριον ᾧ τὸ θυμικὸν
ὡμοίωται περὶ μὲν οὖν τὸ θῆλυ ψυχῆς τε μέρος καὶ ἀνθρώπων γένος
πλεονάζουσι λῦπαι τε καὶ ἡδοναί περὶ δὲ τὸ ἄρρεν ὀργὴ καὶ θράσος
πάλιν δὲ τούτων γίνονται συζυγίαι λυπῶν τε πρὸς ἡδονὰς καὶ ὀργῆς πρὸς
θράσος καὶ θράσους πρὸς ἡδονὴν καὶ λύπην καὶ ὀργῆς αὖθις πρὸς
ἑκάτερον καὶ πάλιν ἑκάστου πρός τε ἓν καὶ πρὸς πλείω μίξεις καὶ μυρίας
ἄν τις ἐκ τούτων εὕροι τῶν παθῶν εἰκόνας ἐν ποικιλίᾳ θεωρουμένων
17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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17
Conforme o apego ao masculino ao feminino ou a ambos estabelecem-se
as paixotildees da alma O feminino eacute demasiado indulgente e com ele
concorda a alma desejante ao passo que o masculino semelhante agrave alma
impulsiva eacute veemente e ativo Assim tanto na parte feminina da alma
quanto na parcela feminina da humanidade abundam os prazeres e as
dores ao passo que na masculina a ira e a coragem E uma vez mais
datildeo-se combinaccedilotildees entre essas paixotildees das dores com os prazeres da ira
com a coragem da coragem com o prazer e a dor ou da ira novamente
com as demais e ainda de uma com outra qualquer ou com vaacuterias A
partir dessas seria possiacutevel encontrar uma miriacuteade de imagens das
paixotildees em vista da sua variedade
Se a alma por um lado submete o mundo corpoacutereo este por sua vez a espelha
macrocosmicamente nela interferindo mediante interaccedilotildees simpaacuteticas a exemplo do que
ocorre na muacutesica No entanto natildeo satildeo apenas as disposiccedilotildees passivas ou paixotildees que
estabelecem pontes entre a alma e a realidade corpoacuterea Tambeacutem as disposiccedilotildees ativas e
intelectivas estatildeo submetidas ao dualismo masculino-feminino (II 848-69)
ἔστι γὰρ πρῶτον μὲν ἐν ὁρατοῖς ἑκατέραν ἰδεῖν τὴν φύσιν τὸ μὲν
ἀνθηρόν τε καὶ ἐς ὡραϊσμὸν προςφυὲς χρῶμά τε καὶ σχῆμα διαιροῦντα
θηλύτητι τὸ δὲ στυγνόν τε καὶ ἐς σύννοιαν ἄγον ἀρρενότητι πάλιν δὲ ἐν
ἀκοαῖς τοὺς μὲν λείους καὶ προσηνεῖς ἤχους ἐς τὸ θῆλυ τοὺς δὲ
τραχυτέρους εἰς τοὐναντίον ἁρμόττοντα καί ἵνα μὴ τὰ καθ ἕκαστον
λέγω κοινῶς περὶ πάντων ἀποφαντέον ὡς ὅσα μὲν τῶν αἰσθητῶν ἔς τε
ἡδονὴν δελεάζει καὶ ἠρέμα διαχεῖν τὴν γνώμην πέφυκε ταῦτα εἰς τὸ θῆλυ
κριτέον ὅσα δὲ κινεῖ τε εἰς σύννοιαν καὶ ἐγείρει τὸ δραστήριον ταῦτα εἰς
τὴν ἄρρενος μοῖραν ἀπονεμητέον τὰ δέ τοι μηδέτερον ἢ κατὰ μίξιν ἄμφω
δρῶντα ταῦτα τῶν μέσων ἀποφαντέον κατὰ δὴ ταῦτα καὶ περὶ ἐκείνων
λέγωμεν αἳ λόγῳ μέν εἰσι καταληπταὶ τέχναι τε καὶ ἀρεταὶ καὶ ἐπιστῆμαι
ἐκ δὲ τῆς τῶν ὑλῶν ποιότητος περὶ ἃς ἑκάστη τευτάζει τὰς πρὸς ἀλλήλας
διαφορὰς καὶ ὁμοιότητας εἰλήχασιν αἵ τε ἀρεταὶ πρὸς τὰς ἀρετὰς αἵ τε
ἐπιστῆμαι πρὸς τὰς ἐπιστήμας κακίαι τε αὖ πρὸς κακίας καὶ
ἀνεπιστημοσύναι πρὸς ἀμαθίας πάλιν δὲ ἀρεταὶ πρὸς κακίας ἢ ἐπιστήμας
ἢ ἀγνωσίας κακίαι τε αὖ πρὸς τὰς εἰρημένας ποικίλης τινὸς καὶ τῆς κατὰ
ταῦτα πλοκῆς τε οὔσης καὶ μίξεως
A princiacutepio eacute de fato possiacutevel identificar nos objetos visiacuteveis cada
natureza separadamente atribuindo o florido e as formas e cores
decorativas ao feminino e as sombrias e que conduzem agrave reflexatildeo ao
masculino e o mesmo para as coisas audiacuteveis relacionando os sons
suaves e doces ao feminino e os mais aacutesperos ao seu oposto E para que
eu natildeo entre aqui em detalhes eacute preciso dizer que no geral as coisas
sensiacuteveis que induzem ao prazer e que natural e docemente dissolvem o
juiacutezo estas se devem considerar femininas ao passo que aquelas que nos
levam agrave reflexatildeo ou promovem a accedilatildeo se devem designar masculinas Jaacute
aquelas que natildeo atuam nem de uma nem de outra maneira ou o faccedilam
segundo uma mescla de ambas estas se hatildeo de chamar intermediaacuterias
Disso decorre que falemos nos mesmos termos a respeito tambeacutem das
coisas apreendidas pela razatildeo ndash as artes as virtudes e as ciecircncias ndash as
quais devem suas semelhanccedilas e diferenccedilas muacutetuas aos assuntos de que se
ocupam as virtudes no tocante agraves virtudes e as ciecircncias no tocante agraves
ciecircncias e por seu turno os viacutecios no que diz respeito aos viacutecios e a
incultura com respeito agraves ignoracircncias e ainda virtudes com respeito aos
viacutecios ciecircncias ou ignoracircncias e os viacutecios com respeito estes todos
sendo possiacutevel certa combinaccedilatildeo e mescla dessas coisas
18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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18
Cabe observar como A Q ao traccedilar um perfil do masculino e do feminino natildeo
oferece uma lista de entes individuais mas um elenco geneacuterico de qualidades sensiacuteveis das
quais ele passa sem maior detenccedila para o toacutepico das naturezas intermediaacuterias em que estatildeo
incluiacutedas as artes as ciecircncias e as virtudes A menccedilatildeo agraves artes ciecircncias e virtudes eacute
importante neste momento porque uma vez explicado o processo pelo qual atraveacutes de
mesclas dos princiacutepios masculino e feminino satildeo engendradas as paixotildees da alma
Quintiliano deve agora retomar o fio da exposiccedilatildeo e mostrar como a muacutesica por meio de
conceitos palavras ritmos e melodias eacute capaz de imitar essas mesmas paixotildees virtudes
viacutecios etc comunicando agrave alma o respectivo eacutethos Eacute o que faraacute no restante do livro II
23 Os conceitos
No iniacutecio do cap9 A Q retoma o tema dos conceitos com o qual tinha
concluiacutedo o cap7 antes da relativamente longa mas necessaacuteria digressatildeo acerca das paixotildees
da alma O propoacutesito do autor eacute demonstrar como um poeta eacute capaz de transmitir os conceitos
que deseje mediante o emprego de certos procedimentos retoacutericos A Q utiliza exemplos
extraiacutedos de Homero nos quais aponta como o poeta mesclando traccedilos masculinos e
femininos consegue traduzir em palavras uma gama complexa de impressotildees desde
sensaccedilotildees fiacutesicas como rapidez suavidade ou agitaccedilatildeo ateacute caracteres ou julgamentos morais
Esse conceitos (ἐννοήματα) compostos de traccedilos masculinos e femininos ndash conceitos que por
sua vez entram na composiccedilatildeo eacutetica das frases e dos discursos ndash A Q os compara aos
extratos dos quais satildeo feitos os remeacutedios7 e conclui (II 103-18)
τὰ μὲν οὖν ἐς ἄνεσιν ἄγοντα καὶ φαιδρότητα τὸν ἀφελῆ τε καὶ ἡδὺν λόγον
ἐγέννησε τὰ δὲ τὸ σύννουν κινοῦντα καὶ τὸ ὁρμητικὸν τὸν πολιτικόν τε
καὶ ἀγωνιστικὸν ἐξέφηνεν τοῦ μὲν οὖν πολιτικοῦ κατὰ τὸ ἄρρεν τὰ εἴδη
συντομίαι τε καὶ βραχύτητες καὶ ἀξίωμα καὶ μεγαλοπρέπεια τραχύτης τε
καὶ σφοδρότης καὶ μέγεθος καὶ μεστότης ἅπερ τήν τε φυσικὴν ἐμφαίνει
μεγαλόνοιαν τοῦ ἄρρενος μέγεθός τε σώματος καὶ ἁδροτῆτα διανοίας καὶ
τὸ ἐς τὰ μέγιστα τῶν ἔργων ἀνυτικὸν τάχος τοῦ δὲ ἀφελοῦς ἀραιότης
ἁβρότης κάλλη τε καὶ γλυκύτητες ὧν τὰ μὲν τὸ ἀνειμένον τοῦ θήλεος τὰ
δὲ τὸ ἐς ὡραϊσμὸν διαδείκνυσιν ἐπτοημένον γένοιτο δ ἄν τι καὶ τῇ
τούτων πλοκῇ οἷον ἡ δριμύτης τὸ μὲν τάχος ὡς ἄρρεν τὸ δὲ
μικροπρεπὲς ὡς ἐναντίον ἐπιφαίνουσα ἥ τ ἐπιμέλεια τὸ μὲν γλίσχρον
ἔχουσα κατὰ τὸ θῆλυ τὸ δὲ τῆς φιλοπονίας παρεκτεταμένον ὡς ἄρρεν
Assim os conceitos que levam agrave descontraccedilatildeo e agrave alegria produzem uma
frase despojada e doce enquanto os conceitos que mobilizam as partes
intelectiva e impulsiva produzem a frase contenciosa e poliacutetica Os traccedilos
da frase poliacutetica relacionados ao masculino satildeo concisatildeo brevidade
dignidade e elevaccedilatildeo assim como aspereza forccedila grandeza e
completude traccedilos que mostram a grandiosidade natural do masculino a
7 Uma comparaccedilatildeo semelhante jaacute tinha sido feita em II 47-12
19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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19
magnitude do corpo o vigor mental e a eficaz rapidez para os maiores
trabalhos Jaacute os da frase despojada satildeo porosidade delicadeza beleza e
doccedilura dos quais uns mostram a descontraccedilatildeo proacutepria ao feminino outros
a paixatildeo pelo adorno Da combinaccedilatildeo desses traccedilos pode surgir outro a
exemplo da perspicaacutecia que manifesta a rapidez como o masculino e
atenccedilatildeo ao detalhe como o feminino ou o cuidado que tem a tenacidade
como traccedilo feminino e o prolongado gosto pelo esforccedilo como traccedilo
masculino
Talvez valha a pena examinar alguns desses traccedilos com mais atenccedilatildeo Sem
duacutevida a associaccedilatildeo de muitos deles ao masculino ou ao feminino eacute de certa forma previsiacutevel
Jaacute outras associaccedilotildees (sem a exclusatildeo das anteriores) poderiam justificar para a sensibilidade
contemporacircnea uma acusaccedilatildeo de sexismo No entanto eacute preciso lembrar que as noccedilotildees de
masculino e feminino como A Q bem frisou no cap08 natildeo correspondem a homem e
mulher e que no mais eacute justamente o estatuto loacutegico e ontoloacutegico desses conceitos que nos
interessa aqui compreender
Feita essa ressalva atentemos para uma curiosa caracteriacutestica associada agrave frase
feminina porosidade ou ldquoἀραιότηςrdquo termo que Colomer e Gil (1996 p140) traduzem por
ldquoligerezardquo (ligeireza agilidade prontidatildeo ou ateacute leviandade) e Mathiesen (1983 p137) por
ldquoopennessrdquo (abertura franqueza sinceridade) O leacutexico Liddell-Scott-Jones define ldquoἀραιότηςrdquo
como ldquolooseness of substance porousness rarityrdquo por oposiccedilatildeo a ldquoπυκνότηςrdquo que significa
ldquocloseness thickness denseness solidityrdquo A noccedilatildeo que a palavra veicula eacute a de um estado de
desagregaccedilatildeo que abrindo flancos torna a substacircncia receptiva ao influxo externo Esse traccedilo
remete necessariamente agrave associaccedilatildeo entre o feminino e a mateacuteria cuja natureza consiste na
disposiccedilatildeo receptiva que manteacutem em relaccedilatildeo agrave forma
Outro traccedilo associado ao feminino eacute a tenacidade ldquoγλίσχρονrdquo adjetivo que
poderia tambeacutem ser traduzido por ldquoinsistenterdquo ou ldquoobstinadordquo mas que verti por tenacidade
seguindo aqui o exemplo de Mathiesen pelos seguintes motivos ldquoΓλίσχρονrdquo eacute uma
caracteriacutestica que ainda segundo o LSJ opotildee-se a ldquoψαθυρόςrdquo que significa friaacutevel
quebradiccedilo A princiacutepio essa associaccedilatildeo pareceria contradizer o exemplo anterior em que a
porosidade estava relacionada ao feminino e solidez ao masculino Natildeo haacute na verdade
contradiccedilatildeo alguma
No acircmbito do estudo da resistecircncia dos materiais a tenacidade eacute definida como a
capacidade que tem uma substacircncia de absorver impacto Materiais friaacuteveis satildeo precisamente
aqueles que ocupam a mais baixa posiccedilatildeo na escala de tenacidade Jaacute os materiais que ocupam
o topo da escala satildeo chamados flexiacuteveis ou elaacutesticos os quais resistem ao impacto mediante
uma deformaccedilatildeo Em outras palavras eacute virtude de sua propriedade receptiva que esses
materiais se tornam resistentes isto eacute tenazes
20
Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
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QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis
Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996
______________________ On Music in three books Translation introduction commentary
and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983
______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys
Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963
REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011
ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras
morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237
ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo
Ibrasa 1990
WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
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Jaacute a ldquoporosidaderdquo ou ldquoaberturardquo da qual falaacutevamos acima diz respeito a outro
tipo de propriedade a dureza que eacute resistecircncia agrave penetraccedilatildeo indentaccedilatildeo ou risco Materiais
duros como o diamante por exemplo podem ser muito pouco tenazes (a estrutura do
diamante eacute bastante compacta e densa ndash isto eacute ldquoπυκνότηςrdquo ndash a ponto de ausecircncia de eleacutetrons
livres impossibilitar a condutibilidade eleacutetrica mas ele eacute incapaz de sobreviver a uma
martelada) Como A Q com frequecircncia associa o masculino agrave dureza considerei conveniente
tomar expliacutecita a relaccedilatildeo inversa em que o feminino estaacute associado agrave tenacidade
Quintiliano encerra o capiacutetulo com exemplos ainda homeacutericos que ilustram a
accedilatildeo psicofiacutesica e as virtudes pedagoacutegicas dos conceitos A questatildeo do dualismo continua
presente embora de modo tangencial e sem acreacutescimos teoacutericos ou descritivos relevantes No
capiacutetulo seguinte o tema voltaraacute ao primeiro plano e A Q apoacutes ter demonstrado como a
dualidade opera no plano macro das frases palavras e ideias passaraacute entatildeo ao microcosmo do
discurso aos elementos (στοιχείων) miacutenimos as letras do alfabeto
24 As letras
Quintiliano retoma (II 114-31) o assunto afirmando que portanto
καὶ τοίνυν τὰς τούτων ἰδιότητας ἐς τὴν ἐναντιότητα τῶν προειρημένων
γενῶν εὐστόχως ἀνακτέον τούτων δὴ τὰ μὲν λειοτέρους ἀποτελεῖ τοὺς
φθόγγους ὡς τὰ φωνήεντα τὰ δὲ τραχεῖς ὡς τὰ ἄφωνα τὰ δὲ μεταξύ ὡς
τὰ ἡμίφωνα καὶ τῶν φωνηέντων τὰ μὲν ἀκώλυτον προφερόμενα τὸν ἦχον
ltεὐφωνότεραgt διὸ καὶ σεμνότερα πέφυκεν ὡς τὰ μακρά τὰ δεὐθέως
περιγράφοντα ἧττον ὡς τὰ βραχέα τὰ δὲ μεταξὺ κατὰ τὴν τῶν χρόνων
ποιότητα καὶ τῆς εὐφωνίας μετείληφεν τῶν ἡμιφώνων τὰ μὲν ἐξ ἄκρων
τῶν χειλῶν συριγμὸν προϊέντα στενὸν τραχύτερα ὡς τὰ διπλᾶ καὶ τὸ
ἰδιάζον τὰ δὲ λοιπὰ εὐφωνότερα καὶ τούτων τὰ μὲν τῆς γλώττης τό τε
πνεῦμα καὶ τὸ στόμα πληττούσης ἰδίως ltὡςgt τὸ ltλgt καὶ τὸ ltρgt τὰ δ
ἀποκλειομένων τῶν πνευματικῶν πόρων ἢ καὶ διὰ ῥινὸς προχωροῦντα
μόνης ἔλαττον ὡς τὸ ltμgt καὶ τὸ ltνgt πάλιν τῶν ἀφώνων τὰ μὲν διὰ τῶν
χειλῶν ἠχεῖται μόνων τοῦ πνεύματος τὴν ἔμφραξιν αὐτῶν κατὰ μέσον
ἐκβιαζομένου ὡς τὸ ltβgt καὶ τὰ τούτου περιεκτικά τὰ δὲ τῆς μὲν παρειᾶς
ὑποσαιρούσης τοῦ δὲ πνεύματος ῥαγδαίως καὶ εἰς πλάτος προϊεμένου ὡς
τὸ ltγgt καὶ τὰ ἑκατέρωσε ἄκρα τὰ δὲ τῶν μὲν ὀδόντων ἐπ ὀλίγον
διαζευχθέντων τῆς δὲ γλώττης οἱονεὶ σφενδονώσης κατὰ μέσον ἀθρόως
τὸ πνεῦμα ὡς τὸ ltτgt καὶ ltθgt καὶ τὸ τούτων μέσον τούτων δὲ τὰ μὲν
ἠρεμαίως προάγοντα τὸν ἀέρα κἀκ τῶν περὶ τοὺς ὀδόντας τόπων
κέκληταί τε ψιλὰ καί ἐστιν εὐφωνότερα τὰ δ ἔνδοθεν ἐκ φάρυγγος
ὠνόμασται δασέα καί ἐστι λίαν τραχέα τὰ δ ἐκ μέσου τοῦ φωνητικοῦ
τόπου μέσα τε εἴρηται καὶ τῆς ἀμφοτέρων εἴληχε φύσεως
eacute preciso atribuir as particularidades das letras agrave jaacute mencionada oposiccedilatildeo
de gecircneros Dentre elas umas realizam sons mais suaves como as vogais
outras sons aacutesperos como as mudas e outras sons intermediaacuterios como
as semivogais Dentre as vogais as que proferem um som desimpedido
satildeo mais eufocircnicas e por isso mais nobres como as longas jaacute as que
limitam de pronto o som satildeo menos nobres a exemplo das breves
enquanto as intermediaacuterias participam da eufonia conforme sua qualidade
21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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21
temporal Dentre as semivogais as que emitem um sibilo desde o topo
dos laacutebios satildeo mais aacutesperas como as duplas e a independente ao passo
que as restantes satildeo mais eufocircnicas Destas uacuteltimas satildeo particularmente
eufocircnicas as que soam quando a liacutengua golpeia o ar e a boca como o
lambda e o rocirc enquanto as que soam com as saiacutedas de ar fechadas ou soacute
atraveacutes do nariz como o muuml e o nuuml jaacute o satildeo menos Quanto agraves mudas por
sua vez umas satildeo produzidas apenas com os laacutebios quando o ar forccedila a
passagem por entre eles como eacute o caso do beta e das letras circundantes
outras como o gama e as letras que lhe ocupam os flancos produzem-se
com as bochechas e os laacutebios separados numa forte e larga emissatildeo de ar
jaacute outras satildeo produzidas com os dentes um pouco separados com a liacutengua
a lanccedilar o ar pelo centro como o tau o theta e a letra que estaacute no meio
das duas Das mudas todas as que emitem o ar suavemente desde a zona
ao redor dos dentes satildeo chamadas simples e satildeo mais eufocircnicas as que o
emitem desde dentro da garganta chamam-se aspiradas e satildeo muito
aacutesperas jaacute as que o fazem desde o meio do trato vocal chamam-se meacutedias
e possuem ambas as naturezas
A dualidade de gecircneros atua no acircmbito das letras a partir de uma oposiccedilatildeo
primeira entre vogais (que satildeo suaves e logo femininas) e mudas (que aacutesperas satildeo por isso
masculinas) Entre um polo e outro haacute um ponto intermediaacuterio as semivogais
Eacute preciso atentar para o fato de que com exceccedilatildeo das vogais os termos da
classificaccedilatildeo de Quintiliano natildeo significam o mesmo que a princiacutepio significariam
espontaneamente para noacutes ldquoMudasrdquo natildeo significam aqui ldquoconsoantesrdquo mas uma subdivisatildeo
das consoantes categoria esta que inclui as semivogais ldquoMudasrdquo tambeacutem natildeo designam as
consoantes ditas surdas (ou desvozeadas) pois como se vecirc ele elenca entre as mudas tanto
consoantes vozeadas quanto desvozeadas Na verdade o termo proacuteprio para designar as
consoantes ldquoσύμφοναrdquo sequer eacute utilizado por Quintiliano embora estivesse incorporado agrave
nomenclatura gramatical pelo menos desde Dioniacutesio Traacutecio (circa II aC) que o emprega na
sua τέχνή γραμματική com a qual Quintiliano estaacute de acordo em tudo o mais no que diz
respeito agraves letras8
As noccedilotildees que Quintiliano introduz acerca das vogais embora sumaacuterias satildeo
claras e natildeo apresentam dificuldade Estrategicamente ele natildeo se deteacutem muito nelas jaacute que
pretende tratar exaustivamente do assunto mais adiante no que lhe seguiremos o exemplo
Cabe poreacutem observar que o criteacuterio empregado neste momento para a classificaccedilatildeo das
vogais ndash o maior ou menor desimpedimento do som que profere ou seja a capacidade de
assumir materialmente a forma da quantidade contiacutenua por oposiccedilatildeo agrave quantidade discreta as
quais satildeo subdivisotildees da categoria aristoteacutelica da quantidade ndash rege igualmente o sistema das
letras no seu conjunto e em cada uma de suas partes
8 Cf Chapanski 2003 p 22-24
22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
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fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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22
Assim intermediaacuterias entre o extenso e o discreto as semivogais satildeo consoantes
que apresentam certo caraacuteter de continuidade As mais contiacutenuas e eufocircnicas logo mais
proacuteximas das vogais satildeo o lambda e o rocirc O muuml e o nuuml satildeo semivogais intermediaacuterias
enquanto o sigma e as consoantes duplas (dzeta xi e psi) ocupam o outro extremo mais
proacuteximas das mudas O sistema das semivogais resulta assim perfeitamente simeacutetrico em
relaccedilatildeo ao conjunto das letras parte de uma polarizaccedilatildeo inicial que se desdobra numa triacuteade
As mudas satildeo tambeacutem subdivididas triadicamente conforme o ponto de
articulaccedilatildeo e podem ser labiais dentais ou guturais Cada uma dessas subdivisotildees por sua
vez eacute composta por trecircs elementos duas letras que se opotildee e uma terceira que eacute o seu ponto
meacutedio As labiais organizadas do masculino para o feminino satildeo pi beta e phi As dentais
tau delta e theta As guturais capa gama e khi
Perceba-se como coerentemente A Q estabelece as consoantes sonoras como
ponto intermeacutedio entre as aspiradas e as surdas A aspiraccedilatildeo eacute sem duacutevida um traccedilo contiacutenuo
que aproxima as aspiradas das consoantes (ou semivogais nos termos de A Q) duplas Jaacute as
surdas com sua oclusatildeo seca satildeo a expressatildeo maacutexima da natureza consonantal que consiste
em obstruir a passagem do ar e portanto introduzir no continuum vocaacutelico um princiacutepio de
separaccedilatildeo (ou diferenciaccedilatildeo formal) Dessa uniatildeo vogal-consoante surgem as mesclas
silaacutebicas as quais para clarificar a analogia de Quintiliano (e recorrendo a Aristoacuteteles)
seriam um syacutenolon em que as vogais ocupam o polo substancial (material ou feminino) e as
consoantes o polo essencial (formal ou masculino)
AQ encerra o capiacutetulo sem voltar ao tema das vogais adiado para o capiacutetulo
seguinte Esse adiamento ocorre em funccedilatildeo da necessidade de articular o dualismo das vogais
(empregadas no solfejo) como o dualismo das notas de modo natildeo somente a justificar a
doutrina do eacutethos mas tambeacutem a demonstrar como o eacutethos deriva por sua vez do mesmo
princiacutepio dualista
25 As vogais e o solfejo
Quintiliano inicia o cap12 relembrando a diferenccedila de natureza entre o ritmo e o
meacutelos (II 126-10)
Ὅνπερ οὖν ἐλέγομεν ἐν τοῖς ἔμπροσθεν ῥυθμοῦ πρὸς ἁρμονίαν εἶναι
λόγον οἷον ἄρρενος πρὸς θῆλυ τουτονὶ καὶ νῦν ἐκκαλυπτέον ὅτι ἄρα
τούτων αἱ μὲν ἀκρότητες κατ ἐναντιότητα τοῦ ποιοῦ θεωροῦνται τὰ δὲ
μεταξὺ τῆς ἀμφοτέρων ἕξεως μετέχει
23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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23
O que dissemos anteriormente sobre haver um logos entre o ritmo e a
harmonia tal como o que existe entre o masculino e o feminino eis o que
se haacute de desvelar agora pois os ritmos e harmonias extremos satildeo
percebidos conforme a oposiccedilatildeo qualitativa enquanto as harmonias e
ritmos intermediaacuterios participam da condiccedilatildeo de ambos
Note-se para comeccedilar que o termo ldquoharmoniardquo eacute aqui empregado como sinocircnimo
de meacutelos sobreposiccedilatildeo terminoloacutegica que natildeo era de fato incomum9 No cap8 do livro I
Quintiliano havia utilizado o termo ldquoharmoniardquo para designar as diversas espeacutecies de
disposiccedilatildeo dos intervalos na escala (espeacutecie doacuterica frigia etc) Mas a organizaccedilatildeo intervalar eacute
apenas parte do significado dessas harmoniacuteai Como lembra Rocha (2010 p 122) uma
harmonia implicava igualmente um timbre uma intensidade e ateacute mesmo um ritmo
especiacuteficos Isso de certo modo esclarece a advertecircncia que faz Quintiliano a respeito das
mesclas possiacuteveis entre ritmo e melodia as quais natildeo poderiam eacute claro corresponder
perfeitamente nem a nenhuma dessas categorias Essa observaccedilatildeo aleacutem do mais tem o
objetivo de evitar ou corrigir um equiacutevoco que poderia induzir o leitor a tomar o masculino e
o feminino como classes de seres ou objetos e natildeo como termos correlativos Logo a seguir
encerrada a advertecircncia ele continua (II 1218-23)
Ἔστιν οὖν κἀπὶ τῶν φθόγγων αὕτη πρὸς ἀλλήλους ἡ διαφορὰ ἣν ἐν τοῖς
κατ ἀρχὰς κατὰ τὸ ἦθος ὡριζόμεθα οἱ μὲν γὰρ στερεοί τέ εἰσι καὶ
ἄρρενες οἱ δὲ ἀνειμένοι καὶ θηλύτεροι καὶ τούτων ἕτεροι μεταξύ
μεμιγμένοι μὲν ἐξ ἀμφοῖν θατέρου δὲ τῶν γενῶν πλέον ἢ ἔλαττον
μετεσχηκότες
A mesma diferenccedila que no iniacutecio definimos no tocante ao eacutethos existe
tambeacutem na relaccedilatildeo dos sons uns com os outros pois alguns satildeo soacutelidos e
masculinos outros descontraiacutedos e mais femininos e alguns ainda satildeo
intermediaacuterios uma mistura de ambos participando de cada um dos
gecircneros com maior ou menor intensidade
No cap6 do livro I Quintiliano havia elencado uma seacuterie de diferenccedilas entre os sons e dentre
elas a diferenccedila no tocante ao eacutethos Naquele ponto (I 679-81) Quintiliano tratou dessa
diferenccedila em termos de altura tonal mas agora remeteraacute essa diferenccedila agrave oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino (II 131-35)
Τῆς δὲ μελῳδίας ἔν τε ταῖς ᾠδαῖς κἀν τοῖς κώλοις ἐκ τῆς ὁμοιότητος τῆς
πρὸς τοὺς ὀργανικοὺς ἤχους λαμβανομένης τὰ τῶν στοιχείων ἁρμόττοντα
πρὸς τὴν τῶν μελῶν ἐκφώνησιν ἐπελεξάμεθα ἑπτὰ γοῦν τῶν φωνηέντων
ὄντων ἔν τε τοῖς μακροῖς καὶ τοῖς βραχέσι τὰς προειρημένας διαφορὰς
ὁρῶμεν καθόλου γὰρ τὰ μὲν ἐς μῆκος αἴροντα τὸ στόμα σεμνοτέρους τε
τοὺς ἤχους καὶ ἀρρενοπρεπεῖς τὰ δ ἐς πλάτος διαιροῦντα καὶ τὰς
ἐκφωνήσεις ἥττους τε καὶ θηλυτέρας ἔχει πάλιν δὲ εἰδικῶς ἐν μὲν τοῖς
μακροῖς ἄρρην μὲν ὁ τοῦ ltωgt φθόγγος στρογγύλος τε ὢν καὶ
συνεστραμμένος θῆλυς δὲ ὁ τοῦ ltηgt διαχεῖται γάρ πως ἐν αὐτῷ τὸ
9 Cf West 1994 p178
24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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24
πνεῦμα καὶ διηθεῖται ἐν μέντοι τοῖς βραχέσι τὸ μὲν ltοgt τὸν ἄρρενα
δηλοῖ τό τε φωνητικὸν συνίλλον ὄργανον καὶ τὸν φθόγγον πρὶν
ἐκφωνηθῆναι συναρπάζον τεθήλυνται δὲ τὸ ltεgt κεχηνέναι πως
ἀναγκάζον κατὰ τὴν ἀπαγγελίαν τῶν δὲ διχρόνων ἐς μελῳδίαν τὸ ltαgt
κράτιστον εὐφυὲς γὰρ διὰ πλάτος τῆς ἠχήσεως ἐς μακρότητα τὰ δὲ
λοιπὰ διὰ λεπτότητα οὐχ οὕτως ἔχει ἔστι δέ τινα κἀν τούτοις ἰδεῖν
μεσότητα τὸ μὲν γὰρ ltαgt κοινωνίαν τε ἔχον καὶ ἀντιπάθειαν πρὸς τὸ
ltηgt ᾗ μὲν ἐς ἀντίστροφον χρείαν ἐκείνου παραλαμβάνεται πέφυκεν
ἄρρεν ᾗ δὲ τὴν ὁμοίαν ποιεῖται σημασίαν τεθήλυνται δηλοῦσι δὲ τοῦτο
καὶ αἱ τῶν διαλέκτων ἀλλήλαις ἀντιπεπονθυῖαι τῇ τῶν ἐθνῶν ἀναλόγως
ἐναντιοτροπίᾳ ἡ Δωρίς τε καὶ Ἰάς ἡ μὲν γὰρ Δωρὶς τὴν θηλύτητα
φεύγουσα τοῦ ltηgt τρέπειν αὐτοῦ τὴν χρῆσιν ὡς ἐς ἄρρεν τὸ ltαgt
νενόμικεν ἡ δὲ Ἰὰς τὸ στερεὸν ὑποστελλομένη τοῦ ltαgt καταφέρεται
πρὸς τὸ ltηgt τὸ δὲ ltεgt θῆλυ μέν ἐστι κατὰ τὸ πλεῖστον ὡς προείρηται
τῷ δὲ τὸν ὅμοιον ἦχον ἐπιφαίνειν εἰ ἐκταθείη τῇ ltαιgt διφθόγγῳ
γραφομένῃ διὰ τοῦ ltαgt ἐπ ἐλάχιστον ἠρρένωται ἀλλὰ καὶ τῶν ἄρθρων
καὶ τῶν καταλήξεων τὰ καθ ἁπάσας τὰς πτώσεις εἴ γε ἐξετάζειν ἐθέλοις
σαφῶς εὑρήσεις ὡς τῶν μὲν ἀρρενικῶν ὀνομάτων ἀρρενικὰ στοιχεῖα
καθηγεῖται καὶ ἐπὶ τελευτῆς τίθεται τῶν δὲ θηλυκῶν τὰ ὅμοια καὶ
ὅμοιοι φθόγγοι τῶν δ οὐδετέρων τὰ μεταξύ
Uma vez que a melodia nos cantos como nas passagens instrumentais eacute
captada atraveacutes de sua semelhanccedila com o oacutergatildeo fonador escolhemos as
letras mais adequadas agrave vocalizaccedilatildeo dos mele Como as vogais satildeo sete
examinemos a mencionada diferenccedila entre longas e breves Via de regra
as vogais que erguem a boca longitudinalmente tecircm sons mais nobres e
masculinos enquanto as que alargam a boca lateralmente possuem sons
mais brandos e femininos Dentre as longas o som do ocircmega eacute
masculino por ser esfeacuterico e compacto e o som do eta eacute feminino pois
nele o ar eacute de certa forma filtrado e dissipado Jaacute dentre as breves o
ocircmicron exibe um som masculino por contrair o oacutergatildeo fonador e reter o
som ateacute o momento da fonaccedilatildeo enquanto o eacutepsilon eacute feminino pois exige
que de algum modo se alargue a boca durante a emissatildeo Das diacutecronas o
alfa eacute o melhor para a melodia por ser apto para a duraccedilatildeo em funccedilatildeo da
sua amplitude Jaacute com as demais natildeo se daacute o mesmo em razatildeo de sua
estreiteza Tambeacutem eacute possiacutevel enxergar nas vogais certo estado
intermediaacuterio O alfa por exemplo eacute tanto afeito quanto oposto ao eta
quando empregado de modo oposto a este eacute naturalmente masculino
quando produz um signo semelhante eacute feminino Isso tambeacutem se observa
na oposiccedilatildeo muacutetua entre os dialetos anaacuteloga agrave oposiccedilatildeo entre os povos a
exemplo dos jocircnicos e doacutericos Os doacutericos fugindo agrave feminice do eta
trocam-no pelo alfa masculino enquanto os jocircnicos evitando a solidez do
alfa tendem para o eta Jaacute o eacutepsilon como disse eacute feminino na maior
parte das vezes mas quando se alarga num som semelhante ao ditongo
lsquoairsquo masculiniza-se um pouquinho em virtude do alfa Mas se quisesses
examinar todas as terminaccedilotildees tanto dos artigos quanto dos casos
constatarias claramente que os nomes masculinos satildeo precedidos e
terminados por letras masculinas os nomes femininos por letras e sons
semelhantes e as letras intermediaacuterias por sons neutros
Jaacute tendo estabelecido anteriormente que no acircmbito das vogais as longas satildeo mais
nobres e eufocircnicas Quintiliano ignora agora esse criteacuterio e passa a tratar das diferenccedilas
internas a cada um dos trecircs tipos de vogais (longas breves e diacutecronas) estabelecendo para
isso novos paracircmetros
O primeiro paracircmetro eacute o da verticalidade ou horizontalidade da vogal criteacuterio
que no vocabulaacuterio da nossa foneacutetica articulatoacuteria equivale ao grau de abertura ou
25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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25
fechamento da vogal Assim dentre as vogais longas o ocircmega eacute masculino por ser mais
vertical ou aberto ao passo que o eta eacute feminino por ser relativamente mais fechado Embora
a associaccedilatildeo aqui entre grau de abertura e masculinidade seja uma deduccedilatildeo nossa natildeo eacute sem
interesse lembrar que antes no acircmbito das frases a mesma noccedilatildeo (abertura porosidade)
estava associada ao feminino A aparente contradiccedilatildeo nos permite atentar para um aspecto
importante das noccedilotildees de masculino e feminino Eacute que se essas noccedilotildees por um lado
designam algo de formalmente idecircntico (ou ao menos anaacutelogo) em todos os entes aos quais
satildeo aplicadas materialmente no entanto podem corresponder a realidades muito distintas
Uma frase em outras palavras natildeo pode ser masculina no mesmo sentido que um ritmo o eacute
Voltaremos a esse ponto mais adiante quando tivermos ocasiatildeo de examinar as noccedilotildees de
masculino e feminino em si mesmas10
Outro traccedilo apontado como masculino eacute a esfericidade do ocircmega o que nos
remete ao simbolismo do ciacuterculo e da esfera ndash formas consideradas perfeitas daiacute a
esfericidade da alma11
(II 1747) antes de cair neste mundo bem como das oacuterbitas celestes ndash
mas tambeacutem agrave oposiccedilatildeo entre vogais arredondadas e natildeo arredondadas Em todo caso
Quintiliano natildeo parece recorrer a esse criteacuterio para discernir as qualidades das vogais breves
a menos que a contraccedilatildeo do oacutergatildeo fonador atribuiacuteda ao ocircmicron (que eacute masculino e o eacutepsilon
feminino) refira-se justamente a esse arredondamento
As diacutecronas satildeo por natureza ambiacuteguas mas destas o alfa eacute o mais eufocircnico em
razatildeo de sua amplitude (πλάτος) ou seja seu grau de abertura Quanto agraves demais diacutecronas
(iota e uumlpsilon) Quintiliano sequer chega a mencionaacute-las descartando-as pela sua
ldquoλεπτότηταrdquo ou ldquoestreitezardquo (tambeacutem magreza ou debilidade) criteacuterio igualmente
relacionado ao grau de abertura ou fechamento da vogal
O descarte das diacutecronas mais fechadas permite que Quintiliano aproxime o alfa do
eacutepsilon desfazendo como isso no entanto a simetria da oposiccedilatildeo entre longas e breves Os
extremos do sistema passam entatildeo a ser ocupados pelas duas longas o ocircmega no polo
masculino e o eta no feminino O paracircmetro subjacente nesse caso parece ser a oposiccedilatildeo
entre vogais anteriores e posteriores sobre o qual prevalece poreacutem o criteacuterio da
verticalidade o grau de abertura levemente maior do ocircmega Essa prevalecircncia faz todo o
10
Caberia talvez acrescentar que sequer a ideia de ldquoaberturardquo possui num caso e no outro o mesmo sentido
Aqui estando correta nossa deduccedilatildeo possui um sentido articulatoacuterio preciso enquanto antes foi empregada algo
metaforicamente Essa objeccedilatildeo poderia comprometer a felicidade do exemplo mas natildeo a validade das
observaccedilotildees a que o exemplo deu ensejo 11
Cf Platatildeo Banquete 190a E ainda segundo Rougier (1991 p59) ldquoArquitas declara Laurent Lydus em De
Mensibus punha a definiccedilatildeo da alma no ciacuterculo em razatildeo de ser a alma aquilo que se move por si mesmo por
que a alma sendo aquilo que se move por si mesmo eacute por uma consequecircncia necessaacuteria o primeiro motor Ora
o primeiro motor eacute um ciacuterculo ou uma esferardquo
26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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26
sentido se atentarmos para sua relaccedilatildeo com o criteacuterio da constriccedilatildeo que remete agrave oposiccedilatildeo
entre quantidade contiacutenua e quantidade discreta
Por fim o que diz A Q a respeito dos artigos e das terminaccedilotildees eacute grosso modo
verdadeiro como aponta Barker (1990 p 488) no que tange aos artigos e agrave primeira e agrave
segunda declinaccedilotildees com no entanto alguma exceccedilotildees a exemplo do ocircmega (terminaccedilatildeo
lsquoωνrsquo) que aparece no genitivo plural de todos os gecircneros
Das cinco vogais de que tratou Quintiliano ateacute o momento apenas quatro
obviamente podem corresponder agraves quatro notas do tetracorde O ocircmicron seraacute entatildeo
excluiacutedo em razatildeo de seu maior grau de fechamento e o sistema vocaacutelico empregado no
solfejo seraacute o seguinte (II 1413-33)
Τούτων οὕτως ἐχόντων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltηgt γινόμενοι φθόγγοι ὑγροί τέ
εἰσι καὶ ὅλως παθητικοὶ καὶ τεθηλυσμένοι οἱ δὲ διὰ τοῦ ltωgt δραστήριοί
τε καὶ ἠρρενωμένοι τῶν δὲ μέσων οἱ μὲν διὰ τοῦ ltαgt πλέον ἔχοντες
ἀρρενότητος οἱ δὲ διὰ τοῦ ltεgt θηλύτητος τούτοις ὅμοια γίνεται τὰ ἐξ
αὐτῶν διαστήματα καὶ πάλιν τοῖς διαστήμασιν ὁμόλογα τὰ ἐκ τούτων
περιεχόμενα συστήματα ἄκρα μὲν τὰ ὑπὸ τῶν ὁμοίων μέσα δὲ τὰ ὑπὸ
τῶν ἀνομοίων ταῖς φωναῖς καὶ ἤτοι κατὰ τὴν τοῦ συστήματος ἀγωγὴν
τῆς ποιότητος μεταλαμβάνει ἢ κατὰ τὴν ὑπερβατὸν μελοποιίαν τοῖς
πλεονάζουσι τῶν ἤχων συνεξομοιοῦται Τοῦ δὴ πρώτου συστήματος ὅ
ἐστι τετράχορδον ὁ μὲν πρῶτος διὰ τοῦ ltεgt προῆκται φθόγγος οἱ δὲ
λοιποὶ κατὰ τὸ ἑξῆς ἀκολούθως τῇ τάξει τῶν φωνηέντων ὁ μὲν δεύτερος
διὰ τοῦ ltαgt ὁ δὲ τρίτος διὰ τοῦ ltηgt ὁ δὲ τελευταῖος διὰ τοῦ ltωgt
εὐπρεπῶς κατὰ τὸ πολὺ τῶν ἤχων δι ἀμεσότητος ἀλλήλους
διαδεχομένων καὶ οἱ μὲν ἑξῆς τοῖς προειρημένοις τρισὶ κατὰ συμφωνίαν
λαμβάνονται μόνος δὲ ltὁgt τοῦ ltεgt κατὰ τὴν ἀρχὴν τοῦ τε πρώτου διὰ
πασῶν καὶ τοῦ δευτέρου dagger κατὰ τὴν ὁμόφωνον τῷ προσλαμβανομένῳ τὴν
μέσην διάξει dagger διὰ τί δέ ὕστερον λέξομεν
Assim sendo as notas produzidas com o eta satildeo uacutemidas totalmente
passionais e femininas enquanto as notas que se articulam com o ocircmega
satildeo ativas e masculinas Dentre as notas intermediaacuterias as que se
articulam com o alfa tecircm mais da natureza masculina ao passo que as que
o fazem com o eacutepsilon tecircm mais da feminina Dessas notas derivam
intervalos que lhes satildeo semelhantes e dos intervalos por sua vez
sistemas que satildeo anaacutelogos a eles Satildeo extremos os sistemas formados por
intervalos semelhantes e intermediaacuterios os formados por intervalos
dessemelhantes em suas vogais E eles ou assumem uma qualidade de
acordo com a disposiccedilatildeo intervalar do sistema ou conforme os intervalos
da melodia acomodam-se aos sons que nela predominam
No primeiro sistema que forma um tetracorde o primeiro som eacute emitido
com o eacutepsilon ao passo que os demais se emitem segundo a ordem das
vogais o segundo com o alfa o terceiro com o eta e o uacuteltimo como o
ocircmega sucedendo-se corretamente os sons sem intermediaacuterios Os sons
que se seguem satildeo obtidos por consonacircncia com estes trecircs Em seguida
vem o eacutepsilon que soacute aparece no iniacutecio da primeira e da segunda oitava
em razatildeo da homofonia da nota meacutedia em relaccedilatildeo agrave acrescida Diremos
posteriormente por que isso eacute assim
A sequecircncia das vogais do masculino para o feminino ficaria entatildeo assim
ocircmega alfa eacutepsilon e eta Jaacute sua atribuiccedilatildeo agraves notas do tetracorde requer alguma explicaccedilatildeo
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
27
O tetracorde base do sistema musical grego era composto por uma sequecircncia de
quatro notas As notas que ocupavam as extremidades tinham entre si um intervalo fixo de
quarta justa (dois tons e meio) enquanto as notas intermediaacuterias podiam assumir valores
distintos conforme o gecircnero de disposiccedilatildeo intervalar adotado12
Do grave para o agudo (ou de
cima para baixo se considerarmos a disposiccedilatildeo das notas na lira) essas notas eram
denominadas de baripiacutecnica (ou primeira) mesopiacutecnica (superprimeira) oxipiacutecnica
(indicativa pois tocada com o dedo indicador) e apiacutecnica Quando a este primeiro era
acrescido um segundo tetracorde mais agudo sem que entre os dois houvesse o intervalo de
um tom a uacuteltima nota do primeiro tetracorde (apiacutecnica) tornava-se tambeacutem a primeira
(baripiacutecnica) do segundo Ora como esta primeira nota do segundo tetracorde distava da
uacuteltima em dois tons e meio o conjunto dos dois tetracordes formava um intervalo de 5 tons
ou seacutetima menor Para que o conjunto pudesse compor um intervalo de oitava ao primeiro
tetracorde foi acrescentada uma nota mais grave denominada por isso de ldquoacrescidardquo
(προσλαμβανόμενος) e que distava da primeira nota do tetracorde em um tom
O primeiro som de que trata Quintiliano e ao qual ele associa o eacutepsilon eacute
justamente essa nota acrescida e natildeo propriamente a primeira nota (baripiacutecnica) do
tetracorde associada ao alfa As notas seguintes satildeo associadas ao eta (superprimeira) e ao
ocircmega (indicativa) apoacutes as quais a sequecircncia se repete com novamente uma nota primeira
(alfa) superprimeira (eta) e indicativa (ocircmega) cada uma delas distando dois tons e meio da
sua correspondente no tetracorde anterior A uacuteltima nota do segundo tetracorde (denominada
μέση por estar exatamente no meio do sistema de dupla oitava ou Grande Sistema Perfeito
formado por dois pares de tetracordes) eacute associada ao eacutepsilon em razatildeo do intervalo de oitava
formado com a nota acrescida
Note-se como a qualidade (masculina ou feminina) das notas no interior de cada
tetracorde natildeo estaacute relacionada como seria talvez de se esperar com seu caraacuteter grave ou
agudo mas com a posiccedilatildeo que ocupa na escala Jaacute o caraacuteter dos tetracordes e dos sistemas por
eles formados depende da regiatildeo tonal como se vecirc na passagem abaixo (II 1464-70)
Ἔτι τῶν συστημάτων τὰ μὲν βαρύτερα τῷ τε ἄρρενι κατὰ φύσιν καὶ ἤθει
κατὰ τὴν παίδευσιν πρόσφορα τῇ πολλῇ καὶ σφοδρᾷ κάτωθεν ἀναγωγῇ
τοῦ πνεύματος τραχυνόμενα καὶ πλείονος ἀέρος πληγῇ διὰ τὴν τῶν
πόρων εὐρύτητα τό τε γοργὸν δηλοῦντα καὶ ἐμβριθές τὰ δ ὀξέα τῷ
θήλει τῇ τοῦ περὶ τὰ χείλη καὶ ἐπιπολῆς ἀέρος πληγῇ διὰ λεπτότητα
γοερά τε ὄντα καὶ ἐκβοητικά
12
Eis a disposiccedilatildeo intervalar de cada gecircnero em escala descendente T T T2 (gecircnero diatocircnico) T + T2 T2
T2 (gecircnero cromaacutetico) e 2T T4 T4 (gecircnero enarmocircnico)
28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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28
Dentre os sistemas os mais graves satildeo naturalmente adequados ao
masculino no tocante agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo do eacutethos pois satildeo aacutesperos
em razatildeo da grande e impetuosa vazatildeo de ar desde baixo e se mostram
dignos e temiacuteveis por conta do choque do ar contra as largas saiacutedas Jaacute os
sistemas agudos satildeo adequados ao feminino pois o impacto do ar no
entorno e na superfiacutecie dos laacutebios faz com que pela estreiteza da
passagem os sons resultem estrepitosos e plangentes
Embora os sistemas mais graves sejam os mais adequados agrave educaccedilatildeo e agrave
formaccedilatildeo do eacutethos o mesmo se aplicando agraves melodias executadas nessas regiotildees disso natildeo
decorre que as melodias femininas resultem inuacuteteis para o serviccedilo da alma devendo por isso
ser evitadas No cap6 do livro II A Q jaacute havia defendido os meacutele mais relaxados (bem como
o proacuteprio prazer esteacutetico) contra a criacutetica dos que apoiados em Platatildeo13
os rechaccedilavam por
completo Eacute o que voltaraacute a fazer agora14
(II 1488-90)
περὶ μὲν δὴ τῶν μελῶν ταῦτα ὧν τὰ μὲν ἀνδρώδη καὶ κόσμια πρὸς
παίδευσιν τὰ δὲ ἀλλοιότερα πρός τινας ἀναγκαῖα ψυχαγωγίας
Acerca dos mele enfim eis o que haacute os viris e ordenados se empregam
na educaccedilatildeo enquanto os demais satildeo necessaacuterios a certas orientaccedilotildees da
alma
Nos capiacutetulos seguintes Quintiliano trataraacute do ritmo do gestual cecircnico e dos
instrumentos e natildeo faraacute acreacutescimos relevantes aos conceitos de masculino e feminino Satildeo
mais viris e apropriados agrave educaccedilatildeo por exemplo os ritmos mais regulares e que possuam peacutes
mais longos como o espondeu ( _ _ ) e menos nobres ou mais agitados e humildes os demais
como o pirriacutequio (UU) Jaacute a referecircncia aos movimentos de cena eacute breviacutessima e constitui-se
apenas de um elogio aos movimentos que imitam a nobreza e a virilidade ao qual acrescenta
a ressalva de que os movimentos menos nobres possuem tambeacutem a sua conveniecircncia segundo
a natureza do puacuteblico Na classificaccedilatildeo dos instrumentos A Q retoma explicitamente as
noccedilotildees de masculino e feminino descrevendo-as segundo o jaacute conhecido paracircmetro da altura
tonal (II 1623-40)
Ἐν μὲν οὖν τοῖς ἐμπνευστοῖς ἄρρεν μὲν ἄν τις ἀποφήναιτο τὴν σάλπιγγα
διὰ τὸ σφοδρόν θῆλυ δὲ τὸν αὐλὸν τὸν φρύγιον γοερόν τε ὄντα καὶ
θρηνώδη τῶν δὲ μέσων αὖ τὸν μὲν πυθικὸν πλέον ἀρρενότητος
μετέχοντα διὰ τὸ βάρος τὸν δὲ χορικὸν θηλύτητος διὰ τὸ ἐς ὀξύτητα
εὐχερές πάλιν ἐν τοῖς κατατεινομένοις τὴν μὲν λύραν
ἔστιν εὑρεῖν πρὸς τὸ ἄρρεν ἀναλογοῦσαν διὰ τὴν πολλὴν βαρύτητα καὶ
τραχύτητα τὴν δὲ σαμβύκην πρὸς θηλύτητα ἀγεννῆ τε οὖσαν καὶ μετὰ
πολλῆς ὀξύτητος διὰ τὴν μικρότητα τῶν χορδῶν εἰς ἔκλυσιν
περιάγουσαν τῶν δὲ μέσων τὸ μὲν πολύφθογγον πλέον μετέχον
θηλύτητος τὸ δὲ τῆς κιθάρας οὐ πολὺ τῆς κατὰ τὴν λύραν ἀπᾷδον
ἀρρενότητος εἰ δὲ χἄτερ ἄττα μεταξὺ τούτων ἔστιν εὑρεῖν οὐκέτι
13
Repuacuteblica 398c 14
Advertecircncia semelhante pode ser encontrada no Sobre a muacutesica de Plutarco (Rocha 2010 p177-179)
29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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29
δυσδιάγνωστος αὐτῶν ἡ φύσις ἐχόντων ἡμῶν καθόλου χαρακτῆρας οἷς
τὰ καθ ἕκαστον ὑποτάξομεν οὕτω καὶ ἁρμονιῶν ἑκάστη κατὰ τὴν
οἰκείαν φύσιν καὶ ῥυθμὸς ἕκαστος ὀργάνῳ τινὶ πρόσφορος καὶ οὐκ ἂν
ὁμοίως δι ἀνοικείου κινήσειltενgt
Quanto aos intrumentos de sopro qualquer um diria que a trombeta pela
sua veemecircncia eacute masculina e que o aulos friacutegio plangente e fuacutenebre eacute
feminino E ainda que dos intermediaacuterios o aulos piacutetico participa mais
do masculino por ser grave e o aulos coral mais do feminino pela sua
tendecircncia para o agudo No domiacutenio dos instrumentos de corda pode-se
descobrir que a lira eacute anaacuteloga ao masculino por sua acentuada gravidade
e aspereza ao passo que a sambuca eacute feminina por natildeo ser nobre e por
gerar com suas minuacutesculas cordas e altiacutessimos agudos um efeito
debilitante Dentre os instrumentos de altura mediana a ciacutetara policorde
participa mais do feminino enquanto a ciacutetara mais parecida com a lira
participa do masculino Embora seja possiacutevel identificar outros
intermediaacuterios entre esses instrumentos jaacute natildeo seria difiacutecil distinguir sua
natureza pois possuiacutemos as caracteriacutesticas gerais com as quais qualificar
cada um deles O mesmo vale para cada harmonia (conforme sua natureza
iacutentima) e para cada ritmo adequados a este ou aquele instrumento natildeo
interagem do mesmo modo com instrumentos que natildeo lhes sejam
familiares
No capiacutetulo 18 Quintiliano estabelece uma distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os
instrumentos de corda e os instrumentos de sopro Essa distinccedilatildeo tem relaccedilatildeo direta com o
dualismo masculino-feminino em seu aspecto mais propriamente principial na medida em
que se baseia numa analogia entre as regiotildees celestes o composto corpo-alma e a proacutepria
dualidade dos instrumentos A analogia estaacute baseada no mito do descenso da alma narrado
por Quintiliano no cap17 a tiacutetulo de teoria acerca poder (jaacute atestado empiricamente diz) da
muacutesica sobre a alma
O mito como apontam Colomer e Gil (p159) estaacute baseado em Platatildeo (Fedro
245c Rep 614b) e resumidamente relata que a alma em sua progressiva queda em direccedilatildeo
ao mundo material compotildee seu corpo a partir dos nervos e membranas que obteacutem das regiotildees
superiores (supralunar) agraves quais se soma posteriormente o vento uacutemido caracteriacutestico da
regiatildeo sublunar Os elementos heterogecircneos desse corpo astral raiz do corpo material satildeo
anaacutelogos um aos intrumentos de cordas (ldquoνευράrdquo que significa tanto ldquocordardquo quanto
ldquonervordquo) e outro aos instrumentos de sopro E como aqueles elementos derivam de regiotildees
hierarquicamente distintas os tipos de instrumentos com os quais estatildeo relacionados mantecircm
pela loacutegica relaccedilatildeo anaacuteloga15
15
Embora Quintiliano cite a tiacutetulo de exemplo a oposiccedilatildeo heraclitiana entre alma seca (divina) e alma uacutemida
(mundana) a teoria dos dois compostos do corpo astral parece integrar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e com ela a
associaccedilatildeo entre vento e mundo sublunar Segundo Burnet (1994 p225) Filolau em seus escritos sobre
medicina tinha em vista certas ideias desenvolvidas pelo pitagorismo siciliano quando ldquodisse especialmente
que nossos corpos eram compostos apenas de calor e natildeo participavam do frio Era apenas depois do nascimento
que o frio se introduzia atraveacutes da respiraccedilatildeordquo E comenta Burnet em seguida ldquoEacute clara a ligaccedilatildeo disto com a
30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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30
Noutra passagem do mesmo capiacutetulo 17 em que analisa o mito de Ares e Afrodite
(tomados como metaacuteforas do corpo e da alma respectivamente) Quintiliano associa os
nervos e membranas do corpo astral agraves razotildees (loacutegoi) e proporccedilotildees (analogiacuteai) que mantecircm
unidos tensionados o corpo e a alma Fica assim mais claro o caraacuteter divino atribuiacutedo a esses
nervos aqui identificados agraves leis que datildeo forma e unidade ao cosmo ou seja ao polo
masculino ao ato que infunde forma agrave mateacuteria
Na verdade compreendido o argumento de Quintiliano a eficaacutecia da muacutesica natildeo
residiria nela propriamente mas na unidade profunda que mediante loacutegoi e analogiacuteai o real
manteacutem consigo mesmo Essa unidade faz com que haja na muacutesica no homem e no mundo
um corpo e uma alma analogados Natildeo apenas entre si pela composiccedilatildeo de um syacutenolon mas
entre cada syacutenolon e todos os demais Daiacute que Quintiliano enxergue tambeacutem no corpo do
universo um paradigma musical e especificamente na porccedilatildeo deste corpo onde habitam os
planetas um sistema de oitava a harmonia das esferas o coro dos astros
26 A muacutesica das esferas
Quintiliano aborda o tema do coro dos astros somente no livro III dedicado agraves
teorias aritmeacutetica e cosmoloacutegica da muacutesica Para isso eacute preciso retomar a dualidade que o tem
acompanhado ao longo de todo o tratado e da qual ele diz pretende oferecer enfim uma
definiccedilatildeo (III 211-6)
Πρότερον οὖν διοριστέον τί τὸ ἄρρεν φύσει καὶ θῆλυ τὸ μὲν οὖν ἄρρεν
ἐν μὲν σώματι σκληρόν τε καὶ ξηρόν ἐν δὲ ψυχαῖς πρακτικόν τε καὶ
φιλόπονον τὸ δὲ θῆλυ ὑγρὸν διειμένον ἠρεμαῖόν τε καὶ φυγόπονον
τούτων δὴ κατακρατούντων ἢ μιγνυμένων ἐπίσης τὰς τῶν ἐνεργειῶν
διαφορὰς γίνεσθαι συμβαίνει
Para comeccedilar eacute preciso definir o que eacute na natureza o masculino e o
feminino No corpo o masculino eacute duro e seco nas almas eacute ativo e
amante do esforccedilo Jaacute o feminino eacute uacutemido e permeaacutevel tranquilo e evita o
esforccedilo Assim do predomiacutenio de uma ou outra dessas qualidades ou de
sua combinaccedilatildeo equitativa surgem diferenccedilas na sua atualizaccedilatildeo
AQ natildeo oferece propriamente uma definiccedilatildeo formal composta de gecircnero
proacuteximo e diferenccedila especiacutefica mas apenas um conjunto de notas as mesmas aliaacutes jaacute
elencadas em outras partes do tratado mas que ele aqui discrimina conforme a natureza
(corpoacuterea ou aniacutemica) das qualidades listadas
antiga teoria pitagoacuterica Exatamente como o Fogo no macrocosmo diminui e limita a emanaccedilatildeo fria e escura
que circunda o mundo assim os nossos corpos efetivamente inalam o sopro frio a partir de forardquo
31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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31
Analogamente agraves notas do tetracorde e agraves vogais empregadas no solfejo os
planetas distribuem-se em suas oacuterbitas de acordo com suas propriedades masculinas e
femininas (III 216-40)
ὁ μὲν οὖν τῆς σελήνης κύκλος ὑγρός τε ὢν καὶ διειμένος συμπάσης
γενέσεως σωματικῆς αἰτιώτατος τὸν διὰ τοῦ ltεgt θῆλυν ἀφίησι φθόγγον
ἐπὶ μικρὸν ἠρρενωμένον καὶ γὰρ αὕτη πλεῖστον μὲν θηλύτητος ἐν τῷ
δέχεσθαι τὰς παρὰ τῶν ἄλλων ἀπορροίας ἔχει μετέχει γε μὴν καὶ
ἀρρενότητος προϊεῖσα καὶ παρ αὑτῆς εἰς τὴν γῆν τὰς γεννητικάς τε καὶ
θρεπτικὰς δυνάμεις σωμάτων δηλοῦσι δὲ τοῦτο καὶ οἱ ταύτης μυστιπόλοι
τε καὶ ὀργιασταί ἀρρενόθηλύν τε γὰρ αὐτὴν προσειρήκασι πλέον
μετέχουσαν θηλύτητος καὶ τὸν κερασφόρον αὐλὸν ἀνῆψαν αὐτῇ τῷ τε
μηνοειδεῖ τοῦ σχήματος παραπλήσιον ὄντα καὶ βαρύτατον ἐπίσης
προσλαμβανομένῳ κατὰ τὴν ἐκφώνησιν ὁ δὲ τοῦ Ἑρμοῦ κατὰ μὲν τὸ
πλεῖστον ξηραντικὸς ὑπάρχων διὰ τὴν πρὸς τὸν ἥλιον κατὰ μέγεθος
ἐγγύτητα δι ὀλίγου δὲ ὢν ὑγραντικὸς εἴ ποτε τούτου χωρισθείη καὶ
νυκτεριναῖς σπανίως ἡμεριναῖς δὲ ἐπὶ πλέον γεγηθὼς φάσεσι τὸ
ἀρρενόθηλυ καὶ αὐτὸς ἠχεῖ πλέον μὴν ἠρρενωμένον τῷ καὶ αὐτὸς τῇ τε
ξηρότητι μᾶλλον καὶ τοῖς ἡμερινοῖς ᾠκειῶσθαι σχήμασιν ὁ δὲ δὴ τῆς
Ἀφροδίτης φαιδρός τε ὢν κατὰ τὴν θεὰν καὶ ἡδὺς καὶ εὐφροσύνης
ἀπεργαστικὸς καὶ ὑγρὸς τὸ πλέον νυκτί τε χαίρων τὸν θῆλυν ἄκρως
ἐπέχει φθόγγον ὁ δὲ τοῦ ἡλίου ξηρότερος καὶ καυστικὸς διόλου τε
θερμὸς καὶ δραστικὸς ἠχεῖ τὸν ἄρρενα ὁ δὲ τοῦ Ἄρεος θερμός τε ὢν καὶ
ὁρμητικός ὑγροῖς τε καὶ νυκτερινοῖς γεγηθὼς σχήμασι τὸν
ἐπαμφοτερίζοντα προΐησι πλέον μὴν ἠρρενωμένον ὁ δὲ τοῦ Διὸς ἡδύς τε
ἐν ἅπασιν ἐνεργήμασιν ὢν καὶ πάντα ὀλίγου δεῖν τῷ τῆς Ἀφροδίτης
ἐφάμιλλος καὶ κατὰ ἄνεσιν πρὸς τοὺς παρ ἑκάτερα θεωρούμενος καὶ τοῦ
μὲν Ἄρεος τὸ θερμὸν ἐλαττῶν τοῦ δὲ Κρόνου τὸ ψυχρὸν
παραμυθούμενος εὔκρατόν τε ἐξ ἀμφοῖν ἔχων μίξιν καὶ κατὰ ταὐτὰ τῷ
τῆς Ἀφροδίτης ἐν μὲν ἡμερίοις πνεύμασι γόνιμος ὤν ἐν δὲ σωμάτων
συναφαῖς τεκνοσπόρος τε καὶ γαμήλιος οὐκ ἂν ἀπεικότως ἠχοίη τὸν
θηλύτερον τελευταῖος δὲ ὁ τοῦ Κρόνου σκληρός τε ὢν καὶ αὐχμηρὸς καὶ
ἐπίπονος τὸν ἄρρενα
A esfera lunar por exemplo que uacutemida e permeaacutevel eacute responsaacutevel por
toda a geraccedilatildeo corpoacuterea emite atraveacutes do eacutepsilon um som feminino ainda
um pouco masculinizado pois se a Lua de um lado possui mais do
feminino jaacute que recebe influecircncias dos demais planetas todavia participa
tambeacutem do masculino ao enviar para a terra as potecircncias geradoras e
nutritivas dos corpos Eacute o que mostram aqueles que celebram os misteacuterios
e os ritos da Lua pois a chamam androacutegina (participando mais do
feminino) e lhe atribuiacuteram o aulos de chifre a ela semelhante na forma de
Lua crescente e dentre os aulos o mais grave sendo equivalente agrave nota
acrescida no tocante agrave vocalizaccedilatildeo Jaacute a esfera de Mercuacuterio cuja accedilatildeo eacute
no mais das vezes ressecante em razatildeo da proximidade com o Sol
(embora seja umectante sempre que dele se afaste um pouco) e que se
regozija sobretudo em apariccedilotildees diurnas (raramente nas noturnas) tem
tambeacutem um som androacutegino soacute que mais para o masculino por estar mais
familiarizado com a secura e com as formas diurnas A esfera de Vecircnus eacute
luminosa (como a deusa) e tambeacutem doce festiva predominantemente
uacutemida e regozija-se com a noite ela possui um som extremamente
feminino Mais seca e abrasadora sempre quente e ativa a esfera do Sol
emite um som masculino Por um lado a esfera de Marte eacute quente e
impulsiva por outro regozija-se com formas uacutemidas e noturnas O som
que produz eacute ambiacuteguo embora mais virilizado A esfera de Juacutepiter ecircmulo
de Vecircnus em quase tudo eacute doce em todas as suas atualizaccedilotildees No tocante
ao abrandamento dos planetas adjacentes ele por possuir uma
equilibrada mescla de ambos diminui o calor de Marte e alivia a frieza de
32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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32
Saturno Como Vecircnus ele favorece a geraccedilatildeo dos ventos diurnos e
quanto agrave uniatildeo dos corpos eacute casamenteiro e disseminador de bebecircs Natildeo
sem razatildeo emite um som mais feminino enquanto Saturno o uacuteltimo que
eacute duro ressequido e laborioso emite um som masculino
Quintiliano natildeo se daacute o trabalho de associar individualmente cada planeta agrave vogal
correspondente nem agrave respectiva posiccedilatildeo na escala Uma vez relacionada a lua agrave primeira nota
do primeiro tetracorde (a dita acrescida natildeo a primeira de fato) e portanto tambeacutem ao
eacutepsilon ele passa a descrever a accedilatildeo e o caraacuteter dos planetas em termos das mesclas de
masculino e feminino que os constituem confiando em nossa capacidade de estabelecer as
devidas relaccedilotildees Assim na ordem em que satildeo listados por Quintiliano os planetas ocupariam
a seguinte posiccedilatildeo dentro do tetracorde
PLANETA LUA MERC VEcircNUS SOL MARTE JUacutePITER SATURNO
NOTA Acresc Primeira Superprimeira Indicativa Primeira Superprim Indicativa
VOGAL ε α η ω α η Ω
Percebe-se imediatamente a ausecircncia da uacuteltima nota do segundo tetracorde a
meacutese agrave qual em razatildeo do intervalo de oitava formado com a nota acrescida estaacute associado o
eacutepsilon Quintiliano poreacutem explica que no acircmbito do coro dos astros o som eacutepsilon cabe
apenas agrave nota acrescida por conta de sua particular relaccedilatildeo por um lado com a lua e por
outro com a geraccedilatildeo corpoacuterea jaacute que o eacutepsilon quinta letra do alfabeto eacute composta pela
soma do primeiro nuacutemero par 2 e do primeiro nuacutemero iacutempar 3 A nota acrescida assim
seria uma espeacutecie de fronteira entre dois mundos o divino e o sublunar Essa explicaccedilatildeo
ilustra ainda em que medida os nuacutemeros representam os princiacutepios constitutivos das coisas
pois 3 e 2 ou a paridade e a imparidade expressam aqui no fundo a mesma oposiccedilatildeo entre
masculino e feminino determinaccedilatildeo e determinaacutevel ativo e passivo
Jaacute o regozijo planetaacuterio ao qual A Q faz menccedilatildeo diz respeito agrave regiatildeo do zodiacuteaco
pela qual o planeta esteja transitando tracircnsito que pode reforccedilar ou enfraquecer o caraacuteter
especiacutefico do planeta Ainda quanto agraves regiotildees do zodiacuteaco aliaacutes Quintiliano chega a sugerir a
correspondecircncia entre seus quadrantes (dividida a circunferecircncia em quatro acircngulos de 90ordm) e
as quatro notas do tetracorde que se seguem imediatamente apoacutes a meacutese (ela inclusa) Como
essas consideraccedilotildees bem como as seguintes relativas agrave distribuiccedilatildeo dos planetas na segunda
oitava natildeo nos interessam diretamente interromperemos aqui nossa leitura do texto de
Quintiliano e trataremos de analisar o itineraacuterio percorrido
Primeiro tetracorde Segundo tetracorde
33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
36
necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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33
3 Navegaccedilatildeo tentativa ou monoacutelogo aporeacutetico
Iniciamos nosso percurso no momento em que Quintiliano alegou existir entre o
ritmo e o meacutelos uma oposiccedilatildeo do tipo masculino e feminino Essa oposiccedilatildeo natildeo estruturava
somente a relaccedilatildeo entre um e outro mas ambos internamente eram tambeacutem constituiacutedos por
uma oposiccedilatildeo anaacuteloga (grave e agudo aacutersis e theacutesis) da qual cada um deles era o resultado
ou o ponto intermeacutedio
Partindo entatildeo do acircmbito restrito da muacutesica audiacutevel chegamos agrave muacutesica
inaudiacutevel dos astros os quais vimos tambeacutem interagem mutuamente segundo o mesmo
princiacutepio dual princiacutepio este que por um lado aproxima ou distancia os astros uns dos outros
e por outro opotildee todos em conjunto agrave lua a qual se opotildee por sua vez a todo orbe colocado
sob sua tutela
Mas entre o extremo do sensiacutevel (a muacutesica audiacutevel) e o extremo do inteligiacutevel (a
muacutesica soacute captada pelo intelecto) Quintiliano insere como ponto meacutedio a alma humana a
qual se compotildee de duas naturezas (racional e irracional) articuladas em torno de um ponto
meacutedio (a memoacuteria) Tal como a lua a alma eacute ativo-passiva ativa desde a sua porccedilatildeo racional
passiva desde a irracional sendo que esta uacuteltima por sua vez desdobra-se igualmente num
polo ativo (alma impulsiva) e passivo (desejante) Observando todo esse conjunto vecirc-se que a
alma impulsiva estaacute para a desejante assim como a alma racional estaacute para ambas ou como a
alma inteira para o mundo corpoacutereo e o mundo divino para o sublunar O cosmo de
Quintiliano assim eacute como uma caixa de bonecas russas em que cada polarizaccedilatildeo converge
para um ponto intermediaacuterio que novamente se desdobra numa polarizaccedilatildeo e assim
sucessivamente
Natildeo eacute preciso muita atenccedilatildeo para perceber que o proacuteprio tratado reproduz na sua
organizaccedilatildeo a estrutura desse cosmo triaacutedico em que os opostos do sensiacutevel (livro I que trata
da muacutesica audiacutevel) e do inteligiacutevel (livro III sobre a muacutesica do universo) encontram-se e se
reconciliam num meio de caminho a muacutesica da alma tema do livro II Dispostos na vertical
os trecircs elementos desse cosmo (mundo sensiacutevel humano e inteligiacutevel) correspondem agrave figura
da triacuteade extremo-oriental (de cima para baixo ceacuteu-homem-terra) na qual
o homem colocado entre o Ceacuteu e a Terra deve ser considerado
primeiramente o produto ou a resultante de suas influecircncias reciacuteprocas
mas em seguida pela dupla natureza que ele tem de um de outro
torna-se o termo mediano ou lsquomediadorrsquo que os une e que eacute por assim
dizer () a lsquopontersquo que vai de um para o outro16
16
Gueacutenon 1999 p23
34
No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
35
fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
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necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
BIBLIOGRAFIA
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
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_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro
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____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo
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WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
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No caso de Quintiliano a ponte descritivo-conceitual empregada foi natildeo o ser
dual mas a dualidade mesma a oposiccedilatildeo masculino-feminino que trataremos agora de
analisar na tentativa de compreender como esse princiacutepio permitiu estabelecer pontes entre
regiotildees ontoloacutegicas que o proacuteprio Quintiliano tem como distintas e ateacute em alguns casos
incomensuraacuteveis
Como foi dito anteriormente masculino e feminino natildeo designam classes de
seres mas certa relaccedilatildeo acidental entre seres Se tomarmos as duas noccedilotildees em si mesmas
vemos que uma eacute relativa agrave outra e que um ente do qual se predique a masculinidade
necessariamente subentende outro que em vista do anterior seraacute feminino A relaccedilatildeo que
estabelecem portanto natildeo somente eacute muacutetua mas tambeacutem simultacircnea Como a qualidade
assumida por um dos termos da relaccedilatildeo depende da qualidade assumida pelo outro nada
impede que ambas as qualidades coexistam atualmente num mesmo ser o qual em relaccedilatildeo a
um segundo ser seraacute masculino e em relaccedilatildeo a um terceiro feminino Esse eacute caso por
exemplo da lua e da alma
Mas tudo isso diz respeito apenas agrave relaccedilatildeo que podemos estabelecer entre as
ideias de masculino e feminino Se observarmos os seres nos quais essa relaccedilatildeo se perfaz ou
aos quais satildeo atribuiacutedas essas noccedilotildees notaremos algumas particularidades A primeira eacute que
embora o masculino e o feminino se definam mutuamente o mesmo natildeo ocorre para os seres
ditos masculinos ou femininos O ritmo natildeo se define em si por sua relaccedilatildeo com a melodia
nem a lua por sua relaccedilatildeo com o sol Jaacute o grave e o agudo ou o seco e o uacutemido essas satildeo de
fato noccedilotildees que guardam certa dependecircncia pois embora sejam em si mesmas apenas
qualidades implicam sempre uma medida ou paracircmetro comum em vista do qual satildeo ditas
graves agudas secas ou uacutemidas Em todo caso ningueacutem diria que um corpo eacute ao mesmo
tempo seco e uacutemido a depender do termo de comparaccedilatildeo mas apenas que eacute mais seco ou mais
uacutemido do que este ou aquele corpo Assim tomadas como qualidades elas natildeo admitem a
coexistecircncia Perceba-se que isso natildeo ocorre por exemplo com os atributos relativos lsquopairsquo e
lsquofilhorsquo os quais podem ndash mas natildeo necessariamente devem ndash coexistir sem contradiccedilatildeo num
mesmo indiviacuteduo Por sua vez as causas formal e material ndash associadas respectivamente ao
masculino e ao feminino ndash necessariamente coexistem no ente do qual elas satildeo causa e fora
dele natildeo poderiam estabelecer qualquer relaccedilatildeo
Se tomaacutessemos enfim todos os pares de entes aos quais eacute atribuiacuteda uma relaccedilatildeo
de tipo masculino-feminino teriacuteamos relaccedilotildees as mais diversas que incidiriam ora sobre o
acidente de qualidade ora de quantidade ora de accedilatildeo Mas se interrogaacutessemos sobre o
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fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
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necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
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exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
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grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
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ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
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_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro
2005
____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo
Paulo Matese 1965
____________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad introduccedilatildeo e notas de Maacuterio da Gama Kury
Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001
BARKER Andrew Greek music writings vol02 harmonic and acoustic theory Cambridge
Cambridge University Press 1990
BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012
BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia
Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010
BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano
1994
CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea
Classica (Brasil) 2412 73-85 2011
CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o
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Paranaacute 2003
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo
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ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo
Ibrasa 1990
WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
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fundamento uacutenico que faz com que sejam todas relaccedilotildees do tipo masculino-feminino
teriacuteamos que admitir nossa incapacidade e dizer na melhor das hipoacuteteses que esse
fundamento reside numa espeacutecie de oposiccedilatildeo
Haacute para Aristoacuteteles (Categorias 11b15-14a25) quatro tipos de oposiccedilatildeo
contraditoacuteria privativa contraacuteria e correlativa
A oposiccedilatildeo contraditoacuteria implica uma negaccedilatildeo muacutetua um termo afirma o que o
outro nega Esse tipo de oposiccedilatildeo diz respeito antes agraves proposiccedilotildees que aos entes e ocorre
quando duas proposiccedilotildees se opotildeem tanto na qualidade (afirmativa ou negativa) quanto na
quantidade (universal ou particular) Por esse motivo e em razatildeo da impossibilidade de um
compromisso ou ponto meacutedio entre os termos dessa oposiccedilatildeo podemos descartaacute-la
A privaccedilatildeo eacute a oposiccedilatildeo entre algo e a sua ausecircncia Se a oposiccedilatildeo masculino-
feminino fosse desse tipo seria impossiacutevel a um ente ser simultaneamente masculino e
feminino pois nada pode coexistir com a sua proacutepria ausecircncia O uacutenico meio termo entre a
posse e a privaccedilatildeo eacute a impossibilidade irredutiacutevel da posse da qual decorreria
necessariamente a impossibilidade da privaccedilatildeo pois a privaccedilatildeo eacute a carecircncia de uma perfeiccedilatildeo
para a qual o sujeito estaacute naturalmente apto Fosse esse o caso os entes simultaneamente
masculinos e femininos assim o seriam em razatildeo de sua inaptidatildeo para ambos natildeo em virtude
de sua aptidatildeo para os dois o que eacute absurdo e justifica a exclusatildeo tambeacutem da oposiccedilatildeo
privativa
Jaacute os opostos correlativos satildeo aqueles ldquoem que todo o seu ser consiste em ser dito
de outras coisas ou que estatildeo de alguma maneira em relaccedilatildeo reciacuteprocardquo (11b32) Haacute sem
duacutevida de alguma maneira certa correlaccedilatildeo entre masculino e feminino grave e agudo frio e
quente aberto e fechado accedilatildeo e paixatildeo mas dificilmente o mesmo poderia ser dito entre
ritmo e melodia ou lua e terra por exemplo E mesmo nos casos em que os termos opostos
guardam certa correlaccedilatildeo seria preciso investigar se a correlaccedilatildeo se observa igualmente e
sempre tambeacutem nos entes aos quais os termos satildeo atribuiacutedos O exame ficaria ainda mais
difiacutecil no caso de atribuiccedilotildees metafoacutericas por exemplo quando se fala em frase aberta
porosa uacutemida ou fechada
Essa dificuldade natildeo existe no caso dos opostos contraacuterios pois ldquoeles natildeo tecircm a
sua essecircncia na referecircncia que mantecircm um como o outro mas satildeo apenas ditos contraacuterios uns
dos outrosrdquo (11b35) Os contraacuterios tambeacutem admitem intermediaacuterio embora haja para isso
condiccedilotildees
Todas as vezes que os contraacuterios satildeo tais que os sujeitos nos quais estatildeo
naturalmente presentes ou dos quais satildeo afirmados devem
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necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
37
exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
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BIBLIOGRAFIA
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
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ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras
morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237
ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo
Ibrasa 1990
WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
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necessariamente conter um ou outro natildeo haacute intermediaacuterio entre eles mas
se se trata de contraacuterios que natildeo estatildeo necessariamente contidos um ou
outro no sujeito haacute em todos os casos algum intermediaacuterio (12a2-5)
Assim a condiccedilatildeo para existecircncia de intermediaacuterio eacute a acidentalidade da oposiccedilatildeo
condiccedilatildeo que natildeo impotildee qualquer dificuldade jaacute que o caraacutecter masculino ou feminino eacute de
fato acidental A uacutenica dificuldade talvez decorra do fato de que em algumas oposiccedilotildees
associadas ao par masculino-feminino natildeo haver possibilidade de ponto intermediaacuterio Tal eacute o
caso por exemplo da oposiccedilatildeo par e iacutempar em que a atribuiccedilatildeo de apenas um deles eacute
necessaacuteria com a consequente exclusatildeo do outro Quintiliano talvez respondesse a essa
objeccedilatildeo observando que qual seja o nuacutemero par ou iacutempar nenhum deles estaacute excluiacutedo da
mescla jaacute que sua paridade ou imparidade resulta por sua vez igualmente da interaccedilatildeo dos
dois princiacutepios O cinco por exemplo embora iacutempar eacute composto igualmente do par e do
iacutempar (3+2=5 4+1=5) Essa observaccedilatildeo no entanto poria a mescla masculino-feminino num
patamar diferente do que tiacutenhamos a princiacutepio imaginado pois faria dela natildeo o estado
intermediaacuterio entre dois opostos mas a condiccedilatildeo mesma de existecircncia dos opostos
individualmente considerados a forma mesma talvez do princiacutepio de oposiccedilatildeo
Cabe agora retomar um aspecto que haviacuteamos deixado de lado Eacute que as noccedilotildees
de masculino e feminino tal como as emprega Quintiliano natildeo designam e relacionam
somente os termos de um par de opostos mas pretendem estabelecer nexos tambeacutem entre
esses pares e mais ainda entre cada termo da oposiccedilatildeo e seus respectivos equivalentes
noutros pares de opostos A dualidade natildeo opera aqui relaccedilotildees apenas mas relaccedilotildees entre
relaccedilotildees as quais natildeo estabelecem entre si uma oposiccedilatildeo mas ao contraacuterio algo como uma
espeacutecie de identidade ou mais propriamente de semelhanccedila
Ora uma relaccedilatildeo eacute aquilo que os romanos denominavam ratio e os gregos
loacutegos jaacute uma relaccedilatildeo entre relaccedilotildees eacute com mais exatidatildeo denominada proportionalitas ou
analogiacutea Ou ainda nas palavras de Aristoacuteteles (Eacutetica a Nicocircmaco 1131b31) ldquoἡ γὰρ
ἀναλογία ἰσότης ἐστὶ λόγωνrdquo (a analogia eacute uma igualdade de loacutegoi de razotildees de relaccedilotildees)
A palavra analogia portanto natildeo veicula apenas a ideia de relaccedilatildeo ou de muitas
relaccedilotildees mas de relaccedilotildees que se repetem que se reproduzem e que entretecircm no curso desse
processo igualmente uma relaccedilatildeo
Analogia est um mot grec Il se compose de logia qui deacuterive de logos et
du preacutefixe ana Logos a de multiples sens discours parole penseacutee
notion raison rapport etc Les sens de la preacuteposition ana ne sont pas
moins nombreux Les philologues y dicernent trois thegravemes principaux
celui drsquoeacutelevation ltde bas em hautgt celui de retour lten arriegraveregt ou
encore lten sens inversegt celui de reacutepeacutetition de ce qui se produit de
nouveaugt Ces trois thegravemes se combinent dans la notion drsquoanalogia qui
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exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
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grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
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Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
BIBLIOGRAFIA
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
[19--]
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WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
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exprime lrsquoideacutee drsquoum rapport (logos) entre ce qui est em haut et ce qui est
en bas (verticaliteacute) avec eacuteventuellement lrsquoideacutee drsquoun renversement (le
plus petit comme analogue du plus grand)17
Como forma de relaccedilatildeo entre as coisas a analogia eacute uma espeacutecie de nexo que
unifica os muacuteltiplos sem poreacutem destruiacute-los ou ainda que preenche o hiato entre o caraacuteter
entitativo proacuteprio dos seres individuais em sua relativa independecircncia e a inescapaacutevel
unidade do real A analogia eacute nesse sentido muito proacutexima da noccedilatildeo de harmonia
Si lon remonte au moment historique ou deux teacutetracordes de lyres
primitives furent assembleacutes en un seul heptacorde de part et dautre dune
corde moyenne la megravese et a laide dune jointure mateacuterielle lharmos
on comprend lorigine du terme dharmonie autant que la signification
du principe quil exprime Dune maniere geacuteneacuterale on entendra par
harmonie lunion organique de deux (ou plusieurs) eacuteleacutements se
ressemblant ou se diffeacuterenciant lun par rapport a lautre Soumis a une
neacutecessiteacute de coexistence unificatrice ces eacuteleacutements bien quopposeacutes au
deacutepart se voient infleacutechis et fondus au point de former une structure
deacutesormais unique et indissoluble mais qui au fond garde intactes en
son unitariteacute les traces de ses valeurs constitutives De La conception
originelle purement technique de la notion dharmonie deacuterive la
conception damonienne a la fois artistique psychologique et politique
de lharmonie en tant que modaliteacute daccord des cordes de la lyre
partant de laquodisposition de 1 Ameraquo18
Enquanto forma de dizer o que satildeo as coisas ndash isto eacute como modalidade de
predicaccedilatildeo ndash a analogia eacute um estado intermediaacuterio entre a univocidade e o equiacutevoco e
mesmo entre o conhecido e o desconhecido ou ainda entre a certeza e o engano Na
matemaacutetica de onde ela de fato se origina a analogia permite identificar o termo
desconhecido de uma relaccedilatildeo conhecida a exemplo do que ocorre na regra de trecircs (48 =
2X) Seu emprego na filosofia eacute analogamente o mesmo com a diferenccedila ou ressalva de que
a transposiccedilatildeo filosoacutefica de um meacutetodo tomado das matemaacuteticas naturalmente implica certas
premissas das quais poreacutem natildeo trataremos Aqui por ora soacute nos interessa o meacutetodo
A doutrina escolaacutestica da analogia sistematizada pelo Cardeal Caetano (1468-
1534) no tratado De nominum analogia com base em Santo Tomaacutes de Aquino (que por sua
vez se apoiu em Aristoacuteteles19
) estabelece trecircs tipos de analogia20
A analogia de desigualdade eacute aquela em que os analogados partilham tanto o
termo predicado quanto a razatildeo da predicaccedilatildeo embora natildeo partilhem do predicado no mesmo
17
Borella 2012 p23 18
Moutsopoulos 2004 p203-204 19
Embora a existecircncia em Aristoacuteteles de uma doutrina da analogia do ser (analogia entis) tal como formulada
pelos medievais seja alvo de contestaccedilatildeo O escopo deste trabalho poreacutem natildeo permite uma discussatildeo mais
ampla dessa questatildeo Para mais detalhes cf Borella 2012 p 40-45 AUBENQUE Pierre Le problegraveme de lrsquoecirctre
chez Aristote Paris PUF 1962 20
A exposiccedilatildeo a seguir estaacute baseada sobretudo em McInerny 1961 p03-23
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grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
BIBLIOGRAFIA
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
[19--]
_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
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Paranaacute 2003
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo
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ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo
Ibrasa 1990
WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
38
grau de perfeiccedilatildeo Eacute esse o caso de ldquoanimalrdquo quando atribuiacutedo ao homem e ao cavalo A razatildeo
da predicaccedilatildeo aqui eacute a mesma porque ldquohomemrdquo e ldquocavalordquo satildeo de fato de espeacutecie de animais
mas a animalidade em cada um deles se manifesta de modo qualitativamente distinto pois um
homem possui mais daquilo que a animalidade pode comunicar a um ente
Natildeo seria fora de propoacutesito conjeturar a existecircncia desse tipo de analogia entre os
seres que Quintiliano qualifica como masculinos ou femininos Ele mesmo adverte em muitas
passagens quanto agrave diferenccedila no grau de masculinidade ou feminilidade que haacute entre eles No
entanto sempre que eacute feita a advertecircncia ela se refere a seres situados num mesmo acircmbito ou
submetidos a um mesmo gecircnero Quintiliano nos diz por exemplo que o alfa eacute mais
masculino que o eacutepsilon embora ambos sejam compostos de uma mescla No entanto jamais
nos diz se o seco eacute mais masculino que o ocircmega ou vice-versa Ou seja natildeo haacute um paracircmetro
(exceto eacute claro o grau de perfeiccedilatildeo intriacutenseco de cada ser) que nos permita avaliar como no
caso da animalidade quanto cada ente nos diversos graus de realidade eacute capaz de manifestar
da natureza masculina ou feminina
Como vimos a analogia de desigualdade estaacute muito proacutexima da univocidade De
fato nas Categorias Aristoacuteteles recorre a um exemplo parecido (trocando o cavalo por um
boi) para ilustrar o que eacute uma predicaccedilatildeo uniacutevoca Segundo a escala de univocaccedilatildeo proposta
pelos escotistas21
a analogia de desigualdade equivaleria aos uniacutevocos de segundo grau aos
quais satildeo comuns o nome a razatildeo o modo de ser a ordem mas natildeo a perfeiccedilatildeo Separada da
univocidade somente no tocante ao uacuteltimo criteacuterio a analogia de desigualdade muitas vezes
sequer eacute mencionada entre os tipos de analogia
O segundo tipo de analogia a analogia de proporcionalidade tem especial
interesse para noacutes em razatildeo de sua oacutebvia relaccedilatildeo com os procedimentos matemaacuteticos dos
quais de fato deriva Proporcionalidade eacute uma similaridade entre proporccedilotildees Assim haacute
analogia de proporcionalidade quando uma relaccedilatildeo assume a forma ab = cd Eacute esse o caso
por exemplo quando se diz que o leatildeo eacute o rei dos animais pois o rei estaacute para a comunidade
poliacutetica como o leatildeo para a comunidade dos animais O problema eacute que a comunidade dos
animais natildeo designa propriamente uma comunidade menos ainda uma comunidade poliacutetica
de modo que apesar de unidas sob um mesmo conceito as realidades permanecem
heterogecircneas Esse tipo de analogia portanto permanece no campo da metaacutefora razatildeo pela
qual eacute chamada de analogia de proporcionalidade improacutepria ou metafoacuterica
21
Cf Comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos ao tratado das Categorias 1965 p29
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
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alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
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BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia
Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010
BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano
1994
CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea
Classica (Brasil) 2412 73-85 2011
CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o
portuguecircs 2003 190f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Universidade Federal do Paranaacute
Paranaacute 2003
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo
Martins Fontes 2007
GUEacuteNON Reneacute A grande triacuteade Satildeo Paulo Pensamento 1999
LALANDE Andreacute Vocabulaacuterio teacutecnico e criacutetico da filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes
1996
McINERNY Ralph M The logic of analogy an interpretation of St Tomas Haia Martinus
Nijhoff 1961
MOUTSOPOULOS E La philosophie de la musique dans le systegraveme de Proclus Athegravenes
Acad De Athegravenes 2004
44
QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis
Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996
______________________ On Music in three books Translation introduction commentary
and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983
______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys
Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963
REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011
ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras
morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237
ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo
Ibrasa 1990
WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
39
Jaacute a analogia de proporcionalidade intriacutenseca possui a mesma estrutura formal que
a anterior com a diferenccedila de que ldquonomen illud commune in utroque analogatorum absque
metaphorisrdquo (McInerny op cit p12) ou seja de que o nome comum se predica de ambos os
analogados sem metaacuteforas Por exemplo ldquout principium in corde respectu animalis et in
fundamento respectu domus salvaturrdquo ou quando o alicerce de uma casa e o coraccedilatildeo de um
animal satildeo ambos chamados de princiacutepio O exemplo mais comum de analogia de
proporcionalidade intriacutenseca contudo eacute o que relaciona a visatildeo com a intelecccedilatildeo pois satildeo
ambas modalidades de acesso ao mundo exterior Na primeira a visatildeo o acesso se daacute por
meio do corpo na segunda a intelecccedilatildeo o acesso se daacute pela alma Assim a visatildeo estaacute para o
corpo como a inteligecircncia para alma Eis a equaccedilatildeo subentendida em expressotildees como ldquovisatildeo
intelectualrdquo e outras
Proporcionalidade eacute uma noccedilatildeo matemaacutetica Seu emprego fora desse acircmbito eacute
ele proacuteprio analoacutegico o que natildeo significa que natildeo possa ser igualmente exato Ateacute a eacutepoca de
Arquitas22
(430-360) os pitagoacutericos distinguiam trecircs tipos de proporccedilatildeo relaccedilatildeo ou meacutedia
(em suma ldquoμεσότηςrdquo meio-termo) a aritmeacutetica a geomeacutetrica e a subcontraacuteria (tambeacutem
chamada harmocircnica) O termo ldquoμεσότηςrdquo aplicado a essas proporccedilotildees siginificava a
princiacutepio apenas ldquole terme qui est moyen entre deux autres qursquoon appelle lecircs ltextremesgtrdquo23
a
exemplo do nuacutemero 2 ponto meacutedio da seacuterie 1 2 3 Em seguida o termo passou a designar
ldquonon plus seulement le moyen terme mais toute seacuterie de termes dans laquelle deux extrecircmes
sont relieacutes par un moyen terme quelle que soit la nature de cette ltmoyenneteacutegt crsquoest-agrave-dire de
cette meacutedieacuteteacuterdquo24
Haacute portanto uma ideia de intermediaccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre extremos
implicada no conceito matemaacutetico de proporccedilatildeo
Quintiliano menciona no cap5 do livro III os trecircs tipos de proporccedilatildeo
matemaacutetica Aqui nos interessa apenas a proporccedilatildeo geomeacutetrica que pode ser de dois tipos
contiacutenua ou descontiacutenua
A descontiacutenua tem forma idecircntica agrave da analogia de proporcionalidade em que ab
= cd Eacute essa a forma da proporcionalidade implicada na analogia que relaciona por exemplo
o ocircmega ao masculino e o eta ao feminino
Jaacute a proporccedilatildeo geomeacutetica contiacutenua tem a forma ab = bc em que os termos A e C
estatildeo mediados pelo termo B a exemplo do que ocorre quando Quintiliano relaciona a alma
desejante(feminina) com a alma impulsiva(masculina) e esta (agora feminina) por sua vez agrave
22
Borella 2012 p 26 23
Borella 2012 p 27 24
Op cit loc cit
40
alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
BIBLIOGRAFIA
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
[19--]
_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro
2005
____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo
Paulo Matese 1965
____________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad introduccedilatildeo e notas de Maacuterio da Gama Kury
Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001
BARKER Andrew Greek music writings vol02 harmonic and acoustic theory Cambridge
Cambridge University Press 1990
BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012
BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia
Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010
BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano
1994
CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea
Classica (Brasil) 2412 73-85 2011
CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o
portuguecircs 2003 190f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Universidade Federal do Paranaacute
Paranaacute 2003
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo
Martins Fontes 2007
GUEacuteNON Reneacute A grande triacuteade Satildeo Paulo Pensamento 1999
LALANDE Andreacute Vocabulaacuterio teacutecnico e criacutetico da filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes
1996
McINERNY Ralph M The logic of analogy an interpretation of St Tomas Haia Martinus
Nijhoff 1961
MOUTSOPOULOS E La philosophie de la musique dans le systegraveme de Proclus Athegravenes
Acad De Athegravenes 2004
44
QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis
Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996
______________________ On Music in three books Translation introduction commentary
and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983
______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys
Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963
REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011
ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras
morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237
ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo
Ibrasa 1990
WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
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alma racional que eacute masculina Ou nos mesmos termos o mundo corpoacutereo com a alma e
depois esta com o suprassensiacutevel Ou o mundo sublunar com a lua e a seguir a lua com os
demais planetas25
Nesses casos eacute possiacutevel saber o que analoga um par com o outro qual a
medida que eles tecircm em comum Eacute possiacutevel ateacute mesmo estabelecer uma seacuterie de proporccedilotildees
do tipo ab = bc = cd e assim sucessivamente Mas natildeo parece possiacutevel a princiacutepio alcanccedilar
o termo final da seacuterie de modo a estabelecer a razatildeo analogante uacuteltima (ou primeira
conforme o ponto de vista) que explica a seacuterie inteira
E essa impossibilidade nos leva ateacute a analogia de atribuiccedilatildeo que tem esse nome
porque nela natildeo satildeo os entes que estatildeo analogados mas a predicaccedilatildeo que lhes eacute atribuiacuteda
Segundo o cardeal Caetano (McInerny op cit p06) ldquoanaloga autem secundum
attributionem sunt quorum nomen commune est ratio autem secundum illud nomen est
eadem secundum terminum et diversa secundum habitudines ad illumrdquo ou anaacutelogos por
atribuiccedilatildeo satildeo aqueles cujo nome eacute comum e cujo conceito no que tange agravequele nome eacute o
mesmo segundo o termo mas que satildeo diferentes nas relaccedilotildees que estabelecem com esse
termo O exemplo mais ceacutelebre eacute o da palavra ldquosaudaacutevelrdquo aplicada ao remeacutedio agrave urina e ao
animal O sentido que a palavra possui em cada um desses casos deriva da relaccedilatildeo que o
remeacutedio a urina e o animal estabelecem com a sauacutede O remeacutedio saudaacutevel eacute a causa da sauacutede
A urina saudaacutevel eacute um sintoma de sauacutede E o animal saudaacutevel eacute o sujeito da sauacutede No
entanto as trecircs atribuiccedilotildees natildeo satildeo igualmente anaacutelogas pois o animal eacute dito saudaacutevel em
sentido proacuteprio e uniacutevoco ao passo que as demais atribuiccedilotildees eacute que satildeo anaacutelogas agravequela
Assim a analogia de atribuiccedilatildeo requer como condiccedilatildeo primeira a existecircncia de um
analogado principal ao qual o predicado seja atribuiacutedo plena e univocamente
Poreacutem se observarmos com atenccedilatildeo perceberemos que haacute analogias distintas
dentro de uma mesma analogia de atribuiccedilatildeo A analogia que os analogados secundaacuterios
estabelecem entre si (como base na analogia que todos estabelecem com o analogado
primeiro) natildeo eacute a mesma que haacute entre o analogado principal e cada analogado secundaacuterio
tomado separadamente pois esta uacuteltima analogia eacute o fundamento daquelas
Noutras palavras a analogia criada entre a urina e o remeacutedio por meio do
emprego da palavra ldquosaudaacutevelrdquo careceria de todo sentido (a exemplo da analogia entre o
ocircmega e o ritmo ou Saturno e a secura mediante o termo ldquomasculinordquo) caso
desconhececircssemos a relaccedilatildeo que cada um deles estabelece com o animal saudaacutevel O animal eacute
25
Eacute essa igualmente a estrutura do silogismo em que um termo maior e um termo menor estatildeo relacionados
mediante um termo meacutedio
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
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Borella 2012 p 35-36
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4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
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BIBLIOGRAFIA
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
[19--]
_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro
2005
____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo
Paulo Matese 1965
____________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad introduccedilatildeo e notas de Maacuterio da Gama Kury
Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001
BARKER Andrew Greek music writings vol02 harmonic and acoustic theory Cambridge
Cambridge University Press 1990
BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012
BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia
Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010
BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano
1994
CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea
Classica (Brasil) 2412 73-85 2011
CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o
portuguecircs 2003 190f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Universidade Federal do Paranaacute
Paranaacute 2003
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo
Martins Fontes 2007
GUEacuteNON Reneacute A grande triacuteade Satildeo Paulo Pensamento 1999
LALANDE Andreacute Vocabulaacuterio teacutecnico e criacutetico da filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes
1996
McINERNY Ralph M The logic of analogy an interpretation of St Tomas Haia Martinus
Nijhoff 1961
MOUTSOPOULOS E La philosophie de la musique dans le systegraveme de Proclus Athegravenes
Acad De Athegravenes 2004
44
QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis
Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996
______________________ On Music in three books Translation introduction commentary
and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983
______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys
Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963
REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011
ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras
morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237
ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo
Ibrasa 1990
WEST M L Ancient greek music New York Oxford University Press 1994
41
o elemento que daacute comensurabilidade agrave relaccedilatildeo entre o remeacutedio e a urina eacute o ponto meacutedio
que haacute entre eles
De qualquer forma quando dizemos que a urina eacute saudaacutevel ou que o remeacutedio eacute
saudaacutevel natildeo estamos de forma alguma atribuindo sauacutede agrave urina ou ao remeacutedio pois
ldquosaudaacutevelrdquo natildeo significa nesses casos ndash nem formal nem materialmente ndash o mesmo que
significa quando aplicado ao animal E eacute por isso que o exemplo da urina do remeacutedio e do
animal ilustra apenas a analogia dita de atribuiccedilatildeo extriacutenseca Haacute no entanto uma analogia de
atribuiccedilatildeo intriacutenseca
Il y a des cas ougrave un mecircme terme srsquoattribue agrave des reacutealiteacutes diffeacuterentes en
gardant formellement dans une certaine mesure la mecircme signification Il
srsquoagit bien drsquoune analogie drsquoattribuition () qui nrsquoexclut pas que le terme
attribueacute deacutesigne une proprieacuteteacute intrinsegraveque agrave chacune des entiteacutes
auxquelles il est attribueacute qursquoil srsquoagisse drsquoanalogueacute premier ou
drsquoanalogueacutes seconds Ainsi quand nous disons la quantiteacute est (existe) la
qualiteacute est (existe) nous attribuons bien lrsquoecirctre agrave deux laquo cateacutegories raquo (la
quantiteacute e la qualiteacute) comme une proprieteacute intrinsegraveque agrave chacune drsquoelles
parce que ces cateacutegories (ou laquo preacutedicaments raquo) existent bien reacuteellement
lrsquoecirctre ainsi attribueacute est mecircme le seul point que la quantiteacute et la qualiteacute
possegravedent en commun et qui permet de les introduire dans une relation
drsquoanalogie Cependant ni la quantiteacute ni la qualiteacute ne possegravedent lrsquoecirctre par
elles-mecircmes Consideacuterons la quantiteacute lsquolsquotroisrsquorsquo et la qualiteacute lsquolsquovertrsquorsquo elles
nrsquoexistent pas agrave lrsquoeacutetat isoleacute et ne se rencontrent jamais en tant que telles
mais seulement comme par exemple le nombre et la couleur des feuilles
du tregravefle Le tregravefle lui existe par lui-mecircme crsquoest une substance
individuelle lsquolsquotroisrsquorsquo et lsquolsquovertrsquorsquo nrsquoexistent que de son existence ce sont
des accidents et lrsquoecirctre ne leur est attribueacute que par reacutefeacuterence agrave lrsquoecirctre de la
substance () Il y a donc un ordre drsquoattribuition de lrsquoecirctre laquo par prioriteacute et
par deacuterivation raquo (per prius et posterius) Plus preacuteciseacutement lrsquoanalogie
drsquoattribuition signifie cet ordre mecircme et exprime cette loi ontologique
que dans la reacutealite il nrsquoy a pas une pure diffusion ou disseacutemination
de lrsquoecirctre dans une multipliciteacute drsquoentiteacutes isoleacutees et sans rapport les
unes avec les autres mais une hieacuterarchie de rapports de participation
agrave lrsquoecirctre26
(grifo nosso)
26
Borella 2012 p 35-36
42
4 Agrave guisa de conclusatildeo
Se o ser eacute comunicado agraves categorias da quantidade e da qualidade mediante a
categoria da substacircncia a qual estaria para aquelas como o analogado primeiro estaacute para os
analogados secundaacuterios (de forma que se poderia dizer portanto que a substacircncia possui
participaccedilatildeo prioritaacuteria no ser) e se a participaccedilatildeo eacute de fato essa lei ontoloacutegica que coerindo a
multiplicidade dos seres na unidade do ser manifesta-se na ordem da linguagem humana sob
a forma da analogia caberia entatildeo perguntar se o mesmo natildeo se aplica ao masculino e ao
feminino
Se for esse o caso o supremo analogante dos masculinos e femininos deve
participar dessas realidades num grau de perfeiccedilatildeo igualmente supremo Do mesmo modo sua
participaccedilatildeo no Ser teria de ser no miacutenino compatiacutevel com a sumidade dessa perfeiccedilatildeo
Essas no entanto satildeo especulaccedilotildees de ordem metafiacutesica que Quintiliano insinua
eacute fato mas nas quais Quintiliano evita avanccedilar decididamente comprometido que estaacute com o
acircmbito cosmoloacutegico da sua exposiccedilatildeo
Suas uacuteltimas palavras ao final do livro III apenas sugerem o muito que foi
preciso calar Nelas ele reforccedila o papel fundamental que tem a muacutesica como ancilla
philosophiae e diz que agrave muacutesica cabe o preacircmbulo os Pequenos Misteacuterios enquanto agrave
filosofia pertencem os cumes os Grandes Misteacuterios A segunda navegaccedilatildeo comeccedila enfim
exatamente onde termina a primeira
43
BIBLIOGRAFIA
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo de Leonel Vallandro Porto Alegre Editora Globo
[19--]
_____________ Oacuterganon Categorias Da interpretaccedilatildeo Analiacuteticos Anteriores Analiacuteticos
Posteriores Toacutepicos Refutaccedilotildees sofiacutesticas Trad e notas de Edson Bini Bauru SP Edipro
2005
____________ Das Categorias Trad notas e comentaacuterios de Maacuterio Ferreira dos Santos Satildeo
Paulo Matese 1965
____________ Eacutetica a Nicocircmaco Trad introduccedilatildeo e notas de Maacuterio da Gama Kury
Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2001
BARKER Andrew Greek music writings vol02 harmonic and acoustic theory Cambridge
Cambridge University Press 1990
BORELLA Jean Penser lrsquoanalogie Paris LrsquoHarmattan 2012
BRISSON Luc PRADEAU Jean-Franccedilois Vocabulaacuterio de Platatildeo Traduccedilatildeo Claudia
Berliner Satildeo Paulo Martins Fontes 2010
BURNET John O despertar da filosofia grega Trad Mauro Gama Satildeo Paulo Siciliano
1994
CERQUEIRA F V Eacutetica e esteacutetica na muacutesica grega a educaccedilatildeo e o ideal da kalo-kagathiacutea
Classica (Brasil) 2412 73-85 2011
CHAPANSKI Gissele Uma traduccedilatildeo da Tekhne Grammatike de Dioniacutesio Traacutecio para o
portuguecircs 2003 190f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) ndash Universidade Federal do Paranaacute
Paranaacute 2003
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio grego da filosofia Traduccedilatildeo Ivone C Benedetti Satildeo Paulo
Martins Fontes 2007
GUEacuteNON Reneacute A grande triacuteade Satildeo Paulo Pensamento 1999
LALANDE Andreacute Vocabulaacuterio teacutecnico e criacutetico da filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes
1996
McINERNY Ralph M The logic of analogy an interpretation of St Tomas Haia Martinus
Nijhoff 1961
MOUTSOPOULOS E La philosophie de la musique dans le systegraveme de Proclus Athegravenes
Acad De Athegravenes 2004
44
QUINTILIANO Ariacutestides Sobre la muacutesica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis
Colomber y Begontildea Gil Madrid Editoral Gredos 1996
______________________ On Music in three books Translation introduction commentary
and annotations by Thomas J Mathiesen Yale University Press 1983
______________________ Aristidis Quintiliani de musica libri tres Reginald Pepys
Winnington-Ingram (ed) Lipsiae Teubner 1963
REINACH Theacuteodore A muacutesica grega Satildeo Paulo Perspectiva 2011
ROCHA R A Sobre a muacutesica In SOARES Carmen ROCHA Roosevelt Plutarco obras
morais Coimbra Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos 2010 p63-237
ROUGIER Louis A religiatildeo astral dos pitagoacutericos Trad De Aydano Arruda Satildeo Paulo
Ibrasa 1990
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