UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FRANCIELE DO COUTO GRABOWSKI
BAUDELAIRE: UM CRÍTICO DE ARTE
CURITIBA
2010
FRANCIELE DO COUTO GRABOWSKI
BAUDELAIRE: UM CRÍTICO DE ARTE
Monografia apresentada à disciplina Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. José Roberto Braga Portella
CURITIBA2010
RESUMO
Este trabalho possuiu como questionamento o conceito empregue à palavra modernitè pelo escritor francês Charles Baudelaire (1821-1867). Para tal, analisamos os textos em prosa do poeta, enquadrados como crítica de arte, pois se encontram nestes a elaboração do termo. Embora a conceituação sobre tal palavra tenha ocorrido somente no ensaio O pintor da vida moderna, publicado na revista Le Figaro em 1863, a análise desta monografia perpassa textos anteriores a este nos quais, acredita-se, conter os princípios teóricos do conceito. Na tentativa de entrelaçar obra e época, tratar-se-á de alguns conceitos desenvolvidos por Baudelaire e utilizados como parâmetro em todos os seus escritos. Além disso, faz-se necessário as referências contextuais, pois tensões históricas exigiram posicionamentos, reflexões sobre a sociedade emergente e sua própria condição como artista. Assim, seguimos a concepção de Walter Benjamin quando no seu estudo sobre Charles Baudelaire, procurando arrancar “fragmentos de obra, vida e época” transmitida pela perspectiva de um determinado indivíduo: Baudelaire.
Palavras-chave: Crítica de arte. Modernitè. Experiência moderna.
RÉSUMÉ
Ce travail a possédé comme questionnement le concept emploie au mot modernitè par l'auteur français Charles Baudelaire (1821-1867). Pour cela, nous analysons les textes dans cause du poète, encadrés mange critique d'art, donc ils se trouvent dans la cette l'élaboration du terme. Bien que la conceptualisation sur tel mot se soit produite seulement dans l'essai Le peintre de la vie moderne, publié à la revue Le Figaro en 1863, l'analyse de cette monographie perpassa textes précédents à ce dans lesquels, il se croit, contenir les principes théoriques du concept. Dans la tentative d'entrelacer oeuvre et temps, il s'agira de quelques concepts développés par Baudelaire et utilisés je mange paramètre dans tous les leurs écrits. En outre, se fait nécessaire les références contextuelles, donc des tensions historiques ont exigé positionnements, réflexions sur la société émergente et leur propre condition comme artiste. Ainsi, nous suivons la conception de Walter Benjamin quand dans son étude sur Charles Baudelaire, en cherchant arracher des “fragments d'oeuvre, de la vie et du temps” transmis par la perspective d'une certaine personne: Baudelaire.
Mots-clés: Modernitè. Critique d’art. Modernitè. Experiénce moderne.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................5
1. FRAGMENTOS DE VIDA: BAUDELAIRE EM PARIS ...........................................8
1.1 O heroísmo da vida moderna: alegoria, dândi, flâneur, spleen........................................8
2. FRAGMENTOS DA ÉPOCA: PARIS EM BAUDELAIRE......................................17
2.1 O fenômeno urbano do século XIX: a modernização de Paris......................................18
2.2 O indivíduo.....................................................................................................................22
2.3 Bohème literária e os excluídos das artes.......................................................................25
3. FRAGMENTOS DA OBRA. O LIMIAR DO PROJETO ESTÉTICO DE
BAUDELAIRE EM SUAS CRÍTICAS ARTÍSTICAS...................................................30
3.1 Da utilidade da arte para a compreensão do mundo......................................................30
3.2 Beleza, tempo e imaginação: perspectiva da modernitè na criação artística.................37
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................45
FONTES..............................................................................................................................48
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................49
ANEXO ..............................................................................................................................53
APÊNDICE.........................................................................................................................58
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INTRODUÇÃO
A opção por realizar este trabalho com Baudelaire ocorreu, sobretudo, na tentativa de
compreender as discussões acadêmicas que citam ou mesmo reivindicam um lugar tido como
moderno ou pós-moderno. Afirmar, contudo, que somente este mal-estar direcionou-me à
Baudelaire seria incorrer numa justificativa rasa. A leitura de textos que mencionam ter sido
ele um dos primeiros a formular uma concepção de modernidade - mesmo que restrita a uma
concepção moderna de estética – ampliou-me a perspectiva para iniciar uma pesquisa com
esta problemática. A posterior descoberta dos textos de crítica de arte e a relação entre
modernitè e arte apenas reforçaram o desejo.
Definitivamente é consensual que sua obra máxima trata-se de As flores do mal, para
a qual dedicou toda a sua vida. É das suas composições poéticas o legado de precursor da
modernidade literária, e de poeta da “modernidade”. Ambas as denominações equivalem-se.
Mas a primeira restringe-se ao processo estético da poesia moderna, destacando, por exemplo,
a recusa das concepções poéticas românticas, e a relação da música como dado essencial da
linguagem poética. E de forma mais ampla, certa autonomia da poesia e da arte em relação à
filosofia, moral, política e história, libertando-a dos elementos narrativos e “didáticos” que a
restringiam1.
Já o termo poeta da “modernidade” atém-se aos temas que mereceram a escrita de
Baudelaire. Decorre, principalmente, disso o vínculo entre a leitura da cidade e da sua época
com a formulação de um posicionamento diante dos sintomas da modernidade. O poeta
questionou aspectos do seu cotidiano, investindo na potencialidade da criação artística, sendo
que do ato criador provém o desvelamento do núcleo da vida e o potencial crítico social . Para
Hugo Friedrich, os ensaios de Baudelaire “vão se ampliando cada vez mais, até chegarem a
análises da consciência da época, ou seja, da modernidade em si, porque Baudelaire concebe
a poesia e a arte como elaboração criativa do destino de uma época”2.
Assim, o recorte deste projeto monográfico se distancia da revolução promovida pelo
verso baudelairiano, propondo antes como problemática uma análise daquilo que Baudelaire
definiu como modernitè. Não se busca, entretanto, ressaltar que do poeta francês originou-se o
1 BAUDELAIRE, Charles. 1821-1867. As flores do mal: edição bilíngüe / Charles Baudelaire; tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. – 1ª edição especial -. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006 (40 anos, 40 livros), p. 62.2 FRIEDRICH, Hugo. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 1039.
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termo. Mesmo que uma palavra inexista, idéias e movimentos pelas vias do cultural, social,
político, antecedem aquilo que a palavra denota.
Destacando uma autonomia da arte, o papel ínfimo à inspiração e à importância do
processo intelectual na criação, Baudelaire atribuiu ao artista uma capacidade de observar
tudo ao seu redor, mas também de conseguir expressar-se. Segundo Michel Foucault, a
modernidade proposta em Baudelaire não significa apenas a consciência da ruptura com a
tradição, uma consciência do tempo e a abertura para o novo, aceitando este movimento; mas
“assumir uma determinada atitude em relação a esse movimento; e essa atitude voluntária,
difícil, consiste em recuperar alguma coisa de eterno que não está além do instante presente,
nem por trás dele, mas nele”3. Interessa-o, antes de qualquer coisa o questionamento do seu
presente.
Para tal, os ensaios e artigos definidos como pertencentes ao âmbito da crítica de arte
são: Salão de 1845; O museu clássico do bazar Bonne-Nouvelle (1846); Salão de 1846; Da
essência do riso e, de modo geral, do cômico nas artes plásticas (1855); Alguns
caricaturistas franceses (1857); Alguns caricaturistas estrangeiros (1857); Exposição
Universal (1855); A arte filosófica; Salão de 1859; O pintor da vida moderna (1863); A obra
e a vida de Eugène Delacroix (1863). Mas, para a realização deste trabalho, o corpo de fontes
reduz-se aos quatro artigos dos Salões e a publicação dedicada à Constantin Guys, O pintor
da vida moderna.
Com estes, nota-se a estima de Baudelaire pelas manifestações artísticas desde seus
primeiros escritos: a primeira publicação de âmbito crítico artístico data de 1845,
prolongando-se até pouco antes de sua morte. Não é a toa que há uma compatibilidade entre a
significação da modernitè e o gênio artístico heroificado: para Baudelaire o artista era o
“herói” do seu tempo, aquele quem melhor percebia a expressão verdadeira da realidade, e
não tal como aparentava.
Não obstante, se a problemática refere-se ao termo, procuramos nos afastar da estrita
delimitação deste. O embasamento do conceito envolve outras noções e idéias discutidas por
Baudelaire desde o primado do seu manifesto artístico, como a questão do Belo na arte.
Assim, a discussão pormenorizada da modernitè será realizada no terceiro capítulo deste
trabalho, mas no intuito de analisar as determinações e ideologias repercutidas no significado
do termo.
No primeiro capítulo, analisamos algumas noções que remontam ao ideário estético 3 FOUCAULT, Michel. “O que são as luzes”, IN: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. (Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta; tradução: Elisa Monteiro), 2º edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 342.
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baudelairiano, o qual acreditamos expressar uma postura diante da arte e mesmo da vida.
Termos como alegoria, teoria das correspondências, dandismo baudelairiano, o spleen, e
“herói”, são imprescindíveis para a compreensão das inflexões teóricas e do próprio legado da
obra de Baudelaire.
Já no segundo capítulo, propomos a apresentação de alguns aspectos sócio-culturais,
oferecendo um recorte do contexto francês no período que viveu Charles Baudelaire,
abrangendo o início do século XIX à década de 1860, quando na morte do poeta. A invocação
de certos acontecimentos do período, entretanto, nada representa por si. Ciente de ausentar
relações e eventos do panorama histórico, e de admitir interpretações e alusões históricas do
período, o destaque de fragmentos contextuais ocorreu no intuito de estabelecer relação entre
aspectos que permearam a preocupação de Baudelaire. Dessa forma, percebidas na superfície
dos textos do poeta, alguns eventos são ressaltados para entender como o francês relacionou-
se com esse contexto.
Para a discussão proposta no terceiro capítulo, obras de autores como Walter
Benjamin, Georges Bataille, Dolp Oehler, Jean-Paul Sartre, Ivan Junqueira, embasaram os
fundamentos teórico-metodológicos. Embora os textos de crítica de arte do poeta façam
referências a artistas plásticos e suas obras, a análise das obras referenciadas é quase
inexistente neste trabalho. Tal opção decorre da própria estrutura das fontes aqui utilizadas.
O intuito desta monografia fica a cargo do explicitado anteriormente nesta
introdução: analisar ensaios de crítica de arte de Baudelaire e as implicações das suas
formulações, quanto ao lugar do artista na sociedade parisiense novecentista.
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1. FRAGMENTOS DE VIDA: BAUDELAIRE EM PARIS
1.1 O HEROÍSMO DA VIDA MODERNA: ALEGORIA, DÂNDI, FLÂNEUR, SPLEEN
Charles-Pierre Baudelaire nasceu em Paris no dia 9 de abril de 1821, e faleceu em 31
de agosto de 1867. Mais do que um exímio escritor, é considerado um importante intelectual
da metade do século XIX. Segundo Ivan Junqueira “há exigências ou mesmo imposições de
índole biográfica e literária” em estudos cuja pretensão se desdobra sobre o poeta, como
também não se pode desvincular “o revolucionário legado de As flores do mal da convulsa e
dolorosa existência que levou seu autor”4. Conforme Junqueira, Baudelaire enfrentou várias
dificuldades durante sua vida: “foram anos de embate contra uma variedade de adversários”5.
Problemas financeiros, conflitos amorosos e familiares, e dificuldades de inserção no meio
editorial são constantemente cogitados para compreensão da própria obra do poeta. Dentre
esses, a relação com sua mãe é considerada a questão mais profunda da sua existência.
As facetas da personalidade de Baudelaire e a proposição de uma teoria da vida estão
em concordância com os sintomas de sua época.
Foi no transcorrer do século XIX que a vida urbana e a rua passaram a fazer
irremediavelmente parte do cotidiano do indivíduo, onde a aura, de acordo com Walter
Benjamin, deixou de habitar os objetos e os homens. A ruptura das fronteiras sociais, dos
privilégios estabelecidos e o surgimento da cidadania são elementos cruciais para a
consolidação de uma sociedade historicamente determinada: uma sociedade capitalista. Sobre
isso, Marco Antônio de Menezes escreve:
A sociedade até então “estável” vai, no século XIX, lançar abruptamente o indivíduo numa vida desprovida de valores. Este novo mundo que começa faz o homem sentir uma mistura de estupefação e horror, uma sensação de decadência, decomposição e morte. Há um grande desespero perante a vida, cujo sentido não se consegue perceber. É um clima sombrio, carregado de ódio e tristeza. Os homens vêem sua existência interior e exterior desmoronar e, ao mesmo tempo, não conseguem se localizar no novo mundo exterior. Esta perdição é a grande tragédia da época.6
O autor termina este trecho do artigo enfatizando o profundo desespero imposto ao 4 JUNQUEIRA, Ivan. As flores do mal, …, p. 53. Dessa relação familiar muitos teóricos explicam traços da personalidade de Baudelaire, cujas inquietações interiores são evidentes nas cartas escritas à amigos e à mãe, servindo como suporte para interpretar o tratamento de certos temas por Baudelaire.5 JUNQUEIRA, Ivan. Charles Baudelaire. O lirismo negro de Baudelaire. Revista Cult, março 2010, edição nº 73. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/o-lirismo-negro-de-baudelaire/>. 6 MENEZES, M. A. de. A dessacralização da vida e da arte no século XIX. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 39, p. 221-253, 2003. Editora UFPR, p. 222.
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indivíduo por uma realidade do caos, que lhe força a adaptar-se aos novos movimentos
abruptos e irregulares. O caos emerge daí: cada qual se movimentando, segundo uma
individualidade racionalizada, mas integrando um espaço social comum. Esta nova relação
com o tempo e espaço experimentado por homens e mulheres do contexto, lançou a sociedade
no turbilhão emergente das novas condições sociais impostas pela urbanização, tanto
estrutural como psicológicas.
O poeta de As flores do mal percebeu a contradição existente na sociedade - as
mudanças possibilitaram certa liberdade de locomoção nas ruas parisienses e nos espaços
públicos, todavia, sob um regime mais controlado de repressão velada e de opressão política.
Essa mobilidade, não obstante, deflagrou situações conflituosas: a possibilidade da
observação de tudo por todos não garantia a acessibilidade. Sob uma ordem capitalista, a
liberdade de transitar pela cidade era aclamada como possível a qualquer pessoa, mas
efetivamente os espaços eram freqüentados por classes mais abastadas.
Essas mudanças, acarretadas por uma ordem econômica capitalista, impunham ao
indivíduo uma luta solitária, em diversas ramificações da vida. Para Walter Benjamin, o
século XIX está imbuído do espírito burguês: “As exposições universais são os lugares de
peregrinação da mercadoria como fétiche”7. Até mesmo a arte e o artista estariam submetidos
à economia capitalista, e Menezes destaca que esta submissão da arte ao mercado teve como
conseqüência a dessacralização da esfera artística, o declínio do halo.
Baudelaire estava ciente de que a arte não estava mais na esfera do sagrado e que ela
poderia nascer em qualquer lugar, até mesmo nas ruas, em meio ao lixo e a degradação. Ele
reconheceu a transformação da palavra em mercadoria, e do poeta em operário das letras. No
entanto, essa constatação sobre o deslocamento do lugar da arte não implicou em crítica. Ao
invés de apresentar uma postura conservadora de enaltecimento de um ideal sagrado desta, o
poeta mostrou-se insatisfeito com a perda de sentido imposto pela fragmentação do mundo. O
sujeito histórico submete-se as regras da dinâmica social, o que implica num “esvaziamento”
crítico e em ausência de revoltas para mudanças estruturais.
Assemelha-se ao problema da desfragmentação o conceito de Erlebnis desenvolvido
posteriormente por Walter Benjamin. De acordo com este, a perda da experiência estética –
experiência imediata, experiência do choque - ocorre paralelamente ao declínio da aura,
instituindo a partir disso um mundo transfigurado, fantasmagorizado. A experiência imediata é
imposta pela volatização das relações na sociedade e as rápidas mudanças provocadas por tal
7 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo - Obras Escolhidas III. (Trad. José Carlos Martins Barbosa e Emerson Alves Baptista). São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 43.
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com a modernidade.
A decadência instituída com a perda de experiência autêntica é, em parte, devida a
mercadologização da arte e a efemeridade das relações sociais. Entretanto, não submeteu nem
Benjamin e nem Baudelaire a um sentimento nostálgico preconizando um retorno ao passado,
no qual as relações entre os homens e os objetos seriam mais verdadeiras. Em vista da
constatação dessa mudança, ambos repensaram o deslocamento dos padrões através da
experiência do choque.
Foi Benjamin, a partir de Charles Baudelaire, quem diferenciou a Erfahrung
(experiência autêntica) e a Erlebnis (experiência vivida do choque), e não propriamente o
poeta. Baudelaire não menciona essas categorias da experiência em seus escritos. Essa perda
de experiência para ele pode ser notada da seguinte maneira: da relação mercantil instaurada
na sociedade francesa no século XIX ocasiona o nascimento de um mundo ilusoriamente
transfigurado – o que Benjamin chama de fantasmagoria. O alemão analisa em Baudelaire
dois tipos de fantasmagoria: a falseadora, sob a qual o indivíduo acreditaria na imagem/cena
contemplada, o olhar do flâneur sob a ordem do fetiche; e a libertadora, que possibilitaria a
libertação mercantil através de um olhar que transpassaria a aparência decorrente do imediato.
Para a autora Maria João Cantinho o poeta reconheceu uma sonolência coletiva e persistiu no
ato de decifrar sinais e imagens afim de desvelar o real. Contudo, ela ressalta que este olhar
não é altruísta, de um pensador que decifra algo, pois sempre retorna a reflexão para si
mesmo8.
Nesse ponto, Cantinho destaca a melancolia, o spleen, da poética baudelairiana. A
melancolia ocorre devido à impossibilidade absoluta de agir, de saber que tudo é vão. Esse
spleen mediaria o olhar: um olhar parasita, gélido, que inflete sobre si mesmo, mediante o ato
da rememoração, e que constrói imagens poéticas a partir desse ato. Seria o olhar do
cismativo, aquele que medita mais sobre si mesmo, refazendo o percurso de como chegou à
refletir sobre algo. Ou seja, não se trata de reflexão, e sim de uma inflexão9. Mas nem todos
conseguiriam posicionar-se, diante da vida, reflexivamente. E dessa forma, Baudelaire
encontrou em artistas, de modo geral em pintores, desenhistas e literatos, o olhar e a postura
necessária para fazer a mediação entre imagem e significação. O artista “é o grande herói
desse tempo, e é capaz de perceber a “beleza particular” nas existências errantes dos
8 CANTINHO, Maria João. O Anjo Melancólico: ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin. Coimbra: Angelus Novus, 2002, p. 30. Disponível em: < http://br.monografias.com/trabalhos-pdf902/o-anjo-melancolico/o-anjo-melancolico.pdf>.9 Ibid., p. 93.
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subterrâneos da grande cidade”10. Essa mediação seria a transfiguração da experiência do
choque em imagem poética, construída alegoricamente, sob a rememoração, visando um
reencontro, e não uma conexão entre presente e passado sob a perspectiva de continuidade.
Walter Benjamin aludiu à visão alegórica em Baudelaire, distinguindo este do conceito de
símbolo: na alegoria há a dissipação da ilusão, numa ascese pelo verdadeiro conhecimento no
intuito de decifrar o enigma; enquanto no símbolo há apenas as correspondências,
incorporando a idéia na imagem. Além disso, uma alegoria não representa as coisas tal como
elas são, mas pretende nos oferecer uma versão de como foram ou podem ser. E por isso,
Benjamin recorre à idéia das ruínas: pinturas históricas, por exemplo, restituem um
acontecimento - ruínas - a partir de uma perspectiva individual do espectador (presente) e, ao
mesmo tempo, contemporânea do pintor (passado). O alegorista tem de arrancar o objeto ao
seu contexto, obrigando-o a significar. Uma vez despojado do seu sentido, ele encontra-se
apto para funcionar enquanto alegoria.
Num tom entusiasta o poeta francês reconheceu no artista uma possível salvação:
O alegorista é o que reconhece a paradoxalidade dessa condição e o que tenta, mediante a escrita, isto é, a fixação de uma convenção “salvar” o mundo. Podemos, então, afirmar a escrita e, por conseguinte, a linguagem como um modo possível de redenção, do ponto de vista alegórico (...)11.
De acordo com as memórias da bolchevique Asja Lacis, Benjamin queria provar que
a alegoria era uma forma artística de alto valor, e que por meio dela entendia-se a verdade12.
Esse caráter alegórico em Baudelaire constituiu a cidade de Paris como objeto,
segundo Renato Ortiz13. No entanto, e conforme o valor alegórico, os poemas de Baudelaire
não descrevem Paris, mas esta foi o cenário de sua ação.
Em meio ao vórtice parisiense, Ivan Junqueira atribuiu o uso de máscaras pelo poeta,
exibindo-se sob diferentes identidades devido à sua necessidade de distanciamento, como
necessário para o olhar atento14: flâneur, dândi, trapeiro, prostituta. Cada figura desta possuía
algo de heróico dentro da sociedade. A estrutura moderna do “herói” se produz como 10 MENEZES, Marcos Antonio de. Um Flâneur Perdido na Metrópole do Século XIX: História e Literatura em Baudelaire. Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba/PR, 2004, p. 47.11 CANTINHO, Maria João. O Anjo Melancólico: ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin. Coimbra: Angelus Novus, 2002, p. 60.12 Asja Lacis apud BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar. Walter Benjamin e o projeto das Passagens. (tradução de Ana Luiza de Andrade; revisão técnica de David Lopes da Silva. – Belo Horizonte: Editora UFMG; Chapecó/SC: Editora Universitária Argos, 2002, p. 38.13 ORTIZ, Renato. Walter Benjamin e Paris – individualidade e trabalho intelectual. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, São Paulo, maio de 2000, pp. 11-28.14 JUNQUEIRA, Ivan, As flores do mal, ..., p. 63.
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resistência às repercussões da produção capitalista sobre o homem no cotidiano repetitivo:
“herói” é aquele que resiste a perder-se no anonimato, a reduzir-se a mera mercadoria e
procura viver conforme suas paixões e vontades. Tal figura se delineia na obra de Baudelaire,
nos personagens que constituem o seu imaginário poético: o herói baudelairiano combate em
nome do novo, que ele procura extrair do velho. O novo aparece como o fim consciente da
produção poética e como questionamento do existente. A conclusão pode soar rasa se
pensarmos na imagem de Baudelaire. Não obstante, este novo continha em si a
transitoriedade, a caducidade, como um estigma próprio do presente, o que torna paradoxal a
busca do poeta e tende a levar ao fracasso qualquer tentativa heróica. Seria como a
constatação de uma evidência e a criação de possíveis soluções, mas a incapacidade de operar
as mudanças, ocasionando a melancolia – spleen. O problema não era a contingência humana,
mas sim o que fizeram dela na ordem social burguesa: a repetição no contexto da estrutura
capitalista torna tudo sem sentido, fazendo com que as experiências fossem alienadas assim
como a mercadoria, como um esvaziamento da subjetividade, da vida interior.
A possibilidade de saída dessa estrutura imposta pelo capitalismo burguês teria início
através da experiência do olhar. Foi por ela que o poeta ofereceu algumas distinções entre
indivíduos, diferenciando suas condutas sociais e as atitudes frente à cidade daqueles que
simplesmente estavam absortos em meio à estrutura. Assim, Baudelaire trabalhou com as
figuras do heroísmo moderno, resultantes da visão moderna do homem, como o flâneur.
Segundo Renato Ortiz, através dos escritos de Benjamin, como espírito desenraizado
o flâneur traduz o espírito de mobilidade que se inaugura com a modernidade, como
experiência moderna15. De um lado, ele conseguiria vislumbrar o alargamento da vida na
cidade com certa atenciosa fascinação: o flâneur era quem conseguia decodificar o “heroísmo
único da modernidade”, decifrava a natureza e a biografia dos tipos de personagem, prestava
atenção em cada detalhe, e tudo lhe atraía: nas galerias parisienses observava os detalhes dos
objetos, a fisionomia e as vestimentas dos transeuntes, e o próprio fluxo citadino. Geralmente,
Baudelaire exemplifica o flâneur quando nas suas apreciações sobre poetas e escritores do seu
tempo, como é o caso do texto sobre Victor Hugo16
Lembro-me de um tempo em que sua figura era uma das mais encontradas em meio à multidão; e várias vezes me perguntei, ao vê-lo tão freqüentemente aparecer na turbulência das festas ou no silêncio dos lugares
15 ORTIZ, Renato. Op. cit., p. 11.16 BAUDELAIRE, Charles. “Reflexões sobre alguns de meus contemporâneos. Victor Hugo”, IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Edição organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, pp. 593-607.
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solitários, como podia ele conciliar as necessidades de seu trabalho assíduo com seu gosto sublime, mas perigoso, por passeios e divagações17.
Mas o flâneur não possuiu o mesmo estatuto que Baudelaire atribuiu ao artista em
potencial, e essa diferença é explícita neste trecho do texto sobre o literato Victor Hugo. Por
tudo observar, o flâneur mantinha a transfiguração falseadora, característico de um olhar
mítico, fantasmagórico, crente das correspondências originárias. Isso justifica o espanto do
poeta ao associar Victor Hugo à atitude de flanar e, mesmo assim, apresentar um resultado
literário dos mais satisfatórios, pois o flâneur supervaloriza a imagem e, apesar de reconhecer
as diferenças e detalhes da vida cotidiana, permaneceria num estado de perda do teor
indagativo. E a figura do flâneur, para Baudelaire, era própria da intelectualidade literária.
Se por um lado, o flâneur possui maior significância para Benjamin, o dândi é a
referência indispensável para Junqueira. Segundo este, “o dandismo baudelairiano está não
apenas na raiz de toda a fundamentação estética do que produziu o autor, mas até mesmo na
origem e na justificativa de sua conduta humana e social”18. Durante a leitura para esta
monografia, uma dúvida foi justamente a diferença entre o flâneur e o dândi. Talvez a
resposta seja imprecisa, mas enquanto o primeiro vincula-se a observação e ao transitar pelas
ruas, o dandismo caracteriza-se por uma conduta humana. Conforme Dolf Oehler, o dandismo
baudelairiano apresenta-se como um estilo de vida sofisticado, pelo seu culto à perfeição
estética, física, erótica e intelectual, regido por um protesto contra a depreciação dos valores
aristocráticos19. Oehler aproxima o dandismo à força revolucionária, mas sob inclinação do
apolítico e de associal, de acordo com sua aversão às relações existentes20.
Ivan Junqueira não discorreu sobre este caráter revolucionário, atribuindo ao
dandismo uma atitude paradoxal diante da vida e da arte, manifestado através de uma atitude
exterior e superior própria à elaboração artificial. E por isso, intelectual, por meio de um
processo criativo do qual a natureza estaria excluída. Como princípio da criação, o dândi
centra a produção na elaboração artificial, o que para Junqueira constitui um ponto central
para demarcar a separação que Baudelaire fez entre natural e artificial21. E a consequência da
defesa do poeta pelo artificial adequa-se ao seu ideal de beleza e ao conceito modernitè.
Durante o século XVIII o Belo estava ligado àquilo que era natural, e os elementos
17 Ibid., p. 593.18 JUNQUEIRA, Ivan, As flores do mal, …, p. 64.19 OEHELR, Dolf. , Dolf. Quadros parisienses (1830-1848): estética antiburguesa em Baudelaire, Daumier e Heine (Trad. José Marcos Mariani de Macedo e Samuel Titan Jr.). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 206.20 OEHLER, Dolf. Op. cit, p. 207.21 JUNQUEIRA, Ivan. As flores do mal, ..., p. 66.
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artificiais eram vistos como deturpadores da beleza. A fonte de todo o bem e Belo era o
natural. Um defensor ferrenho desta noção foi Denis Diderot (1713-1784), tido como o
fundador da crítica moderna. No seu Tratado sobre o Belo, Diderot exaltou a rigorosa
ponderação em reproduzir as manifestações naturais, as quais agem modificando aspectos
físicos e interiores, como caráter e personalidade dos indivíduos. Um forte naturalismo é
evidente entre seus apontamentos, devendo nortear os trabalhos dos artistas em detrimento
simplesmente de uma técnica22. À isto, Baudelaire reage: “tudo o que é natural é
abominável”23.
O fato de atentarmos à algumas interpretações sobre o poeta, a partir da bibliografia
secundária, não foi executada arbitrariamente. São leituras que permeiam os sintomas
manifestados através da crítica que Baudelaire fez à sociedade parisiense. Sobre isso, a
interpretação de Dolf Oehler sobre os escritos de Baudelaire afirma que a resistência dele
pode ser entendida como motim-de-um-homem-só, constituindo o que denominou “estética
antiburguesa”. Conforme Oehler,
a estética pressupõe que o artista/escritor oriente a sua estratégia do público inteiramente pela burguesia, no sentido de que esta é ao mesmo tempo destinatária – a obra será como que “maquiada” para ela – e alvo – se possível, sem que ela própria o perceba dentro da tradição da crítica literária à burguesia, tornando-se o agente secreto conspirador24.
Sobre isso, já havia uma prática de tradição crítica literária à burguesia na qual os
escritores expunham seus reclames políticos e sociais pretendendo, contudo, um
distanciamento do proletariado. Não obstante, em Baudelaire esse teor revolucionário assume
uma consistência dentro de um corpus estético artístico, contrário à ideologia da natureza à
medida que combatia os efeitos desta sobre a arte, política, e moral25.
Semelhante à Oehler, Georges Bataille discorreu sobre a insatisfação de Baudelaire
quanto às questões do seu tempo. No A literatura e o mal, Bataille refere-se a Charles
Baudelaire como um habitante da vida urbana, motivado por uma vontade perturbada pela
impossibilidade de realização devido à situação histórica. A tensão material historicamente
imposta edificou um novo mundo sob o jugo burguês26, após o trauma da revolução falhada de
22 DIDEROT, Denis. Tratado sobre o Belo, IN: Obras II, Estética, Poética e Contos (Organização, tradução e notas J. Ginsburg), São Paulo: Editora Perspectiva, pp. 232-235.23 Ibid., p. 64.24 OEHLER, Dolf. Op. cit., p. 15.25 OEHLER, Dolf. Op. cit., p. 190.26 BATAILLE. Georges. “Baudelaire”. IN: A literatura e o mal (trad. António Borges Coelho). Lisboa: Ulisseia, 1957, p. 65.
15
1848. Disso resultam as antinomias e contradições da poética baudelairiana, características
das contradições da modernidade.
No entanto, a radicalização investida por Oehler é demasiado escancarada e arbitrária
se comparado as indagações e idéias expostas por Bataille. Para este, as antinomias são
contradições irredimíveis que eclodiam a todo o momento, tentando romper com a afirmação
do ethos burguês e a crença no capitalismo.
A sociedade capitalista, em pleno desenvolvimento, se opôs ao crescimento dos
prazeres improdutivos, como também se opôs à casta que explorava em seu proveito a
ambiguidade da antiga sociedade, captando em proveito próprio recursos oriundos do
crescimento dos meios de produção. Era a ascensão do primado do amanhã, acumulação
capitalista. Tanto o movimento operário quanto o movimento romântico protestaram contra a
instância capitalista, mas este se limitou apenas a exaltação do passado, em oposição ao
presente, tendo como fim a evasão do indivíduo, no mesmo viés capitalista de satisfação do
interesse privado. Georges Bataille afirma que o romantismo foi uma resposta excessiva ao
utilitarismo, mas não foi mais que um posicionamento antiburguês para o comportamento do
individualismo burguês. A recusa de Baudelaire nada teve de oposição. Apenas tardiamente a
literatura se libertou desse compromisso com o capitalismo; sua recusa foi mais profunda. Ela
apenas exprimiu o “estado de alma obstruído do poeta”, que sofre a fascinação. Essa
fascinação tem como seu oposto a vontade: através de uma poesia maldita que nada assumia e
sofria sem defesa uma fascinação incapaz de satisfazer, negando o Bem como um primado do
amanhã.
A proposta de Bataille pode ocasionar algumas contradições diante de leituras sobre
a figura de Baudelaire, porque a negação do Bem e de uma prosperidade futura podem
parecer opostas à figura do herói do poeta. Não obstante, o herói moderno impreterivelmente
compartilha com a crítica ao utilitarismo.
Sobre a antinomia entre Bem e Mal, Bataille salientou uma inversão destes em
Baudelaire: para Bataille o Mal foi assumido em favor de um Bem, posto que o Bem durante
o século XIX estaria vinculado com a moralidade burguesa27. A antinomia manifesta-se ainda
entre prazer e trabalho. Em seus escritos íntimos o poeta afirmou que ficamos esmagados pela
idéia de tempo, e somente escapamos através do prazer e do trabalho. Mas, a idéia corrente
era de que enquanto o prazer nos usa, o trabalho nos fortifica. O prazer estaria relacionado a
um gasto de recursos e seria, por isso, improdutivo, enquanto o trabalho possibilitaria
27 MELTZER, Françoise. Sobre a questão da Aufhebung: Baudelaire, Bataille e Sartre. Revista Crítica de Ciências Sociais, 75, Outubro 2006, pp. 3-19.
16
crescimento dos recursos e fortificação. “O trabalho é útil e satisfaz, o prazer, inútil, deixa um
sentimento de insatisfação. Estas considerações não colocam a economia na base da moral,
colocam-na na base da poesia”28. Por isso, a recusa do poeta ao utilitarismo está marcada por
uma devoção aos valores e indivíduos condenados pelas prescrições da nova sociedade29.
28 BATAILLE. Georges. Op. cit., p. 6329 Este capítulo de Georges Bataille possui tanto as considerações do seu estudo sobre Baudelaire, como as refutações do livro Baudelaire, de Jean-Paul Sartre. Bataille se opôs à Sartre ao afirmar que a compreensão da significação histórica de As flores do mal deve ser inserida no tempo histórico, assertiva esta não prevista por Sartre. Para Sartre, a má escolha do poeta foi a recusa à satisfação e às pressões para o lucro, durante uma vida inteira. Conforme ainda o autor de A literatura e o mal, a tese de Sartre acarreta dois problemas: atribuir um autodomínio de Baudelaire diante de suas escolhas faz com que seus poemas teriam sentido social restrito apenas às suas necessidades; e o posicionamento de Baudelaire seria fruto apenas da instância individual, indiferente aos movimentos exteriores. A discussão empreendida pelos dois filósofos franceses rendeu vários textos.
17
2. FRAGMENTOS DA ÉPOCA: PARIS EM BAUDELAIRE
Apontar o século XIX como um período de transformações políticas e econômicas na
qual uma nova organização social era latente – uma sociedade capitalista burguesa – parece
uma afirmação trivial, visto ser considerada como ponto de partida para muitos intelectuais
em diversas questões. Como também, sustentar a relevância da relação Baudelaire – Paris
pode parecer óbvia para os historiadores, porque os indivíduos incorporam e adequam
experiências a partir do seu contexto espacial e temporal.
Entretanto, se os pontos referidos anteriormente são princípios irrefutáveis por alguns
intelectuais contemporâneos, acreditamos na importância de esmiuçá-los. Sobretudo, porque
as reflexões sobre temas, assuntos, não cessam. Eles são e devem ser revistos: “sociólogos e
historiadores diferentes interpretam de maneira distinta o mesmo fenômeno, por meio de
outros discursos que estão sempre mudando, sempre sendo decompostos e recompostos,
sempre posicionados e sempre posicionando-se”30 a partir do ponto de vista do tempo
presente do debate. Além disso, se epistemologicamente a assertiva ressalta a necessidade do
contexto, há uma divergência quanto às metodologias investidas nos campos de estudo.
Particularmente neste trabalho, emerge o estatuto da literatura nas pesquisas historiográficas.
A própria produção da obra literária está associada ao seu tempo. Propomos neste
capítulo analisar o social não como o termo último, mas, e como Dominick Lacapra
qualificou, o social “como um definidor essencial ou constitutivo de significado”31.
Procuramos argumentar como Baudelaire em sua literatura, e mais precisamente nos seus
textos sobre arte, refletiu criticamente sobre aspectos sociais e valores europeus do século
XIX. Por isso, distanciamos de uma abordagem que qualifica a literatura do poeta como parte
do registro histórico do período pretendido, de maneira a considerar a literatura como fonte
histórica, realçando a supremacia da história32. Qualquer obra literária
reflete em suas narrativas angústias e sonhos de agentes sociais contemporâneos e mescla(ndo) elementos de ficção e das possíveis realidades existentes no momento da criação literária. Dessa forma, a obra de ficção lida com ações sonhadas, com sentimentos compartilhados, com intermediação entre o real e as aspirações coletivas33.
30 JENKINS, Keith. A história repensada (Tradução Mário Vilela). 3ª edição, São Paulo: Contexto, 2005, p. 29.31 LACAPRA, Dominick. História e romance. Revista de História, Campinas: IFCH, Unicamp, inverno, 1991, p. 110. 32 Idem. 33 SILVEIRA, Cristiane de. Entre a história e a literatura: a identidade nacional em Lima Barreto. História Questões & Debates, Curitiba, Paraná, 2005, p. 119.
18
Assim, destacamos como Baudelaire circulou entre alguns debates da sua época,
produzindo textos e respostas frente às polêmicas, ou apenas oferecendo algumas dimensões
do seu contexto. Ressaltamos, para isso, situações da sociedade francesa, principalmente
dentro do campo de costumes e conduta social.
No entanto, uma peculiaridade a respeito dos escritos de Charles Baudelaire
necessita esclarecimento. Apesar de nos atentarmos aos textos cuja preocupação do poeta foi
com os princípios sobre arte e o lugar do artista na sociedade, as manifestações artísticas não
representavam uma esfera alienada para Baudelaire. Até certo ponto – ainda impreciso –
crítico de arte e poeta se entrecruzam, fazendo reverberar na produção poética os ideais
defendidos nos textos em prosa de crítica de arte, assim como o reverso. Dessa forma,
justificamos a tomada de textos e de poemas do poeta francês para a análise dos próprios
textos sobre arte.
Assim, situar a Paris de Baudelaire exige uma gama de considerações: a
modernização da cidade; as experiências revolucionárias pelas quais a cidade foi atravessada,
principalmente a de 1848; a afirmação do indivíduo através da reorganização espaço privado e
espaço público; reivindicações proletárias e a mudança do trabalhador com o
desenvolvimento industrial; a formação de novas regras segundo a lógica de um mercado
capitalista em ascensão; a consolidação da classe burguesa. No entanto, não nos deteremos
pormenorizadamente em cada um dos pontos citados, nos valendo de alguns estudos já
executados, a fim de detalhar aquilo que acreditamos mais relevante neste trabalho
monográfico.
2.1 O FENÔMENO URBANO DO SÉCULO XIX: A MODERNIZAÇÃO DE PARIS
Optamos por, primeiramente, configurar a nova cidade parisiense, levada a cabo
entre 1853 e 1870 pelo imperador Napoleão III, o qual delegou os serviços ao barão George
Eugéne Haussmann a fim de realizar reformas urbanas na capital francesa.
No livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, Walter Benjamin
discute as concepções baudelairianas através dos poemas publicados em As flores do mal. O
filósofo destacou as mudanças parisienses do século XIX, sobretudo por meio dos 18 poemas
encerrados em “Quadros Parisienses”34, nos quais Baudelaire retratou a cidade, temas urbanos 34 Quadros Parisienses trata-se de uma seção do livro As flores do mal, na qual Baudelaire iniciou o ciclo urbano de sua poética. Poemas conhecidos como “O cisne”, “Os sete velhos”, “A uma passante” encontram-se nesta seção.
19
e a multidão parisiense, alegoricamente. Mas Benjamin não se limitou a comparar as
transformações que o novo espaço urbano trouxe à vida do indivíduo e da coletividade. Ele
analisa correlatamente como essas transformações afetaram o pensamento baudelairiano – na
mesma via de Raul Antelo quando este afirma que As flores do mal são sintoma e
conhecimento de uma época -, enquanto produto de uma experiência35. A cidade como
elemento matricial da poesia lírica, “como objeto arquitetônico privilegiado por Benjamin e a
que o autor recorre constantemente, quer para situar Baudelaire, quer para caracterizar e
compreender a sua obra, do ponto de vista da sua modernidade”36.
A partir do livro de Benjamin, entendemos que abordagens de um contexto não são
simplesmente condicionantes para uma possível compreensão de um indivíduo. Ao contrapor
Charles Baudelaire a outros literários contemporâneos, Benjamin faz a mediação da
diversidade reflexiva entre os indivíduos, o que estabelece uma diversidade entre aqueles que
compartilham o mesmo território.
Acerca deste espaço em comum, a transformação do perímetro urbano ocorrida na
cidade de Paris, com os projetos de autoria do barão Haussmann, foi significativa para
Baudelaire, sendo recorrente tanto nas suas poesias como nas suas prosas. O boulevard
inovação surgida com o planejamento urbano do século XIX, criação decisiva para a modernização do espaço da cidade, é o cenário da vida moderna por excelência, porque permite a aproximação e a convivência dos contrastes, o rico frente ao pobre, o feio ao bonito, a juventude à velhice, a opulência à miséria e, acima de tudo, não apenas permite como obriga o confronto das classes37.
Uma nova atmosfera marca as experiências. No ambiente urbano é possível
encontrar a figura do flâneur, já ressaltado neste trabalho. Se Baudelaire demonstrou sua
revolta para com as contradições decorrentes das transformações sociais e econômicas, Marco
Antônio de Menezes destacou que a flânerie só foi possível com as reformas do espaço
urbano38. Sua presença traduz a mutação da paisagem urbana e a privatização do espaço
35 ANTELO, Raul. "As Flores do Mal": sintoma e saber anti-modernos. Alea. Estudos Neolatinos, v. 9, p. 152-164, 2007. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2007000100012&script=sci_arttext >.
Inserimos uma reflexão do conceito de experiência propondo as propostas de Bataille sobre a experiência em Baudelaire. Primeiramente, a definição de homem para este autor define-se pela ruptura, pela insistência na transgressão. Em Baudelaire, segundo Bataille, não haveria um dentro, um interior, mas sempre uma situação fora que impelia uma reação de Baudelaire. Assim, a experiência que o poeta viveu não foi individual, mas situada na história. Conf. BATAILLE, Georges. Op. cit., 1957, p. 42.36 CANTINHO, Maria João. Op. cit., p. 82.37 WEINHARDT, Marilene. Baudelaire: A conquista da modernidade. IN: PAZ, Francisco Morais (Org.). Utopia e modernidade. Curitiba: Editora da UFPR, 1994.38 MENEZES, Marcos Antonio de. Op. cit., 2004, p. 64.
20
público, possível de ver em espaços como cafés, propiciando novas condutas. Baudelaire
retratou bem isso em seu poema Les yeux des pauvre (Os olhos dos pobres), em que a mulher
de um casal, ao olhar pela janela da cafeteria, se depara com a figura de pessoas pobres. O
olhar destas acaba a incomodando, o que faz com que ela comente com seu namorado que tais
pessoas deveriam se retirar já que atrapalham o cenário. Vê-se bem essa conduta privada de
isolamento num espaço que, em princípio, é tido como público39.
Os olhos dos pobres
AH! Você quer saber por que a odeio hoje... Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois você é, suponho, o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.Havíamos passado juntos um longo dia, que me parecera curto. Tínhamos jurado um ao outro que todos os nossos pensamentos nos seriam comuns, e nossas duas almas, daquele dia em diante, não seriam mais do que uma só (...)Ao anoitecer, um pouco fatigada, você desejou sentar-se diante de um café novo, na esquina de um novo bulevar que, ainda cheio de entulho, já ostentava glorioso os seus esplendores inacabados. O café resplandecia. (...)Na calçada, diante de nós, víamos plantado um pobre homem dos seus quarenta anos, de ar fatigado, barba meio grisalha, que segurava por uma das mãos um menino e trazia no outro braço um pequenino ser ainda muito frágil, incapaz de caminhar. (...)Os olhos do pai diziam: - “Como é belo! como é belo! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo foi transportado para estas paredes”. Os olhos do menino: - “Como é belo! como é belo! Mas é uma casa onde só podem entrar as pessoas que não são como nós”. (...)(...) Eu não só me sentia enternecido com essa família de olhos, senão também um pouco envergonhado de nossos copos e nossas garrafas, maiores que a nossa sede. Voltava os meus olhares para os seus, querido amor, neles procurando ler o meu pensamento; mergulhava nos seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes, habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: - Que gente insuportável aquela, com uns olhos escancarados como porta-cocheiras! Você não poderia pedir ao dono do café que os afastasse daqui?Tanto é difícil entenderem-se as criaturas, meu anjo querido, e tão incomunicável é o pensamento, mesmo entre aqueles que se amam! 40
O homem moderno vai se constituindo dentro da nova paisagem urbana parisiense,
na qual Baudelaire deixa claro, conforme o poema, a luxuosidade do espaço burguês, a
cafeteria. No entanto, emerge sob sua poética a ruína41, a qual a cidade teve que transitar para
fazer emergir uma nova e ofuscante Paris.
39 CORBIN, Alain. O segredo do indivíduo. In: ARIÈS, Phillipe (et al). História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Companhia das letras, 1995, p. 469.40 BAUDELAIRE, Charles (1821-1867). “Pequenos poemas em prosa”, IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Edição organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, pp. 308-309.41 A ruína, em Walter Benjamin, é teorizada como um conceito, a partir da idéia de transitoriedade. Para Benjamin, em todos os objetos culturais há o elemento mítico, que pode ser redimido do seu caráter de mercadoria, das imagens de desejo que lhe lançamos tornando-o fetichizado. Redimir significa retorno às suas formas primigênias míticas. Conforme BUCK-MORSS, Susan. Op. cit., p. 200.
21
Para Menezes, as mudanças materiais estabeleceram uma nova rede de relações ao
homem: da liberdade na pequena aldeia, passando a ser obrigado a abrir caminho pela
multidão42. Durante o Ancien Régime, Paris era uma cidade dividida entre setores não
integrados e insalubres. Sob os auspícios de Napoleão III, as ruas sinuosas foram alargadas e
substituídas, velhos bairros demolidos, assim como se efetivou a construção de novos
edifícios conforme as regras urbanísticas e arquitetônicas em voga na França43. Para Walter
Benjamin, o papel do Estado na construção moderna foi imprescindível para a emanação do
poder estatal, instaurando ordem e controle sob o espaço geográfico parisiense.
Os projetos de renovação tentaram criar uma utopia social mudando a disposição das
ruas e edifícios, ocultando os antagonismos sociais, e não os eliminando44. Baseado numa
centralização imperial, o plano urbanístico era totalitário, repreendendo atos individualistas,
criando uma cidade artificial. Na pesquisa empreendida pelo historiador Roger-Henri
Guerrand, notou-se o desequilíbrio entre as classes nos bairros e imóveis construídos para
habitação neste período. Sobre isso, Guerrand afirma que, pouco a pouco, nas principais
cidades européias foi possível distinguir setores inteiros com ruas “bem habitadas”, e um
gueto proletário onde os membros das classes superiores não poderiam habitar45. Sob o
Segundo Império, Haussmann ocupou-se apenas dos bairros mais nobres, constrangendo os
proletários a um êxodo para a periferia: nas margens do boulevard prosperam verdadeiros
pardieiros.
A parte disso, Paris era considerada lendária por seus boulevards de arborização
alinhada, as lojas, os cafés e os teatros. O esplendor da cidade moderna podia ser
experimentado por quem passeasse pelas novas ruas e parques, museus, galerias de arte, e
pelos seus monumentos nacionais. Paris deslumbrava a multidão, e ao mesmo tempo, a
desiludia46.
42 MENEZES, Marco Antônio. Op. cit., 2004, p. 60.43 Ibid., p. 66.44 BUCK-MORSS, Susan. Op. cit., 2002, p. 120.45 GUERRAND, Roger-Henri. Espaços Privados. In: ARIÈS, Phillipe (et al). História da vida privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Companhia das Letras, 1995. pp. 325-412.46 BUCK-MORSS, Susan. Op. cit., 2002, p. 112.
22
2.2 O INDIVÍDUO
Durante todo o século XIX o movimento liberal defendeu como instância última o
indivíduo. Liberdades política e econômica foram almejadas a fim de que fossem princípios
usufruídos por todos. No entanto, percorremos neste trabalho outra discussão que não
propriamente a da ideologia liberal, com o objetivo de mensurar o indivíduo inserido nos
espaços público e privado.
Conforme Lynn Hunt, o desenvolvimento do espaço público e a politização da vida
cotidiana foram responsáveis por uma redefinição do espaço privado no início do século XIX47. Segundo ela, até a Revolução Francesa, tudo o que era privado estava na ordem do
conspiratório, revolucionário, impolítico, e por isso, corruptor. A vida privada não era nada
além de um reflexo das aspirações estatais48.
Nesse sentido, Alain Corbin ressalta o processo de individuação a partir do século
XIX, notado através de inovações e mudanças sutis nas práticas e concepções da vida privada.
O indivíduo definiu-se através do surgimento de traços pessoais, como na difusão da
fotografia e dos retratos, nos quais haveria um auto-reconhecimento, como discorreu Corbin49.
A redefinição do ambiente privado, e do próprio individualismo, marcou os
boulevards como o espaço público por excelência. A rua como lugar da multidão, onde a
individuação estaria submersa sob o panorâmico, o olhar de fora, e como ao mesmo tempo
estaria ressaltada pela atitude de hipertrofia interior. Tendo isso em vista, Menezes destaca
como a vida turbulenta dos boulevards corroborou para as perdas das identidades históricas e
pessoais, em vista dos adensamentos urbanos sob o qual o indivíduo se movimentaria50. Tal
autor vai além desta constatação e afirma, na esteira do próprio Baudelaire, Benjamin,
Simmel e Nietzsche, que a cidade é o lugar da não-memória, na qual se perde a
individualidade e a tradição abarcada como experiência51. Nesse sentido, podemos inferir em
até que ponto esta individualidade pode ser definida como interior atuando e reestruturando-se
em vista do social, ou se não seria a exterioridade que se investiria sob o indivíduo,
moldando-o. Sobre isso, Georg Simmel (1858-1918) no livro O fenômeno urbano, discorreu
amplamente acerca da cultura moderna, baseado na experiência cotidiana52. Ele analisou os
47 HUNT, Lynn. “Revolução Francesa e vida privada”. IN: ARIÈS, Phillipe (et al). História da vida privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Companhia das letras, 1995, p. 1848 Idem, p. 20.49 CORBIN, Alain. “Bastidores”. IN: ARIÈS, Phillipe (et al). História da vida privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Companhia das letras, 1995, p. 429.50 Ibid., p. 62.51 Ibid., p. 79.52 SIMMEL, Georg. “A metrópole e a vida mental”. IN VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano.
23
fenômenos da modernidade, como a vida mental e cultural metropolitana e a relação do
indivíduo nesse ambiente, sendo que agir em sociedade a partir da personalidade e
individualidade seria irracional. Assim, a técnica, que organiza a sociedade integrando as
atividades e as relações mútuas, deveria ser estável e impessoal, visto as diversas identidades
e diferenças nos acordos e interesses dos indivíduos que se relacionam – uma estrutura
impessoal, mas que promove uma subjetividade pessoal53.
A expressão da liberdade, para este autor, seria a produção do caráter do indivíduo a
partir da especialização de serviços, promovendo a diferenciação no espaço público. Essa
diferenciação desencadearia uma transição da individualidade do plano interior para a
afirmação da personalidade no externo. Por isso, o autor destacou o uso de objetos
extravagantes no intuito de cada indivíduo destacar-se. Ou seja, a própria metrópole conduzia
o indivíduo a ser diferente. Entretanto, essa condução da diferenciação teria como princípio o
desenvolvimento da cultura moderna, preponderando o espírito objetivo sob o subjetivo. As
instituições visíveis do Estado se fazem presentes, despersonalizando a personalidade, que
não consegue manter-se sob o impacto. O próprio indivíduo forja para si um elemento pessoal
de exclusividade e particularidade – de maneira a exagerar este elemento pessoal para
permanecer perceptível até mesmo para si54.
Ao lidar com a separação entre o espaço público e privado e a reconstituição deste,
para Simmel o homem moderno estaria em meio a uma mudança da sua base psicológica,
decorrente o que chamou de vertigem dos sentidos. A rapidez comunicativa, a facilidade de
locomoção e as transformações da metrópole, resultando em novos espaços sociais e
coletivos, expunham o indivíduo de tal forma que este, num acesso para salvaguardar sua
interioridade, passaria por uma estimulação nervosa, atitude necessária frente aos
contrastantes cotidianos. Foi o que Simmel descreveu como atitude blasé. Uma pessoa blasé
agita seu sistema nervoso até seu ponto de mais forte reatividade, por um tempo tão longo que
eles finalmente cessam completamente de reagir. O blasé seria uma não reação às mudanças,
além da falta de discriminação dos objetos. Como fonte fisiológica baseada na distensão dos
nervos, e numa vida que se acomoda a metrópole, para Simmel essa atitude autopreservaria o
indivíduo, sua essência mais pessoal, mas produziria uma sensação de inutilidade.
Charles Baudelaire discorreu sobre a nova situação dos indivíduos – e mais, dos
próprios objetos - com a perda da auréola, o que Simmel descreveu como a liberação dos
vínculos históricos. Sobre esta aura descrita, há um poema em prosa, intitulado Perda de
Rio de Janeiro, Zahar, 1976, pp. 13-28.53 Ibid., p. 20.54 Ibid., pp.22-25.
24
auréola, onde Baudelaire narra um diálogo entre dois amigos, no qual um indaga o outro por
encontrá-lo num ambiente de depravação. Eis sua resposta para o questionamento:
Ainda há pouco, quando atravessava a toda a pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos rebentados. De resto, disse com os meus botões, há males que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à crápula, como os simples mortais55.
Esta perda foi bastante relevante para a lírica e os pressupostos de Baudelaire: em
termos sociais a literatura passou a incorporar as regras capitalistas na sua produção,
impressão e distribuição. Os artistas, de forma geral, perderam suas insígnias aristocráticas,
que os diferenciavam, e foram generalizados à sociedade, de modo uniforme. Trataremos mais
disso no tópico seguinte deste capítulo.
Por outro lado, este estado psicológico superestimulado, e a perda da subjetividade
face o controle do coletivo e dos aspectos externos da cidade representavam um perigo ao
indivíduo, e Marco Antônio de Menezes denota a preocupação da intelectualidade francesa
em preservá-la. A literatura voltou-se para as experiências da metrópole moderna, e
particularmente para a experiência individual do homem. O próprio Baudelaire se coloca
como um habitante da cidade56. A experiência da vida nas metrópoles fez com que a tradição
literária se vertesse ao estudo das grandes cidades cosmopolitas, enfatizando a complexidade
e a tensão da vida moderna.
Baudelaire foi sensível em sua lírica ao paradoxo experimentado. Isso porque, e
como já destacamos, o deslocamento aurático que ocorre em vias da ascensão do capitalismo
burguês corroborou para mudanças literárias. O artista não mais se subordina a um mecenas,
mas estaria exposto ao mercado57. E como tal, sua literatura disputa com outras mercadorias,
como uma imagem de desejo consumista. O artista deveria produzir coisas que agradassem o
público. Para Walter Benjamin, as mudanças dentro da atividade literária emergiram deste
cenário urbano moderno: os boatos e os mexericos começam a circular nos jornais e revistas
parisienses da época, em meio às descrições citadinas.
55 BAUDELAIRE, Charles. “Pequenos poemas em prosa”, IN: Poesia e prosa, …, p. 333.56 MENEZES, Marco Antônio de. Op. cit., 2004, p. 56.57 Ibid., p. 70.
25
2.3 BOHÈME LITERÁRIA E OS EXCLUÍDOS DAS ARTES
Para a questão da contextualização da lírica baudelairiana, oferecemos um paralelo
sobre as novas condições e transformações da literatura francesa pós 184858. Conforme o
filósofo Benjamin, as ruas parisienses passaram a ser o lugar do literato, e mais, do próprio
artista, já que o fenômeno urbano e as novas condições do mercado eram movimentos sociais
que abrangeram até mesmo as artes. A parte dessa recapitulação acerca das alterações sociais
e a recategorização da literatura como mercadoria, propomos a relevância da literatura na
França.
A partir de 1840 a sociedade parisiense ingressava num tipo de escrita jornalística
urbana denominada como feuilleton, semelhante à escrita das fisiologias do século XIX.
Embora Baudelaire tenha se referido amplamente à flânerie como observação detalhada da
sociedade, quem estabeleceu precisamente a relação entre o flâneur e o fisiognomista foi o
filósofo alemão Benjamin. Segundo este, o olhar desses dois tipos sociais se diferenciava por
reconhecer em meio à multidão, caráter e personalidades dos indivíduos sociais, apreendendo
a idéia do outro. O flâneur ainda não estaria condicionado pelo hábito que automatiza a
percepção. Seu olhar não estava saturado pelo movimento acelerado da vida da segunda
metade do século XIX. Em contrapartida, a velocidade da veiculação diminuiu a experiência
do leitor, paralisando sua imaginação e liquidando com sua memória59.
As inovações técnicas também repercutiram na imprensa parisiense em meio ao
contexto novecentista. A relação entre arte e tecnologia causou um embate com formas
artísticas tradicionais, como a inserção da fotografia e do jornalismo de massa na produção
literária. Os literatos começam a escrever em periódicos e revistas parisienses requisitadas. O
periodismo capitalista fez da escrita uma mercadoria – imagem de desejo – tratando a escrita
como mercadoria para consumo60. Dessa forma, os literatos tiveram de se adaptar à este ritmo
acelerado da indústria de informação: definida numa estrutura de produção literária, marcada
pela implantação do sistema capitalista, a escrita jornalística simbolizou um novo ritmo de
escrever. Para Baudelaire esse mercado literário foi contemplado com um olhar desenganado,
reconhecendo a semelhança entre literato e prostituta, ou a perda da aura pelo literato.
Em vista dessa mudança, Benjamin ressalta como para Baudelaire estava presente a
58 A problemática da história da literatura francesa foi bastante destacada em Walter Benjamin. Mencionando os textos jornalísticos, a escrita do apache, o romance-folhetim, os tipos de fisiologias o autor incorpora como os gêneros passaram a relacionar-se com a sociedade.59 BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da História em Walter Benjamin. (2º edição), São Paulo: Edusp, 2000, pp. 68-69.60 BUCK-MORSS, Susan. Op. cit. 2002, p. 175.
26
idéia de que a arte era também um ato de resistência, um protesto comum contra a
sociedade61. No entanto, a força dos escritores limitava-se em descrever as aparências sociais
sem desvelar as tendências sociais subjacentes que estavam afetando tão profundamente suas
próprias condições de trabalho. No século XIX, a inserção publicitária nos jornais e revistas
como atributo para barateamentos, condicionou a escrita a uma tendência direcionada aos
meios de massa. E isso, apagou o significado de distinção entre arte e política62.
Tendo isso em vista, Baudelaire concebeu na arte uma possível forma de resistência
contra uma sociedade sob a qual o homem estaria submerso na ordem produtiva capitalista,
transformando a realidade em um objeto consumido com prazer, em lugar de refuncionalizar o
aparato da comunicação tornando possível o despertar coletivo.
A crítica que o autor Walter Benjamin extrai ao analisar a postura teórica de
Baudelaire é a de que enquanto forma temporal da sociedade burguesa, a repetição se revela
como o mito que funda a modernidade, tempo da repetição do gesto e das ações no mundo do
trabalho, que fragmenta nossa experiência e nos exila da tradição. Descrever a realidade
social, como um fisiognomista, não insuflaria a tomada de consciência dos indivíduos frente a
perda de capacidades essenciais, que deturpariam a experiência individual diante dos signos
ao seu redor. Por isso, Baudelaire busca o “herói” moderno, que no seio da sociedade
derrubaria o véu e conseguiria ver e experimentar as coisas, não se detendo apenas nas formas
e indo além da experiência mecânica já conhecida, pois o presente proporciona novas
sensações.
Ao se deparar com a sociedade parisiense Baudelaire delega ao artista a contramola
de resistência a essa ordem burguesa. Tal formulação não deixa de ser intrigante, pois quando
elege indivíduos que empreendem uma atitude moderna na sua arte, menciona sobretudo
pintores, desenhistas, gravuristas, e literatos. Obviamente estimava e reconhecia a importância
de escritores como Théophile Gautier (1811-1872), escritor francês a quem Baudelaire
dedicou As flores do mal, reconhecendo-o como “mestre impecável”. No entanto, tanto nos
textos referente aos Salões de arte, como no O pintor da vida moderna, foi em torno da arte
pictórica que Baudelaire estruturou um corpus teórico postulando a atitude moderna crítica e
criadora. Para ele, o “herói” é o verdadeiro sujeito da modernité, e em vários textos o poeta
reclamou uma arte nova capaz de elucidar a realidade à sua volta. No entanto, seria audacioso
afirmar que para Baudelaire haveria a supremacia de artistas plásticos sobre literatos,
conforme sei ideal de “herói” moderno. Para tal questão, o porta admitiu que o som e a cor
61 BENJAMIN, Walter apud MENEZES. Op. cit., 2004, p. 65.62 BUCK-MORSS, Susan, Op. cit. 2002, p. 180.
27
eram impróprios na tradução de idéias63, e reconheceu a supremacia das palavras, ou melhor,
do plano poético. Mesmo assim, evidencia-se a notoriedade da imagem na lírica
baudelairiana. Segundo Willi Bolle, “por meio das imagens – no limiar entre a consciência e
o inconsciente – é possível ler a mentalidade de uma época”64, questão que será
pormenorizada no terceiro capítulo desta monografia.
Ainda sobre a reflexão de Baudelaire a respeito da função e potencial da literatura,
essa mesma crítica foi proposta por vários outros artistas contemporâneos da época. Walter
Benjamin e Dolf Oehler sustentaram a intrínseca relação entre modernidade literária e os
auspícios políticos revolucionários. Não podemos inferir disso, entretanto, a uniformização
entre os intelectuais parisienses, mas tem-se em vista que as condutas e textos contestatórios
do período podem ser agregados na chamada bohème. Para Oehler, os acontecimentos de
1848 representaram o início dessa modernidade e uma mudança abrupta: de um processo de
libertação, no qual a revolução era fundamentada por literatos e através dos seus escritos; para
um processo de despolitização forçada65. À literatura foi vedada,
dali em diante e por longo período, tomar partido, atacar abertamente a sociedade da Restauração e o novo Império, exprimir às claras o seu luto pela liberdade perdida, a sua compaixão pelo povo miserável e derrotado, os escritores se vêem, enquanto permanecem no país a fim de seguir a carreira literária, literalmente relançados sobre si mesmos, sobre seu próprio mundo privado66.
Para Nigel Blake, a bohème era antes uma atitude cultivada por aqueles artistas e
intelectuais empobrecidos que existiam à margem da sociedade e se opunham à autoridade
estabelecida, por mais que não fizessem parte das classes sementeiras da revolução67. Vale
destacar que entre eles, mesmo alheios à sociedade burguesa e aos princípios organizacionais
do capitalismo, não havia uma homogeneização política, econômica, social; não eram
organizados enquanto grupo.
Para Benjamin, o qual também discorreu sobre a relação entre arte e bohème, alguns
aspectos desse círculo podem ser relacionados com o socialismo: utilização de hábitos
conspirativos, tráfico de segredos, ironias impenetráveis, invectivas bruscas. Foram estas as
63 JUNQUEIRA, Ivan. As flores do mal, ..., p. 84.64 Ibid., p. 43.65 OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos. Auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris. (Tradução José Marcos Macedo). São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 20.66 Ibid., p. 20-21.67 BLAKE, Nigel; FRANSCINA, Francis. “As práticas moderna da arte e da modernidade”. IN: FRANSCINA, Francis (et al). Modernidade e Modernismo: a pintura francesa no século XIX. São Paulo: Cosac e Naify Edições, 1998, p. 54.
28
razões que proporcionaram à Benjamin a comparação entre Charles Baudelaire e Auguste
Blanqui, um dos principais líderes da esquerda do período68. Sobre isso, Oehler enfatizou a
familiarização dos jovens escritores com a literatura de esquerda contemporânea, com os
panfletos sociais, e com as idéias de Proudhon69.
A fim de pormenorizar essa bohème, oferecemos algumas questões do contexto
político e econômico da França. As lutas e reivindicações sociais da década de 1840
decorreram da tradição política da revolução de 1789. Os movimentos revolucionários de luta
contra a Monarquia francesa ocorridas em 1830 e 1848 – ambos fracassados – se
autoproclamavam herdeiros da experiência revolucionária do final do século XVIII. Nesse
contexto, entre 1830 e 1840, associações políticas ligadas ao movimento de esquerda,
agregavam classes operárias, estudantes, artistas, e escritores. Estes difundiam suas aspirações
em textos contestatórios, e um dos veículos propagadores de ideais esquerdistas foram alguns
jornais/revistas. O jornal no qual Baudelaire colaborou, Le Corsaire-Satan, encabeçava a
insatisfação de escritores jovens e desconhecidos.
Apesar dessa atmosfera revolucionária, o movimento de 1848 foi aniquilado em
junho, deixando apenas o trauma para os combatentes, entre eles Baudelaire70. Este trauma
fundamenta toda a interpretação de Dolf Oehler quanto à poética baudelairiana. Para Oehler,
conforme a estética antiburguesa, haveria uma tonalidade estilística com uma intenção
provocativa, que obstrui a coerência interna da estética de Baudelaire, mas é própria da sua
insatisfação: sua ironia sustenta um viés revolucionário emancipatório. O poeta não se
vinculou nem à burguesia, da qual desconfiava politicamente, sobretudo se atentarmos para a
experiência da Primavera dos Povos, nem ao partido oposto por se tratarem de homens cuja
visão reduzida não conseguiam obter uma clareza objetiva e analítica da sociedade.
A menção a esta irmandade bohéme nada tenta averiguar do grau de
comprometimento da arte com a sociedade, nos termos da arte engajada, nem mesmo provar a
originalidade de um núcleo de resistência contra valores de uma época e de um contexto.
Quanto à primeira refutação, basta pensarmos que artistas como o literato Stéphane Mallarmé
era um autor à margem, mas que defendia a arte pela arte, sem vínculo com crítica social ou
algum viés revolucionário; e quanto à segunda questão, contestação sempre foram manifestas.
No entanto, as crenças políticas estão no centro da escrita do poeta. A reivindicação da arte
apresenta-se atrelada à manifestações políticas. Mas, se Baudelaire viveu profundamente seu
posicionamento, usando de contradições para driblar a censura imposta, Susan Buck-Morss 68 BENJAMIN, Walter. Op. cit., pp. 12-13.69 OEHLER, Dolf. Op. cit., p. 35.70 Ibid., p. 36.
29
defende que a política, para o poeta, é a “imagem petrificada” tomando as palavras da própria
autora; um desassossego constante que se torna resignação, e não se desenvolve71.
71 BUCK-MORSS, Susan. Op. cit., p. 240.
30
3. FRAGMENTOS DA OBRA. O LIMIAR DO PROJETO ESTÉTICO DE
BAUDELAIRE EM SUAS CRÍTICAS ARTÍSTICAS
3.1 DA UTILIDADE DA ARTE PARA A COMPREENSÃO DO MUNDO
Os aspectos refletidos anteriormente tentaram pontuar o que acreditamos influenciar
as concepções, teorias, e a própria escrita de Charles Baudelaire. Neste capítulo, propomos
uma análise da concepção da modernitè do poeta, formulada no texto O pintor da vida
moderna, publicado no Le Figaro, em 26 e 29 de novembro e em 3 de dezembro de 1863.
Esta publicação, particularmente, foi inspirada nos trabalhos do artista Constantin Guys.
Contudo, não há como negligenciar que nos textos anteriores a este período já haviam
postulado uma reflexão teórica sobre arte. Afastamento do academicismo, o Belo, e a
potencialidade da arte, por exemplo, eram presentes nas reflexões do poeta desde a década de
1840. Ao longo desta monografia posicionamos uma postura crítica do poeta à sua sociedade,
e nos textos de arte afirmamos esta mesma posição.
Quando o poeta inicia-se na crítica de arte, publicadas na imprensa, a exibição de
obras de arte para o público francês não era incomum. Desde o século XVII já havia Salões na
França. E a crítica, igualmente, era comum: o filósofo francês Denis Diderot é reconhecido
como o precursor da crítica moderna, uma espécie de guia, capaz de oferecer ao espectador
detalhes e informações técnicas daquilo que estava vendo. Diderot, como crítico, entendia a
beleza como próxima da cena cotidiana e se referia aos aspectos morais de um quadro72. Mas
Baudelaire foi mais que um comentador de quadros. Foi um poeta que notou as mutações no
campo artístico e social, e teorizou sobre isso. Em termos gerais, criticava o academicismo, e
possuía vínculos com artistas plásticos da época, dentre eles Gustav Courbet e Eugène
Delacroix, bem como com outros intelectuais que defendiam um rompimento com o
Classicismo e com posturas tidas como tradicionais.
Dentro do contexto parisiense do século XIX, a Academia Francesa de Belas-Artes –
instituição mantida pelo Estado francês - encorajava trabalhos que se adequavam às regras
clássicas, inerentes à correta arte. Esta prezava pela ordem na arte e na política, subsidiando
os Salões, nos quais os trabalhos aceitos eram expostos. Bryoni Fer verificou como após a
Revolução de 1830 o contexto social das práticas artísticas sofreu uma alteração, através da
ascensão de novas forças sociais na política e na economia, modernizando o Estado francês a 72 MOURÃO, Elder João Teixeira. Denis Diderot: a formulação de uma crítica de arte para além do iluminismo. Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte/MG, 2008, pp. 34-37.
31
partir da ordem capitalista. O Estado passou a ser burguês, promovendo a industrialização
capitalista e sustentando uma classe média sempre mais abastada. Entretanto, essa burguesia
francesa preconizava por noções aristocráticas ao invés de instigar transformações e
possibilidades na arte. A École des Beaux-Arts (Escola do Estado) continuou com o currículo
limitado conforme o do século XVIII, até 1863. E o Salão era uma das principais instâncias
das artes plásticas no século XIX, organizado pela Academia em nome do Estado francês. “O
Salão era a principal arena pública em que um artista podia construir sua reputação”73.
Contudo, durante a segunda metade do século XIX, exposições de artistas cujas
obras não foram aceitas pela Academia surgiram, demonstrando de maneira mais efetiva a
negação das regras vigentes na arte. Um dos primeiros, o Salon des Refusés, Salão dos
Rejeitados, ocorreu em 186374. Baudelaire não participou ativamente destas manifestações,
mas elas explicitam sua investida contra qualquer medida que sufoque o potencial artístico.
Segundo Bryoni Fer, nota-se nos impressionistas uma mudança na natureza da prática do
próprio pintor, a construção e elaboração de uma individualidade pictórica autoconsciente,
uma preocupação deliberada com problemas intrínsecos a própria pintura. Conforme ainda o
autor, em Manet, a pintura torna-se uma área de autonomia, distanciando-se da crítica da
realidade e não possuindo uma função política; e seu trabalho foi uma das várias formas de
consciência social da modernidade, combinando reelaboração crítica das convenções artísticas
existentes com os sinais e referências contingentes da vida cotidiana75. A limitação do ensino
artístico, entretanto, não excluiu totalmente os artistas que destoavam da regra. Havia um
reconhecimento de artistas que se distanciavam do ideal, e que mesmo assim eram citados
como bons artistas.
Destacando uma autonomia da arte, o papel ínfimo à inspiração e a importância do
processo intelectual na criação, Baudelaire atribuiu ao artista uma capacidade de observar
tudo ao seu redor, mas também de conseguir expressar-se. Para Bernd Witte a palavra
modernitè de Charles Baudelaire designava a volatização dos fenômenos, e restringia-se a
uma concepção moderna de estética76. Já a autora Maria Cecília de Moraes Pinto ressalta não
propriamente o conceito modernitè, mas a modernidade em Baudelaire, a qual envolvia uma
função crítica. Segundo ela, “a modernidade de Baudelaire começa no encontro de um fazer
73 FRANSCINA, Francis (et al). Modernidade e Modernismo: a pintura francesa no século XIX. São Paulo: Cosac e Naify Edições, 1998, p. 60.74 Edouard Manet teve sua obra, Olympia, rejeitada pelo Salão Oficial de 1863. O crítico simbolista Joseph Péladan escreveu em L’Artiste, em 1884, que “Manet era um pintor de fragmentos, desprovido de idéias, de imaginação, de emoção, de poesia ou de habilidade artística”. Cf. FRANSCINA, Francis. Op. cit., 1998.75 Ibid., p. 65.76 WITTE, Bernd. Por que o moderno envelhece tão rápido? Concepção da modernidade em Walter Benjamin. (Tradução de George Bernard Sperber). Revista USP. São Paulo, n. 15, p. 103-117, set/out/nov, 1992.
32
poético e de uma reflexão crítica que se atraem e se completam. Para ele, aliás, eram
estreitos os laços entre as duas atividades”77.
Os textos: Salão de 1845, Salão de 1846, Salão de 1856 e Salão de 1859, além de O
pintor da vida moderna – foram produzidos a partir de um ideário estético formado quando na
consolidação de Baudelaire como escritor parisiense, entre 1840 e 184578. No geral,
apresentam um projeto baseado na autonomia da arte, diferente do enunciado da art pour l’art
que se centrava na defesa de uma arte pura. A autonomia da arte do poeta propunha ao artista
estar atento apenas àquilo que à sua arte é concernente, as relações íntimas e secretas com as
coisas, as correspondências e as analogias do mundo79. Dessa afirmação de Junqueira, pode-se
traçar um paralelo a um dos textos de crítica literária do poeta a respeito de Victor Hugo, o
qual conseguia exprimir através da poesia o mistério da vida, e de modo nítido traduzia a
natureza visível, mas também exprimia obscuramente o que era confusamente revelado80. Se
comparamos, no entanto, a crítica literária à de arte, dá-se a impressão de que os artistas
plásticos alcançaram, com maior ênfase, aquilo que Baudelaire designou no seu projeto. Ao
comentar a obra de Delacroix no Salão de 1846, Baudelaire expressou sua opinião quanto ao
debate em voga, sobre considerar tanto o pintor como Victor Hugo como românticos81. Diante
dessa comparação que então se fazia nos círculos intelectuais parisienses, Baudelaire
defendeu a distinção entre os dois artistas, pois cada qual produzia sua arte a partir de
procedimentos diversos.
Um começa pelo detalhe, o outro, pela compreensão íntima do tema; donde resulta que só toca na pele, e o outro arranca as entranhas. Muito materialista, demasiado atento às superfícies da natureza, o sr. Victor Hugo se tornou um pintor em poesia; Delacroix, sempre respeitando seu ideal, é muitas vezes, sem mesmo o saber, um poeta em pintura.82
O olhar que Victor Hugo dirige à sociedade é o do flâneur, o do extasiado, o que se
prende à superficialidade das imagens. Eugène Delacroix representou, em contrapartida, uma
expressão superada da arte, transferindo para a tela as particularidades da sua época83.
A transcrição anterior não apenas demonstra a distinção entre os dois artistas, como 77 WEINHARDT, Marilene. Op. cit.78 JUNQUEIRA, Ivan. Op. cit., p. 61-62.79 JUNQUEIRA, Ivan. Op. cit., p. 81.80 BAUDELAIRE, Charles. “Reflexões sobre alguns de meus contemporâneos / Victor Hugo”, ..., p. 595. 81 Neste Salão, o poeta escreveu ser o romantismo uma maneira de sentir, e não uma escolha de temas. Um artista poderia ser romântico e pertencer ao rococó, como ele mesmo pontuou. Enfim, desde esse Salão já evidencia-se nas artes plásticas os princípios mais importantes do projeto da vida moderna de Baudelaire.82 BAUDELAIRE, Charles. “O salão de 1846”. IN: BAUDELAIRE, Charles, 1821-1867. Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire (Edição organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.83 OEHLER, Dolf. Op. cit., 1997, p. 253.
33
também evidencia algumas exigências estéticas para o princípio artístico, destacando
compreensão íntima do tema e ato criador a partir da subjetividade do artista. A
particularidade criativa dentro do que foi definido por Baudelaire será pormenorizado no
tópico seguinte. Por ora, trataremos de abordagens mais amplas.
A ressonância das exposições de arte e da crítica era imensa. As visitas de Baudelaire
às exposições foram relatadas de forma bastante parcial, irônica, e exaltada. Basicamente, os
textos críticos de Charles Baudelaire propunham uma discussão geral sobre arte. Mesmo nos
Salões, onde o objetivo específico era tratar sobre as obras em exposição, a narrativa deixava
comentários sobre essas em segundo plano. As seções dos ensaios expunham reflexões
centradas na arte em geral, propondo as análises das obras expostas através dessa estrutura. O
poeta, inclusive, inseriu na sua crítica discussões atualizadas da sua época, como a difusão da
fotografia. Quando citava os artistas e as obras procurava ressaltar algo particular a cada uma,
mas ressaltava nos textos que sua escrita iria se deter sobre as mais relevantes, segundo seu
olhar. Conforme uma breve fisionomia da obra, “algo como o relato de um rápido passeio
filosófico entre os quadros”84, Baudelaire acentuava aspectos de execução do artista, tentando
apreender sua referência e inspiração. Após, oferecia um parecer se a habilidade do artista
proporcionou uma expressão da modernidade. Além disso, a escrita crítica, tal como concebeu
o poeta, era o testemunho de uma experiência daquilo que ela implica em termos da reflexão
sobre a arte e sobre seus efeitos na compreensão do presente85.
Um segundo ponto que inferimos acerca da concepção estética de Baudelaire refere-
se à teoria das correspondências. O tema é caro ao poeta: encontra-se no Salão de 1846, no
poema Correspondances, e no texto de crítica musical Richard Wagner e Tanhäuser em Paris.
Como a poesia é bastante referenciada, cabe transcrevê-la:
Correspondances
A natureza é um templo vivo em que os pilaresDeixam filtrar não raros insólitos enredos; O homem cruza em meio a um bosque de segredosQue ali o espreitam com seus olhos familiares.
Como ecos longos que à distância se matizamNuma vertiginosa e lúgubre unidade,Tão vasta quanto a noite a claridade,Os sons, as cores, os perfumes se harmonizam.
84 BAUDELAIRE. Charles. “Salão de 1859”, ..., p. 795.85 MORAES, Marcelo Jacques de Moraes. O crítico e o poeta Baudelaire. Revista Cult, março 2010, edição nº 73. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/o-critico-e-o-poeta-baudelaire/>.
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Há aromas frescos como a carne dos infantes,Doces como o oboé, verdes como a campina,E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
Com a fluidez daquilo que jamais termina,Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente, Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
Embora o poema sirva como referência para várias pesquisas, talvez o trecho da
crítica musical a Wagner apresente somente a idéia das correspondências sensoriais de
maneira mais inteligível:
seria na verdade surpreendente que o som não pudesse sugerir a cor, que as cores não pudessem dar a idéia de uma melodia, e que o som e a cor fossem impróprios para traduzir idéias, sendo as coisas sempre expressas por uma analogia recíproca, desde o dia em que Deus proferiu o mundo como uma complexa e indivisível totalidade86.
Em ambos, Baudelaire ressalta que as cores, o som e as letras fazem parte de uma
totalidade. Cada manifestação artística a seu modo, faz parte de uma complexa e indivisível
unidade. Ivan Junqueira insiste em que o poeta “esteve muito próximo do conceito de uma
arte total em que a palavra, a cor e o som, graças a um difuso sistema de analogias, nos
sugerissem esse infinito sonho do espaço e profundidade”87, na qual consiste a suprema
revelação da beleza. Duas noções perpassam a teoria das correspondências: a sinestesia,
segundo a qual as coisas relacionam-se sempre por uma analogia recíproca, desde que Deus
determinou o mundo como uma totalidade complexa e indivisível; e a correspondência entre
um mundo visível e invisível88.
Sobre isso, Junqueira ressalta que Baudelaire cunhou a imagem de um mundo
enquanto correspondência do céu89. Essa noção de correspondência é muito anterior à época
do poeta. Contudo, ele propôs a reversão da ordem da relação céu, superior, e terra, espelho
caótico daquele: não haveria a reversibilidade, mas uma ordem hierárquica da terra para o
céu, e não o contrário. O insólitos enredos e o bosque de segredos, referido por Baudelaire na
poesia, podem nos sugerir essa reversão, a medida que o que importa é que a representação do
mundo seja capaz de fornecer as armas para o combate que se trava no plano humano ou, no
plano poético90. As analogias correspondem a revelações metafísicas, identificando-se com os 86 JUNQUEIRA, Ivan. Op. cit., p. 71.87 IDEM.88 Ibid., p. 55.89 Ibid., p. 67.90 Ibid., p. 68.
35
símbolos, elementos concretos através dos quais as coisas materiais se ligam às espirituais que
se dissolvem numa unidade. Essa noção serviu de matriz à estética do Simbolismo, mas os
simbolistas deram ao símbolo outras funções; as pesquisas sobre o subconsciente e a
predominância deste nas artes contemporâneas acabaram por incorporar o símbolo da
linguagem poética. Já para Baudelaire, o escritor - enquanto criador - possuía um papel
fundamental: revelar a tenebrosa e profunda unidade do mundo visível, mesmo sob o aspecto
imperfeito e caduco deste. Seria este indivíduo que revelaria a beleza.
O Belo é um dos fundamentos da modernitè, e encerra uma dupla dimensão:
constituído por um elemento eterno, e ao mesmo tempo substancial. Como demonstramos
anteriormente, a beleza para Baudelaire encontrava-se nos aspectos artificiais, e não nos
naturais. Precisamente no Salão de 1846, o poeta posicionou-se contra a simplória imitação da
natureza - como defendia a Academia de Belas Artes. Conforme o Salão, “o desenho é uma
luta entre a natureza e o artista, na qual o artista triunfará tanto mais facilmente quanto
melhor compreender as intenções da natureza. Para ele, não se trata de copiar, e sim de
interpretar numa língua mais simples e mais luminosa”. O artista seria o responsável por
completar e reencontrar cada ideal, reconstituído e restituído pelo pincel ou pelo cinzel.
Apesar do uso da palavra interpretar da citação feita, a qual estabelece multiplicidade,
Baudelaire insistiu que o artista moderno seria aquele que conseguiria uma experiência
autêntica com o mundo, decifrando sinais e imagens, e libertando os objetos. Nesse sentido,
nota-se a importância atribuída por Baudelaire ao artista na sociedade, o qual necessitava de
um olhar transfigurador, diferente do olhar extasiado do flâneur, impotente. Ao artista cabe a
“heroificação” do presente.
Mas estas considerações apontam somente para a beleza cotidiana, desencadeando
uma possível contradição com a beleza eterna atribuída pelo autor. Segundo Ivan Junqueira,
para Baudelaire o artista superior, o próprio dândi, era a elaboração artificial, ou seja,
intelectual, de um processo criativo do qual a natureza não participa, pois ela é amoral91. O
dândi é o princípio da criação, e a natureza repudiada pelo poeta francês define-se mais como
uma determinação histórica através de um discurso dominante, que condiciona os indivíduos à
perpetuarem a condição que lhes foi imposta. Dessa forma, a natureza da qual houve
distanciamento nada tem a ver com a natureza humana, a qual Baudelaire acreditava existir.
Ainda sobre esta questão, Dolf Oehler interpretou de maneira bastante peculiar a
intenção de Baudelaire em rejeitar a natureza. Ele seguiu a mesma interpretação de Junqueira,
mas a reforçou.
91 Ibid., p. 66.
36
Os ecléticos são criticados por Baudelaire por se acomodarem ao dado imediato da burguesia, o agradável aparece naturalmente como útil e o útil como verdadeiro e belo. Por que então negariam, idealizariam ou interpretariam uma “natureza” que lhes quer tão bem? [...] A estética burguesa agarra-se aos “fatos” que lhe surgem como “realidade”, à “realidade” que lhe surge como “natureza”. [...] Seu antinaturalismo torna-se com o tempo uma idiossincrasia, de sorte que a simples menção positiva a qualquer “naturalidade”o faz tremer [...]92.
Seria importante retomar a tese de Oehler. A natureza, na estética antiburguesa
atribuída à escrita de Baudelaire, é compreendida no sentido naturalizante. Como a burguesia
apoderou-se da natureza desfrutando da sua dominação sobre a sociedade novecentista, o
poeta tenta provocar a revolta alterando o curso social, incitando seus leitores à real situação93.
Assim, a imitação dos aspectos aparentes da realidade, a imitação da natureza, não seria nada
além da afirmação da supremacia e permanência burguesa. Oehler atribui à arte um potencial
de protesto contra a ideologia naturalizante. No entanto, o autor hierarquiza e subjuga a
estética e a arte em detrimento das necessidades e ideais político-sociais, mesmo considerando
que Baudelaire propunha uma discussão a partir da arte moderna. Ao avaliar o potencial
social-revolucionário da modernidade, Oehler subverte a estética de Baudelaire alusivamente
a uma retórica emancipatória. O autor atribuiu o curso da narrativa do poeta como
provocadora de mudanças radicais, reestruturando a sociedade94. E, dessa forma, suas
considerações sobre os Salões sempre são comparados ao caráter revolucionário da persona
Baudelaire. As idéias sociais são cuidadosamente desviadas para o lado estético, evidenciando
o pathos objetivo da progressiva autoconscientização das classes inferiores.
Diferente de Oehler, propomos uma maior autonomia para o pensamento plástico do
poeta, o qual não se opõe aos ideais revolucionários na e para sua época, mas correspondem a
um sistema de pensamento não simplesmente subjugado à esfera política.
Ao deslocar o ideal da natureza, Baudelaire conferiu ao artista um lugar mais
sacralizado à medida que este conseguiria transpor a simples realidade visível. No Salão de
1859 aprofundou este repúdio à estrita reprodução da realidade, questionando a existência da
natureza externa por si mesma e o total conhecimento desta pelo homem. Ele concebeu o
alcance da realidade por meio da imaginação criadora. Contrário ao academicismo,
Baudelaire foi crítico de normas e doutrinas estritamente rígidas nas artes, pois dois artistas
distintos poderiam atingir o Belo em suas obras através de técnicas diferentes. Essa não
92 OEHLER, Dolf. Op. cit., 1997, p. 180-181.93 Ibid., p. 187.94 Ibid., pp. 172-173
37
estreiteza crítica, contudo, não significou uma desvinculação total com temas requisitados no
âmbito artístico, como a relevância do artista em atingir o Belo.
3.2 BELEZA, TEMPO E IMAGINAÇÃO: PERSPECTIVA DA MODERNITÈ NA CRIAÇÃO
ARTÍSTICA
A defesa até aqui empreendida sobre uma suposta supremacia dos artistas plásticos
sob os literatos não corresponde à crença do rebaixamento da palavra em detrimento da
imagem. Seria audacioso afirmar que As flores do mal têm o mesmo reconhecimento que O
pintor da vida moderna. Não obstante, podemos retomar a implicação sobre a conjugação do
poeta e do crítico na mesma pessoa, perspectiva esta que se distingue de igualar obra poética e
obra crítica.
Ressalta dessa assertiva, a partir de Dirceu Villa, pensar no poeta como um artista
que refletia sobre sua arte. E isso se faz perceptível, sobretudo, na estrutura e no propósito dos
ensaios críticos, tanto literários como artísticos95. Para Baudelaire, a arte deveria assumir o
papel crítico, e revelar esse teor na produção artística. Conforme Ivan Junqueira, essa
concepção do poeta em fundamentar um desígnio artístico teve respaldo na descoberta e
tradução dos textos do escritor americano Edgar Allan Poe, sobretudo na tradução do texto
The poetic principle (O princípio poético)96. Ambos teorizaram sobre a criação artística e
designaram a linguagem poética como o único meio de se atingir o Belo97.
Estabelecer o alcance da beleza por meio da poesia, entretanto, não exclui os artistas
plásticos do ideário estético formulado pelo poeta-crítico. Isso porque, denota-se que a arte
era concebida a partir da junção pensamento-manifestação; e mesmo se a manifestação fosse
pictórica, o pensamento que levou o artista à composição poderia muito bem ser poética.
Entende-se essa poesia não como um gênero artístico, mas como um êxtase da alma, oriunda
da tensão e contradição humana do seu contexto98. Conforme Baudelaire, o gênio artístico
possuía uma sensibilidade espiritual que, “através da faculdade suprema da imaginação
intuísse “en dehors des méthodes philosophiques, les rapports intimes et secrets des choses,
les correspondances et les analogies”99.
95 VILLA. Dirceu. Baudelaire. Escritos sobre arte (Organização e tradução Plínio Augusto Coelho). São Paulo: Hedra, 2008, p. 10. 96 Idem.97 JUNQUEIRA, Ivan. Op. cit., p. 62. 98 Ibid. p. 82.99 “para fora dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas das coisas, as correspondências e
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Já destacamos que os textos dos Salões se caracterizam por serem comentários
acerca das exposições ocorridas em Paris nos respectivos anos publicados, enquanto o
dedicado à Constantin Guys trata-se quase de um compêndio da estética proposta. Apesar
disso, reitera-se que os Salões já apresentavam várias discussões sobre arte. A citação de
artistas como Eugène Delacroix e Francisco Goya, e o caricaturista Daumier, tidos modernos,
estiveram presente desde os primeiros textos sobre arte. Mas foi no O pintor da vida moderna
que Baudelaire reuniu argumentos e estruturou sua concepção. O ensaio em questão obedece
às seguintes divisões: I. O belo, a moda e a felicidade, II. O croqui de costumes, III. O artista,
homem do mundo, homem das multidões e criança, IV. A modernidade, V. A arte mnemônica,
VI. Os anais da guerra, VII. Pompas e solenidades, VIII. O militar, IX. O dândi, X. A mulher,
XI. Elogio da maquiagem, XII. As mulheres e as cortesãs, XIII. Os veículos. Em cada um
desses, o poeta examinou aspectos da vida moderna e urbana, além de cunhar a definição de
modernitè, tendo como parâmetro o trabalho artístico de Guys. A “modernidade é o
transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o
imutável”100, escreveu Baudelaire no texto. Apesar de seus contornos pouco definidos,
empreenderemos alguns comentários acerca de possíveis relações sobre os termos beleza,
imaginação e tempo, a partir do quais, acreditamos possuir estrito vínculo com o projeto
estético da crítica de arte de Baudelaire.
Nas considerações expostas nos Salões de 1846 e 1855, Baudelaire credita à
imaginação criadora uma potência na arte. Mas foi no Salão de 1859 que a contraposição
entre imaginação e imitação foi consolidada dentro da teoria estética do poeta-crítico. A
imaginação era fundamental para o ato criativo, opondo-se à estrita reprodução do aparente
real. Aquela seria superior ao ofício artístico, este baseado na simples técnica e reprodução da
natureza. Regras estritas dificultavam a relação com a verdade e a moral, reprimindo o
temperamento do artista, e sua criação intelectual, a imaginação. Mas, em que medida
imaginação e desvelamento do mundo/alcance da realidade, coexistem, uma vez que destoam
como pares opostos? Para o poeta, a imaginação não cria uma fantasia poética, mas constitui a
síntese, a análise superior a qual, longe de atentar-se à banalidade da simples imitação,
aprofunda o olhar sobre o cotidiano101. Ela busca dar continuidade através da perspectiva do
seu tempo102.
analogias” (tradução livre). BAUDELAIRE, Charles apud JUNQUEIRA, Ivan. Op. cit., p. 85.100 BAUDELAIRE, Charles. “O pintor da vida moderna”. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 859. 101 BAUDELAIRE, Charles, “Salão de 1859”. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 804-805.102 NASCIMENTO, Roberta Andrade do. A crítica de arte de Charles Baudelaire. Florianópolis, Fragmentos,
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A criação de um mundo novo e de uma nova sensação seria viável através da
imaginação, e Baudelaire associa esta faculdade ao ato religioso da criação. “Ela decompõe
toda a criação e, com os materiais acumulados e dispostos segundo regras cuja origem só
pode ser encontrada nas profundezas da alma, cria um mundo novo”103. Para o poeta, através
da imaginação a verdade seria atingida; mas isto requeria uma execução precisa e rápida da
composição afim de que nada se perdesse da impressão da cena. Nesse sentido, não há
paradoxo entre imaginação e o verdadeiro.
Segundo Baudelaire, a natureza atuava como se fosse um dicionário, “os pintores
que obedecem à imaginação procuram em seus dicionários os elementos que se harmonizam
com suas concepções”104. A imaginação não dá aos objetos uma fisionomia completamente
nova, mas a contemplação relaciona-se com o sentir e o pensar do artista. E assim, uma
manifestação artística potencial consideraria o universo visível como um armazém de imagens
e de signos, aos quais a imagem atribuiria um lugar e um valor relativos; cabendo ao artista
iluminar e atribuir sentido à sua composição. O imaginar não representa incoerência,
desordem, mas está imerso numa cadência que exalta a lógica da criação. A imaginação
constrói-se, se elabora até tornar-se um sistema que atribui sentido à existência, e permite
reunir as realidades dispersadas. Este seria o processo intelectual, interior da criação,
comprometido com o exterior, um olhar distanciado.
Como anteriormente destacado, um dos aspectos salientados nos escritos do poeta é a
atribuição da importância aos fatos cotidianos da época do artista, sejam eles sociais,
políticos, econômicos, morais. Ao se atentar a esse aspecto, Baudelaire não menosprezou uma
possível interlocução entre passado e presente dentro da obra. Mas opôs-se à utilização de um
passado desvinculado com temas modernos, ou seja, a manifestação de um passado que
negligenciava o presente. Em O pintor da vida moderna, afirmou que o “homem do mundo” –
aquele que compreende as razões misteriosas e legítimas do mundo – busca algo definido
como modernidade. Corresponderia à “tirar da moda o que esta pode conter de poético no
histórico, de extrair o eterno do transitório105.
E essa atitude moderna justifica-se para a busca de um objetivo mais geral, diverso
do prazer efêmero106. A arte era, par excellence, o lugar destituidor da superficialidade
aparente do mundo, e mais, a instância reveladora da beleza do “agora”. Como atenta
número 33, jul-dez 2007, p. 72.103 BAUDELAIRE, Charles. “Salão de 1859”..., p. 804.104 Ibid., p. 807.105 BAUDELAIRE, Charles. “O pintor da vida moderna”..., p. 859.106 Idem.
40
Junqueira, essa beleza era dúbia, e situava-se para além dos elementos plásticos ou
musicais107.
o belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e por um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem esse segundo elemento, que é o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível, não adaptável e não apropriado à natureza humana”108
Assim, o Belo decorre da simultaneidade entre algo eternizado e presente, apesar da
falta de explicitações do elemento eterno, tanto presente na definição de beleza como da
modernitè. Apesar das possíveis contradições que a indefinição pode causar, para Baudelaire o
alcance da beleza era imprescindível, e sua ausência seria provocada pela dissimulação
imposta pela técnica, pela falta de imaginação, desobediência à verdade, falta de curiosidade e
estado inebriado por parte do artista – o olhar do flâneur.
Até este momento, almejou-se pormenorizar imaginação, verdade, beleza, como
elementos potenciais ao ato criador. Sobre isso, Marshall Berman entrecruza verdade e beleza
em Baudelaire de outro modo ao empreendido nesta monografia, evidenciando um dualismo
entre esses dois termos, e não uma complementaridade: “a verdade é essencial, desde que não
asfixie o desejo de beleza”109. Berman compreende a verdade como crítica inerente do poeta
ao desenvolvimento do progresso tecnológico nas artes. Embasando-se na oposição à
fotografia, cujo objetivo era a apreensão da realidade, Berman opõe verdade e beleza, e
confunde a crítica do poeta: o repúdio aos artistas que reproduzem uma cópia da realidade não
significa refutar a relevância da realidade na produção artística. Dessa forma, para Berman o
real do poeta foi sempre negativizado, sendo que o artista produziria a partir de um
movimento espontâneo e individual, um exercício transcendente.
Além dessa dupla natureza da beleza – eterno e transitório - estabelecer pontos
críticos, uma controvérsia foi estabelecida nos ensaios de arte. No Salão de 1855, o poeta-
crítico destacou o caráter universal do Belo, e a conclusão dessa universalidade é pertinente.
Segundo Baudelaire, nações diferentes produzem tantos fenômenos como produtos insólitos,
e seria limitar demais o sistema de análise das obras de arte se o crivo analítico mantivesse um
único parâmetro. O Belo é multiforme e versicolor, “infinitamente variad[o], dependente dos
107 JUNQUEIRA, Ivan. Op. cit., p. 85.108 Idem, p. 852.109 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 136.
41
meios, climas, costumes, raça, religião e personalidade do artista”110, além de sempre possuir
algo de extravagante que quase nunca se enquadra no “sistema doutrinário dos professores-
jurados de estética”, conforme as palavras do autor. Dessa forma, caberia ao crítico de arte
adentrar no mundo de harmonias desconhecidas das obras plásticas, possibilitando sempre o
reconhecimento do novo. A tarefa do crítico de arte era captar intimamente o temperamento
de cada artista e o que proporcionou sua ação, ao invés de analisar e descrever
minuciosamente cada obra. Toda a manifestação artística possui algo de Belo, e isso constitui
a individualidade da obra. Baudelaire preferiu tecer sua crítica em nome do sentimento, e do
prazer, ao invés de um molde descritivo por lhe soar como um ato de simples vaidade do
crítico111.
As afirmações comparativas de Baudelaire para determinar a universalidade da
beleza despertam interesse. Segundo ele, a “floração” do artista seria muito mais espontânea e
individual do que a continuação de algum precursor. E o mesmo aconteceria com as nações,
pois a “vitalidade” – palavra usada ao invés de progresso – se deslocaria, seria temporária, e
não cumulativa. Isso explicaria, por exemplo, como em determinados períodos algumas
nações conseguiriam se sobressair influenciando outros territórios e raças, e como essa
“vitalidade” poderia ser extinta por vários motivos, ocasionando o deslocamento do progresso
para outro território. Nesse sentido, para Baudelaire a França ocupava naquele contexto o
centro de emanação do mundo civilizado. Ainda que esta idéia tenha sido exposta, a
universalidade constitui um ponto mais isolado na discussão dos ensaios.
Paralelamente à nação, outro tipo de progresso ocorria nas produções artísticas, por
meio da dominação progressiva da matéria. Esta se revelava para o poeta como uma
construção individual, visto que ao produzir algo um indivíduo recebe influências de outros
artistas e da sua época, mas não uma doutrina acabada e bem estruturada, sendo esta
construção intrínseca ao ato de produzir.
O terceiro ponto a ser analisado refere-se à temática tempo, subjacente à modernitè.
A perspectiva de analisar esta categoria intentou entender o processo de fusão dos tempos,
estabelecido através da combinação entre o antigo e o novo, resultando na construção do
“agora” através da imagem. Composta, ao mesmo tempo pelo eterno e pelo fugaz, para a
110 BAUDELAIRE, Charles. “Crítica de Arte. Exposição Universal 1855”, IN: BAUDELAIRE, Charles (1821-1867). ”. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 774.111 Não obstante, por mais que o poeta-crítico tenha refletido que a beleza não pode ser definida por limitações acadêmicas, a noção do Belo e do que ele entendia por manifestações artísticas não estão desvinculadas do julgamento de Baudelaire. Se na pintura a beleza não corresponde à imitação da natureza, na escultura a estrita relação com a realidade é imprescindível para tornar a obra bela.
42
compreensão da modernitè desponta uma ambiguidade entre os termos, que não são opostos,
mas complementares112. Complementaridade esta que configura a própria consciência do
tempo presente.
Segundo Philippe Willemart, Santo Agostinho separou o tempo de Deus, eterno, do
tempo dos homens. Um ser eterno entraria no tempo do mundo distribuindo-se através da
linguagem. Para Willemart, “haveria traços, restos e partes da eternidade desse ser na
linguagem que constituem a metade da arte, metade que não pertence propriamente a um
passado, mas a um presente eterno, fora da nossa concepção kantiana do tempo”113.
Seguindo este princípio, Willemart afirma que em Santo Agostinho a arte possuía
uma parte eterna, não propulsora, mas dentro. Isso não poderia ser aplicado em Baudelaire,
pois o eterno nele dissocia-se do divino. O poeta salienta princípios da produção artística,
ressaltando a aspiração humana em direção a uma beleza superior (eterna) a partir de um
entusiasmo com o tempo presente, que para Willemart seria independente da paixão.
Contradizendo Oehler, Willemart acredita que a evocação do cotidiano pelo artista/poeta
abriria portas desconhecidas do mundo, e que a produção deste não transformaria a sociedade,
mas criaria outro mundo, o da arte – perspectivado na obra. A transformação prevista ocorre
no momento que “o poeta traz o mundo para a página e o transforma, no sentido literal da
palavra, lhe dá uma outra forma”114, legando ao “homem do mundo” um lugar como agente
transformador, e não somente como espectador. Para Benjamin, nesse sentido, as imagens
criam um sistema da realidade através da visão do artista como o centro do pensar. Em
decorrência disso, a imagens, por essência dialéticas para o filósofo alemão, eternizam um
momento. Ao efetuarem-se as reflexões, os elementos que as constituem tornam-se outros; ao
se examinar um objeto, consuma-se sua autodestruição; essa autodestruição conduz a um
novo fundamento, fazendo com que o objeto, paradoxalmente, se perpetue.
Apesar da inviabilidade de maiores considerações sobre a discussão entre
eternidade/efemeridade, à esta dispõe-se refletirmos acerca do passado/presente, devido à
exposição da sensibilidade estética de Baudelaire nesta monografia115. Sobre isso, Jauss
concluiu que a compreensão da modernidade resulta de um rompimento com a concepção
cíclica do tempo, onde os elementos antigos e modernos se atualizariam, mas não
112 NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Op. cit., p. 75.113 WILLEMART, Phillippe. “O conceito de modernidade em Baudelaire”. IN: Irlemar Chiampi. (Org.). Fundadores da Modernidade. São Paulo: USP, 1993, p. 50.114 Ibid., p. 51.115 Acreditamos que para a análise do eterno de Charles Baudelaire precisaríamos adentrar nos aspectos místicos da sua teoria. Por isso, não aprofundamos tal assunto.
43
interromperiam o curso do conjunto matriz a que estariam ligados116. A tradição concebia a
modernidade como um ponto do ciclo temporal, e a transmissão do passado era imediata e
imprescindível. A modernidade de Baudelaire, no entanto, implica na reflexão do passado
através da compreensão histórica, interrompendo a imediatez do circuito de apreensão deste
passado. Disso decorre a importância do conhecimento do passado para a ruptura, ou melhor,
para ajustar a atualidade das condições existenciais117. Nesse sentido, podemos correlacionar
esta afirmação à renúncia de Baudelaire quanto à imitação da realidade, viabilizando a
sensação do novo através da atualização do passado para a compreensão do presente,
princípio próprio da concepção de arte do poeta.
A autora Jaqueline Nascimento ressalta a construção da temporalidade do “agora”
através da diferença, marcado pela importância do cotidiano somado à fragmentos do
passado, fundidos no objeto de arte. Segundo André Hirt, para Baudelaire,
o presente possui existência em si mesmo e a eternidade só pode ser pensada a partir de sua circunstância; esse instante eternizado na obra de arte atravessa os presentes vindouros, cabendo à imaginação reconhecer e estabelecer as correspondências entre as várias formas eternizadas118.
Nesse contexto, pode-se visualizar a concepção de tempo do crítico-poeta como a co-
existência de diversos presentes, dos quais a eternidade não se opõe. A simultaneidade do
“agora”, da própria percepção do presente, foi ressaltada também por Georges Bataille. Para
este, Baudelaire experienciava a co-manutenção de vários presentes: a lentidão do tempo e
sua velocidade existiam em simultâneo119, característico dos preceitos baudelairianos:
eterno/transitório; bem/mal; antinomias coexistentes e irredimíveis. Por conta da consciência
de uma vida esmagada pelo tempo, e por meio de tensões ditadas pela história, ambas
causadoras das oposições, Bataille ressalta a necessidade de ruptura, escape120, inerente à
pessoa de Baudelaire.
Direcionamos uma discussão sobre a temporalidade implícita não apenas no conceito
modernitè, mas como própria à existência do poeta. Os vários “agoras”, o tempo, nos leva à
multiplicidade fenomênica. O direcionamento crítico de Baudelaire ao exaltar artistas díspares
como precursores da modernitè, nos leva a afirmar a constatação da multiplicidade do tempo
presente: cada artista sente diferentemente a modernidade, e a representa distintamente. A
116 JAUSS, Hans Robert apud NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Op. cit., p. 76. 117 Ibid., p. 77.118 HIRT, André apud MELTZER, Françoise. Op. cit., p. 73.119 Ibid., p. 6.120BATAILLE, Georges apud MELTZER, Françoise. Op. cit., p. 9.
44
possibilidade de reunir artistas como Daumier, Delacroix, Goya e Guys ocorre por esta
amplitude. Daumier atentava-se às caricaturas sociais e políticas do contexto, como porta-voz
das impunidades; enquanto Delacroix representava a modernidade poética em suas pinturas. E
em Constantin Guys, na publicação de 1863, Baudelaire destacou uma “originalidade
extraordinária, na qual o que pode restar de bárbaro ou de ingênuo aparece como uma nova
prova de obediência à impressão, como lisonja à verdade”121.
Para Friedrich a beleza de Baudelaire era o produto da razão e do cálculo122, e sob a
primazia da matemática e do raciocínio na construção do poema, à medida que toda
composição artística possui uma lógica da palavra, e obedecia à uma racionalidade poética123.
Acreditamos, porém, que a consequência disto foi a caracterização de uma consistência
artística reflexiva, e não propriamente a crença numa verdade singular. O poeta evidenciou
nos ensaios de arte a necessidade, de cada artista de modo particular, favorecer em sua
expressão um aspecto da beleza, temperada pela subjetividade da criação, como experiência
da modernidade.
121 BAUDELAIRE, Charles. “O pintor da vida moderna”, ... p. 861.122 FRIEDRICH, Hugo. “O Poeta da modernidade. Baudelaire visto por três de nossos contemporâneos”. IN:/ Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, pp. 1040-1041.123 WILLEMART, Phillippe. Op. cit., p. 52.
45
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um homem de mente inquieta, crítica e curiosa, possuidor do sentido da época, e
formulador de um modo de vida124, diferente de moldar-se a uma forma superficial. Esses
atributos do poeta T. S. Eliot conferidos à Baudelaire cabem na análise que propomos à
estética baudelairiana. Entretanto, ao salientar uma postura oposta à arte clássica, o
pensamento artístico de Baudelaire não se restringe apenas a uma concepção de arte moderna,
baseada em pressupostos artísticos. A capacidade do artista em expressar sua própria
temporalidade, ou seja, expressar sua consciência enquanto consciência da vida
contemporânea deve ser considerada como uma crítica mais ampla à própria sociedade
parisiense novecentista.
A modernidade é consciência imediata da história, cujo objetivo seria exaltar a
atualidade, ultrapassando os próprios limites do campo estético. A própria crítica em
Baudelaire não aparece como reflexo, mas reflexão da obra. Crítica e arte seriam as duas
maneiras encontradas para resistir à voracidade do tempo presente, que afligia os indivíduos.
Sobre isso, Hugo Friedrich ressalta “a capacidade de ver no deserto da metrópole
não só a decadência do homem, mas também de pressentir uma beleza misteriosa, não
descoberta até então”125. Não é apenas no uso de imagens da vida comum, não apenas nas
imagens da vida sórdida de uma grande metrópole, mas na elevação dessas imagens a uma
alta intensidade – apresentando-a como ela é, e não obstante fazendo que ela represente
alguma coisa além de si mesma. Assim, o plano estético do poeta-crítico reúne o gênio
poético e a inteligência crítica, estando no mesmo nível como elaboração criativa de uma
época126.
A modernidade é, antes, sinônima de crítica, como aponta Nascimento, e a arte para
Baudelaire aparece como idéia. A obra revela a forma através da qual foi elaborada a
consciência do tempo presente. Ressaltamos aqui a postura própria da crítica de Baudelaire
quanto aos Salões: para ele, a análise crítica não caracteriza o reflexo da obra, ou seja, ela
destoa como reflexão, uma contemplação compreensiva127. A arte moderna tem como
fundamento a consciência de que a representação do mundo é o resultado da ação da
imaginação sobre seu referencial – o tempo presente. Intelectuais como Michel Foucault e
124 ELIOT, T S. Baudelaire. “Baudelaire visto por três de nossos contemporâneos”. IN: BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 1020-1021.125 FRIEDRICH, Hugo. Op. cit., p. 1029.126 Ibid, p. 1030.127NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Op. cit., p. 72.
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Willi Bolle comparam uma atitude moderna postulada por Baudelaire com a concepção do
Aufklarung em Kant. Bolle menciona que a poesia como auto-reflexão reatualiza o gesto
crítico do Aufklarung.. O autor menciona como a modernitè em Baudelaire fundamenta-se na
atitude básica da crítica, um gesto auto-reflexivo128.
Através da obra filosófica de Kant, o conceito de crítica adquiri, para a geração mais nova, um significado quase mágico. Deixando de ser uma atitude intelectual apenas julgadora, não produtiva, a “crítica”, para os românticos e a filosofia especulativa, significava: “produtividade objetiva”, “reflexão criativa”129.
Para Foucault, devemos encarar a modernidade mais como uma atitude do que um
período da história, sendo imprescindíveis para esta afirmação as teses de Baudelaire, por
apresentar a arte como o lugar no qual se opera a imaginação clarividente, reveladora do seu
presente 130.
Nesse sentido, o artista moderno é o “herói” baudelairiano, o decodificador da vida
cotidiana sob as aparências imagéticas. À arte e o artista, embasados na atitude crítica,
libertam e redimem o presente, em imagens do “agora”; movimento este que por si, oferece
aos indivíduos – ao leitor, ao público, tão caros à Baudelaire – resistência à coação da
modernidade por meio das mudanças do século XIX na França.
Sobre esta pesquisa monográfica, o vasto referencial bibliográfico e a diversidade
dos assuntos nos quais é delegado à produção baudelairiana um lugar, incumbem às pesquisas
recentes uma leitura e atualização daquilo que já foi dito sobre o autor. Isso porque o
enunciado a que se propõe esta monografia não se configura como o inaugurador sobre o
tópico do seu discurso: os enunciados são moldados pela antecipação de uma resposta, mas
igualmente moldados por enunciados anteriores. Podemos mesmo destacar que “entre a
palavra e seu objeto, a palavra e o sujeito falante, existe um ambiente elástico de outras
palavras, de palavras alheias sobre o mesmo objeto, o mesmo tema, e isso constitui um
ambiente que não raro é difícil de penetrar”131. Em uma pesquisa, a reflexão do sujeito falante
depara-se com outros discursos que investem na direcionalidade explicativa do proposto. No
caso de Baudelaire, o acúmulo de proposições em torno dele e sua produção é tão
considerável que muitos juízos podem, erroneamente, ser entendidos como autênticos do 128 BOLLE, Willi. Op. cit., p. 158129 SCHLEGEL apud BOLLE, p. 158.130 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 342-343.131 MORSON, Gary Saul; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin. Criação de uma prosaística (Trad. Antonio de Pádua Danesi). São Paulo: Edusp, 2008, p. 153.
47
poeta.
A proposta empreendida nesta monografia pode soar deveras otimista com a imagem
disseminada do poeta. No entanto, a confiança numa “salvação” através da arte revela-se
como uma postura disseminada nos ensaios artísticos. Talvez o pessimismo seja deflagrado no
que Susan Buck-Morss afirmou quanto à Baudelaire ter vivido profundamente seu
posicionamento, contudo sob a “imagem petrificada”; um desassossego constante que se torna
resignação, e não se desenvolve132, mesmo que o poeta pretendesse interromper o curso do
mundo133. Segundo Françoise Meltzer, para Bataille, as antinomias do ideário baudealiriano
são contradições irredimíveis, cuja possibilidade impossível eclodiam a todo o momento,
gerando o spleen134.
132 BUCK-MORSS, Susan. Op. cit., p. 240.133 Ibid., p. 241.134 MELTZER, Françoise. Op. cit., p. 3-19.
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FONTES
BAUDELAIRE, Charles. “Salão de 1845”. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
_____________________. “Salão de 1846”. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
______________________. “Salão de 1855”. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
______________________. “Salão de 1859”. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
______________________. “O pintor da vida moderna”. IN: Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire. (Organizada por Ivo Barroso). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
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52
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53
ANEXO
Dados biográficos de Charles-Pierre Baudelaire
Após a morte do pai de Charles Baudelaire, François Baudelaire, em 1827, sua mãe -
madame Caroline Archimbaut-Dufays - contraiu segundas núpcias com Jacques Aupick, o
qual na época era chefe de batalhão, cavalheiro de São Luís e oficial da Legião de Honra
francesa.
Em 1836 Aupick internou seu enteado no liceu Louis-le-Grand devido ter de atender
o chamado do Estado-Maior de Paris. No entanto, aos 18 anos Baudelaire foi expulso do liceu
e iniciou uma vida de devassidão, ampliada após sua maioridade (em 1842), quando teve o
direito de receber parte da herança a qual gasta com a amante Jeanne Duval – cujo verdadeiro
nome era Jeanne Lemmer -, e em noites ao lado do poeta Théophile Gautier. Foi neste período
que travou relações com vários escritores e intelectuais, como o fotógrafo Félix Tournachon,
dito Nadar.
As maiores inimizades familiares provinham de embates com seu padrasto. Vários
fatos somaram-se à crescente afronta do enteado: o próprio casamento com a mãe, o envio
para o liceu e uma viagem inesperada de navio. O exemplo mais recorrente dessa desavença é
a imagem de Charles Baudelaire entre as barricadas de 24 de fevereiro de 1848, armado com
um fuzil, gritando: “abaixo ao general Aupick”.
Até meados de 1845 Baudelaire já estava inserido em círculos culturais, assistia
assiduamente a várias encenações teatrais, o que lhe favoreceu contatos com artistas e
intelectuais que se tornariam seus amigos, e proporcionou seu amadurecimento como escritor.
Nesse período, ele contribuiu com escritos de prefácios, historietas e alguns projetos artísticos
de amigos, e iniciou a escrita e publicação de seus primeiros poemas, inclusive os que
integrariam As flores do mal. A partir de 1842 se reuniu ao Clube dos Haxixeiros, cujos
integrantes eram: Théophile Gautier, Apollonie Sabatier, o pintor Fernand Boissard e talvez
Balzac, lhe rendendo a publicação de Os paraísos artificiais em 1860. Esse foi seu período de
pleno dandismo, conforme Junqueira: “O dândi não tem outra ocupação que a elegância”,
Baudelaire escreve em O pintor da vida moderna. É durante este início que o poeta descobriu
a obra do norte-americano Edgar Allan Poe, de quem traduziu vários contos e romances,
como As aventuras de Arthur Gordon Pym. Entretanto, Ivan Junqueira critica alguns trabalhos
a respeito de Baudelaire, citando entre esses o de Paul Valéry, que afirmam a modificação do
54
poeta a partir das obras de Poe. Há muito mais uma comunhão conceitual entre Poe e
Baudelaire do que uma mudança deste, pois por volta de 1846 a concepção de poesia para o
escritor francês já estava delineada; ele já era um artista maduro embora sem muito
reconhecimento.
Desde que recebeu a herança deixada pelo seu pai as relações do poeta para com sua
família foram conturbadas. As extravagâncias de Baudelaire preocupavam sua mãe que, em
1844, instaurou um processo recorrendo a um curador a mediação da herança do filho, na
tentativa de impedir gastos exagerados. Até o fim de sua vida o fato de viver em grande
precariedade influenciou as manobras do escritor dentro do círculo literário parisiense. Walter
Benjamin menciona em seu livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, que
os problemas financeiros serviram como motivo para as estratégias de Baudelaire no mercado
literário parisiense, logrando de falcatruas como venda de direitos de um mesmo texto mais de
uma vez.
De 1844 a 1856 vários textos do escritor francês, de diversos gêneros, são publicados
em revistas/jornais franceses. Os irmãos Michel Lévy publicam O Salão de 1845, e O Salão
de 1846 – nos respectivos anos dos títulos -, destacando Baudelaire como crítico de arte,
difundindo uma doutrina estética peculiar e lhe rendendo o ingresso na Sociedade dos
Homens de Letras. Estes textos, assim como outros, são produzidos para periódicos, e
somente mais tarde foram coligidos em livro. Na publicação de o Salão de 1845, havia uma
promessa na capa “para já” de Da pintura moderna e “a aparecer em breve” Da caricatura
(ensaio este do qual, muito provavelmente, foram escritos posteriormente Da essência do riso
e geralmente do cômico nas artes plásticas, em Le portefeuille, 1855; e Alguns caricaturistas
franceses e Alguns caricaturistas estrangeiros, ambos publicados em 1857 em Le présent),
assim como David, Guérin e Girodet. Quanto aos poemas, sobretudo os que integram o livro
As flores do mal, é importante ressaltar que eles foram sendo escritos ao longo da vida do
autor, e publicados em periódicos franceses no decorrer da finalização dos mesmos. Dessa
forma, muitos poemas já haviam sido publicados antes de integrarem o livro.
Publicou Método de Crítica (Exposição Universal de 1855, I) e Delacroix
(Exposição Universal de 1855, III) em Le pays, e M. Ingres (Exposição Universal de 1855,
II) em Le portefeuille, este recusado pelo jornal anterior.
Segundo Dirceu Villa, estes ensaios apresentam um conjunto de reflexões estéticas
incomuns para o período, ressaltando aspectos como o riso, e recuperando autores e artistas
pouco valorizados. Outra característica ressaltada por este autor foi a construção discursiva
dos textos do poeta. Seu debate era focado, utilizando argumentos persuasivos sustentados
55
com exemplos e modelos, dando o tom do gênero ensaístico aos seus textos, segundo o qual a
defesa dos argumentos é mais sutil e não tão rígida. E por este crivo do ensaio postulando sua
crítica que podemos compreender como Baudelaire propõe questionamentos e mudanças em
relação à sociedade parisiense emergente da segunda metade do século XIX.
Em 1857 publicou As flores do mal na Revue Française pela editora de Poulet-
Malassis e De Broise, firmando contrato com estes no final de 1856, no qual lhes vendeu os
direitos do livro de poemas. No entanto, os poemas de As flores do mal rendem a ele e aos
editores um processo por ultraje à moral pública. A direção da Segurança Pública, órgão do
Ministério do Interior, alerta os tribunais sobre o delito e instaura uma ação judicial contra
Baudelaire e seus editores, ordenando a apreensão dos exemplares do livro. Baudelaire
recorre a Poulet-Malassis para que este escondesse toda a edição. No julgamento, o
procurador-geral, Pinard, afirma sobre a obra de Baudelaire: “O princípio, sua teoria, é a de
tudo retratar, tudo colocar a nu; ele vasculhará a natureza humana e exaltará seu lado
hediondo”. Além de condenado a uma multa de 100 francos, teve seis poemas censurados
(‘Lesbos’, ‘Mulheres Malditas’ [Delfina e Hipólita], ‘O Letes’, ‘A que está sempre alegre’,
‘As jóias’, ‘As metamorfoses do vampiro’, e os chamados ‘Poemas condenados’ incluídos na
Marginália, de 1866, e posteriormente incorporados em As flores do mal. Da mesma forma
que Baudelaire e no mesmo ano de 1857 Gustave Flaubert foi processado por Madame
Bovary, mas diferente daquele recebeu a absolvição. Apesar dos problemas com a justiça,
Victor Hugo escreve à Baudelaire: “Vossas Flores do mal cintilam e ofuscam como estrelas”,
garantindo à Baudelaire um estado de exaltação por ter sido declaradamente admirador de
Hugo.
O poeta vende a Poulet-Malassis e De Broise os direitos da segunda edição de As
flores do mal (incluindo 35 poemas novos e um inédito e lançado em 1861); Os paraísos
artificiais (publicado em 1860); e do Bric-à-brac estético (o título foi logo alterado para
Curiosidades Estéticas). Em 1862 publica dois artigos sobre a técnica da água-forte: ‘A água-
forte está na moda’, na Revue anecdotique; e ‘Pintores e aquafortistas’, no Le boulevard.
Desde 1863 possuía um projeto que consistia na ida à Bélgica para visitar as ricas galerias
particulares. Viajou para Bruxelas em abril de 1864 para realizar conferências e negociar a
venda de suas obras, e proferiu uma conferência sobre Delacroix no Círculo Artístico e
Literário de Bruxelas, e uma conferência sobre Théophile Gautier. Um fato curioso sobre
Bruxelas é que Baudelaire possuía um desejo de conhecer o país, mas sofreu várias retaliações
por parte dos belgas, o que o incitou a escrever durante a viagem (13 de junho de 1864) um
dos mais virulentos panfletos: “Delícias da Bélgica” e “Pobre Bélgica”. Além disso, outro fato
56
que envolve a cidade refere-se ao exílio do editor Poulet-Malassis nesta cidade, onde dedicou-
se a publicar livros raros e libertinos, assim como panfletos contra o império.
Na década de 1860 a influência de Charles Baudelaire já era reconhecida nos círculos
artísticos. Em 1865 Mallarmé publicou em L’artiste sua Symphonie Littéraire, cuja segunda
parte foi dedicada à Baudelaire. No mesmo ano Verlaine escreveu em L’art artigos sobre
Baudelaire, que se mostra antes inquieto e irritado do que agradecido.
Mesmo com o reconhecimento de outros literatos e intelectuais, e por mais que tenha
se dedicado precocemente à publicação de vários textos, a situação econômica do poeta se
torna cada vez mais desesperadora. Prosseguiu com seus escritos críticos: Richard Wagner e
Tannhaüser, 1861; A essência do riso nas artes plásticas e Eugène Delacroix, e poéticos: Os
paraísos artificiais, 1860; Pequenos poemas em prosa, 1863; O Spleen de Paris, 1864, além
de contos e aforismos. Charles Baudelaire morre aos 46 anos, possivelmente em conseqüência
de uma sífilis contraída na juventude, e é enterrado no cemitério parisiense de Montparnasse.
Após a morte do poeta, várias de suas obras foram compiladas em Obras Póstumas. O
primeiro trabalho biográfico completo sobre o poeta foi assinado por Eugéne Crépet, através
da editora Quentin, intitulado Obras póstumas e correspondências inéditas. Esse volume
revela os Diários Íntimos, incluindo Lampejos e Meu coração desnudado. Suas cartas,
sobretudo as endereçadas à sua mãe, foram também publicadas posteriormente. A reabilitação
de Baudelaire pela corte de Cassação ocorreu em 31 de maio de 1949.
Ivan Junqueira, em seu trabalho sobre Baudelaire, discorreu acerca da importância
das experiências pessoais do poeta, desde acontecimentos de sua infância onde situam-se
algumas matrizes geradoras da cristalização estética, as primeiras impressões e a maturação
do gosto.
(...) a poesia de Baudelaire revela um extraordinário senso plástico e visual, o que lhe permitiu também tornar-se o maior crítico de arte do seu tempo e a cuja fulgurante intuição muito deve o reconhecimento definitivo de artistas como Delacroix, Manet, Constantin Guys ou Daumier. Essa percepção visual da realidade remonta sem dúvida a uma vivência infantil, a qual Baudelaire se reporta no fragmento LXIX de Meu coração desnudado: “Glorifier le culte dês images (ma grande, mon unique, ma primitive passion)135.
Entretanto, geralmente as referências sobre a infância do poeta são mais limitadas à
separação com a mãe após o segundo casamento, o que obstrui outros fatos da sua vida que
poderiam ser relacionados com alguns de seus posicionamentos e escolhas posteriores. No
135JUNQUEIRA, Ivan. As flores do mal, ..., p. 56. “Glorificar o culto das imagens, minha grande, minha única, minha primeira paixão” (Tradução livre).
57
trecho citado nota-se a prematura relação do poeta com arte e suas primeiras impressões
imagéticas, o conduzindo para uma conduta artística. Um contemplador de imagens, como o
próprio escreveu em seu diário quando menino.
Seu pai, Joseph-François Baudelaire, foi um artista amador e vivia em um ambiente
artístico, mantendo relações com outros artistas como o escultor Claude Ramey e o pintor
Jean Naigeon, que também era conservador do Museu Luxembourg. Amigos de Charles
Baudelaire freqüentemente ouviam ele falar sobre suas caminhadas quando criança no
Luxembourg Gardens, acompanhando seu pai, que explicava a ele sobre as estátuas do lugar.
O inventário da morte do pai mencionou a contagem dos pastéis e aquareláveis deixados por
ele, que chegou a pintar mas sem obter reconhecimento.
Alusões sobre este período de sua vida e a conexão com uma imagética são notadas
em suas notas biográficas. Quando em 1842 foi morar entre artistas, interessou-se na mesma
medida por pintura e poesia durante três anos. De acordo com Prarond “ele raramente
passava no Louvre sem entrar nas galerias para estudar duas ou três figuras lá; e,
significativamente, ele preferia as pinturas escuras dos mestres espanhóis”136.
Apesar de ressaltar esta relação, são poucas as referências da sua relação com as artes
plásticas, o que ainda necessita de um olhar mais atento para possíveis reflexões acerca da sua
sensibilidade estética.
136 SHANKS, L. Piaget. “Baudelaire and the arts”, IN: Modern Language Notes, vol 41 nº 7, Novembro de 1926, p. 439. Publicado por The Johns Hopkins University Press. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/2913956>.
58
APÊNDICE
O intuito deste apêndice refere-se à inserção de algumas imagens de obras de arte e
artistas mencionados pelo poeta francês. Acreditamos que essas imagens são relevantes para a
compreensão do próprio ideário estético proposto por Baudelaire.
No entanto, como a proposta empreendida nesta monografia difere de uma análise
imagética, apenas incluímos as imagens, sobretudo as de Constantin Guys, devido a
admiração por parte de Baudelaire, como também devido às suas obras ainda serem pouco
conhecidas. Constantin Guys nasceu em Flessingue, Holanda, em 1802, e faleceu em Paris,
em 1892. Entre seus trabalhos, Guys exerceu um cargo de guerra, adquirindo o talento de
observador atento: acompanhou a Guerra da Criméia, por exemplo. Além dos croquis criados
por meio da função de detalhar as batalhas para as quais era enviado, o artista trabalhou como
ilustrador/correspondente em vários jornais europeus, como o Ilustrated London News.
Para Baudelaire, Guys descrevia com acuidade a sociedade parisiense, por ser um
contemplador assíduo da sociedade. A fugacidade do tempo e das coisas se evidenciava na
fugacidade do desenho, nos traços rápidos e na composição em movimento. Por isso, Guys
seria um historiador do seu tempo, aquele que traduz a vida contemporânea fazendo do diário
um assunto digno de representação.
A fim de possíveis comparações, incluiremos também três artistas mencionados pelo
poeta: Honorè Daumier, Eugène Delacroix, e Jean Auguste Dominique Ingres, incluindo
apenas uma criação artística de cada um.
Se até a década de 1840, o poeta-crítico coroava a modernidade poética e inventiva de
Delacroix, após a descoberta de Guys, sua admiração deteve-se em aclamar este como artista
moderno por excelência. Assim, o próprio Baudelaire reconheceu o caráter múltiplo da
modernidade, tanto por meio da variedade de temas, como através das diferentes maneiras
produtivas. Assim, elevar Daumier e Delacroix à mesma categoria não foi contraditório para o
poeta-crítico, apesar de no século XIX as caricaturas serem vistas como hierarquicamente
inferiores por outras “artes”.
Em contraposição à defesa de Baudelaire por uma arte diferente da que se consagrava
na época, a última imagem deste apêndice é de autoria de Ingres, o qual Baudelaire teceu
críticas.
59
OBRAS DE CONSTANTIN GUYS
CONSTANTIN GUYS: O camarote da ópera (La Loge de l’opéra), sem dataNew York, Metropolitan Museum of Art New York.
Disponível em : < http://en.wikipedia.org/wiki/File:Constantin-Ernest-Adolphe-Hyacinthe_Guys_001.jpg>
CONSTANTIN GUYS: Carruagens e cavaleiros (Carriage and Horsemen), sem dataDisponível em: <http://www.historylink101.com/art/famousg/guys501060.html>
60
CONSTANTIN GUYS: Encontro no parque (Meeting in the Park), sem dataTinta marrom, cinza, azul e preta; e pena / 21.7 x 30cm.
New York, Metropolitan Museum of Art New York.Disponível em: <http://www.metmuseum.org/works_of_art/collection_database/drawings_and_prints/meeting_in_the_park_constantin_guys/objectview_enlarge.aspx?page=874&sort=0&sortdir=asc&keyword=&fp=1&dd1=9&dd2=0&vw=1&collID=9&OID=90004314&vT=1&hi=0&ov=0>
61
CONSTANTIN GUYS: Tripulação no parque (Équipage dans un parc)Aquarela, tinta escura, pena / 18 x 30 cm.
Donation Carle Dreyfus, 1952.Paris, Musée du Louvre.
Disponível no site do Museu do Louvre: <http://www.louvre.fr/llv/oeuvres/detail_notice.jsp?CONTENT%3C%3Ecnt_id=10134198673226363&CURRENT_LLV_NOTICE%3C%3Ecnt_id=10134198673226363&FOLDER%3C%3Efolder_id=9852723696500829>
62
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/baud_guys_ed_arquivos/figura%204.jpg>
63
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte20decorativa/baud_guys_ed_arquivos/figura%203.jpg>
64
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte20decorativa/baud_guys_ed_arquivos/figura%205.jpg>
65
Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/baud_guys_ed_arquivos/figura%207.jpg>
66
OBRAS DE HONORÉ DAUMIER
Honoré Daumier (1808-1879): Gargantua, 1831Lithografia, 21,4 x 30,5 cm.
Publicado no La Caricature, em 16 de dezembro de 1831.Louis-Philippe, em Gargantua, devora les écus arrachés au peuple miséreux, dos quais alguns
eleitos, parentes do rei, aproveitam igualmente. Esta litografia provocou a condenação de Daumier, de Delaporte – o impressor-, e de D’Aubert – o marchand de estampas -, por
"excitar o ódio e o despeito ao governo monárquico, e ofensas ao rei".Ao mesmo tempo que valeu ao autor uma estada de seis meses na prisão, ela lhe asseugurou o
início de sua notoriedade.Disponível em: <http://expositions.bnf.fr/daumier/grand/012.htm>
67
EUGÈNE DELACROIX: A morte de Sardanapalus, (The Death of Sardanapalus), 1827-1828.
Óleo sobre tela, 392 x 496 cm.Paris, Musée du Louvre.
Disponível em: <http://www.artinthepicture.com/artists/Eugene_Delacroix/death.jpeg>
68
JEAN AUGUSTE DOMINIQUE INGRES: Louise de Broglie, Condessa de Haussonville, 1845.
Óleo sobre telaNew York, The Frick Collection
Disponível em: <http://www.artchive.com/artchive/I/ingres/ingres_broglie.jpg.html>