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Visionvox · Web view(D The National Trust for Places of Historic Interest or National Beauty (D...

Date post: 22-Jul-2020
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Kim RUDYARD KiPLING Título original: Kim Tradução de Maria Madalena Estevas Tradução cedida por Publicações Europa-América, Lda. (D The National Trust for Places of Historic Interest or National Beauty (D 2003 BIBLIOTEX EDITOR, S.L., para esta edição Impressão Printer, Industria Gráfica, S.A. Barcelona ISBN 84-96180-06-9 Dep. Legal B. 8871-2003 Biblioteca EDITOR 2003 De venda conjunta e inseparável com este jornal Kim Rudyard Kiplin Prémio Nobel 1907 Oh, vós que trilhais o Estreito Caminho, Pelo fulgor de Tóphet, até ao Dia do juízo, Sede amáveis quando os "pagãos" rezam, A Buda em Kamakura! Buda, em Karnahura
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Page 1: Visionvox · Web view(D The National Trust for Places of Historic Interest or National Beauty (D 2003 BIBLIOTEX EDITOR, S.L., para esta edição Impressão Printer, Industria Gráfica,

Kim RUDYARD KiPLING

Título original: Kim Tradução de Maria Madalena Estevas

Tradução cedida por Publicações Europa-América, Lda.

(D The National Trust for Places of Historic Interest or National Beauty (D 2003 BIBLIOTEX EDITOR, S.L., para esta edição Impressão

Printer, Industria Gráfica, S.A. Barcelona

ISBN 84-96180-06-9 Dep. Legal B. 8871-2003

Biblioteca EDITOR 2003

De venda conjunta e inseparável com este jornal

Kim

Rudyard Kiplin

Prémio Nobel 1907 Oh, vós que trilhais o Estreito Caminho, Pelo fulgor de Tóphet, até ao Dia do juízo, Sede amáveis quando os "pagãos" rezam, A Buda em Kamakura!

Buda, em Karnahura

Estava empoleirado, desafiando as ordens municipais, em cima do canhão Zam-Zammah, na sua plataforma de tijolo, em frente do velho Ajaib-Gher - a Casa das Maravilhas, como os nativos chamavam ao Museu de Lahore. Quem dominasse o Zam-Zammah, esse "dragão que

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cuspia fogo", dominaria o Punjab, já que a grande peça verde-bronze é sempre o primeiro dos despojos do conquistador.

Para Kini havia alguma justificação - expulsara o rapaz de Lala Dinanath do eixo da peça - uma vez que os ingleses dominavam o Punjab e Kim era inglês. Embora estivesse preto como qualquer nativo; embora falasse preferencialmente o vernáculo e a língua-mãe como uma cantilena incompleta e incerta, embora acompanhasse em condições de perfeita igualdade com os rapazinhos do bazar, Kim era branco - um pobre branco entre os mais pobres. A mulher mestiça que tomava conta dele (fumava ópio e fingia manter uma loja de mobílias usadasjunto da praça onde esperam os táxis baratos) disse aos missionários que era irmã da mãe de Kiní, mas a mãe dele fora ama na família de um coronel e casara com Kiniball C'Hara, um jovem sargento de bandeira dos Mavericks, um re~ gimento irlandês. Mais tarde, ele assumiu um cargo nos caminhos-de~ferro do Sind, Purijab e Délhi e o regimento regressou a casa sem ele. A mulher morreu de cólera em Ferozepore e O'Hara caiu na bebida, vadiando pela linha, para cima e para baixo, com o bebé de três anos e olhar vivo. Associações e sacerdotes, ansiosos pela criança, tentaram apanhá-la, inas O'Hara desapareceu até que encontrou por acaso a mulher que fva ópio, aprendeu-lhe o gosto e morreu, como morrem os brancos pobres na índia. À morte, os seus bens consistiam em três papéis - a um ele chamava-lhe o seu "ne varietur", porque essas palavras estavam lá escritas, por baixo da sua assinatura, e ao outro o seu "certificado alfandedegário" terceiro era. a certidão de nascimento de Kim. Aquelas coisas, costumava ele dizer nos seus momentos gloriosos de ópio, ainda haviam de fazer do pequeno Kim um homem. Em nenhuma circunstancia deveria Kim desfazer-se delas, pois pertenciam a um grande número de magia - a tal magia que os homens praticavam ali atrás do museu, no grande Jadoo-Gher azul e branco -, a Casa da Magia, corno denominamos a loja maçónica, Haveria de acontecer um dia, dizia ele, e a ala de Kim seria exaltada entre pilares - pilares monstruosos - de beleza e força o coronel em pessoa, montando um cavalo, à frente do mais belo regimento do mundo, serviria Kim - o pequeno Kim que deveria ter vivido melhor que o seu pai, Novecentos diabos de primeira, cujo Deus era um Touro Vermelho num campo verde, estariam ao serviço de Kim, se não tivessem esquecido O'Hara - o pobre O'Ilara que fora capataz na linha de Ferozepore. Depois, chorava amargamente na cadeira de palhinha partida na varanda. Por isso foi quase logo a seguir à sua morte que a mulher pregou pergaminho, papel e certidão de nascimento numa caixa-amuleto de pele que pendurou em volta do pescoço de Kim.

- E um dia - disse ela, relembrando confusamente as profecias de CTIara - virá buscar-te um grande Touro Vermelho num campo verde, e o coronel montando o seu alto cavalo, sim, e - passando para inglês novecentos diabos.

- Ah - disse Kim -, não me esquecerei. Um Touro Vermelho e um coronel virão, mas, primeiro, disse o meu pai, virão os dois homens preparar o terreno para essas coisas. Era assim que o meu pai dizia que faziam sempre, e é sempre assim quando os homens fazem magia.

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Se a mulher tivesse mandado Kim ao local dejadoo-Gher com aqueles papéis, ele teria, claro, sido levado pela maçonaria provincial e mandado para o orfanato maçónico nas montanhas; mas ela não confiava no que ouvira sobre magia. Também Kim tinha as suas próprias opiniões. Quando atingiu os anos da leviandade aprendeu a evitar missionários e homens brancos de aspecto sério que perguntavam quem ele era e o que fazia. Isto porque Kim não fazia nada, com um enorme sucesso. Na verdade, conhecia a maravilhosa cidade murada de Lahorc desde a Porta de Deli até à fortaleza exterior de Ditch, tinha grande intimidade com homens que levavam vidas mais estranhas do que qualquer coisa que Haround al Raschid imaginasse; e vivia uma vida selvagem como a das Noites Árabes, mas os missionários e secretários de associações de caridade não conseguiam ver a beleza disso seu cogriome pelos bairros era "Amigo do Mundo " 1 e, frequentemente, sendo pequeno e pouco notado, executava missões à noite

Kim

nos apinhados terraços, para jovens da alta sociedade, polidos e lustrosos. Era intriga, claro - até aí ele sabia, já que conhecia todo o mal desde que conseguia falar-, mas o que ele adorava era o jogo por si só - o vaguear furtivo pelos escuros canais e vielas, o rastejar por um cano de água acima, as vistas e sons do mundo das mulheres nos telhados planos e a fuga precipitada de terraço em terraço, a coberto da escuridão. Depois havia santos, faquires untados com cinza, junto dos seus altares de tijolo sob as árvores à beira-rio, com os quais ele estava bastante familiarizado saudando-os quando regressavam de passeios mendicantes e, quando nin~ guém estava próximo, comendo do mesmo prato. A mulher que tomava conta dele, com lágrimas, insistia em que ele devia usar roupas europeias - calças, uma camisa e um chapéu inclinado. Kim achava mais fácil esgueirar-se em trajo hindu ou maometano, quando ocupado com certos assuntos. Um dos jovens da alta sociedade - aquele que fora encontrado morto no fundo de um poço na noite do terramoto - tinha~lhe dado uma vez um conjunto completo de hindu, o fato de um rapaz da rua de baixa condição, e Kim. guardara-o num lugar secreto, debaixo de uns toros, no depósito de madeira de Nila Ram, do outro lado do Supremo Tribunal do Punjab, onde jazem os perfumados barrotes de cedro, a secar depois de terem descido o Ravi. Quando havia negócio ou folguedo movimentado, Kim usava os seus pertences, regressando à varanda ao amanhecer, exausto por berrar aos calcanhares de um desfile nupcial, ou gritar num festival hindu. Às vezes havia comida na casa; mais frequentemente não havia e aí Kim saía outra vez, para ir comer com os seus amigos nativos.

Enquanto tamborilava com os calcanhares no Zam-Zammah, desviava-se de vez em quando do seu jogo de rei-do-castelo com o pequeno Chota Lal e Abdullah, o filho do vendedor de doces, para fazer uma observação insolente ao polícia nativo de guarda às filas de sapatos à porta do museu. O grande punjabi sorria com tolerãncia: conhecia Kim há muito. E também o

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aguadeiro, derramando água do seu odre de pele de cabra na estrada seca. E também Jawhir Singh, o carpinteiro do museu, inclinado sobre novos caixotes de embalar. Também todas as pessoas à vista, excepto os camponeses da província, apressando-se para entrar na Casa das Maravilhas, para apreciar as coisas que os homens tinham feito na sua própria província e noutros lugares museu era dado às belas artes e manufacturas indianas e qualquer pessoa que buscasse sabedoria podia pedir ao conservador para explicar.

- Desce! Desce! Deixa-me subir! - gritava Abdullah, trepando pela roda do Zam-Zammah. Rudyard Ki;vJjI.o

Kim

- O teu pai era um pasteleiro, a tua mãe roubou a manteiga - cantava Kim. - Todos os muçulmanos tombaram do Zam-Zammah há muito tempo.

- Deixa-me a mim subir - guinchava o pequeno Chota Lal, com o seu barrete bordado a fio dourado pai dele valia talvez meio milhão de libras, mas a índia é a única terra democrática no mundo.

- Os hindus também caíram do Zam-Zammah. Os muçulmanos empurraram-nos teu pai era um pasteleiro...

Parou, pois, da esquina, vindo do ensurdecedor Bazar Motec, vinha-se arrastando um homem como Kin---i nunca vira nenhum, ele que pensava que conhecia todas as raças. Tinha aproximadamente um metro e oitenta de altura, estava vestido com um tecido sujo, parecido com as mantas dos cavalos, todo às dobras, e nenhuma delas Kini conseguia associar a qualquer ramo de negócio ou profissão. Do seu cinto pendia uma longa caixa para canetas em ferro trabalhado e um .rosário de madeira como os que usam os santos. Na cabeça tinha uma gigantesca espécie de boina grande. A face era amarela e enrugada como a de Fook Shing, o sapateiro do bazar. Os olhos viravam-se para cima nos cantos e pareciam pequenas fendas de ônix.

- Quem é aquele? - perguntou Kin---i aos seus companheiros.

- Talvez seja um homem - disse Abdullah, dedo na boca, embasbacado.

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- Sem dúvida - retorquiu Kini -, mas não é homem da Índia que eu alguma vez tivesse visto.

- Um sacerdote, se calhar - disse Chota Lal, observando o rosário. - Vê! Vai entrar na Casa das Maravilhas!

- Não, não - dizia o polícia, sacudindo a cabeça. - Não compreendo a tua fala. - O polícia falou em punjabi.- - 0 Amigo do Mundo, que diz ele?

- Manda-o aqui - disse Kini, descendo do Zam-Zammah, exibindo os calcanhares nus. - E] e é estrangeiro e tu tens a sensibilidade de um búfalo.

O homem virou-se desamparadamente e arrastou~se na direcção dos rapazes. Era velho e o seu gabão de lã ainda cheirava à fedorenta arternísia dos caminhos da montanha.

- Crianças, que é aquela grande casa? - perguntou em urdu bastante razoável.

0 Ajaib-Gher, a Casa das Maravilhas! - Kini, não lhe deu nenhum título... como Lala ou Mian. Não conseguia adivinhar o credo do homem.

- Ahi. A Casa das Maravilhas! Qualquer um pode entrar? - Está escrito por cima da porta... todos podem entrar. - Sem pagar?

- Eu entro e saio. Eu não sou banqueiro. - Riu-se Kini.

- Ai de mim! Eu sou um velho. Não sabia. - Depois, passando os dedos pelo seu rosário, deu meia volta para se virar para o museu.

- Qual é a tua casta? Onde é a tua casa? Vens de longe? - perguntou Kini.

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- vim por Kulu, para lá dos Kafias... mas que sabes tu? Das montanhas onde - suspirou - o ar e a água são puros e frescos.

-Ah! Khitai [um chinês] - disse Abdullah com orgulho. Fook Shing expulsara-o uma vez da sua loja, por cuspir no ídolo chinês que estava por cima das botas.

- Paliari [um montanhês] - disse o pequeno Chota Lal.

- Sim, filho... um montanhês, de montanhas que tu nunca viste. Ouviste falar no Bhotiyal [Tibete? Eu não sou Khitai, mas bhotiya [tibetano], como deves saber... um lama...'ou, digamos, um guru, na tua língua.

- Um guru. do Tibete - disse Kim. - Nunca vi um homem assim. Então há hindus no Tibete?

- Nós somos seguidores do Caminho do Meio, vivemos em paz nos nossos conventos, e eu vou ver os quatro lugares sagrados antes de morrer. Agora vocês, que são crianças, sabem tanto como eu, que sou velho. - Sorriu benignamente aos rapazes.

- Comeste?

Ele tacteou no peito e puxou para fora uma gasta tigela de mendigar de madeira. Os rapazes acenaram. Todos os sacerdotes que eles conheciam mendigavam.

- Não desejo comer ainda. - Virou a cabeça, como uma velha tartaruga à luz do sol. - É verdade que há muitos ídolos na Casa das Maravi~ lhas de Lahore? - repetiu as últimas palavras, como alguém certificando-se de uma morada.

-É verdade - disse Abdullah. - Está cheia de buts pagãos. Tu também és um idólatra.

- Não lhe ligues - disse Kini. - Aquela casa é do governo e lá não há idolatria, mas apenas um sahib com uma barba branca. Vem comigo e eu mostro-te.

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- Padres estranhos comem rapazes - sussurrou Chota Lal.

1 ,

sacerdote budista

-

tibetano (Nda T.) Rm ardKipú'U

ffim

- E ele é um estranho e um but-parast [idólatra] - disse Abdullah, o maometano.

Kim riu-se.

- Ele é novo. Corre para debaixo da saia da tua mãe e ficas a salvo. Vem!

Kini rodou a porta em cruz que dava entrada a uma pessoa de cada vez, registando-a automaticamente; o velho seguia-o e deteve-se, espantado. No vestíbulo de entrada estavam os maiores exemplares feitos das esculturas greco~budistas, sabem os sábios há quanto tempo, por trabalhadores esquecidos cujas mãos eram sensíveis e tinham habilidade para o toque grego misteriosamente transmitido. Havia centenas de peças, frisos com imagens em relevo, fragmentos de estátuas e lajes completamente cheias de figuras que tinham incrustado as paredes de tijolo dos stups e viharas budistas da província do norte e agora, descobertos e classificados, faziam o orgulho do museu. Num pasmo, de boca aberta, o lama virava~se para aqui e para acolá e finalmente hesitou, com profunda atenção, perante um grande alto-relevo que representava uma coroação ou apoteose do deus Buda mestre estava representado sentado numa flor de Iótus cujas pétalas estavam tão profundamente esculpidas que pareciam quase separadas. À volta dele havia uma hierarquia venerável de reis, anciãos e Budas de outros tempos. Por baixo havia águas cobertas de Iótus, com peixes e aves aquáticas. Dois

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deivas com asas de borboleta seguravam uma coroa por cima da sua cabeça; acima deles, outro par sustinha um guarda-sol encimado pelo toucado cheio de jóias do Iluminado.

- 0 Senhor! 0 Senhor! É o próprio Sakya Muni - quase soluçou o lama; e, entrecortada pelo seu arfar, começou a maravilhosa invocação budista:

A ele o Caminho, a Lei, de

Quem Maya manteve o coração afastado, o senhor de Ananda, o Iluminado.

E ele está aqui! A Lei Mais Excelente também está aqui. A minha peregrinação começou bem. E que trabalho! Que trabalho!

- Ali está o sahíb - disse Kini, e esgueirou-se de lado, por entre as caixas da ala das artes e manufacturas. Um inglês de barba branca olhava para o lama, que se virou com gravidade e o saudou, e, depois de alguma atrapalhação, puxou de um bloco de apontamentos e um pedaço de papel.

_ Sim, é esse o meu nome - disse, sorrindo para a gravura tosca, infantil.

- Um de nós, que fez peregrinação aos Lugares Sagrados, e é agora abade no mosteiro Lung-Cho, deu-mo - balbuciou o lama. - Ele falou destas. - A sua magra mão girou tremulante.

- Bem-vindo, então, o lama do Tibete. Aqui há imagens e eu estou cá relanceou o olhar pela face do lama - para reunir conhecimento. Vem ao meu escritório por um momento.

o velho tremia de excitação.

o escritório era apenas um pequeno cubículo de madeira, separado da galeria de esculturas alinhadas por uma divisória. Kim deitou-se, a orelha encostada a uma fenda na porta de cedro rachada pelo calor e, seguindo o seu instinto, estendeu-se para ouvir e observar.

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A maior parte da conversa desenrolava-se totalmente acima da sua cabeça lama, hesitante a princípio, falou ao conservador do seu próprio convento, o Such-zen, do outro lado das Rochas Pintadas, a quatro meses de marcha conservador exibiu um enorme livro de fotografias e mostrou-lhe aquele mesmo lugar, empoleirado na sua escarpa, vigiando o gigantesco vale de camadas com muitos matizes.

- Sim, sim! - 0 lama colocou um par de óculos de aros de chifre, de trabalho chinês. - Aqui está a pequena porta através da qual nós trazemos madeira antes do Inverno. E tu... os ingleses sabem destas coisas? Aquele que é agora abade de Lung-Cho contou-me, mas eu não acreditei. 0 Senhor... o Excelente... também é venerado aqui? E a sua vida é conhecida?

- Está toda gravada nas pedras. Vem ver, se estás repousado.

Cá fora o lama caminhou lentamente para o corredor principal, e, com o conservador junto dele, examinou a colecção com a reverência de um devoto e o instinto apreciativo de um artesão.

Nas pedras manchadas identificou, episódio por episódio, a bonita história, baralhado aqui e ali pela pouco familiar convenção grega, mas encantado como uma criança a cada nova descoberta. Onde a sequência falhava, corno na Anunciação, o conservador completava-a através do seu monte de livros franceses e alemães, com fotografias e reproduções,

Aqui estava o devoto Asita, o acólito de Sirricão na história cristã, segurando o Menino Santo nojoelho, enquanto a mãe e o pai ouviam; e aqui estavam episódios da lenda do primo Devadatta. Aqui estava a perversa mulher que acusou o mestre de impureza, completamente amaldiçoada aqui estava o ensino no Parque dos Veados- o milagre que aturdiu Os adoradores do fogo; aqui estava o Iluminado em posição real, como um príncipe, o nascimento milagroso; a morte em Kusinagara, onde a fraca disciplina se esbatia; entretanto, havia repetições quase incontáveis da meditação sob a árvore da luz; e a adoração da taça das almas estava por toda a parte. Em poucos minutos o conservador viu que o seu hóspede não era um mero pedinte que rezava o terço, mas um erudito em peças. E percorreram-nas todas de novo, o lama tomando rapé, limpando os óculos e falando à velocidade de um comboio, numa desconcertante mistura de urdu e tibetano. Ouvira falar nas viagens dos peregrinos chineses, Fu-Hiouen e Hwen-Tsiang e estava ansioso por saber se havia alguma tradução do seu registo. Susteve a respiração enquanto virava ao acaso as páginas de Beal e Stanislas Julien.

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- Está tudo aqui. Um tesouro trancado.

Depois preparou-se reverentemente para escutar fragmentos traduzidos apressadamente para urdu. Pela primeira vez ouviu falar nos eruditos europeus que, com a ajuda destes e uma centena mais de documentos, identificaram os Lugares Sagrados do Budismo. Depois foi-lhe mostrado um mapa enorme, assinalado e traçado a amarelo dedo castanho seguia o lápis do conservador de ponto em ponto. Aqui era Kapilavastu, aqui o Reino do Meio e aqui Mahabodhi, a Meca do budismo; e aqui era Kusina~ gara, lugar triste da morte do Santo velho inclinou a cabeça sobre as fo~ lhas, em silêncio por um bocado, e o conservador acendeu outro cachimbo. Kini adormecera. Quando acordou, a conversa, ainda em progresso, estava mais ao alcance da sua compreensão.

- E foi assim, o Fonte de Sabedoria, que eu decidi ir aos Lugares Sa~ grados que o pé dele pisou... ao Local de Nascimento, até Kapila; depois a Mahabodhi, que é Buddh Gaya... ao Mosteiro ... ao Parque dos Veados... ao lugar da sua morte.

0 lama baixou a voz.

- E venho sozinho. Durante cinco... sete ... dezoito... quarenta anos esteve na minha mente a ideia de que a Velha Lei não era bem seguida; está sobrecarregada, como sabes, com maldade, encantamentos e idolatria. Mesmo como as crianças lá fora disseram há pouco. Sim, mesmo como as crianças disseram, com but parasti.

Assim acontece com todas as crenças.

É o que tu pensas? Eu li os livros do meu convento e eles estavam vazios de significado; e o último ritual com o qual nós, da Lei Reformada, nos oprimimos... também esse não teve valor para estes velhos olhos. Até os seguidores do Excelente andam em rixas uns com os outros. É tudo ilusão. Só uma ilusão. Mas eu tenho outro desejo. - A macerada face amarela ficou a sete centímetros do conservador e a longa unha do dedo indicador bateu levemente na mesa. - Os vossos estudiosos, por estes livros segui am os Pés Abençoados em todas as suas viagens mas há coisas

que eles não descobriram. Eu não sei nada... nada sei... mas vou libertar-me da Roda das Coisas, através de uma larga estrada. - Sorriu com o mais modesto júbilo. - Como peregrino aos Lugares Santos adquiro mérito. Mas há mais. Ouve uma verdade. Quando o nosso piedoso Senhor, ainda um jovem, buscava mulher, os homens disseram, na corte do seu pai, que ele era demasiado frágil para o casamento. Sabias

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o conservador acenou, imaginando o que viria a seguir.

- Assim, fizeram o triplo das tentativas de força contra todos os recém-chegados. E, no teste do Arco, o nosso Senhor, quebrando aquele que primeiro lhe deram, pediu um arco que ninguém conseguisse dobrar. Sabias? - Está escrito. Eu li.

- E, ultrapassando todas as outras marcas, a seta passou muito para lá da vista. Por fim, caiu; e, onde ela tocou a terra, jorrou um ribeiro que, presentemente, se tornou num rio, cuj .a qualidade, por benefício de nosso Senhor e pelo mérito que adquiriu antes de se libertar, é que qualquer pessoa que se banhe nele lava-se de todas as máculas de pecado.

- Assim está escrito - disse o conservador com tristeza. O lama respirou fundo.

- Onde é esse rio? Fonte de Sabedoria, onde caiu a seta? - Ai, meu irmão, não sei - disse o conservador.

- Não, se te agrada esquecer... a única coisa que não me contaste. Decerto deves saber? Vê, eu sou um velho! Pergunto com a cabeça aos teus pés, ó fonte de Sabedoria. Nós sabemos que ele utilizou o arco Nós sabemos que a seta caiu! Nós sabemos que o ribeiro jorrou! Onde, então, é o rio? O meu sonho disse-me para o encontrar. Por isso vim. Estou aqui. Mas onde é o rio?

- Se eu soubesse, pensas que não o apregoaria em voz alta?

- Através dele alcança-se a libertação da Roda das Coisas - continuou o lama, distraído. - 0 rio da Seta] Pensa outra vez Algum pequeno regato, talvez... seco com o calor? Mas o Santo nunca enganaria assim um velho.

- Eu não sei. Eu não sei.

0 lama aproximou mais uma vez a sua face com milhentas rugas, ficando a um palmo do inglês.

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- Vejo que não sabes. Não sendo da Lei, o assunto foi escondido de ti. Ruyard,KÍ plilw

Kim

- Sim... escondido... escondido.

- Estamos ambos presos, tu e eu, meu irmão. Mas eu - elevou-se com um simples impulso do tecido grosso -, eu vou libertar-me. Vem também!

- Eu estou limitado - disse o conservador, - Mas para onde vais tu? - Primeiro para Kashi [Benarés]: para onde mais? Lá encontrar~me-ei com alguém da fé pura num templo jam daquela cidade. Ele também é um pesquisador em segredo e através dele talvez possa aprender. Talvez ele vá comigo a Buddh Gaya. Daí para o norte e oeste para Kapilavastu e aí procurarei o rio. Não, buscarei por todo o lado onde for ... já que o sítio onde caiu a seta não é conhecido.

- E como irás? É uma grande distancia até Délhi e ainda maior até Benarés.

- Por estrada e por comboios. De Pathãnkoi, depois de ter deixado as montanhas, vim para aqui num corrl-boio. Anda velozmente. A princípio estava espantado por ver aqueles altos postes dos lados da estrada apanhando e apanhando os seus fios - ilustrava a inclinação e o turbilhão de um poste telegráfico passando pelo comboio como um relâmpago. Mas, depois, fiquei constrangido e desejei caminhar, como estava habituado a fazer.

- E estás certo sobre a tua estrada? - perguntou o conservador.

- Ah, para isso basta fazer uma pergunta e pagar dinheiro e as pessoas interpeladas enviam todos para o lugar nomeado. Foi o que soube no meu convento, de fonte segura - disse o lama com orgulho.

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- E quando vais? - 0 conservador sorriu, com a mistura da religiosidade do velho mundo e o moderno progresso ci ,ue é a nota da índia hoje. - O mais depressa possível. Sigo os lugares da vida dele até chegar ao

rio da Seta. Aliás, há um papel escrito com as horas dos comboios que vão para o sul.

- E o comer?

Os lamas, habitualmente, trazem com eles um bom suprimento de dinheiro algures, mas o conservador desejava certificar-se.

- Para a viagem, estendo a tigela de mendigar do Mestre. Sim. Precisamente como ele foi, assim vou eu, renunciando ao conforto do meu mosteiro. Quando eu deixei as montanhas estava comigo um chela [discípulo que pedia por mim, como manda a regra, mas, parando por um instante em Kulu, uma febre apagou-o e ele morreu. Agora não tenho chela, mas levarei a taça das almas e assim possibilito aos caridosos adquirirem mérito.

Acenou a cabeça valentemente. Os doutores sábios de um convento não mendigam, mas o lama era um entusiasta nesta busca.

- Assim seja - disse o conservador, sorrindo. - Permite-me agora que adquira mérito. Nós somos artífices os dois, tu e eu. Aqui está um livro novo de papel branco inglês, aqui estão lápis afiados, dois e três... grosso e fino, tudo bom para um escriba. Agora empresta-me os teus óculos.

o conservador olhou através deles. Estavam profundamente riscados, mas a graduação era quase exactamente a do seu próprio par, que ele fez deslizar para a mão do lama, dizendo.

- Experimenta estes.

- uma penal Uma autêntica pena sobre a face! - o velho virou a cabeça com satisfação e franziu o nariz. - Quase não os sinto! Como vejo distintamente!

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- São de bilatir... cristal... e nunca se riscam. Que eles possam ajudar~ -te a chegar ao teu rio, porque são teus.

- Aceitá-los-ei e aos lápis e ao bloco branco de apontamentos - disse o lama - como um sinal de amizade entre sacerdotes... e agora... Procurou desajeitadamente no cinto, desapertou a caixa para canetas em ferro trabalhado e colocou em cima da mesa do conservador. - Isso é para recordação entre nós... a minha caixa para canetas. é um tanto velha... exactamente como eu.

Era uma peça de desenho antigo, chinesa, de um ferro que não é fundido hoje em dia, e o coração de coleccionador do conservador apoderara-se dela desde o princípio lama não reaveria o seu presente com nenhum tipo de persuasão.

- Quando eu regressar, encontrado o rio, trarei para ti um quadro escrito do Padiria Sarrithora, como eu costumava fazer em seda, no convento. Sim, e da Roda da Vida - riu-se entre dentes -, J .a somos os dois artífices, tu e eu.

O conservador tê-lo~ia detido: há poucos no mundo que ainda possuam o segredo dos quadros budistas convencionais feitos a pincel, que são, Como eram, meio escritos e meio desenhados. Mas o lama saiu a passos largos, cabeça bem levantada e, detendo-se um instante à frente da grande estátua de um Iluminado em meditação, passou roçando pela porta em forma de cruz.

K'M seguiu-O como uma sombra que ele escutara excitou-o loucamente. Este homem era inteiramente novo para a sua experiência e ele decidira investigar mais, exactamente 'Como teria investigado um novo edifício. um festival estranho na cideade de Lahore lama era tesouro seu RudyardKípg

Kim

e ele tencionava tomar posse dele. A mãe de Kini também tinha sido irlandesa.

O velho parou junto do Zam-Zammah e olhou em volta, até que o seu olhar pousou em Kini. A inspiração da sua romagem deixara-o por um bocado e sentiu-se velho, desamparado e muito vazio.

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- Não te sentes debaixo desse canhão - disse o polícia com arrogância.

- Eli! Coruja! - foi a réplica de Kini por conta do lama. - Senta-te debaixo desse canhão, se isso te dá prazer. Quando é que roubaste as chinelas da leiteira, Durinco?

Aquilo era uma acusação totalmente infundada, surgida no impulso do momento, mas silenciou Dunnoo, que sabia que o grito distinto de Kini conseguia convocar legiões de rapazes maus do bazar que, se fosse preciso, apareciam.

- E quem veneravas tu no teu íntimo? - perguntou Kin afavelmente, agachando-se à sombra, ao lado do lama.

- Não venerava ninguém, pequeno. Eu curvei-me perante a Lei Excelente.

Kin-i aceitou este novo deus sem emoção. Já conhecia um bom número deles.

- E que fazes?

- Mendigo. Agora me lembro que há muito não como nem bebo. Qual é o costume da caridade nesta cidade? Em silêncio, como fazemos no Tibete, ou falando alto?

- Aqueles que pedem em silêncio, morrem de fome em silêncio disse Kini, citando um provérbio nativo.

0 lama tentou erguer-se, mas deixou-se cair de novo, suspirando pelo seu discípulo, morto na longínqua Kulu. Kini observava-o - cabeça m~ clinada para um lado, atento e interessado.

- Dá-me a tigela. Eu conheço as pessoas desta cidade... todas as que são generosas. Dá-ma e eu trá-la-ei cheia.

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Com a simplicidade de uma criança, o velho entregou-lhe a tigela. - Descansa, tu. Eu conheço as pessoas.

Caminhou em passo rápido até à loja ao ar livre de uma hunjri, vendedora de hortaliças de baixa condição, que ficava em frente da linha do eléctrico que circundava o bazar Motec. Ela conhecia Kini de há muito.

- Kin, transformaste-te em asceta, com a tua tigela de mendigar? exclamou ela.

- Não - disse Kim com orgulho. - Há um sacerdote novo na cidade... um hornern como eu nunca tinha visto.

- Padre velho, tigre novo - disse a mulher, aborrecida. - Estou cansada de padres novos. Instalaram-se nas nossas mercadorias como moscas. É o pai do meu filho um poço de caridade, para dar a todos os que pedem?

- Não - disse Kin. - O teu homem é mais yagi [mal-humorado] que y09i [santo] . mas este sacerdote é novo sahib na Casa das Maravilhas falou Corri ele COMO um irmão. ó minha mãe, enche-me esta tigela. Ele está à espera.

- Essa tigela, pois sim! Esse cesto de barriga de vacal Tens tanta gra~ ça como o touro sagrado de Shiv. Ele já me levou o melhor de um cesto de cebolas esta manhã; e agora devo encher a tua tigela. Aí vem ele outra vez.

O enorme touro brahmini da guarda, cinzento-rato, abria caminho com os ombros por entre a multidão colorida, com uma planta roubada na boca. Dirigiu~se: directamente para a loja, conhecendo bem os seus privilégios de animal sagrado, baixou a cabeça e soprou fortemente ao longo da fila de cestos, antes de fazer a sua escolha pequeno calcanhar vigoroso de Kim voou e apanhou-o no húmido focinho azul. Ele bufou indignadamente e afastou-se para o lado de lá dos carris do eléctrico, com a bossa a tremer de raiva.

- Vê! Poupei-te três vezes mais do que a tigela custa. Agora, mãe, um pouco de arroz e algum peixe seco em cima... sim, e um pouco de caril de legumes.

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Um ronco saiu das traseiras da loja, onde estava deitado um homem. - Ele afugentou o touro - disse a mulher a meia voz. - É bom dar aos pobres. - Pegou na tigela e devolveu-a cheia de arroz quente.

- Mas o meu ermita não é uma vaca - disse Kini gravemente, fazendo um buraco com os dedos no cimo do monte. - Um pouco de caril é bom e um bolo frito e um bocado de compota deviam agradar-lhe, acho eu.

- É um buraco grande como a tua cabeça - disse a mulher com irritação. Mas encheu-o, não obstante, com caril de legumes, bom e fumegante, colocou um bolo frito no cimo e um bocado de manteiga no bolo, passou um pedaço de compota de tamarindo azedo de lado, e Kini olhou para o carregamento com ternura.

- Isso é bom. Quando eu estiver no bazar, o touro não virá a esta casa. Ele é um pedinte arrojado.

- E tu? - riu-se a mulher. - Mas fala bem dos touros. Não me disseste que um dia um Touro Vermelho sairá de um campo para te ajudar? Agora segura nisso a direito e pede ao santo a sua bênção para mim. Tal- Ruyard KipJjig,

Kim

vez, também, ele conheça uma cura para os olhos inflamados da minha filha. Pede-lhe isso também, o Amigo do Mundo.

Mas Kini desaparecera antes do fim da frase, esquivando-se a cães vagabundos e conhecidos esfomeados.

- Assim pedimos, a quem conhece os costumes - disse ele com orgulho ao lama, que arregalou os olhos ao conteúdo da tigela. - Agora come e eu comerei contigo. Eh, bhisti! - chamou ele ao aguadeiro, que regava os crótons junto do museu. - Dá aqui água. Os homens estão com sede.

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- Os homens! - disse o bhisti, rindo-se. - Um odre chega para tal par? Bebam, então, em nome do Compassivo,

Derramou um fino fluxo nas mãos de Kim, que bebeu à maneira dos nativos; mas o lama teve necessariamente de fazer sair uma chávena dos seus inesgotáveis trapos e bebeu cerimoniosamente.

- Paresi [um estrangeiro] - explicou Kim, enquanto o velho proferia numa língua desconhecida o que era, evidentemente, uma bênção. Comeram juntos com grande satisfação, esvaziando a tigela de mendigar. Depois, o lama tomou rapé de uma portentosa cabaça de madeira, passou com os dedos por um momento o seu rosário e assim caiu no sono fácil da idade, enquanto a sombra do Zam-Zammah aumentava.

Kini foi até à vendedora de tabaco mais próxima, uma jovem mulher maometana bastante alegre, e pediu um charuto malcheiroso da marca dos que vendiam aos estudantes da Universidade do Punjab, que copiam os costumes ingleses. Depois fumou e pensou, joelhos no queixo, debaixo do bojo do canhão, e o resultado dos seus pensamentos foi uma súbita e furtiva partida na direcção do depósito de madeira de Nila Ram.

O lama só acordou quando a vida nocturna da cidade começou, com o acender das luzes e o regresso dos empregados e subordinados dos escritórios governamentais. Olhou vertiginosamente em todas as direcções, mas ninguém olhava para ele, a não ser um diabrete hindu com um turbante sujo e roupas de cor amarela esbranquiçada. De repente curvou a cabeça até aos joelhos e gemeu,

- Que é isso? - perguntou o rapaz, de pé à frente dele. - Foste roubado?

- É o meu novo chela [discípulo], que se afastou de mim e eu não sei onde ele está.

- E que tipo de homem era o teu discípulo?

- Era um rapaz que veio ter comigo em substituição daquele que morreu, devido ao mérito que eu obtive quando me curvei além perante

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a Lei. -Apontou na direcção do museu. - Veio ter comigo para me indicar unia estrada que eu perdera. Guiou-me até à Casa das Maravilhas e, com a sua conversa, encoraj ou-me a falar com o conservador das imagens, para eu ficar mais animado e me tornar mais forte. E quando eu estava fraco com fome, ele mendigou para mim, como faria um chela pelo seu mes~ tre. Subitamente, fOi-SC. Subitamente, foi-se embora. Estava na minha mente ensinar-lhe a Lei, na estrada para Benarés.

Kim ficou espantado com isto, porque ele escutara a conversa no museu e sabia que o velho estava a dizer a verdade, que é uma coisa que um nativo em viagem raramente expõe a um estranho.

- Mas agora vejo que ele não foi mandado senão com um propósito. Através disto sei que encontrarei um certo rio, o qual eu procuro.

- o rio da Seta? - perguntou Kim com um sorriso superior.

- É já isto outra mensagem? - gritou o lama. - Eu não falei a ninguém da minha busca, excepto ao sacerdote das imagens. Quem és tu? - O teu chela - disse Kim com simplicidade, sentando-se sobre os

calcanhares. - Nunca vi ninguém como tu em toda a minha vida. Vou contigo a Benarés. E, também, acho que um homem tão velho como tu, que diz a verdade a pessoas que encontra por acaso ao anoitecer, está muito necessitado de um discípulo.

- Mas o rio... o rio da Seta?

- Ah, isso ouvi eu quando tu estavas a falar com o inglês. Deitei-me encostado à porta.

O lama suspirou,

- Pensei que tu serias um guia autorizado. Tais coisas às vezes acontecem... mas eu não sou merecedor. Não conheces, então, o rio?

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- Eu não. - Kini riu-se, embaraçado. - Vou procurar um... um touro... UM touro vermelho num campo verde, que me ajudará. - Puerilmente, se um conhecido tinha um plano, Kim estava perfeitamente preparado com um seu; e, puerilmente, na realidade pensara na profecia do pai durante tanto tempo como vinte minutos de cada vez.

- Em quê, pequeno? - perguntou o lama.

- Sabe Deus, mas assim mo disse o meu pai. Eu ouvi a tua conversa, na Casa das Maravilhas, sobre todos esses novos lugares estranhos nas montanhas e, se alguém tão velho e tão pequeno... tão habituado a dizer a verdade... Pode partir pela simples questão de um rio, pareceu-me que também eu devo ir vi aj ar. Se for o nosso destino encontrar essas coisas, cricontrá-las-,rlos... tu, o teu rio; e eu, o meu Touro e os Fortes Pilares e algumas outras coisas que me esquecem. - Não são pilares, mas uma Roda da qual me libertaria - disse o larna. - É tudo o mesmo. Talvez me façam rei - disse Kim, serenamente, preparado para tudo.

- Ensinar-te-ei outras e melhores aspirações na estrada - replicou o lama com voz autoritária. - Vamos para Benarés.

- Não de noite. Os ladrões andam lá fora. Espera até ser dia, - Mas não há sítio para dormir.

0 velho estava habituado à ordem do seu mosteiro e, embora dormisse no chão, como ordena a Regra, preferia o decoro nestas coisas.

- Arranjaremos bom alojamento no serai 1 de Caxemira - disse Kini, rindo da sua perplexidade. - Tenho lá um amigo. Vem!

Os quentes bazares cheios de gente resplandeciam de luz, enquanto eles abriam caminho através da turba de todas as raças do norte da índia e o lama vagueava pelo meio dela como um homem num sonho. Era a sua primeira experiência numa grande cidade fabril e o eléctrico apinhado, com os seus freios a chiar continuamente, assustava-o. Meio empurrado, meio rebocado, chegou ao alto portão do serai de Caxemira: essa enorme praça aberta com a estação dos caminhos-de-ferro ao fundo, cercada de claustros em arco, onde as caravanas de camelos e cavalos se instalavam, no seu regresso da Ásia central. Aqui havia todos os tipos de povos nortenhos, póneis presos e vigiados e camelos ajoelhados; carregava~se e descarregava-se fardos e trouxas; extraía-se água para a refeição noct com os cabrestantes dos poços; empilhava-se erva à frente dos barulhentos garanhões de olhos selvagens, esbofeteava-se os

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intratáveis cães das caravanas- fazia-se o pagamento aos condutores de camelos- aceitava-se novos criados- praguejava-se, gritava-se, discutia-se e regateava-se na praça apinhada. 's claustros, alcançáveis através de três ou quatro degraus de alvenaria, constituíam um porto de abrigo à volta deste mar turbulento. A maior parte deles estava alugada a negociantes, como se alugam os arcos de um viaduto; o espaço entre pilares era emparedado ou transformado em quartos, que eram protegidos por pesadas portas de madeira e pesados cadeados nativos. Portas trancadas mostravam que o dono estava fora, e uns rabiscos muito rudimentares diziam onde ele fora. Assim. "Lutuf Ullati foi ao Curdistão ". Por baixo, em versos grosseiros. " 0 Ala, que suportaste piolhos por viver no casaco de um habuli, por que permitiste que este piolho Lutuf vivesse tanto tempo?".

Kim

1. Diminutivo de caravanscrai - grande edifício que, no Oriente, se destina à pousada gratul~ ta dos viajantes das caravanas. (N. da Y.)

lini, guiando o lama pelo meio de homens excitados e animais excitados, esgueirou-se ao longo dos claustros até ao extremo mais próximo da estação de caniinhO-de-ferro, onde vivia Mahbub Ali, o traficante de cavalos, quando voltava dessa terra misteriosa para lá dos Desfiladeiros do Norte.

Kin, tivera muitos negócios com Mal-ibub na sua curta vida - especialmente entre os lo e os 13 anos - e o grande e corpulento afegão, a barba tingida de escarlate com visco (porque ele era de certa idade e não desejava mostrar os seus cabelos grisalhos), sabia o valor do rapaz como bisbilhoteiro. Às vezes dizia a Kini para vigiar um homem durante um dia inteiro e participar~lhe todas as pessoas com quem esse homem falasse. 1<im encarregava-se desta narrativa à noite e Mahbub ouvia sem uma palavra ou gesto. Era um certo tipo de intriga, Kim sabia; mas valia a pena guardar-se de dizer fosse o que fosse a alguém excepto Malibub, que lhe dava belas refeições quentes preparadas na cozinha no topo do serai e cerca de oito anãs em dinheiro.

- Ele está aqui - disse Kini, batendo no focinho de um camelo mal~humorado. - Eh, Malibub Ali! - Parou num arco escuro e escondeu-se atrás do desorientado lama.

O negociante de cavalos, com a sua forte faixa bordada de bohhariot desapertada, estava deitado num par de alforges forrados de seda, fumando preguiçosamente por um imenso

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cachimbo de água de prata. Virou a cabeça muito levemente ao grito, e, vendo só a alta figura silenciosa, riu-se, estremecendo o peito.

- Ala! Um lama! Um lama Vermelho! É de longe, de Lahore até aos Desfiladeiros, Que fazes aqui?

O lama estendeu mecanicamente a tigela de mendigar.

- Que Deus amaldiçoe todos os descrentes! - exclamou Mahbub. - Eu não dou a um lama piolhoso- mas pede aos meus baltis além atrás dos camelos ' tuas bênçãos. Ali, moços de estreba. Eles podem apreciar as

ria, aqui está um compatriota vosso. Vejam se ele tem fome.

Um baltí barbeado, submisso, que viera com os cavalos e que era normalmente um tipo de budista degradado, rastejou à frente do sacerdote e, com uns sons guturais, implorou ao Santo que se sentasse à fogueira dos moços de estrebaria.

- Vali - disse Kim, empurrando-o levemente, e o lama afastou-se a passos largos, deixando Kim na entrada do claustro.

-Vai! - disse Mahbub Ali, voltando ao seu cachimbo de água. - Pequeno hindu, vai-te daqui. Maldição de Deus para todos os descrentes! Pede àqueles da minha comitiva que são da tua crença. Rudyard Kiplikg

KíM

- Marajá1 - lamuriou Kini, usando a forma de tratamento hindu e gozando completamente a situação -, o meu pai morreu, a minha mãe morreu, o meu estômago está vazio.

- Pede aos meus homens, que estão misturados com os cavalos, digo-te eu. Deve haver alguns hindus na minha comitiva.

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- Ah, Mahbub Ali, mas eu sou hindu? - perguntou Kim em inglês. 0 negociante não deu sinal de admiração, mas olhou, por baixo das hirsutas sobrancelhas.

- Pequeno Amigo do Mundo - disse ele -, que é isto?

- Nada. Agora sou discípulo daquele santo e vamos juntos numa peregrinação... a Benarés, diz ele. Ele é completamente louco e eu estou cansado da cidade de Lahore. Apetece-me de novo ar e água.

- Mas para quem trabalhas? Porquê vir ter comigo? - A voz era dura, com a desconfiança.

- Com quem mais eu iria ter? Não tenho dinheiro. Não é bom andar por aí sem dinheiro. Tu vais vender muitos cavalos aos oficiais. São cavalos muito belos, estes novos. já os vi. Dá-me uma rupia, Mahbut Ali, e, quando eu enriquecer, dar-te-ei uma garantia de pagamento.

- Hum - disse Malibub Ali, pensando rapidamente. - Tu nunca me mentiste antes. Chama esse lama... afasta-te para o escuro.

- Ah, as nossas histórias vão condizer - disse Kini, rindo.

- Vamos para Benarés - disse o lama, assim que compreendeu o objectivo das perguntas de Malibub Ali. - 0 rapaz e eu. Eu vou procurar um certo rio.

- Talvez... mas o rapaz?

- É meu discípulo. Foi enviado, acho eu, para me guiar até esse rio. Eu estava sentado sob um canhão quando ele apareceu de repente. Coisas destas aconteceram a afortunados a quem foi permitida orientação. Mas, lembro-me agora, ele disse que era deste mundo... um hindu.

- E o nome dele?

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- Isso não perguntei. Ele não é meu discípulo?

- 0 país dele... a raça... a aldeia? Muçulmano... sikh... hindu ... jain... de baixa ou alta condição?

- Para que ia eu perguntar? Não há alto nem baixo no Caminho do Meio. Se ele é meu chela vai... irá... pode alguém tirar-mo? Porque, olha, sem ele eu não encontrarei o meu rio. - Meneou a cabeça solenemente.

1. Soberano hindu que exercia a sua supremacia sobre outros soberanos menores, os rajás (N. da T.)

- Ningué111 to tirará. Vai, senta-te entre os meus balais - disse Malibub Ali, e o lama afastou-se, descansado com a promessa.

- Não é completamente louco? - perguntou Kuri, aproximando-se da luz outra vez. - Por que havia eu de te mentir, Hajji?

Malibub fumava o seu cachimbo em silêncio. Depois começou, quase num sussurro:

- Umballa é na estrada para Benarés... se vocês os dois vão mesmo para lá .

- Tsss! Tsss! Digo-te que ele não sabe mentir... como nós dois sabemos. - E se tu me levares uma mensagem até Umballa, eu dou~te dinheiro. Diz respeito a um cavalo. . . um garanhão branco que eu vendi a um oficial, na última vez que regressei dos desfiladeiros. Mas nessa altura... aproxima~ ~te e estende as mãos, como se estivesses a pedir... o pcdigree do garanhão branco não estava completamente estabelecido e esse oficial, que está agora em Umballa, mandou-me certificá-lo. - Malíbub aqui descreveu a casa e a aparência do oficial. - Por isso, a mensagem para esse oficial será: " 0 pedigree do garanhão branco está perfeitamente estabelecido ". Com isto, ele saberá que tu vais da minha parte. Ele perguntará então: " Que prova tens tu?" e tu responderás: "Mahbub Ali deu-me a prova".

- E tudo por causa de um garanhão branco - disse Kim, com uma risadinha, os olhos a arder.

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- Esse pedigree dar-to~ei agora... à minha maneira... assim como alguns insultos.

Uma sombra passou atrás de Kim e de um camelo que se alimentava. Malíbub Ali levantou a voz.

- Alá! És tu o único mendigo da cidade? A tua mãe morreu teu pai morreu. Assim é com todos eles. Bem, bem...

Virou-se como se estivesse a tactear no chão ao seu lado e atirou ao raPaz aba de pão muçulmano, mole e gorduroso.

- Vai deitar-te com os meus moços de estrebaria por hoje... tu e o lama. Amanhã posso dar-te trabalho.

Kini fOi-se embora furtivamente, os dentes no pão e, como esperava, encontrou um maço de papel de seda dobrado, embrulhado em oleado, corn três r11pias de prata - enorme dádiva. Sorriu e introduziu dinheiro e Papel dentro da sua bolsa-amuleto de pele lama, sumptuosamente alimentado pelos balais de Malibub, já estava a dormir num canto de um dos estábi`10s. Kim deitou-se ao lado dele e riu-se. Sabia que prestara um serviço a Mahbub Ali e nem por um minuto acreditou na história do pedigree do garanhão, Rudyard "I 19

Mas Kim não suspeitava que Malibub Ali, conhecido como um dos melhores traficantes de cavalos do Punjab, um rico e empreendedor comerciante, cujas caravanas penetravam cada vez mais longe no Fim do Mundo, estava registado num dos livros secretos do Departamento de investigação indiano como C25 1 B. Duas ou três vezes por ano o C25 apresentava uma pequena história, mal contada mas muito interessante, C geralmente - era corroborada pelos depoimentos do RI 7 e do M4 inteiramente verdadeira, Dizia respeito a todo o tipo de principados perdidos nas montanhas, exploradores de nacionalidade não inglesa e do comércio de armas - era, em resumo, uma pequena parcela dessa vasta massa de "informação recebida" sobre a qual o governo indiano actua. Mas, recentemente, cinco reis confederados, que não tinham nada para confederar, foram informados por um amável Poder do Norte de que havia uma fuga de notícias dos seus territórios para a índia britânica. Por isso os primeiros ministros desses reis ficaram seriamente irritados e tomaram medidas, à maneira oriental. Desconfiavam, entre muitos outros, do famoso traficante de cavalos de barba vermelha, cujas caravanas abriam caminho através das suas praças fortes embrenhadas na neve. Pelo menos, a sua caravana nessa época caíra numa emboscada e fora alvejada por duas vezes no caminho

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para baixo, quando os homens de Mal---ibub estiveram a contas com três estranhos rufiões que podiam, ou não, ter sido contratados para o trabalho. Por esse motivo Malíbub evitara deter-se na doentia cidade de Peshawar e viera sem parar para Lahore, onde, conhecendo os seus concidadãos, previa curiosos acontecimentos.

E Malíbub Ali tinha consigo uma coisa que não desejava conservar uma hora mais do que fosse necessário - um maço de papel de seda cautelosamente dobrado, embrulhado em oleado - um depoimento impessoal, sem endereço, com cinco microscópicos buracos de alfinete nurn canto, que, muito escandalosamente, denunciavam os cinco confederados, o compreensivo Poder do Norte, um banqueiro hindu de Peshawar, uma firma de fabricantes de armas na Bélgica e um importante governante maometano semi-independente do sul. Este último era tarefa do R17, que, devido a circunstãncias sobre as quais não tinha controlo, não podia deixar o seu posto de observação. A dinamite era suave e inócua, perto daquele relatório do C25; e mesmo um oriental, com uma visão oriental do valor do tempo, podia ver que, quanto mais depressa ele estivesse rias mãos apropriadas, melhor. Malibub não tinha nenhum interesse particular em morrer violentamente, porque duas ou três rixas familiares do outro lado da fronteira estavam suspensas nas suas mãos e, quando os MO-

Kim

tivos se esclarecessem, ele tencionava instalar-se como um cidadão mais ou menos virtuoso. Nunca atravessara o portão do serai desde a sua chegada há dois dias, mas fora ostensivo a mandar telegramas para Bombaim, onde estava depositado algum do seu dinheiro; para Délhi, onde um sócio do seu clã vendia cavalos ao agente de um Estado de Rajputana; e para Umballa, onde um inglês exigia com excitação o pedigree de um garanhão branco. o escrivão público, que sabia inglês, compunha telegramas excelentes, tais como: "Creighton, Laurel Bank, Umballa. - Cavalo é árabe, corno já anunciado. Lamentável atraso pedigree que estou a traduzir". E, mais tarde, para o mesmo endereço. "Muito lamentável atraso. Seguirá pedigree". Para o seu sócio em Délhi, telegrafou: "Lutuf Ullah. - Telegrafei duas mil rupias teu crédito banco de Luchman Narain". Isto era inteiramente ao modo comercial, mas cada um desses telegramas era discutido e rediscutido, por partes que se imaginavam interessadas, antes de seguirem para a estação do caminho-de-ferro, a cargo de um tolo balti, que permitia a todo o tipo de pessoas lê-los na estrada.

Quando, na linguagem pitoresca de Malibub, ele enlameara os poços de inquérito com o bordão da cautela, Kini visitara-o, enviado pelo Céu; e, sendo expedido como era pouco escrupuloso, Mahbub Ali, habituado a agarrar todos os tipos de oportunidades, aproveitou-se dele imediatamente.

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Um lama errante com um criado de baixa condição podia atrair uma atenção momentânea enquanto vagueassem pela índia, a terra dos peregrinos; mas ninguém suspeitaria deles, ou, o que era mais importante, os roubaria.

Pediu mais um carvão em brasa para o seu cachimbo de água e considerou a questão. Se acontecesse o pior e fizessem mal ao rapaz, o papel não incriminaria ninguém. E ele iria a Umballa calmamente - com um certo risco de nova e excitante suspeita - repetir a sua história verbalmente às Pessoas interessadas.

Mas 0 relatório do RI 7 era o cerne de toda a questão e seria claramente inconveniente se deixasse de ser entregue. Contudo, Deus era grande e Mahbub Ali sentia que fizera tudo o que podia, por enquanto. Kini era a única alma no mundo que nunca lhe dissera uma mentira. Teria sido uma Mancha fatal no carácter de Kim, se Mal---ibub não soubesse que a outros, Para fins próprios ou para o negócio de Malíbub, Kim conseguia mentir corno um oriental.

. Depois Malibub Ali bamboleou-se através do serai até à Portados HarPlas, que Pintam os olhos e enganam o estranho, e viu-se em trabalhos_d ardKiplM

para poder visitar a rapariga que, tinha razões para acreditar, era amiga particular de um pãndita de modos suaves que armara uma emboscada ao seu ingénuo balti no caso dos telegramas. Foi uma atitude totalmente insensata, porque se deitaram a beber brande perfumado, contra a Lei do Profeta, e Mal---ibub ficou imensamente embriagado e as Portas da sua boca soltaram-se e ele seguiu a Flor do Prazer com os pés da intoxicação, até cair redondo entre as almofadas, onde a Flor do Prazer, ajudada por um pãndita efeminado de Caxemira, o revistou minuciosamente da cabeça aos pés.

Pela mesma hora, Kini. ouviu passos suaves no estábulo deserto de Mahbub negociante de cavalos, caso curioso, não deixara a porta fechada à chave e os seus homens estavam ocupados, celebrando o seu regresso à índia com um carneiro inteiro, dádiva de Mahbub. Um cavalheiro jovem e polido de Délhi, munido de um molho de chaves que a Flor soltara do cinto do inanimado, vasculhou cada caixa, trouxa, tapete e alforge na posse de Mahbub, ainda mais sistematicamente do que a Flor e o pândita revistavam o dono.

- E eu acho - disse a Flor com desdém, uma hora mais tarde, um cotovelo roliço sobre a carcaça ressonadora - que ele não é mais do que um porco traficante de cavalos afegão, que não pensa senão em mulheres e cavalos. Além do mais, nesta altura ele pode tê-lo enviado... se alguma vez existiu tal coisa.

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- Não... num assunto referente aos Cinco Reis isso estaria ao lado do seu negro coração - disse o pãndita. - Não estava lá nada?

0 homem de Délhi riu-se e endireitou o turbante, ao entrar.

- Procurei no meio das solas das chinelas dele, enquanto a Flor examinava as roupas homem não é este, mas outro. Deixo pouco por re~ vistar.

- Eles não disseram que era ele o homem - disse o pãndita, reflecti- damente. - Disseram.- "Vejam se será ele o homem, porque os nossos conselheiros estão inquietos".

- Essa terra do norte está cheia de traficantes de cavalos como um ca~ saco velho está cheio de piolhos. Há o Sikander Khan, o Nur Ali Beg C 0 Farrukh Shah... todos chefes de kafilas [caravanas]... que fazem lá o tráfico - disse a Flor.

- Eles ainda não vieram - disse o pãndita. - Deves armar-lhes o laço mais tarde.

- PR - disse a Flor com profunda aversão, fazendo rolar a cabCÇ' de Mal---ibub do regaço. - Eu ganho o meu dinheiro. Farrukh Shah é uni

ffim

urso, Ali Beg Inn rnata-touros suíno não se

e o velho Sikander... ai! Vão! Agora vou dorvai mexer até ao amanhecer.

rnir. Este

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Quando Mal---ibub acordou, a Flor falou lhe com severidade no pecado da einbriaguez- os asiáticos não tremem quando vencem um inimigo, mas Malíbub Ali, quando aclarou a garganta, apertou o cinto e avançou cambaleando sob as primeiras estrelas matinais, esteve perto disso.

- Que truque de principiantes! - disse para si mesmo. - Como se todas. Mas foi lindamente feito Peshawar

as raparigas em sabe Deus

não o usassem

quantos mais estarão lá na estrada com ordens para me Agora

examinar ... talvez com a faca. Portanto mantém-se que o rapaz deve ir a Umballa ... e por caminho-de-ferro. - pois o documento é uma coisa urgente. Eu aguardo aqui, seguindo a Flor e bebendo vinho, como faria um negociante afegão.

Parou no estábulo ao lado do seu. os seus homens estavam lá, pesados de sono. Não havia sinal de Kini, nem do lama.

- De pé! - Abanou um dorminhoco. - Para onde foram aqueles que estavam aqui deitados ontem à noite... o lama e o rapaz? Falta alguma coisa?

- Não - grunhiu o homem -, o velho louco levantou-se ao segundo canto do galo, dizendo que ia para Benarés e o jovem levou~o daqui. - Maldição de Ala sobre todos os descrentes! - disse Mahbub com

sinceridade e entrou para o seu estábulo, resmungando com a sua barba. Mas foi l(im que acordou o lama - Kim com um olho encostado a um buraco no nó da madeira, que vira o homem de Délhi vasculhar as caixas. Não era um gatuno vulgar que revolvia cartas, contas e selas - não era um mero ladrão que corria uma pequena faca, de lado, dentro das solas das chinelas de Mal---ibub, ou separava as costuras dos alforges com tanta destreza. A princípio,

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Kim pensara em dar o alarme -- o prolongado cho-Or-choor! [ladrão! ladrão!] que punha o serai em pé de guerra mas olhou com mais cuidado e, mão no amuleto, tirou as suas próprias conclusões.

- Deve ser o pedigree daquela m i a sobre o cavalo entira preparad

disse ele -, a coisa que eu levo para Umballa. É melhor irmos agora. Aqueles que revistam sacos com facas podem, dentro em pouco, revistar barrigas corri facas. De certeza que há uma mulher por detrás disto. Fh! Eh! - num sussurro para o velho de sono leve. - Anda. Está na hora... hora de ir para Benarés.

O lana ergueu-se obedientemente e saíram do serai como sombras. E quem o desejar, liberto de Orgulho, Não desprezando credo nem padre, Pode sentir a Alma de todo o Leste, À sua volta em Karnakura.

Buda, em Kamakura

Entraram na estação de caminho- de -ferro, semelhante a uma fortaleza, sombria ao fim da noite as luzes chiavam por cima do depósito de mercadorias onde se lida com o pesado tráfego de cereais do norte.

- Isto é obra de diabos! - disse o lama, recuando perante a escuridão que ecoava no local, o brilho frouxo dos carris entre as plataformas de alvenaria e o labirinto de vigas por cima. Estava num gigantesco vestíbulo de pedrajuncado, parecia, de mortos amortalhados, passageiros de terceira classe que tinham tirado os bilhetes na noite anterior e estavam a dormir nas salas de espera. Todas as vinte e quatro horas do dia são iguais para os orientais e o seu tráfego de passageiros é regulado conforme as circunstãncias.

- É aqui que chegam as carruagens de fogo. Fica-se atrás daquela abertura - Kini apontou para a bilheteira -, que nos dá um papel que nos leva a Umballa.

Mas nós vamos para Benarés - replicou ele com petulância. É 0 mesmo. Benarés, então. Depressa: ela aí vem!

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Leva tu a bolsa.

O lama, não tão bem habituado a comboios como fingira, sobressaltou-se quando o das 3:25 entrou a rugir, em direcção ao sul. Os dorminhocos voltaram à vida e a estação encheu-se de clamor e gritarias, gritos de água e vendedores de doces, brados de polícias nativos e gritos estridentes de mulheres reunindo os seus cestos, familiares e maridos.

- É o comboio... apenas o comboio. Ele não vem para aqui. Espera. Espantado com a imensa simplicidade do lama (que lhe dera um pe~ quen0 saco cheio de rupias), Kim pediu e pagou um bilhete para UmbalIa. ]U empregado ensonado grunhiu e atirou -lhe um bilhete para a estação seguinte, apenas a dez quilómetros de distancia. Rudyard KipWW

Kim

- Não - disse Kini, examinando-o com um sorriso. - Isto Pode servir para os lavradores, mas eu vivo na cidade de Lahore. Foi feito com,, es_ perteza, babu.' Agora dá-me o bilhete para Umballa.

0 babu franziu as sobrancelhas e deu o bilhete certo.

Agora outro para Amritzar - disse Kini, que não tinha a noção de estar a gastar o dinheiro de Mahbub Ali em algo tão cru como uma viagem paga para Umballa. - 0 preço é tão alto. As moedas de troco são tantas, Eu conheço os caminhos do comboio... Nunca um asceta precisou de chela como tu precisas - continuou alegremente para o desconcertado lana. - Se não fosse eu, eles ter-te-iam largado em Mian Mir. Por aqui! Anda! - Devolveu o dinheiro, guardando apenas um anã em cada rupia do preço do bilhete para Umballa, como comissão - a antiquíssima comissão da Ásia.

O lama estacou em frente da porta aberta de uma apinhada carruagem de terceira classe.

- Não era melhor caminhar? - perguntou debilmente.

Um corpulento artesão sikh chegou à frente, a cabeça barbada.

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- Ele está com medo? Não tenhas medo. Lembro-me do tempo em que eu tinha medo do comboio. Entra! Esta coisa é obra do governo.

- Eu não temo - disse o lama. - Tendes espaço aí dentro para dois? - Não há espaço nem para um rato - disse com voz estridente a mulher de um próspero agricultor, umjat hindu do rico distrito de Jullundur. Os nossos comboios nocturnos não são tão bem cuidados como os diurnos, onde os sexos são muito rigorosamente mantidos em carruagens separadas.

- Oli, mãe do meu filho, podemos arranjar espaço - disse o marido de turbante azul. - Pega na criança. É um santo, vês?

- E o meu regaço cheio com setenta vezes sete trouxas! Por que não convidá~lo a sentar-se nos meus joelhos, desavergonhado? Mas os homens SãO sempre assim! - Procurou aprovação em volta. Uma cortesã de Arnrit7-ar, perto da janela, fungou por detrás dos tecidos que lhe cobriam a cabeça.

- Entrem! Entrem! - gritou um gordo usurário hindu, com o livro de contas embrulhado num pano debaixo do braço. Com um sorriso afectado, melífluo: - Está certo ser gentil com os pobres.

- Sim, a sete por cento ao mês, com uma hipoteca sobre a vitela por nascer - disse um jovem soldado dogra, que ia para o sul de licença; e todos se riram.

1, Senhor (título iindu). , da T.)

- Irá para Benares? - perguntou .o lama.

- Certamente. Porque outro motivo estaríamos aqui? Entra, ou deiy cá _ gritou Kim-

am-nos - guinchou a rapariga de Amritzar. - Ele nunca entrou - Vejam]

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num comboio. Oh, vejam!

- Não, ajudem - disse o agricultor, estendendo uma grande mão castanha e içando-o. - Está feito, Pai-

- Mas... mas... eu sento-me no chão. É contra a Regra sentar num banco - disse o lama. - Além disso, causa-me cãibras.

- Digo-te - Começou o usurário, enrugando os lábios - que não há uma única regra de bem-viver que estes comboios não nos façam infringir. Sentamo-nos, por exemplo, lado a lado com todas as castas e pessoas.

- Sim, e com as mais escandalosas e desavergonhadas - disse a esposa, lançando um olhar mal-humorado à rapariga de Amritzar, que fazia olhinhos ao jovem sipaio. 1

- Eu disse que podíamos ter ido de carroça pela estrada - disse o marido - e assim ter poupado algum dinheiro.

- Sim... e gasto o dobro do que poupávamos em comida, pelo caminho. Isso já foi discutido dez mil vezes.

- Sim, por dez mil línguas - grunhiu ele.

- Os deuses ajudam-nos, pobres mulheres, se não pudermos falar. Ena! Ele é daquele tipo que não pode olhar nem responder a uma mulher. - O lama, constrangido pela sua Regra, não fazia o mínimo caso dela. E o seu discípulo é como ele?

- Não, mãe - disse Kini muito prontamente. - Não quando a mulher é bem-parecida e, acima de tudo, caridosa para com os esfomeados. - Uma resposta de pedinte - disse o sikh, rindo. - Tu provocaste ~, irmã.

As mãos de Kini estavam arqueadas numa súplica.

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- E onde vais tu? - perguntou a mulher, estendendo-lhe metade de um bolo retirado de um embrulho oleoso.

- Mesmo até Benarés.

- Prestidigitadores, provavelmente? - sugeriu o jovem soldado. Tendes alguns truques para passar o tempo? Por que é que aquele homem amarelo não responde?

- Porque - disse KiM com energia - ele é santo e pensa em coisas que não estão ao teu alcance.

ígnea; i a índiaao serviço dos Ingleses (N da T) , ao serviço dos ingleses (N da T) Rudyard Kiplík,-

- Pode bem ser. Nós, os sikhs de Ludhiana - disse-o com

sonoridalutamos.

de não esforçamos as nossas cabeças com doutrina. Nós

O filho do irmão da minha irmã é naik [cabo] nesse regimento disse o artesão sim, calmamente. - Também há lá algumas companhias agora.

0 soldado indignou-se, porque um dogra é de uma casta diferente de um sihh, e o banqueiro riu à socapa.

- Para mim são todos iguais - disse a rapariga de Amritzar.

- Nisso acreditamos nós - bufou a mulher do agricultor maliciosamente.

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- Não, mas todos os que servem o Sirkar de armas na mão são corno que uma irmandade. Há uma irmandade da casta, mas, ainda para aléni disso - olhou em volta timidamente - a ligação do pulton... o regimento... hem?

- o meu irmão está num regimento jat - disse o agricultor, - os dogras são homens bons.

- Os teus sikhs, pelo menos, eram dessa opinião - disse o soldado, com um franzir de sobrancelhas para o plácido velho no canto. - Os teus sihhs pensavam assim quando as nossas duas companhias foram ajudá-los no Pirzai Kotal perante oito estandartes afrídi no cume, há menos de três meses.

Contou a história de uma acção na fronteira, em que as companhias dogra dos sihhs de Ludhiana se tinham saído bem. A rapariga de Amritzar sorriu, pois sabia que a história era para obter a sua aprovação.

- Ai de mim! - exclamou no fim a mulher do agricultor. - Então as aldeias deles foram queimadas e as suas criancinhas ficaram sem casa? - Eles tinham determinado a nossa morte. Pagaram um preço muito

alto depois de nós, sihhs, os termos treinado. Assim foi. isto é Amritzar? - Sim, e aqui cortam-nos os bilhetes - disse o banqueiro, remexe"- do no cinto.

As luzes empalideciam com o amanhecer, quando o guarda mestiço apareceu. A recolha dos bilhetes é uma operação lenta no Leste, onde as pessoas escondem os bilhetes em todos os géneros de sítios curiosos. KiIII apresentou o seu e foi-lhe ordenado que saísse.

- Mas eu vou para Umballa - protestou ele. - Vou com este santo. - Tu não podes ir para jehannum, não me interessa. Este bilhete é só para Amritzar. Rua!

Kim desfez-se num mar de lágrimas, afirmando solenemente que O lama era seu pai e sua mãe, que ele era o amparo dos anos de declínio do

Kim

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bana e que o lama morreria sem os seus cuidados. Toda a carruagem convidava o guarda a ser misericordioso - o banqueiro neste ponto era especialmente eloquente - mas o guarda arrastou Kim para a plataforma. o lama pestaneijou - não conseguira aperceber-se da situação - e Kim levantou a voz e chorou do lado de fora da janela da carruagem.

_ Sou muito pobre. o meu pai morreu... a minha mãe morreu caridosos, sc eu sou deixado aqui, quem irá tomar conta daquele velho?

- O que... o que é isto? - repetiu o lama. - Ele tem que ir para Benarés. Ele deve vir comigo. Ele é o meu chela. Se há dinheiro a pagar...

- Lama, está calado - sussurrou Kim -, somos raj ás, para deitar fora prata boa quando o mundo é tão caridoso?

A rapariga de Amritzar desceu com as suas trouxas e foi sobre ela que Kin manteve o seu olho vigilante. Senhoras de tais convicções, sabia-o, eram generosas.

- Um bilhete... um pequeno tihkut para Umballa... o Destruidora de Corações. - Ela riu-se. - Não tens caridade?

- O santo vem do norte?

- De muito, muito longe, no norte, vem ele - gritou Kim. - Do meio das montanhas.

- Há neve no meio dos pinheiros no norte... nas montanhas há neve. A minha mãe era de Kulu. Compra um bilhete para ti. Pede-lhe uma bênção.

- Dez mil bênçãos - guinchou Kini. Santo, uma mulher fez-nos caridade, para eu poder ir contigo... uma mulher com um coração de Ouro. Vou a correr pelo tihkut.

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A rapariga olhou para o lama, que, mecanicamente, seguira Kini até à Plataforma. Curvou a cabeça de modo a não a poder ver e segredou em tibctano, enquanto ela seguia com a multidão.

- Vem a luz, vai-se a luz - disse a mulher do agricultor, rancorosamente.

- Ela adquiriu mérito - retorquiu o lama. - Sem sombra de dúvida era uma freira.

- Há dez mil dessas freiras só em Amritzar. Volta, ancião, ou o combOiO Pode partir sem ti - gritou o banqueiro.

- não só foi suficiente para o bilhete, mas também para um pouco de comida - disse Kini, pulando para o seu lugar. - Agora come, Santo. Olha. Verri aí o dia!

Douradas, róscas, cor de açafrão e cor-de-rosa, as brumas matinais es~ fwnavam-

S' Pelas verdes áreas planas. Todo o rico Punjab se estendia sob o esplendor do Sol intenso. O lama estremecia ligeiramente quando os postos telegráficos passavam.

- Grande é a velocidade do comboio - disse o banqueiro, com UM sorriso protector. - Andámos mais desde Lahore do que tu podias cami_ nhar em dois dias: à noitinha entraremos em Umballa.

- E isso ainda é longe de Benarés - disse o lama penosamente, Inordiscando os bolos que Kini lhe oferecia. Todos desataram as trouxas e fizeram a refeição matinal. Depois, o banqueiro, o agricultor e O soldado prepararam os cachimbos e envolveram o compartimento em fumo sufocante, acre, cuspindo e tossindo e divertindo-se sikh e a mulher do agricultor mastigavam pan; o lama tomava rapé e rezava o terço, enquanto Kim, de pernas cruzadas, sorria ao conforto de um estõmago cheio,

- Que rios tendes junto de Benarés? - perguntou o lama de repente para a carruagem, ao acaso.

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- Temos o Gunga - respondeu o banqueiro, quando acalmou o ténue riso abafado.

- Que outros?

- Outro sem ser o Gunga?

- Não, mas no meu pensamento estava a ideia de um certo rio com propriedades curativas.

-... o Gunga. Quem se banha nele purifica-se e vai para os deuses. Três vezes fui eu em peregrinação ao Gunga. - Olhou em volta, com orgulho.

- Era preciso - disse o jovem sipaio secamente, e o riso dos passageiros virou-se contra o banqueiro.

- Puro... para voltar de novo aos deuses - murmurou o lama. - E para avançar na roda das vidas outra vez... ainda preso a Roda. -Abanou a cabeça com irritação. - Mas talvez haja um engano. Quem, então, fez 0 Gunga, no princípio?

- Os deuses. De que doutrina conhecida és tu? - perguntou o banqueiro, espantado.

- Sigo a Lei... a Lei Mais Excelente. Então foram os deuses que fizeram o Gunga. Que género de deuses eram?

A carruagem olhou para ele com assombro. Era inconcebível que alguém fosse ignorante em relação ao Gunga.

- Qual... qual é o teu Deus? - perguntou por fim o usurário. - Ouve! - disse o lama, transferindo o rosário para a sua MãOOuve, pois eu vou falar dele agora! 0 gente do Hind, escutai!

Começou então a história do deus Buda, mas, submerso Pelos 'eus

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Kím

pensanjerItos, deslizou para tibetano e recitou longamente textos de um hvro chinês da vida de Buda. As pessoas, afáveis, tolerantes, contemplavarn reverenternente. Toda a índia está cheia de santos balbuciando princípios em línguas estranhas, abalados e consumidos nos fogos do seu próprio fervor; sonhadores, tagarelas e visionários, como tem acontecido desde o princípio e vai continuar até ao fim.

_ Hurni - fez o soldado dos sikhs de Ludhiana. - Havia um regimento, maometano estacionado ao nosso lado no Pirzai Kotal e um sacerdote deles... era, tanto quanto me lembro, naik... quando a luta era com ele, fazia profecias. Mas os loucos estão todos sob a protecção de Deus. Os oficiais dele eram muito tolerantes com aquele homem.

o lama voltou ao hindu, lembrando-se de que estava numa terra estranha.

- oiçam a história da seta que o nosso senhor soltou do arco - disseele.

isto era muito mais do agrado deles e escutaram com curiosidade enquanto ele a contava.

- Agora, ó gente do Hind, eu vou procurar esse rio. Sabedes alguma coisa que me possa guiar, pois nós todos, homens e mulheres, estamos no caninho, do mal?

- É o Gunga... e só o Gunga... que lava o pecado - correu o murMúrio pela carruagem.

- Apesar da questão anterior, nós temos bons deuses no caminho para JuIlundur - disse a mulher do agricultor, olhando pela janela. Olha como abençoaram as colheitas.

- Pesquisar todos os rios do Punjab não é tarefa fácil - disse o marido. - Para mim, um ribeiro que deixe bons sedimentos na minha terra é suficiente e agradeço a Bhumia, o deus da lavoura. - Encolheu um om~ bro bronzeado, com manchas.

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- Achas que o nosso Senhor veio tão para norte? - perguntou o Lama, virando-se para Kim.

- Pode ser - replicou Kini suavemente, ao entornar sumo vermelho de pan no chão,

- O últirno dos Grandes - disse o sikh com autoridade - foi Sihande"111karn (Alexandre, o Grande). Pavimentou as ruas de JuIlundur e Construiu uma grande cisterna perto de Umballa. Esse pavimento mantém-se ainda hoje; e a cisterna está lá também. Nunca ouvi falar no teu Deus.

-Deixa crescer o teu cabelo e fala punj abi - disse o J .ovem soldado, RudyardKip1ijg,

por graça, a Kim, citando um provérbio do norte. sO Isso que faz ulr, sihh. - Mas não disse isto muito alto.

O lama suspirou e fechou-se em si mesmo, uma massa sombria, Sem forma. Nas pausas das conversas eles conseguiram ouvir a cantilena balxa - Orn rriane pudme hum! Om mane pudme hum! - e o estalido forte das contas de madeira do rosário,

- Aborrece-me - disse por fim. - A velocidade e o ruído aborrecem-me. Além disso, meu chela, penso que talvez tenhamos ultrapassado o rio.

- Calma, calma - disse Kim. - O rio não era perto de Benarés? Ainda estamos longe do lugar.

- Mas... se o nosso Senhor veio para norte, pode ser qualquer um destes pequenos que nós encontrámos.

- Não sei.

- Mas tu foste enviado a mim... foste-me enviado?... pelo mérito que eu adquiri lá em Such-zen. Vieste do lado do canhão... trazendo dois rostos, e dois traj os.

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- Calma. Não se deve falar destas coisas aqui - murmurou Kini. Eu era só um. Pensa outra vez e lembrar-te-ás. Um rapaz... um rapaz hindu... junto do grande canhão verde.

- Mas não havia também um inglês com uma barba branca, santo entre imagens, que tornou ele próprio mais certa a minha certeza sobre o rio da Seta?

- Ele... nós... fomos ao Ajaib-Gher em Lahore, rezar perante os deuses - explicou Kim à assistência, notoriamente à escuta. - E o sahib da Casa das Maravilhas falou com ele... sim, é verdade... como um irmão. Ele é um homem muito santo, que vem de muito longe, para lá das montanhas. Repousa, tu. A seu tempo chegaremos a Umballa.

- Mas o meu rio... o rio da minha cura?

- E depois, se isso te agrada, iremos à caça desse rio a pé. Para nãO perdemos nada, nem mesmo um pequeno regato numa encosta.

- Mas tu tens a tua própria Busca? - O lama, muito satisfeito por se 1 lembrar tão bem, sentou-se direito como um fuso. i - Sim - disse Kim, fazendo-lhe a vontade rapaz estava iriteira-

mente feliz por andar fora, a mastigar pan e a ver nova gente no grandei bem disposto mundo.

- Era um touro... um Touro Vermelho que virá e ajudar-te-á... . levar- i -te-á para onde? Esqueci-me. Um Touro Vermelho num campo verde, 10 era?

Kim

- Não, não me levará para lugar nenhum - disse Ki.m. só uma história que eu te contei.

_ Que é isto? - A mulher do agricultor inclinou-se para a frente, as pulseiras tilintando nos braços. - Vós ambos tendes sonhos? Um Touro verrnclho num campo verde, que te levará para os céus... ou quê? Foi uma visão? Fizeram uma profecia? Nós temos um Touro Vermelho na

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nossa aldeia atrás da cidade de Jullundur, e ele escolheu pastar no mais verde dos nossos campos!

- Dêem a uma mulher a história de uma velha esposa e a um pássaro tecelão uma folha e um fio, eles urdirão coisas maravilhosas - disse o sikh. - Todos os santos têm sonhos e, por seguir os santos, os seus discípulos alcançam esse poder.

- Um Touro Vermelho num campo verde, era? - repetiu o lama. Numa vida anterior pode ser que tenhas adquirido mérito e o Touro venha recompensar-te.

- Não, não... foi só uma historia que me contaram, possivelmente por brincadeira. Mas eu procurarei o Touro por Umballa e tu podes procurar o teu rio e descansar do barulho do comboio.

- Pode ser que o Touro saiba... que é enviado para nos guiar a ambos -disse o lama, esperançado como uma criança. Depois, para os presentes, indicando Kini: - Este só me foi enviado ontem. Não é, penso eu, deste mundo.

-já encontrei mendigos com fartura e santos aos pontapés, mas nunca um tal asceta, nem tal discípulo - disse a mulher.

0 marido tocou na testa ao de leve com um dedo e sorriu. Mas, quando o lama tomou a comer, trataram de lhe dar do melhor que tinham.

E, por fim - cansados, ensonados e empoeirados -, chegaram à est"o da cidade de Umballa.

- Nós aguardamos aqui um processo legal - disse a mulher do agricultor' Kin1. - 1nstalamo~nos com o irmão mais novo do primo do meu homem. Também há espaço no pátio para o teu ermita e para ti. Dar-me-à ele a bênção?

- ó santo! Unia mulher com um coração de ouro dá-nos alojamento Para a noite. É uma terra hospitaleira, esta terra do Sul. Vê como temos adligados desde a alvorada!

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0 lama inclinou a cabeça, numa bênção.

- Encher a casa do irmão mais novo do meu primo de vagabundos começou o Inarido, enquanto carregava ao ombro as suas pesadas coiSas de bambu. Kim

- O irmão mais novo do teu primo ainda deve ao primo do ineu pai algo pela festa de casamento da filha - disse a mulher, secamente. - )e,. xa~o pôr a comida deles por conta disso ermita mendigará, não tenho dúvidas.

- Sim, eu peço para ele - disse Kim, ansioso apenas por conseguir ao lama abrigo para a noite, para que ele pudesse procurar o inglês de Malibub Ali e desfazer-se do pedigree do garanhão branco.

- Agora - disse ele, quando o lama chegou a um abrigo no pátio interior de uma decente casa hindu atrás dos acantonamentos - eu vou sair por um bocado... para comprar provisões para nós no bazar. Não vás va. guear lá para fora até eu regressar.

- Voltarás? Voltarás de certeza? - O velho agarrou-se ao pulso dele. - E voltarás sob esta mesma forma? É demasiado tarde para procurar o rio esta noite?

- Muito tarde e muito escuro. Consola-te. Pensa como avançaste no percurso... já a cento e sessenta quilómetros de Lahore.

- Sim, e mais longe ainda do meu mosteiro. Ai de mim! É um mun. do enorme e terrível.

Kini saiu sem ser notado e afastou-se pela calada, uma figura tão despercebida como sempre transportava o seu e o destino de uns milhares de outras pessoas à volta do pescoço. As indicações de Mal---ibub Ali deixaram-lhe poucas dúvidas sobre a casa em que vivia o seu inglês; e um criado, trazendo para casa uma carruagem, vinda do clube, fê-lo ter a certeza absoluta. Só faltava identificar o seu homem e Kini esgueirou~se pela vedação do jardim e escondeu-se num maciço de relva macia, junto da varanda. A casa resplandecia de luzes e os criados moviam-se pelas mesas ornamentadas com flores, vidro e prata. Passado pouco tempo apareceu um inglês, vestido de preto e branco, cantarolando uma melodia. Estava muito escuro para lhe ver o rosto, por isso Kim, indigentemente, tentou uma velha experiência.

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- Protector dos pobres!

O homem recuou na direcção da voz. - Malibub Ali diz...

- Ah! Que diz Malibub Ali? - Não fez nenhuma tentativa para olha para o interlocutor e isso mostrou a Kim que ele sabia.

- 0 pedigree do garanhão branco está completamente estabelecido. - Que prova tens? - O inglês aproximou-se da sebe de rosas do ladO do caminho.

- Mahbub Ali deu-me esta prova.

-se

Kini lançou o embrulho de papel dobrado ao ar e este caiu na vereda, ao lado do homem, que lhe pós o pé em cima quando um jardineiro apareceu, vindo da esquina. Quando o criado passou, apanhou-o, atirou uma rupla - yirri pôde ouvir o tilintar - e encaminhou-se rapidamente para CW, nunca se virando. Velozmente, Kin---i apanhou o dinheiro; mas, com todo o seu treino, era suficientemente irlandês para considerar que a prata é a menor parte de qualquer jogo que ele desejava era o efeito visível da acção; por isso, em vez de se ir embora, estendeu-se na relva de barriga para baixo e rastejou para mais perto da casa.

viu - os bangalós indianos são completamente abertos - o inglês regressar a um pequeno quarto de vestir, num canto da varanda, que era meio escritório, cheio de papéis e pastas de viagem espalhadas, e sentar-

para examinar a mensagem de Malibub Ali seu rosto, em que incidia em cheio a luz do candeeiro de querosene, modificou-se e escureceu e Kim, habituado como todos os mendigos devem estar, a observar semblantes, registou-o convenientemente.

- Will! WilI, querido! - chamou uma voz de mulher. - Devias estar na sala de visitas. Eles estarão aqui dentro de um minuto.

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- Will! - disse a voz, cinco minutos mais tarde. - Ele chegou. Consigo ouvir os soldados na vereda.

O homem, de cabeça descoberta, precipitou-se para fora quando um grande landó com quatro soldados nativos atrás parou junto à varanda e um homem alto, de cabelo preto, direito como uma seta, se apeou, precedido por Um jovem oficial que se ria com prazer.

KiM estava estendido com a barriga espalmada, quase a tocar nas grandes rodas seu homem e o estranho moreno trocaram duas frases.

- Decerto, senhor - disse o jovem oficial, prontamente. - Tudo es~ pera, em se tratando de um cavalo.

- Não demoraremos mais do que vinte minutos - disse o homem de Kira- - Pode fazer as honras... mantenha-os divertidos, e tudo isso.

- Diz a um dos soldados para esperar - disse o homem alto, e am~ bos passaram ao quarto de vestir, ao mesmo tempo que o landó se afastaVa- Kiln viu as suas cabeças inclinadas sobre a mensagem de Malibub Ali c Ouviu as vozes... uma baixa e deferente, a outra forte e decidida.

- Não é questão de semanas. É uma questão de dias... horas, CP'a-sc - disse o mais velho. - Tenho estado à espera há algum tempo, ~ Isto - deu pancada no papel de Mal---ibub Ali - precipita as coisas- O Grogan janta aqui hoje, não janta?

- Sim senhor, e o Macklin também._ RU~ Kiplíng

- Muito bem. Falarei eu próprio com eles. O assunto será relatado . Conselho, claro, mas isto é um caso em que é justificável supor que devemos tomar medidas imediatamente. Avisar as brigadas de Pindi e Peslia, war. Isto irá desorganizar todas as rendições de Verão, mas não Podemos evitá-lo. isto resulta de não os termos esmagado completamente da pri, meira vez. Oito mil devem ser suficientes.

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- E quanto a artilharia, senhor? - Tenho de consultar o Macklin. - Então quer dizer que é a guerra?

- Não. Castigo. Quando um homem é obrigado pela acção do seu predecessor...

- Mas o C25 pode ter mentido.

- Ele confirma a informação do outro. Praticamente, eles puseram as mangas de fora há seis meses. Mas o Devenisli pensou que havia uma hipótese de paz. Claro que eles usaram isso para se tornarem mais fortes, Mande imediatamente esses telegramas... o novo código, não o velho.. meu e do Wharton. Não me parece necessário fazer esperar mais as senhoras. Podemos resolver o resto durante os charutos. já tinha pensado que estava próximo. É castigo, não é guerra.

Quando o soldado se afastou a galope, Kim rastejou até às traseiras da casa, onde, dando continuidade às suas experiências em Lahore, julgou que haveria comida - e informações. A cozinha estava repleta de excitados ajudantes, um dos quais lhe deu um pontapé.

- Ai - disse Kini, fingindo lágrimas. - Só vim lavar pratos em troca de uma barrigada.

- Toda a Umballa traz a mesma incumbência. Põe-te a andar! Eles vão entrar agora com a sopa. Pensas tu que nós, que servimos o sahib Creighton, precisamos de moços estranhos para nos ajudar num grande jantar?

É um jantar muito grande - disse Kim, olhando para os pratos, Não admira convidado de honra não é outro senão oJang-i-Lat~Sahib [o Comandante Supremo].

- Ali! - fez Kim, com o correcto acento gutural da admiração. Soubera o que queria e, quando o ajudante se virou, tinha desaparecido.

- E todo aquele incómodo - disse para si mesmo, pensando Como de costume em hindustãni - por um pedigree de cavalo. Mahbub Ali devia ter vindo comigo para aprender a mentir um

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pouco. Antes, todas 0 vezes que transportei uma mensagem, dizia respeito a uma mulher. AgL, ra são homens. Melhor homem alto disse que soltarão um grande exér`

Kim

cito para castigar alguém, algures, e a notícia vai para Pindi e Peshawar. Twnbéni há canhões. Se eu tivesse rastejado para mais perto. Grande noticia! ntrar o irmão mais novo do primo do agricultor Regressou, para enco

a discutir o processo legal da família, sob todos os aspectos, com o agri cultor e a mulher e alguns amigos, enquanto o lama dormitava. Depois da refeição da noite, alguém lhe passou um cachimbo de água; e Kini sentiu-se um grande homem, ao tirar uma cachimbada da suave casca de coco, as pernas estendidas lá fora ao luar, a língua estalando em comentários de vez em quando. os seus hospedeiros eram muito amáveis, pois a mulher do agricultor contara-lhes a sua visão do Touro Vermelho e a possibilidade de ele ter vindo de outro mundo. Além do mais, o lama era uma grande e venerável curiosidade padre da família, o tolerante brâmane Sarsut, apareceu mais tarde e, naturalmente, começou uma discussão teológica para impressionar a família. Pelo credo, claro, eles estavam todos do lado do seu padre, mas o lama era o hóspede e a novidade. A sua suave bondade e as suas impressionantes citações chinesas, que soavam como palavras mágicas, deliciavam-nos enormemente; e, neste ambiente simpático e simples, ele abria~se como o proprio Iótus do Iluminado, falando da sua vida nas grandes montanhas de Such~zeri, antes, como ele dizia.

- Ergui-me para procurar iluminações.

Depois veio à baila que, nesses tempos mundanos, ele tivera uma mão de mestre na feitura de horóscopos e natividade; e o padre da família le~ vou-o a descrever os seus métodos; cada um dava nomes de planetas que Os Outros não compreendessem e apontando para cima, enquanto as grandes estrelas se deslocavam no escuro. As crianças da casa puxavam Pelo seu rosário, sem reprimenda- e ele esqueceu completamente a Regra que Proíbe olhar para as mulheres, enquanto falava de neves eternas, desabamentos de terras, caminhos bloqueados, os remotos penhascos onde os homens encontram safiras e turquesas e essa maravilhosa estrada na montanha, que leva por fim ao próprio interior da Grande China.

- Que pensas dele? - perguntou o agricultor, em aparte, ao padre. - Um santo... um santo, de facto. Os deuses dele não são os deuses, 'nas Os seus Pés estão no Caminho - foi a resposta. - E os seus métodos Pala as rIatividades, embora isso te ultrapasse, são sábios e certos.

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- Diz-me _ disse Kini indolentemente - se eu encontro o meu Touro Vermelho nurn campo verde, como me foi prometido.

-Que Conhecimento tens tu sobre a hora do teu nascimento? - perguntou o padre, inchando de importãncia.

- Entre o primeiro e o segundo cantar do galo, na primeira nOite de Maio.

- De que ano?

- Não sei; mas, na hora em que eu dei o primeiro grito, aconteceu o grande terramoto em Srinagar, que é em Caxemira.

Isto sabia Kim pela mulher que tomou conta dele, e ela por Kiniball O'Hara terramoto fora sentido na índia, e, durante muito tempo permaneceu como uma data importante no Punjab.

- Ai! - disse uma mulher com excitação. Isto pareceu tornar a origem sobrenatural de Kini mais certa. - Não foi nessa altura que nasceu a filha de uma tal...

- E a mãe deu ao marido quatro filhos em quatro anos... todos uns prometedores rapazes - gritou a mulher do agricultor, sentada fora do círculo, na sombra.

- Ninguém instruído no saber - disse o padre da família - esque. ce como os planetas se encontravam nas suas casas nessa noite. - Começou a desenhar na poeira do pátio. - Pelo menos tu tens direito a metade da Casa do Touro. Que diz a profecia?

- Um dia - disse Kini, encantado com a sensação que estava a causar - serei tornado grande por intermédio de um Touro Vermelho num campo verde, mas primeiro entrarão dois homens para preparar as coisas.

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- Sim. é sempre assim na abertura de uma visão. Uma escuridão cerrada que se aclara lentamente; passado pouco tempo, alguém entra com uma vassoura, preparando o lugar. Depois começa a Visão. Dois homens... dizes tu? Sim, sim Sol, saindo da Casa do Touro, entra na de Gêmeos. Por isso, os dois homens da profecia. Consideremos. Vai-me buscar um ramo, pequeno.

Carregou as sobrancelhas, riscou, apagou e riscou de novo na poeira sinais misteriosos - para espanto de todos menos do lama, que, com requintado instinto, se absteve de interferir.

Ao fim de meia hora, afastou o ramo com um grunhido.

- Hum! Assim dizem as estrelas. Dentro de três dias vêm os dois homens preparar tudo. Atrás deles segue o Touro, mas o sinal à frente dele é o sinal de guerra e homens armados.

- Havia realmente um homem dos sihhs de Ludhiana na carruagelu de Lahore - disse a mulher do agricultor, esperançadamente.

- Tsss! Homens armados... muitas centenas. Que relação tens tu cow a guerra? - perguntou o padre a Kim. - o teu é um signo de 9116rr"', vermelho e encolerizado, a ser libertado muito em breve. 1

ada... nada - exclamou o lama seriamente. - Nós procuramos apenas paz e o nosso r' 0 de vestir. Deciyjrjl sorriu, lembrando-se do que escutara no quarto

das estrelas. decididamente, ele era um favorito

o padre varreu o pé o horóscopo rudimentar.

- Mais do que isto não consigo ver. Dentro de três dias o Touro virá a

rapaz

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- E o meu rio - suplicou o lama. - Eu estava esperançado de que o Touro dele nos guiasse a ambos até ao rio.

-Ai, esse rio prodigioso, meu irmão - replicou o sacerdote. - Tais coisas não são vulgares.

Na manhã seguinte, embora fossem pressionados a ficar, o lama insistiu na partida. Deram a Kim. uma grande trouxa de boa comida e perto de tres anãs de cobre para as necessidades do caminho e, com muitas bênçács, viram os dois caminhar em direcção ao sul ao alvorecer.

- Pensa é que estes e outros como estes não se pudessem libertar da Roda das Coisas - disse o lama.

-Não, nesse caso só as pessoas más seriam deixadas na terra e quem nos daria carne e abrigo? - disse Kini, dando alegres passadas sob o seu fardo.

-Além está um pequeno retrato. Vamos ver - disse o lama, e passou da estrela branca para os campos, caminhando em direcção a uma grande luta de cães vadios. Sim, voz de todas as Almas que se ligaram À vida que lutou de degrau em degrau Quando a regra de Devatta era jovem,

O vento quente traz Karnakura.

Buda, em Kamahura

Atrás deles, um lavrador zangado brandia uma vara de bambu. Era um hortelão de raça aram, que cultivava legumes e flores para a cidade de Umballa, e Kini, conhecia bem a raça.

- Tal pessoa - disse o lama, ignorando os cães - é indelicada com os estranhos, imoderada na fala e pouco caridosa. Que o exemplo dele te sirva de lição, meu discípulo.

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-Ah, mendigos desavergonhados! - gritou o lavrador. - Rua! Ponham-se a andar!

- Nós vamos - respondeu o lama, com calma dignidade. - Vamo-nos destes campos não abençoados.

-Ah - fez Kini, sustendo a respiração. - Se as próximas colheitas não forem suficientes, só podes culpar a tua própria língua.

O homem caminhou com inquietação, arrastando as chinelas.

-A terra está cheia de mendigos - começou ele, um pouco apologeticamente.

- E qual foi o indício que te fez saber que nós te pediríamos, o Mali? -Perguntou Kint mordazmente, usando o nome de que um hortelão racnOS gosta. - Tudo o que nós queríamos era olhar para aquele rio *M, naquele campo.

- Rio, na verdade! - desdenhou o homem. - De que cidade vin~ des vós, para não conhecerem um canal artificial? Corre tão direito como "rsCta c eu pago a água como se fosse prata derretida. Há um braço de rio nais além. Mas se precisam de água, eu posso dar-lhes... e leite.

Não ri' - '

os iremos ao rio - disse o lama, afastando-se.

Leite e uma refeição - gaguej ou o homem, enquanto olhava para a "t" e alta figura. - Eu... eu não atrairia o mal para mim... ou para as l'4bdias colheitas. Mas os mendigos são tantos, nestes dias difíceis. Ru4yard Kipling

- Presta atenção. - 0 lama virou

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se para Kini. - Ele foi le falar asperamente pela névoa vermelha da ira. Desaparecendo isso seus olhos, ele torna~se cortês e de coração afável. Possarn os seus pos ser abençoados! Cuidado, para não julgares os homens precipmente, o lavrador.

- Conheci santos que te amaldiçoariam da pedra do lar à vaca disse Kim ao desconcertado homem. - Ele não é sábio e santo? Eu seu discípulo.

Levantou o nariz altivamente e caminhou com grande dignidade. Ias estreitas orlas do campo.

- Não há orgulho - disse o lama, depois de uma pausa orgulho entre os que seguem o Caminho do Meio.

- Mas tu disseste que ele era grosseiro e descortês,

- Grosseiro não disse, pois como pode ser o que não é? Depois corrigiu a sua descortesia e eu esqueci a ofensa. Além disso, ele. como nós estamos, ligado à Roda das Coisas, mas ele não trilha o nho da libertação. - Parou num pequeno regato no meio dos ca prestou atenção à margem, juncada de marcas de patas.

- Agora, como conhecerás o teu rio? - perguntou Kini, agachal -se à sombra de umas altas canas-de~açúcar. Á - Quando eu o descobrir, certamente dar-se-á uma iluminação.

to que este não é o lugar insignificante entre as águas, se ao men00, me pudesses dizer onde corre o meu rio. Mas sê abençoado por fazei, os campos produzirem. o

- Olha! Olha! - Kini. saltou para o lado dele e arrastou-o para É Uma linha amarela e castanha deslizava dos sussurrantes caules veto lhos para a margem, esticou o pescoço para a água, bebeu e ficou ta... uma grande cobra~capelo com olhos fixos, vigilantes.

- Não tenho nenhum pau... não tenho nenhum pau - disse 14 - Vou arranjar um e quebrar-lhe a espinha. 1 - Porquê? Ela está na Roda, como nós... uma vida asceridentel

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descendente... muito longe da libertação. Grande mal deve ter feito a alma que se projectou nesta forma.

- Odeio todas as cobras - disse Kini. Nenhum treino nativo consegue extinguir o terror do homem branco pela serpente 1 - Deixa-a viver a sua vida. - A coisa em forma de espiral Silve

abriu parcialmente o capelo. - Que a tua libertação possa vir (Ic,0 irmão! - continuou o lama placidamente. - Terras tu cOnheciWell por acaso, do meu rio?

Kim

Kim, esmagado. tu - murmurou

vi urri horriern Como

adeiras compreendem a tua fala?

sabe? - passou a trinta centímetros da cabeça venenosa da espalrriou-se entre os anéis empoeirados.

W tui - chamou por cima do ombro. 1 .

o - disse Kim. - Vou dar a volta. bu. Ela não te faz mal.

acsitou por Um momento lama apoiou a sua ordem numa inj*ação chinesa, que Kini tomou por um encantamento. Obedekou para o outro lado do ribeiro e a cobra, de facto, não fez um N~ vi um tal homem. - Kini limpou o suor da testa. - E agora vamos?

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Oiz tu. Eu sou velho e um estranho... longe do meu lugar. Mas a carruagem de comboios enche a minha cabeça de ruídos de tambores. eu iria agora para Benarés... Todavia, indo assim, podekar escapar o rio. Procuremos outro rio.

o solo bem trabalhado dá três e até quatro colheitas por ano deplantações de cana-de-açúcar, tabaco, longos rabanetes branW1, durante todo esse dia deambularam, desviando-se a cada visdeágua; despertando cães de aldeia e povoações adormecidas. o lama ia respondendo às perguntas lançadas em torrente com simplicidade constante. Procuravam um rio - um rio de cura milagrosa e ninguém tinha conhecimento de tal curso de água? Às vezes os ho~ On-se, mas, mais frequentemente, ouviam a história toda até ao k~-Ihes um lugar à sombra, um trago de leite e uma refeição. kres eram sempre amáveis e as crianças pequenas, como todas as de todo mundo, eram alternadamente tímidas e ousadas. A noite criem re ouso debaixo da maior árvore de um lugarejo de parlados de plama, conversando com o chefe, enquanto o gado vinha OPOS de erva e as mulheres preparavam a última refeição do dia. Tido para lá da cintura de hortas que rodeava a faminta Umbali40a no meio do vasto verde das colheitas de algodão.

M um afável ancião de barba branca, habituado a entreter estra"tOu armação de cama de rede para o lama, colocou-lhe à 10'Mda cozinhada, preparou-lhe um cachimbo e, acabadas as ceWnocts no templo da aldeia mandou chamar o padre local. keOntou 1

às crianças mais velhas histórias sobre o tamanho e Belém Olorc, viagens de comboio e outras coisas como essas, ao mesmo

tempo que os homens conversavam, devagar, enquanto o gado ruminava .

e o chefe, finalmente-, ao padre. - - Não consigo perceber - diss. - 0 lama, contada a história, Como é que tu interpretas esta conversa

rezava o terço em silêncio. respondeu o padre. - A terra está cheia - Ele é um Pesquisador - resp

o ainda o mês passado... o faquir com deles. Recordas-te daquele que- vei

a tartaruga? - Sim, mas esse homem tinha razão e motivo, Porque o Próprio isIma apareceu numa visão, prometendo-lhe o Paraíso sem a pira ardente, se ele viajasse até Prayag. Este

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homem não procura nenhum deus que seja do meu conhecimento- e muito longe e é louco - replicou o Calma, ele é velho: vem d

bem barbeado padre. - ouve-me. - Virou-se para o lama. - A três oss Inove quilómetros] para oeste passa a grande estrada para Calcutá. - mas eu ia para Beriares... para Benarés- cursos de água deste - E para Benarés também. Atravessa todos os

lado do Hind. Agora o meu conselho para ti, Santo, é que repouses aqui até amanhã. Depois tomas a estrada - era à Grande Estrada Principal e ela atravessei já que,

que ele se referia - e experimentas cada ribeiro que lugar, mas se eu bem entendo, a virtude do teu rio não está num POÇO ou gura-te de ao longo da sua extensão. Depois, se o teu Deus quiser, asse

que- alcançarás a tua liberdade

- É bem dito . - o lama estava bastante impressionado com o plano. - Começaremos amanhã, e uma bênção para ti por mostrares a velhos pés uma tão próxima estrada. - Uma espécie de cãntico chinês, profundo e monótono, fechou a frase. Até o padre ficou impressionad .o e o chefe receou um encantamento maligno mas ninguém conseguia olhar para o rosto simples, ansioso, do lama e duvidar dele por muito tempo. mergulhando na sua cabaça - Vês o meu cheW - perguntou ele,

com uma grande fungadela. Era seu dever pagar cortesia com cortesia. -vejo e oiço. - 0 chef, volteou o olhar para o lado, onde Kim ta garelava com unia rapariga de azul, enquanto ela colocava espinhos cre~ pitantes numa fogueira.

- Ele também tem a sua Busca. Não um rio, mas um Touro. Sim, um Ynanimidade. Touro Vermelho num campo verde- levá~lo-á um dia à mag

Ele não é, penso eu, totalmente deste mundo. Foi enviado de repente para me ajudar nesta Busca e o nome dele- é Amigo do Mundo.

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o padre sorriu.

Eli, tu aí, Amigo do Mundo - gritou através do fumo acre que és tu?

- Discípulo deste Santo - disse Kiní. - Ele diz que tu és um but [um espírito].

- Os buts comem? - perguntou Kiní, com um piscar de olhos. Porque eu estou com fome.

- Não é brincadeira - gritou o lama. - Um certo astrólogo daquela cidade cujo nome esqueci...

- Não é nem mais nem menos do que a cidade de Umballa, onde nós dormimos a noite passada - sussurrou Kini. ao padre.

- Sim, Umballa, era? Ele traçou um horóscopo e declarou que o meu chela encontraria a sua aspiração dentro de dois dias. Mas que disse ele do significado das estrelas, Amigo do Mundo?

Kim aclarou a garganta e olhou em volta, para as barbas grisalhas da aldeia.

- O significado da minha estrela é a guerra - replicou pomposamente.

Alguém se riu da pequena figura andrajosa empertigada no muro de tijolo debaixo da grande árvore. Um nativo, nesta situação, ter-se-ia intimidado, mas o sangue de branco de Kim deu-lhe novo ãnimo.

- Sim, guerra - respondeu ele.

- Essa é uma profecia certa - ecoou uma voz funda -, já que há sempre guerra ao longo da fronteira, tanto quanto sei.

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Era um homem velho, mirrado ., que servira o governo nos dias da Revolta como oficial nativo, num regimento de cavalaria recém-formado governo dera-lhe uma boa herdade na aldeia e, embora as exigências dos seus filhos, agora oficiais de barba grisalha por moto próprio, o tivessem empobrecido, ainda era uma pessoa importante. Oficiais ingleses - até procuradores do governo - desviavam-se da estrada principal para o visitar e, nessas ocasiões, ele vestia-se com o uniforme de outros tempos e Permanecia de pé, direito como uma vara.

Mas esta será uma grande guerra... uma guerra de oito mil. - A voz de Kim guinchava para a multidão que se juntava rapidamente, surpreendendo-se a si próprio.

Casacas~vermelhas, ou os nossos regimentos? - atirou o velho, corno se estivesse a interpelar um seu igual seu tom fazia os homens respeitarem Kiní.

- Casacas-vermelhas - disse Kini, ao acaso. - Casacas-vermelhas e canhões.

- Mas... mas o astrólogo não disse uma palavra acerca disso - gritou o lama, fungando prodigiosamente, na sua excitação.

- Mas eu sei. A mensagem veio ter a mim, que sou discípulo deste Santo. Surgirá uma guerra... uma guerra de oito mil casacas-vermelhas. Serão atraídas de Pindi e Peshawar. Isto é certo.

- 0 rapaz ouviu conversa de bazar - disse o padre.

- Mas ele esteve sempre ao meu lado - disse o lama. - Como saberia? Eu não sabia.

- Ele dará um esperto prestidigitador quando o velho morrer - resmungou o padre para o chefe. - Que novo truque é este?

Um sinal. Dá-me um sinal - vociferou o velho soldado de súbito. Se houvesse guerra, os meus filhos ter-me-iam dito.

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- Quando tudo estiver preparado, os teus filhos, não duvides, serão informados. Mas há um longo caminho entre os teus filhos e o homem em cujas mãos estas coisas estão. - Kuri aquecia para o jogo, pois ele lembrava-lhe experiências no ramo do transporte de cartas, quanto, por causa de umas moedas de cobre, fingia saber mais do que sabia. Mas agora jogava para coisas maiores... a completa excitação e a sensação de poder. Inspirou longamente e continuou.

- Ancião, dá-me a mim um sinal. Os subordinados ordenam as idas de oito mil casacas-vermelhas... com canhões?

- Não. - O velho ainda respondia como se Kim fosse um seu igual. - Então tu sabes quem ele é, o que dá a ordem?

- Eu vi-o.

- A ponto de o reconheceres?

- Conheço-o desde o tempo em que ele era tenente no trop-khana [artilharia].

- Um homem alto. Um homem alto com cabelo preto, andando assim? - Kini deu umas passadas num estilo hirto, rígido.

- Sim. Mas isso qualquer um pode ter visto. - A assistência esteve de respiração suspensa durante toda esta conversa.

- isso é verdade - disse Kim. - Mas eu direi mais. Olha. Primeiro, o grande homem anda assim. Depois, pensa assim. - Kim colocou mu dedo indicador sobre a testa e desceu-o até ele vir descansarjunto do ângulo do maxilar. - De vez em quando contorce os dedos, assim. De vez em quando enfia o chapéu debaixo do sovaco esquerdo. - Kim ilustrava o movimento e permanecia como uma cegonha.

O velho gemeu, incapaz de se exprimir com o espanto; e a multidão estremeceu,

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- Sim... sim...

dem? sim. Mas que faz ele quando está quase a dar uma or- - Coça a Pele da nuca... as -

sim. Depois tomba um dedo em cima da mesa e faz um pequeno ruído de fungar, Pelo nariz. Depois,

do. "Destaquem i" e tal regimento. Chamem tais canhões". faa, dizen- 0 velho e'gueu-se com rigidez e fez continência. as frases finais que ouvira "nPooqrquauret"o ---de Kini traduzia para o vernáculo diz ele

vestir em Umballa. - "Porque", , "já devíamos ter feito isto há muito tempo. Não é guerra... é um casti

- Chega- Eu acredito. Eu vi go. Snff!" -0 assim no fundo das batalhas. Vi e ouvi. ele!

- Não vi fumo nenhum. - A voz de Kim transformOu-se na concentrada toada monótona do cartomante de estrada. - Vi isto na escuridão. Primeiro veio um homem clarificar as co-

leiros. A seguir veio ele isas. Depois, vieram ca rodeado por um anel de va como eu contei. Ancião, - luz resto seguiu~se

falei verdade? - É ele. Sem dúvida que é ele.

A assistência respirou longa,

tremulamente, olhando alternadamente para 0 velho, ainda atento, e Para o andrajoso Kim, contra o crepúsculo purpúreo.

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- Eu não disse... eu não disse que ele era do outro mundo? - gritou ' lama com orgulho. - Ele é o Amigo do Mundo. Ele é o Amigo das Estrelas.

-Pelo menos isso não nos diz respeito _gritou um home

e ) tu, jovem adivinho, se o dom vive contigo em todas as ocasiões eu

tenho uma vaca com malhas excitadas. Pode ser irmã do teu Touro, pois que eu saiba Ou que eu me rale -interrompe ...

se relacionam com u Kim. -As minhas estrelas não - Não, o teu gado.

me mas ela está muito doente - atalhou uma mulher. - o meu ho in é um búfalo, senão teria escolhido melhor as suas pal vras. Dizes-nie se ela recupera? a

Se Kim` fosse um rapaz vulgar,

teria continuado com a brincadeira; 111'1s Uni' Pessoa não conhece a cidade de Laliore e ainda menos os faquires que estão junto da Porta de Taksali há treze anos sem também co rlhecer a natureza humana.

O Padre olhou para e](, de soslaio um tanto amargamente - um sorriso seco e mirrado.

da - 1ntào não há padre na aldeia? Pe

agora - gritou Kim. -nsci ter v].sto um bem grande ain- Kim

- sim... mas... - coirt

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- Mas tu e o teu mar,-(

nhado de obrigados. - 0 r avarento casal da aldeia. telo novo ao teu próprio pj revogavelmente zangados -

- Tu és um senhor pe, astúcia de quar,' nasNem a

te o velho rico.

-um pouco de farinh. damomo - retorquiu Kiii -Enriquece-sccOmiss0? ve-me, pelo menos enqual

Ele sabia como eram c)- entre eles e copiou precis-tcípulos.

- A Busca dele é enL,, Pode ser um tesouro.

- Ele é louco... mil v e: Aqui o velho soldado 1, talidade dele para passar a mas insistiu em que a honao que o lama sorriu com ' to para o outro e retirou j

- Onde está o dinhe i - No meu peito. Onc- - Dá-mo. Discretan-ii - Mas porquê? Não l -Souoteuchelaou,

caminhos? Dá-me o dirili, a mão por cima da cintu i: - Seja... seja. - 0 I-

e terrível. Nunca soube Na manhã seguinte lama estava bastante feI: dável com o ancião, qu e çando-o nos seus mirra jovens capitães há trin, adormecido .

aca curada Por um Pu-,ri ter a v o mais a- eles eram notoriamente I-

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r os terriplos. Dá uni v. :to engana

5 teus deuses estejam irser que 0

e dentro de um me'.

- -,Ironou o padre aprovativamente. )dia ter feito melhor. Decerto tOr~ teiga e um pedaço de car,o de man

Orn o a cauteloso jogio, rnas aind

-odes ver, ele é louco, Mas isso ser 3ocaminhO.

Ia porta de Taksali quando falavam --sina inflexão dos seus ignóbeis dis:,ira, ou uma capa para outros fins?

Não há mais nada.

> perguntou se Kim aceitava a hospi- 3adre recomendou-lhe que 0 fizesse, ao templo

, eter o larna pertencesse

[,,-,de. Yim relanceou o olhar de um TOS)prias conclusões- ra o escuro. ssurrou, charnando-o pa

-3dia estar? )reSsa5 dá-rno.

s para comprar. lhos pés Pe>Ios 'NãoProtejOOStIusve . meteu , rnadrugada, devolver-to-'->'. -

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a e retirou a bolsa. undo é úne'50 -iou a cabeça. - Este m

nele tantos homens vivos-

estava de muito rnau hurnor, r'aS 0 desfrutara de uma noite irruito agradaria e, bala"-

strou o seu sabre de cav de cs contou histórias da Revolta e que Kiril caiu

nos seus túmulos, até

- Certamente o ar desta terra é bom - disse o lama. - Eu tenho sono leve, como têm todos os velhos; mas na noite passada dormi ininterruptamente até nascer a luz do

dia. Ainda agora estou pesado.

pou Bebe uma golada de leite quente - disse Kim, que carregara não cos desses produtos para fumadores de ópio seus conhecidos. - Está na altura de retomar a estrada.

-A longa estrada que atravessa todos os rios do Hind - disse o lama alegremente. - Vamos.

In gente, 0 pensar esta amabilidade? Na vereda-

de, eles são but-parast, maMsanocutmraOs Pviednassatsatluvezc,hreclacebrecãO iluminação. e especialmente o padre, pela sua grande que pedra e tinta ma rupia para 1

u o templo? A coisa que não é mais do

vermelha, mas o coração do homem devemos reconhecer quando e onde é bom.

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- Santo, alguma vez te meteste à estrada sozinho? - Kim ergueu os olhos vivamente, como os corvos indianos, tão atarefados pelos campos.

- Claro, pequeno: de Kulu até Pailiãnkot... desde Kulu, onde morreu o meu primeiro discípulo. Quando os homens eram amáveis connosco fazíamos ofertas e todos os homens foram gentis em todas as montanhas.

- No Hind é diferente - disse Kini. - Os deuses deles têm muitos braços e são malignos. Deixa-os em paz.

- Gostaria de te acompanhar na estrada por um bocado, Amigo do Mundo... a ti e ao teu homem amarelo. - 0 velho soldado subia lentarnente a rua da aldeia, indistinto ao alvorecer, num pónei magro, com os tendões dos joelhos cortados. - A noite passada fez despertar recorda~ ó`S no meu coração tão seco e isso foi uma bênção para mim. Decerto que há guerra aí fora, no ar. Sinto-a. Vê. Trouxe a minha espada.

Estava sentado no pequeno animal com as pernas esticadas, com a grande espada de lado - mão abandonada no botão do punho -, contcrnplando ferozmente as terras planas na direcção do norte.

- Conta~me outra vez como é que ele apareceu na tua visão. Sobe e ''-IIta-te atrás de mim animal carregará os dois.

- Eu sou discípulo deste Santo - disse Kini, quando passaram as P'rtas da aldeia. Os aldeões pareciam quase desgostosos por se verem liVrCs deie

-s, mas o adeus do padre foi frio e distante. Desperdiçara um pou'0 de ópio

- 1 nurn homem que não trazia dinheiro consigo.

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se E bern dito. Não estou muito habituado a santos, mas o respeito é MPre bom. Não há respeito nos dias que correm... nem mesmo quando o comissário vem ver~me. mas porque é que alguérri cujas esdo um sahibl à guerra iria seguir um santo?

trelas o conduzem ente. - Na verdade, nas - Mas ele é um santo - disse Kini seriam utros. Eu nunca vi rimpalavras e nos actos, é santo. Não é Como Os 0

guém assim. Nós não somos cartomantes, ou prestidigitadores, ou mendigos.

- Tu não és. Isso vej o eu. Mas não conheço esse outro. No entanto, ele caminha ligeiro. m passadas largas, ágeis A frescura matinal fazia o lama avançar co ação, fazendo estalar me~ como as dos camelos. Ia mergulhado em meditações e desfiava mecanicamente o rosário. strada secundária que serpenteava pela Seguiram a sulcada e gasta e ros, a linha dos Himalaias planície entre os grandes marigais verde-escu ste. Toda a índia trabalhacom neve nos cumes, indistinta, na direcção le poços, dos gritos dos lava nos campos, ao som cio chiar das rodas dos vos. Até o pónei sentia a vradores atrás do seu gado e do clamor dos cor

boa influência e quase desatou a trotar, quando KiM Põs uma mão na correia do estribo. o ter dado uma rupia para o santuário - - Estou arrependido de nã

disse o lama, na última das suas oitenta e uma contas.

o velho soldado resmungou com os seus botões, para que o lama, pela primeira vez, se apercebesse dele -

- 2 - perguntou ele virando-se.

- Também procuras o rio. sposta. - Que necessidade há de um rio, - É um novo dia - foi a re o17 Venho para te mostrar senão para nos banharmos antes do põr do S

um atalho para a Grande Estrada. de boa vontade. Mas por- - É uma cortesia para recordar, o homem

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quê a espada?

o velho soldado pareceu tão atrapalhado como uma criança, interrompida no seu jogo de faz-de-conta. te. - Ali, isto - A espada - disse ele, mexendo-se desajeitadamente

velho. Na verdade, as ordens foi uma fantasia minha... a fantasia de um o o Hind, mas da polícia SãO que ninguém deve- transportar armas em tod

- animou-se e deu uma pancada no punho - todos os polícias me- Conhecem. ia - disse o lama. - Que proveito há e"' - Não é uma boa fantas

matar homens?

1. Título respeitoso a o na ndia britãnica, principalmente aos eur peus. (N. da T)

Kim

- Muito pouco... que eu saiba mas se de vez em quando não se matassem homens maus, este mundo não seria bom para os sonhadores de vida sem armas. Não falo sem conhecimento, eu que vi a terra a sul de Délhi inundada com sangue.

- Que loucura foi essa, então?

- Só os deuses, que mandaram isso como praga, o sabem. Uma loucura corroeu todo o exército e eles viraram-se contra os seus oficiais. Esse foi o primeiro mal, mas que teria sido remediado se eles tivessem dado as mãos. Mas escolheram matar as mulheres e os filhos dos sahibs. Depois vieram os sahibs da Inglaterra e chamaram-nos ao mais severo ajuste de contas.

- Um tal rumor, creio, chegou até mim uma vez, há muito tempo. Chamaram-lhe o Ano Negro, tanto quanto me lembro.

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- Que género de vida levaste tu, para não saberes do Ano? Realmente, um rumor Toda a Terra soube e tremeu!

- A nossa terra nunca tremeu, excepto uma vez... no dia em que o Excelente recebeu Iluminação.

- PR Eu vi Délhi abanar, pelo menos, e Délhi é o umbigo do mundo.

- Então eles viraram-se contra mulheres e crianças? Isso foi uma má acção, para a qual não pode ser evitado o castigo.

- Muito se empenharam nisso, mas com muito pouco proveito. Eu estava então num regimento de cavalaria. Soçobrou. De seiscentos e oitenta sabres, ficaram entregues a si próprios... quantos, pensas tu? Três. Dos quais eu fui um.

Maior é o mérito.

Mérito! Nesses tempos nós não considerávamos isso como mérito. A minha gente, os meus amigos, os meus irmãos abandonaram-me. Disseram-

*" 0 tempo dos ingleses está no fim. Cada um fica com uma pequena herdade para si próprio". Mas eu falara com os homens de So~ braon, de Chilianwallah, de Moodkee e de Ferozeshah. Disse: "Esperem 12M Pouco e o vento mudará. Não há bênção neste trabalho". Nesses trnPOs, cavalguei cento e treze quilómetros com uma rnemsahib' inglesa c o seu bebé no meu arção. (Uau! Aquilo era um cavalo digno de um horflern!) Deixei-os em segurança e retornei ao meu oficial... o que não foi morto, de nós cinco. "Dê-me trabalho ", disse eu, " pois sou um paria entr' Os Ineus próprios parentes e o sangue do meu primo molha o meu sa-

Títulodado na 1rnidia a uma senhora europeia (NT da T)

bre. " "Alegra-te", disse ele. "Há muito trabalho pela frente. Quando esta loucura acabar, há uma recompensa. "

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- Sim, há recompensa quando a loucura acabar, de certeza? - murmurou o lama, quase para si próprio.

- Naqueles tempos não penduravam medalhas em todos os que, por acaso, tinham ouvido o disparo de uma arma. Não! Em dezanove batalhas campais estive eu; em quarenta e seis recontros a cavalo; e em incontáveis pequenas escaramuças. Fiquei com nove ferimentos- uma medalha e quatro louvores e a medalha de uma Ordem, pois os meus capitães, que são agora generais, recordaram-se de mim quando a Kaisar-i-Hind completou cinquenta anos de reinado e toda a terra rejubilou. Disseram. "Dêem-lhe a Ordem da índia Britânica". Trago~a agora ao pescoço. Recebi também o meujaghir [herdadel das mãos do Estado ... uma oferta grátis para mim e para os meus. Os homens de antigamente ... são agora comissários... vêm a cavalo ter comigo pelo meio das colheitas, altos nos seus cavalos, para que toda a aldeia os veja, e discutimos a fundo as velhas escaramuças, o nome de um morto a seguir ao outro.

- E depois? - perguntou o lama.

- Ah, depois vão-se embora, mas não antes de a minha aldeia ter visto.

- E no fim, que farás tu? - No fim, morrerei.

- E depois?

- Que os deuses o ordenem. Nunca os importunei com orações. Não me parece que eles me vão atormentar. Olha, eu verifiquei, durante a minha longa vida, que aqueles que interrompem continuamente os que estão acima deles com queixas e relatos e roncos e choros são logo chamados à pressa, como o nosso coronel costumava mandar chamar os maçadores provincianos que falavam de mais. Não, eu nunca fatiguei os deuses. Eles lembrar-se-ão disto e dar-me-ão um lugar calmo onde possa atirar a minha lança para a sombra e esperar para dar as boas-vindas aos meus filhos: tenho nada mais nada menos do que três... todos majores em Risadas... nos regimentos.

E eles, do mesmo, presos à Roda, andam de vida em vida, de aflição em aflição - disse o lama em segredo -, ardentes, inquietos, deitando a mão,

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- Sim - riu~se o velho soldado. -- Três majores em Rissaldar, cril três regimentos. Um pouco jogadores, mas eu também o sou. Eles dever', ter boas montadas, e não se pode tirar os cavalos como nos velhos ternpos se tomava uma Mulher. Bem, bem, a minha herdade pode pagar por tudo. Que pensas tu? É uma faixa bem irrigada, mas Os meus homens criganam-me. Eu não sei corno Perguntar, exccmPatcOaccoomdea ponta da lança. Uf! Enfureço~me e arnaldiçoo-os e eles fingem arrependim sdentado".

minhas costas, sei que me chamam "velho ente, mas, atrás das Nunca desejaste nenhuma outra coisa?

sim... sim ' --- M'1 vezes, Umas costas direitas e um joelho firme de novo; um Pulso rápido e um olho apurado; e a medula que faz um ho~ mem. Ah, os velhos tempos... os bons tempos da minha força!

- Essa força é fraqueza.

- Tornou-se em tal; mas há cinquenta anos eu teria podido provar o contrário - retorquiu 0 velho soldado, impelindo a ponta do estribo contra a ilharga esguia do pónei.

- Mas eu conheço um rio de grandes Propriedades curativas.

- Bebi água do Gunga a ponto de hidropisia. Tudo o que ela me deu foi uma disenteria e nenhuma espécie de força.

- Não é o Gunga rio que eu conheço lava de todas as manchas de Pecado, Subindo a longínqua margem, assegura-se a Liberdade. Não conheço a tua vida, mas o teu rosto é o rosto do honrado e cortês. Tu inantiveste-te fiei ao teu Caminho, dando felicidade quando ela era difícil de dar, nesse Ano Negro do qual agora recordo outras histórias. Entra age~ ra no Caminho do Meio, que é o caminho para a Liberdade. Ouve a Lei Mais Excelente e não sigas sonhos.

- Fala, então, ancião - sorriu o soldado, quase fazendo continênc'a- - Somos todos tagarelas, na nossa idade.

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O lama agachou~se debaixo de uma mangueira, cuja sombra jogava Corno que um xadrez no seu rosto; o soldado estava rigidamente sentado 110 Pónei; e Kim, assegurando-se de que não havia serpentes, deitou~se no emaranhado de raízes entrelaçadas.

Ouvia-se um zumbido sonolento de pequenas vidas sob o brilho quente do Sol, um arrulhar de pombos e um rumor indolente de rodas de POÇOS pelos campos. Lenta i

AO fim de dez minutos, e ImPressionantem ente, o lama começou. 0 velho soldado escorregou do seu pónei, para Ouvir melhor, como ele disse, e sentou-se com as rédeas à volta do pulso. A voz do ]arria vacilava - os períodos alongavam-se. Kini estava entretid.0 a observar um esquilo cinzento. Quando o pequeno monte de pêlo reZingão, bem colado ao ramo, desapareceu pregador e audiência estavam profundamente adormecidos, a vigorosa cabeça do velho oficial deitada 110 braço, as costas derreadas do lama contra o tronco da árvore, onde pa- RudygdAplin

recaiam de marfim amarelo. Uma criança nua apareceu, vacilante, olhou fixamente e, movida por algum rápido impulso de reverência, fez uma pequena vénia solene à frente do lama - só que a criança era tão pequena e gorda que tombou para o lado e Kim riu-se das rechonchudas pernas abertas. A criança, amedrontada e indignada, gritou alto.

- Ai! Ai! - disse o soldado, pondo-se de pé de um salto. - Que é Que ordens?... É... uma criança Sonhei que era um alarme. Pequenino, pequenino, não chores. Adormeci? Foi realmente descortês!

- Tenho medo. Estou assustado - berrou a criança.

- Que há a temer? Dois velhos e um rapaz? Como queres alguma vez tornar-te- um soldado, Principesco?

o lama também acordara, mas, não prestando atenção imediata à criança, fez tilintar o seu rosário.

- Que é aquilo? - perguntou a criança, parando um grito a meio. - Nunca vi aquelas coisas. Dá-mas.

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- Ah - disse o lama, sorrindo e espalhando uma parte do rosário na erva:

isto é uma mão-cheia de cardamomos, Isto é um monte de ghee:

Isto é milho e pimentão e arroz, Uma ceia para ti e para mim!

A criança guinchou de alegria e estendeu a mão para as contas escuras, brilhantes.

- Ah - fez o velho soldado. - Donde conheces tu essa cantiga, desprezador deste mundo?

- Aprendi-a em Pathânkot... sentado no degrau de uma porta disse o lama timidamente . - É bom ser gentil com os bebés.

- Se bem me lembro, antes de o sono nos chegar, disseste-me que 0 casamento e a procriação obscureciam a verdadeira luz, eram obstáculos no Caminho. No teu país as crianças caem do céu? Cantar~lhes cantigas é o Caminho? - - Nenhum homem é absolutamente Perfeito disse o lama com gravidade, recolhendo o rosário. - Corre agora para a tua mãe, pequeno.

- Ouve-o! - disse o soldado para Kim. - Está envergonhado Por ter tornado uma criança feliz. Perdeu~se, um bom chefe de família em ti, meu irmão. Ai, pequeno! - Atirou-lhe uma moeda de cobre. - Os doces são sempre doces. - E, enquanto a pequena figura se afastava aos saltos à luz do sol: - Eles crescem e tornam-se homens. Santo, lamento ter adormecido no meio da tua pregação. Perdoa-me.

Somos dois velhos - disse o lama. - 0 erro é meu. Escutei a tua conversa sobre o mundo e a sua loucura e um erro levou ao erro seguinte.

- Ouve-me! Que dano causa aos teus deuses brincar com um bebé? E aquela cantiga foi muito bem cantada. Continuemos e eu cantar~te-ei a cantiga de Nikal Seyn diante de Delhi... a velha cantiga.

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E saíram da obscuridade do mangal, a voz do velho alta, estridente, ecoando pelo campo, como gemido atrás de gemido arrastado, revelando a história de Nikal Scyn [Nicholson] - a cantiga que os homens ainda hoje cantam no Punjab. Kim estava encantado e o lama escutava com profundo interesse.

- "Ai! Nikal Seyri. está morto... morreu diante de Delhi. Lanças do Norte, vinguem Nikal Seyn. " - Cantou-a com voz trémula, até ao fim, marcando os trinados com a lãmina da espada na garupa do pónei.

- E agora chegamos à Grande Estrada - disse ele, depois de receelogios de Kim, pois o lama estava vincadamente silencioso. - Há ber os 1

muito tempo que não percorria este caminho, mas a conversa do teu rapaz despertou-me. Vê, Santo... a Grande Estrada que e a espinha dorsal de todo o Hind. Na sua maior parte é sombreada como aqui, por quatro filas de árvores; a estrada do meio, mais rija, comporta o tráfego rápido. Nos tempos anteriores ao caminho-de-ferro os sahibs viajavam aqui, para cima e para baixo, às centenas. Agora só há carroças e coisas assim. À esquerda e à direita a estrada é mais irregular por causa das carroças pesadas... cereais e algodão e madeira, forragem, cal e couros. Um homem vai Seguro aqui, pois de tantos em tantos hoss há uma esquadra de polícia. Os polícias são ladrões e extorsionistas (eu próprio patrulhava com a cavalaria... jovens recrutas sob as ordens de um forte capitão), mas pelo menos não defrontam nenhuns rivais. Por aqui andam todas as raças e tipos de homens. Olha! Brâmanes e chumars, banqueiros e latoeiros, barbeiros e bunnias, peregrinos e oleiros... o mundo todo indo e vindo. Para mim é como um rio do qual sou retirado como um toro depois de inundação,

E, na verdade, a Grande Estrada Principal é um espectáculo maravilhoso. Segue a direito, aguentando, sem amontoar, o tráfego da índia ao longo de dois mil e quatrocentos quilómetros - um tal rio de vida que nãO existe em mais sítio nenhum no mundo. Olharam para a sua extensão abobadada de verde e manchada de sombras, para a extensão salpi-

cada de povo andando lentamente; e, do outro lado, a esquadra de cia de duas divisões.

- Quem transporta armas contra a lei? - gritou

um Polícia ao ver por um momento a espada do soldado. - Os Polícias não são, ficientes para destruir os malfeitores? I

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- Foi por causa da polícia que eu a comprei - foi a resposta. ---i tudo bem no Hind?

- Sahib de Rissaldar, tudo vai bem.

í - Eu sou como uma velha tartaruga, olha, que põe a cabeça fora

margem e a recolhe de novo. Sim, esta é a Estrada do Indostão. Todos homens vêm por este caminho...

- Filho de um porco, a parte mais plana da estrada foi feita para, coçares as costas? Pai de todas as filhas da vergonha e marido de dezt desvirtuosas, a tua mãe foi devotada a um diabo, sendo levada a isso p mãe dela. As tuas lias nunca tiveram nariz, há sete gerações. A tua irnil Que loucura de coruja te disse para puxares as tuas carroças pela em da? Uma roda partida? Então pega numa cabeça partida e põe as du juntas a descansar. 1

A voz e um venenoso estalar de chicote saíam de uma coluna de pg cinquenta metros de distãncia, onde uma carroça se partira. Uma ÉS hathiawar, alta e magra, com os olhos e as narinas a arder, saiu da coni são como um foguete, resfolgando e estremecendo, quando o seu cal leiro a forçou a perseguir um homem que gritava. Era alto e tinha bad grisalha, montado no animal quase louco como se fizesse parte dele" chicoteando cientificamente a sua vítima entre os arranques violentos O rosto do velho encheu-se de orgulho.

- Meu filho! - disse ele com brevidade, e esforçou-se por darj pescoço do pónei uma postura em arco. 1 - Devo ser castigado à frente da polícia? - gritou o carreteiro

justiça! Terei justiça... I - E deverei eu ser bloqueado por um macaco guinchador que ruba dez mil sacos debaixo do focinho de um cavalo novo? Essa é a lhor maneira de arruinar uma égua.

- Ele diz a verdade. Ele diz a verdade. Mas ela segue de perto 0 go homem - disse o velho.

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O carreteiro correu para debaixo das rodas da sua carroça e daí çou utilizar todos os tipos de vingança.

- São homens fortes, os teus filhos - disse o polícia sererian, palitando os dentes. 1 IV

Boa sorte, ela nunca é uma senhora, Mas a descarada -ais maldita que há Maliciosa, assustada e aborrecida Difícil de levar ou conduzir.

Felicita-a - ela está a saudar um estranho! Junta-te a ela - ela prepara-se para partir! Deixa-a sozinha, Pois e uma megera

E a leviana vem puxar a tua manga! Generosidade! Generosidade, o Sorte! Dá, ou segura, à tua vontade.

Sc eu nao me preocupo com a Sorte, A Sorte deve seguir-me, não obstar, te!

Buda, em Kamahura

Depois, baixando as vozes, falaram um com o outro. Kim veio descansar debaixo de uma árvore, mas o lama deu-lhe um Puxão com impa~ ciência no cotovelo.

- Vamos rio não é aqui.

- Hai mai! Não caminhámos o suficiente para uma pausa? 0 nosso Paciência, e ele far-nos-á oferta.

tio -nãoEfsutegi-rá. disse o velho soldado de repente - é o Amigo das Estrelas. Trouxe-me a notícia ontem, depois de ter visto o próprio homem numa Visão, dando ordens para a guerra.

- Hum! - disse o filho, do mais fundo do seu amplo peito. - Ele 'Uviu um boato e aproveitou-o.

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O pai riu-se.

- Pelo menos não veio ter comigo para pedir um novo cavalo e sabe Deus quantas rupias. Os regimentos dos teus irmãos também estão sob ordeiras?

Não sei. Eu despedi-me e vim rapidamente ter consigo, no caso... No caso de eles se precipitarem antes de ti para pedir. ó jogadores

e.Perdulários, todos! Mas tu ainda nunca montaste num ataque. Aí é preCiso UM b

bé Orfl cavalo, de facto. Um bom seguidor e um pónei bom, tamboi", Para a marcha. Veremos... veremos. - Tamborilou com os dedos no tão do Punho da espada. Isto não é lugar para fazer contas,

Meu pai. Varndoasspdacracoab

Ao menos paga ao rapaz, então: na g inoe truca

go e ele trouxe notícias auspiciosas. Eh Ztenighoodo Mundo, ur,

CO está próxima, como tu disseste.

- Não, que eu saiba é a guerra - retorquiu Kini, calmamente. - Hem? - fez o lama, desfiando as contas, todo ansioso Por vo estrada. 14

0 meu mestre não incomoda as estrelas por dinheiro. Nós t rN mos a notícia... testemunhámos, trouxemos a notícia e agora vanjo embora. - Kim pôs a mão na anca.

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O filho atirou uma moeda de prata pelo ar, à luz do Sol, resmun alto sobre pedintes e prestidigitadores. Era uma peça de quatro anás e mentá-los-ia bem por alguns dias lama, vendo o brilho do rnetg toou uma bênção.

- Segue o teu caminho, Amigo do Mundo - disse 0 velho sol com voz aflautada, rodando a sua magra montada. - Por uma vez na nha vida encontrei um verdadeiro profeta... que não estava no exrciI

Pai e filho voltaram juntos para trás. o velho homem tão direito o mais novo.

Um polícia punjabi de calças de linho amarelo atravessou indo mente a estrada. Tinha visto passar o dinheiro.

- Alto! - gritou, num inglês impressionante. - Não sabem q ut um takhus de dois anãs por cabeça, que faz quatro anãs, para aqueles entram na estrada por este caminho secundário? São ordens do Sir dinheiro é gasto na plantação de árvores e embelezamento das estra

- E das barrigas dos polícias - disse Kim, escapando-lhe do b Presta um pouco de atenção, homem com cabeça de lodo. Pensa viemos do lago mais próximo como o sapo, teu sogro. Alguma vez te o nome do teu irmão?

- E quem era ele? Deixa o miúdo em paz - gritou um polícia graduado, imensamente satisfeito, enquanto se sentava para fumar o cachimbo na varanda.

- Ele pegou num rótulo de uma garrafa de belaitee-pani 1 bonatadal e, afixando-a numa ponte, recolheu taxas, durante ii rfiês,, queles que passavam, dizendo que eram ordens do Sirkar. DePO1 Ve' inglês e partiu~lhe a cabeça. Ah, irmão, eu sou um corvo de cidade, aldeia!

O polícia retirou-se atrapalhado e Kim apupou-o pela estrada fo - Alguma vez existiu um discípulo como eu? - gritou alegi"

Toda a ter

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ra teria tirado a carne aos teus ossos num raio de órnetros em volta da cidade de Lahore, se eu não te tivesse pro-

-cto comigo mesmo se tu és um espírito, por vezes, ou, outras demónio - disse o lama, sorrindo lentamente.

Kim acertou o passo pelo dele...

o teu chela. essa indescrití~ de andar do mendigo que percorre grandes distâncias em o.

d ra, caminhemos - murmurou o lama e, ao som do tilintar do .0

, caminharam em silêncio, quilómetro após quilómetro. o

era habitual, ia mergulhado em meditação, mas os olhos viam bem abertos. Este amplo e sorridente

rio de vida, pensou, Ime

riso progresso em relação às estreitas e apinhadas ruas de Lanovas pessoas e novas vistas a cada passo - raças

que ele coVdb 4Uc r

---i~4ue r- tavam completamente fora da sua experiência. traram um grupo de sansis de cabelos compridos, com um cheicom cestos cheios de lagartos e outra comida imunda às costas,

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Owescanzelados farejando~lhe os calcanhares. Esta gente mantinham lado da estrada, movendo-se num rápido e furtivo meio-morta e kb outras raças lhes davam amplo espaço, pois o sansí significa forte W. Atrás deles, caminhando espaçada e rigidamente pelas vigorobabras, ainda corri a memória das grilhetas, seguia um recentemente Optado da prisão; 0 seu estômago cheio e pele brilhante aí estavam, a Mkque o governo alimentava os seus prisioneiros melhor do que a 4hárte dos homens honestos conseguia alimentar-se a si própria. Mbhecia bem aquele andar e fez grande chacota dele, quando passaDepois Passou, comorri um andar imponente, um ahali, um sikh de íecabelo selvagem, entusiasta com as roupas azuis da sua crença, béis de aço reluzente resplandecendo no cone do seu alto turbante kgressado de visita a um dos Estados sikhs independentes, *devera cantando as velhas glórias do Khalsa a principelhos educaLcolégios, de botas altas e calções de bombazina branca. Kim tomou

10 Para não irritar aquele homem pois a paciência do ahali é curta e r'Ia rápida. Aqui e ali encontraram ou foram ultrapassados pelas e`s garridaniente vestidas das aldeias que tomavam parte de algu~ Irlocal; as Mulheres com os seus bebés nas ancas, caminhando atrás bem, Os rapazes mais velhos empinados em varas de cana~de-açú&stando toscos Modelos de locomotivas em bronze, para vender OPenn', Ou fazendo reflectir o Sol nos olhos dos seus superiores Rudyard 1PWW

Kim

através de espelhos baratos de brincar. Podia ver-se de relance o que cada um comprara; e, se houvesse alguma dúvida, bastava apenas observar as esposas, comparando, braço castanho com braço castanho, as apagadas braceletes de vidro recentemente adquiridas, que vêm do noroeste. Estas pessoas que se divertiam caminhavam lentamente, chamando-se umas às outras e parando para regatear com vendedores de doces, ou para fazer uma oração em frente de um dos altares que havia à beira da estrada por vezes hindu, por vezes muçulmano - que os de baixa condição dos dois credos partilhavam com bonita imparcialidade. Uma sólida linha de azul, subindo e descendo como a traseira de um tractor apressado, erguia-se no meio do trémulo pó e caminhava depressa para um coro de rápidos cacarejos. Era um bando de changars - as mulheres que tinham ficado encarregues de todos os aterros do caminho-de-ferro nortenho -, uma tribo de pés chatos, peitos amplos, membros fortes, saias azuis, dirigindo~ -se à pressa para norte à notícia de um emprego e não perdendo tempo junto da estrada. Pertenciam a uma casta que relega para segundo lugar o papel dos homens, e andavam com os cotovelos em esquadria, ancas hálouçantes e cabeças levantadas, como convém a mulheres que carregam fardos pesados. um pouco mais tarde, tomou o caminho da Estrada Principal um desfile nupcial, com música e gritarias e um cheiro de malmequer e jasmim ainda mais forte que o bafio da poeira. Podia ver-se a liteira da noiva, uma mancha de vermelho e prateado vacilando através da neblina, enquanto o pónei enfeitado com grinaldas do noivo se desviava para arrebatar um bocado de forragem de uma carroça que passava. Depois Kim juntou-se à trovoada de aplausos, de bons votos e piadas desagradáveis,

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desejando ao casal cem filhos e nenhuma filha, como diz o ditado. Ainda mais interessante e com mais motivo para gritaria era quando um malabarista ambulante com uns macacos meio treinados, ou um urso débil e ofegante, ou uma mulher com chifres de cabra atados aos pés, dançando numa corda bamba, assustavam os cavalos e esganiçavam as mulheres em prolongados requebros de espanto.

O lama nunca erguia os olhos. Não reparou no usurário, no seu pónei de garupa de ganso, apressando-se para recolher o juro cruel, nem na pequena turba gritando com voz rouca - ainda em formação militar - de soldados nativos de licença, regozijando-se por se verem livres dos seus calções e grevas e dizendo as coisas mais ultrajantes às mais respeitáveis mulheres à vista. Nem mesmo o vendedor de água do Ganges ele viu, ' Kim. esperava que ele ao menos comprasse uma garrafa desse precio50 produto. Olhava fixamente para o chão e caminhava com igual regulari-

dade, hora após hora, com a alma atarefada com outras coisas. Mas Kin-i estava no sétimo céu, de tanta alegria. Neste ponto, a Estrada Principal estava construída num aterro, para proteger das inundações de Inverno dos sopés, para que se caminhasse como que um pouco acima do campo, ao longo de um corredor, vendo toda a índia estendendo~se para a esquerda e para a direita. Era lindo observar os carros de bois com cereais e algodão movendo-se devagar pelas estradas secundárias- podiam ouvir-se os eixos, gemendo, a mais de um quilómetro de distancia, aproximando~se, até que, com gritos e berros e insultos trepavam a rampa íngreme e entravam na rija Estrada Principal, carreteiro insultando carreteiro. Era igualmente bonito ver as pessoas, pequenos maciços de vermelho e azul e cor-de-rosa e branco e cor de açafrão desviando-se para ir para as suas aldeias dispersando e diminuindo, aos dois e aos três, pela planície uniforme. Kin-i sentia estas coisas, embora não conseguisse dar voz aos seus sentimentos e, por isso, contentava-se em comprar caria-de~açúcar descascada e cuspir generosamente a medula pelo caminho. De tempos a tempos, o lama tomava rapé e, por fim, Kim não aguentou o silêncio por mais tempo.

- Esta é uma boa terra... a terra do sul - disse ele. - 0 ar é bom; a água é boa. Hem?

- E estão todos presos à Roda - disse o lama. - Sujeitos, vida após vida. A nenhum deles foi mostrado o Caminho. - Voltou para o seu mundo.

- E, até agora, tivemos uma caminhada fatigante - disse Kim. - Decerto chegaremos em breve a um parao [lugar de repouso]. Ficaremos lá? Olha, o Sol está oblíquo.

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- Quem nos receberá esta noite?

- Tanto faz. A região está cheia de pessoas boas. Além disso - enterrou a voz sob um suspiro -, nós temos dinheiro.

A multidão engrossou quando se aproximaram do lugar de repouso que marcou o fim do seu dia de viagem. Uma fila de tendas vendendo comida muito simples e tabaco, uma pilha de lenha, uma esquadra de polí~ cia, um poço, um bebedoiro para cavalos, algumas árvores e, debaixo delas, chão pisado, ponteado com as cinzas pretas de velhas fogueiras, são tudo o que sinaliza um parao na Estrada Principal; se se exceptuar os mendigos e os corvos - ambos esfomeados.

A esta hora o Sol enviava largos raios dourados através dos ramos mais baixos das mangueiras; os periquitos e pombos vinham para casa às centerias; as Sete Irmãs, gralhas tagarelas, conversando sobre as aventuras do dia, andavam para a frente e para trás às duas e às três, quase debaixo dos _~d KiII,

Kim

pés dos via, viajantes; e os mov-i',: nultos nos ramos mostravam que os morc e g-,--egos estavam pror--it, no seu piquete nocturno. A luz congregav: gava-se rapidamente-- : -uns instantes os rostos e as rodas das carroç,,-oças e os chifres de-)s: Trielho como sangue. Depois caiu a noite, rn, , mudando o toque-- -.ido uma névoa baixa, uniforme, como urn ---iiin véu de gaze azu 1 campo, e- exibindo, activo e distinto, o eht, cheiro do fumo da gado e o aroma bom dos bolos de trigo coziiij,)zinhados nas cinza-s noct saía à pressa da esquadra de pob colícia com tossideL: es e ordens reiteradas; e uma bola de carvão (;- ão em brasa na cavi c.,,, iimbo de água de um carreteiro ficou rubro :í-:)ro enquanto os olhc_)servavam mecanicamente o último trernul, nular do Sol nas te":,:. -e.

A vida )_da do parao era inu i'. -om a do serai de Caxemira, numa pequena e,-ia escala. Kim merg--u', ---, desordem asiática que, deixando o tempo a(:, o actuar, proporcio -r i,c um homem simples precisa.

As necessidades dele e, ,,, 3orque já que o lama não tinha escrúpulo s c., os em relação a raç3 cozinhada da barraca mais próxima servia;, -via; mas, por luxo, uma mão-cheia de estrume seco para atear ,_ear uma fogueira. P c": indo e vindo à volta das pequenas cham rmas,

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homens grita-," ou cereais, ou doces, ou tabaco, empurraw-rando-se uns aos aguardavam a sua vez no poço; e, abaixo c:xo das vozes dos hc-)r m-se em carroças paradas, com as persianas -ias corridas, os alto-s :risadinhas de mulheres cujos rostos não de, 3 deviam ser vistos

Hoje e je em dia, os nativo -s:: j:dos são da opinião de que quando as suas r=ii:, 3 mulheres do povC, ': - elas fazem um grande número de visitas - - - é melhor levá-l_ 2::'j.w.nte de comboio numa carruagem convenier,,-iientementeresgua-r, , costume está a espalhar-se. Mas há sempre aQ,,e aqueles da velha g_-,u, )rovam os usos dos seus antepassados;e,acii acima de tudo, há 5('E-ihas mulheres -mais conservadoras que os,,e os homens - qu-_ 'i, Jo fim dos seus dias, vão em pere~ grinaçã o. ão. Sendo mirradas ( :, is não se opõem a descobrir-se, erf, certas circ circunstãncias. Depu, rigo, isolamento, durante o qual estiveram se,:,--n sempre em conta, : ` i.nteresses exteriores, adoram a azáfama e o r, - o reboliço da estracJ.':, rãnsito, as reuniões nos altares e as infinitas p; as possibilidades d,:-_:: com viúvas de espírito para aí virado. F r-e c,,requentemente co=': :'amíha há muito sofredora que velha seri- senhora de voz gros, de ferro, se divirta pela índia desta maneira, 1 , rã, pois, certamentE-- ::èção é grata aos deuses. Por isso, por

toda a índia, nos mais remotos lugares como nos mais públicos se encontra algum grupo de servidores grisalhos encarregues nominalmente de velha senhora, que está mais ou menos protegida com cortinas e escondida num carro de bois. Tais homens são sóbrios e discretos e, quando um europeu ou um nativo de elevada condição está próximo, redobram a vigilância com precauções muito elaboradas; mas, nos acasos acidentais da peregrinação, as precauções não são tomadas, A velha senhora é, afinal, intensamente humana e vive para melhorar a vida.

Kim avistou um ruth, ou carro de bois familiar, alegremente ornamentado, com um dossel bordado de duas cúpulas, como um camelo de duas bossas que acabara de entrar no parao. Oito homens constituíam o seu séquito e dois dos oito estavam armados com sabres enferrujados - sinais seguros de que seguiam uma pessoa distinta, pois o povo comum não transporta armas. Um crescente cacarejo de queixas, ordens e gracejos e o que, para um europeu, teria sido considerado como linguagem grosseira, vinha de detrás das cortinas. Aqui estava evidentemente uma mulher habituada a mandar.

Kini. lançou uma vista de olhos ao séquito, em ar de crítica. Metade deles eram ooryas de pernas magras e barbas grisalhas, do interior. Os outros eram montanheses do norte, vestidos de lã grossa, com chapéus de feltro; e essa mistura contava a sua história, mesmo que ele não tivesse escutado o incessante pugilismo entre as duas secções. A velha senhora ia para sul, numa visita - provavelmente a um parente rico, muito provavelmente a um genro, que lhe mandara uma escolta como sinal de respeito. Os montanheses seriam da gente dela - povo de Kulu ou Karigra. Era bastante claro que ela não estava a levar a filha para a casar, senão as

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cortinas teriam rendas e a guarda não teria deixado ninguém aproximar-se do carro. Uma dama alegre e espirituosa, pensou Kini, balançando o estrume numa mão, a cornida cozinhada na outra e guiando o lama com toques de ombro. Alguma vantagem podia ser retirada do encontro lama não ajudaria, mas, como urn chela consciencioso, Kim estava encantado por mendigar pelos dois.

Fez a fogueira tão perto da carroça quanto se atreveu, esperando que um da escolta o mandasse embora lama deixou-se cair penosamente no chão, corno um morcego comedor de fruta se aninha, e voltou ao seu rosário.

- Afasta-te mais, mendigo! - A ordem foi gritada em macarrónico hindustãni por um dos montanheses.

-Ali! É só um pahari [um montanhês] - disse Kim, por cima do ombro. - Desde quando os idiotas das montanhas são donos de todo o Indostão?

Kim

A resposta foi um veloz e brilhante esboço da árvore genealógica de Kim ao longo de três gerações.

- Ali! - A voz de Kini estava mais doce que nunca, enquanto partia o exeremento em bocados certos. - No meu país chamamos a isso o começo de uma conversa amorosa.

Um cacarejo irritante, fino, atrás das cortinas, pós o montanhês à prova para uma segunda tentativa.

- Nada mal... nada mal - disse Kini calmamente. - Mas tem cuidado, meu irmão, para que nós... nós, digo eu... não te lancemos uma maldição ou isso em troca. E as nossas maldições têm a capacidade de corroer

casas.

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Os ooryas riram-se- o montanhês deu um salto para a frente, ameaçadoramente lama, ãe súbito, ergueu a cabeça, mostrando à luz da fogueira começada por Kini a sua enorme boina.

- Que é? - perguntou ele.

O homem estacou, como se tivesse sido transformado em pedra. -Eu... eu... estou salvo de um grande pecado -gaguejou.

- O estrangeiro finalmente descobriu um padre para ele - sussurrou um dos ooryas.

- Ai! Por que é que esse fedelho mendigo não é bem castigado? gritou a velha mulher.

O montanhês voltou à carroça e murmurou qualquer coisa para a cortina. Houve um silêncio de morte, depois um resmungo.

"Isto vai bem", pensou Kini, fingindo não ver nem ouvir.

- Quando... quando ele comer - começou o montanhês, baj ulando Kini - pede... pede-se que o Santo dê a honra de falar com quem gostaria de falar com ele.

-- Quando ele comer, irá dormir - retorquiu Kiní, altivamente. Não conseguia ver que volta o jogo levara, mas permanecia na resolução de lucrar com ele. - Agora vou arranjar-lhe a comida. - A última frase, dita claramente, terminou com um suspiro, como de debilidade.

- Eu... eu mesmo e a minha gente trataremos disso... se nos for permitido.

- É permitido - disse Kim, mais arrogante que nunca. - Santo, esta gente trar-nos-á comida.

-A terra é boa. Toda a região do sul é boa... um mundo imenso e terrível - murmurou o lama, sonolento.

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- Deixai-o dormir - disse Kini -, mas cuidai para que sejamos berri alimentados quando ele acordar. Ele é um homem muito santo.

De novo um dos ooryas disse algo desdenhosamente.

- Ele não é um faquir. Não é um mendigo do sul - continuou Kini severamente, dirigindo-se às estrelas. - Ele é o mais santo dos santos. Está acima de todas as raças. Eu sou o seu chela.

- Vem cá! - ordenou a monótona voz fininha, atrás da cortina- e Kini foi, consciente de que olhos que não conseguia ver o observavam. m ma~ gro dedo castanho, pesado dos anéis, estava pousado na borda da carroça e a conversa decorreu deste modo:

- Quem é aquele?

- Um homem extremamente santo. Vem de muito longe, Vem do Tibete, - De onde, no Tibete?

- De detrás das neves... de um lugar longínquo. Ele conhece as estrelas; faz horóscopos; lê nascimentos. Mas não faz isto por dinheiro. Fá-lo por gentileza e grande caridade. Eu Sou seu discípulo. Também me chamam Amigo das Estrelas.

- Tu não és montanhês.

- Pergunta-lhe. Dir-te-á que eu lhe fui enviado pelas estrelas, para lhe mostrar um objectivo para a peregrinação dele.

- Pf11! Toma atenção, fedelho, que eu sou uma mulher velha e não completamente tola. Conheço lamas e faço-lhes reverência, mas tu és tanto um legítimo chela como este meu dedo é o timão desta carroça. Tu és um hindu sem casta... um mendigo arrojado e desavergonhado, ligado ao Santo provavelmente na mira do lucro.

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- Não trabalhamos todos para ganhar? - Kini mudou prontamente de tom, para condizer com aquela voz alterada. - Ouvi dizer... - Esta era uma seta atirada ao acaso. - Ouvi dizer...

- Que- ouviste tu dizer? - atirou ela, batendo com o dedo,

- Nada de que me lembre bem, mas uma conversa nos bazares, que é Sem dúvida uma mentira, que até os rajás... pequenos raj ás montanheses... - Mas, não obstante, de bom sangue raj .aputro.

- Indubitavelmente de bom sangue, Que até estes vendem as mais dignas das suas mulheres do povo, pelo lucro. No sul vendcm~nas... a zeMindares e outros semelhantes de Oudh.

Se há uma coisa no mundo que os pequenos rajás montanheses negam, é precisamente esta acusação- mas acontece ser uma coisa em que os bazares acreditam, quando discutem os misteriosos tráficos de escra~ vos da índia. A velha senhora explicou a Kim, num murmúrio tenso, indigriado, exactamente que tipo e estilo de maligno mentiroso ele era. TiVesseKim insinuado isto quando ela era rapariga, teria sido espancado até RwKi 1Ur,

à morte nessa mesma noite por um elefante. Isto era a Perfeita Ve - Ai! Sou apenas um fedelho de um mendigo, como disse o () Beleza - gemeu ele, num extravagante pavor.

- Olho de Beleza, pois sim! Quem Sou eu, para tu me atirares de mendigo? - E, ainda assim, riu~se da palavra há multo e q A s um

Há quarenta anos isso poderia ter sido dito, e não sem verdade. s.. trinta anos. Mas é culpa deste vaguear pelo Hind que a viúva de deva empurrar toda a escumalha da terra e seja transformada ern dos mendigos.

- Grande Rainha - disse Kim prontamente, pois ouviu-a tre que eu sou; indignação -, eu até sou o que a Grande Rainha diz que eu sou; obstante, o meu mestre é santo. Ele ainda não ouviu a ordem da Rainha de...

- Ordem? Eu, ordenar a um santo... um Mestre da Lei... para vir a uma mulher? Nunca!

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- Condói-te da minha estupidez. Pensei que fosse dito como dem ...

- Não foi. Foi um pedido. isto deixa tudo claro?

Uma moeda de prata tilintou na borda da carroça. Kim pegou fez um salamaleque profundo. A velha senhora reconheceu que, os olhos e os ouvidos do lama, cairia nas boas graças.

- Sou apenas o discípulo do Santo. Quando acabar de comer, ele venha.

- Ali, patife e tratante desavergonhado] - 0 indicador cobe jóias acenou para ele com reprovação; mas ele põde ouvir o riso a da velha senhora. m

- Não, o que é isto? - perguntou ele, caindo no seu tom ciante e confidencial... aquele a que, ele bem o sabia, poucos COnse resistir. - É ... é preciso algum filho na tua família? Fala livrerne nós, sacerdotes... - Aquela última era um plágio directo de uni fa estava junto da Porta de Taksali.

- Nós sacerdotes! Tu não tens ainda idade para.. reprirnill da com outra risada. - Acredita em mim, de vez em quando n lheres, o sacerdote, pensamos noutras coisas para além de filhosdisso, a minha filha deu à luz o seu filho homem. ra

-Duas setas na aljava é melhor do que uma; e três é ainda C1h -C Knil citou o provérbio com uma tosse meditativa, olhando discrel na direcção da terra.

- Verdade... ah, é verdade. Mas talvez isso aconteça. Claro Vel,

do sul 'O completamente inúteis. Mandei-lhes ofertas e dio de novo ofertas e eles vaticinaram.

Ib- fez Kin, lentamente, com infinito desprezo -, eles vaticina- 1 não teria conseguido fazer melhor.

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WIn profissiona s próprios deuses é que as minhas "ó quando me lembrei dos meu

wn ouvidas. Escolhi uma altura auspiciosa e... talvez o Santo te- 4do falar do abade do convento de Lung-Cho. Foi a ele que eu pus loc, observado em devido tempo, tudo aconteceu como eu desejei.

pai do filho da minha filha tem dito desde então que me na casa do

W das orações dele... o que é um pequeno erro que lhe explicarei ffiegarmos ao fim da nossa viagem. E então depois vou para Buddh wr shraddha para o pai dos meus filhos.

Nra lá vamos nós.

Duplamente auspicioso - chilreou a velha senhora. - Um sefflho, finalmente!

hAmigo do Mundo! - 0 lama acordara e, tão simplesmente como hoça desorientada numa cama estranha, chamou Kim.

0 vou! Lá vou, Santo!

dipitou-se para a fogueira, onde encontrou o lama já rodeado de Ékcomida, os montanheses visivelmente a adorá-lo e os habitantes Omecendo mal dispostos.

áfastem-se. Vão~se embora. - gritou Kuri. - Comemos em púOmo os cães?

núnaram a refeição em silêncio, cada um com as costas meio viraà as do outro e Kini rematou-a com um cigarro feito pelos nativos. Eu não disse umas cem vezes que o sul é uma boa terra? Aqui está ELUOsa e nobre viúva de um rajá montanhês, em peregrinação, diz Wdh Gaya. É ela que nos manda esse-s pratos; e quando tu estivehlrcPOusado ela gostava de falar contigo.

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lât0 tambérn é obra tua? - 0 lama mergulhou na sua cabaça. Quen1 mais Olhou por ti desde que a nossa viagem maravilhosa coOs olhos de Kini dançaram~lhe na cabeça quando soprou o

~ Pelas narinas e- se estendeu no chão empoeirado. -já me Vigiar os teus confortos, Santo?

'M bênção para ti- - 0 lama inclinou a sua solene cabeça. - CohilútOs homens na minha longa vida e não poucos discípulos. Mas kbxl entre os hornens, se tu nasceste de uma mulher, se abandonou Çã C(

Corno aconteceu contigo... és ponderado, discreto e cortês, 07 COIS

qua,01quer a de diabrete. Kim

RU42

- E eu nunca vi um sacerdote como tu. - Kin-i atentou na face ama-

rela, ruga por ruga. - Há menos de três dias que tomámos a estrada juntos e é como se fossem cem anos.

- Talvez numa vida anterior me tivesse sido permitido prestar-te algum serviço. Talvez - sorriu - eu te tivesse libertado de uma armadilha; ou, tendo~te apanhado num anzol nos tempos em que não estava iluminado, te tenha lançado de novo no rio.

- Talvez - disse Kini calmamente. Ouvira este tipo de especulação muitas e muitas vezes, da boca de muitos que os ingleses não considerariam imaginativos. - Agora no que diz respeito àquela mulher da carroça, eu penso que ela precisa de um segundo filho para a filha dela.

- Isso não faz parte do Caminho - suspirou o lama. - Mas, pelo menos, ela é das montanhas. Ali, as montanhas e a neve das montanhas! Ergueu-se e encaminhou-se para a carroça. Kini teria dado as orelhas

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para ir também, mas o lama não o convidou-, e as poucas palavras que apanhou eram numa língua desconhecida, pois eles falavam alguma linguagem comum nas montanhas. A mulher parecia fazer perguntas que o lama examinava cuidadosamente antes de responder. De vez em quando ouvia a cadência monótona de uma citação chinesa. Era um estranho quadro que Kini observava entre pálpebras semicerradas lama, muito direito e empertigado, as pregas fundas da sua veste amarela fendidas de preto à luz das fogueiras do parao, precisamente como um tronco de árvore com nós é fendido pelas sombras do Sol baixo, dirigia a palavra a um ruth prateado e lacado, que faiscava como uma jóia multicor, com a mesma luz incerta. Os desenhos nas cortinas trabalhadas a ouro corriam para cima e para baixo, desvanecendo-se e tornando a formar-se quando as pregas baloiçavam e tremiam ao vento nocturno; e, quando a conversa ficava mais séria, o indicador cheio de jóias lançava pequenas faíscas de luz entre os bordados. Atrás da carroça havia uma parede de escuridão incerta, salpicada de pequenas chamas e cheia de formas, rostos e sombras indistintos. As vozes do entardecer tinham-se transformado pouco a pouco num sussurro que acalmava, cuja nota mais forte era o pisar re£,ular dos bois sobre a sua palha cortada e cuja nota mais alta era o tilintar de um sitar de bailarinas bengalis. A maior parte dos homens comera e tirava longas cachimbadas por cachimbos de água gorgolejantes, gunhidores, que, em plena actividade, soavam como ras.

Por fim, o lama regressou. Um montanhês caminhava atrás dele com uma coberta de algodão acolchoada, e estendeu-a cuidadosamente junto da fogueira.

"Ela merece dez mil netos", pensou Kini. "Não obstante, se não fosse cu estas ofertas não surgiriam. "

0 lama relaxou, articulação Uma mulher virtuosa... e sensata.

por articulação, como um camelo vagaroso. - 0 mundo está cheio de caridade para com aqueles que seguem o Caminho. - Lançou uma generosa metade da coberta sobre Kini.

- E que disse ela? - Kini enrolou-se na sua metade.

- Fez-me muitas perguntas e pos-me muitos problemas... a maior parte dos quais consistia em histórias fúteis que ouvira de padres servidores do diabo que fingem seguir o Caminho. A alguns respondi, outros disse-lhe que eram disparatados. Muitos usam a batina, mas poucos permanecem no Caminho.

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- Verdade. Isso é verdade. - Kint utilizava o tom amável, conciliador, daqueles que desejam obter confiança.

- Mas, pelo seu discernimento, ela tem um espírito bastante recto. Desejava enormemente que nós fôssemos com ela para Buddh Gaya; a estrada dela é a nossa, se bem entendo, por muitos dias de viagem em direcção ao sul.

- E?

- Um pouco de paciência. A isto eu disse que a minha Busca vinha antes de todas as coisas. Ela ouvira muitas lendas insensatas, mas esta grande verdade sobre o meu rio nunca ouvira. Assim são os padres das montanhas mais baixas. Ela conhecia o abade de Lung-Cho, mas não sabia da existência do meu rio... nem a história da Seta.

-E? - Por isso, falei-lhe da Busca e do Caminho e de assuntos que eram proveitosos, desejando ela unicamente que eu a acompanhasse e fizesse orações para um segundo filho,

- Ali! "Nós, mulheres" não pensamos em nada excepto em crianças - disse Kini, ensonado.

- Agora, já que as nossas estradas segucinjuntas por um tempo, não veio que de algum modo nos vamos desviar da nossa Busca se a acompanharmos, pelo menos até... esqueci-me do nome da cidade.

- Eli! - disse Kint virando-se e falando num sussurro fininho para um dos ooryas, afastado uns metros. - Onde é a casa da tua patroa?

- Um pouco depois de Saliarimpore, entre os pomares. - Nomeou a aldeia,

- Era esse o lugar - disse o lama. - Até lá, pelo menos, podemos ir COM ela. Rudyard Kípling

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- As moscas vão para o excremento - disse o oorya, numa voz abstracta.

- Para uma vaca doente, um corvo; para um homem doente, um brãmane. - Kini soprou o provérbio impessoalmente, na direcção das copas escuras das árvores, por cima dele.

0 oorya deu um grunhido e calou-se. - Então vamos com ela, Santo?

- Há algum impedimento? Posso mesmo assim desviar~me e experi~ mentar todos os rios que a estrada atravesse. Ela deseja que eu vá. Deseja-o veementemente.

Kim abafou uma gargalhada na coberta. Uma vez que aquela velha se~ nhora imperiosa recuperasse do seu natural receio de um lama, ele pensava que era provável que valesse a pena ouvi-Ia.

Estava quase a dormir quando o lama, subitamente, citou um provérbio:

- Os maridos das tagarelas têm uma grande recompensa na outra vida. - Depois, Kim ouviu-o fungar três vezes e adormeceu, ainda a rir. 0 alvorecer, com um brilho de diamante, acordou homens e corvos e

bois simultaneamente. Kim sentou-se e bocejou, sacudiu-se e estremeceu de prazer. Isto era ver o mundo como um facto real; isto era a vida como ele gostava - a azáfama e gritaria, afivelar os cintos e castigar os bois e fazer chiar as rodas, acender fogueiras e cozinhar a comida c novas vistas a cada viragem do olho aprovativo. A neblina matinal desapareceu numa espiral de prata, os papagaios dispararam para algum rio distante em estridentes hostes verdes: todas as rodas de poço ao alcance do ouvido começaram a trabalhar. A India estava acordada e Kim. estava no meio dela, mais acordado e excitado que ninguém, mastigando um galho que usava presentemente Como escova de dentes, pois adoptava a torto e a direito os costumes do país que ele conhecia e amava. Não havia necessidade e se preocupar com comida - nenhuma necessidade de gastar um caurim na, barracas apinhadas. Era discípulo de um santo reunido a uma velha senhora de vontade forte. Todas as coisas seriam preparadas para eles e, quando fossem respeitosamente convidados para o fazer, sentar-se-iam , comeriam. Quanto ao resto - aqui Kin-i deu uma risadinha. enquanto liril--

- a sua anfitriã iria aumentar bastante o divertimento d pava os dentes

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estrada. Inspeccionou os bois dela com ar crítico, quando surgiram row cando e soprando debaixo das cangas, Se fossem muito depressa - não era provável -, haveria um assento agradável para ele ao longo do timão; o lama sentar-se-ia ao lado do condutor. A escolta, claro, caminharia. A ve-

Kim

lha senhora, era igualmente claro, falaria muito e, pelo que ele ouvira, essa conversa não teria falta de sal. Ela já estava a ordenar, a arengar, a repreender e, deve ser dito, a amaldiçoar os seus criados pelo atraso.

- Dêem-lhe o cachimbo dela. Em nome dos deuses, dêem~lhe o cachimbo e detenham aquela boca agoirenta - gritou um oorya, atando as trouxas disformes de roupa e colchões. - Ela e os papagaios são iguais. Guincham ao amanhecer.

- Os bois da frente! Ai! Olhem para os bois da frente! - Recuavam e rodavam enquanto o eixo de uma carroça de cereais os apanhava pelos chifres. - Filho de uma coruja, onde vais? - isto para o sorridente carreteiro.

- Ai! Ai! Ai! Aquela ali dentro é a rainha de Délhi, que vai rezar por um filho - tornou o homem, por cima da sua alta carga. - Espaço para a rainha de Délhi e para o seu primeiro-ministro, o macaco cinzento que trepa pela espada acima. - Outro carreteiro carregado de peles para uma fábrica de curtumes do sul seguia mesmo atrás e o seu condutor acrescentou alguns elogios enquanto os bois do ruth recuavam cada vez mais.

De detrás das cortinas que sacudiam veio uma torrente de invectivas. Não demorou muito, mas em género e qualidade, em expressões empoladas e picantes, ultrapassava tudo o que o próprio Kin-i alguma vez ouvira. Ele põde ver o peito nu do carreteiro esvaziar com o assombro, enquanto o homem fazia salamaleques reverentes para a voz, saltou do timão e ajudou a escolta a puxar o seu vulcão para a estrada principal. Aqui, a voz disse-lhe verdadeiramente com que tipo de mulher se tinha casado e o que é que ela estava a fazer na sua ausência.

- Oli, shabash! - murmurou Kim, incapaz de se conter, quando o homem se foi embora.

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- Bem feito, não? É uma vergonha e um escândalo que uma pobre mulher não possa ir rezar aos seus deuses sem ser empurrada e insultada Por toda a escória do Indostão... que tenha que comer gâ1i [injúrias] cri~ quanto os homens comem manteiga. Mas eu ainda tenho uma sacudidela para dar à língua, uma palavra ou duas bem ditas que sirvam a ocasião. E ainda estou sem o meu tabaco! Quem é o zarolho e infeliz filho da vergonha que ainda não preparou o meu cachimbo?

de esEste foi trazido apressadamente por um montanhês e um reosItoava. respesso fumo vindo de cada canto das cortinas mostrou que a paz

tabelecida. Se Kim caminhara orgulhosamente no dia anterior, discípulo de um santo, hoje caminhava com um orgulho dez vezes maior no cortejo de R rd Kip

uma procissão semi-real, cora um reconhecido lugar sob a pro de uma velha senhora de modos encantadores e infinita habilidade. colta, com as cabeças atadas à maneira nativa, alinhava de cada Ia carroça, levantando enormes nuvens de pó.

O lama e Kim caminhavam um pouco para um lado; Kini njasti a sua vara de cana-de-açúcar e não deixando passar ninguém ab categoria de padre. Podiam ouvir a língua da velha senhora est lar

o uma máquina de descascar arroz. Mandara gularmente com a a contar-lhe o que se passava na estrada, e, assim que ficaram fora da do parao, afastou as cortinas e apareceu, o véu um terço fora do ro seus homens não a olhavam directamente quando se dirigia a eles sim, as conveniências eram mais ou menos observadas.

Um superintendente da Polícia Distrital, escuro, amarelado, i velmente uniformizado, um inglês, passou a trote num cavalo fati vendo pelo séquito que tipo de pessoa ela era, arreliou-a.

- ó mãe - gritou -, fazem isto nos haréns? Supõe que passa glês e vê que tu não tens nariz?

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- O quê? - ripostou ela com voz estridente. - A tua mãe não nariz? Porque dizê-lo, então, na estrada?

Era um contra-ataque justo inglês levantou a mão com o um homem atingido na esgrima. Ela riu-se e acenou.

- será isto um rosto para tentar a virtude? - Retirou todo o olhou-o fixamente.

Não era de modo nenhum encantador, mas, enquanto juntava deas, ele chamou-lhe Lua do Paraíso, Perturbadora da integridade guns outros epítetos fantásticos que a encheram de júbilo .

- isso é uma nut-cut [trapaça! - disse ela. - Todos os POlíc' il I nut-cuts; mas os funcionários são os piores. Ai, meu filho, t nunca

este de Belait IEuropal . Quem arnara deste tudo isso desde que vi .te, Ie - Uma pahareen... uma montanhesa de Dalhousic, minha RI

da a tua beleza sob uma sombra, o Distribuidora de Encantos. -E embora.

- Este é o modo - assumiu um belo tom judicial e encheu a t1 conhecera a e pan. - Este é o modo de fiscalizar a justiça. Eles

costumes da terra. Os outros, todos os novos da Europa, arriara por mulheres brancas e aprendendo as nossas línguas pelos livros, são res que a peste. Eles fazem mal aos reis. 0, poraleno

Depois contou uma história longa, longa ao nuind

mente, sobre um jovem e ignorante polícia que incomodara uni

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Kim

oniles, p u , no caso de uma vulgar quesrimo dela era nono gra

00, rematando corri citação de uma actividade de modo ne~ta.

a disposição dela mudou e ela mandou um da escolta pergunWa caminharia ao seu lado, para discutirem assuntos de religião. í&a regressou ao pó e à sua cana-de-açúcar. Durante uma hora ou ~de boina do lama apareceu como uma lua através da névoa; e, o o que ouviu, cluiu que a velha mulher chorava. Um dos Ip - Kini con

se desculpou pela sua insolência na noite anterior, dizendo nnhecera a sua patroa com um temperamento tão doce e atrio à presença do estranho sacerdote. Pessoalmente, ele acreditava em ws, enibora, corno todos os nativos, estivesse vivamente consciente qstúcÍa e da sua cobiça. Ainda assim, quando os brãmanes não fa:não irritar com pedidos mendicantes a mãe da mulher do seu amo io ela os mandava embora tão zangada que eles amaldiçoavam toda âva (o que era a causa real para o facto de o segundo boi do lado de ~ e de o timão se ter perdido na noite anterior), ele estava prepaKa aceitar qualquer sacerdote de qualquer outra comunidade relik= ou fora da India. A isto, Kini aquiescia com prudentes acenos iou o oorya verificar que o lama não aceitava dinheiro e que o custo konúda e da de Kini seria recompensado cem vezes com a boa sor<uidaria da caravana de aqui em diante. Contou também histórias licidade de Lahore e cantou uma ou duas cantigas que fizeram rir a LCOMO um rato de cidade, bem conhecedor das últimas cantigas dos ODáMOS compositores - são mulheres na sua maior parte -, Kini §[na vantagem distinta sobre homens de uma pequena aldeia frutíco'à SaharunPore, mas deixou essa vantagem ser demonstrada. ~dia desviaram-se para comer e a refeição foi boa, abundante MMida, em pratos de folhas limpas, com decência, fora do movi~ 0& POeira. Deram os restos a determinados mendigos, que todos os Om deviam ser cumpridos, e sentaram-se para uma longa, volupkW0 de fumo. A velha senhora retirou-se para detrás das suas cor"5nústurava-se, à vontade na conversa, os criados discutindo com &Eftadizendo~a, Como fazem os criados por todo o Leste, Ela comh*frescura c os pinheiros das montanhas de Kangra e Kulu com o pó .MF

eiras do sul; contou uma história sobre alguns velhos deuses e`trCMo do território do seu marido; disse redondamente mal do estava a fumar nessa altura, insultou todos os brâmanes e es~ Sel'Q reservas acerca da vinda de muitos netos. Aqui volto eu para os meus de novo Alimentado, perdoado e conhecido de novo Reclamado pelo sangue do meu sangue de novo, E aparentado com a carne da minha carne!

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0 vitelo mais gordo foi preparado para mim, Mas as peles têm para mim mais gosto,

Penso que os meus porcos serão melhores para mim, Por isso vou para as pocilgas de novo.

k-* br, >, 4 0 Filho Pródigo

~ez rnais o cortejo indolente, ocioso, arrastado se pôs a caminho ia~iu até chegarem à paragem seguinte. Era uma marcha muito a e Wtava uma hora para o pôr do Sol, por isso Kint afastou-se para ~rn meio de diversão.

--*s por que não sentar e descansar? - disse um da escolta. - Só ~ os ingleses andam de um lado para o outro sem motivo. '*'*lica faças amizade com o Diabo, com um macaco ou com um raON*Lérn sabe o que farão a seguir - disse o seu companheiro. W~tou as costas com desprezo - não queria ouvir a velha história 0M*r Diabo brincou com os rapazes e se arrependeu - e caminhou *^ente pelo meio do campo.

'D ^ foi atrás dele. Todo esse dia, sempre que passavam por um curh áffi, ele se desviara para o olhar, mas em nenhum dos casos recebeu k^viso de que encontrara o seu rio. Insensivelmente, também, o k^ falar com alguém numa língua razoável e de ser conveniente"4,)do e respeitado como seu conselheiro espiritual por uma mu"X* iascida afastara um pouco os seus pensamentos da Busca. E,

le estava preparado para passar anos tranquilos na sua detinha nada da impaciência do branco, mas sim unia imensa fé. 4. e vais? - gritou atrás de Kim.

,nhum lugar... o andamento era lento e tudo isto - Kini aceL. à, niãos em diferentes direcções - e novo para mim .

sem dúvida, uma mulher sensata e distinta. Mas é difícil meF 1lo... Rudyard lín

ffim

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Todas as mulheres são assim. - Kini falava como, possivelmente, o fizera Salomão.

- À frente do convento havia uma ampla plataforma - murmurou o lama, levantando o rosário já gasto - de pedra. Nela eu deixei as marcas dos meus pés... dando passos de um lado para o outro com estas.

Fez estalar as contas e começou 0 "0, ane, pudrne hurn" da sua devoção, grato pela frescura, calma e ausência de po.

Uma coisa após outra levou os olhos indolentes de Kim através da planície. Não havia objectivo nos seus devaneios, exccPtO que a construçao das cabanas próximas parecia nova e- ele desejava investigar.

Chegaram a uma grande extensão de terreno de pasto, castanho e- púrpura à luz do entardecer, com uma densa mata de mangueiras ao centro. Surpreendeu Kini a particularidade de não haver nenhum altar num sítio tão favorável: o rapaz era observador como qualquer padre, nestas coisas. Longe, do outro lado da planície, caminhavam lado a lado quatro homens,

istância. olhou atentamente com as palmas das mãos diminuídos pela d

u o reflexo do bronze. curvadas sobre os olhos e detecto

oldados brancos1 - disse ele. - vamos ver.

- Soldados . S os os dois sozinhos. Mas - Há sempre soldados quando tu e eu saím

eu nunca vi os soldados brancos. quando estão bêbados. Fica atrás des- - Eles não fazem mal, xcCPtO

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ta árvore. os troncos, na escuridão fresca do bosq, 'e Esconderam-se atrás dos gross as outras duas avançaram de mangueiras. Duas pequenas figuras pararam;

com indecisão. Eram a guarda-avançada de um regimento em marcha, enviados, como de costume, para marcar o acampamento. Carregavam Paus flutuando e chamavam-SC uns aos outros, de metro e meio com bandeiras

enquanto se espalhavam pela terra plana.

por fim, entraram no mangal, caminhando pesadamente.

- É aqui ou perto daqui... as tendas dos oficiais debaixo das árvores, suponho eu, e nós, os restantes, podemos ficar cá fora, Eles demarcaram lá atrás o local para as carroças da bagagem? as à distância e a resposta Gritaram outra vez para os seus camarad

grosseira chegou a este lado ténue e doce.

- coloca a bandeira aqui, então - disse um-

- Que preparam eles? - perguntou o lama, pasmado. - Este é uni imenso e terrível mundo . Qual é a divisa na bandeira? iu com de,- um soldado espetou um bordão a uns metros deles, grunh

contentamento, retirou-o de novo, conferenciou com 0 seu cornpatlhc"

ro e este inspeccionou a sombreada caverna de folhagem e devolveu-o . Kini observava com mil olhos, a respiração saindo breve e entrecortada por entre os dentes. Os soldados afastaram-se para a luz do Sol.

- o Santo! - arquejou ele. - 0 meu horóscopo! 0 desenho feito na poeira pelo padre, em Umballa! Recorda o que ele disse. Primeiro vêm dois ... ferashes... para preparar todas as coisas... num lugar escuro,

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como é sempre no princípio de uma visão.

.- Mas isto não é visão - disse o lama. - É a ilusão do mundo e nada mais.

- E depois deles vem o Touro, o Touro Vermelho no campo verde. Olha I É ele!

Apontou para a bandeira que sacudia e estalava ao sabor da brisa da noite, a menos de três metros de distãncia. Não era mais do que uma vulgar bandeira demarcadora de acampamento; mas o regimento, sempre meticuloso em questões de moda, preenchera-a com a divisa do regimento, o Touro Vermelho, que é o brasão dos Mavericks - o grande Touro Vermelho num fundo de verde irlandês.

- Estou a ver e agora recordo-me - disse o lama. - Decerto é o teu Touro. Decerto, também, os dois homens vieram para preparar tudo.

- São soldados... soldados brancos. Que disse o padre? "0 sinal à frente do Touro é o sinal de guerra e homens armados. " Santo, esta coisa põe-me em contacto com a minha Busca.

- Verdade. É verdade. - 0 lama olhou fixamente para a imagem que brilhava como um rubi ao anoitecer. - 0 padre em Umballa disse que o teu era o signo da guerra.

- Que fazer agora?

- Esperar. Esperemos.

-Agora até a escuridão aclara - disse Kim.

Era o mais natural, que o Sol descendente por fim incidisse no meio dos troncos das árvores, pelo bosque, enchendo-o de pálida luz dourada Por uns ininutos; mas, para Kim, era símbolo da profecia do brãmane de Urriballa.

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- Escuta! - disse o lama. - Tocam um tambor, lá longe!

A Princípio o som, diluído no ar sossegado, fazia lembrar o latejar de artéria na cabeça. Cedo, uma vivacidade foi acrescentada.

- Ah! A música - explicou Kim. Ele conhecia o som de uma banda de rcgirnento, mas isto assombrava o lama.

lO extreino da planície, uma coluna pesada, empoeirada, movia-se à ''Sta- I)CPois, o vento trouxe a melodia: Rudyard ~

ffim

Imploramos a vossa condescendência Para vos contar o que sabemos

Da marcha nos Mulligan Guards Descendo até Sligo Port!

(Aqui irromperam os pífaros estridentes)

Fizemos ombro-armas

Marchámos - partimos De Phoenix Park Marchámos até Dublin Bay. Os tambores e os pífaros Oli, docemente tocaram.

Enquanto nos marchámos - marchámos - marchámos -

com os

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Muiligan Guards!

ho; Era a banda dos Mavencks, tocando para o acampamento, pois os

mens estavam em marcha de treino com a sua bagagem. A coluna sussurrante entrou na área plana - carroças atrás -, dividiu-se em esquerda e di.' reita, andaram a correr de um lado para o outro como um formigueiro, e...

- Mas isto é feitiçaria! - disse o lama. li A planície salpicou-se de tendas que pareciam elevar~se, todas esm lhadas, a partir das carroças. Outra torrente de homens invadiu o bosque, montou uma enorme tenda em silêncio, levantou ainda mais oito ou nOvé junto dela, trouxe recipientes de cozinha, frigideiras e trouxas de que uma multidão de criados nativos se apoderou; e viram o man jal transfomw- 9

-se numa metódica cidade, enquanto vigiavam!

- Vamos - disse o lama, recuando receoso, enquanto as fogueirO cintilavam e oficiais brancos com espadas que tiniam entravam cOM u" 1 ponência na messe.

Recua para a sombra. Ninguém consegue ver para lá da luz da f011 gueira - disse Kim, os olhos ainda na bandeira. Antes, nunca observarí a rotina de um regimento experimentado montando acampamento 0 trinta minutos.

, um padre. i - Olha! Olha! Olha! - cacarejou o lama. - Ali ven, ento coxeandO, Era Bermett, o capelão da Igreja de Inglaterra do regim

i de preto, empoeirado. Alguém do seu rebanho fizera alguns cornentár 00 OCO

insolentes acerca da coragem do capelão; e, para o atrapalhar, Beo marchara passo a passo com os homens ne 1sse dia. A batina Preta, cruz

1

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no correntedo relógio o rosto barbeado e o mole chapéu preto de caracterizá-lo-iam como um santo em qualquer parte, em toda a

1)eixou-se cair numa cadeira portátil junto da porta da messe e tibotas. Três ou quatro oficiais j untaram-se à volta dele, r-indo e zomlia.

A conversa dos homens brancos é completamente carente de dig-disse 0 lama, que julgava apenas pelo tom. - Mas eu considecompostura daquele padre e penso que ele é instruído. É possível que

apreenda a nossa linguagem? Gostava de lhe falar na minha Busca. Nunca fales com um homem branco enquanto ele não estiver alido - disse Kini, citando um conhecido provérbio. - Eles irão co-

agora, e... e eu penso que eles não são bons para se lhes mendigar. Varegressar ao lugar de repouso. Depois de termos comido, voltamos vez. Era realmente um Touro Vermelho... o meu Touro Vermelho.

Estavam ambos visivelmente distraídos quando o séquito da velha seição à frente; por isso, ninguém quebrou a reserlhes colocou a refe

Agdeles, já que não traz sorte aborrecer hóspedes.

er,. Agora - disse Kim, palitando os dentes - regressaremos àquele ~, mas tu, ó Santo, deves esperar um pouco afastado, porque os teus "¥bsào mais pesados que os meus e eu estou ansioso por ver mais sobre `~e Touro Vermelho,

o - Mas como podes tu compreender a conversa? Caminha devagar. A ~ é escura - replicou o lama, inquieto.

Mm pôs a questão de lado.

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**",-Eu marquei um lugar certo das árvores - disse ele - onde tu po~Senta --s,eleamté eu ~tha a uNeãeot-aé canrnquahatoB o amaa fa cauda0a espécie de Z 0 -r braC e dae q. in ri uslca B uzsi a meu Touro 4bMelho sinal nas estrelas nao era para ti. Eu conheço um pouco dos ~es dos soldados branco

s e desejo sempre ver algumas coisas novas. * - Que é que tu não conheces neste mundo? - 0 lama agachou-se > d*dienternente

cavidade de

numa pequena

cem medo terreno, a menos

*18 do Inaciço das mangueiras escuras, contra o céu sarapintado de es~ 1,,JW "-Fica até eu te chamar.

IQIn embrenhou-se no escuro. Sabia que havia todas as probabilidades ren1 sentinelas à volta do acampamento e sorriu consigo mesmo, Ouviu as grossas botas de uma. Um rapaz que consegue fugir por telhados da cidade de LahOre numa noite de luar, utilizando cada 0 e cantinho de escuridão para desconcertar o seu perseguidor, Rud"a , v ~lin

não é provável que seja detectado por uma linha de soldados bem treina~ dos. Deu-lhes a honra de rastejar por entre dois deles e, correndo e parando, inclinando-se e estendendo-se de barriga para baixo, encaminhou-se na direcção da messe iluminada, onde, colado atrás da mangueira, esperou até que alguma palavra casual lhe desse uma indicação aceitável.

A única coisa que estava agora na sua mente era obter mais informações sobre o Touro Vermelho. Tanto quanto sabia, e as suas limitações eram tão curiosas e súbitas como as suas expansões, os homens, os novecentos rematados diabos da profecia do seu pai, podiam rezar em lou~ vor do animal depois do anoitecer, como os hindus rezam à Vaca Sagrada. isso, pelo menos, seria inteiramente certo e lógico e o capelão da cruz de ouro seria, por consequência, o homem a consultar sobre o assunto. Por outro lado, lembrando-se de capelães de rosto

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sóbrio que ele evitara na cidade de Lahore, o padre podia ser um inquisitivo aborrecimento que o mandasse instruir-se. Mas não ficara comprovado em Umballa que o seu signo nos altos céus pressagiava guerra e homens armados? Não era ele o Amigo das Estrelas bem como do Mundo, a abarrotar de segredos terríveis? Por último - e em primeiro lugar como corrente de todos os

le não conhecesse seus rápidos pensamentos -, esta aventura, embora e

a palavra inglesa, era uma estupenda brincadeira - uma encantadora continuação dos seus velhos voos pelos terraços, bem como o cumprimento de sublime profecia. Deitou-se de barriga no chão e serpenteou na direcção da porta da messe, com uma mão no amuleto que tinha à volta do pescoço.

Era como ele suspeitara. Os sahibs rezavam ao seu Deus, pois, no centro da mesa da messe - o seu único ornamento quando estavam na po~ sição de marcha - estavam um touro dourado, trabalhado, da antiga pilhagem do Palácio de Verão em Pequim - um touro vermelho e ouro corri a cabeça baixa, enfurecendo-se num campo de verde irlandês. Os sahibs erguiam-lhe os copos e gritavam alto, confusamente.

Agora o reverendo Arthur Bermett deixava a messe, depois daquele brinde e, por estar muito cansado da sua marcha, os seus movimentos eram mais bruscos do que era usual. Kini, com a cabeça ligeiramente erguida, fixava ainda o seu totem em cima da mesa, quando o capelão lhe pisou a omoplata direita. Kim estremeceu debaixo do couro e, rolando para o lado, fez cair o capelão que, em qualquer ocasião um homem de acção, o apanhou pela garganta e quase lhe tirou a vida. Então, Kim. pontapeou-o desesperadamente no estõmago senhor Bermett arfava e dobrava-se, mas sem afrouxar a mão; virou-se de novo e, silenciosamente,

Kím

arrastou Kim para a sua tenda. Os Mavericks eram incuráveis e experientes brincalhões; e ocorreu ao inglês que o silêncio era o melhor, até que ele fizesse uma investigação completa.

- Mas, é um rapaz! - exclamou ele, quando trouxe o seu troféu para debaixo da luz da lanterna no mastro da tenda; depois, abanando-o severamente, gritou: - Que estavas a fazer? Tu és um ladrão. Choor? MaIlum?

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0 seu hindustãni era muito limitado e o agitado e, desgostoso tencionava conservar o papel que lhe tinha sido atribuído. Quando, Kim reco-

brou a respiração, começou a inventar uma linda e plausível históteiamspoobre as suas relações com um certo ajudante de cozinha, ao mesmo

que mantinha um olho vivo um pouco abaixo do sovaco esquerdo do capelão. A oportunidade surgiu; esgueirou-se para a entrada, mas um braço comprido alongou-se e agarrou-lhe o pescOÇO deitando a mão ao fio do amuleto e apoderando~se deste.

- Dá-mo! Oli, dá-mo! Está solto? Dá-me os papéis! do educaAs palavras eram em inglês - o inglês metálico e cortante

do por nativos e o capelão deu um salto.

de a-muUm escapulário - disse ele, abrindo a mão. - Não, uma especie leto pagão. Porquê... porquê, tu falas inglês? Os rapazinhos que roubam são espancados. Sabes isso?

- Eu não... eu não roubei, - Kim dançava em agonia, como um cão perante um pau levantado, - Oh, dá-mo! É o meu amuleto. Não mo roubes.

0 capelão não lhe prestou atenção, mas, indo à porta da tenda, chanIOU alto. Um homem rechonchudo, de cara rapada, apareceu.

- Preciso do seu conselho, padre Victor - disse Bermett. - Descobri este rapaz no escuro, fora da messe. Normalmente, tê~lo-ia punido e deixado ir, porque creio que é um ladrão. Mas parece que ele fala inglês e dedica alguma espécie de estima a um amuleto que tem à volta do pescoÇO. Pensei que talvez me possa ajudar.

Entre ele e o capelão católico apostólico romano do contingente irlandês existia, como cria Bermett, um abismo intransponível, mas era visível que, sempre que a Igreja Anglicana deparava com um problema humano, era muito Provável que ela mandasse chamar a Igreja

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Romana. A aversão Oficial de Bermett pela Roma papal e todos os seus métodos só era igualada pelo seu particular respeito pelo padre Victor.

- Um ladrão que fala inglês, é? Vejamos o amuleto dele. Não, não é ur11 escapulário, Bermett. - Estendeu a mão.

- Mas temos algum direito de o abrir? Uma sonora chicotada... -Eu não roubei -Protestou Kiní. -Tu deste-me Pontapés por t t t o corpo. Agora dá-me o meu amuleto e eu vou-me embora.

- Mais devagar. Vamos ver primeiro - disse o Padre Victor d i 1 rolando lentamente o pergaminho ne varietur do pobre K mba O'Hara, o

ra a'0 ain 0 J

certificado alfandegário e a certidão de nascimento de Kiní- Nesta últi

t1 t O'Hara - com alguma ideia confusa de que estava a fazer maravilbM

ni pelo seu filho - rabiscara apelos: "Olhem pelo rapaz. Por favor, olhem Ih

pelo rapaz" e assinara o seu nome e número de regimento por extenso.,,, - Forças da Escuridão! - exclamou o padre Victor, passando tu para o senhor Bennett. - Sabe o que são estas coisas?

- Sim - disse Kiní. - São minhas e eu quero ir-me embora.

- Não estou a compreender - disse o senhor Bermett. - Provavel,, mente ele trouxe-as de propósito. Pode ser algum tipo de truque par* mendigar.

- Então, nunca vi um mendigo menos ansioso por companhia. Estão aqui as características de um divertido mistério. Acredita na Providência, Bermett?

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- Acho que sim.

- Bem, eu acredito em milagres, portanto vai dar ao mesmo. Forças da Escuridão! Kimball O'Hara! É o filho dele! Mas, por outro lado, ele é nativo e eu mesmo vi Kimball casado com Annie Scott. Há quanto tempo tens estas coisas, rapaz?

- Desde muito bebé.

0 padre Victor deu um passo rápido e abriu a frente do trajo de Kila - Está a ver, Bermett, ele não é muito escuro. Como te chamas?

- Kiní.

- Ou Kimball? I I - Talvez. Deixas-me ir embora?

- Que mais?

- Chamam-me Kint Rishtike. É Kim do Rishti. - 0 que é isso... "Rishti"?

- Eye-rislíti... era o regimento... do meu pai. - Irísh [irlandês1... olí, compreendo.

vivo, é claro. 3 - Simmm. Foi o que meu pai me contou. Quando era

- Viveu onde? 4 - Viveu. Claro que está morto... foi-se.

,7 - Ah! É essa a tua maneira abrupta de põr as coisas, rIãO c -

oe Bennett interrompeu.

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com o rapaz. possível que eu tenha cometido uma injustiça

i

branco, 'mbocraqeuveidbeenbtiedamseanitceodóleisclacisxado. Estou certo de que i. Não me parec

Dê-lhe um copo de xerez, então, e deixe-o estender-se na tarimba. uou o padre Victor -, ninguém te vai fazer mal. (in, - contin

e fala~nos de ti. A verdade, se não tens objecções. -

tossiu um pouco ao pousar o copo vazio e pensou, Parecia ser ocapara cautela e imaginação. Os rapazinhos que vagueiam pelos acam~ tos geralmente são abandonados depois de uma boa chicotada. Mas recebera chicotadas, o amuleto estava visivelmente a jogar a seu fa~

oucas palavras que recordava das divagações do pai ajustavam-se acp

samente. Por que outro motivo o capelão gordo pareceria tão imdo e porquê o copo da quente bebida amarela do magro?

meu pai está morto na cidade de Lahore, desde há muito, era eu pequeno. A mulher tomava conta de uma loja de kabarri perto do ,v

onde alugam carruagens - começou Kim decididamente, sem ter a -,effteza se a verdade lhe traria vantagens.

o -A tua mãe?

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-Não! - com um gesto de aversão. - Ela morreu quando eu nasci. - pai arranjou estes papéis nojadoo-Gher... como é que lhe chamam? ~ett acenou, - Porque ele estava em boa posição, Como é que cha~

a isso? - Bermett acenou de novo. - 0 meu pai contou-me isso. também, e também o brâmane que fez o desenho na poeira em Umh& há dois dias, ele disse que eu encontrarei um Touro Vermelho num 4~ verde e que o Touro me ajudará.

-Um fenomenal pequeno mentiroso - resmungou Bermett.

*,- Forças da Escuridão, que país! - murmurou o padre Victor. - - GRItinua, Kim.

Eu não roubei. Além disso, agora sou discípulo de um homem muiI"Mto. Ele está sentado lá fora. Nós vimos chegar dois homens com ban~ *"S, Preparando o local, É sempre assim num sonho, ou na sequência Ik Unia--- ... Profecia. Assim eu soube que se ia realizar. Vi o Touro ,,%r4clho no campo verde e o meu pai disse: "Novecentos diabos pukha >",-1?1-4"0ronel rnontado num cavalo tomarão conta de ti quando encontrares

>ulroVertnelhol". Eu não sabia o que fazer quando vi o Touro, mas fui- 1--- 'e`rnbora c voltei quando escureceu. Queria ver o Touro outra vez e vi 1. rO Outra vez, com os

... os sahíbs a rezar a ele. Acho que o Touro me 0 santo disse isso também. Ele está sentado lá fora. Fazem-lhe se eu o chamar com um

grito agora? Ele é muito santo. Ele pode tesr todas as coisas

que eu digo e sabe que eu não sou um ladrão. não é provável que seja detectado por uma linha de soldados bem treinados. Deu-lhes a honra de rastejar por entre dois deles e, correndo e parando, inclinando-se e estendendo-se de barriga para baixo, encaminhou-se na direcção da messe iluminada, onde, colado atrás da mangueira, esperou até que alguma palavra casual lhe desse uma indicação aceitável.

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A única coisa que estava agora na sua mente era obter mais informações sobre o.Touro Vermelho. Tanto quanto sabia, e as suas limitações eram tão curiosas e súbitas como as suas expansões os homens, os novecentos rematados diabos da profecia do seu pai, podiam rezar em louvor do animal depois do anoitecer, como os hindus rezam à Vaca Sagrada. isso, pelo menos, seria inteiramente certo e lógico e o capelão da cruz de ouro seria, por consequência, o homem a consultar sobre o assunto. Por outro lado, lembrando-se de capelães de rosto sóbrio que ele evitara na cidade de Lahore, o padre podia ser um inquisitivo aborrecimento que o mandasse instruir-se. Mas não ficara comprovado em Umballa que o seu signo nos altos céus pressagiava guerra e homens armados? Não era ele o Amigo das Estrelas bem como do Mundo, a abarrotar de segredos terríveis? Por último - e em primeiro lugar como corrente de todos os seus rápidos pensamentos -, esta aventura, embora ele não conhecesse a palavra inglesa, era uma estupenda brincadeira - uma encantadora continuação dos seus velhos voos pelos terraços, bem como o cumprimento de sublime profecia. Deitou-se de barriga no chão e serpenteou na direcção da porta da messe, com uma mão no amuleto que tinha à volta do pescoço.

Era como ele suspeitara. os sahibs rezavam ao seu Deus, pois, no centro da mesa da messe - o seu único ornamento quando estavam na posição de marcha - estavam um touro dourado, trabalhado, da antiga pilhagem do Palácio de Verão em Pequim - um touro vermelho e ouro com a cabeça baixa, enfurecendo-se num campo de verde irlandês. Os sahibs erguiam~lhe os copos e gritavam alto, confusamente.

Agora o reverendo Arthur Bermett deixava a messe, depois daquele brinde e, por estar muito cansado da sua marcha, os seus movimentos eram mais bruscos do que era usual. Kim, com a cabeça ligeiramente erguida, fixava ainda o seu totem em cima da mesa, quando o capelão lhe pisou a omoplata direita. Kini estremeceu debaixo do couro e, rolando Para o lado, fez cair o capelão que, em qualquer ocasião um homem de acção, o apanhou pela garganta e quase lhe tirou a vida. Então, Kini pontapeou-o desesperadamente no estõmago. o senhor Berinett arfava e dobrava-se, mas sem afrouxar a mão; virou-se de novo e, silenciosamente,

ffim

arrastou Kini para a sua tenda, Os Mavericks eram incuráveis e experientes brincalhões; e ocorreu ao inglês que o silêncio era o melhor, até que ele fizesse uma investigação completa.

- Mas, é um rapaz! - exclamou ele, quando trouxe o seu troféu para debaixo da luz da lanterna no mastro da tenda; depois

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mente, gritou" - , abanando-o severa . Que estavas a fazer? Tu és um ladrão. Choor? MaIluni? 0 seu hindustâni era muito limitado e o agitado e, desgostoso, Kini

tencionava conservar o papel que lhe tinha sido atribuído. Quando recobrou a respiração, começou a inventar uma linda e plausível história so~ bre as suas relações com um certo ajudante de cozinha, ao mesmo tempo que mantinha um olho vivo um pouco abaixo do sovaco esquerdo do ca~ pelão. A oportunidade surgiu; esgueirou-se para a entrada, mas um braço comprido alongou-se e agarrou-lhe o pescoço, deitando a mão ao fio do amuleto e apoderando-se deste,

- Dá-mo! Oli, dá-mo! Está solto? Dá-me os papéis!

As palavras eram em inglês - o inglês metálico e cortante do educado por nativos e o capelão deu um salto.

- Um escapulário - disse ele, abrindo a mão. - Não, uma espécie e orquê, tu falas inglês? Os rapazinhos que c,apdoorsquSê.b. p

rdocuabmamuletãoo pesapgano a , s isso?

- Eu não... eu não roubei. - Kin---i dançava em agonia, como um cão perante um pau levantado. - Oli, dá-mo! É o meu amuleto. Não mo roubes.

0 capelão não lhe prestou atenção, mas, indo à porta da tenda, chamou alto. Um homem rechonchudo, de cara rapada, apareceu.

- Preciso do seu conselho, padre Victor - disse Bermett. - Descobri este rapaz no escuro, fora da messe. Normalmente, tê-lo-ia punido e deixado ir, porque creio que é um ladrão. Mas parece que ele fala inglês e dedica alguma espécie de estima a um amuleto que tem à volta do pescoÇo. Pensei que talvez me possa ajudar.

Entre ele e o capelão católico apostólico romano do contingente irlandês existia, como cria Bermett, um abismo intransponível, mas era visível que, sempre que a Igreja Anglicana

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deparava com um problema humano, era muito provável que ela mandasse chamar a Igreja Romana. A aversão oficial de Bermett pela Roma papal e todos os seus métodos só era iguala~ da pelo seu particular respeito pelo padre Victor.

- Um ladrão que fala inglês, é? Vejamos o amuleto dele. Não, não é UM escapulário, Bermett. - Estendeu a mão.

- Mas temos algum direito de o abrir? Uma sonora chicotada... Rudyard ffipluW

- Eu não roubei - protestou Kini. - Tu deste-me pontapés por todo o corpo. Agora dá-me o meu amuleto e eu vou-me embora.

- Mais devagar. Vamos ver primeiro - disse o Padre Vietor, desenrolando lentamente o pergaminho ne varietur do pobre Kiniba O'Hara, o certificado alfandegário e a certidão de nascimento de Kiní. Nesta última, O'Hara - com alguma ideia confusa de que estava a fazer maravilhas pelo seu filho - rabiscara apelos. " Olhem pelo rapaz. Por favor, olhem pelo rapaz" e assinara o seu nome e número de regimento por extenso.

- Forças da Escuridão! - exclamou o padre Victor, passando tudo para o senhor Bermett. - Sabe o que são estas coisas?

- Sim - disse Kini. - São minhas e eu quero ir-me embora.

- Não estou a compreender - disse o senhor Bermett. - Provavelmente ele trouxe-as de propósito. Pode ser algum tipo de truque para mendigar.

- Então, nunca vi um mendigo menos ansioso por companhia. Estão aqui as características de um divertido mistério. Acredita na Providência, Bermett?

- Acho que sim.

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- Bem, eu acredito em milagres, portanto vai dar ao mesmo. Forças da Escuridão! Kimball O'Hara! É o filho dele! Mas, por outro lado, ele é nativo e eu mesmo vi Kimball casado com Annie Scott. Há quanto tempo tens estas coisas, rapaz?

- Desde muito bebé.

0 padre Victor deu um passo rápido e abriu a frente do trajo de Kim. - Está a ver, Bermett, ele não é muito escuro. Como te chamas?

- Kim.

- Ou Kimball?

- Talvez. Deixas-me ir embora? - Que mais?

- Chamam-me Kini Rishtike. É Kini do Rishti. - 0 que é isso... "Rishti"?

- Eye-risliti... era o regimento... do meu pai. - Irish [irlandês] ... oh, compreendo.

- Simirim. Foi o que meu pai me contou. Quando era vivo, é claro. - Viveu onde?

- Viveu. Claro que está morto... foi-se.

- Ah! É essa a tua maneira abrupta de por as coisas, não é? Bermett interrompeu.

- É possível que eu tenha cometido uma injustiça com o rapaz. Ele é

Kim

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de certeza branco, embora evidentemente desleixado. Estou certo de que o magoei. Não me parece que bebidas alcoólicas... tarimba. - Dê-lhe um copo de xerez, então, e deixe-o estender-se na

Agora, Kim - continuou o padre Victor -, ninguém te vai fazer mal. Bebe isso e fala-nos de ti. A verdade, se não tens objecções.

Kim tossiu um pouco ao pousar o copo vazio e pensou. Parecia ser ocasião para cautela e imaginação. Os rapazinhos que vagueiam pelos acampamentos geralmente são abandonados depois de uma boa chicotada. Mas ele não recebera chicotadas; o amuleto estava visivelmente a jogar a seu favor e as poucas palavras que recordava das divagações do pai ajustavam-se miraculosamente. Por que outro motivo o capelão gordo pareceria tão impressionado e porquê o copo da quente bebida amarela do magro?

- 0 meu pai está morto na cidade de Lahore, desde há muito, era eu muito pequeno. A mulher tomava conta de uma loja de habarri perto do lugar onde alugam carruagens - começou Kini decididamente, sem ter a certeza se a verdade lhe traria vantagens.

- A tua mãe?

- Não! - com um gesto de aversão. - Ela morreu quando eu nasci. 0 meu pai arranjou estes papéis nojadoo-Gher... como é que lhe chamam? - Bermett acenou. - Porque ele estava em boa posição. Como é que chamam a isso? - Bermett acenou de novo. - 0 meu pai contou-me isso. Disse, também, e também o brãmane que fez o desenho na poeira em Umballa há dois dias, ele disse que eu encontrarei um Touro Vermelho num campo verde e que o Touro me ajudará.

- Um fenomenal pequeno mentiroso - resmungou Bermett.

- Forças da Escuridão, que país! - murmurou o padre Victor. Continua, Kini.

- Eu não roubei. Além disso, agora sou discípulo de um homem muito santo. Ele está sentado lá fora. Nós vimos chegar dois homens com ban~ deiras, preparando o local. É sempre assim num sonho, ou na sequência de uma... uma... profecia. Assim eu soube que se ia realizar. Vi o Touro Vermelho no campo verde, e o meu pai disse: " Novecentos diabos puhka e o coronel

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montado num cavalo tomarão conta de ti quando encontrares o Touro Vermelho! ". Eu não sabia o que fazer quando vi o Touro, mas fui~ -me embora e voltei quando escureceu. Queria ver o Touro outra vez e vi o Touro outra vez, com os... os sahibs a rezar a ele. Acho que o Touro me ajudará. o santo disse isso também. Ele está sentado lá fora. Fazem-lhe inal, se eu o chamar com um grito agora? Ele é muito santo. Ele pode testemunhar todas as coisas que eu digo e sabe que eu não sou um ladrão. Ru Kíp19

- "Sahibs rezando a um touro! " De que modo interpreta isto? - per guntou Bermett. - " Discípulo de um santo! " Será louco, o rapaz?

- É o filho de O'Hara, de facto filho de O'Hara aliado a todas á; Forças da Escuridão. É mesmo o tipo de atitude que o pai dele teria... s> estivesse embriagado. É melhor convidarmos o Santo. Ele pode saber a guma coisa.

Ele não sabe nada - disse Kini Eu mostro-0, se vierem. Ele é) meu mestre. Então, depois, podemos ir.

- Forças da Escuridão! - era só o que o padre Victor conseguia dzer, enquanto Bermett saía com uma mão firme no ombro de Kini. Encontraram o lama onde ele se deixara cair.

- A Busca está no fim, para mim - gritou Kiní, no vernáculo. - Ercontrei o Touro, mas sabe Deus o que virá a seguir. Eles não te farão má,. Vem à tenda do padre gordo com este homem magro e vê a conclusão. E tudo novo e eles não sabem falar hindi. São apenas burros desaparelhdos.

- Então não está certo fazer troça da sua ignorância - retorquiu0 lama. - Estou contente se tu estás alegre, chela.

Digno e confiante, entrou na pequena tenda, saudou as Igrejas conO eclesiástico e sentou-se junto da braseira a carvão forro amarelo da te Ida reflectido na luz do candeeiro tornava o seu rosto vermelho-dourad?.

Bermett olhou para ele com o desinteresse ancestral da crença qe aglomera nove~décimos do mundo sob o título de "pagão".

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- E qual era a conclusão da Busca? Que dádiva trouxe o Touro Wmelho? - 0 lama dirigia-se a Kini.

- Ele pergunta " 0 que vão fazer? " - Bermett fixava inquieto o pacC Victor, e Kiní, para servir os seus propósitos, tomou sobre si mesmo a flrefa de intérprete.

- Não vejo que relação tem este faquir com o rapaz, que é, provaVImente, seu joguete ou aliado - começou Bermett. - Não podemos pirmitir a um rapaz inglês... Partindo do princípio de que ele é filho de trn mação, quanto mais depressa for para o orfanato maçónico, melhor.

- Ah! Essa é a sua opinião como secretário do alojamento regimenal - disse o padre Victor - mas nós também podíamos contar ao anciã 0 que vamos fazer. Ele não parece um vilão.

- A minha experiência é que nunca se pode sondar a mente orienalAgora, KimbalI, desejo que contes a este homem o que eu digo, palara por palavra.

Kim reuniu o conteúdo das poucas frases seguintes e começou assin

Kim

- Santo, o tolo magro que parece um camelo diz que eu sou filho de um sahib.

- Mas como?

- Oh, é verdade. Eu sei-o desde que nasci, mas ele só o conseguiu descobrir ao arrancar o amuleto do meu pescoço e ler todos os papéis. Ele pensa que, uma vez sa

hib, sempre sahib, e entre os dois propõem manter-me neste regimento ou mandar-me para um rnadrssah [uma escola]. já aconteceu antes. Eu sempre o evitei tolo gordo tem uma

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opinião e o que é parecido com um camelo tem outra. Mas'SSO não tem importâenpcoiais. Eu posso passar uma noite aqui e talvez a seguinte. já aconteceu.

fugirei e voltarei para ti.

- Mas conta~lhes que és meu chela. Conta-lhes como me apareceste quando eu estava fraco e desorientado. Conta-lhes da nossa Busca e eles decerto te deixarão ir agora.

-já lhes contei. Eles riem-se e falam em polícia.

- Que estão a dizer? - perguntou o senhor Bermett.

- Ah. Ele só está a dizer que, se não me deixam ir, isso fará parar o objectivo dele... os seus assuntos urgentes. - Esta última frase era uma reminiscência de uma conversa com um funcionário euro-asiático na Repartição do Canal, mas só atraiu um sorriso, que o exasperou. - E se tu realmente soubesses qual era o objectivo dele não estarias com uma pressa tão grande de te intrometeres.

- Então, qual é? - perguntou o padre Victor, não sem sentimento, enquanto observava o rosto do lama. mente encontrar. Jor- - Há um rio nesta terra que ele deseja ardente

rou de uma seta que - Kini batia o pé com impaciência, enquanto traduzia, na sua mente, do vernáculo para desajeitado inglês, - Ah, foi feito pelo nosso Senhor Deus Buda, sabes, e se te banhares lá ficas limpo de todos os teus pecados e ficas branco como algodão hidrófilo. - Kini ouvira conversas de missionários no seu tempo. - Eu sou discípulo dele e nós temos de encontrar esse rio. Ele é valiosíssimo para nós.

- Repete lá isso - disse Bermett. l(im obedeceu, com amplificações.

- Mas isto é uma grosseira blasfémial - gritou a Igreja Anglicana. - TSS! TSS! - fez o padre Victor compreensivamente, - Dava muito para ser capaz de falar o vernáculo'. Um rio que faz desaparecer o pecado. E há quanto tempo andam vocês os dois à sua procura?

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- Ah, há muitos dias. Agora desejamos ir-nos embora e procurá-lo de nOVO. Não é aqui, compreende. - Compreendo - disse o padre Victor, com gravidade. - Mas tu não podes ir na companhia desse ancião. Seria diferente, Kini, se tu não fosses filho de um soldado. Diz-lhe que o Regimento tomará conta de ti e fará de ti um homem tão bom como... um homem tão bom quanto for possível, Diz-lhe que, se acredita em milagres, deve acreditar nisso...

- Não há necessidade de brincar com a credulidade dele - inter~ rompeu Bermett.

- Não estou a fazer tal coisa. Ele deve acreditar que a vinda do rapaz aqui, ao seu próprio regimento, à procura do seu Touro Vermelho, está dentro das características de um milagre. Considere as probabilidades contra, Bermett. Este rapaz perdido na índia e o nosso regimento, entre todos os outros da linha, marcha ao encontro dele. Está predestinado, julgando pelas aparências. Sim, diz-lhe que é Kismet. Kismet, maIlum? [com~ preendes?]

Virou-se para o lama, para quem podia até ter falado da Mesopotãrnia. - Eles dizem - o olho do velho iluminou-se com a voz de Kim -, eles dizem que o significado do meu horóscopo está agora completo e que, por ter voltado... embora, como tu sabes, eu tenha vindo por curiosidade... para esta gente e para o Touro Vermelho eu devo precisar de ir para uma madhssali e ser transformado num sahib. Agora eu finjo concordar, pois, na pior das hipóteses, serão apenas algumas refeições tomadas longe de ti. Depois fugirei e seguirei a estrada para Saharimpore. Por isso, Santo, fica com aquela mulher de Kulu... sob pretexto nenhum te afastes muito da carroça dela até eu voltar. Sem dúvida, o meu signo é de guerra e de homens armados. Vê como eles me deram vinho para beber e me colocaram numa cama de honra! 0 meu pai deve ter sido uma grande pes~ soa. Assim, se eles me elevarem à honra deles, óptimo. Senão, também está bem. Seja como for, eu voltarei para ti, quando estiver cansado. Mas fica com os rajputni, senão perderei os teus passos... Ah, simirim. - disse o rapaz -, disse-lhe tudo o que me mandaram dizer.

- E eu não vejo nenhum motivo para ele esperar - disse Bermett, tacteando no bolso das calças. - Podemos investigar os pormenores mais tarde, e eu dar-lhe-ei uma ru...

- Dê-lhe tempo. Talvez ele goste do garoto - disse o padre Victor, interrompendo a meio o movimento do clérigo.

0 lama retirou o rosário e puxou a enorme aba do chapéu para os olhos.

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- Que pode ele querer agora?

- Ele diz... - Kini levantou uma mão. - Ele diz: silêncio. Ele quer

Kim

falar a sós comigo. Percebem vocês, não sabem uma única palavra do que ele diz e eu acho que, se vocês falarem, ele lançará maldições terríveis. Quando ele pega naquelas contas daquela maneira, vêem, quer sempre fi~ car em silêncio.

Os dois ingleses sentaram-se confundidos, mas havia um olhar nos olhos de Bermett que prometia o mal para Kim quando ele ficasse livre do braço religioso.

- Um sahib e o filho de um sahíb. - A voz do lama era áspera de dor. - Mas nenhum branco conhece a terra e os seus costumes como tu conheces. Como é que isto pode ser verdade?

- Que importa, Santo?... mas lembra-te de que é só por uma noite ou duas. Lembra-te, eu posso mudar rapidamente. Será tudo como foi quando eu falei contigo a primeira vez, debaixo do Zam-Zammah, o grande canhão...

- Como um rapaz com trajo de branco, quando eu fui a primeira vez à Casa das Maravilhas. E na segunda vez tu eras um hindu. Como será a terceira encarnação? - Riu-se desoladamente. - Ah, chela, tu procedeste mal para com um velho, porque o meu coração abriu-se para ti.

- E o meu para ti. Mas como é que eu podia saber que o Touro Vermelho me conduziria a isto?

0 lama cobriu o rosto outra vez e chocalhou nervosamente o rosário. Kini agachou-se ao lado dele e agarrou-se a uma prega do seu trajo.

- Agora dizem que o rapaz é um sahib? - continuou ele, num tom abafado. - Tão sahib como aquele que guardava as imagens na Casa das Maravilhas, - A experiência do lama relativamente aos brancos era limitada. Parecia estar a repetir uma lição. - Portanto, não é

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conveniente que ele faça coisas diferentes das que os sahibs fazem. Ele deve voltar para a sua gente.

- Por um dia e uma noite e um dia - alegou Kini.

- Não, não o faças! - 0 padre Victor vira Kim dirigir-se para a por~ ta e interpos uma perna forte.

- Não compreendo os costumes dos brancos sacerdote das Imagens, na Casa das Maravilhas em Lahore, era mais cortês que este magro aqui. Este rapaz vai ser afastado de mim. Farão eles do meu discípulo um sahib? Ai de mim. Como encontrarei o meu rio? Eles não têm discípulos? Pergunta.

- Ele diz que tem muita pena de agora já não poder mais encontrar o rio. Ele pergunta por que é que vocês não têm os vossos discípulos e param de o aborrecer? Ele quer lavar-se dos seus pecados. Rudyurd, lin

Nem Bermett nem o padre Victor encontraram qualquer resposta pronta.

Kim. disse em inglês, aflito com a agonia do lama.

- Acho que, se me deixarem ir agora, nós ir-nos-emos embora calmamente e não roubaremos. Procuraremos esse rio como antes de eu ter sido apanhado. Quem me dera não ter vindo aqui procurar o Touro Vermelho e tudo isso. Eu não o quero.

- É o melhor dia de trabalho que tu tiveste para teu proveito, jovem - disse Bermett.

- Deus do Céu, não sei como consolá-lo - disse o padre Victor, obse rvando o lama com atenção. - Ele não pode levar o rapaz com ele e, no entanto, é um bom homem. Bermett, se lhe der essa rupia ele vai amaldiçoá-lo completamente!

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Ouviram a respiração uns dos outros - três - cinco minutos seguidos. Depois, o lama ergueu a cabeça e olhou para a frente, para lá deles, para o espaço e para o vazio.

- E eu sou um Seguidor do Caminho - disse ele amargamente. - 0 pecado é meu e o castigo é meu. Fiz a mim mesmo acreditar... pois agora vejo que não foi senão fazer acreditar... que tu me tinhas sido enviado para ajudar na Busca. Por isso, o meu coração abriu-se para ti, devido à tua caridade e cortesia e à sensatez dos teus poucos anos. Mas aqueles que seguem o Caminho não devem permitir o fogo de nenhum desejo ou ligação, porque tudo isso é ilusão. Como diz... - Citou um texto chinês velho, velho, sustentou-o com outro e reforçou-os com um terceiro. - Eu desviei-me do Caminho, meu chela. Não foi culpa tua. Deliciei-me com a visão da vida, com as novas pessoas nas estradas e com a tua alegria ao veres estas coisas. Fiquei contente contigo, eu que devia considerar a minha Busca e apenas ela. Agora estou pesaroso, porque tu estás a ser levado e o meu rio está longe de mim. Foi a Lei que eu quebrei!

- Forças da Escuridão! - exclamou o padre Victor, que, sábio no confessionário, sentia a dor em cada frase.

- Vejo agora que o sinal do Touro Vermelho era um sinal tanto para mim como para ti. Todo o desejo é vermelho... e mau. Farei penitência e encontrarei o meu no sozinho.

- Ao menos volta para a mulher de Kulu - disse Kim -, caso contrário perder-te-ás nas estradas. Ela alimentar-te-á até eu voltar para ti.

0 lama acenou com uma mão para mostrar que o assunto estava finalmente arrumado no seu espírito.

- Agora - o tom alterou-se quando se voltou para Kini - que farão

eles contigo? Pelo menos eu posso, adquirindo mérito, fazer desaparecer os males passados.

- Vão fazer de mim um sahib... assim o pensam. Depois de amanhã eu regresso. Não te aflijas.

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- De que tipo? Um como este, ou aquele homem? - Apontou para o padre Victor. - Um como aqueles que eu vi esta noite... homens que usam espadas e andam pesadamente?

- Talvez.

- isso não está bem. Estes homens perseguem o desejo e chegam ao vazio. Tu não deves ser da espécie deles.

- 0 padre de Umballa disse que a minha estrela era a guerra - interpós Kini. - Perguntarei a estes tolos... mas, verdadeiramente, não é necessário. Fugirei esta noite, pois tudo o que eu queria era ver as novas coisas.

Kini colocou duas ou três questões em inglês ao padre Victor, traduzindo as respostas para o lama.

Depois: - Ele diz: "Afastam-se de mim e não podem dizer o que vão fazer com ele". Ele diz- "Falem, antes que me vá, pois não é pouca coisa para fazer a

uma criança".

- Serás mandado para uma escola. Mais tarde, veremos, Kimball, suponho que gostarias de ser um soldado?

- Gorah~log gente branca]. Não! Não! - Kim sacudiu a cabeça violentamente. Não havia nada na sua cabeça que o atraísse para a disciplina e para a rotina. - Não serei um soldado.

- Serás o que te mandarem ser - disse Bermett -, e devias estar gra to por te irmos ajudar.

Kim sorriu compassivamente. Se estes homens se encontravam na ilusão de que ele faria algo para que não estivesse inclinado, ainda melhor. Seguiu-se outro longo silêncio. Bermett agitou-se com impaciência e sugeriu que chamassem uma sentinela para expulsar o faquir.

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- Eles dão ou vendem conhecimentos, entre os sahibs? Pergunta-lhes - disse o lama e Kin---i fez de intérprete.

- Eles dizem que dão dinheiro ao professor. .. mas que o dinheiro que o regimento dará... Que necessidade? É só por uma noite.

- E... quanto mais dinheiro é pago, melhor é a instrução? - o lama ignorava os planos de Kini para uma fuga antecipada. - Não é errado pagar para aprender. Ajudar os ignorantes a alcançar a sabedoria é sempre Um mérito. - 0 rosário estalava furiosamente, como um ábaco. Depois encarou os opressores. Ru#nrd Kip1ít

Kim

- Perguntas-lhes Por quanto dinheiro ministram eles um ensino SCnsaro e conveniente? E em que cidade esse ensino é facultado?

- Bem - disse o padre Victor em inglês, quando Kini acabou de trae duzir -, isso depende. o regimento pagaria por ti durante todo o t MPO que estivesses no orfanato militar ou poderias ir para a lista do orfanato Maçónico do Punjab (não que ele ou tu saibam o que isso significa): mas a melhor instruÇão que um rapaz pode obter na India é, claro, em São Xavier em Lucknow - isto demorou algum tempo a interpretar, pois Bennett desejava interromper. Kim, serenamente

- Ele quer saber quanto - disse

- Duzentas ou trezentas rupias por ano. - o padre Victorjá tinha há muito ultrapassado qualquer sensação de assombro . impaciente, Bermett não compreendia. o dinheiro num papel e dá-lho". E diz -Ele diz: "Escreve esse nome e

que deves escrever 0 teu nome por baixo, porque ele vai escrever-te uma carta daqui a uns dias. Ele diz que tu és um bom homem. Diz que o outro homem é um tolo- Ele vai-se embora.

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o lama ergueu-se subitamente.

- sigo a minha Busca - gritou, e fOi-se.

- Ele vai esbarrar em cheio nas sentinelas - gritou o padre Victor, dando um salto quando o lama saiu imponentemente , mas eu não POsso largar o rapaz. _guir, mas reprimiu-se. Não se Kim fez um rápido movimento para o se

ouvia nenhum grito de sentinelas lá fora. o lama desaparecera.

Kim. instalou-se calmamente na tarinha do capelão . pelo menos o lama prometera que ficaria com a mulher rajput de Kulu e o resto não tinha a menor importãncia. Agradava-lhe que os dois padres estivessem tão 'V,- dentemente excitados. Falaram longamente a meia-voz, o padre victor a insistir num plano com Bermett, que parecia incrédulo . Tudo isto era novíssimo e fascinante, mas Kim sentia-se ensonado. Eles chamaram ho~ mens à tenda - um deles, certamente, era o coronel, como o seu pai profetizara - e fizeram-lhe uma infinidade de perguntas, principalmente acerca da mulher que tomara conta dele, às quais Kim respondeu scrn mentir. Não pareciam considerar a mulher como uma boa guardiã.

final, esta era a mais nova das suas experiências. Mais cedo ou rnais A inforníc tarde, se ele escolhesse, podia escapar para a imensa, cinzenta,

índia, para fora do alcance de tendas e capelões e coronéis. Entretanto, 5' os sahibs se impressionavam, ele faria o seu melhor para os impressionar' Também ele era branco .

rairDepois de muita conversa que ele não pode compreender, entregano a um sargento que tinha instruções rigorosas para não o deixar

escapar regimento ia para Umballa e Kini seria enviado, parcialmente a expensas da maçonaria e em parte por subscrição, para um lugar chaniado Sarrawar.

- É milagroso, para além de toda a gritaria, coronel - disse o padre Victor, depois de ter falado sem interrupção durante dez minutos. - 0 seu amigo budista partiu depois de anotar o meu

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nome e endereço. Não consigo perceber bem se ele pagará a educação do rapaz, ou se está a preparar algum tipo de bruxaria por conta própria. - Depois, para Kim: -Ainda viverás para agradecer ao teu amigo Touro Vermelho. Faremos de ti um homem em Sanawar... mesmo que sej .a um protestante.

- Certamente, certamente - disse Bermett. - Mas tu não vais para Sartawar.

- Mas nós irernos para Sanawar, pequeno homem. É a ordem do comandante supremo, que é um tudo-nada mais importante que o filho de O'Hara.

- Tu não vais para Sanawar. Vais para a tua Guerra. Houve uma gargalhada por toda a tenda.

- Quando conheceres o teu próprio regimento um pouco melhor, não confundirás a linha de marcha com a linha de batalha, Kini. Esperamos ir um dia para "a tua Guerra".

- Ah, eu sei tudo isso. - Kim atirou de novo ao acaso. Se eles não iam para a guerra, então não sabiam o que ele sabia da conversa na varan~ da em Umballa. - Eu sei que não estão na vossa guerra agora; mas digo-vos que, assim que chegarem a Umballa, serão mandados para a guerra... a nova guerra. E uma guerra de oito mil homens, além dos canhões.

- Isso está bem explícito. Acrescentaste a profecia aos teus outros dons? Leve-o sargento. Arranje um fato para ele, dos dos Tambores, e tenha cuidado para ele não lhe fugir por entre os dedos. Quem disse que a era dos milagres acabou? Acho que vou para a cama meu pobre espíri~ to está a enfraquecer.

No extremo mais afastado do acampamento, uma hora mais tarde, silencioso como um animal selvagem, estava Kin-r sentado, todo lavado de nOvO, com um horrível fato de pano de lã que lhe arranhava os braços e as Pernas.

- Uni passarinho bastante extraordinário - disse o sargento. - AparIce tornando conta de um peralta brãmane de cabeça amarela, com os certificados de residência do pai ao pescoço, dizendo sabe Deus o quê Agora relembro os camaradas -

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Velhos companheiros em novos mares Quando negociávamos ouro-pimenta Entre os selvagens.

Dez mil léguas para sul

E trinta anos afastados -

Eles não conheciam o nobre Valdez, Mas a mim conheciam e amavam.

Canção de Diego Valdez

De manhã muito cedo as tendas brancas foram desmontadas e desa~ram, quando os Mavericks tomaram uma estrada secundária para -~Ila. Não rodearam o local de repouso e Kim, arrastando-se ao lado -#tuma carroça de bagagem, sob o fogo dos comentários das mulheres dos ,,*Wdos, não estava tão confiante como na noite anterior. Descobriu que

a ser observado de perto - o padre Victor de um lado e o senhor *Onett do outro.

"'I' * Durante a manhã a coluna parou. Um ordenança de serviço aos carnek&'tntregou uma carta ao coronel. Ele leu-a e falou com um major. Qua#ta um quilómetro na retaguarda, Kim ouviu um clamor rouco e alegre UMmando até ali, através da densa poeira. Depois, alguém lhe bateu nas ,'kmtas, gritando:

I *I-

< Contas~nos como soubeste, filho de Satanás? Meu caro padre, veja !lIaOnsegue fazê-lo falar,

Uni pónei passou ao seu lado e ele foi içado para o arção do padre. "-Ouve, meu filho, a tua profecia de ontem à noite tornou-se realida&^As nossas ordens são para embarcar amanhã em Umballa, para nos ,,- - kWmOs à Frente.

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a-Queéisso?_ perguntou Kim, poisfrente e embarcar eram palavras tatitO Ilovas para ele.

'-'arnos para a " tua Guerra ", como tu lhe chamaste.

Claro que vão para a tua Guerra. Eu disse isso ontem à noite. D'Ssestc; rnas, Forças da Escuridão, como é que soubeste?

Olhos de Kim cintilaram. Cerrou os lábios, acenou com a cabeça e Rudyardffipling

observou coisas indescritíveis capelão avançou através da poeira e soldados, sargentos e subalternos chamaram a atenção uns dos outros para o rapaz coronel, à cabeça da coluna, fixou-o com curiosidade.

- Provavelmente foi algum boato de bazar - disse ele -, mas, mesmo assim... - Referia-se ao papel na sua mão. - Diabos me levem, a coi~ sa só foi decidida dentro das últimas quarenta e oito horas!

- Há muitos mais como tu na índia? - perguntou o padre Victor. Ou tu tencionas ser um lusus naturae?

- Agora que vos contei, deixam-me voltar para o meu velho? Se ele não ficou com aquela mulher de Kulu, receio que morra.

- Pelo que dele vi, ele é tão capaz de tomar conta de si próprio como tu. Não. Tu trouxeste-nos sorte e nós vamos fazer de ti um homem. Vou levar-te de novo para a tua carroça da bagagem e tu virás ter comigo esta noite.

Durante o resto do dia Kini viu-se como um objecto de notável consideração entre umas centenas de homens brancos. A história da sua aparição no acampamento, a descoberta da sua origem e a sua profecia não tinham perdido nada no relato. Uma mulher branca, grande, disforme, em cima de um monte de roupa de cama, perguntou-lhe misteriosamente se ele pensava que o marido dela voltaria da guerra. Kini rCflCCLIU gravemente e disse que ele

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voltaria e a mulhei- deu-lhe comida. Em muitos aspectos, esta grande procissão que tocava música com intervalos - esta multidão que falava e ria tão facilmente - fazia lembrar um festival na cidade de Lahore. Até agora, não havia sinais de trabalho pesado e ele decidiu emprestar ao espectáculo o seu patrocínio. À noite vieram bandas de música ao encontro deles e acompanharam os Mavericks até ao acampamento, perto da estação de caminho-de-ferro de Umballa. Essa foi uma noite interessante. Homens de outros regimentos vieram visitar os Mavericks. Os Mavericks fizeram visitas por conta própria. Os seus piquetes avançavam à pressa para os trazer de volta, encontravam piquetes de regimentos estranhos na mesma função; e, ao fim de um bocado, as cornetas sopravam furiosamente por mais piquetes com oficiais, para controlar o tumulto. Os Mavericks tinham uma reputação de vivacidade para manter. Mas alinharam ria plataforma na manhã seguinte, em perfeita forma e condição; e Kini, deixado para trás com os doentes, mulheres e cria

.nças, achou-se a gritar adeuses excitadamente, quando os comboios partiram. Até aqui, a vida como sahib estava a ser divertida, mas ele tocava-lhe com uma mão cautelosa. Depois, encaminharam-no para trás outra vez, ao cuidado de um rapaz do tambor, para umas casernas vazias, caiadas, cujos

Kim

soalhos estavam cobertos de lixo e cordas, e papel e cujos tectos Ilie devolviam a solitária bola de futebol. À maneira nativa, enroscou-se numa tarimba despida e adormeceu. Um homem zangado desceu ruidosamente a varanda, acordou-o, dizendo que era uni mestre-escola. Isto foi suficiente para Kim, que se retirou para a sua concha. Conseguia apenas decifrar as várias notificações da polícia inglesa na cidade de Labore, porque afectavam o seu conforto; e, entre os muitos hospedes da mulher que tomara conta dele, houvera um excêntrico aleirtão que pintava cenários para o teatro itinerante parsi. Ele dissera a Kim que tinha estado nas barricadas em quarenta e oito e, por conseguinte - pelo menos foi como abordara Kini -, ensinaria o rapaz a escrever em troca de comida. Kini fora resmungando as letras simples, mas não ficara com boa impressão delas.

Eu não sei nada. Vai-te embora! - disse Kini, farejando algum mal. Nesta altura, o homem agarrou-o pela orelha, arrastou-o para um quarto numa ala afastada, onde uma dúzia de rapazes do tambor estava sentada em classes e disse-lhe para ficar sossegado, se não pudesse fazer mais nada. Isto ele conseguiu, com muito sucesso homem explicou uma coisa ou outra com linhas brancas num quadro preto durante pelo menos meia hora e Kini continuou a sua soneca interrompida. Desaprovava enormemente o presente estado de coisas, pois esta era precisamente a escola e disciplina que ele passara dois terços da suajovem vida a evi~ tar. De súbito, uma bela ideia ocorreu-lhe e perguntou a si mesmo porque não pensara nela antes.

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0 homem dispensou-os e o primeiro a saltar pela varanda para a luz do Sol foi Kini.

- Eli, tu! Alto! Para! - gritou uma voz forte nos seus calcanhares. Tenho de tomar conta de ti. As minhas ordens são não te largar de vista, Onde vais?

Era o rapaz do tambor, que andara à volta dele toda a manhã - uma Pessoa gorda e sardenta, com cerca de 14 anos, e Kini detestava-o das solas das botas até às fitas do boné.

- Ao bazar... comprar doces para ti - disse Kinn, depois de pensar. - Bem, o bazar é na zona proibida. Se vamos lá, arranjaremos uma re~ primenda. Volta para trás.

- Até que ponto nos podemos aproximar? - Kini não sabia o que significavam as proibições, mas desejava ser delicado... por enquanto. - "Aproximar?" Até que ponto nos podemos afastar, queres dizer!

Podemos ir até àquela árvore ali na estrada. - Então vou até lá. Rudyard K'P19

- Está bem. Eu não vou. Está muito calor. Posso vigiar-te daqui. N é bom fugires. se o fizesses, eles localizar-te-iam pelas roupas. E tecido regimento, o que trazes. Não há um piquete em Umballa que não t, xesse de volta mais depressa do que partiras.

Isto não impressionou tanto Kini como a certeza de que o seu ,ovo

j o o deixaria exausto, se tentasse fugir. Caminhou descuidadarnente t árvore, na curva de uma estrada nua que se dirigia na direcção do observou os nativos passando. A maioria eram criados de caserna da baixa condição. Kin-i chamou um varredor, que, prontamente, reph com uma dose de insolência desnecessária, na crença natural de que o

esen a paz europeu não o pudesse seguir. A baixa e rápida resposta desen.

9 o. Kini pós nela a sua alma acorrentada, agradecido pela oportunidade dia de injuriar alguém na língua que ele melhor conhecia.

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- E agora vai ao mais próximo escrivão do bazar e diz-lhe que aqui. Quero escrever uma carta.

Mas... mas que género de filho de branco és tu, para precisares um escrivão de bazar? Não há um mestre-escola na caserna?

- Sim; e o Inferno está cheio desse género. Faz o que te digo eu., meu Odilo! A tua mãe casou-se debaixo de um cesto! Servo de 1 - Kim conhecia o Deus dos varredores -, apressa~te a tratar do assunto, senão falamos outra vez.

0 varredor afastou-se à pressa.

- Há um rapaz branco junto da caserna, à espera debaixo de vore, que não é branco - gaguejou ele para o primeiro escrivão do bam que encontrou. - Ele precisa de ti. 1

- Ele paga? - perguntou aquele elegante escrivão, pondo a sua el crivaninha as canetas e o lacre em ordem.

Não sei. Ele não é como os outros rapazes. Vai lá e vê. Vale a pei* Kin-i dançava de impaciência quando ojovem ejanota kayeth aparecd 1

ao longe. Assim que a sua voz se conseguiu fazer ouvir, arnaldiçoou4 abundantemente.

-rivão os p, - Primeiro, recebo o meu pagamento - disse o esc

lavrões fizeram subir o preço. Mas quem és tu, vestido dessamaneira, PO, falares deste modo?

- Ah! isso está na carta que tu escreverás. Nunca houve tal h' tória. Mas eu não tenho pressa. Outro escrivão me servira. A cidade' Umballa está cheia deles, como Lahore.

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- Quatro anãs - disse o escrivão, sentando-se e espalhando Os' trajo na sombra de uma ala deserta da caserna.

.camente, Kin-i acocorou-SC ao seu lado - acocorou-se como só ,tív0s conseguem - apesar das abomináveis calças pegajosas.

-o de lado. 1, escrivão olhou

para pedir aos sahibs - disse Kini. - Agora fixa-me Esse é o preço

J'Verdadeiro. w- jo. Como é que eu sei, depois de escrever a carta, que , Uni anã e me

i . 1 7 00 fugiras.

Eu não posso passar para lá desta árvore e há também o selo a con-

ti não recebo comissão no preço do selo. Uma vez mais, que tipo 1

branco és tu?

isso será dito na carta, que é para Mal-ibub Ali, o negociante de ca~ no serai de Caxemira, em Lahore. Ele é meu amigo.

Maravilha das maravilhas! - murmurou o escrivão, mergulhando ma pena no tinteiro. - É para escrever em hindu?

Certamente. Para Mahbub Ali, então. Começa! "Viajei até Umballa &comboio, com o ancião. Em Umballa transmiti a notícia do pedigree da baia." - Depois do que vira no jardim, não ia escrever sobre gara- 1

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brancos. -.Mais devagar. Que tem uma égua a ver... E Malibub Ali, o famoso nte?

IV- Quem mais podia ser? Eu estive ao serviço dele. Põe mais tinta. vez. "Tal como foi a ordem, assim fiz. Depois fomos a pé em direc~ a Benarés, mas ao terceiro dia encontrámos um certo regimento. " já escrito

Sim, pulton - murmurou o escrivão, todo ouvidos.

"Eu entrei no acampamento deles e fui apanhado e, por intermédio 4a11111leto, que trazia ao pescoço, que tu conheces, foi demonstrado que , em o filho de um homem do regimento- de acordo com a profecia do

Vermelho, que tu sabes que era tema habitual de conversa no nosso " - KiM esperou por esta seta para penetrar rio coração do escrivão, a garganta e continuou- - "Um padre vestiu-me e deu~me um

nome... Um dos padres, contudo, era um tolo. As roupas são muito 'rnas eu sou um sahib e o meu coração também está pesado. Eles -Ine a escola e batem-me. Não gosto do ar e da água daqui.

cá c ajuda-rne, Malibub Ali, ou manda~me algum dinheiro, pois eu tenho o sufic.

>1 "Que est lente para pagar ao escrivão que está a escrever isto. "

à a escrever isto. " É por culpa minha que fui enganado. tO esperto COMO Husain Bux, que falsificou os selos do Tesouro, Rudyard KiplítW

em Nuck1ao. Mas que história! Que história! Será verdadeira, por al m acaso?

- Não serve de nada contar mentiras a Malibub Ali. É melhor aj'iL

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ar

os amigos dele, emprestando-lhes um selo. Quando o dinheiro vier restituo. >s_

0 escrivão grunhiu de modo duvidoso, mas tirou um selo da su3 crivaninha, selou a carta, entregou-a a Kini e partiu. Mahbub Ali era m nome com poder em Umballa.

- Essa é a maneira de ganhar as boas graças dos deuses - gritou 1 atrás dele.

- Paga-me duas vezes mais quando vier o dinheiro - berrou o'0_ mem por cima do ombro.

'az - Que estavas tu a conspirar com aquele preto? - perguntou o ra e. do tambor, quando Kini regressou à varanda. - Eu estive a observar- - Estava só a conversar com ele.

- Tu falas a mesma língua que os pretos, não falas?

- Não! Não! Só falo um pouco. Que faremos agora? us! - As cornetas tocarão para o jantar daqui a meio minuto. Meu De Gostaria de ter ido para a Frente com o Regimento. É horrível não L zer

nada senão ir ali à escola. Não a detestas?

- Oh, sim! ris, - Eu fugiria, se soubesse para onde ir, mas, como dizem os home Wnesta índia florescente somos apenas prisioneiros em liberdade. Não

-iademos desertar sem sermos trazidos de volta imediatamente. Estou se

mente farto disto.

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-já estiveste na Br... Inglaterra? orn - Mas eu só saí de lá na última época de convocação de tropas, e ilio

a minha mãe. Claro que estive na Inglaterra. Que mendigo ignorantezir

tu és! Tu foste criado no esgoto, não foste? pai - Ah, sim. Conta-me qualquer coisa sobre a Inglaterra meu veio de lá. 00

Embora não fosse dizê-lo, é claro que Kini não acreditou em tud que o rapaz do tambor disse sobre o subúrbio de Liverpool que era a sua lui-

Inglaterra. Passou o tempo monótono até ao jantar - uma refeição muiy1 to pouco apetitosa, servida aos rapazes e a uns poucos inválidos rualicanto de uma divisão da caserna. Mas se tivesse escrito sobre isso a M,

iões bub Ali, Kini teria ficado quase neurasténico. À indiferença das multid( fli nativas estava ele habituado;

forte solidão entre

brancos

mas a sua

os avou gia~o. Ficou grato quando, durante a tarde, um grande soldado o lev

Kim

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ao padre Victor, qu- -ia no , itra 1,

terreno para paraL J pac-' re ' d::irc ---o de OuIroempoeirado com tinta cor de p- :-,ira. ( -11va - _r u, --arta C"' inglês, escrita )lhou 1ar, -

nunca. mais cu,iosidade que -E estás a gos1- -neu U, lho, tacu'Nã:-1uito, heir? Deve serdifícil... muito difícil um

Ia assombrosa do te, migo. __m -z,,uta. Re(ei uma epí1o~

.,screvcr Se, 5a -rn cartas, é

Onde está ck- --stá be 'li? Ali i que está bem.

- Gostas dele,',-,- n? -Claro que go- dele. 1

- Assim parec 3cla al,, e g"-"11va 3, mi,-

trência dit,, Ek ião s1be-- e-,crever ing.s, pois não?

Ol-i, não. Na( -tie eu

vão que sabia escre inglês j'11 a' Q.'ele cr`e'1rr0u um es-riI luito he1 1 compreendas. fflassir,LscrcVCL _peroberrijue

- Ela tem isso -i cont, Sabc,,

netários de] e? - 0 -3sto de 1 - . algiuna wsa sobre e assuntos -.ioComo posso aber? \ 1 m 1" Ostrou qu c:ião .

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É o que estou "g_L ')lar. i\0ra 5cut,, e vê ,e tem

beça. Vamos saltar a primeir- parte,, pés -a"Sentado à beira clastada e . Foi cscri,, da e Stlac de Jagadil, r ... sériu ineLaçãe. espe i-arj ser favoreldo coma aprovação de,ossa re\, -

erènciu Ia Pre,

que vossa reverência execut(, PC ente rc-s(,,,,,ào, que cc,-,Iio cação é uma grande benção, , por ] 11-1or de Deus TocJO-P leroso. A uíinútil. " Deus, desta ,ez o ai, e-da Irlelhor qualidade. )--)utro moc, é

"'ao 1ecrtou no alvo! 1< S- - ssa reverê-.--ia condescender em dar ao me 11

que é São Xavicr) "nos term 'aPaz 1 rfielhor educaç ãe : ier" (supe,-no da ri, -

de 15 do corrente", (um toei de e -sSa conversa n-,1 tenda, dada Todo-Poderoso abençoe os e S4 ilo come cial, ;1Ii .itãoque[,

li os de us ta gerações c" -agora escui,,, _ \-ossareverênci12'.,-recirac.rVCrência para remuneração a(l 'Confie no liními d---o de voss -ePara um ano da dispendiosa ' qua(l,., durante esse tu-rr-- -ezentas ",'-ias ,ducaç -

ela um pouco de tempo pan ao em São Xavic-r- : .-.now, e ci--cquer parte da índia para on(i 11zcr e,] \-iar o mesmo f3a--_nto para c,al~ 'e dirij_1 vossa reverêr-le ',te vosso -.-vc, rIão tem presentemente lugd,

ara s(

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bóio, por causa da per Lleitar,niasvai Pi';'-narésdc,,nsgul("Idev(,Illamulher@qu,í- no e seir, ritade de residir em Saliarimp,_

>'c01'1 -Lima qualquer- )Ência de- st'ca. " Mas que é que isto qu( ' Jizer? Ru4yard Kípl-in

- Ela pediu-lhe para ele ser o seu puro.--- o seu clérigo... em Saharunpore, penso eu. Ele não o faria, por causa do seu rio. Como ela falava.

- Está claro para ti, não está? A mim desarma-me completamente. "Assim, irei para Benarés, onde encontrarei morada e enviarei rupias para rapaz que é menina dos olhos e, por amor de Deus Todo-Poderoso, ponde em prática essa educação e 0 vosso PCtIcionári o, devedor da vossa atenção, rezará sempre muito. Escrito por Sobrao Satai, que não conseguiu entrada na Universidade de Allahabad, para o venerável Lama Tchoo, o sacerdote de Zuch-zen que procura um rio, ao cuidado do templo dos Tirthank-ars, Benarés. P S. - Por favor, tende em consideração que o rapaz é menina dos olhos e que as rupias serão enviadas, sempre trezentas por ano. Por amor de Deus Todo-Poderoso. " Agora, isto é loucura furiosa ou uma proposta de negócios? Pergunto-te, porque estou completamente- baralhado.

- Ele diz que me dará trezentas rupias por ano? Então é porque é verdade.

- Ah, é assim que vês as coisas, não é? - Claro. Se ele o diz!

0 padre assobiou; e depois dirigiu-se a Kim como a um igual.

- Não acredito-1 mas veremos. Tu ias hoje partir para o Orfanato Militar em Sanawar, onde o Regimento te manteria até que tivesses idade suficiente para te alistares. Serias educado pela Igreja Anglicana. Bermett deu instruções para isso. Por outro lado, se fores para São Xavier, terás uma educação melhor e... podes ter a religião. Estás a ver o meu dilema?

Kim não via nada, a não ser uma imagem do lama indo para o sul num comboio, sem ninguém para pedir esmolas por ele.

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- Como quase toda a gente, eu vou transigir temporariamente. Se o teu amigo enviar o dinheiro de Benarés... Forças da Escuridão, onde é que um mendigo de rua vai angariar trezentas rupias?... Tu irás para Lucknow e eu pagarei o teu bilhete, porque eu não posso tocar no dinheiro da subscrição, se tencionar, como tenciono, fazer de ti um católico. Se ele não enviar, iras para o Orfanato Militar, a expensas do Regimento. Concedo-lhe a graça de três dias, embora não acredite nada nisso. Mesmo assim, se ele falhar o pagamento mais tarde... mas isso ultrapassa-me. Neste mundo, só podemos dar um passo de cada vez, louvado seja Deus! E eles mandaram Bermett para a frente e deixaram-me para trás. Bermett não pode esperar tudo.

- Ali, simmm - disse Kim vagamente. 0 padre inclinou-se para a frente.

- Dava um mês de salário para descobrir o que vai dentro dessa tua cabecinha redonda.

Kim

- Nada - disse Kini, e coçou--a. Estava a pensar se Mahbub Ali lhe inandaria uma rupia inteira. Nesse caso, ele poderia pagar ao escrivão e escrever cartas para o lama em Benarés. Talvez Malibub Ali o visitasse, na próxima vez que viesse para o sul com cavalos. Decerto ele devia saber que a entrega feita por Kim da carta para o oficial em Umballa provocara a grande guerra que homens e rapazes tinham discutido tão ruidosamente pelas mesas de jantar da caserna. Mas se Mahbub Ali não soubesse isto, seria muito pouco seguro contar-lho. Malibub Ali era muito duro com os rapazes que sabiam, ou pensavam que sabiam, de mais.

-- Bem, até eu receber mais notícias - a voz do padre Victor interrompeu o devaneio - podes ir-te embora e brincar com os outros rapazes. Eles ensinar-te-ão algo... mas não me parece que tu vás gostar.

0 dia arrastava-se para o seu penoso fim. Quando ele desejou dormir, recebeu instruções sobre como dobrar as suas roupas e limpar as botas1 os outros rapazes escarneciam. As cornetas acordaram-no ao alvorecer; o mestre-escola apanhou-o depois do pequeno-almoço, põs-lhe: debaixo do nariz uma página com letras sem significado, deu-lhe nomes sem pés nem cabeça e deu-lhe vergastadas sem motivo. Kini planeou envenena-] o com ópio emprestado por um varredor da caserna, mas reflectiu que, como eles comiam todos a uma mesa em público (isto era particularmente revoltante para Kim, que preferia virar as costas ao mundo durante as refeições), a façanha podia ser perigosa. Depois, tentou fugir para a aldeia onde o padre tentara drogar o lama - a aldeia onde vivia o velho soldado. Mas sentinelas de olhos de

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lince em todas as saídas cortavam a retirada à pequena figura escarlate. Com o corpo estropiado pelas calças e jaqueta e com o espírito do mesmo modo, abandonou o projecto e voltou atrás, à maneira oriental, no tempo e oportunidade. Três dias de tormento passaram nos grandes quartos brancos que faziam eco. Saía de tarde sob a escolta do rapaz do tambor e tudo o que ouvia do seu companheiro eram as poucas palavras inúteis que pareciam constituir dois terços das injúrias do branco, Kini conhecia-as e desprezava-as todas há muito tempo rapaz desforrava-se do seu silêncio e falta de interesse batendo-lhe, como era muito natural. Não se interessava por nenhum dos bazares que era permitido frequentar. Chamava "pretos" a todos os nativos, embora criados e varredores lhe atirassem à cara nomes abomináveis e ele, enganado pela atitude deferente deles, nunca compreendesse. isto, de algum modo, consolava Kini da pancada.

Na manhã do quarto dia, um castigo atingiu esse tocador de tambor. Tinham saído juntos, na direcção de, hipódromo de Urri balla. Ele regres- Kim

sou sozinho, chorando, coma notícia de que Ojovem O'Hara, a querne não fizera nada de especial, chamara um preto de barba escarlate a ca lo; que o preto, então e ali, espancara-o violentamente com urn chicote couro especialmente pegajoso, levantara o jovem O'Hara e afastara ote

-se corÁk ele num galope largo. Estas notícias chegaram ao padre Victor e ele deixo% cair o seu grande lábio superior. Ele j a estava suficientemente surpreendi do com uma carta do Templo dos Tirtharikars em Benarés, que inCI 1 uma promissória de um banqueiro nativo, de trezentas rupias e unia í,, pantosa oração ao "Deus Todo-Poderoso" lama teria ficado mais abor. recido que o padre, se tivesse sabido como é que o escrivão do bazar tra-' duzira a sua expressão " adquirir mérito ". 1

- Forças da Escuridão! - 0 padre Victor agarrou atrapalhadamente na nota. - E agora ele foi-se, com outro dos seus amigos peep-o'day.'Não sei se será um alívio maior para mim tê-lo de volta ou perdê~lo. Ele ultra. passa a minha compreensão. Como Diabo... sim, é ele o homem que eu. tenho em mente... consegue um mendigo de rua arranjar dinheiro para, educar rapazes brancos?

A cinco quilómetros dali, no hipódromo de Umballa, Malibub Al. montando um gararilião cinzento de Cabul, com Kim à sua frente, dizia:, eputa o a,

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- Mas, Pequeno Amigo do Mundo, há a minha honra e reputação a, toda a cida considerar. Todos os sahibs oficiais em todos os regimentos e toda a cida" de de Umballa conhecem Mahbub Ali. Houve quem me visse apanhar-te e punir aquele rapaz. Somos vigiados de longe, do outro lado da planície. Como posso eu levar-te, ou dar contas do teu desaparecimento, se te pu, ser no chão e te deixar fugir pelo meio das colheitas? Eles punham-me na cadeia. Tem paciência. Uma vez sahib, sempre sahib. Quando fores um h0"" mem... quem sabe?... estarás grato a Mahbub Ali.

- Leva-me para longe das sentinelas deles, onde eu possa mudar este vermelho. Dá-me dinheiro e eu irei para Benarés e estarei com o meu outra vez. Eu não quero ser um sahíb e lembra-te de que eu entreguei aque,,, Ia mensagem. 1

o garanhão deu um salto para a frente, descontrolado. Malibul) Ali, 'r' reflectidamente, virara o estribo aguçado. (Ele não era da espécie nova de negociantesde cavalos que usa botas inglesas e esporas-) Kim tirou as SUO conclusões dessa traição.

Aquilo não tinha importãncia. Era na estrada que segue directa PO adversál10' tava

1. Grupo protestante irlandês que, ao romper do dia, revis as casas dos sc 1 1784-1795. (N. da T)

Eu e o sahib, nesta altura, já o esquecemos. Eu envio tantas carrnerisagens a homens que fazem perguntas sobre cavalos, que não

ngui-las umas das outras. Era um assunto de uma égua de igo disti digree?

o sahíb peter queria o pe

Kún viu a armadilha imediatamente. Se ele tivesse dito " égua baía ". teria sabido pela sua grande prontidão em concordar com a moção, que o rapaz suspeitava de algo. Assim, Kini replicou:

- tgua baía. Não. Eu não esqueço assim as minhas mensagens. Era garanhão branco.

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- sim, pois era. Um garanhão árabe branco. Mas tu escreveste 1~a baia".

j- - Quem quer saber de dizer a verdade a um escrivão? - respondeu W, sentindo a palma da mão de Mahbub no seu coração.

v, Eh! Malibub, velho malandro, para! - gritou uma voz e um inglês a galope ao seu lado, num pequeno pónei de pólo. - Tenho anda~ de ti por metade deste país. Esse teu habuli anda mesmo! Para venà,suponho?

-Tenho algumas coisas novas a caminho, feitas no céu para o delicae dificil jogo de pólo. Não tem igual. Ele...

-Joga pólo e espera à mesa. Sim. Sabemos tudo isto. Que demónio Ws tu aí?

tt- - Um rapaz - disse Malibub gravemente. - E stava a ser espancado por outro rapaz pai dele foi um soldado branco na grande guerra raOZ passou a sua infância na cidade de Lahore. Brincou com os meus caWlos quando era bebé. Agora, penso que farão dele um soldado. Foi r -

Í- "ntemente apanhado pelo regimento do pai, que foi para a guerra Ca 9cmana passada. Mas não me parece que ele queira ser soldado. Levo-o a 4"U

in passeio. Diz-me onde é a tua caserna e eu ponho-te lá, Deixa-me ir embora. Eu consigo dar com a caserna sozinho. E se fugires quem irá dizer que a culpa não é minha?

Ele vai Voltar para o jantar. Para onde pode ele ir? - perguntou o 1 h39h.

,

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-Ele nasceu na terra. Temamigos. Elevaionde quer. Éumchabtiksa[indivíduo astuto]. Só precisa de mudar de roupa e, num piscar de

^9LOS, ficaria um rapaz hindu de baixa condição.

-0 diabo é que ficava! - 0 inglês olhou criticamente para o rapaz, IA-1t10-Malibub se virava na direcção das casernas. Kint rangeu os den. ..~Iuu

b estava a zombar dele, como fazem os afegãos descrentes, pois UOU: Rudyardffipling

- Eles vão mandá-lo para uma escola e põr-lhe pesadas botas nos pés e enfaixá-lo nestas roupas. Depois esquecerá tudo o que sabe. Agora, qual das casernas é a tua?

Kini apontou - não conseguia falar - para a ala do padre Victor, de um branco berrante, ali perto.

- Talvez ele se torne num bom soldado - disse Malibub reflectidamente. - Pelo menos dará um bom ordenança. Uma vez mandei-o levar uma mensagem de Lahore. Uma mensagem relativa ao pedigree de um garanhão branco.

Aqui estava um terrível insulto, uma injúria ainda mais terrível - e o sahib, a quem ele tão astuciosamente dera aquela carta de alerta para a guerra, ouviu tudo. Kini olhou para Malibub Ali, fervendo de raiva pela sua deslealdade, mas para si próprio viu apenas uma longa alameda cinzenta de casernas, escolas e casernas de novo. Fixou suplicantemente o rosto implacável, onde não havia um vislumbre de reconhecimento; mas, mesmo neste ponto extremo, nunca lhe ocorreu socorrer-se da compaixão do homem branco, ou denunciar o afegão. E Malibub observava deliberadamente o inglês, que observava também deliberadamente Kini, trémulo e mudo.

- 0 meu cavalo está bem treinado - disse o negociante. - Outros teriam escoucinhado, sahib.

- Ali - disse o inglês por fim, esfregando a cornelha húmida do seu pónei com o cabo do chicote. - Quem fará do rapaz um soldado?

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- Ele diz que é o Regimento que o encontrou e especialmente o sahib capelão do regimento.

- Lá está o capelão! - Kini paralisou quando a cabeça descoberta do padre Victor lhe apareceu à varanda.

- Forças da Escuridão, O'Hara! Quantos mais amigos diferenciados tens tu na Asia? - gritou ele, quando Kim desmontou e ficou desamparadamente à frente dele.

- Born dia, capelão - disse alegremente o inglês -, conheço a sua reputação suficientemente bem. já tencionava vir cá e chamá-lo antes dísto. Chamo-me Creighton.

- Da pesquisa etnológica? - pergi, intou o padre Victor inglês ace~ nou. - Palavra, então fico contente por conhecê-lo; e devo-lhe agradecimentos por trazer de volta o rapaz.

- Não me agradeça, capelão. Além disso, o rapaz não se ia embora. Não conhece o velho Mahbub Ali. -- 0 traficante de cavalos estava impassível, sentado à luz do sol. --- Conhecerá, depois de estar um mês na

Kim

estação. Ele vende-nos todos os nossos cavalos rebentados. Esse rapaz é, sem dúvida, uma curiosidade. Pode contar~me algo acerca dele?

- Posso contar-lhe? - soprou o padre Vietor. - 0 senhor será o único homem que me pode ajudar nos meus dilemas. Contar-lhe? Forças da Escuridão, eu estou a rebentar por contar a alguém que saiba algo sobre os nativos!

Um criado contornou a esquina coronel Creigliton ergueu a voz, falando em urdu.

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- Muito bem, Malibub Ali, mas qual é a utilidade de me contares todas essas histórias sobre o pónei? Não darei nem mais uma moeda para além de trezentas e cinquenta rupias!

- 0 sahib fica um pouco afogueado e zangado depois de montar replicou o traficante de cavalos, com um olhar irónico de gracejador privilegiado. - Dentro em pouco, ele verá os sinais dos meus cavalos com mais clareza. Esperarei até que ele termine a sua conversa com o capelão. Esperarei debaixo daquela árvore.

- Vai para o Diabo! - riu-se o coronel. - Isto é o resultado de olhar para um dos cavalos de Malibub. Ele é um velho maçador habitual, capelão. Espera, então, se tens tanto tempo para desperdiçar, Mahbub. Agora estou ao seu serviço, capelão, Onde está o rapaz? Ali, saiu para confidenciar com o Malibub. Estranho tipo de rapaz. Posso pedir-lhe que mande abrigar a minha égua?

Deixou-se cair numa cadeira que dominava uma visão clara de Kim e Mal-ibub Ali, conferenciando entre as árvores capelão entrou, para ir buscar charutos.

Creigliton ouviu Kim dizer amargamente:

- Confia num brãmane primeiro que numa cobra e numa cobra primeiro que numa meretriz e numa meretriz primeiro que num patane, Mahbub Ali.

- É tudo o mesmo. - A grande barba vermelha balouçou solenemente. - As crianças não deviam ver um tapete no tear até que o padrão estivesse explicado. Acredita-me, Amigo do Mundo, eu estou a prestar-te um grande serviço. Eles não farão de ti um soldado.

"Velho pecador astuto! ", pensou Creighton. "Mas não estás muito enganado. Esse rapaz não deve ser desperdiçado, se é como foi anunciado. "

- Desculpe-me meio minuto - gritou o capelão de dentro -, mas estou a recolher os documentos deste caso.

-Se o favor deste corajoso e sensato coronel chegar a ti através de Rud _yard Kiplim

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mim e tu fores elevado à honra, que agradecimentos farás a Mahbub Ali quando fores um homem?

- Não, não! Eu implorei-te que me deixasses tomar a estrada outra vez, onde eu estaria seguro; e tu vendeste-me de novo aos ingleses. Que te darão eles como recompensa?

- Um animado demoniozinho! - 0 coronel bateu o seu charuto e virou-se delicadamente para o padre Victor.

- Que são as cartas que o padre gordo está a acenar à frente do coronel? Põe~te atrás do garanhão, como se estivesses a olhar para o meu freio! - disse Mahbub Ali.

- Uma carta do meu lama, q .ue ele escreveu da estrada de Jagadhir, dizendo que pagará trezentas rupias por ano para a minha instrução.

- Oh! 0 velho Chapéu Vermelho é desse tipo? Em que escola? - Sabe Deus. Acho que é em NucIdao.

- Sim. Há lá uma grande escola para os filhos dos sahibs... e mcio~sahibs. Tenho-a visto, quando vendo lá cavalos. Então o lama também gostava do Amigo do Mundo?

- Sim, e ele não dizia mentiras, nem me devolveria ao cativeiro.

- Não admira que o capelão não saiba como desenlear o fio. Como ele fala depressa com o sahib coronel! - riu por entre dentes Mahbub Ali. Por Ala! - os olhos perspicazes varreram a varanda por um instante -, o teu lama mandou o que a mim me parece uma promissória. Eu tenho tido alguns negócios em prestações sabib coronel está a olhar para ela.

- Que é que tudo isso me traz de bom? - perguntou Kini penosamente. - Tu vais~te embora e eles devolver-me-ão àqueles quartos vazios onde não há sítio para dormir e onde os rapazes me batem.

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- Eu não penso assim. Tem paciência, pequeno. Nem todos os patanes são descrentes... excepto em carne de cavalo.

Cinco - dez - quinze minutos passaram, com o padre Victor a falar energicamente ou a fazer perguntas às quais o coronel respondia.

- Agora, já lhe contei tudo o que sei sobre o rapaz, do princípio ao fim; e é um alívio abençoado para mim. Alguma vez ouviu coisa igual? - De qualquer modo, o ancião enviou o dinheiro. As promissórias de

Gobind Sahai são válidas daqui até à China - disse o coronel, - Quanto mais sabemos sobre os nativos, menos conseguimos dizer o que vão ou não fazer.

Isso é consolador.. vindo da chefia da Pesquisa Etnológica. É esta mistura de Touros Vermelhos e Rios Curativos (pobre pagão, Deus o proteja!) e promissórias e certificados maçónicos senhor, por acaso, é mação?

Kím

- Caramba, sou, agora que penso nisso. É uma razão adicional - disse o coronel, distraidamente.

- Alegra-me que veja nisso uma razão . Mas, como eu disse, é a mistura de coisas que me ultrapassa. E o facto de ele profetizar em relação ao nosso coronel, sentado na minha cama, com a sua pequena camisa rasgada, mostrando a pele branca; e a profecia realizar-se! Eles curarão todo esse disparate em São Xavier, bem?

- Salpique-o com água benta - riu-se o coronel.

- Palavra, às vezes julgo que devia fazê-lo. Mas tenho esperança de que ele seja educado como um bom católico que me preocupa é o que acontecerá se o velho mendigo...

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-. Lama, lama, meu caro senhor 1 e alguns deles são senhores no seu proprio pais.

- Se o lama, então, não fizer o pagamento no próximo ano. Ele é um óptimo condutor de negócios para fazer planos no impulso do momento, mas está sujeito a morrer um dia. E aceitar o dinheiro de um pagão para dar a uma criança uma educação cristã...

- Mas ele disse explicitamente o que queria. Logo que soube que o rapaz era branco, ele parece ter tomado as suas providências de acordo com isso. Dava um mês de salário para ouvir como e que ele explicou tudo isso no Templo dos Tirthankars, em Benarés. Escute, capelão, eu não pretendo saber muito sobre os nativos, mas, se ele diz que paga, pagará... morto ou vivo. Quero dizer, os herdeiros dele assumirão a dívida meu conselho é que mande o rapaz para Lucknow Se o seu capelão anglicano pensar que se lhe antecipou...

- Azar do Bennett! Ele foi mandado para a Frente em vez de mim Doughty declarou-me fisicamente inapto. Excomungarei Doughty, se ele voltar vivo. Decerto, Bermett devia estar contente com...

- Louvado Deus, deixar-lhe a si a religião. Isso mesmo! Por acaso, não penso que Bermett se importe. Ponha a culpa em cima de mim. Eu... an... recomendo vivamente o envio do rapaz para São Xavier. Ele pode ir com uma licença de órfão de um soldado, para que o bilhete de comboio seja poupado. Pode comprar-lhe um fato com a contribuição regimental. A maçonaria poupará a despesa da educação dele e isso deixará a maçonaria de bom humor. É muito fácil. Eu tenho de ir a Lucknow na próxima semana. Tomarei conta do rapaz no caminho... ponho-o a cargo dos meus criados, etc.

- 0 senhor é um bom homem.

- De modo nenhum. Não se engane lama mandou-nos dinheiro Rudyard Kiplíng

- Eles vão mandá-lo para uma escola e põr-lhe pesadas botas nos pés e enfaixa-lo nestas roupas. Depois esquecerá tudo o que sabe. Agora, qual das casernas é a tua?

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Kim apontou -- não conseguia falar - para a ala do padre Victor, de um branco berrante, ali perto.

- Talvez ele se torne num bom soldado - disse Malibub reflectidamente. - Pelo menos dará um bom ordenança. Uma vez mandei-o levar uma mensagem de Lahore. Uma mensagem relativa ao pedigree de um garanhão branco.

Aqui estava um terrível insulto, uma injúria ainda mais terrível - e o sahib, a quem ele tão astuciosamente dera aquela carta de alerta para a guerra, ouviu tudo. Kini olhou para Malibub Ali, fervendo de raiva pela sua deslealdade, mas para si próprio viu apenas uma longa alameda cinzenta de casernas, escolas e casernas de novo. Fixou suplicantemente o rosto implacável, onde não havia um vislumbre de reconhecimento; mas, mesmo neste ponto extremo, nunca lhe ocorreu socorrer-se da compaixão do homem branco, ou denunciar o afegão. E Mahbub observava deliberadamente o inglês, que observava também deliberadamente Kini, trémulo e mudo.

- 0 meu cavalo está bem treinado - disse o negociante. - Outros teriam escoucinhado, sahib.

- Ali - disse o inglês por fim, esfregando a cornelha húmida do seu pónei com o cabo do chicote. -- Quem fará do rapaz um soldado?

- Ele diz que é o Regimento que o encontrou e especialmente o sahib capelão do regimento.

- Lá está o capelão! - Kim paralisou quando a cabeça descoberta do padre Victor lhe apareceu à varanda.

- Forças da Escuridão, O'Hara! Quantos mais amigos diferenciados tens tu na Ásia? - gritou ele, quando Kim desmontou e ficou desamparadamente à frente dele.

- Bom dia, capelão - disse alegremente o inglês -, conheço a sua reputação suficientemente bem. já tencionava vir cá e chamá-lo antes disto. Chamo-me Creigliton.

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- Da pesquisa etnológica? - perguntou o padre Victor inglês acenou. - Palavra, então fico contente por conhecê-lo; e devo-lhe agradecimentos por trazer de volta o rapaz.

- Não me agradeça, capelão. Além disso, o rapaz não se ia embora. Não conhece o velho Malibub Ali. -- 0 traficante de cavalos estava impassível, sentado à luz do sol. - Conhecerá, depois de estar um mês na

Kim

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estação. Ele vende-nos todos os nossos cavalos rebentados. Esse rapaz é, sem dúvida, uma curiosidade. Pode contar~me algo acerca dele?

- Posso contar-lhe? - soprou o padre Victor. - 0 senhor será o único homem que me pode ajudar nos meus dilemas. Contar-lhe? Forças da Escuridão, eu estou a rebentar por contar a alguém que saiba algo sobre os nativos!

Um criado contornou a esquina coronel Creigliton ergueu a voz, f lando em urdu.

- Muito bem, Mahbub Ali, mas qual é a utilidade de me contare das essas histórias sobre o pónei? Não darei nem mais uma moeda a a além de trezentas e cinquenta rupias!

- 0 sahib fica um pouco afogueado e zangado depois de mont r(.0 replicou o traficante de cavalos, com um olhar irónico de gracejador vilegiado. - Dentro em pouco, ele verá os sinais dos meus cavalos co mais clareza. Esperarei até que ele termine a sua conversa com o capelão. Esperarei debaixo daquela árvore.

- Vai para o Diabo! - riu~se o coronel. - Isto é o resultado de olhar para um dos cavalos de Malibub. Ele é um velho maçador habitual, capelão. Espera, então, se tens tanto tempo para desperdiçar, Mahbub. Agora estou ao seu serviço, capelão. Onde está o rapaz? Ali, saiu para confidenciar com o Malibub. Estranho tipo de rapaz. Posso pedir-lhe que mande abrigar a minha égua?

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Deixou~se cair numa cadeira que dominava uma visão clara de Kiní e Malibub Ali, conferenciando entre as árvores capelão entrou, para ir buscar charutos.

Creighton ouviu Kmi dizer amargamen[e-.

- Confia num brãmane primeiro que numa cobra e numa cobra primeiro que numa meretriz e numa meretriz primeiro que num patane, Malibub Ali.

- É tudo o mesmo. - A grande barba vermelha balouçou solenemente. - As crianças não deviam ver um tapete no tear até que o padrão estivesse explicado. Acredita-me, Amigo do Mundo, eu estou a prestar-te um grande serviço. Eles não farão de ti um soldado.

"Velho pecador astuto! ", pensou Creighton. "Mas não estás muito enganado. Esse rapaz não deve ser desperdiçado, se é como foi anunciado. "

- Desculpe-me meio minuto - gritou o capelão de dentro -, mas estou a recolher os documentos deste caso.

- Se o favor deste corajoso e sensato coronel chegar a ti através de Rudyard K1p1itg

mim e tu fores elevado à honra, que agradecimentos farás a Malibub Ali quando fores um homem?

- Não, não! Eu implorei-te que me deixasses tomar a estrada outra vez, onde eu estaria seguro; e tu vendeste-me de novo aos ingleses. Que te darão eles como recompensa?

- Um animado demoniozinho! - 0 coronel bateu o seu charuto e virou-se delicadamente para o padre Victor.

Page 151: Visionvox · Web view(D The National Trust for Places of Historic Interest or National Beauty (D 2003 BIBLIOTEX EDITOR, S.L., para esta edição Impressão Printer, Industria Gráfica,

- Que são as cartas que o padre gordo está a acenar à frente do coronel? Põe-te atrás do garanhão, como se estivesses a olhar para o meu freio! disse Malibub Ali.

- Uma carta do meu lama, que ele escreveu da estrada de Jagadhir, dizendo que pagará trezentas rupias por ano para a minha instruçao.

- Oh! 0 velho Chapéu Vermelho é desse tipo? Em que escola? - Sabe Deus. Acho que é em Nuck1ao.

- Sim. Há lá uma grande escola para os filhos dos sahibs--- e meio-sa~ hibs. Tenho-a visto, quando vendo lá cavalos. Então o lama também gostava do Amigo do Mundo?

- Sim, e ele não dizia mentiras, nem me devolveria ao cativeiro.

- Não admira que o capelão não saiba como desenlear o fio. Como ele fala depressa com o sahib coronel! - riu por entre dentes Malibub Ali. Por Ala! - os olhos perspicazes varreram a varanda por um instante -, o teu lama mandou o que a mim me parece uma promissória. Eu tenho tido alguns negócios em prestações sahib coronel está a olhar para ela.

- Que é que tudo isso me traz de bom? - perguntou Kini penosamente. - Tu vais-te embora e eles devolver-me-ão àqueles quartos vazios onde não há sítio para dormir e onde os rapazes me batem.

-- Eu não penso assim. Tem paciência, pequeno. Nem todos os patames são descrentes... excepto em carne de cavalo.

Cinco - dez - quinze minutos passaram, com o padre Victor a falar energicamente ou a fazer perguntas às quais o coronel respondia,

- Agora, já lhe contei tudo o que sei sobre o rapaz, do princípio ao fim, e é um alívio abençoado para mim. Alguma vez ouviu coisa igual? - De qualquer modo, o ancião enviou o dinheiro. As promissórias de

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Gobind Sahai são válidas daqui até à China - disse o coronel. - Quanto mais sabemos sobre os nativos, menos conseguimos dizer o que vão ou não fazer.

- Isso é consolador... vindo da chefia da Pesquisa Etnológica. É esta mistura de Touros Vermelhos e Rios Curativos (pobre pagão, Deus o proteja!) e promissórias e certificados maçónicos senhor, por acaso, é mação?

Kim

- Caramba, sou, agora que penso nisso. É um, Jo adicional - disse o coronel, distraidamente.

- Alegra-me que veja nisso uma razão. Mas,, -) eu disse, é a mistura de coisas que me ultrapassa. E o facto de ele F ',iizar em relação ao nosso coronel, sentado na minha cama, com a sua,:.uena camisa rasgada, mostrando a pele branca; e a profecia realiza, Eles curarão todo esse disparate em São Xavier, bem?

- Salpique-o com água benta - riu-se o coro i

- Palavra, às vezes julgo que devia fazê~lo. mho esperança de que ele seja educado como um bom católico qL -> preocupa é o que acontecerá se o velho mendigo...

- Lama, lama, meu caro senhor, e alguns dei senhores no seu próprio país.

- Se o lama, então, não fizer o pagamento no - -,imo ano. Ele é um óptimo condutor de negócios para fazer planos no, -,.ilso do momento, mas está sujeito a morrer um dia. E aceitar o din,, de um pagão para dar a uma criança uma educação cristã...

- Mas ele disse explicitamente o que queria que soube que o rapaz era branco, ele parece ter tomado as suas F -Jências de acordo com isso. Dava um mês de salário para ouvir come ele explicou tudo isso no Templo dos Tirthankars, em Benarés. Escu :,pelão, eu não pretendo saber muito sobre os nativos, mas, se ele ,..uc paga, pagará... morto ou vivo. Quero dizer, os herdeiros dele ass -.,o a dívida meu conselho é que mande o rapaz para Lucknow. se capelão anglicano pensar que se lhe antecipou...

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- Azar do Bennett! Ele foi mandado para a Fr, vez de mim Doughty declarou-me fisicamente inapto. Excon, :ei Doughty, se ele voltar vivo. Decerto, Bermett devia estar contente

- Louvado Deus, deixar-lhe a si a religião. Issc :iio! Por acaso, não penso que Bermett se importe. Ponha a culpa em . , -1c mim. Eu... an.--- recomendo vivamente o envio do rapaz para São --- r. Ele pode ir com uma licença de órfão de um soldado, para que o - de comboio seja poupado. Pode comprar-lhe um fato com a con:'',ão regimental. A maçonaria poupará a despesa da educação dele e - leixará a maçonaria de bom humor, É muito fácil. Eu tenho de ir,, ---mow na proxima semana. Tomarei conta do rapaz no caminho... PC.. ) a cargo dos meus criados, etc.

- 0 senhor é um bom homem.

- De modo nenhum. Não se engane la= dou-nos dinheiro pâ

com um fim definido. Não podemos devolvê-lo com facilidade. Teremos de fazer como ele diz. Bem, está resolvido, não está? Digamos que, na próxima terça-feira, mo mandará no comboio da noite, que vai para o sul? São só três dias. Ele não pode fazer muito mal em três dias.

um peso que sai de cima de mim, mas... esta coisa aqui? - Acenou com a promissória. - Eu não conheço esse Gobind Sahai; riem o seu banco, que pode ser um buraco na parede.

- 0 senhor nunca foi um subalterno endividado. Eu deposito-lho, se quiser, e mando-lhe os recibos na devida ordem.

Mas também com o seu próprio trabalho. E pedir...

- De modo nenhum, não me dá trabalho nenhum. Percebe, como etnólogo a coisa é muito interessante para mim. Gostaria de tomar nota do caso para um trabalho que estou a fazer para o governo. A transformação de uma divisa regimental como o seu Touro Vermelho numa espécie de feitiço que o rapaz segue é muito interessante.

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- Mas eu não posso agradecer-lhe o suficiente. nvejosos - Há uma coisa que pode fazer. Todos nós, etnólogos, somos i como gralhas pelas descobertas uns dos outros. Elas não têm interesse para mais ninguém senão para nós mesmos, claro, mas sabe como são os coleccionadores de livros. Bem, não diga uma palavra, directa ou indirectamen~ te, sobre o lado asiático do carácter do rapaz... as suas aventuras e a sua profecia, etc. 'Tentarei arrancar-lhes o rapaz mais tarde e... compreende?

- Compreendo senhor fará disso um maravilhoso relato. Nunca direi uma palavra a ninguém até vê-fo impresso.

- Obrigado. Isso vai directo ao coração de um etnólogo. Bem, devo regressar para o meu pequeno-al moço. Meu Deus! 0 velho Mahbub ainda aqui? - Ergueu a voz e o traficante de cavalos saiu da sombra da árvore. - Bem, o que é?

- No que diz respeito àquele jovem cavalo - disse Mahbub -, eu afirmo que, quando um potro nasce para ser um pónei de pólo, quase segue a bola sem ser ensinado... quando tal potro conhece o j .ogo por intui-- ção... então, digo que é um grande erro atrelar esse potro a uma pesada carroça, sahib!

- Também eu o digo, Mahbub potro será registado apenas para o pólo. (Estes tipos não pensam em mais nada no mundo a não ser em cavalos, capelão.) Até amanhã, Mahbub, se tiveres algo prometedor para vender.

0 traficante saudou, à maneira dos cavaleiros, com um movimento circular da mão livre.

ffim

- Tem um pouco de paciência, Amigo do Mundo - sussurrou ele para o martirizado Kim. - A tua sorte está traçada. Dentro em pouco

a Nuck1ao e... aqui está qualquer coisa para pagares ao escrivão. vais par

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ver~te-ei de novo, penso eu, muitas vezes - e galopou pela estrada abaixo.

- Ouve-me - disse o coronel da varanda, falando o vernáculo. Daqui a três dias irás comigo para Lucknow, vendo e ouvindo novas coisas durante todo o tempo. Portanto, fica calmo durante três dias e não fuolá em Lucknow-

jas. Irás para a esc

Encontrarei lá o meu Santo? - choramingou Kim.

Pelo menos, Lucknow é mais perto de Benarés do que Umballa. Pode ser que vás lá sob a minha protecção. Mahbub Ali sabe isto e ficará zangado se tu regressares à estrada agora. Lembra-te... muito me foi dito, que eu não esqueço.

Esperarei - disse Kim mas os rapazes bater-me-ão. Então a corneta tocou para o jantar. Vil

Com que fim estão os plenos sóis equilibrados Com luas idiotas e estrelas atrás de estrelas?

Rasteja tu no meio - a tua vinda é completamente silenciosa. 0 Céu tem as swis nobres, como a Terra as tem mais vis, guerras. Herdeiro destes tumultos, deste medo, desse desgaste

(Pelos pais de Adão, reconhece, sempre ligado ao pecado); Desponta, traça o teu horóscopo e diz

Que planeta corrige o teu velho destino ou ruína!

SIRJOHN CHRISTIE

À tarde, o mestre-escola de rosto vermelho disse a Kini que lhe tinham "retirado a força", o que não significava nada para ele, ate que foi mandado embora para brincar. Então, correu ao bazar e descobriu o jovem escrivão a quem devia um selo.

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-Agora pago - disse Kurt pdncipescamente - e agora preciso que me escrevas outra carta.

- Mal---ibub Ali está em Umballa - disse o escrivão com à-vontade. Era, em virtude do seu oficio, um serviço de má informação geral.

- Esta não é para Malibub, mas para um padre. Pega na tua caneta e escreve depressa. "Para o Lama ^fêshoo, o Santo do Iluminado, em busca de um rio, que está agora no Têmplo dos Tirthankars, em Benarés." Tira inais tinta! "Daqui a três dias \70U para Nuck1ao, para a escola de Nuck1ao. 0 nome da escola é Xavier. Não sei onde essa escola fica, mas é em Nucklao. "

-Mas eu conheço Nuck1ao - interrompeu o escrivão. - Eu conheÇO a escola,

- Diz~lhe onde é e, eu dou-te meio anã. A caneta vermelha arranhou activamente.

- Quem está a observar-rios do outro lado da rua?

Kin1 ergueu os olhos apressadamente e viu o coronel Creighton, com calças de ténis, de flanela.

- Ah, é um sahib que conhece o padre gordo da caserna. Ele está a aceriar-rne. Rudyard Kipling_

- Que fazes? - perguntou o coronel, quando Kim se aproximou rapidamente.

- Eu... eu não estou a fugir. Mando uma carta ao meu Santo em Benarés.

- Não tinha pensado nisso. Disseste que eu te levo para Lucknow? - Não, não disse. Lê a carta, se tens alguma dúvida.

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-- Então por que é que deixaste o meu nome de fora, ao escreveres a esse Santo? - 0 coronel sorriu, com um sorriso estranho.

Kim armou-se de coragem.

- Foi-me dito uma vez que é inconveniente escrever os nomes de estranhos relacionados com qualquer assunto, porque, através da designação de nomes, muitos bons planos são arruinados.

- Foste bem ensinado - replicou o coronel e Kim corou.- Deixei a minha caixa de charutos na varanda do capelão. Leva-a à minha casa esta noite.

- Onde é a casa? - perguntou Kiní. A sua rápida perspicácia disse-lhe que estava a sei, testado de uma maneira ou de outra e ficou de pé atrás. - Pergunta a qualquer pessoa no grande bazar. - 0 coronel seguiu o seu caminho.

- Ele esqueceu-se da caixa dos charutos - disse Kiní, voltando. Tenho de a levar esta noite. É tudo, na minha carta, excepto, três vezes seguidas, "vem ter comigo! Vem ter comigo! Vem ter comigo! ". Agora pagarei um selo e põ-la-ei no correio. - Ergueu-se para se ir embora e, como que reflectindo, perguntou. - quem é aquele sahib de cara zangada que perdeu a caixa dos charutos?

- Ah, é apenas o sahib Creighton... um sahib muito tolo que é coronel sem regimento .

Qual é o negócio dele?

Sabe Deus. Está sempre a comprar cavalos que não pode montar e a perguntar coisas misteriosas sobre as obras de Deus... como plantas e pedras e os costumes das pessoas. os negociantes chamam-lhe "pai dos tolos", por ele ser tão facilmente enganado sobre um cavalo. Mahbub Ali diz que ele é mais louco que a maior parte dos outros sahibs.

- Ah! - fez Kim, e partiu seu treino dera-lhe um pequeno conhecimento sobre a personalidade e argumentou que os tolos não recebem informações que levem a convocar oito mil homens,

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além dos canhões comandante supremo de toda a índia não fala, como Kim o ouvira falar, a loucos. Nem o tom de Mal---íbub Ali mudaria, como mudava todas as vezes que mencionava o nome do coronel, se este fosse um tolo-

Kim

Consequentemente - e isto deixou Kim aos saltos -, havia algures um mistério e Mahbub Ali, provavelmente, era espião do coronel, tal como Kim fora de Mal---íbub. E, tal como o traficante de cavalos, o coronel, evidentemente, respeitava as pessoas que não se mostravam demasiado espertas.

Regozijou-se por não ter traído o seu conhecimento sobre a casa do coronel; e quando, ao regressar à caserna, descobriu que nenhuma caixa de charutos lá ficara, sorriu com deleite. Aqui estava um homem semelhante a ele - uma pessoa tortuosa e indirecta, jogando um jogo oculto. Bem, se ele podia ser louco, também Kim podia. Não revelou nada dos seus pensamentos quando o padre Victor, durante três longas manhãs, dissertou sobre um conjunto inteiramente novo de deuses e deusas - especialmente uma deusa chamada Mary, que, deduziu ele, era uma que, com Bibi Miriam, fazia parte da teologia de Mahhub Ali. Não revelou nenhuma emoção quando, depois da prelecção, o padre Victor o arrastou de loja em loja, comprando artigos de vestuário, nem se queixou quando rapazes do tambor invejosos o pontapearam, por ele ir para uma escola superior, mas esperou o desenrolar dos acontecimentos com um espírito interessado padre Victor, bom homem, levou-o à estação, colocou-o numa carruagem vazia de segunda classe, ao lado da de primeira do coronel Creighton e lez-ffie adeus com autêntico sentimento.

- Eles farão de ti um homem, OTIara, em São Xavier... um homem branco e, espero, um bom homem. Ele sabe tudo sobre a tua ida e o coronel fará com que tu não te percas ou extravies em sítio nenhum da estrada. Dei-te uma noção dos assuntos religiosos, pelo menos assim o espero, e tu lembrar-te-ás, quando te perguntarem a tua religião, que és católico, Melhor dizendo, católico romano, embora eu não goste da palavra.

Kim acendeu um cigarro rançoso - tivera o cuidado de comprar um fornecimento no bazar - e deitou-se para pensar. Este trajecto solitário era muito diferente daquela alegre viagem para o sul, em terceira classe, com o lama.

- Os sahibs tiram pouco prazer da viagem - reflectiu. - Hai mai! Vou de um lado para o outro como se fosse uma bola a que se dá um pontape. É o meu Kismet. Ninguém consegue escapar

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ao seu Kismet. Mas eu devo rezar a Bibi Miriam e sou um sahib. - Olhou para as botas pesarosamente. - Não, eu sou o Kim. Este é o imenso mundo e eu sou apenas o Kim, Quem é o Kim? - Questionou a sua própria identidade, uma coi- Ru&ard

sa que nunca fizera antes, até ficar com a cabeça à roda. Ele era uma pessoa insignificante neste turbilhão ensurdecedor da índia, indo na direcção sul, não sabia com que destino. e falou durante Passado pouco tempo, o coronel mandou~o chamar

muito tempo. Tanto quanto Kin---i conseguiu concluir, ele devia ser dili~ gente e entrar para a pesquisa da índia como cio .de ligação . Se ele fosse muito bom e passasse nos exames próprios, estaria a ganhar trinta rupias por mês aos 17 anos e o coronel Creighton trataria de lhe arranjar um emprego adequado. talvez uma palavra em cada três Kim, a princípio, fingiu compreender

desta conversa. Então o coronel, vendo o seu erro, mudou para um urdu fluente e pitoresco e Kim ficou contente. Ninguém que conhecesse a língua tão intimamente, que se movesse tão suave e silenciosamente e cnios olhos fossem ião diferentes dos tapados olhos papudos dos outros sahibs podia ser um louco. sboços de estradas e montanhas -Sim, e deves aprender como fazer e

C rios... para os teres presentes nos teus olhos até que chegue a altura adequada para os transpores para o papel. Talvez um dia, quando fores um elo de ligação, eu te possa dizer quando iremos trabalhar juntos: "Atra-

-pois alguém dirá: vessa essas montanhas e vê o que há para além delas". De

"Há pessoas más a viver nessas montanhas, que matarão o elo de ligação se ele for visto parecendo um sahib". E depois?

Kini pensou. Seria seguro devolver a condução ao coroncP

- Eu diria o que esse outro homem disse . pelo teu conheci- - Mas, se eu respondesse: "Eu dar-te-ei cem ruPlas

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mérito do que há atrás daquelas montanhas... por um desenho de um rio e alguma informação do que as pessoas dizem lá nas aldeias"?

- Como posso eu dizer? Sou apenas um rapaz. Espera até que eu seja um homem. - Depois, vendo a sobrancelha do coronel velada, cOnti~ nuou: - Mas penso que ganharia nuns dias as cem rupias.

- Como farias?

Kim sacudiu a cabeça resolutamente. nte- - Se eu dissesse como as ganharia, outro homem podia ouvir e a cipar-se a mim. Não ébom vender conhecimentos por nada. Se lhe

- Diz agora. - o coronel ergueu uma rupia. A mão de Kini qua chegou e deixou-se cair. la resposta, mas não - Não, sahb, não. Eu sei o preço que será pago pc

sei por que é que a pergunta é feita.

- Aceita-a como uma oferta, então - disse Creighton, atirando-a- -

Kim

Há uma boa consciência em ti. Não deixes que ela se esbata em São Xavier. Há muitos rapazes lá que desprezam os homens negros.

- As mães deles eram mulheres de bazar - disse Kini. Ele sabia bem que não há ódio como o do mestiço pelo seu cunhado.

- É verdade, mas tu és um sahib e filho de um sahib. Por conseguinte, não sejas nunca levado a menosprezar os homens negros. Conheci rapazes entrados recentemente ao serviço do governo, que fingiram não compreender a fala nem os costumes dos negros seu pagamento lOi suspenso por ignorãncia. Não há pecado tão grande como a ignorãncia. Lembra-te disto.

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Várias vezes durante a longa corrida de vinte e quatro horas para o sul mandou o coronel chamar Kim, sempre para desenvolver este último tema. - Estaremos todos numa corrente condutora, então - disse Kim por

fim -, o coronel, Mal---ibub Ali e eu... quando eu me tornar num elo de ligação. Ele utilizar-me-á como Mahbub Ali me utilizou, penso eu. Isso é bom, se me permitir regressar de novo à estrada. Este fato não alarga mais facilmente com o uso.

Quando chegaram à concorrida estação de Lucknow, não havia sinais do lama. Ele engoliu o seu desapontamento, enquanto o coronel o metia num ticca-gharri com os seus limpos pertences e o despachava sozinho para São Xavier.

- Não digo adeus, porque nos encontraremos de novo - gritou ele. De novo e muitas vezes, se tu fores consciencioso. Mas tu ainda não tens experiência.

- Nem quando eu te levei - Kim, de facto, atrevia-se a utilizar o tu dos iguais - o Pedigree do garanhão naquela noite?

- Ganha-se muito em esquecer, pequeno irmão - disse o coronel, com um olhar que trespassou as omoplatas de Kini, ao mesmo tempo que entrava apressadamente na carruagem.

Demorou quase cinco minutos a recuperar. Depois aspirou o novo ar, apreciando-o.

- Uma cidade rica - disse ele. - Mais rica que Lahore. Como os bazares devem ser bons! Cocheiro, leva-me um pouco pelos bazares daqui. - A minha orderri é levar-te para a escola. - o condutor usou o "tu",

o que é grosseria quando aplicado a um branco. No mais claro e fluente vernáculo, Kim apontou-lhe o seu erro, trepou para o assento ao lado do cocheiro e, estabelecido o perfeito entendimento, guiou durante umas horas Para cima e para baixo, avaliando, comparando e divertindo-se. Não há ci~ dade - excepto Bombaim, a rainha de todas - mais bonita no seu estilo RudyardKipà,

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Kim

dv'stoso do que Lucknow, quer se veja da ponte sobre 0 rio, quer do cimo o Imambara, vendo cá em baixo os chapéus de sol dourados do Chutter

Munzil e as árvores no meio das quais a cidade está colocada. Reis adornaram-na com edifícios fantásticos, doaram-lhe obras de beneficência, abarrotaram-na de assalariados e ensoparam-na de sangue. Ela é o centro de toda a ociosidade, intriga e luxo e divide com Délhi a pretensão de falar o único puro urdu.

- Uma cidade clara... uma bela cidade. - 0 condutor, corno habitante de Lucknow, estava satisfeito com o elogio e contou a Kini muitas coisas aterradoras, onde um guia inglês teria falado da Revolta.

- Agora iremos para a escola - disse Kim por fim.

A grande e velha escola de São Xavier, em Partibus, quarteirão sobre quarteirão de baixos edifícios brancos, fica nos vastos terrenos do outro lado do rio Guinti, a alguma distãncia da cidade.

- Que tipo de gente são eles lá dentro? - perguntou Kim. -jovens sahibs... todos diabos. Mas, para dizer a verdade, e eu conduzo muitos deles da e para a estação de comboios, nunca vi um que tivesse em si a estrutura de um mais perfeito diabo que tu... este i ovem sahib a quem estou agora a conduzir.

Naturalmente, já que nunca fora treinado para as considerar em aspecto nenhum impróprias, Kim passara horas do dia com uma ou duas senhoras levianas em j anelas superiores numa certa rua e, naturalmente, na troca de elogios saíra-se bem. Estava prestes a admitir a última insolência do condutor quando os seus olhos - estava a anoitecer - surpreenderam uma figura na grande extensão de parede.

- Para! - gritou ele. - Fica aqui. Eu não vou já para a escola.

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- Mas quanto me vai pagar por estas idas e vindas? - perguntou o condutor com petuIãncia. - 0 rapaz é doido? Da última vez foi uma bailarina. Desta vez é um padre. i

Kini precipitou-se para a estrada, batendo levemente nos pés empoeirados debaixo da túnica amarela.

- Esperei aqui durante um dia e meio _ começou a voz suave do lama. - Não, tinha um discípulo comigo. Ele, que era meu amigo 110 11 Templo dos Tirthankars, deu-me um gula para esta viagem. vim de Bena

rés no comboio, quando a tua carta me foi entregue. Sim estou bem alimentado. Não preciso de nada.

- Mas por que é que não ficaste com a mulher de Kulu, ó Santo? De que modo chegaste a Benarés? 0 meu coração tem estado pesado desde que nos separámos.

A mulher fatigava-me pela constante torrente de conversa e pedi*S de sortilégios para crianças

. Separei-me de tal companhia, permitindo-lhe adquirir mérito através de ofertas. Ela é, pelo menos, uma mulher í* mãos largas e eu fiz uma promessa de regressar à casa dela, se a neces"de surgisse. Depois, percebendo que estava sozinho neste imenso e WrrIvel mundo, lembrei-me do comboio para Benarés, onde conheci um abade no Templo dos Tirtharikars, que era um buscador, exactamente como eu.

_ Ah! o teu rio - disse Kini. - Tinha esquecido o rio.

-Tão depressa, meu chela? Eu nunca o esqueci. Mas, quando te deiwj, pareceu-me melhor ir para o Templo e aconselhar-me, pois, vê tu, a h,& é muito grande e pode ser que homens sensatos antes de nós, uns dois ou três, tenham deixado um registo do lugar do nosso rio. Há dis~o no Templo dos Tirthankars sobre este assunto, uns dizem uma coi- 11 sa e outros outra. São pessoas corteses.

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- Seja, mas que vais fazer agora?

- Eu adquiro mérito ao ajudar-te, meu chela, a chegar à sabedoria. o padre daquele corpo de homens que servem o Touro Vermelho escreveu-nie, dizendo que tudo devia ser como eu desejei para ti. Eu enviei o dinheiro suficiente para um ano e depois vim, como tu vês, para te ver critnindo nos Portões da Erudição. Um dia e meio esperei... não por ter sido guiado por algum afecto na tua direcção... isso não faz parte do Caminho, nias, como eles disseram no Templo dos Tirlhankars, porque, tendo o dinheiro sido pago para a instrução, estava certo que eu orientasse esse fim. Eles resolveram as minhas dúvidas com muita clareza. Eu tinha um receio de que, talvez, eu viesse por desejar ver-te... mal guiado pela Névoa VerMelha do afecto. Não é assim. Além disso, estou perturbado com um sonho,

- Mas, certamente, Santo, tu não esqueceste a estrada e tudo o que 8coriteceu nela. Seguramente, foi um pouco para me veres que tu vieste? Os cavalos têm frio ejá passou a hora de eles serem alimentados knZu o condutor.

-Vai parajehannum e vive lá com a tua tia desonrada - rosnou Kim por '

CItria do ombro, - Eu estou completamente sozinho nesta terra; não Sci onde vou, nem o que me acontecerá meu coraçao estava naquela 0" que te mandei. Exceptuando Mahbub Ali, e ele é patane, eu não te~ nhO Ilenhum amigo senão tu, Santo. Não te vás embora completamente.

aI"bên1 tive isso em consideração - replicou o lama, com voz manifesto que, de tempos a tempos, eu adquirirei mérito se, antes disso, não tiver encontrado o meu rio... assegurando-me de que os tens pés estão assentes na sabedoria que eles te ensinarão não sei, mas o pac 1re escreveu-me dizendo que nenhum filho de sahib em toda a índia será rnelhor ensinado que tu. Assim, de tempos a tempos, portanto, eu voltarci. Talvez tu venhas a ser um sahib como aquele que me deu estes óculo s - o lama limpou-os laboriosamente - na Casa das Maravilhas, em L,, hore. Essa é a minha esperança, pois ele era uma Fonte de Sabedoria... nrais sábio que muitos abades... Repito, talvez tu me esqueças e aos nosso 5 encontros.

- Se eu como o teu pão - gritou Krin apaixonadamente -, corno poder ei alguma vez esquecer-te?

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- Não... não. - Ele agastou o rapaz para o lado. - Eu devo voltar para Uenarés. De vez em quando, agora que conheço os costumes dos escrivão s nesta terra, mandar-te~ei uma carta e, de tempos a tempos, virei ver-te

- Mas para onde mandarei as minhas cartas? - lamuriou Kini, agar~ rando-se à túnica, completamente esquecido de que era um sahib.

- Para o Templo dos Tirthankars, em Benarés. Esse é o lugar que escolhi t te encontrar o meu rio. Não chores, pois, escuta, todo o desejo é ilusão e . a nova ligação à Roda. Vai para os Portões da Erudição. Deixa-me ver~tc J r... Gostas de mim? Então, vai, ou o meu coração parte-se... Eu voltarei. em dúvida que voltarei.

o 1 ama observou o ticca-gharri deslocar-se com ruído para dentro da cerca e afastou-se, fungando entre cada longa passada.

"Os Portões da Erudição" fecharam-se com um som metálico.

0 rapaz nascido e criado no campo tem a suas próprias maneiras e cos~ turries, os quais não se comparam às de qualquer outra terra; e os seus professores, abordam~no por vias que um mestre inglês não compreenderia. por conseguinte, os leitores dificilmente estariam interessados nas experiências de Kuri como aluno em São Xavier, entre duzentos ou trezentos jovens precoces, a maior parte dos quais nunca vira o mar. Sofreu os castigos u,,uais, por fugir dos limites permitidos quando houve cólera na cidade. Isto foi antes de ter aprendido a escrever em inglês razoável e, por isso, fo t obrigado a procurar um escrivão de bazar. Foi, claro, inculpado por fr e pelo uso de insultos mais condimentados do que o próprio São Xa,,-icr alguma vez ouvira. Aprendeu a lavar-se com a escrupulosidade levir,ica do nascido na terra que, no seu coração, considera o inglês como hastante sujo. Usou os truques habituais com os pacientes assala~ riados, puxando as ventarolas dos quartos de dormir onde os rapazes pas~

Kim

savam as noites quentes contando histórias até ao alvorecer; e, calmamente, mediu forças com os seus autoconfiantes companheiros.

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Eles eram filhos de oficiais subordinados do c-,iminho-de-ferro, telégrafo e serviços dos canais; de graduados, às vezes reformados de um raj á; de capitães da Marinha indiana, pensionistas do governo, cultivadores, presidentes de divisões administra i ivas e missionários. Alguns eram os filhos mais novos das velhas casas curo-asiáticas que tinham ganho forte raiz em Dhurrumtollah - Pereiras, Sousas e Silvas. Os seus pais bem podiam tê-los educado em Inglaterra, mas amava m- a escola que servira a sua própria mocidade e uma geração seguia a geraçao amarelecida, em São Xavier. As suas casas variavam desde o Howrah das pessoas de caminho-de-ferro até acantonamentos abandonados como Monghyr e Chunar; jardins de chá perdidos, à maneira de Shillong- aldeias onde os seus pais eram os grandes possuidores de terras de Oud .ou do Deccan; missões a uma semana da linha de caminho-de-ferro mais proxima; portos de mar a mil e seiscentos quilómetros para sul, voltados para a rebentação de bronze indiana; e plantações de chinchona a sul de tudo. A simples história das suas aventuras, que, para eles, não eram aventuras, no caminho para e da escola teriam encrespado o cabelo de um rapaz ocidental. Estavam habituados a trotar sozinhos através de cento e sessenta quilómetros de selva, onde havia sempre a encantadora hipótese de ser atrasado pelos tigres; mas não se teriam banhado no Canal inglês, num Agosto inglês, do mesmo modo que os seus irmãos do outro lado do mundo não teriam permanecido quietos, enquanto uni leopardo cheirasse o seu palanquim. Havia rapazes de 15 anos que tinham passado dia e rricio muna ilhota no meio de um rio inundado, encarregues, como por direito, de um acampamento de frenéticos peregrinos regressando de um santuário. Houve uns mais velhos que requisitaram um elefante de -uni rajá, encontrado por acaso, em nome de São Francisco Xavicr, quando, uma vez, as chuvas taparam o trilho de carruagens que levava a propriedade do pai deles, e conseguiram perder o enorme animal numa areia movediça. Houve um rapaz que, disse ele, e ninguém duvidou, ajudou o pai a afugentar, com espingardas, da varanda, um ataque de ahas, nos dias em que esses caçadores de cabeças se arrqJavam contra plantações solitárias.

E cada história era contada ria voz uniforme e desapaixonada do na~ tural daquela terra, misturada com reflexões exóticas emprestadas por amas de leite nativas e mudanças de discurso que mostravam que tinha sido nesse instante traduzido do vernáculo. Kin---i observava, ouvia e aprovava. Isto não era a insípida e simples conversa dos rapazes do tambor. Rw&rd Kip1i),-

Tinha a ver com uma vida que ele conhecia e, em parte, compreendia. A atmosfera era-lhe agradável e ele desenvolvia-se pouco a pouco. Deram-lhe um fato branco de instrução quando o tempo aqueceu e ele rejubileu com os recém-descobertos confortos físicos, como rejubilou por utilizar o espírito aguçado nas tarefas de que o encarregavam. A sua rapidez teria encantado um mestre inglês; mas em São Xavier conhecem a primeira investida dos espíritos desenvolvidos pelo Sol e pelo meio, como conhecem o desânimo que se instala aos vinte e dois ou vinte e três anos de idade.

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Mesmo assim, ele lembrou~se de se manter humilde. Quando se contavam histórias acerca de noites quentes, Kim não arrebatava todos os prémios com as suas reminiscências, pois São Xavier olha com superiorida~ de para os rapazes "completamente nativos". pessoa não deve nunca esquecer-se de que é um sahib e que, algum dia, depois de passados os exames, irá comandar nativos. Kim tomou nota disto, pois começou a compreender onde é que os exames levavam.

Depois vieram as férias, de Agosto a Outubro - as longas férias impostas pelo calor e pelas chuvas. Kim foi informado de que iria para o norte, para um sítio nas montanhas atrás de Umballa, onde o padre Victor lhe trataria de tudo.

- Uma escola de caserna? - perguntou Kim, que fizera muitas perguntas e pensara em mais ainda.

- Sim, suponho que sim - disse o mestre. - Não te fará mal nenhum não fazeres travessuras. Podes ir com o jovem Castro até Délhi. Kim considerou o caso em todos os seus pontos de vista. Fora dili-

gente, precisamente como aconselhara o coronel. As férias de um rapaz eram de sua responsabilidade - a conversa dos seus companheiros avisara-o disso - e uma escola de caserna seria um tormento depois de São Xavier. Além disso - e era uma magia que valia tudo o resto -, sabia escrever. Em três meses descobrira como os homens podem falar uns com os outros sem terceiros, ao custo de meio anã e um pouco de conhecimento. Nem palavra viera do lama, mas a estrada lá continuava. Kim ansiava pela carícia da lama mole, saindo em salpicos por entre os dedos dos pés, enquanto a boca aguava por carneiro estufado com manteiga e couves, por arroz salpicado de cardamomos muito aromáticos, arroz cor de açafrão, alho e cebolas, e pelos doces proibidos dos bazares. Na escola de caserna alimentá-lo-iam com carne crua numa escudela e teria de fumar pela calada. De novo pensou que era um sahib e estava em São Xavier e aquele porco do Mahbub Ali... Não, ele não poria à prova a hospi-

Kím

talidade de Malibub - e daí... Considerou isso cuidadosamente, sozinho no dormitório, e chegou à conclusão de que tinha sido injusto com Mahbub.

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A escola estava vazia; praticamente todos os mestres se tinham ido embora; o passe de comboio do coronel Creighton permanecia na sua mão e Kim regozijou-se por nac, ter gasto o dinheiro do coronel Creigliton nem o de Mahbub numa vida dissoluta. Ainda era senhor de duas rupias e sete anãs seu novo baú de pele, marcado com " K. O'H. " e a roupa de cama J.aziam no quarto de dormir vazio.

- Os sahibs estão sempre presos à sua bagagem - disse Kini, acenando-lhes. - Vocês ficarão aqui.

Saiu para a chuva quente, sorrindo pecaminosamente e procurou uma certa casa cuj.o extenor ele fixara algum tempo antes...

- Para! Sabes que tipo de mulheres somos nós neste quarteirão? Ol-i, vergonha!

- Nasci ontem? - Kim estendeu-se nas almofadas daquele quarto superior, à maneira nativa. - Um pouco de material corante e dois metros e oitenta de tecido, para ajudar a uma brincadeira, é pedir muito?

- Quem é ela? Tu és muito jovem, como dizem os sahibs, para estas obras do Diabo.

- Ah, ela? É a filha de um certo mestre-escola de um regimento, nos acantonamentos. Ele bateu-me duas vezes, porque eu subi o muro com estas roupas. Agora eu iria como ajudante de jardineiro. Os velhos são muito ciumentos.

- Isso é verdade. Mantém o rosto quieto enquanto eu espalho o sumo.

- Não muito escuro, Naihan. Não queria aparecer-lhe como um hubshi [preto].

- Ah, o amor não se importa com estas coisas. E quantos anos tem ela? - Doze anos, penso eu - disse o desavergonhado Kini. - Espalha-o também no peito. Pode ser que o pai dela me arranque as minhas roupas e, se eu estiver malhado... - riu-se.

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A rapariga trabalhou activamente, passando uma rosca de tecido por um pires de tinta castanha que se mantém durante mais tempo que qualquer extracto de noz.

-Agora despacha-te e arranj a-me um tecido para o turbante. Pobre de mim, a minha cabeça não está rapada! E ele decerto tirará o meu turbante.

- Eu não sou barbeiro, mas vou fazer-lhe as vezes. Tu nasceste para RudyardKiplín,p

ser um destruidor de corações! Todo este disfarce para uma noite? Lembra-te, a substância não desaparece com água. - Ela estremeceu de riso até que as suas braceletes e enfeites tiniram. - Mas quem é que paga por isto? A própria Huneefa não poderia ter-te dado melhor coisa.

- Confia nos deuses, minha irmã - disse Kim gravemente, voltando o rosto quando a tinta secou. - Além disso, já alguma vez ajudaste a pintar assim um sahib?

- De facto, nunca. Mas uma brincadeira não é dinheiro. - Vale muito mais.

- Pequeno, tu és incontestavelmente o mais desavergonhado filho de Shaitan que eu alguma vez conheci, por tomares o tempo de uma pobre rapariga com este jogo e depois dizeres: "A brincadeira não é suficiente? ". Tu irás muito longe neste mundo. - E fez-lhe a saudação de troça das bailarinas.

- É tudo o mesmo. Apressa-te e rapa-me a cabeça.

Kim tinha os pés a saltitar, os olhos a arder de júbilo ao pensar nos ricos dias à sua frente. Deu quatro anãs à rapariga e correu pelas escadas abaixo, à semelhança de alguém de baixa condição. Rapaz hindu - perfeito em todos os detalhes. Uma loja de alimentos foi o seu ponto de paragem seguinte, onde se regalou com extravagância e luxo.

Na plataforma da estação de Lucknow observou o jovem Castro, completamente coberto de brotoeja, entrar num compartimento de segunda classe. Kim ocupou um de terceira e foi a sua vida e a sua alma. Explicou aos presentes que era assistente de um prestidigitador, que o

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deixara para trás doente com febre e que apanharia o seu mestre em Umballa. À medida que os ocupantes da carruagem mudavam, ele variava esta história, ou enfeitava-a com todos os rebentos de uma fantasia florescente, cada vez mais extravagante por ter sido afastado da fala nativa tanto tempo. Em toda a índia não havia, naquela noite, ser humano tão alegre como Kim. Em Umballa saiu e dirigiu-se para Leste, chapinhando nos campos encharcados, para a aldeia onde vivia o velho soldado.

Por esta altura, o coronel Creighton, em Simla, foi avisado de Lucknow, por telégrafo, de que o jovem O'Hara desaparecera. Malíbub Ali estava na cidade a vender cavalos e o coronel confidenciou-lhe o assunto uma manhã, galopando à volta do hipódromo de Armandale.

- Ah, isso não é nada - disse o traficante de cavalos. - Os homens são como os cavalos. Em certas alturas, precisam de sal e, se esse sal não estiver nas manjedouras, lambem -no da terra. Ele regressou de novo à estrada, por algum tempo. A madrssah fatigou-o. Eu sabia que fatigaria.

Kím

Noutra ocasião, eu proprio o levarei para a estrada. Nao se preocupe, sahib Creighton. É como se um pónei de pólo, libertando-se, fugisse para aprender o jogo sozinho.

- Então ele não está morto, é a tua opinião?

- A febre podia matá-lo. Fora isso, eu não temo pelo rapaz. Um macaco não cai no meio das árvores.

Na manhã seguinte, na mesma pista, o garanhão de Mahbub alinhava ao lado do coronel.

- É como eu tinha pensado - disse o traficante de cavalos. - Ele veio por Umballa, pelo menos, e de lá escreveu-me uma carta, ao ter conhecimento, no bazar, de que eu estava aqui.

- Lê - disse o coronel, com um suspiro de alívio. Era absurdo que um homem da sua posição se interessasse por um pequeno vagabundo criado no campo- mas o coronel lembrava-se da

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conversa no comboio e, nos últimos mese's, muitas vezes deu consigo a pensar no rapaz estranho, silencioso, sereno. A sua evasão, claro, era o cúmulo da insolência, mas provava alguma habilidade e audácia.

Os olhos de Mahbub piscaram, ao dirigir-se para o centro da pequena e estreita planície, onde ninguém podia aproximar-se sem ser visto.

- " 0 Amigo das Estrelas, que é o Amigo do Mundo ... " - Que é isso?

- Um nome que lhe damos na cidade de Lahore. "0 Amigo do Mundo parte para ir para os seus próprios lugares. Voltará no dia marcado. Manda buscar a caixa e a roupa de cama- e, se houver um erro, que a Mão da Amizade desvie o Chicote da Calamiade. " Há ainda um pouco mais, mas...

- Não interessa, lê.

- "Certas coisas não são conhecidas daqueles que comem com garfos. É melhor comer com ambas as mãos por uns tempos. Diz com palavras brandas àqueles que não compreendem isto, que o regresso pode ser propício. " Agora o modo como isto foi elaborado é, claro, trabalho do escrivão, mas ve como o rapaz imaginou sabiamente o conteúdo, para nenhuma sugestão ser dada, excepto àqueles que sabem?

- É isto a Mão da Amizade a desviar o Chicote da Calamidade? - riu-se o coronel.

- Veja como o rapaz é esperto. Ele iria regressar à estrada de novo, como eu disse. Não conhecendo ainda o negócio do coronel...

- Não estou nada certo disso - murmurou o coronel.

- Ele vira-se para mim, para eu promover a harmonia entre vós. Não é esperto? Ele diz que voltará. Está apenas a aperfeiçoar o seu conhecimento. Pense, sahib! Há três meses que ele está na escola. E não tem boca para tal iguaria. Pela minha parte, regozij o-me pónei aprende o jogo, - Sim, mas da próxima vez ele não deve ir sozinho.

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- Porquê? Ele foi sozinho antes de ficar sob a protecção do sahib coronel. Quando ele chegar ao Grande Jogo, deve ir sozinho... sozinho e por conta dele. Depois, se ele cuspir, espirrar ou se sentar de modo dife~ rente do das pessoas que ele observa, pode ser chacinado. Porquê emba~ raçá~lo agora? Lembre-se do que dizem os persas. "0 chacal que vive nos desertos de Mazanderan só pode ser apanhado pelos cães de caça de Mazanderan".

- Verdade. É verdade, Mahbub Ali. E se não lhe acontecer nenhum mal, eu não desejo mais nada. Mas é grande a insolência da sua parte.

- Ele nem me conta para onde vai - disse Mahbub. - Ele não é tolo. Quando o tempo acabar, ele virá ter comigo. É tempo de o curador de pérolas se encarregar dele. Ele amadurece demasiado depressa... como re~ conhecem os sahibs.

Esta profecia realizou~se à letra um mês mais tarde. Mahbub tinha ido a Umballa para trazer uma nova remessa de cavalos e Kim encontrou-o na estrada de Kalka ao anoitecer, cavalgando sozinho, implorou-lhe uma es~ mola, recebeu uma praga e replicou em inglês. Não estava ninguém por perto que pudesse ouvir a exclamação de assombro de Mahbub.

- Ah! E onde tens tu andado?

- Para cima e para baixo... para baixo e para cima.

- Anda para debaixo de uma árvore, abriga-te da chuva e conta-me. - Fiquei um tempo com um velho perto de Umballa; depois, com uma família dos meus conhecimentos em Umballa. Com um destes, fui até Délhi, na direcção sul. É uma cidade incrível. Depois conduzi um boi a um teli [droguistal que vinha para norte; mas ouvi falar de uma grande festa mais à frente, em Patiala e para lá fui, na companhia de um fabricante de fogo~de-artifício. Foi uma grande festa - Kim esfregou o estõmago. - Vi rajás e elefantes com ornamentos de ouro e prata- e acenderam o fogo-de-artifício todo ao mesmo tempo, pelo que onze'omens morreram, entre os quais o meu fabricante de fogo- de-artifício e eu fui projectado contra uma tenda, mas não me magoei. Depois voltei para o caminho-de-ferro com um cavalheiro sihh, a quem eu servia como criado em troca do meu pão; e aqui estou.

- Shabash! - exclamou Mahbub Ali.

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- Mas que diz o sahib coronel? Eu não desejo ser espancado.

Kim

-A Mão da Amizade desviou o Chicote da Calamidade; mas, na próxima vez que tomares a estrada, será comigo. É muito cedo.

- Suficientemente tarde para mim. Aprendi a ler e a escrever um pouco de inglês na maddssah. Em breve serei um sahib completo.

- Ouçam-no! - riu-se Mahbub, olhando para a pequena figura ensopada a dançar à chuva. - Salaam... Sah ib - e saudou ironicamente. Bem, estás cansado da estrada, ou queres vir comigo para Umballa e voltar a trabalhar com os cavalos?

- Irei contigo, Mahbub Ali. V111

Algo devo eu ao solo qi1 , produziu ,lientou -

Mais ainda à vida que al' lue deu dois Mas a maior parte a AIa,,, cabeça. Rostos diferentes à mir,

Preferia andar sem cam 1 ,,is ou sapatos, Amigos, tabaco ou pao ,

A perder, por um instai1"-`abeça. Um dos rostos da rninb,'

0 Homei!' 1, Duas Caras Então, em nome de Deus, troca o azul por vermelho -disse Mahbub, aludindo à cor hindu do desonroso turbante de Kim-

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Kim contra-atacou com o velho provérbio: deves Pagar - Mudarei a minha fé e a minha roupa de carna, mas 1'

por isso. -; imediações 0 traficante riu-se até quase cair do cavalo. Nurria loja (1, os exteriorda cidade a mudança foi feita e Kini ficou à altura, pelo W''I

mente, de um maometano. l,ho-de-ferro, Malibub alugou um quarto em frente da estação ocam,,,s de coalhamandou vir uma refeição cozinhada das melhores, co e,'primeira, de da de amêndoa [balushai, como lhes chamamos] e tabaco ('

Lucknow ) sihh - dis- - Isto é melhor do que uma outra carne que comi C()"',,, dão tais vise Kini sorrindo, ao estender-se -, e, indubitavelmente, ri,

tualhas na minha madrissah. 1ah. - Mah- - Tenho vontade de ouvir coisas sobre essa mesma mad i lentado, frito bub empanturrava-se com grandes bolas de carneiro condi, onja_me Pri em gordura com couve e cebolas castanho-douradas. - Ma,-'

Ineiro, total e sinceramente, a maneira como fugiste. PorqL11 ,,o Amigo do Mundo - desapertou o seu gretado cinto -, não me pare('

. que seja frequente um sahib e o filho de um sahib fugirem de lá. nada - dis-

- Como poderiam? Eles não conhecem a terra. Não f(" ce e à entrese Kini, e começou a sua história. Quando chegou ao disll' Rudvard,KiÉling___

vista com a rapariga do bazar, a gravidade de Malibub Ali foi-se. Riu_se alto e bateu com a trião na coxa.

- Shabash! Shabash! Ali, bem feito, pequeno. Que dirá a isto o cura_ dor de turquesas? Agora, devagar, ouçamos o que se passou depois... passo a passo, sem omitir nada.

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Passo a passo, então, Kini contou as suas aventuras entre tossidelas, à medida que o tabaco forte lhe apanhava os pulmões.

- Eu disse - rosnou Malibub Ali para si mesmo -, eu disse que era o pónei libertando-se para jogar pólo fruto já está amadurecido... ex~ cepto que ele tem de aprender as distancias e os passos e as medidas e as bússolas. Agora ouve. Eu desviei o chicote do coronel da tua pele e isso não é pouca coisa.

- Verdade - Kin-r lançou serenamente uma baforada. - Isso é tudo verdade.

- Mas não é para pensares que esta corrida para fora e para dentro é, de algum modo, boa.

- Eram as minhas férias, Hajji. Fui um escravo durante muitas semanas. Por que é que não poderia fugir quando a escola fechou? Olha, também, como eu, vivendo à custa dos meus amigos ou trabalhando pelo meu pão, como fiz com o sihh, poupei ao sahib coronel uma grande despesa.

Os lábios de Malibub crisparam-se sob o seu bem aparado bigode maometano.

- Que são algumas rupias - o patane lançou a mão aberta, descuidadamente - para o sahib coronel? Ele gasta-as com um objectivo, não de algum modo por amor a ti.

- Isso - disse Krin lentamente - sabia eu há muito tempo. - Quem disse?

- 0 próprio sahib coronel. Não com tantas palavras, mas com suficiente clareza para alguém que não seja completamente idiota. Sim, ele contou-me no comboio, quando fomos para Lucknow.

- Seja. Então dix-te-ei mais, Amigo do Mundo, embora, ao contar-te, esteja a conceder-te a minha cabeça.

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- Foi uma loucura - disse Kini, com profundo prazer - em Umballa, quando tu me levantaste no cavalo, depois de o rapaz do tarnborrnc bater.

- Fala uni pouco mais sinceramente. Todo o mundo pode dizer Mentiras, menos tu e eu, pois igualmente a tua vida estaria empenhada a Trâm' se eu escolhesse levantar aqui o dedo. tandO

- E isso também é do meu conhecimento - disse Kini, reajus

Kim

carvão em brasa no tabaco. - É um laço muito seguro entre nós. Ibola de

facto, 0 teu apoio é ainda maior que o meu, pois quem perderia o esde um rapaz até à morte, ou, talvez, o seu lançamento a um

De pocarnento

beira da estrada? Muitas pessoas aqui e em Sinila e do outro lado

: poço à

dos desfiladeiros atrás das montanhas, por outro lado, perguntaríam: #Que aconteceu a Mahbub Ali? ", se ele fosse encontrado morto no meio dos seus cavalos. Decerto, também, o sahib coronel faria investigações. ~, repito - o rosto de Kim franziu-se com destreza -, não faria uma hIvestigação demasiado longa, com medo de que as pessoas perguntasum: <,Que tem este sahib coronel a ver com aquele traficante de cavalos? ". eu... se eu vivesse...

- Mas como morrer-ias, com certeza...

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-Talvez; mas digo, se eu vivesse, eu e só eu saberia que alguém viera de noite, como um vulgar ladrão, talvez, à divisória de Malibub Ali no se-- rai e o assassinara e que, antes ou depois, esse ladrão fizera uma busca completa nos seus alforges e no meio das solas dos seus chinelos. Isso é nodáa para contar ao coronel, ou ele dir-me-ia - não me esqueço de quando ele me mandou buscar uma caixa de charutos que não deixara lá "Que tem Mahbub Ali a ver comigo? ".

Um rolo de fumo pesado subiu. Houve uma longa pausa: depois, Malibub Ali falou, admirado:

- E, com essas coisas no teu espírito, deitas-te e ergues-te de novo entre todos os pequenos filhos de sahibs na rnadrissah e recebes docilmente kmruÇões dos teus professores?

1 - É uma Ordem - disse Km-r com suavidade. - Quem sou eu para Contestar uma ordem?

- Um filho de Eblis bastante perfeito - disse Mal-ibub Ali. - Mas que história é esta do ladrão e da busca?

dei- A que eu vi - disse Km-i - na noite em que o meu lama e eu nos tárnOs ao lado do teu lugar no serai de Caxemira. A porta foi deixada SCM tranca, o que eu penso que não é teu costume, Mal-rbub. Ele entrou Como alguém certo de que tu não voltarias cedo. o meu olho encostou~se R um buraco no nó da tábua. Ele pesquisou como se procurasse algo... não 11n1 tapete de bronze... algo peClueno e b, nem estribos, nem um freio, nem vasos

astante cuidadosamente escondido. Por que outro motivo picafia ele con, um ferro entre as solas dos teus chinelos?

- AhI - Mahbub AI * -

que história 1 1 sorriu mansamente. - E, vendo essas coisas, Nenla Imaginaste para ti mesmo, Poço da Verdade?

. Pus a minha mão no amuleto, que está sempre junto à Rudyard KÍÉM

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minha pele e, lembrando-me do pedigree de um garanhão branco, que eu tirara com uma dentada de um bocado de pão muçulmano, fui-me embora de Umballa, percebendo que uma pesada responsabilidade caía sobre mim. Nessa hora, se eu tivesse escolhido, a tua cabeça rolaria. Só preciso de dizer àquele homem: "Tenho aqui um papel respeitante a um cavalo, que não consigo ler". E depois? - Kini examinou Malibub, por baixo das sobrancelhas.

- Depois terias bebido água duas vezes... talvez três, de seguida. Penso que não mais do que três - disse Mahbub simplesmente.

- É verdade. Pensei um pouco nisso, mas principalmente pensei que gostava de ti, Malibub. Portanto, fui para Umballa, como tu sabes, mas (e isto tu não sabes) fiquei escondido na erva do jardim, para ver o que o sahib coronel Creighton podia fazer ao ler o pedigree do garanhão branco.

- E que é que ele fez? -- perguntou Malibub, pois Kini cortara a conversa.

- Tu dás uma notícia por amor, ou vende-Ia?

- Vendo... e compro Malibub tirou do cinto uma moeda de quatro anãs e ergueu-a.

- Oito! - disse Kim, seguindo mecanicamente o instinto traficante do Leste.

Malibub riu-se e escondeu a moeda.

- É demasiado fácil negociar nesse mercado, Amigo do Mundo. Conta-me por amor. As nossas vidas estão nas mãos de cada um de nós.

- Muito bem. Eu vi o sahibjang-i Lat [o comandante supremo] ir a um grande jantar. Vi-o no escritório do sahib Creigliton . Vi os dois lendo o pedigree do garanhão branco. Ouvi as muitas ordens dadas para o começo de uma grande guerra.

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- Ah! - Malibub acenou, com os olhos profundamente ardentes. - 0 jogo está bem jogado. Essa guerra está a ser feita agora e o mal, esperamos, cortado pela raiz... graças a mim... e a ti. Que fizeste mais tarde?

- Desenvolvi a notícia como se fosse um anzol para me apanhar alimentos e honra entre os aldeãos, numa aldeia cujo padre drogou o meu lama. Mas eu tirei a bolsa ao velho e o brâmane não encontrou nada. Assim, na manhã seguinte, ele estava zangado. Ali! Ali! E também usei a notícia quando caí nas mãos daquele regimento branco com o seu Touro.

- isso foi tolice. - Malibub franziu a sobrancelha. - A notícia não é para ser atirada para aí como excremento, mas para ser usada com moderação... como bhang.

- Assim penso agora e, além disso, não me fez nenhuma espécie de

Kím

bem. Mas isso foi há muito tempo - fez um gesto como se afastasse tudo para longe, com uma esguia mão castanha -, e desde aí, e especialmente à noite, debaixo da ventarola, na madrissah, tenho pensado muitíssimo.

- É permitido perguntar onde o pensamento nascido no Céu poderá ter-te levado? - perguntou Malibub, com um sarcasmo elaborado, alisando a sua barba escarlate.

- É permitido - disse Kini, e devolveu o mesmo tom. - Em Nucklao dizem que nenhum sahib deve dizer a um homem preto que este cometeu um erro.

A mão de Malibub bateu no peito, pois chamar "hornem preto" [kala admil a um patan e é um insulto de morte. Depois lembrou-se e riu.

- Fala, sahib teu homem preto ouve-te.

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- Mas - disse Kini - eu não sou um sahib e digo que cometi um erro ao amaldiçoar~te, Malibub, naquele dia em Umballa, quando pensei que tinha sido traído por um patane. Fui insensível, pois fui logo apa~ nhado e desejei matar aquele rapaz do tambor de baixa condição. Digo agora, Hajj i, que foi bem feito, e vejo a minha estrada completamente desimpedida à minha frente, para um bom serviço. Ficarei na madrissah até amadurecer.

- Bem dito. Nesse jogo deves aprender especialmente as distãneias, os números e o modo de utilizar as bússolas. Alguém espera lá nas montanhas para te mostrar.

- Aprenderei os seus ensinamentos com uma condição... que o meu tempo me seja dado sem objecções, quando a madrissah estiver fechada. Pede isso ao coronel, por mim.

- Mas por que não pedir ao coronel na língua dos sahibs?

- 0 meu coronel é funcionário do governo. É mandado de cá para lá a uma palavra superior e deve considerar o seu próprio avanço. (Vê quanto eu já aprendi em Nuck1ao!) Além disso, eu conheço o coronel apenas há três meses. Conheço um Malibub Ali há seis anos. Então! Irei para a rnadrissah. Aprenderei na madrissah. Na madrssah serei um sahib. Mas, quando a madrissah fechar, então devo ser livre e ir para o meio da minha gente. De outro modo, morro!

- E quem é a tua gente, Amigo do Mundo?

- Esta imensa e bela terra - disse Kini, agitando a mão pelo pequeno quarto de paredes de argila, onde o candeeiro de petróleo, no seu nicho, ardia pesadamente através do fumo do tabaco. - E, além do mais, eu veria o meu lama de novo, E, além disso, eu preciso de dinheiro.

- Isso toda a gente precisa - disse Mahbub, pesarosamente. - Dar~ Ru#ard Kipling

-te-ei oito anãs, porque não se tira muito dinheiro dos cascos dos cavalos e deve chegar-te para muitos dias. Quanto a tudo o resto, estou bem satisfeito e não é preciso mais conversa. Apressa-te a aprender e, daqui a três anos, ou pode ser menos, serás um auxílio... até para mim.

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- Tenho sido um grande estorvo, até agora? - perguntou Kini, com uma risadinha de rapaz.

- Não dês respostas - grunhiu Mahbub. - Tu és o meu novo moço de estrebaria. Vai e deita-te entre os meus homens. Eles estão perto do extremo norte da estação, com os cavalos.

- Eles escorraçar-me-ão até ao extremo sul da estação, se eu aparecer sem autorização.

Malibub tacteou no cinto, molhou o polegar num pedaço de tinta chinesa e passou a impressão para um bocado de papel nativo, macio. De BaIk a Bombaim os homens conhecem aquela impressão digital de linhas ásperas, com a velha cicatriz correndo diagonalmente sobre ela.

- isso é suficiente para mostrar ao chefe dos meus homens. Eu vou de manhã.

- Por que estrada? - perguntou Kini.

- Pela estrada que sai da cidade. Só há uma, e depois voltaremos para o sahib Creighton. Poupei-te um espancamento.

- Alá! Que é um espancamento, quando a própria cabeça está solta nos ombros?

Kim deslizou silenciosamente na noite, deu a volta à casa, mantendo-se colado às paredes, e afastou-se da estação cerca de quilómetro e meio. Depois, descrevendo uma larga circunferência, voltou vagarosamente, pois precisava de tempo para inventar uma história, se algum dos servidores de Malibub fizesse perguntas.

Eles estavam acampados num pedaço de terreno ermo ao lado do caminho-de-ferro e, sendo nativos, não tinham, claro, descarregado os dois carros, nos quais permaneciam os animais de Mahbub, entre uma remessa de castas do campo comprada pela companhia de eléctricos de Bombaim. 0 chefe, um maometano doente, de aspecto tuberculoso, prontamente desafiou Kini, mas ficou calmo à vista do sinal manual de Mahbub.

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- 0 Hajji fez o favor de me dar trabalho - disse Kini de mau humor. Se duvidam, esperem até que ele chegue, de manhã. Entretanto, quero um lugar junto da fogueira.

Seguia a usual tradição sem fundamento segundo a qual os nativos de baixa condição devem erguer-se em todas as ocasiões. Não resultou, e Ki,11 estendeu-se atrás do pequeno grupo dos seguidores de Mahbub, quase

Kim

debaixo das rodas de um carro de cavalos, com um cobertor emprestado para se cobrir. Uma cama no meio de fragmentos de tijolo e entulho numa noite húmida, entre uma sobrecarga de cavalos e baltis sujos, não atrairia muitos rapazes brancos; mas Kini estava completamente feliz. Mudança de cenário, de serviço e de ambientes eram a respiração das suas pequenas narinas, e pensar nas limpas camas brancas de São Xavier, completamente secas debaixo da ventarola, dava~lhe uma alegria tão intensa como a repetição da tabuada de Multiplicar em inglês.

- Sou muito velho - pensou ensonado. - A cada mês que passa, fico um ano mais velho. Eu era muito novo e um pateta, para poder ser útil, quando levei a mensagem de Malibub a Umballa. Mesmo quando estava com aquele regimento branco eu era muito novo e pequeno e não tinha sabedoria. Mas agora aprendo todos os dias e, daqui a três anos, o coronel levar-me-á para fora da rnadríssah e deixar-me-a ir para a Estrada com Malibub, procurar pedigrees de cavalos, ou talvez vá sozinho; ou talvez encontre o lama e vá com ele. Sim, isso é o melhor. Caminhar de novo como chcla com o meu lama, quando ele voltar para Benarés.

Os pensamentos tornaram~se mais lentos e desconexados. Estava a mergulhar numa bela terra de sonho quando os seus ouvidos captaram um sussurro fino e agudo, acima do murmúrio monótono à volta da fogueira. Vinha de detrás do carro de chapas de ferro dos cavalos.

- Então ele não está aqui?

- Onde estaria ele, senão foçando pela cidade? Quem é que procura uma ratazana num charco de rãs? Vem-te embora. Ele não é o nosso homem.

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- Ele não deve voltar para lá dos desfiladeiros uma segunda vez. São ordens.

- Contrata alguma mulher para o drogar. São só algumas rupias e não ficam provas.

- Excepto a mulher. Tem de ser mais certo; e lembra-te do preço pela cabeça dele.

- Sim, mas a polícia tem um longo braço e nós estamos longe da fronteira. Se fosse em Pcshawar, agora!

- Sim... Em Peshawar - zombou a segunda voz. - Pcshawar, cheia de família dele, cheia de furos de parafusos e mulheres atrás de cujas roupas ele se esconderia. Sim. Peshawar ou Jehannum convir-nos-iam igual rilente bem.

- Então, qual é o plano?

- 0 tolo, não o contei já cem vezes? Espera até ele vir deitar-se e, de- Rudyw KI 11

pois, um tiro certeiro. Os cartos estão entre nós e a caça. Só temos de correr de volta por cima das linhas e seguir o nosso caminho. Eles não verão de onde veio o tiro. Espera aqui pelo menos até ao anoitecer. Que tipo de faquir és tu, para tremeres a uma pequena vigilância?

- Ah! - pensou Kim, de olhos fechados. - Mais uma vez é Mahbub. De facto, o pedigrce de um garanhão branco não é uma boa coisa para distribuir pelos sahibs. Ou talvez Malibub tenha andado a vender outras notícias. Agora, que fazes, Kini? Não sei onde Malibub se hospeda e, se . ele vier aqui antes do alvorecer, eles matá-lo-ão. isso não te traria proveito, Kim. E isto não é assunto para a polícia. Isso não traria proveito a Mahbub, e -- deu uma risada quase em voz alta - não me lembro de nciihuma lição de Nuck1ao que me ajude. Ala! Aqui está Kim c além estão eles. Primeiro, então, Kim deve acordar e ir-se embora, para eles não desconfiarem. Um sonho mau desperta um homem - assim...

Afastou o cobertor da cara e ergueti-se de repente, com o grito terrível, irreal, sem significado, dos asiáticos despertos por pesadelos.

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- Urr... urr... urr... urr! fo... Ia... Ia... Ia... Ia! Narain! 0 churel! 0 churel!

Um churel é o fantasma especialmente maligno de uma mulher que morreu de parto. Ela assombra estradas solitárias, os seus pés estão virados para os tornozelos e encaminha os homens para o tormento.

0 uivo trémulo de Kini aumentou de volume, até que, por fim, se pós de pé de um salto e cambaleou ensonadamente, enquanto o acampamento o amaldiçoava por os ter acordado. Uns vinte metros à frente da linha deitou-se outra vez, tratando de garantir que os conspiradores ouviam os seus grunhidos e gemidos, enquanto se recompunha. Uns minutos depois, rolou na direcção da estrada e escapuliu-se na densa escuridão. Foi caminhando rapidamente, até que chegou a um buciro e deixou-se cair atrás dele, com o queixo ao nível da pedra de remate. Aqui podia controlar todo o tráfego nocturno sem ser visto.

Passaram duas ou ires carroças, tinindo, na direcção dos arredores-1 um polícia a tossir e um peão apressado ou dois que cantavam para afastar os maus espíritos. Depois, ouviu as patas ferradas de um cavalo.

"Ah! Isto é mais parecido com o Mahbub", pensou Kini, quando o animal se assustou perante a pequena cabeça mais alta que o buciro.

- Eh, Mal---ibub Ali -- sussurrou ele ---, tem cuidado!

0 cavalo foi sofreado quase nos quadris e obrigado a virar-se para o buciro.

- Nunca mais - disse Malibub - pegarei num cavalo ferrado para

Kim

trabalho nocturno. Eles andam pela cidade a ajustar contas cormosco. Inclinou-se para lhe levantar a pata anterior e isto trouxe a sua cabeça a trinta centímetros da de Kim. - Em baixo... mantém-te baixo - murmurou ele. - A noite está cheia de olhos.

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- Dois homens aguardam a tua chegada, atrás dos carros dos cavalos. Matar-te-ão quando te deitares, porque há um premio pela tua cabeça. Eu ouvi, quando estava deitado perto dos cavalos,

- Viste-os?... Está quieto, Senhor dos Diabos! - isto furiosamente para o cavalo.

- Um deles estava vestido possivelmente como um faqui r?

- Um disse para o outro. "Que tipo de faquir és tu, para tremeres a uma pequena vigilãncia?".

- Optimo. Volta para o acampamento e deita-te. Eu não morro esta noite.

Malibub voltou o cavalo e desapareceu. Kini, partiu de volta pela vala abaixo, até que chegou ao lugar oposto ao seu segundo local de repouso, deslizou pela estrada como uma doninha e estendeu-se sob o cobertor.

" Pelo menos Mal---ibub sabe ", pensou com satisfação. " E falou como se já estivesse à espera de ouvir o que eu disse. Não me parece que aqueles dois lucrem com a vigilãncia desta noite. "

Passou uma hora e, com a maior vontade do mundo de se manter acordado toda a noite, adormeceu profundamente. De vez em quando um comboio rugia ao longo dos carris, a seis metros dele; mas ele gozava de toda a indiferença oriental pelo simples ruído e nem um sonho conseguiu penetrar no seu sono.

Malibub estava tudo menos a dormir. Aborrecia-o enormemente que pessoas de fora da sua tribo e não afectadas pelas suas aventuras amorosas acidentais o perseguissem pela sua vida seu primeiro e natural imPulso foi atravessar a linha mais abaixo, subir outra vez e, apanhando os seus simpatizantes pelas costas, assassiná-los sumariamente. Aqui, reflectiu com pesar que outro ramo do governo, totalmente desligado do coronel Creighton, podia exigir explicações que ele teria dificuldade em fornecer; e sabia que, a sul da fronteira, se faz um espalhafato perfeitamente ridículo por um cadáver. Neste aspecto, não fora incomodado desde que rnandara Kina a Umballa com a mensagem e esperava que a desconfiança tivesse sido finalmente desviada.

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Então, teve uma ideia brilhante.

- Os ingleses, de facto, dizem eternamente a verdade - disse ele Por isso nós, os da terra fazemos sempre papel de tolos. Por Ala, direi a _ RuLvqLdK, in

verdade a um inglês! De que serve a polícia governamental, se um pobre habuli for privado dos seus próprios cavalos nos seus próprios carros? Isto é tão mau como Pcshawar! Eu devia apresentar uma queixa no caminho-de-ferro. Eles são zelosos e, se apanham ladrões, isso faz aumentar a sua honra.

Prendeu o cavalo do lado de fora da estação e encaminhou-se para a plataforma.

- Olá, Malibub Ali! - disse umjovem assistente do superintendente do tráfego da província, que estava à espera para descer a linha... um rapaz alto, de cabelo loiro, apaixonado por cavalos, vestido de sujo linho branco. - Que estás a fazer aqui? A vender pilecas, hem?

- Não; não estou preocupado com os meus cavalos. Vim à procura de Lutuf Ullah. Tenho um carro carregado, além na linha. Alguém os conseguiria tirar dali, sem o conhecimento do caminho-de-ferro?

- Não me parece, Malibub. Podes reclamar contra nós, se eles o fi-

zerem.

-Vi dois homens rastejando debaixo das rodas de um dos carros quase toda a noite. Os faquires não roubavam cavalos, por isso não pensei mais neles. Queria descobrir Lutuf Ullah, o meu sócio.

- Que diabo fizeste? Não te preocupaste com isso? Palavra de honra, é quase óptimo ter-te encontrado. Como eram eles, heiri?

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- Eram apenas faquires. Não farão mais do que tirar um pouco de cereais, talvez, de um dos carros. Há muitos, linha acima estado não falhará a sua missão. Vim aqui procurar o meu sócio Lutuf Ulfali...

- Deixa lá o teu sócio. Onde estão os teus carros de cavalos?

- Um pouco para ca do sítio mais afastado onde fazem luzes aos comboios.

- A guarita dos sinais? Sim.

-E no carril mais próximo da estrada, do lado direito... olhando para a linha assim. Mas, no que respeita a Lutuf Ullah... um homem alto, com o nariz partido e um galgo persa... Ei!

0 rapaz apressara-se para acordar um jovem e entusiasmado polícia, pois, como ele disse, o caminho-de-ferro sofrera muito com as depredações no pátio das mercadorias. Malibub Ali riu-se, atrás da sua barba tingida.

- Eles caminharão com as suas botas fazendo ruído e, depois, perguntar-sc-ão porque é que não há nenhum faquir. Eles são rapazes muito inteligentes... o sahib Barton e o sahib Y0ung.

Esperou indolentemente durante uns minutos, na expectativa de os

Kim

ver subir a linha apressadamente, prontos para agir. Uma locomotiva ligeira deslizou pela estação e ele viu por um momento o jovem Barton na cabina.

- Cometi uma injustiça com aquela criança. Ele não é completamente tolo - disse Mal---ibub Ali. - Tirar um carro de bombeiros por um ladrão é um i ogo novo!

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Quando Malibub Ali veio para o seu acampamento, ao amanhecer, ninguém pensou que valesse a pena contar-lhe nenhuma novidade sobre essa noite. Ninguém, à excepção de um pequeno moço de estrebaria , recentemente admitido ao serviço do grande homem, a quem Malibub chamou à sua minúscula tenda para ajudar nuns empacotamentos.

- Tenho conhecimento de tudo - sussurrou Kini, inclinado sobre uns alforges. - Dois sahibs vieram num comboio. Eu corria para a frente e para trás no escuro, deste lado dos carros, enquanto o comboio subia e descia lentamente. Eles caíram em cima de dois homens que estavam sentados debaixo deste carro... Haffi, que faço com este pedaço de tabaco? Embrulho-o em papel e ponho-o debaixo do saco do sal? Sim, e golpearam-nos. Mas um dos homens atacou um sahib com um corno de bode de faquir - Kini referia-se aos cornos juntos do bode preto, que são a única arma mundana de um faquir - e saiu sangue. Então, o outro sahib, batendo primeiro no seu companheiro inanimado, puniu o assassino com uma arma pequena que rolara da mão do primeiro homem. Estavam todos enraivecidos, como se fossem loucos.

Mahbub sorriu com resignação celestial.

- Não. Isso não é tanto dewanee [loucura, ou caso para o tribunal civil - a palavra pode serjogada nos dois sentidos], mas mais nizarnut [um caso criminal]. Uma arma, dizes tu? Dez bons anos na cadeia.

- Depois ficaram ambos quietos, mas eu penso que estavam quase mortos q -uando foram postos no comboio. As cabeças moveram-se assim. E há muito sangue na linha. Vens ver?

-já vi sangue antes. A cadeia é o sitio certo... e certamente eles darão nomes falsos e certamente ninguém os encontrará durante muito tempo, Eles eram meus inimigos teu destino e o meu parecem presos à mesma corda. Que história para o curador de pérolas! Agora, depressa com os alforges e com a escudela. Levaremos os cavalos e iremos para Smila.

Rapidamente - como os orientais entendem a velocidade -, com longas explicações, com insultos e conversa oca, descuidadamente, por entre centenas de verificações por pequenas coisas esquecidas, o desleixado acampamento foi levantado e a meia dúzia de cavalos difíceis e ra- Rudyard Kiplin

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bujentos conduzida pela estrada de Kalka, na madrugada fresca e varrida pela chuva. Kini, respeitado como o favorito de Malibub Ali por todos os que desejavam estar de boas relações com o patane, não era chamado para trabalhar. Iam passeando lentamente, em etapas leves, parando de poucas em poucas horas num abrigo à beira da estrada. Uma grande quantidade de sahibs viaja ao longo da estrada de Kalka; e, como diz Malibub Ali, todo o jovem sahib se tem forçosamente em alia estima ao apreciar um cavalo e, embora esteja endividado até aos cabelos para com o seu credor, deve fazer como se fosse comprar. Essa era a razão por que, sahib atrás de sahib, passando numa diligência, parava para meter conversa. Alguns desciam mesmo dos seus cavalos e apalpavam as pernas dos cavalos, fazendo perguntas tolas, ou, com absoluta ignorância do vernáculo, insultando grosseiramente o imperturbável comerciante.

- A primeira vez que negociei com sahíbs, e isso foi quando o sahib coronel Soady era governador do Forte Abazai e inundou o terreno de acampamento do comissário por despeito - confiou Malibub a Kini, cri~ quanto o rapaz enchia o cachimbo debaixo de uma árvore -, não sabia quão imensamente tolos eles eram e isso deixou-me indignado. Como isto... - e contou a Kin---i a história de uma expressão, mal utilizada com toda a inocência, que dobrou Kini de alegria. - Agora, contudo, vejo exalou fumo lentamente - que é com eles como com todos os homens... em alguns assuntos são sábios e noutros os maiores tolos. Muito tolo é expressão errada para usar com um estranho, pois, embora o coração possa estar livre de ofensa, como é que o estranho sabe isso? É mais provável ele procurar a verdade com um punhal.

- Certo. Palavras certas - disse Kim solenemente. - Os tolos falam de um gato quando trazem uma mulher para a cama, por exemplo. Eu já os ouvi.

- Por conseguinte, na situação em que tu estás, convém-te particularmente recordar isto com os dois tipos de rosto. Entre os sahibs, não esquecendo nunca que és um sahib; entre o povo do .Indostão, sempre recordando que és... - Fez uma pausa, com um sorriso desconcertado.

- Sou o quê? Muçulmano, hindu, jain, ou budista? É um problema difícil.

- Tu és, fora de dúvida, um descrente e, por isso, serás amaldiçoado. Assim diz a minha Lei... ou penso eu que diz. Mas tu és também o meu Pequeno Amigo do Mundo e eu gosto de ti. Assim diz o meu coração, Esta questão dos credos é como a dos cavalos homem sábio sabe que os cavalos são bons... que de todos se tira lucro; e, para mim... mas eu sou um

Kim

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bom sunni e odeio os homens de Tirah... podia acreditar o mesmo de todas as crenças. Agora, manifestamente, uma égua de Kathiawar, afastada das areias do seu local de nascimento e levada para os criadores do oeste de Bengala... nem tão pouco um garanhão de Balkh (e não há melhores cavalos que os de Balkh, que têm os quartos dianteiros menos pesados) tem qualquer valor nos grandes desertos do norte, ao lado dos camelos da neve que vi. Por isso, digo do fundo do coraçao que as crenças são como os cavalos. Cada uma tem mérito na sua própria terra.

- Mas o meu lama disse uma coisa completamente diferente.

- Ali, ele é um velho idealista dos sonhos do Iluminado meu coração está um pouco ressentido, Amigo do Mundo, por tu veres tanto valor num homem tão pouco conhecido,

- É verdade, Hajji; mas veio esse valor e o meu coração foi arrastado para ele,

- E o dele para ti, segundo oiço. Os corações são como os cavalos. Vêm e vão contra freio ou espora. Chama o Gul Sher Khan além, para espetar com mais firmeza as estacas daquele garanhão baio. Não queremos que um cavalo lute em cada ponto de repouso e o castanho-escuro e o preto serão fechados num pequeno... Agora ouve-me. É necessário, para confortar o teu coração, veres esse lama?

- É uma parte do meu contrato - disse Kim. - Se eu não o vir e se ele for afastado de mim, sairei daquela madrissah em Nuck1ao e, e... uma vez ido, quem me- descobrirá outra vez?

- É verdade. Nunca um potro foi preso com uma corda tão leve como tu foste. - Malibub acenou a cabeça,

- Não tenhas medo. - Kin---i falou como se pudesse ter desaparecido naquele momento. - 0 meu lama disse que virá ver-me à madrissah... - Um mendigo e a sua tigela na presença desses jovens sa...

- Nem todos! - cortou Kin---i com um resfolego. - Os olhos deles são azulados e as unhas estão escurecidas com sangue de baixas castas, mui~ tos deles. Filhos de meliterances... cunhados do bhungi [varredor].

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Não precisamos de seguir o resto do pedigree; mas Kini insistiu no seu ponto de vista claramente e sem calor, mastigando ao mesmo tempo um pedaço de caria-de~açúcar.

- Amigo do Mundo - disse Malibub, fazendo cair o cachimbo para o rapaz limpar -, conheci muitos homens, mulheres e rapazes e não poucos sahibs. Nunca conheci em toda a minha vida um diabrete como tu.

- E porquê? Eu digo-te sempre a verdade.

- Talvez seja essa mesmo a razão, pois este é um mundo de perigo Rudyard "I I

para os homens honestos. - Mabbtub Ali ergueu-se do chão, amarrou o cinto e dirigiu-se para os cavalos.

- Ou devo vendê~la?

Foi aquele tom que fez Malibub parar e virar-se. Que nova obra diabólica?

- oito anãs e dir-te-ei - disse Kim, rindo-se. - Diz respeito à tua paz. - 0 Shaitam! - Malabub, deu o dinheiro.

- Lembras-te do pequeno problema dos ladrões no escuro, lá em Umballa?

- Sabendo que eles vasculhavam a minha vida, não me podia esquecer. Porquê?

- Lembras-te do serai de Caxemira?

- puxo-te as orelhas, daqui a pouco... sahib.

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_ Não é preciso... patane. só que o segundo faquir, que os sahibs deixaram inanimado, era o homem que foi vasculhar a tua divisória em Lahore, Eu vi a cara dele quando o ajudaram na máquina. Precisamente o mesmo homem.

Por que não disseste antes?

Ah, ele irá para a cadeia e ficará seguro por alguns anos. Não é preciso contar mais do que o necessário de cada vez. Além disso, nessa altura eu não precisava de dinheiro para guloseimas.

Allah herirn! - disse Mahbub Ali. - Venderás tu algum dia a minha cabeça por alguns doces, se a crise te afectar?

Kim recordará até ao dia da sua morte aquela longa, lenta viagem desde Umballa, através de Kalka e com os jardins Pinj ore próximos, até Simla. Uma súbita enchente do rio Gugger arrastou um cavalo (o mais valioso, de certeza) e quase afogou Kim no meio dos pedregulhos vaci lantes. Mais acima, na estrada, os cavalos foram afugentados por um elefante do governo e, havendo boas condições para se alimentarem de erva, demorou um dia e meio reuni-los de novo. Depois encontraram o Sikandar Khan, descendo com uns cavalos sem préstimo restos da sua remessa - e Mahbub, que tem mais tráfico de cavalos na sua unha pequenina do que o Sikandar Khan em todas as suas tendas, teve necessariamente de lhe comprar dois dos piores e isso significou oito horas de laboriosa diplomacia e imenso tabaco. Mas era tudo um encanto

-se e estendendo-se pelo - a estrada serpenteante, trepando, inclinando

meio dos ramos que cresciam; o vigor da manhã, estendida pelas neves

Kim

distantes; os cactos ramificados, fila sobre fila nas encostas pedregosas, as vozes de mil canais de água; o tagarelar dos macacos, os solenes cedros do Himalaia trepando uns atrás dos outros, com os ramos pendentes; alperspectiva das planícies estendendo-se longamente por debaixo deles- a vibração incessante das buzinas dos carros de duas rodas e a arcinetida

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selvagem dos cavalos guiados quando um deles aparecia numa curva; as paragens para as orações (Mahbub era muito religioso com as tabluções e lavagens quando o tempo não apertava); as conferências nocs nos locais de paragem, quando os camelos e bois ruminavam so~ lenemente juntos e os condutores imperturbáveis contavam as notícias da estrada - todas estas coisas faziam o coração de Kim cantar uma canção dentro dele.

- Mas, quando acaba o canto e a dança - disse Mahbub Ali - vem o sahib coronel e isso não é tão doce.

- Uma terra bela... uma terra muito bonita é esta do Indostão... e a terra dos Cinco Rios é a mais bela de todas - quase cantou Kim. - A ela voltarei outra vez, se o Mal---ibub Ali ou o coronel levantarem mão ou pé contra mim. Uma vez desaparecido, quern me descobrirá? Olha,

Hajji, é além a cidade de Simla? Ala, que cidade.

- 0 irmão do meu pai, que já era velho quando o poço do sahib Mackerson era novo em Pcshawar, lembrava-se do tempo em que só havia ali duas casas.

Conduziu os cavalos para o bazar de Sinila, abaixo da rua principal - a apinhada fura de coelhos que sobe do vale até aos Paços do Conce~ lho, descrevendo um ãngulo de 45 graus. Um homem que conheça bem o caminho, pode desafiar toda a polícia da capital de Verão da índia, tão habilidosamente as varandas comunicam umas com as outras, álcas com álcas e furos de parafusos com furos d

r e parafusos. Aqui vivem aqueles que auxiliam às necessidades da alco e cidade -jhamponis, empurrando à noite os riquexós das senhoras bonitas quejogam até ao amanhecermerceeiros,

droguistas, vendedores de bugigangas, negociantes de lenha' Pdasdrpeesl,acsacrtocritreissãtsasceoifuncioná rios do governo nativos

Aqui são discuti sas que deveriam ser os maiores segredos do Conselho da índia, e aqui se juntam todos os representantes subalternos de metade dos estados nativos. Aqui, também, Mal---ibub Ali alugou um quarto, trancado com muito mais segurança do que a sua divisória em Laho~ re um negociante

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, na casa de de gado maometano, Era também um lugar de milagres, Pois chegou lá ao crepúsculo um moço de estrebaria maorfietano e de ]'a saiu uma hora mais tarde um rapaz curo-asiático - a tin~ ta das raparigas de Lucknow era da melhor - com desajeitadas roupas de lqj a.

- Falei corn o sahib Creighton - disse Mahbub Ali - e, pela segunda vez, a Mão da Amizade desviou o Chicote da Calamidade. Ele diz que tu desperdiçaste na totalidade sessenta dias na Estrada e é tarde de mais, por isso, para te mandar para qualquer escola na montanha.

- Eu tinha dito que as minhas férias me pertenciam. Não vou para a escola duas vezes seguidas. Isso faz parte do meu contrato.

- 0 sahib coronel ainda não tem conhecimento desse contrato. Tu deves alojar-te na casa do sahib Lurgan até ser altura de voltares para Nucklao.

- Preferia ficar alojado contigo, Malíbub.

- Não sabes a honra que é próprio sahib Lurgan perguntou por ti. Subirás a montanha, e ao longo da estrada até ao cume, e lá deves esque~ cer-te por um tempo que alguma vez me viste ou falaste comigo, Mahbub Ali, que vendo cavalos ao sahib Creighton, a quem não conheces. Lembra-te desta ordem.

Kini acenou.

- Está bem -- disse -, e quem é o sahib Lurgan? Não - detectou o olhar cortante de Mal---ibub -, de facto nunca ouvi falar no nome dele. É por acaso - baixou a voz - um dos nossos?

- Que conversa é essa de nossos, sah b? - retorquiu Mal---tbub Ali, no tom que utilizava com os europeus. - Eu sou um patane; tu és um sahib e filho de um sahib sahib Lurgan tem uma loja no meio das lojas curopeias. Toda a SimIa o sabe. Pergunta lá... e, Amigo do Mundo, ele é para ser obedecido até ao último piscar das suas pestanas. Dizem que ele faz magia, mas isso não deve afectar-te. Sobe a montanha e pergunta. Aqui começa o Grandejogo.

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1X

S'(loaks era filho de Yelth, o sábio -- Chefe do clã de Raven

Itswoot, o Urso, tinha-o a seu cargo Para fazer dele um feiticeiro.

Aprendia cada vez mais depressa Ousava cada vez com mais arrojo: Dançava a terrível Dança Kloo-Kwallie Para divertir Itswoot, o Urso!

Lenda do Oregão

Kint atirou-se de alma e coração à volta seguinte da roda. Seria de novo um sahib por uns tempos. Com essa ideia, assim que chegou à estrada ampla sob os Paços do Conselho de Simla, desviou-se à procura de alguém a quem impressionar. Um miúdo hindu, com uns 10 anos, estava acocorado debaixo de um poste de iluminação.

- Onde é a casa do senhor Lurgan? - perguntou Kini.

- Não percebo inglês - foi a resposta, e Kini mudou o discurso, de acordo com as eircunstãncias.

- Eu mostro.

Juntos, partiram através do misterioso crepúsculo, cheio com os ruídos de uma cidade no sopé da encosta e o soprar de um vento fresco no Jakko coroado de cedros, empurrando as estrelas. As luzes das casas, espalhadas em todos os níveis, faziam como que um duplo firmamento. Algumas eram fixas, outras pertenciam aos riquexós dos ingleses descuidados, faladores, saindo para jantar,

- É aqui - disse o guia de Kini, e parou numa varanda ao nível da estrada principal. Nenhuma porta os detinha, mas apenas cortina de bolas de junco que decompunha a luz do candeeiro do outro lado.

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- Ele chegou - disse o rapaz, com a voz pouco mais alta que um suspiro, e desapareceu. Kini tinha a certeza de que o rapaz tinha sido enviado para o guiar desde o princípio, mas, fazendo uma cara arrojada, afastou a cortina. Um homem de barba preta, com uma sombra verde por Rm

cima dos olhos, estava sentado a uma mesa e, um a um, com mãos pequenas e brancas, apanhava glóbulos de luz de uma bandeja à sua frente, enfiava-os num fio de seda brilhante e, cantarolava por entre dentes ao mesmo tempo. Kini estava consciente de que, par

sala estava cheia de coisas que cheiravam como toa lá do círculo de luz, a dos os templos de todo o Leste. uma lufada de aliníscar, uma baforada de sãndalo e um sopro de jasmim crijoativo foi o que detectaram as suas narinas abertas.

- Estou aqui - disse Kini por fim, falando no vernáculo: os cheiros fizeram-no esquecer que devia ser um sahib.

- Setenta e nove, oitenta, oitenta e um - o homem contava para si próprio, enfiando pérola atrás de pérola tão depressa que Kini mal conseguia seguir os seus dedos. Saiu da sombra verde e olhou fixamente para Kim, durante meio minuto. As meninas dos olhos dilatavam e fechavam como se fossem picadas por alfinetes, parecendo à vontade. Havia um faquir junto da Porta de Taksali que tinha precisamente este dom e fazia dinheiro com ele, especialmente ao amaldiçoar mulheres estúpidas. Kuri olhava-o com interesse seu desonroso amigo ainda conseguia contorcer as orelhas, quase como uma cabra, e Kim estava desapontado por este novo homem não o conseguir imitar.

- Não tenhas medo - disse de repente o sahib Lurgan. - Por que havia de temer?

- Dormirás aqui esta noite e ficarás comigo até ser altura de ires de novo para Nuck1ao. É uma ordem. - Mas onde dormirei?

- É uma ordem - repetiu Y-im.

- Aqui, neste quarto. - 0 sahib Lurgan acenou a mão na direcção da escuridão atrás dele.

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- Seja - disse Kini calmamente. - Agora?

Ele acenou e segurou o candeeiro por cima da sua cabeça. Quando a luz os varreu, saltou das paredes uma colecção de máscaras de danças malignas do Tibetc, penduradas por cima das tapeçarias com demónios bor~ dados em sinistras atitudes - máscaras com cornos, máscaras ameaçadoras e máscaras de terror imbecil. Num canto, um guerreiro japonês, de armadura e plumas, ameaçava-o com uma alabarda, e um jogo de lanças e khandas e kuttans reflectiam o brilho trémulo. Mas o qiuc interessou Kim mais do que todas estas coisas - ele i a tinha visto máscaras de danças demoníacas no Museu de Lahore - foi o vislumbre da criança hindu de olhos brandos que o deixara à entrada, sentada de pernas cruzadas debaixo da mesa das pérolas, com um ligeiro sorriso nos lábios escarlates.

- Penso que o sahib Lurgan deseja meter-me medo, E tenho a certeza

Kim

de que aquele fedelho do diabo que está debaixo da mesa deseja ver-me atemorizado. Este lugar - disse em voz alta - é como uma Casa das Maravilhas. Onde é a minha cama?

repú) ahníb sumrgan rapo peoguopuara uma colcha nativa num canto, perto das gna tel- caa s ri no candeeiro e deixou o quarto às escuras. - Era o sahib Lurgari? - perguntou Kini, enquanto se aninhava. Não

houve resposta. Contudo, ele conseguia ouvir o rapaz hindu respirar e, guiado pelo som, rastejou pelo quarto e esbofeteou-o na escuridão, gritando:

- Responde, diabo! Isso são maneiras de mentir a um sahib?

Da escuridão julgou ter conseguido ouvir o eco de um riso abafado. Não podia ser o seu companheiro, porque ele estava a chorar. Por isso, Kini levantou a voz e chamou alto:

- Sahib Lurgaril 0 sahib Lurgan! É uma ordem que o teu criado não fale comigo?

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- É uma ordem. - A voz vinha de detrás dele e Kim começou d - Muito bem. Mas lembra-te - murmurou

e manhã vou bater-te. Não gosto de hindus. , ao procurar a colcha Não foi uma noite agradável, com o quarto cheio de vozes e música. Kini foi acordado duas vezes por alguém chamando o seu nome. Na segunda vez acorreu a ver o que era e acabou magoando o nariz contra uma caixa que certamente falava com uma língua humana, mas sem nenhuma espécie de sotaque humano. Parecia terminar numa corneta de lata e estar ligada por arames a uma caixa mais pequena no chão - tanto quanto, Pelo menos, ele podia calcular pelo tacto. E a voz, muito forte e rouca, saía da corneta. Kini. esfregou o nariz e começou a ficar furioso, pensando, como de costume, em hindi.

- Isto, com um mendigo do bazar podia ser bom, mas... eu sou um sahib e filho de um sahib e, o que é duas vezes mais importante, um estudante de Nuck1ao. Sim - aqui, mudou para inglês - um rapaz de São Xavier. Malditos os olhos do senhor Lurgan!... É uma espécie de maquinaria, como uma máquina de costura, Ali, é um grande descaramento dele... em Lucknow não somos assustados desta maneira... Não1 - Depois, em hindi: - Mas que ganha ele? Ele é só um comerciante, eu estou na sua loja. Mas o sahib Creiglitort é um coronel... e eu penso que o sahib Creigliton deu ordens para que isto fosse feito. Como eu vou espancar aquele hindu de manhã! Que é isto?

A caixa da corneta derramava uma torrente da mais elaborada injúria que mesmo Kini jamais ouvira, numa voz alta, indiferente, que, por um Ru#ard

momento, levantou os curtos cabelos da sua nuca. Quando a indigna coisa tomou fõlcgo, Krin foi tranquilizado pelo suave ruído, parecido com uma máquina de costura.

- Chap! [Está calado] - gritou ele, e de novo ouviu um riso abafado que o decidiu. - Chilp... ou parto-te a cabeça.

A caixa não ligou. Knn deu um puxão na corneta de lata e qualquer coisa se ergueu com um estalido. Ele levantara uma tampa, evidenternente. Se havia um diabo lá dentro, era agora a sua vez, pois - fungou - era assim que cheiravam as máquinas de costura do bazar. Ele limparia aquele shaitan. Despiu rapidamente o casaco e lançou-o para a abertura da caixa. Uma coisa grande e redonda curvou-se à pressão, houve um ronco e a voz parou - como acontece quando

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se comprime um casaco dobrado em três contra o cilindro encerado e os mecanismos de um fonógrafo caro. Kini terminou os seus sonos com o espírito sereno.

De manhã teve consciência de que o sahib Lurgan olhava para ele.

- Ah! - disse Kini, firmemente resolvido a manter-se fiel à sua condição de sahib. - Havia uma caixa, durante a noite, que falava mal comigo. Por isso, calei-a. Era tua?

- Apertemos as mãos, O'Hara - disse ele. - Sim, a caixa era minha. Guardo essas coisas porque os meus amigos, os rajás, gostam delas. Essa está partida, mas foi barata. Sim, os meus amigos, os reis, gostam muito de brinquedos... e eu também, às vezes.

Kini deu-lhe uma olhadela pelo canto do olho. Ele era um sahib no sentido em que usava roupas de sahib; o sotaque do seu urdu, a entoação do seu inglês, mostravam que era tudo menos um sahib, Parecia compreender o que se passava no espírito de Kim antes de o rapaz abrir a boca e não fazia um esforço para se explicar, como fazia o padre Victor ou Os mestres de Lucknow 0 mais cativante de tudo - tratava Kini como uni igual do lado asiático.

- Lamento que não possas bater no meu rapaz esta manhã. Ele diz que te matará com uma faca ou veneno. Ele está com ciúmes, Por'sso pu-lo no canto e não lhe falarei hoje. Acabou de tentar rnatar-rne. Ajuda-me com o pequeno-almoço. Ele é ciumento de mais para se confiar nele neste momento.

Um genuíno sahib importante da Inglaterra teria feito uni grande rebuliço acerca desta história sahib Lurgan referia-a simplesmente, COMO Mabbub Ali estava habituado a registar os seus pequenos assuntos 110 norte.

A varanda das traseiras da loja estava construida sobre a encosta a Pi

KíM

que e eles olhavam para dentro dos tubos das chaminés dos vizinhos orno é costume em SimIa. Mais ainda que a refeição genuinamente perc ada pelo sahib Lurgan com as suas

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propnas mãos, a loja fascinasa cozinh: useu de Lahorc era maior, mas aqui havia mais maravilhas va Kin1 M a e caixas de orações do Tibete- colares de turquesa e punhais de fantasin de jade verde; paus de incenso curiosamente Ambar natural; braceletes incrustações de granadas puras; as máscaras deembalados, em vasos COM

moníacas da noite anterior e uma parede cheia de tapeçarias em azul-pavão; figuras douradas de Buda e pequenos altares portáteis, lacados; sarquesas na tampa- conjuntos de porcelana casca de movares russos corri tu 1

ovo, em caixas de junco octogonais; crucifixos de marfim amarelo - do japão, entre todos os lugares do mundo, como disse o sahib Lurgan; carpetas em fardos empoeirados, cheirando atrozmente, empurrados para trás de biombos de desenhos geométricos, rotos e carcomidos, jarros de água persas, para as inaos, depois das refeições; queimadores de incenso em cobre embolado, nem chineses, nem persas, com frisos de diabos fan-

rrendo à sua volta- cintos de prata embaciada, que atavam como tásticos CO 1

os de couro por curtir; ganchos de cabelo em j ade, marfim e quartzo; armas de todas as espécies e tipos e milhares de outras bugigangas estavam empacotadas, ou empilhadas, ou simplesmente atiradas na sala, deixando apenas um espaço livre à volta da vacilante mesa de negócios onde o sahib Lurgan trabalhava.

- Essas coisas não são nada - disse o seu hospedeiro, seguindo o olhar de Kiní. - Compro-as porque são bonitas e, às vezes, vendo-as... se gostar do aspecto do comprador meu trabalho está em cima da mesa... algum dele.

Resplandecia à luz matinal - cheio de clarões vermelhos, azuis e verdes, realçado com o imperfeito jorro azul e branco de um diamante aqui e ali. Kini abriu os olhos.

- Oli, são bem boas, essas pedras. Não lhes fará mal apanhar sol. Além disso, são baratas. Mas com pedras doentes é muito diferente. - Arr11m011 outra vez o prato de Kini. - Não há ninguém, a não ser eu, que consiga medicar uma pedra doente e reazular uma turquesa. Concedo-te Opalas... qualquer tolo consegue curar uma opala... mas para uma pérola doente só ti. Supondo que eu estava a morrer! Então não haveria rimguém... Oh, não! Tu não consegues fazer nada com jóias. Será bastante born se COMpreenderes um pouco sobre a turquesa... um dia.

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Diri .

glu-se para o fundo da varanda para encher, do filtro, o pesado, po- 11OSOjarro de barro com água. - Queres beber?

Kini acenou sahib Lurgan, afastado cinco metros, PÔS mão rio jarro. No instante seguinte, este estava no cotovelo de Kini, cheio até un, centímetro da borda - a roupa branca a mostrar, apenas por uma pequena ruga, onde ele escorregara para o lugar.

- Ena! - disse Kim, no mais absoluto assombro. - ISSO é magia. 0 sorriso do sahib Lurgan mostrou que o elogio lhe agradara.

- Atira-o para cá. - Partir~se-á.

- Estou a mandar, atira-o para cá.

Kini lançou-o à toa. Não chegou ao ponto esperado e estilhaçou-se em cinquenta pedaços, enquanto a água gotej ava pelo sobrado rugoso da varanda.

- Eu disse que se partia.

- É o mesmo. Olha para ele. Olha para o bocado maior.

Este jazia com um brilho de água na aresta, como se fosse uma estrela no chão. Kim olhou, concentrado sahib Lurgan pôs uma mão delicadamente na nuca dele, afagou-a duas ou três vezes e murmurou:

- Olha! Ressuscitará de novo, pedaço por pedaço. Primeiro o pedaço grande juntar-se-á a dois outros à direita e à esquerda. Olha!

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Mesmo que fosse para salvar a vida, Kim não teria conseguido virar a cabeça para outro lado toque de luz prendeu-o como um vício e o seu sangue palpitou agradavelmente dentro dele. Havia um único grande pedaço do jarro onde antes houvera três e, por cima deles, o contorno indistinto de todo o recipiente. Conseguia ver a varanda através dele, mas ele engrossava e escurecia a cada batida do seu pulso. No entanto, o jarro - como vinham lentamente, os pensamentos! -, o jarro fora esmagado à frente dos seus olhos. Outra onda de fogo formigou pelo seu pescoÇO abaixo, quando o sahib Lurgan moveu a mão.

- Olha! Está a tomar forma - disse o sahib Lurgan.

Até aí, Kini estivera a pensar em hindi, mas um estremecimento apoderou-se dele e, com um esforço como o de um nadador enfrentando tubarões, que se debate meio fora de água, o seu espírito saltou de escuridão que o engolia e refugiou-se... na tabuada de multiplicar ern inglés' - Olha! Está a tomar forma - murmurou o sahib Lurgan.

0 jarro tinha sido escaqueirado -- sim, escaqueirado - não a palavra nativa, ele não pensaria nela - mas escaqueirado - em cinquenta pedaços e duas vezes três eram seis e três vezes três eram nove- e quatro vezes três eram doze. Agarrou-se desesperadamente à repetição- o contorno

Kim

sombrio do jarro aclarou-se como uma névoa, depois de esfregar os olhos. Lá estavam os fragmentos partidos; lá estava a água entornada secando ao sol e, através das gretas da varanda, aparecia, toda estriada, a parede branca da casa por baixo - e doze vezes três eram trinta e seis.

- olha! Está a tomar forma? - perguntou o sahib Lurgan.

- Mas está esmagado... esmagado -- gaguejou ele. - 0 sahib Lurgan estivera murmurando mansamente durante o último meio minuto. Kim virou a cabeça para o lado. - Olha! Dekho! Está lá, como estava.

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- Está lá como estava - disse Lurgan, observando Kim de perto, enquanto o rapaz esfregava o pescoço. - Mas tu és o primeiro, entre muitos, que alguma vez o viu assim. - Limpou a sua ampla testa.

- isto foi magia? - perguntou Kim, com desconfiança. A palpitação desaparecera das suas veias; sentiu-se invulgarmente desperto.

- Não, aquilo não foi magia. Foi só para ver se havia... um defeito numa jóia. Às vezes, jóias muito belas voam em pedaços, se um homem as segura na mão e sabe a maneira própria de o fazer. É por isso que devemos ser cuidadosos antes de as colocar. Diz-me, viste a forma do recipiente?

- Por um momento. Começou a crescer do chão como uma flor. - E depois, que fizeste? Quero dizer, que pensaste?

- Ali! Eu sabia que ele estava partido e, por isso, acho eu, foi isso que pensei... e estava partido.

- Hum! já alguém te fez esse mesmo tipo de magia antes?

- Se tivessem - disse Knn - pensas que eu deixaria isso acontecer de novo? Fugiria.

- E agora, não estás com medo? - Agora não.

0 sahib Lurgan olhou para ele mais próximo que nunca.

- Perguntarei ao Malibub Ali... não agora, mas daqui a alguns dias murmurou ele. - Estou contente contigo... sim, e estou contente conti- 1

go... não. Tu és o primeiro que alguma vez se salvou. Gostava de saber o que foi que, . . Mas tens razão. Não devias dizê-lo nem mesmo a mim. Entrou na obscuridade sombria da loja e sentou-se à mesa, esfregando

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as nIãOs com suavidade. Um pequeno soluço rouco veio de detrás de uma Pilha de tapetes. Era o miúdo hindu, obedientemente virado para a parede- Os seus magros ombros moviam-se com a aflição.

- Ali, ele é ciumento, tão ciumento! Pergunto-me se ele tentará enVer'ellar-Ine outra vez ao pequeno-almoço e fazer-me cozinhá-lo duas vezes. Ru Kard pling

-- Kubbee... hubbee whin [Nunca... nunca. Não!] -foi a resposta, entrecortada.

- E se ele tentar matar este outro rapaz? - Kubbec... hubbee nahiii.

- Que pensas tu que ele fará? - Virou-se subitamente para Kini, - Ah! Não sei. Deixa-o ir, talvez. Por que é que ele quis envenenar-te? - Por gostar tanto de mim. Supõe que gostavas de uma pessoa e vias

alguém chegar e o homeni de quem gostavas ficava mais contente corri ele do que estava contigo-, que farias?

Kin-i pensou. Lurgan repetiu a frase devagar, no vernáculo.

- Não envenenaria o homem - disse Kini reflectidamente - mas bateria nesse rapaz... se esse rapaz gostasse do meu homem. Mas primeiro perguntaria a esse rapaz se isso era verdade.

- Ah! Ele pensa que toda a gente deve gostar de mim. - Então acho que ele é pateta.

- Ouves? - perguntou o sahib Lurgan aos ombros trémulos. - o filho do sahib pensa que tu és um pequeno pateta. Sai daí e, da próxima vez que o teu coração esteja perturbado, não tentes arsénico branco tão abertamente. Certamente o Diabo Dasim foi senhor da nossa toalha de mesa nesse dia. Isso podia ter-me deixado doente, pequeno, e depois um estranho teria guardado as jóias. Anda!

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A criança, com os olhos pesados do muito choro, arrastou-se de detrás do fardo e lançou-se apaixonadamente aos pés do sahib Lurgan, com uma extravagãncia de remorso que impressionou até Kim.

- Examinarei os tinteiros... guardarei fielmente as jóias1 Ola, meu Pai e minha Mãe, manda-o embora! - Indicou Kini com um movimento do seu calcanhar nu para trás.

- Ainda não, ainda não. Daqui a pouco ele ir-se-á embora outra vez. Mas agora ele está na escola... numa nova madrissah... e tu serás o seu PrOfessor. joga o jogo das jóias com ele. Eu ficarei a marcar.

A criança limpou imediatamente as lágrimas e precipitou-se para o fundo da loja, de onde voltou com uma bandeja de cobre.

- Dá-me! - disse ele ao sahib Lurgan. - Deixa-as cair da tua mão, pois ele pode dizer que eu já as conhecia.

- Devagar, devagar -- replicou o homem e, de gaveta da mesa, retirou para a bandeja uma mão cheia das pedras tilintantes -

- Agora - disse a criança, agitando um velho jornal. - olha Para elas o tempo que quiseres, estranho. Conta e, se for preciso, toca. tio olhar é suficiente para mim. -Virou as costas com orgulho.

Kim

- olha, qual é 0 i 090?

- Depois de contares e tocares e teres a certeza de que te consegues lembrar de todas, eu cubro-as com este jornal e tu tens de fazer enumeraCão para o sahíb Lurgan. Eu escreverei a minha.

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_Ah! - o instinto de competição acordou no seu peito. Inclinou-se sobre a bandeja. Havia nela apenas quinze pedras. - É fácil - disse ele ao fim de um minuto.

o miúdo estendeu o jornal sobre as pedras tremeluzentes e rabiscou num livro de contas nativo.

- Debaixo desse jornal há cinco pedras azuis... uma grande, uma mais pequena e três pequeninas - disse Kin-i apressadamente. - Há quatro pedras verdes, uma com um buraco há uma pedra amarela, translúcida e uma como um tubo de cachimbo. Há duas pedras vermelhas e... e... eu contei quinze, mas esqueci-me de duas. Não! Dá-me tempo...

-Um... dois - o sahib Lurgan contou até dez. Kím sacudiu a cabeça.

- Ouve a minha contagem! - explodiu a criança, gorjeando de riso. - Primeiro, há duas safiras imperfeitas... uma de dois ruttees e outra de quatro, segundo pude perceber. A safira de quatro ruttees está rachada no extremo. Há uma turquesa do Turquestão, lisa, com veios pretos e há duas com inscriçoes, uma com um nome de Deus em dourado e, estando a outra fendida, pois veio de um velho anel, não consigo ler. Térnos agora cinco pedras azuis. Estão lá quatro esmeraldas, mas uma está furada em dois sítios e uma está um pouco cinzelada...

- Os Seus Pesos? - perguntou o sahib Lurgan, impassivelmente.

- Três... cinco... e quatro ruttees, parece-me. Há um pedaço de velho àmbar de cachimbo, esverdeado, e um topázio lapidado da Europa. Há um rubi de B, de dois ruttees, sem uma imperfeição, e há um rubi ba'ache, imperfeito, também de dois ruttees. Há um marfim esculpido da China, representando uma ratazana sugando um ovo- e há, finalmente... ha-ha!... uma bola de cristal do tamanho de uma ervia, colocada numa folha de ouro.

Bateu as palmas, no fim.

- Ele é 0 teu mestre - disse o sahib Lurgan, sorrindo.

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- Pf[f! Ele sabia os nomes das pedras - disse Kini, corando. - Tenta Outra vez. COM coisas vulgares, que ambos conheçamos.

Encheram a bandeja novamente, com bugigangas reunidas na loja e até na cozinha e, em todas as vezes, a criança ganhou, até que Kini se esPantou, Ru#ardKip i N

- Tapa-me os olhos... deixa-me tocar uma vez com os dedos e, inesmo assim, deixar-te-ei, com os olhos abertos, para trás - desafiou ele.

Kini sentíu-se humilhado, quando o miúdo se vangloriou.

- Se fossem homens... ou cavalos - disse ele - eu podia fazer me~ lhor. Esta brincadeira com pinças e facas e tesouras é muito infantil.

- Aprende primeiro, ensina mais tarde - disse o sahib Lurgan. - Ele é o teu mestre?

-Verdadeiramente. Mas como é isto feito?

- Fazendo-o repetidamente, até que seja feito com perfeição... pois vale a pena fazê-lo.

0 rapaz hindu, muito animado, encorajava agora Kim.

- Não desesperes - disse ele. - Eu próprio te ensinarei.

- E eu farei com que tu sejas bem ensinado - disse o sahib Lurgan, falando ainda no vernáculo -, pois, exceptuando aq 'ui o meu rapaz... foi tolice dele comprar tanto arsénico branco quando, se ele tivesse pedido, eu lho podia ter dado... excepto aqui o meu rapaz,'riá muito tempo que não encontrava alguém que valesse mais a pena ensinar. E há mais dez dias antes de poderes regressar a Nuck1ao, onde não ensinam nada por pouco dinheiro. Seremos, penso eu, amigos.

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Foram uns dez dias bastante loucos, mas Kim divertiu-se de mais para reflectir na sua loucura. De manhã jogavam o jogo das jóias - às vezes com pedras verdadeiras, às vezes com pilhas de espadas e punhais, às vezes com fotografias de nativos. Durante as tardes, ele e o rapaz hindu montavam guarda à loja, sentando-se mudos atrás de um fardo de tapetes ou de um biombo e observando os muitos e muitos curiosos visitantes do senhor Lurgan. Eram pequenos rajás, de séquitos tossindo na varanda, que vinham comprar curiosidades - como fonógrafos e brinquedos mecãnicos. Eram senhoras à procura de colares, e homens, parecia a Kim - mas o seu espírito podia ter sido viciado pelo treino antecipado - à procura de senhoras; nativos de cortes independentes e feudatários cujo ostensivo negócio era a reparação de colares rebentados - rios de luz derramados na mesa - mas cujo verdadeiro objectivo parecia ser angariar dinheiro para mulheres de marajás zangadas, oujovens rajás. Eram senhoras hindus a quem o sahib Lurgan falava com atisteridade e autoridade; no fim de cada entrevista, dava-lhes dinheiro em moedas de prata e cédulas de 10 xelins. Eram reuniões ocasionais de teatrais nativos de longas vestes, que discutiam metafisica em inglês e bengali, para grande edificação do senhor Lurgan. Ele sempre se interessara por religiões. No fim do dia, Kim e o rapaz hindu - cujo nome variava se-

Kim

gundo a vontade de Lurgan - deviam dar conta detalhada de tudo o que tinham visto e ouvido - o parecer deles sobre o carácter de cada homem, rnanife-sto no seu rosto, fala e modos e a ideia deles sobre a sua verdadeira incumbência. Depois do jantar, a fantasia do sahib Lurgan transformava-se naquilo a que se pode chamar máscaras de cerimónia, em cuja encenação punha um interesse muito instrutivo. Conseguia pintar rostos maravilhosamente; com uma pincelada aqui e um traço além, deixava-os irreconhecíveis. A loja estava cheia de todos os tipos de trajos e turbantes e Kim era vestido ora como um jovem maometano de boa família ora como droguista, e uma vez - foi uma noite alegre - como filho de um possuidor de terras de Oudh, com o mais completo dos trajos sahib Lurgan tinha um olho de falcão para detectar a mínima imperfeição na maquilhageml e, estendido num gasto divã de teca, explicava durante meia hora seguida como é que tal e tal casta falava, ou andava, ou tossia, ou cuspia, ou espirrava e, já que os "comos" importam Pouco neste mundo, o "porquê" de tudo. A criança hindu jogava o seu jogo desajeitadamente. Aquele pequeno espírito, vivo como um sincelo no que dizia respeito à contagem de jóias, não conseguia preparar-se para entrar na alma de outro; mas um demónio acordava em Kini e ele cantava alegremente enquanto vestia os trajos de transformação, após o que mudava a fala e gestos.

Arrebatado pelo entusiasmo, ofereceu~se uma noite para mostrar ao sahib Lurgan como é que os discípulos de uma certa casta de faquires, velhos conhecimentos de Lahore, mendigavam esmolas à beira da estrada; e que tipo de linguagem usaria com um inglês, com um lavrador punjabi indo para uma feira e com uma mulher sem véu sahib Lurgan riu~se imensamente e implorou a Kim que ficasse como estava, imóvel durante meia hora - de pernas cruzadas,

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untado de cinza e com olhos selvagens, no quarto das traseiras. Ao fim desse tempo, entrou um cavalheiro hindu pesadão, obeso, cujas pernas, com meias, estremeciam com a gordura e Kim atacou-o com uma saraivada de mofa de rua sahib Lurgan - isto aborreceu Kim - observava o babu e não a representação.

- Eu penso - disse o babu pesadamente, acendendo um cigarro sou da opinião de que é uma representação bastante extraordinária e eficiente. Só que o senhor me tinha dito que eu devia ter opinado que... qu... que me estava a puxar as pernas. Dentro de quanto tempo, aproximadamente, poderá ele tornar-se um homem de ligação eficiente? Porque, nessa altura, eu requisitá-lo-ei.

- isso é o que ele deve aprender em Lucknow. Kím

Rudy -d

rápido corno o diabo. Boa noite, Então, ordeno-lhe um que seja

Lurgan. - o baki saiu, com o porte de uma vaca atolada. o sahib Lurgan Quando estava a comentar a lista dos visitantes do dia,

perguntou a Kini quem ele pensava que o homem podia ser.

- Sabe Deus1 - disse Kini alegremente. o tom quase podia ter enganado Malibub Ali, mas falhou complejamente, com o curador de pérolas doentes. pensas. - isso é verdade. Deus sabe,, eu desejo saber o que é que tu

y,im olhou para o lado, para o seu companheiro, cujos olhos tinham um ar de verdade forçada.

- Eu... eu penso que ele me quererá quando eu vier da es .cola, mas confidencialmente, quando o sahib Lurgan acenou aprovativamente não compreendo corno é que ele pode usar muitos trajos e falar muitos idiomas.

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- compreenderás muitas coisas mais tarde. Ele escreve histórias para um certo coronel. A sua reputação é grande em Smila e é digno de nota que ele não tem nome, mas apenas um número e uma letra... isso é um costume entre nos.

- E há um premio pela sua cabeça também... como pela de Mali... todos os outros?

- Ainda não, mas, se um rapaz qu, está aqui sentado se erguesse c fosse... olha, a porta está abertW... até uma certa casa corri varanda pintada de vermelho, atrás da qual ficava o velho teatro do Bazar inferior e sussurrasse através das persianas "Hurree Chunder Mookeec produziu a má notícia do mês passado", esse rapaz podia arrecadar um cinto cheio de rupias. ti Kini prontamente--

- Quantas? - pergunto

- Quinhentas... mil... tantas quantas pudesse pedir.

amo tempo poderia tal rapaz viver, depois de - Optimo. E durante qu te nas barbas fartas do sahib Lurdivulgada a notícia? - Sorriu alegiemeri

gari. - Ali! Isso é para ser bem pensado. Ta .Ivez, se ele fosse muito esperto' pudesse sobreviver ao dia... mas não à noite. De modo rienhum à noite-

-Então, qual é a recompensa do babu, se a sua responsabilidade é tão grande? mas o Pa- - Oitenta... talvez cem. talvez cento e cinquenta rupias, Deus progamento é a parte menor do trabalho. De ternPOs a tempos,

voca o nascimento de homens... e tu és Um deles... que tên, ânsla de andar por aí, com risco das próprias vidas, à descoberta de notícias""

hoje pode ser sobre coisas remotas, amanhã sobre alguma montanha culta e, no dia seguinte, sobre alguns homens próximos que tenham feito alguma loucura contra o Estado. Estas almas são muito poucas-, e destas poucas, não mais de dez são das melhores. Entre estes dez, eu

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conto este cavalheiro hindu e isso é curioso. Como deve ser grandioso e desejável, por conseguinte, um negócio que torne descarado o coração de um bengali!

- Certo. Mas os dias correm lentos para mim. Eu ainda sou um rapaz e só há dois meses aprendi a escrever inglês. Ainda agora não consigo lê-lo bem. E há ainda anos e anos e longos anos antes que eu possa ser um homem de ligação. do Mundo. - Kim sobressaltou-se com o Tem paciência, Amigo

epíteto. - Tivesse eu alguns dos anos que tanto te custam. Pus-te à prova de muitas pequenas maneiras. Isto não será esquecido quando eu fizer o meu relatório ao sahib coronel. - Depois, mudando subitamente para inglês, com um riso profundo: - Caramba! O'Hara, eu acho que tu tens muito para dar; mas não deves tornar-te orgulhoso e não deves falar. Deves voltar para Lucknow e ser um bom rapazinho e ser estudioso, como dizem os ingleses e, talvez nas próximas férias, se te interessar, possas voltar aqui] - 0 rosto de Kim ensombrou-se. - Oh, quero dizer, se te apetecer. Eu sei onde é que tu queres ir.

Quatro dias mais tarde, um lugar para Kini e a sua pequena mala estava marcado na retaguarda de uma tonga de Kalka seu companheiro era o cavalheiro hindu parecido com uma baleia, que, com um xaile franjado enrolado à volta da cabeça e a sua gorda perna esquerda calçada com uma meia, dobrada debaixo dele, tiritava e grunhia ao fresco da manhã.

"Como é que este homem pode ser um dos nossos?", pensou Kim, prestando atenção às costas gelatinosas enquanto seguiam aos tropeçoes pela estrada; e a reflexão lançou-o nos mais agradáveis devaneios sahib Lurgan dera-lhe cinco rupias - uma esplêndida quantia - bem como a garantia da sua protecção se ele trabalhasse. Ao contrário de Malibub, o sahíb Lurgan falara muito explicitamente da recompensa que seguiria a Obediência e Kim ficou satisfeito. Se ao menos, como o babu, pudesse gozar da dignidade de uma letra e um número - e um premio pela sua cabeça. Um dia, seria tudo isso e mais. Um dia, ele poderia ser tão importar`te como Malibub Ali. Os terraços da sua busca seriam meia india, seguiria reis e ministros, como nos velhos tempos seguira vakíls e inforInadores dos advogados pela cidade de Lahore, por atenção a Mahbub Ali. Rudyard KípèW

KiM

Entretanto, havia o presente e, não de todo desagradável, o facto de So Xavier estar imediatamente à sua frente. Haveria novos rapazes oorn qi',é,1 transigir e haveria histórias de aventuras de férias para ouvir jo",em Martin, filho do dono da plantação de chá em Manipur,

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alardeara que com uma carabina, para a guerra contra os caçadores de cabeça . Po iria,

5 C:era ser, mais o que era certo é que o jovem Martin não fora pelos ares atr-aVés do pátio de entrada de um palácio de Patiala por causa de uma cxplsão de fogo-de-artifício; tão pouco fora... Kim não resistiu a contar a si pró prio a história das próprias aventuras nos últimos três meses. Podia para_lisar São Xavier - mesmo os rapazes maiores, que já faziam a barba - cc--rtJ o relato, se lhe fosse permitido. Mas, é claro, estava fora de questão. H _ave_ ria um premio pela sua cabeça, a tempo, como o sahib Lurgan lhe ass,,egurara, e, se falasse insensatamente agora, não só esse premio nunca ser-ia fixado, como também o coronel Creigliton o poria de parte - e ele -,:Seria abandonado à cólera do sahib Lurgan e de Mal---ibub Ali - durainte o curto tempo de vida que lhe restaria.

Assim iria perder Délhi por causa de um peixe - era a sua p)ro\,e rbial filosofia, Convinha-lhe esquecer as suas férias (ficaria sempre e dív-ertimento de inventar aventuras imaginárias) e, como dissera o sahib Lur-gan, trabalhar.

De todos os rapazes que se apressavam a voltar para São Xaviier, d-esde Sukkur na praia até Galle entre as palmeiras, nenhum era tão cheio de-- virtude como Kimball C'Hara, saltitando para Umballa atrás d e Hi --- irree

Chunder Mookerjec, cujo nome nos livros da pesquisa etnológicai era R17.

E se algum estímulo adicional fosse necessário, o babu fornecê -1 Jo-ia. Depois de uma enorme refeição em Kalka, falou ininterruptamente. Kim ia para a escola? Depois, ele que era um mestre de artes da Uniwersi.-, dade de Calcutá, explicou as vantagens de educação. Havia valores a o)bte r através da devida atenção ao latim e à Excursion, de Wordsworth (tudo ist ---0 era grego para Kim) francês também era vital e o melhor adquiria-s,3e eni Chandernagore, a uns quilómetros de Calcutá. Um homem també rr- 11 P'- dia ir longe, como ele próprio fizera, se tomar a devida atenção a ::::3eças chamadas Lear eJulius Caesar, ambas muito do agrado dos exam--ina d 4ores. Lear não era tão cheia de alusões históricas como a Jutius Caescur, o l'Vro custava quatro anãs, mas podia ser comprado em segunda mão no baZar do Arco por dois. Ainda mais importante que Wordsworth ow qi- ue os autores eminentes Burke e Hare, era a arte e ciência de mediçãc). Ur- 11 rapaz que tivesse passado nos exames dessas cadeiras - para as qu-,, ,is, a

,_.-Spaspropósito, não havia livros de estudo - podia, através de um simiple---

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seio em qualquer terreno, munido de uma bússola e de um nível e mantendo uni olhar apurado, elaborar um desenho dessa terra que podia ser

das de prata. Mas, como era ocasionalvendido por largas somas em moe

nIente inconveniente transportar correntes de medição, um rapaz faria bn, em saber o comprimento preciso da sua própria passada, para que, quando se visse privado daquilo a que Hurrec Chunder chamava "auxí~ hos acidentais", pudesse ainda trilhar os seus caminhos. Para não perder a conta a milhares de pessoas, a experiência de Hurree Chunder mostrara-lhe que não havia nada mais valioso que um rosário de oitenta e uma ou oitenta e oito contas, pois "era divisível e subdivisível em múltiplos e submúltiplos". Através das tiradas disparadas em inglês, Kin---i apreendeu a orientação geral da conversa e ela iriteressou-lhe muito. Aqui estava uma nova esperteza que um homem podia guardar na cabeça; e pelo aspecto do grande mundo aberto revelando-se à sua frente, parecia que quanto mais um homem soubesse, melhor para ele.

Depois de ter falado durante uma hora e meia, o babu disse

- Espero um dia poder usufruir do teu relacionamento oficial. Ad interim, se me perdoas a expressão, dar-te-ei esta caixa de bétele, que é um artigo altamente valioso e me custou duas rupias, apenas há quatro anos. - Era uma coisa ordinária, em forma de coração, com três comparti~ mentos para transportar noz de bétele, tília e folha de pan; mas estava cheia de pequenos frascos de comprimidos.

- Isso é uma recompensa de mérito pela tua representação no papel daquele santo. Percebes, tu és tão novo que pensas que durarás para sempre e não cuidas do teu corpo. É um grande aborrecimento ficar doente a meio dos negócios. Eu próprio gosto de medicamentos e eles são também úteis para curar pessoas pobres. Estes são bons medicamentos departamentais... quinino, etc. Dou-tos como recordação. Agora adeus. Tenho negócios privados urgentes, aqui à beira da estrada.

Saiu silenciosamente como um gato, na estrada de Umballa, chamou uni carro que passava e escapou-se, enquanto Kim, calado, fazia girar a caixa de bétele nas mãos.

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0 registo da educação de um rapaz interessa poucos para além dos seus pais e, como sabem, Kim era órfão, Está escrito nos livros de São Xavier ern. Partibus que, no fim de cada período, um relato da progressão de l(im era remetido ao coronel Creighton e ao padre Victor, de cujas mãos POlitualrnente vinha o dinheiro para a sua instrução. Além disso, está re- _fludyrd ÚT--

Kim

gistado nos mesmos livros que ele mostrava uma grande aptidão Para estudos matemáticos, bem (:orno na feitura de mapas, e arrebatou um pré_ mio (The Life oj-Lorcl Lawrence, encadernado a pele, dois volumes, nove ru_ pias e oito anãs) por competência naquele lugar e, no mesmo Período, jogou no onze de São Xavier contra o colégio maometano de Alighur, com a idade de 14 anos e 10 meses. Também foi revacinado (pelo que pode_ mos concluir que houve outra epidemia de varíola em Lucknow) pela mesma altura. Notas a lápis na borda de uma velha lista indicam que foi castigado várias vezes por "conversar com pessoas impróprias" e parece que foi uma vez condenado a pesadas penas por "se ausentar por Um dia, na companhia de um mendigo da rua". Foi quando ele saltou o portão e pediu durante um dia inteiro com o lama nas margens do Guinti, para o acompanhar na estrada nas férias seguintes - por um mês - por uma pequena semana e o lama opõs-se decididamente a tal declarando que a hora ainda não tinha chegado objectivo de Kini, disse o ancião enquanto comiam bolos juntos, era obter toda a sabedoria dos sahibs e depois se veria. A Mão da Amizade deve, de alguma maneira, ter desviado o Chicote da Calamidade, pois, seis semanas mais tarde, Kini parece ter passado num exame de pesquisa elementar "com grande distinção", com a idade de 15 anos e 8 meses. Desde esta data, o registo é omisso seu nome não aparece na fornada do ano daqueles que entraram para a subalterna pesquisa da India, mas, em contrapartida, estavam lá as palavras " afastado por convocação ".

Muitas vezes nesses três anos vomitou o lama, no Templo dos Tirthankars, em Benarés, um pouco mais magro e amarelado, se possível, mas afável e puro como nunca, Às vezes era do sul que ele vinha - do sul de Tuticorin, de onde os maravilhosos barcos de combate a incÊndios partem para Ceilão, onde há padres que sabem falar o pali- às vezes, era do 1

húmido oeste verde e das mil chaminés das fábricas de algodão que retinem em Bombaim; e, uma vez, do norte, para onde se desviara mil e trezentos quilómetros para falar durante um dia com o conservador das iniagens, na Casa das Maravilhas. Voltara para a sua cela no fresco Ulárinore lapidado - os padres do Templo eram bons para o ancião -, lavara-se do pó da viagem, orara e depois daí pai-tira para Lucknow, já habituado aos caminhos-de-ferro, numa carruagem de terceira classe. No regresso, era visível como o seu amigo pesquisador mostrara ao capelão que ele cessara por uns tempos de se lamentar pela perda do seu rio, ou de desenhar prodigiosas imagens da Roda da Vida, preferindo falar da beleza c sensatez de um certo chela misterioso que ninguém do Térriplojarriais vira. Sini,

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ele seguira as pegadas dos Pés Abençoados por toma a índia. (0 curador tem ainda na sua posse o mais maravilhoso relato das suas peregrinações . niedítações.) Não restou mais nada na vida senão a busca do rio da Seta. Não obstante, foi-lhe demonstrado nos seus sonhos que isso não era uma tarefa para ser empreendida com alguma esperança de sucesso, a não ser

e que esse pesquisador tivesse consigo o único chela apto a levar a tar fa a bom termo e possuidor de grande sabedoria - uma sabedoria como a que possuem os conservadores de Imagens de cabelos brancos. Como exempio (aqui apareceu a cabaça e os padresjain, amavelmente, apressaram-se a ficar em siléncio):

- Há muito, muito tempo, quando Devadatta era rei de Benarés... escutem todos o jâtaka!... um elefante foi capturado por uns tempos pelos caçadores do rei e, antes de se libertar, foi acorrentado com uma dolorosa grilheta na pata. Esforçou-se por removê-la, com ódio e furor no seu coração, e, apressando-se pelas florestas acima e abaixo, suplicou aos seus innãos elefantes para a puxarem separadamente. Um por um, com as fortes trombas, tentaram e falharam. No fim, opinaram que a argola não podia ser quebrada por nenhum poder animal. E, num matagal, recém-nascida, molhada da placenta, estava uma cria da manada, com um dia, cuja mãe morrera elefante agrilhoado, esquecendo a sua própria agonia, disse: "Se eu não ajudar este animal de mama, ele morrerá debaixo das nossas patas". Assim, ficou por cima da pequena coisa, transformando assuas própnas patas em Pilares que a protegiam da manada, que se movia m~ quieta; e implorou leite a uma virtuosa vaca e a cria desenvolveu-se e o elefante com a argola foi guia e defensor da cria. Agora, o tempo de um elefante... escutem todos os jâtaha!... até à sua máxima força, são trinta e cinco anos, e, ao longo de trinta e cinco épocas da chuva, o elefante com aargola protegeu ojovem e entretanto, a grilheta foi ficando corroída. DePois, um dia, 0 i ovem elefante viu o ferro meio enterrado na pata e, virando-se para o mais velho, perguntou - " Que é isto? ". " . precisamente a miIlha rnágoa", disse aquele que o tinha ajudado. Depois, o outro estendeu a tromba e, num piscar de olhos, removeu o aro, dizendo: "A hora fixada chegOu". Assim, o virtuoso elefante que esperava comedidamente e fizera boas acções foi aliviado, à hora fixada, precisamente pela mesma cria que ele desviara para a acalentar... escutem todos o jâtaha!... pois o elehte era Ananda e a cria que quebrou o anel não era

nhor... senão o próprio SeDepois sacudiu a cabeça bondosamente e, com o rosário sempre a estalar, mostrou corno aquela cria de elefante estava livre do pecado do or- gulho. Era tão humilde como um chela que, vendo o seu mestre sentado no pó fora das Portas da Erudição, saltasse as portas (embora estivessem fechadas) e levasse o seu mestre para o seu interior, na presença da cidade arrogante. Valiosa seria a recompensa de tal mestre e tal chela quando chegasse a altura de procurarem a liberdade juntos!

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Assim falava o lama, indo e vindo pela índia, tão suavemente como um morcego. Uma velha mulher de língua afiada, numa casa entre as árvores de fruto atrás de Saharumpore, venerou-o como a mulher venerou o profeta, mas o seu aposento não era de modo nenhum dentro das paredes. Sentou-se num compartimento do pátio de entrada, vigiado pelos pombos arrulhantes, enquanto ela punha de pai-te o seu inútil véu e começava a tagarelar acerca de espíritos de demónios de Kulu, de netos por nascer e do fedelho de língua solta que falara com ela no local de repouso, Uma vez, também, afastou-se sozinho da Grande estrada principal, abaixo de Umballa, dirigindo-se para a mesma aldeia cujo padre tentara drogá-lo-, mas o bondoso céu que protege os lamas enviou-o ao crepúsculo pelas colheitas, absorvido e não suspeitoso, para a porta de Rissaldar. Aqui pareceu ter havido um sério mal-entendido, pois o velho soldado perguntou~ -lhe porque é que o Amigo das Estrelas passara por ali apenas seis dias antes.

Isso não pode ser - dísse o lama. - Ele voltou para a sua gente. Sentou-se naquele canto, contando muitas histórias divertidas, há cinco noites - insistiu o seu hospedeiro. - Verdade, ele desapareceu um tanto subitamente ao amanhecer, depois de conversa tola com a minha neta.

Ele cresce depressa, mas é o mesmo Amigo das Estrelas que me trouxe a notícia verdadeira sobre a guerra. Separaram-se?

- sim... e não - replicou o lama. - Nós... nós não nos separámos completamente, mas não é a altura oportuna para tomarmos a estrada jun~ tos. Ele está a adquirir merito noutro lugar. Devemos esperar.

- É o mesmo... mas, se não fosse o rapaz, como é que ele falaria tão continuamente de ti?

- E que disse ele? - perguntou o lama, avidamente.

- Doces palavras... cem mil... que tu és pai e mãe dele e tudo e isso. É pena ele não entrar ao serviço da rainha. É corajoso.

Esta notícia espantou o lama, que, nessa altura, não sabia quão reli~ giosamente Kini respeitara o contrato feito com Mahbub Ali e necessariamente ratificado pelo coronel Creighton...

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- Não se deve retirar ojovem pónei dojogo - dissera o traficante de

Kim

cavalos, quando o coronel mostrou que vagabundear pela índia no tempo de férias era absurdo. - Se lhe for recusada permissão para ir e vir à vontade dele, ele fará da recusa um pretexto para desaparecer. Depois, quem o apanhará? Sahib coronel, só uma vez em mil anos nasce um cavalo em tão boas condições para o i ogo como este nosso potro. E nós precisamos de homens. 0 teu falcão está há muito no pico, Pai. Ele não é um falcão ilnplume Mas um falcão de passagem que se aguentou antes de o apanharmos, Perigosamente livre no ar. Fé! Se ele fosse meu

(Como minha é a luva a que ele se prende quando está cansado) Fá-lo-ia voar com um falcão feito. Ele está a postos Ornamentado para a ocasião - tão domesticado, tão dominado Dá-lhe o firmamento para o qual Deus o fez, E o que lhe tirará o seu ar?

A Vigia de Gow

0 sahib Lurgan não usou um discurso tão directo, mas o seu conselho condizia com o de Mal---ibub; e o desfecho era bom para Kini. Agora era esperto de mais para deixar a cidade de Lucknow em trajo nativo e, se Mahbub estivesse algures ao alcance de uma carta, seria para o acam~ pamento de Mahhub que se dirigiria e faria a sua transformação sob o olhar matreiro do patane. Pudesse a pequena caixa de tinta da Pesquisa, que ele usava para pintar os mapas na escola, ter encontrado uma língua para contar os feitos das férias, ele podia ter sido expulso. Uma vez, Mal---ibub e ele foram juntos até à bonita cidade de Bombaim, com três carregamentos de cavalos de tracção e Mal---ibub quase se enterneceu quando Kim propôs uma viagem num navio pelo Oceano índico para comprar cavalos árabes do Golfo, os quais, depreendeu ele da conversa de um empregado do negociante Abdul Rahman, alcançavam melhores preços que os simples habulis.

Mergulhou a mão no prato com aquele grande negociante quando Malibub e alguns correligionários foram convidados para um grande jantar haj. Regressaram via Carachi, por mar, quando Kini teve a sua primeira experiência de enjoo na escotilha da proa de um navio costeiro a vapor, bem convencido de que tinha sido envenenado. A famosa caixa de medicamentos do babu revelou-se inútil, embora Kini a tivesse reabastecido em Bombaim. Malibub tinha negócios em Quetta e lá Kini, como Mahbub, ganhou o seu sustento e até talvez

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um pouco mais, pas~ sando quatro curiosos dias como ajudante de cozinha na casa de um gordo sargento do comissariado, de cuja escrivaninha retirou, num mo- Rudyard fflÍÉI

mérito auspicioso, um livro-mestre de pergaminho que copiou - parecia tratar inteiramente de vendas de gado e camelos - à luz da Lua, es~ tendido atrás de um alpendre, durante uma quente noite inteira. Depois, devolveu o livro-mestre ao seu lugar e, por ordem de Mahbub, deixou esse serviço sem receber, reuniu-se a ele na estrada, a nove quilómetros dali, com a cópia limpa no peito.

- Aquele soldado é peixe miúdo - explicou Malibub Ali - mas, a seu tempo, pescaremos o maior. Ele apenas vende bois por dois preços... um para ele mesmo e um para o governo, o que eu não acho que seja pecado.

- Porque é que não podia tirar o pequeno livro e fugir com ele?

- Aí ele teria ficado assustado e teria contado ao seu mestre. Assim perderíamos, talvez, um grande número de novas carabinas que se preparam para seguir de Quetta para o norte Jogo é tão vasto que só se vê um bocadinho de cada vez.

- Ali! - fez Kim, e susteve a língua. isto fora nas férias da monção, depois de ele ter recebido o premio de matemática. As férias de Natal, passou~as - deduzindo dez dias para divertimentos particulares com o sahib Lurgan, e sentavam-se a maior parte do tempo em frente de uma fogueira crepitante - a estrada de Jakko tinha uma espessura de um metro e vinte centímetros de neve naquele ano -, e o pequeno hindu fora-se embora para se casar, ajudava Lurgan a enfiar pérolas. Ele fez Kim aprender todos os capítulos do Corão de cor, até conseguir proferi-los com o mesmo ritmo e cadência de um mullah. Além disso, disse a Kim os nomes e propriedades de muitas drogas nativas, assim como as runas convenientes para recitar quando se administram. E, às noites, escrevia encantamentos em pergaminho - pentagramas elaborados, coroados com os nomes de diabos - Murra e Awar, os companheiros dos reis - todos fantasticamente escritos nos cantos. Mais a propósito, aconselhou Kini quanto aos cuidados a ter com o seu próprio corpo, a cura de ataques de febre e simples remédios de estrada. Uma semana antes da altura de partir, o sahib coronel Creighton - isto foi injusto mandou a Kini um teste escrito que dizia respeito exclusivamente a tirantes e correntes e anéis e ãngulos.

Nas férias seguintes, foi para fora com Malibub, e aqui, pelo caminho, quase morreu de sede, percorrendo o deserto num camelo até à misteriosa cidade de Bikaffir, onde os poços estão a

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cento e vinte metros de profundidade, e são completamen'ie forrados com ossos de camelo. Não foi uma viagem divertida, seguri do o ponto de vista de Kini, porque

Kim

- traindo o contrato - o coronel mandou-o fazer um mapa daquela cidade selvagem, murada; e, já que não se espera que os moços de estrebaria e encarregados dos esgotos arrastem correntes à volta da capi~ tal de um estado nativo independente, Kini foi forçado a medir em passos todas as suas distãneias, por meio de um rosário de contas. Utilizou a bússola para orientação quando necessário - principalmente depois de escurecer, quando os camelos já tinham sido alimentados - e com a ajuda da sua pequena caixa de tintas de pesquisa, de seis compartimentos de cores e três pincéis, conseguiu qualquer coisa não muito diferente da cidade de Jeysulmir. Malibub riu-se imenso e aconselhou-o a fazer também um relatório escrito; e, nas costas do grande livro de contas que estava debaixo da aba da sela preferida da Malibub, Kini atirou-se ao trabalho.

- Ele deve abranger tudo o que tu viste ou tocaste ou consideraste. Escreve como se o próprio sahibjang-i-Lat tivesse vindo pela calada com um vasto exército para iniciar a guerra.

- Um exército de que tamanho? - Oh, cinquenta mil homens.

- Tolice! Recorda como eram poucos e maus os poços do deserto. Nem mil homens sequiosos conseguiam chegar perto daqui.

- Então escreve isso... também todas as velhas brechas nas paredes... e donde é cortada a lenha... e qual é o temperamento e disposição do rei. Eu fico aqui até que todos os meus cavalos sejam vendidos. Alugarei um quarto perto da entrada e tu serás o meu contabilista. Há um bom cadeado para a porta.

0 relatório, na inequívoca escrita corrida de São Xavier e o mapa castanho, amarelo e coberto de laca, estavam disponíveis há uns anos (um funcionário descuidado arquivou-os com as rudes notas da segunda pesquisa de Seistan do E23), mas agora os caracteres a lápis devem estar quase ilegíveis. Kim traduziu o relatório para Malibub, suando debaixo da luz de um candeeiro a petróleo, no segundo dia da sua viagem de regresso patane ergueu-se e inclinou-se sobre os seus alforges pintalgados.

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- Eu sabia que isto seria digno de um trajo de honra e, por isso, preparei um - disse ele, sorrindo. - Fosse eu emir do Afeganistão (e um dia podemos vê~lo), encheria a tua boca de ouro. - Estendeu formalmente as roupas aos pés de Kim. Havia um turbante bordado a ouro, de Peshawar, elevando-se em cone e um grande pano para turbante terminando numa franja de ouro. Havia um colete bordado de Délhi para ves- Rudyard KipliiZga

tir sobre uma camisa branca de leite, apertando à direita, amplo e fluido; um pijama verde com um cordão torcido de seda para a cintura; e, para que nada faltasse, chinelas russas de couro, cheirando divinamen~ te, com pontas arrogantemente encaracoladas.

- Numa quarta-feira, e de manhã, vestir roupas novas é auspicioso - disse Malibub solenemente. - Mas não devemos esquecer as pessoas perversas do mundo. Isso.

Coroou todo o esplendor, que estava a tirar o encantado fõlego a Kiní, com um revólver 450 de madrepérola, niquelado, automático.

- Tinha pensado num calibre mais pequeno, mas considerei que esta leva balas governamentais. Um homem consegue sempre encontran

-Ias... especialmente do outro lado da fronteira. Levanta-te e deixa-me ver. - Deu uma palmadinha no ombro de Kim. - Que nunca te canses, patane! Oh, os corações para partir! Oh, os olhos sob as pestanas, olhando de lado!

Kim deu nela volta, aguçou as biqueiras, esticou-se e lamentou mecanicamente o bigode que apenas despontava. Depois inclinou-se aos pés de Mahbub para fazer o reconhecimento apropriado, de mãos agitadas, rápidas, a dar palmadas seu coração estava demasiado cheio para poder falar. Mahbub antecipou-se e abraçou-o.

- Meu filho - disse ele -, para que são precisas palavras entre nós? Mas não é uni encanto, a pequena arma? Todos os seis cartuxos saem com uma volta. É transportada ao peito, junto à pele, que, por as~ sim dizer, a mantém lubrificada. Nunca a ponhas em mais lugar nenhum e, se Deus quiser, um dia matarás um homem com ela.

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- Hai mai! - exclamou Kim pesarosamente. - Se um sahib mata um homem, é enforcado na prisão.

- Certo. mas um passo para lá da fronteira os homens são mais sensatos. Guarda-a-, mas carrega-a primeiro. De que serve uma arma mal alimentada?

- Quando eu voltar para a madrissah tenho que a devolver. Não autorizam armas pequenas lá. Guardá-la-as para mim?

- Filho, estou carisado dessa rnadrissah, onde tiram os melhores anos a um homem para lhe ensinar o que ele só pode aprender na estrada. A loucura dos sahibs não tem cimo nem fundo. Não interessa. Talvez o teu relatório te poupe futura sujeição; e Deus sabe que nós precisamos de cada vez mais homens no Jogo.

Marcharam com as maxilas enfrentando a areia soprada, pelo deserto salgado até jodhpur, onde Mal-ibub e o seu elegante sobrinho Habib

Kim

Ullah faziam muito comércio e depois, tristemente, com roupas curopeias, que já lhe estavam apertadas, Kim foi em segunda classe para São Xavier. Três semanas mais tarde, o coronel Creighton, apreçando punhais~fantasmas tibetan os na loj a de Lurgari, encarou Mahbub Ali, abertamente hostil sahib Lurgart operava como apoio de reserva.

- 0 pónei está pronto... preparado, arreado e ferrado, sahib! Daqui em diante, dia após dia, perderá as maneiras, se for mantido com estratagemas. Largue a rédea nas suas costas e deixe-o ir - disse o traficante de cavalos. - Precisamos dele.

- Mas ele é tão novo, Mal-ibub... não tem mais de 16 anos, pois não? - Quando eu tinha 15 anos já tinha abatido um homem e gerado outro, sahib.

- Velho pagão impenitente! - Creighton voltou-se para Lurgan. A barba preta acenou em concordância com a sensatez do escarlate tinto do afegão.

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- Eu devia tê~lo usado há muito - disse Lurgan. - Quanto mais novo, melhor. É por isso que eu tenho sempre as minhas jóias verdadeiramente valiosas vigiadas por uma criança. Mande-mo para eu tentar. Eu experimentei~o de todas as marieiras: ele é o único rapaz a quem não consegui fazer ver as coisas.

- Claramente? Por escrito? - perguntou Malibub.

- Não. Sob a minha autoridade, como te disse. Isso nunca tinha acontecido antes. Significa que ele é suficientemente forte... mas o senhor acha um disparate, coronel Creighton, pôr alguém fazer o que ele quer. E isto foi há três anos. Eu ensinei-lhe muito desde então, coronel Creighton. Penso que está a desperdiçá-lo-

- Hum! Talvez tenha razão. Mas, como sabe, nesta altura não há trabalho de pesquisa para ele.

- Deixe-o sair... deixe-o ir - interrompeu Mahbub. - Quem espera que um potro transporte carga pesada a princípio? Deixe~o deslocar-se com as caravanas, como os nossos camelos brancos, para dar sorte. Eu mesmo o levaria, mas...

- Há um pequeno negócio em que ele podia ser bastante útil, no sul disse Lurgari, com singular suavidade, baixando as suas pesadas pálpebras azuladas.

- 0 E23 tem isso em mãos - disse Creighton rapidamente. Além disso, ele não sabe turhi.

- Basta dizer-lhe a forma e o cheiro das cartas que nós queremos e ele trá-las~á de volta - insistiu Lurgari. Não. Isso é trabalho para um homem - disse Creighton.

Era um caso tortuoso de correspondência não autorizada e incen_ diária entre uma pessoa que se reclamava de derradeira autoridade em todos os assuntos da religião maometana em todo o mundo e um inernbro mais jovem de uma casa real, que fora trazido para fazer a reserva das mulheres raptadas dentro do território britãnico arcebispo Inuçulmano fora enfático e arrogante, o jovem príncipe estava apenas amuado com a redução dos seus privilégios, mas não havia necessidade de ele continuar com uma correspondência que podia um dia comprometê-lo. Uma carta fora mesmo conseguida, mas aquele que a descobriu foi

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mais tarde encontrado morto à beira da estrada, com o trajo de um comerciante árabe, como o E23, ao aceitar o trabalho, relatou devidamente.

Estes factos, e outros que não devem ser referidos, fizeram Malibub e Creighton apertarem as mãos.

- Deixe-o partir com o seu lama Vermelho - disse o negociante de cavalos, com visível esforço. - Ele gosta do velho. Pode aprender a dar as passadas com o rosário, pelo menos.

- Tenho tido algumas relações com o ancião... por carta - disse o coronel Creighton, sorrindo para si mesmo. - Por onde anda ele?

- Para cá e para lá na região, como tem feito nestes três anos. Procura um rio de Cura. Maldição de Deus - censurou Malibub. - Ele pernoita no Templo dos Tirthankars, ou em Buddh Gaya, quando retorna da estrada. Depois vai ver o rapaz à madríssah, tanto quanto sabemos, pois o rapaz foi castigado por isso duas ou três vezes. É bastante louco, mas um homem pacífico. Eu conheci-o babu também tem tido relações com ele. Temo-lo vigiado desde há três anos. Lamas Vermelhos não são tão frequentes no indostão que se lhes perca o rasto.

- Os babus são muito curiosos - disse Lurgan, meditativo. Sabem o que é que o babu Hurree realmente quer? Quer ser feito menibro da Real Sociedade, tomando notas etriológicas. Digo-vos, contei-lhe tudo o que Malibub e o rapaz me contaram sobre o lama babu Hurree vai a Benarés... por conta própria, penso eu.

- Eu penso que não - disse Creighton com brevidade. Ele pagara despesas de deslocação a Hurree, devido a uma grande curiosidade em saber como seria o lama.

- E ele tem-se dirigido ao lama para informações sobre o laniaísr,10 e danças demoníacas e conjures e encantamentos, muitas vezes liestes poucos anos. Virgem Santíssimai Eu podia ter-lhe contado tudo isso há

Kim

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.1105. Acho que o babu Hurree está a ficar velho para a estrada. Ele pre~ fere coleccionar informações sobre maneiras de ser e costumes. Sim, ele quer ser uni MRS

.'

- o Hurree pensa bem do rapaz, não pensa

- 0h, muito, Mesmo .Temos passado algumas noites agradáveis no meu cantinho... mas acho que seria um desperdício não aproveitar, com o Hurree do lado etnológico.

- Não para uma primeira experiência. Que achas, Mahbub? Deixar o rapaz andar corri o lama durante seis meses. Depois disso, podemos ver. Ganhará experiência.

- Ele já a tem, sabib, como o peixe controla a água em que nada. mas, por todas as razões, será bom libertá-lo da escola.

- Muito bem, então - disse Creighton, meio para si mesmo. - Ele pode ir com o lama e, se o babu Hurree tratar de os ir vigiando, melhor. Ele não conduzirá o rapaz para nenhum perigo, como faria Mahbub. Curioso... o desejo dele de ser um MRS. Muito humano, também. Ele é muito bom no aspecto etnológico... Hurree.

Nenhum dinheiro e nenhuma nomeação teriam afastado Creighton do seu trabalho na pesquisa indiana, mas, no fundo do seu coração, tinha a ambição de escrever "MRS" a seguir ao seu nome. Honras de um gênero que ele conhecia podiam obter-se com ingenuidade e ajuda de amigos, mas, segundo cria, nada, excepto o trabalho - papéis representando uma vida cheia dele -, introduzia um homem na sociedade que ele bombardeara durante anos com monografias sobre estranhos cultos asiáticos e costumes desconhecidos. Nove em cada dez homens fugiriam de uma recepção na Real Sociedade, no extremo do tédio; mas Creighton era o décimo e a sua alma, às vezes, suspirava pelas salas cheias de gente, na tranquila Londres, onde cavalheiros de cabelos prateados, e cavalheiros calvos, que não sabiam nada sobre o exército, se moviam pelo meio de experiências espectroscópicas, as menores plantas das tundras geladas, máquinas eléctricas de medição de voo e íristrumentos para dividir em fracções de milímetro o olho esquerdo de um InOsquito fêmea. Por todas as razões e motivos era a Real Geográfica que devia tê-lo atraído, mas os homens são tão incertos como as crianças na sua escolha dos brinquedos. Por isso, Creighton sorriu e pensou o melhor sobre o babu Hurree, movido por desejo semelhante.

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Largou o punhal-fantasma e ergueu os olhos para Malibub.

Menibro da Real Sociedade. (N. da T.) Rudyard Kipling

Kím

- Dentro de quanto tempo podemos tirar o potro do 'j estábulo? _ perguntou o traficante de cavalos, lendo nos seus olhos.

- Hum! Se o retiro agora, com uma ordem, que pens4sas tu que ele fará? Nunca presenciei a instrução de ninguem como ele.

- Virá ter comigo - disse Malibub prontamente. - L 0 sahib Lurgari e eu prepará~lo-emos para a estrada.

- Seja, então. Durante seis meses, ele deslocar-se-á à â sua vontade. Mas quem ficará responsável por ele?

Lurgan inclinou levemente a cabeça.

- Ele não contará nada, se é disso que tem receio, corownel Creigliton. - Afinal, ele é apenas um rapaz.

- Sim; mas, primeiro, ele não tem nada para contar; r; e, segundo, sabe o que aconteceria. E, ainda, ele gosta muito de Mahbu)ub e um pouco de mim.

- Haverá algum pagamento? - perguntou o prático n(negociante de cavalos.

- Apenas uma mesada para comida e água. Vinte rupuDias por mês. Uma vantagem dos serviços secretos é que não são subn-Dmetidos a importantes auditorias contabilísticas. Esses serviços são ri (ridiculamente submetidos a um regime de fome, claro, mas os fundos sãoão

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administrados por uns poucos homens que não exigem recibos nem m apresentam contas pormenorizadas. Os olhos de Malibub iluminaram-s-se quase com um amor de sikh pelo dinheiro. Até o rosto impassível de LuLurgan se modificou. Pensou nos anos vindouros, quando Kini tivesse si(sido admitido e estivesse adaptado ao Grande jogo que nunca para, dia ia e noite, por toda a índia. Prognosticou honra e crédito nas palavras de e uns poucos escolhidos, vindos até ele pela mão do seu aluno sahib L) Lurgan fizera do E23 o que E23 era, a partir de um pequeno provincianono do Noroeste, desnorteado, impertinente e mentiroso.

Mas a alegria destes mestres era pálida e esfumada ao pé )é da alegria de Kini, quando o director de São Xavier o chamou para lhe ce dar a notícia de que o coronel. Creigliton o mandara chamar.

- Subentendo, O'Hara, que ele encontrou para ti um ra lugar corno homem de ligação assistente no departamento do Canal: : isso é C()n-equência de teres escolhido matemática. É uma grande sorte -te para ti, Pois tens apenas 16 anos; mas claro que compreendes que não te) te tornas Pukha [efectivo] até que tenhas passado no exame de Outono. p. por isso, n"

.5, ou que a tua deves julgar que vais sair para o mundo para te divertires,

sorte está feita. Há uma grande quantidade de trabalho dur(uro à tua frcn-

ao

te. Só se tiveres êxito na passagem a puhka poderás subir, sabes, para quatrocentas e cinquenta rupias por mês.

por isso, o reitor deu-lhe muitos bons conselhos no respeitante seu comportamento, as suas maneiras e à sua moral; e outros, os alunos mais velhos do que ele, que não tinham sido contemplados com norneaÇOes, falaram, como só os rapazes anglo-indianos sabem, de favoritismo e corrupção. Na realidade, o i ovem Cazalet, cujo pai era pensionista em Chunar, insinuou muito amplamente que o interesse do coronel Creigliton por Kini era absolutamente paternal; e Kini, em vez de retaliar, nem sequer falou. Estava a pensar no imenso divertimento que se aproximava, na carta de Mahbub do dia anterior, habilidosamente escrita em inglês, marcando encontro para essa tarde numa casa cujo verdadeiro nome teria eriçado o cabelo do reitor com terror...

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Nessa noite, na estação de caminho-de~ferro de Lucknow, Kin-i disse a Malibub:

- Estava com receio de que, por fim, o telhado caísse em cima de mim e me esmagasse. Está mesmo tudo acabado, o meu pai?

Malibub estalou os dedos para mostrar a profundidade daquele final e os seus olhos chamejaram como carvões em brasa.

-Então, onde está a pistola que eu posso utilizar?

-Vamos com calma. Meio ano para correres sem cordas a prender os calcanhares. Foi o que eu pedi ao sahib coronel Creighton. Por vinte rupias por mês, 0 velho Chapéu Vermelho sabe que tu estás a chegar.

- Pegar-te~ei dustooriee [comissão] sobre o meu pagamento de três meses - disse Kini gravemente. - Sim, duas rupias por mês. Mas primeiro temos de nos ver livres destas. - Deu a puxão as suas finas calças de linho e deu outro puxão ao colarinho. - Trouxe comigo tudo o que preciso na estrada. A minha mala seguiu para a casa de sahib Lurgan.

- Que te manda saudações, sahib.

- 0 sahib Lurgan é um homem muito esperto. Mas que vais tu fazer?

- Vou outra vez para o norte, ao serviço do Grande Jogo. Que mais? 0 teu espírito ainda está determinado em seguir o velho Chapéu Vermelho?

- Não te esqueças de que ele fez de mim o que eu sou, embora sem o saber. Ano após ano, enviou o dinheiro para pagar a minha educação. - Eu teria feito o mesmo, se isso tivesse ocorrido à minha estúpida cabeça

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- resmungou Malibub. - Vem daí. Os candeeiros são acessos Ru#ardK, lín

ffim

agora e ninguém reparará em ti no bazar. Vamos à casa da Huneefa. No caminho para lá, Malibub deu-lhe quase o mesmo tipo de coti-

selho que a mãe dele deu a Leirimele, caso curioso, Malibub foi claro a demonstrar como Huneefa e as suas preferências podiam destruir reis. - E eu recordo - citou maliciosamente - alguém que me disse:

"Confia numa cobra antes de confiares numa meretriz e numa meretriz antes .de confiares num patane, Malibub Ali". Agora, excepto no que diz respeito aos patanes, dos quais eu sou um, tudo isso é verdadeiro. Mais verdadeiro é no Grande Jogo, pois é por intermédio das mulheres que todos os planos são arruinados e nós jazemos, ao romper do dia, com as gargantas cortadas. Assim aconteceu ao outro. - Deu os mais violentos detalhes.

- Então porquê ... ? - Kim fez uma pausa em frente de uma escadaria imunda que sobe até à quente escuridão de um quarto superior, no bairro que fica por detrás da tabacaria de Azim Ullah. Aqueles que o conhecem chamam-lhe a Gaiola - tão cheia está de suspiros e assobios e chilreios.

0 quarto, com as sujas almofadas e cachimbos de água já meio fumados, cheirava abominavelmente a tabaco rançoso. Num canto estava uma mulher enorme e disforme vestida com gazes esverdeadas e enfeitada na testa, nariz, orelha, pescoço, pulso, braço, cintura e tornozelo com pesadas jóias nativas. Quando ela se virava, era como o entrechocar de potes de cobre. Um gato magro miava esfomeado na varanda, do lado de fora da j anela. Kim espreitou, desorientado, pela cortina da entrada.

- Isso é o novo material, Malibub? - perguntou Huneefa indolentemente, mal se dando ao trabalho de retirar o boquim dos lábios. - ó Buktanoos! - como a maior parte das da sua laia, jurava pelos diinhas. - 0 Buktanoos! É bom para ser protegido.

- Aquilo faz parte da venda do cavalo - explicou Malibub a Kini, que se riu.

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- Oiço essa conversa desde o meu Sexto Dia - replicou ele, agachando-se perto da luz. - Até onde leva isto?

- Até à protecção. Esta noite mudamos a tua cor, Este pernoitar debaixo da telha branqueou~te como um pombo. Mas a Huneefa teni o segredo de uma cor que engana. Não é pintura para um dia ou dois. Tani bém te protegemos contra os riscos da estrada. É o meu pres nte para ti, meu filho. Tira todos os metais que trazes contigo e põe-nos aqui. Prepara-te, Huneefa.

1<in, apresentou a bússola, a caixa de tintas da pesquisa e a caixa de niedicarrientos, de novo cheia. Todas estas coisas o tinham acompanhado nas suas viagens e, como todos os rapazes, ele estimava-as imenso.

A rnulher ergueu-se lentamente e moveu-se com a mão um pouco aberta à frente. Então, Kim viu que ela era cega.

- Não, não - murmurou ela -, o patane diz a verdade... a minha cor não sai numa semana, nem num mês e aqueles que eu protejo estão sob forte guarda.

- Quando se está afastado e sozinho, não seria bom ficar de repente com furúnculos e leproso - disse Malibub. - Quando tu estavas comigo, eu podia vigiar esse aspecto. Além disso, um patane tem uma pele clara. Despe-te agora até à cintura e vê como estás branco. - Huneefa tacteou o caminho de volta, vinda de um quarto interior. - Não faz mal, ela não vê. - Retirou, da mão cheia de anéis, uma tigela de estanho.

A substãncia de tingir mostrava-se azul e pegajosa. Kim experimentou na parte de trás do pulso, com uma boneca de algodão, mas Huncefa ouviu-o.

- Não, não - gritou ela -, a coisa não se faz assim, mas com as cerimónias próprias. A colaboração é a última parte. Eu dou-te toda a protecção da estrada.

-jadoo [mágica]? - perguntou Kim, hesitante. Não gostava dos olhos brancos, sem vida. A mão de Malibub, no seu pescoço, curvou-o até ao chão, nariz a dois centímetros das tábuas.

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- Está quieto. Nenhum mal te acontecerá, meu filho. Eu sou o teu sacrifício!

Kim não conseguia ver o que a mulher se preparava para fazer, mas Ouviu o tilintar das jóias dela durante muitos minutos, Um fósforo acendeu~se no escuro; apreendeu o ruído surdo e o silvo conhecidos dos grãos de incenso. Depois, o quarto encheu-se de fumo-pesado, aromático e estonteante. Pelo meio do sono crescente, ouvia nomes de demónios - de Zulbazan, filho de Eblis, que vive nos bazares e paraos, fazendo toda a súbita e indigna maldade nas paragens à beira da estrada; de Duilhan, invisível pelas mesquitas, o morador entre os chinelos do crente, que impede o povo de fazer as suas orações: e Musboot, serthor das mentiras e do pânico. Huneefa, agora sussurrando ao seu Ouvido, agora falando como se estivesse a uma distância imensa, tocou-lhe com dedos terrivelmente suaves, mas a garra de Malibub nunca Saiu do seu Pescoço até que, afrouxando com um suspiro, o rapaz perdeu Os sentidos. Ru#ard Kiplíng

- Ala! Como ele lutou! Nunca devíamos tê-lo feito, a não ser através de drogas. Foi o sangue branco dele, acho eu - disse Malabub, de mau humor. - Continua com a dawut [invocação]. Dá-lhe protecção completa.

- 0 Ouvinte! Tu que ouves com os ouvidos, sê presente. Escuta, ó Ouvinte - gemeu Huneefa, os olhos parados virados para oeste. o quarto escuro encheu-se de gemidos e resfolegos.

Da varanda exterior, uma figura grave ergueu a cabeça redonda e tossiu nervosamente.

- Não interrompas esta necromãneia de ventríloquo, meu amigo disse, em inglês. - Parece-me que é muito perturbante para ti, mas nenhum observador iluminado fica muito transtornado.

- . . . Tramarei uma conspiração para a ruína deles! ó Profeta, mostra-te indulgente para com os descrentes. Deixa-os sozinhos um instante! - 0 rosto de Huneefa, virado na direcção norte, agitava-se horrivelmente e era como se vozes lhe respondessem do tecto.

0 babu Hurrec regressou ao seu bloco de apontamentos, equilibrado no peitoril, mas a sua mão tremia. Huneefa, numa espécie de êxtase provocado pela droga, torcia-se de um lado para 0 Outro, enquanto se sentava de pernas cruzadas junto da cabeça de Kim e invocava

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diabo atrás de diabo, pela ordem ancestral do ritual, impondo-lhes que se afastassem de toda e qualquer acção do rapaz.

- Com Ele estão as chaves das Coisas Secretas! Ninguém as conhece além Dele. Ele conhece aquilo que está na Terrafirme e no mar! - De novo irromperam as sobrenaturais reacções sibilantes.

- Eu... eu deduzo que não há nada maligno na sua operação? questionou o babu, vendo os músculos da garganta estremecendo e sacudindo, enquanto Hunceia falava com as vozes. - Não... Não é POssível que ela tenha morto o rapaz? Se sim, eu recuso-me a ser testemunha no julgamento... Qual foi o último hipotético demónio que ele meneionou?

- Babuji - disse Mahbub no vernáculo. - Não tenho consideração pelos demónios do Indo, mas os filhos de Eblis são completamente diferentes e, quer sejamjlle [bem dispostos], quer sejamjullalee [terríveis], não gostam de hafirs.

- Então achas que era melhor eu ir-me embora? - perguntou 0 babiÁ Hurrec, começando a levantar-se. - Fies são, claro, fenórnenos desmaterializados. SPencer diz...

A crise de Hunefia passou, como é habitual, por um ataque de grIta-

Kim

ría e um pouco de espuma nos lábios. Ela estava estendida, exausta e imóvel ao lado de Kini e as vozes loucas cessaram.

- na! o trabalho está feito. Possa o rapaz ser melhor por isso, e Huneefa é certamente uma senhora de dawut.. Ajuda a puxá-la para o lado, babu. Não tenhas medo.

- Corno é que eu havia de temer o que absolutamente não existe? -perguntou o babu Hurree, falando inglês para se reafirmar - É uma coisa terrível ainda ter medo da magia que tu desdenhosamente investigas... coleccionar folclore para a Real Sociedade com uma crença viva em todas as Forças da Escuridão.

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Malibub riu-se por entre dentes. Ele tinha andado até agora com Hurree na estrada.

- Vamos terminar a coloração - disse ele. - 0 rapaz está bem protegido... se os Senhores do Ar têm ouvidos para ouvir. Eu sou um sufi [livre-pensadorl, mas quando se recebem maus olhados de uma mulher, um garanhão ou um diabo, porquê andar à volta, para provocar um coice? Coloca-o no seu caminho, babu, e faz com que o velho Chapéu Vermelho não o conduza para fora do nosso alcance. Tenho de voltar para os meus cavalos.

- Está bem - disse o babu Hurree. - Ele é, actualmente, um espectáculo curioso.

Por volta do terceiro cantar do galo, Kim acordou, depois de um sono de milhares de anos. Huneefa, no seu canto, ressonava pesadamente, mas Mahbub tinha desaparecido.

- Espero que não tenhas tido medo - disse uma voz Imesthafnluca inuo seu cotovelo. - Eu superintendi toda a operação, que foi

teressante do ponto de vista etnológico. Foi uma dawut de grande categoria.

- Eh! - exclamou Kim, reconhecendo o cavalheiro hindu, que sorria insinuantemente.

- E também tive a honra de trazer da casa de Lurgan o teu trajo actual. Não estou habituado, oficialmente, a transportar tais ornamentos a subordinados, mas - deu uma risadinha - o teu caso foi registado nos livros corno excepcional. Espero que o senhor Lurgan tome nota do Meu acto.

Kirn bocejou e espreguiçou-se. Era bom virar-se e curvar-se dentro de roupas soltas de novo.

Qu' é isto? - Olhou com curiosidade para o pesado tecido de lã grossa que exalava os perfumes no norte longínquo. Rudyard Kpling

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- Oli! Isso é um apagado traio de chela, ligado ao serviço de um lama lamaísta. Completo, em cada detalhe - disse o babu Hurree, rolando para dentro da varanda para limpar os dentes numa gorgoleta. Sou de opinião de que não é a religião exacta do teu velho senhor, mas antes uma subvariante da mesma. Contribuí com algumas notas para a RevistaAsiática Trimestral, sobre este assunto, mas foram rejeitadas. Agora, é curioso que o velho senhor seja ele próprio totalmente desprovido de religiosidade. Não é nada exigente.

- Tu conhece-lo?

0 babu Hurrec levantou a mão para mostrar que estava ocupado com os ritos prescritos que acompanhavam a limpeza dos dentes e outras coisas, entre bengalis decentemente criados. Depois recitou em inglês uma oração arya-somaj de natureza e encheu a boca de pan e bétele.

- Ah, sim. Encontrei -me com ele várias vezes em Benarés e também em Buddh Gaya, para o interrogar sobre temas religiosos e adoração de demónios. Ele é meramente um autêntico agnóstico.

Huneefa agitou-se no sono e o babu Hurree saltou nervosamente para o queimador de incenso, de cobre, completamente preto e descolorido à luz matinal, esfregou um dedo na fuligem acumulada e correu-o diagonalmente pelo rosto.

- Quem morreu na tua casa? - perguntou Kini no vernáculo.

- Ninguém. Mas ela pode ter Olho do Diabo... essa bruxa - replicou o babu.

- Que vais fazer agora, então?

- Vou colocar-te no teu caminho para Benarés, se tu vais para lá, e contar-te o que deve ser sabido pelos nossos.

- Vou. A que horas sai o comboio? - Põs-se de pé, olhou para o quarto desolado à sua volta e para o rosto amarelo de cera de Hunecia, enquanto o sol baixo se deslocava pelo chão. - Há dinheiro a pagar a essa bruxa?

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- Não. Ela enfeitiçou-te contra todos os demónios de todos os perigos, em nome dos diabos dela. Foi o desejo de Malíbub. - E, em inglês: - Ele é altamente obsoleto, penso eu, para acarinhar tal superstição. Porque é tudo ventriloquia. Fanfarronada... hem?

Kim estalou os dedos mecanicamente para afastar quaisquer males - Mal---ibub, sabia ele, não pensava em nada - que pudessem ter rastejado através dos sacerdócios de Hunecfa; e Hurree riu-se uma vez mais. Mas, quando atravessou o quarto, teve o cuidado de não pisar a sombra esbatida, atarracada, de Huneefa nas tábuas. As bruxas - quando estão

Kim

no seu tempo - conseguem dominar os calcanhares de um homem, se ele o fizer.

- Agora deves escutar bem - disse o babu quando vieram para o ar puro. - Parte destas cerimonias que nós testemunhámos incluem o fornecimento de um eficiente amuleto para os do nosso departamento. Se tacteares no teu pescoço encontrarás um pequeno amuleto de prata, muito barato. É nosso. Compreendes?

- Oli, sim, hawa-dilli [um ladrão de corações] - disse Kim, tac~ teando o pescoço.

- Huncela fá-los por duas rupias e doze anãs com... oh, todos os ti~ pos de exorcismos. Eles são bastante vulgares, excepto que são parcialmente lacados de preto e há um papel dentro de cada um, cheio de nomes de assuntos locais e coisas assim. É essa a vigilãneia de Huneefa, vês? Huncela fá-los unicamente para nós, mas, no caso de não os fazer, quando os recebemos colocamos-lhes, antes da distribuição, um pequeno pedaço de turquesa. É o senhor Lurgan que os dá. Não há mais nenhuma fonte de abastecimento; mas fui eu que inventei tudo isto. É estritamente não oficial, claro, mas conveniente para os subordinados. 0 coronel Creighton não sabe. Ele é europeu. A turquesa está embrulhada no papel... Sim, essa é a estrada para a estação do caminho-de~ferro... Agora, supoe que vais com o lama, ou comigo, espero eu, um dia, ou com Mahbub. Supõe que chegamos a um lugar amaldiçoado. Eu sou um homem temeroso... bastante temeroso... mas digo-te que tenho es~ tado em mais lugares amaldiçoados do que os cabelos da minha cabeça. Tu dizes. "Eu sou Filho do Sortilégio". Muito bem.

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- Não percebo totalmente. Não devemos ser ouvidos a falar inglês aqui.

- Está certo. Sou apenas um babu exibindo o meu inglês para ti. Todos nós, babus, falamos inglês para nos exibirmos - disse ele, ajeitando a roupa no ombro com satisfação. - Como eu ia dizer, "Filho do Sortilégio" significa que podes ser membro do Sat Bhai - Os Sete Irmãos, que é hindi e tantric. É publicamente suposto ser uma sociedade extinta, mas eu tenho escrito algumas notas para mostrar que ainda existe. Vês, é tudo invenção minha. Muito bem Sat Bliaí tem muitos membros e talvez, antes que cortem muito bem a tua garganta, eles possam dar-te uma oportunidade de vida. isso é útil, de qualquer modo. E, além do mais, estes tolos nativos - se não estiverem muito excitados param sempre para pensar, antes de matarem um homem que diz pertencer a qualquer organização, específica. Vês? Dirás, então, quando es- Rudyard ffiplitw

tiveres num lugar amaldiçoado, "eu sou Filho do Sortilégio" e obterás talvez... an... o teu segundo fõlego. Isso só em circunstãneias extr,

_nias, ou para encetar negociações com um estranho. Consegues entender? Muito bem. Mas supõe agora que eu, ou qualquer um do departaniento, venho ter contigo vestido de modo bastante diferente. Tu não me conhecerias de maneira nenhuma, a não ser que eu quisesse, aposto contigo. Um dia prová-lo-ci. Venho como um comerciante ladahhi... oh, qualquer coisa... e digo-te: "Queres comprar pedras preciosas?". Tu dizes: "Eu tenho cara de quem compra pedras preciosas?". Depois eu digo: "Mesmo os homens muito pobres podem comprar uma turquesa ou tarkeean".

- isso é hichree... molho de vegetais - disse Kini.

- Claro que é. Tu dizes: "Deixa-me ver o tarkeean". Então eu digo: "Foi cozinhado por uma mulher e talvez seja mau para a tua casta". Depois, tu dizes. "Não há casta quando os homens vão à... procura de tarheean". Paras um pouco entre essas palavras "à... procura". E esse todo o teu segredo. A pequena pausa antes das palavras.

Kim repetiu a frase-teste.

- Está bom. Depois mostrar-te-ei a minha turquesa, se houver tempo, e então saberás quem eu sou, e depois trocamos pontos de vista e documentos e todas essas coisas. E assim é com qualquer outro homem nosso. Falamos às vezes de turquesas e outras vezes de tarkeean, mas

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sempre com aquela pequena pausa nas palavras. É muito fácil. Primeiro, "Filho do Sortilégio", se estiveres num lugar amaldiçoado. Talvez isso te possa ajudar... talvez não. Depois, o que te contei sobre o tarkeean, se quiseres efectuar um negócio oficial com um estranho. Claro, actualmente tu não tens negócios oficiais. Tu és... ali ali!... supranume~ rário em estágio. Um espécime único. Se tu fosses asiático de nascimento, podias empregar-te imediatamente, mas este meio ano de licença é para te "desinglesar", percebes? 0 lama espera-te, porque eu informei-o semi-oficialmente de que tu tinhas passado em todos os teus exames e em breve obterás uma nomeação governamental. Oli, oh! Tens permissão para agir, vês: assim, se fores chamado para ajudar os Filhos do Sortilégio, vê se tentas fazê-lo bem. Agora direi adeus, rneu caro colega e espero... ali... que tu te saias bem das tuas missões.

0 babu Hurree recuou um passo ou dois no meio da inultidão à entrada da estação de Lucknow e desapareceu. Kim respirou longarnente no peito da sua túnica de cor triste, o amuleto estava no seu Pescoço; cabaça de mendigar, rosário e punhal-fantasma (o senhor Lurgan não es-

Kim

quecera bússola

nada) estavam todos à mão, com medicamentos, caixa de tintas velho cinto-bolsa bordado

desenhos de pi-

com e, num gasto e

e cos de porco espinho, estava o pagamento de um mês. Os reis não podia", ser rnais ricos. Comprou doces numa tigela de folha, a um comerciante hindu e corneu-os com feliz enlevo, até que um polícia o mandou enibora dos degraus. XI

Dai ao homem que não '3i feito Para o seu oficio

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Espadas para brandir e f>rir de novo, Moedas para bater e ap2-ihar de novo, Homens para fazer mal, curar de novo, Cobras para encantar e eduzir de novo Ele será ferido pela sua )rópria lâmina, Desobedecido pelas sua serpentes,

Traído pela sua falta de iabilidade, Escarnecido com desdé-a pelas pessoas Portanto não nasceu con intrujice!

Grão de pó ou flor murha,

Fruto atirado por acaso )o bordão emprestado, Servem a sua necessidae e limitam o seu poder, Restringem o feitiço, m, soltam o riso!

Mas um homem que. ci-,.

Ca?lÇa do Prestidigitador Op. 15

Seguiu-se súbita reacção natural.

"Agora estou sozinho, completamente sozinhc,>, pensou. "Em toda a índia não há ninguém tão solitário como eu. Se c L morrer hoje, quem levará a notícia... e a quem? Se eu viver e Deus fer hm, haverá um premio pela minha cabeça, pois eu sou um Filho do ScF1i,gio... eu, Kim. "

Muitos poucos brancos, mas muitos asiátices, onseguem lançar-se no assombro, por assim dizer, pela repetição do se,,i 1,-óprio nome inúmeras vezes para si rne smos, deixando o espírito esPC^u,r livremente naquilo a que se chama identidade pessoal. Quando se cr-sce, o poder, normalmente, desaparece, mas, enquanto dura, pode m. sobre um homem em qualquer mornento.

- Quem é Kini - Kim - Kim?

Acocorou-se num canto da estridente sala e spera, abstraído de todos os outros pensamentos; mãos entrelaçadas n(. regaço e pupilas reduzidas a um pont o mínimo. Num minuto - noutr

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meio segundo - sentiu que chegaria à solução do tremendo quebr-c3eças-, mas aqui, como sempre acontece, o seu espírito caiu das alturas com a precipitação de um pássaro ferido e, passando a mão pelos olhos, sacudiu a cabeça.

Um hindu bairagi [santo] de cabelos compridos, que acabara de comprar um bilhete, parou à frente dele nesse momento e fixou-o intensamente.

- Eu também o perdi -- disse ele, tristemente. - É um dos portões que levam ao Caminho, mas, para mim, esteve fechado muitos anos.

- Que conversa é essa? - perguntou Kim, desconcertado.

- Estavas a pensar, aí no teu espírito, que tipo de coisa seria a tua alma acesso chegou de repente. Eu sei. Quem mais saberia, senão eu? Para onde vais tu?

- Na direcção de Kashi [Benarés].

- Lá não há deuses. Eu pu-los à prova. Eu vou para Prayag íAllahabadl pela quinta vez... em busca da estrada para a Iluminação. De que fé és tu? - Eu também sou um pesquisador - disse Kini, usando uma das pa-

lavras queridas do lama. - Embora - esqueceu o seu trajo nortenho, por um momento -, embora só Ala saiba o que busco.

0 ancião colocou a muleta de bairagi debaixo do sovaco e sentou-se num pedaço de pele de leopardo avermelhada, ao mesmo tempo que Kim se erguia, à chamada para o comboio de Benarés.

- Vai com fé, irmãozinho - disse ele. - A estrada até aos pés dele é longa; mas todos nós viaj amos para lá .

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Kim não se sentiu tão solitário depois disto e, antes de percorrer trinta quilómetros no apinhado compartimento, já estava a alegrar os seus vizinhos com uma fiada das mais prodigiosas patranhas sobre os seus dotes mágicos e os do seu mestre.

Benarés impressionou-o como cidade particularmente imunda, embora fosse agradável descobrir como o seu trajo era respeitado. Pelo menos um terço da população reza eternamente a um outro grupo dos muitos milhões de divindades, e assim venera todas as espécies de santos. Kim foi guiado até ao Templo dos Tirthankars cerca de quilómetro e meio afastado da cidade, perto de Sarnath, por um lavrador punjabi que encontrou por acaso - um hamboh dos lados de Jullundur, que apelara em vão a todos os deuses da sua herdade para que curassem o seu filho pequeno e tentava Benarés como último recurso.

- Tu és do norte? -- perguntou ele, empurrando com os ombros a multidão, pelas ruas estreitas, empestadas, à semelhança do boi que tinha

em casa.

- Sim, conheço o Punjab. A minha mãe era uma pahareen, mas o meu

Kím

pai veio de Amritzar, junto de Jandiala - disse Kim, lubrificando a sua língua afiada para as necessidades da estrada.

- Jandiala... JuIlundur? Oli! Então, somos vizinhos, de certo modo, por assim dizer, - Acenou com ternura para a chorosa criança que tinha nos braços. - A quem serves?

- Um homem muito santo no Templo dos Tirthankars,

- Eles são todos muito santos e... muito ambiciosos - disse o jat cim arnargur. - Percorri as colunas e calcorreei os tempos até os meus Pés ficarem em ferida e a criança não está de modo nenhum melhor. E a mãe está também doente... Aquieta-te, então, pequeno... Mudámos-lhe o nome quando veio a febre. Vestimos-lhe roupas de rapariga. Não houve nada

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que não tivéssemos feito, excepto... Eu disse à mãe dele quando ela me mandou à pressa para Benarés, que ela devia ter vindo comigo, eu disse que o sultão Sakbi Sarwar nos serviria melhor. Conhecemos a sua generosidade, mas estes deuses da província são desconhecidos.

A criança virou-se na almofada dos enormes e grossos bracos e olhou para Kini através das pesadas pálpebras.

- E foi tudo inútil? - perguntou Kim, com interesse,

- Tudo inútil., tudo inútil - disse a criança, com os lábios gretados da febre.

- Os deuses deram-lhe uma boa memória, pelo menos - disse o pai com orgulho. - Pensar que ele deve ter ouvido com tanta atenção. Lá está o teu templo. Agora sou um pobre homem, muitos padres lidaram comigo, mas o meu filho é o meu filho e, se uma oferta ao teu mestre puder curá-lo, eu estou mesmo no limite do meu j uízo.

Kim considerou durante um bocado, formigando de orgulho. Há três anos atrás, ele ter-se-ia, prontamente, aproveitado da situação e ido em frente sem hesitação; mas, agora, o respeito que o liat lhe mostrara, prova~ va que ele era um homem. Além disso, ele já experimentara a febre uma ou duas vezes e sabia o suficiente para reconhecer fome, quando a via.

- Faz-lhe um apelo e eu dar-lhe-ei como caução a minha melhor junta, para que a criança se cure.

Kim parou junto da cinzelada porta exterior do templo. Um banquei~ ro oswal, de Ajmir, vestido de branco, os seus pecados de usura agora redimidos, perguntou-lhe o que fazia.

- Sou chela do lama Teshoo, um santo de Bhotiyal, que está aí. Ele mandou-me vir. Eu espero. Diz-lhe.

- Não esqueças a criança - gritou o perturbadojat por cima do ombro dele e, depois, roncou em punjabí: - 0 Santo, o discípulo do Santo, Rudyard ÍÉ!W

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o deuses acima de todos os mundos, observai a aflição sentada ao Portão! - Aquele clamor era tão vulgar em Benarés, que os transeuntes nunca viravam a cabeça.

0 oswal, em paz com a humanidade, levou a mensagem para a escuridão que havia atrás dele e os minutos fáceis, incalculáveis, do Leste correram, pois o lama estava a dormir na sua cela e nenhum padre 0 acordou. Quando o tilintar do seu rosário de novo quebrou o silêncio do Pátio interior, onde estavam as silenciosas imagens dos Arhats, um noviço sussurrou:

- 0 teu chela está aqui. - E o ancião precipitou-se, esquecendo-se de acabar aquela oração.

Mal a alta figura se mostrou à entrada, o jat correu para a sua frente e, erguendo a criança, gritou:

- Olha para isto, Santo; e, se os deuses quiserem, ele vive... ele vive! Procurou no seu cinto e retirou uma pequena moeda de prata,

- Agora, o que é?

Os olhos do lama viraram-se para Kini. Era visível que falava um urdu muito mais claro que há muito tempo, debaixo do Zam-Zammah; mas o pai não permitia conversas particulares.

- Não é mais que uma febre - disse Kini. - A criança não está bem alimentada.

- Ele adoece por tudo e por nadia e a mae não está aqui. - Se me for permitido, eu posso curá-lo, Santo.

- 0 quê! Eles fizeram de ti um curador? Espera aqui - disse o lama, e sentou-se junto do jat no degrau mais baixo do templo, enquanto Kini, espreitando pelo canto do olho, abriu lentamente a pequena caixa de bétele.

Tinha sonhado, na escola, que voltaria para o lama com o sahib - que arreliaria o ancião antes de se revelar -, tudo sonhos de rapaz. Com a testa enrugada, efeitos dos frascos de

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comprimidos que ingeria, fazendo de vez em quando uma pausa para pensar e murmurando, aqui e alérn, alguma frase, nesta pesquisa abstracta havia mais drama do que seria natural. Tinha quirimo em comprimidos e pastilhas de carne castanho-escuras - carne de vaca, minto provavelmente, mas esse não era o seu campo-

A pequena coisa não comeu, chupou avidamente uma pastilha e disse que gostava do sabor a sal.

- Fica então com estas seis. - Kini deu-as ao homem. - Louva Os deuses e ferve três em leite; outras três em água. Depois de ele beber o leite, dá-lbe isto - era metade de um comprimido de qui nino - e niantélil-

Kim

-no agasalhado. Dá-lhe a água das outras três e a outra metade deste comprimido branco quando ele acordar. Entretanto, aqui está outro medicamento castanho que ele pode chupar no caminho para casa.

- Deuses, que sabedoria! - disse o Kamboh, arrebatando~as.

Era tudo o que Kim conseguia recordar do seu próprio tratamento, num acesso de malária outonal, se se exceptuar a gíria que acrescentou para impressionar o lama.

- Agora vai! Volta de manhã.

- Mas o preço, o preço - disse o jat, e atirou para trás os ombros robustos. - 0 meu filho é o meu filho. Agora que ele vai ficar são de novo, como vou voltar para a mãe dele e dizer-lhe que recebi ajuda à beira da estrada e nem sequer dei uma tigela de coalhada como recompensa?

- São todos iguais, estesjats - disse Kini, mansamente. - Ojat permaneceu na sua pilha de estrume e os elefantes do rei passaram por ele. " ó condutor", perguntou ele, " para que vais vender esses pequenos burros?"

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Ojat irrompeu em grandes gargalhadas, sufocadas por pedidos de desculpas para o lama. - É o ditado da minha terra... precisamente o que ele diz. Assim somos todos, os jats. Virei amanhã com a criança; e a bênção dos deuses das Herdades, que são pequenos deuses generosos, recaia sobre vós... Agora, filho, vamos ficar fortes outra vez. Não a deites fora, pequeno príncipe! Rei do meu coração, não a cuspas e seremos homens fortes, lutadores e manejadores de pau, amanhã de manhã.

Afastou-se, cantarolando e falando entre dentes lama virou-se para Kini e toda a sua velha alma afectuosa transbordou, através dos seus estreitos olhos.

- Curar os doentes é adquirir mérito; mas, primeiro, obtém-se a sabedoria. Foi feito com sensatez, o Amigo do Mundo.

- Foste tu que me tornaste sensato, Santo - disse Kini, esquecendo a pequena encenação há pouco terminada; esquecendo São Xavier; esquecendo o seu sangue branco; esquecendo mesmo o Grandejogo, quando se curvou, à maneira maometana, para tocar nos pés do seu mestre, na poeira do templojain. -A minha aprendizagem devo-ta a ti. Comi do teu pão durante três anos meu tempo está terminado. Estou liberto das escolas. Venho ter contigo.

- Aqui dentro está a minha recompensa. Entra! Entra! E está tudo bem? - Passaram ao pátio interior, onde o sol do entardecer entrava oblí~ quo, com raios dourados. - Fica aí para que eu possa ver. Então! - ExaMinou-o criticamente. -já não é uma criança mas um homem, amadu- recido com a sabedoria, caminhando como um médico. Fiz bem... fiz bem quando te dei aos homens armados naquela noite negra. Lembras-te do nosso primeiro dia debaixo do Zam-Zammah?

- Sim - disse Kim. - Lembras-te de quando saltei da carruagem no primeiro dia que fui a...

-Às Portas da Erudição? Realmente. E o dia em que comemos juntos os bolos do outro lado do rio, junto de Nuck1ao. Ah! Muitas vezes mendigaste para mim, mas nesse dia eu mendiguei para ti.

- Por uma boa razão - disse Kim. - Nessa altura eu era um estudante às Portas da Erudição e ataviado como um sahib. Não te esqueças, Santo - continuou ele a brincar -, eu ainda sou um sahib... devido ao teu auxílio.

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- Verdade. É um sahib tido em muito alto preço. Vem à minha cela, chela.

- Como sabes isso? 0 lama sorriu.

- Primeiro, através de cartas do gentil padre que nós conhecemos no acampamento dos homens armados, mas ele agora foi para o seu país e eu mandei o dinheiro ao irmão dele. - 0 coronel Creighton, que sucedeu à administração dos bens quando o padre Victor foi para Inglaterra com os Mavericks, era quase como irmão do capelão.

- Mas eu não compreendo bem as cartas do sahib. Têm de mas explicar. Eu escolhi um caminho mais seguro. Muitas vezes, quando voltava da minha busca para este templo, que tem sido sempre um ninho para mim, vinha uma pessoa em busca de iluminação, um homem de Lch, que fora, disse ele, um hindu, mas enfastiado com todos esses deuses. - 0 lama apontou para os Arhats.

- Um homem gordo? - perguntou Kuri, com um piscar de olhos. - Muito gordo-, mas eu compreendi num instante que o espírito dele era totalmente dado a coisas inúteis, como diabos e encantamentos, e o cCrimonial e modo como bebemos o chá nos mosteiros e por que estradas iniciávamos os noviços. Um homem rico em perguntas mas foi teu amigo, chela. Contou-me que tu andavas na estrada com grande dignidade como escrivão. E eu vejo que és um médico.

- sim, isso sou, um escrivão, quando sou sahib, mas isso é posto de lado quando venho como teu discípulo. já cumpri os anos estabelecidos para um sahib.

- como se fosses um noviço? - perguntou o lama, acenando a ca~ beça. - Libertaste-te das escolas? Não te quero imaturo.

Kim

- Estou completamente livre. Em devido tempo, entro ao serviço do governo como escrivão.

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- Não como guerreiro. Isso é bom.

- Mas primeiro venho peregrinar... contigo. Para isso estocustaavqauia Quem pede para ti, agora? - continuou rapidamente gelo quebrar.

- Frequentemente, peço eu próprio, mas, como sabes, raramente estou aqui, excepto quando venho ver de novo o meu discípulo. De um extremo ao outro do Indostão tenho viajado, a pé e de comboio. Uma gran de e maravilhosa terra! Mas aqui, quando me instalo, é como se estivesse no meu próprio Bhothiyal.

Olhou em volta da pequena cela asseada com complacência. Uma almofada baixa dava-lhe um assento, no qual se colocou na posição de per~ nas cruzadas do Iluminado, emergindo da meditação; uma mesa de madeira, de teca preta, com menos de cinquenta centímetros de altura, posta com chávenas de chá de cobre, estava à frente dele. Num canto estava um estreito altar, também de pesada teca cinzelada, suportando uma imagem do buda, sentado, de cobre dourado, e, em frente, um candeeiro, um recipiente para incenso e um par de vasos de cobre com flores.

- 0 conservador das imagens na Casa das Maravilhas adquiriu mérito ao dar~me estas coisas há um ano - disse ele, seguindo os olhos de Kim. - Quando se está longe da nossa própria terra, tais coisas trazem lembranças; e devemos venerar o Senhor, pois ele mostrou o Caminho. Vê! - apontou para um montículo de arroz colorido, curiosamente construído, coroado com um ornamento de metal. - Quando eu era abade no meu sítio, antes de obter melhores conhecimentos, fazia diariamente essa oferta. É o sacrifício do universo ao Senhor. Assim oferecemos nós, de Bhotiyal, todo o mundo diariamente à Lei Excelente. E eu ainda agora o faço, embora saiba que o Excelente está acima de todas as opressões e pan~ cadas. - Aspirou rapé da sua cabaça.

- É bem feito, Santo - murmurou Kim, afundando-se com à-vontade nas almofadas, muito feliz e bastante cansado.

- E também - riu-se o ancião - faço gravuras da Roda da Vidas. Três dias para uma gravura. Estava ocupado com isso, ou talvez tenha fechado os olhos um bocadinho, quando me trouxeram a notícia sobre ti. É bon, ter-te aqui; mostrar-te-ei a minha arte, não por orgulho, mas porque tu deves aprender. Os sahibs não têm toda a sabedoria deste mundo.

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Retirou de debaixo da mesa uma folha amarela de papel chinês, estra~ nharnente perfumada, os pincéis e uma placa de tinta indiana. Num es- Rudyard Kipling

boço muito limpo e rigoroso, traçara a Grande Roda com Os seus seis raios, cujo centro é constituído pelo Porco, pela Cobra e Pelo Pombo reunidos (ignorãncia, medo e luxúria) e cuj os compartimentos são todos os Céus e Infernos e todas as oportunidades da vida humana. Os homens dizern que o próprio Iluminado, no Princípio, o desenhava com grãos de arroz sobre pó, para ensinar aos seus discípulos a causa das coisas. Muitas eras cristalizaram-na na mais maravilhosa convenção, povoada por centenas de pequenas figuras, cujas linhas transportam um significado. Poucos sabern traduzir a parábola do desenho; não há vinte pessoas em todo o mundo que saibam desenhá-la com segurança, sem uma cópia: desses, que saibam ao mesmo tempo desenhar e interpretar, não são mais que três.

- Aprendi a desenhar um pouco - disse o lama. - Houve tempos em que eu conseguia fazê-lo todo entre o acender de um candeeiro e o acender seguinte. Ensinar~te-ei a arte, depois de adequada preparação; e mostrar-te-ei o significado da Roda.

- Vamos para a estrada, então?

- Para a estrada e para a nossa Busca. Estava apenas à tua espera. Tornou-se evidente para mim, numa centena de sonhos, especialmente um que veio na noite do primeiro dia em que as Portas da Erudição se fecharam, que, sem ti, eu nunca encontraria o meu rio. Muitas vezes, como tu sabes, afastei isto de mim, temendo uma ilusão. Por conseguinte, não te trouxe comigo naquele dia em Lucknow, quando comemos os bolos. Não te traria, até que a altura fosse propícia e auspiciosa. Das montanhas ao mar, do mar às montanhas caminhei, mas foi em vão. Então, lembrei~me dojâtaka.

Contou ao Kini a história do elefante com o ferro na pata, como a contara tantas vezes aos padres jain.

- Não é necessária mais nenhuma prova - terminou ele, COM se' nidade. - Tu foste enviado como auxílio. Afastado esse auxílio, a minha busca não dá em nada. Por isso, sairemos de novo juntos e a nossa Busca é garantida.

- Para onde vamos?

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- Que importa, Amigo do Mundo? A Busca, digo eu, é garantida. Se for necessário, o rio jorrará da terra à nossa frente. Adquiri mérito quando te mandei para as Portas da Erudição e te dei a jóia que é a sabedoria. Tu regressaste, vejo agora mesmo, um seguidor de Skyamuni, o Médico, cujos altares são muitos no Bhotiyal. É suficiente. Estamosjuntos c todas as coisas estão como eram, Amigo do Mundo, Amigo da Estrelas... meu chela!

ffim

Depois conversaram sobre assuntos profanos; mas era visível que o lama nurica pediu pormenores da vida em São Xavier, nem mostrou a wis ténue curiosidade no que respeita aos modos e hábitos dos sahibs seu espírito Movia-se todo no passado e reviveu todos os passos da sua primeira jornada juntos, esfregando as mãos e rindo entre dentes, até que lhe apeteceu enroscar-se no sono súbito da velhice,

Kini observou o último raio de sol empoeirado desaparecer do pátio e brincou corri 0 seu punhal-fantasma e com o rosário clamor de Benarés, a mais velha de todas as cidades da terra a acordar perante os deuses, dia e noite, batia nas paredes como o bramido do mar à volta de um quebra-mar. De vez em quando, um padrejain atravessava o pátio, com alguma pequena oferenda às imagens e vasculhava o caminho à sua volta, receando, por acaso, tirar a vida a alguma coisa viva. Um candeeiro tremeluziu e seguiu-se o som de uma oração. Kini observava as estrelas, à medida que elas surgiam uma após outra na calma da noite, sonhou em hindustãni, sem uma única palavra inglesa...

- Santo, há a criança a quem nós demos o remédio - disse ele, cerca das três horas da manhã, quando o lama, também acordando dos seus sonhos, quis partir em peregrinação. - 0 jat estará aqui ao amanhecer.

- Bem respondido. Na minha precipitação, teria feito mal. - Sentou-se nas almofadas e voltou ao seu rosário. - É bem certo que os velhos são como as crianças- disse ele, pateticamente. -Desejam uma coisa... uma vez vista, tem de ser feita imediatam ente, ou arreliam-se e choram! Muitas vezes, quando estou na estrada, me tenho prontificado a bater com os pés ao obstáculo de um carro de bois no caminho, ou uma simples nuvem de poeira. Não era assim quando eu era um homem... há muito tempo. Não obstante, é prejudicial...

- Mas tu és mesmo velho, Santo.

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-A coisa foi feita. Uma Causa foi posta no mundo e, velho ou novo, doente ou são, sabendo ou desconhecendo, quem pode dominar-se no efeito dessa Causa? A Roda fica imóvel se uma criança a faz girar, ou um ébrio? Chela, este é um mundo imenso e terrível,

- Eu gosto dele - bocejou Kini. - Que há para comer? Não como desde ontem à tarde.

- Tinha-me esquecido das tuas necessidades. Além, há bom chá de Bhotiyal e arroz frio.

- Não conseguiremos ir longe com tais mantimentos. - Kini sentia toda a ânsia curopeia por carne, que não é acessível a um templojain. MesIno assiril, em vez de sair imediatamente com a tigela de mendigar, saciou ~Kip5g

um pouco o estômago com bocados de arroz frio até ao completo ama~ nhecer. Este trouxe o lavrador, loquaz, gaguejando de gratidão.

- De noite a febre cedeu e veio a transpiração - gritou ele. - Sente... a pele dele está fresca e nova! Ele apreciou os losangos de sal e bebeu o leite com avidez.

Retirou o pano que cobria o rosto da criança e ela sorriu a Kim, ensonada. Um pequeno grupo de padres iam, silencioso mas todo olhos, reuniu-se: à porta do templo. Sabiam, e Kini sabia que eles sabiam, como o velho lama encontrara o seu discípulo. Sendo pessoas corteses, eles não se tinham imposto na noite anterior, pela presença, palavra ou gesto. Por conseguinte, Kini compensou-os quando o Sol nasceu.

- Agradece aos deuses dos jains, irmão - disse ele, não sabendo como se chamavam esses deuses. - A febre desceu mesmo.

- Olhem! Vejam! - o lama sorriu, ao fundo, para os seus hospedeiros de três anos. - Alguma vez houve um chela assim? Ele segue o nosso Senhor, aquele que cura.

Agora, os_jains, oficialmente, reconhecem todos os seus hospedeiros de três anos. - Alguma vez houve um chela assim? Ele segue o nosso Senhor, aquele que cura.

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Agora osjains oficialmente reconhecem todos os deuses do credo hin~ du, assim como o Linga e a Cobra. Usam o fio bramânico; aderem a todas as reivindicações da lei das castas hindus. Mas, porque conheciam e gostavam do lama, porque ele era um ancião, porque ele buscava o Caminho, porque e] e era seu hóspede e porque confidericiava nas longas noites com o padre-superior - uni metafisico livre-pensador, como sempre discu~ tindo coisas sem importãncia -, murmuraram em concordãncia.

- Lembra-te - Kini inclinou-se para a criança -, este problema pode voltar de novo.

- Não se tu fizeres o encantamento conveniente - disse o pai. Mas daqui a pouco nós vamo-nos embora.

- É verdade - disse o lama a todos os Jams. - Vamos agora juntos na Busca de que eu muitas vezes falei. Esperei até que o meu chela amadurecesse, Observai-o! Vamos para o norte. Nunca mais verei este lugar do meu repouso, o gente de boa vontade.

- Mas eu não sou um mendigo. - 0 agricultor põs-se de pé, agarrando a criança.

- Está calado. Não perturbes o Santo -- gritou um padre.

- Vai - sussurrou Kini. - Encontra-te connosco outra vez debaixo da grande ponte do caminho-de-ferro e, pelo amor de todos os deuses do

Kim

nosso Punjab, traz comida... caril, legumes, bolos fritos em gordura e doces. Principalmente doces. Sê veloz!

A palidez da fome convinha muito a Kini, enquanto permanecia, alto e esguio, com as suas vastas túnicas de cor triste, uma mão no rosário e a outra num gesto de bênção, fielmente copiado do lama.

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Um observador inglês podia ter dito que ele parecia mais o jovem santo de um vitral, quando não era mais do que um rapaz a crescer, debilitado pela fome.

Longas e formais foram as despedidas, três vezes terminadas e três vezes renovadas pesquisador - aquele que convidara o lama para aquele refúgio do longínquo Tibete, um asceta de rosto de prata, calvo - não tomou parte nelas, mas meditava, como sempre, sozinho entre as imagens. Os outros eram muito humanos; insistiam em oferecer pequenos confortos ao ancião - uma caixa de bétele, uma bela caixa de ferro para canetas, um saco de comida e coisas assim -, advertiam-no contra os perigos do mundo exterior e profetizavam um final feliz para a Busca. Entretanto, Kini, mais só do que nunca, estava acocorado nos degraus e praguejava consigo mesmo na linguagem de São Xavier.

- Mas a culpa é minha - concluiu. - com Mahbub, eu comia o pão de Malibub, ou o do sahib Lurgan. Em São Xavier, três refeições por dia. Aqui, tenho de olhar muito bem por mim. Além disso, não estou a fazer um bom treino. Como podia eu comer um prato de carne de vaca agora!... Acabou, Santo?

0 lama, ambas as mãos erguidas, entoou uma bênção final em ornamentado chinês.

- Tenho de me apoiar no teu ombro - disse ele, quando as porias do templo se fecharam. - Vamos ficando hirtos, penso eu.

0 peso de um homem de um metro e oitenta não é pouco, para aguentar através de quilómetros e quilómetros de ruas cheias de gente, e Kini, carregado de trouxas e embrulhos para a viagem, ficou contente por alcançar a sombra da ponte do caminho-de-ferro.

- Comemos aqui - disse ele resolutamente, quando alcançou com a vista o hamboh, trajado de azul e a sorrir, um cesto numa mão e a criança na outra.

- Ataquem, Santos! - gritou ele, a cinquenta metros. - Eles estavam junto de um baixio, debaixo do primeiro arco da ponte, fora da vista de padres esfomeados. - Arroz e bom caril, bolinhos quentes e bem aroinatizados com hing [assa-fétida], coalhadas e açúcar. Rei dos meus camPos - isto para o filho -, vamos mostrar a estes santos que nós, os jats Ru#ardKipkg

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Kim

de Jullundur, podemos pagar uma ajuda... Tinha ouvido dizer que osjains não comiam nada que não tivessem cozinhado, mas, na verdade - desviou o olhar delicadamente para a vastidão do rio -, onde não há olhos não há castas.

- E nós - disse Kim, virando as costas e enchendo um prato de folha para o lama - estamos para além de todas as castas. Abarrotaram-se com boa comida em silêncio. Só depois de ter lambi~

do o resto do doce pegajoso do seu dedo mínimo é que Kini reparou que o kamboh também estava aperaltado para a viagem.

- Se as nossas estradas se juntam - disse ele rudemente -, eu vou com vocês. Uma pessoa não encontra muitas vezes um fazedor de milagres, e a criança ainda está fraca. Mas eu não sou nenhum caniço, - Apanhou o seu lathi - uma cana de bambu de um metro e meio, com extremidades de ferro polido - e agitou--o no ar. - Os jats são acusados de serem conflituosos, mas isso não é verdade. Excepto quando estamos zangados, nós somos como os nossos búfalos.

- Seja - disse Kini. - Um bom pau é uma boa razão.

0 lama olhava placidamente rio acima, onde, em extensa e enfarruscada perspectiva, as incessantes colunas de fumo sobem dos crematórios J.unto ao rio. De vez em quando, apesar de todas as normas municipais, o pedaço de um corpo semi-queimado aparecia balançando na corrente abundante.

- Mas, para ti - disse o hamboh a Kini, atraindo a criança ao seu pei~ to cabeludo -, eu podia ter ido hoje para lá... com este. os padres dizem-nos que Benarés é sagrada, do que ninguém duvida, e é desejável morrer lá. Mas eu não conheço os deuses deles, e eles pedem dinheiro; e, quando se acaba de fazer uma promessa, uma cabeça rapada faz voto para que não tenha efeito nenhum, excepto se se fizer outra. Lava aqui! Lava alérri! Derrama, bebe, banha e espalha flores... mas paga sempre aos padres. Não, 0 solo do doab de Jullundur é o melhor solo do Punj ab, para mim.

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- Eu disse muitas vezes, no Templo, parece-me, que, se for preciso, o rio jorrará aos nossos pés. Por isso, iremos para norte - disse o larna, erguendo-se. - Lembro-me de um lugar agradável, plantado corn árVOres de fruto, onde se pode caminhar em meditação... e o ar lá é rnais fresco. Vem da montanhas e da neve das montanhas.

- Como se chama? - perguntou Kini.

- Como havia eu de saber? Tu não... não, isso foi depois de o exérc1to ter levanto do terreno e te ter levado. vivi lá em meditação, nun, quarto de pombal, excepto quando ela falava ininterruptamente.

- Ah, a mulher de Kulu! Isso é junto de Sahar-unpore. - Kim riu~se. _ Conio é que o espírito faz mover o teu mestre? Vai 'a pé, para redi-

rilir velhos pecados? - perguntou ojat cautelosamente. E uma longa dis~ tância até Delhi.

- Não - disse Kini. - Mendigarei um tikkut para o comboio. - Na índia, não se confessa a posse de dinheiro.

- Então, em nome dos deuses, tomemos a carruagem de fogo, o meu filho está melhor nos braços da mãe governo sobrecarregou-nos com njuitos impostos, mas dá-nos um coisa boa: o comboio, que reune os amigos e une os ansiosos comboio é uma coisa maravilhosa.

Todos se amontoaram dentro dele umas horas mais tarde e dormiram durante o calor do dia hamboh assediou Kini com dez mil perguntas referentes às caminhadas e trabalho da vida do lama e recebeu algumas respostas curiosas. Kini estava satisfeito por estar onde estava, por olhar para a paisagem plana do noroeste e por conversar com a turba itinerante dos passageiros que viajavam com eles. Ainda hoje, bilhetes e revisão de bilhetes constituem negra opressão para os rústicos indianos. Eles não compreendem por que é que, pagando por um pedaço de papel mágico, alguns estranhos hão-de arrancar grandes pedaços ao encanto. Por isso, as discussões entre viajantes e revisores eurasiáticos são longas e furiosas. Kim assistiu a duas ou três, dando opiniões sérias, determinado a confundir ainda mais e a exibir a sua sabedoria à frente do lama e do seu admirador hamboh. Mas, na estrada de Somna, os fados enviaram-lhe assunto para meditar. Quando o comboio estava a partir, entrou aos tombos no compartimento uma pessoa pequena, suja e magra - era um mahratta, tanto quanto Kini põde perceber pelo galo no apertado turbante seu rosto estava cortado, as

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roupas de cima estavam muito rasgadas e uma das Pernas estava ligada. Contou-lhes que uma carroça do campo se tinha vi~ rado e quase o matara- ia para Delhi, onde vivia o filho. Kini observou-o com atenção. Se, como asseverava, ele tivesse andado aos tombos na terra, deveria haver sinais de arranhões do cascalho na pele. Mas todos os Seus fe .

rimemos pareciam golpes perfeitos, e uma simples queda de um carro não Podia deixar um homem num tal estado. Quando, com os dedos a tremer, enrolou a roupa rasgada à volta do pescoço, revelou um alIluIcto do tipo "Protector do coração ". Os amuletos são hoje em dia bas~ tante vulgares mas, geralmente, não são pendurados num fio de cobre en~ traliçado e ainda poucos têm placa preta aplicada sobre prata. Não estava nillguém, excePto o hamboh e o lama, no compartimento que, felizmente, era de um genero antigo, com extremidades sólidas. Kini fez como se es~ Rudyard ffliÉ1it,u

tivesse a coçar no peito e, desse modo, ergueu o seu próprio amuleto rosto do mahratta modificou-se completamente com a visão e colocou abertamente o seu amuleto no peito.

- Sim - continuou ele para o hamboh -, eu tinha pressa, e o carro, conduzido por um canalha, prendeu a roda num rego de água e, além do mal causado à minha pessoa, perdeu-se um prato cheio de tarheean. Não fui um Filho do Sortilégio [um homem felizardol nesse dia.

- isso foi uma grande perda - disse o hamboh, perdendo o interes~ se. A sua experiência de Benarés tornara-o desconfiado.

- Quem o cozinhou? - perguntou Kim_

- Uma mulher. - 0 mahratta ergueu os olhos.

- Mas todas as mulheres sabem cozinhar tarkeean - disse o hamboh. - um bom caril, tanto quanto sei.

- Oli, sim, é um bom caril - disse o mahratta. - E barato - disse Kiní. - Mas, quanto à casta?

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- Ali, não há casta onde os homens vão à procura de tarhecan - replicou o mahratta, na cadência prescrita. - Estás ao serviço de quem? - Ao serviço deste Santo. Kim apontou para o feliz e sonolento lama,

que acordou de repente, à palavra bem-amada.

- Ali, ele foi enviado do céu para me auxiliar. Chamam-lhe Amigo do Mundo. Também lhe chamam Amigo das Estrelas. Caminha como médico... está a amadurecer. Grande é a sua sabedoria.

- É um Filho do Sortilégio - disse Kini, baixinho, enquanto o hamboh se apressava a preparar um cachimbo, com receio de que o mahratta pedisse.

- E quem é aquele? - perguntou o mahratta, olhando para o lado nervosamente.

- Alguém cujo filho eu... nós curámos, que está em grande dívida para connosco... Senta-te j unto da j anela, homem de JuIlundur. Aqui está um doente.

- Humpf! Eu não desejo misturar-me com vagabundos encontrados por acaso. As minhas orelhas não são compridas. Eu não sou uma mulher desejosa de escutar segredos. - Ojat atirou-se pesadamente para um canto afastado.

- Sabes alguma coisa de curas? Estou profundamente mergulhado em desgraça - gritou o mahratta, agarrando a deixa.

- Este homem está todo cortado e ferido. Vou curá-lo - retorquiu Kini. - Ninguém interferiu entre o teu filho e eu.

- Mereço a repreensão - disse o hamboh humildemente. - Sou teu

Kim

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devedor, pela vida do meu filho. Tu és um fazedor de milagres... eu sei. - Mostra-me os golpes. - Kini. inclinou-se sobre o pescoço do mah-

ratta, com o peito quase a sufocá-lo, furiosamente, pois este era o Grande jogo. -Agora conta a tua história depressa, irmão, enquanto eu faço um encantamento.

- Vim do sul, onde fica o meu trabalho. Um dos nossos foi assassinado à beira da estrada. Ouviste contar? - Kim sacudiu a cabeça. Ele, cla~ ro, não sabia nada sobre o predecessor do E23, assassinado lá no sul, com o trajo de um comerciante árabe. - Tendo encontrado uma certa carta que me mandaram procurar, vim-me embora.

Fugi da cidade a corri para Mhow. Estava tão seguro de que ninguém sabia, que não mudei de cara. Em Mhow uma mulher acusou-me de roubo de jóias na cidade que eu deixara. Então, vi que tinham dado o alarme contra mim. Fugi de Mhow de noite, subornando a polícia, que fora subornada para me entregar, sem perguntas, aos meus inimi~ gos no sul,

Depois, fiquei na velha cidade de Chitor durante uma semana, um penitente num templo, mas não consegui ver-me livre da carta, que era a minha acusação. Enterrei-a debaixo da Pedra da Rainha, em Chitor, no local de todos nós conhecido.

Kini--- não conhecia, mas por nada deste mundo teria quebrado o fio à meada.

- Escuta, em Chitor estava completamente em terra de reis, pois, de Kotah para leste, ultrapassa-se a lei da Rainha e, ainda mais para leste, ficam Jaipur e Gwalior. Nenhuma gosta de espiões e nenhuma tem justiça. Fui perseguido como um chacal, mas consegui chegar a Bandakui, onde ouvi dizer que havia uma acusação de assassínio contra mim, na cidade que eu acabara de abandonar... assassínio de um rapaz. Têm o corpo e as testemunhas à espera.

- Mas o governo não pode dar protecção?

- Nós, do jogo, estamos para além da protecção. Se morrermos, morremos. Os nossos nomes são apagados do livro. É tudo. Em Bandakui, onde vive um dos nossos, pensei fazê-los perder a

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pista modificando o meu rosto e, assim, tornei-me num mahratta. Depois, vim para Angra, e teria voltado a Chitor para recuperar a carta. Desejava todo o mérito.

Kin---i acenou. Compreendia bem aquele sentimento.

- Mas em Agra, caminhando petas ruas, um homem começou a apre~ goar que e .u lhe devia dinheiro e, aproximando-se com muitas testemunhas, queria arrastar-me para os tribunais ali e naquele momento. Oli, eles Rudyard Kip1g

são espertos, no sul! Ele reconheceu-me como seu agente para o algodão. Morra queimado no Inferno, por isso!

- E eras?

- ó tolo! Eu era o homem que eles procuravam por causa do assunto da carta. Corri para dentro do bairro dos Flcshers e saí pela Casa do Judeu, que receou um tumulto e me empurrou para fora. Vim a pé até à estrada de Sorrina... só tinha dinheiro para o meu tilzkut para Délhi... e lá, quando estava deitado numa vala com febre, alguém saltou dos arbustos e bateu-me e golpeou-me e revistou-me da cabeça aos pés. Foi com o comboio quase à vista!

- Por que é que ele não te matou imediatamente?

- Eles não são tão loucos. Se eu for levado a instãncias de advogados em Délhi, sob uma acusação de assassínio, o meu corpo será entregue ao estado que o desejar. Regresso guardado e, então... morro lentamente, como exemplo para o resto dos nossos sul não é a minha terra. Eu corro em círculos, como uma cabra cega. Há dois dias que não como. Estou marcado - tocou na ligadura imunda que tinha na perna - para que eles me conheçam em Délhi.

- Pelo menos, estás seguro no comboio.

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-Vive um ano no Grande jogo e diz-me isso outra vez. Os telégrafos estarão alerta contra mim em Délhi, descrevendo todas as minhas lágrimas e farrapos. Vinte... cem, se for preciso, ter-me-ão visto assassinar aquele rapaz. E tu és inútil.

Kim sabia o suficiente sobre os métodos de ataque dos nativos para não duvidar de que o caso seria fatalmente solucionado, mesmo para o cadáver hamboh, no seu canto, olhava com ar sombrio; o lama estava ocupado com as suas contas; e Kini, mexendo no pescoço do homem à maneira dos médicos, arquitectava o seu plano, entre invocações.

- Tens algum encantamento para modificar a minha aparência? Se não tens, sou um homem morto. Cinco... dez minutos sozinho, se eu não tivesse sido tão atacado, podia...

- Ele já está curado, fazedor de milagres? - perguntou o hamboh, com ciúmes. -já perdeste tempo suficiente com cãnticos.

- Não. Não há cura para os males dele, segundo me parece, excepto sentar-se, durante três dias, com o trajo de um bairagi. - Esta é uma penitência vulgar, frequentemente imposta a um comerciante gordo pelo seu mestre espiritual.

- Um padre anda sempre por aí, para arranjar outro padre - foi a resposta. Tal como a maioria, das pessoas muito supersticiosas, o kamboh

Kim

não conseguia impedir a sua língua de ridicularizar a sua própria Igreja. - Então, o teu filho ira ser um padre? Está na hora de ele tomar mais um pouco do meu quinino.

- Nós, os jats, somos todos uns búfalos - disse o harnboh, acalmando outra vez.

Kini esfregou a ponta dum dedo com algo amargo nos pequenos lábios confiantes da criança.

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- Não pedi nada - disse ele asperamente para o pai -, excepto comida. Dás-ma de má vontade? Vou curar outro homem, Tenho a tua permissão... Príncipe?

As mãos enormes do homem elevaram-se no ar, em súplica. - Não... não. Não escarneças assim de mim.

- Dá-me prazer curar este doente. Tu alcançarás mérito ajudando-me. De que cor é a cinza que está na concavidade do teu cachimbo? Branca. Isso é auspicioso. Havia açafrão entre os teus géneros alimentícios? - Eu... eu...

- Abre a tua trouxa!

Era a habitual colecção de pequenas bugigangas: bocados de tecido, remédios de curandeiro, presentes de feira baratos, um saco de atta - farinha nativa, acinzentada, grossa -, rolos de tabaco do interior, tubos de cachimbo espalhafatosos e um pacote de caril em pó, tudo embrulhado numa colcha. Kin-i despejou-os com o ar de um sábio feiticeiro, murmurando uma invocaçáo maometana.

- Isto é sabedoria que eu adquiri com os sahibs - sussurrou ele para o lama, e aqui, se se pensar no treino em casa de Lurgan, não se diz mais do que a verdade. - Há um grande mal no destino deste homem, como mostram as estrelas, que... que o perturba. Afastá-lo-ei?

-Amigo das Estrelas, tu fizeste tudo muito bem. Sei a à tua vontade. outra cura?

-Rápido! Sê rápido! -exclamou o rnahratta, arquejando. - 0 comboio pode parar.

- Uma cura para a sombra da morte - disse Kim, misturando a farinha do kamboh com a cinza conj .unta de carvão e tabaco do cachimbo cor de barro E23, sem uma palavra, tirou o turbante e deixou cair o seu longo cabelo preto.

- Isso é a minha comida, padre - resmungou o jat.

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- Um búfalo no templo! Atreveste-te a olhar para aqui? - exclamou Kim- - Tenho de fazer mistérios à frente dos tolos; mas tem cuidado com Os teus olhos. já tens uma membrana na frente deles? Eu salvo o bebé e, Rudyard Kipling

como paga, tu... oh, desavergonhado! - 0 homem estremeceu com aquele olhar fixo, pois Kini estava completamente sério. - Amaldiçoar-te-ei, ou... - Apanhou o trapo exterior da trouxa e atirou-o para cima da cabeça curvada. - Atreve-te a formular o desej o de ver, e... e... mesmo eu não poderei salvar-te. Senta-te! Fica mudo!

- Sou cego... mudo. Evita amaldiçoar. An... anda, filho, vamos jogar um jogo de escondidas. Não espreites, para meu bem, por debaixo do pano.

- Vejo esperança - disse o E23. - Qual é o teu plano?

- Isto vai a seguir - disse Kim, dando um puxão à fina camisa E23 hesitou, com todo o desagrado do hornem do nordeste em descobrir o corpo.

- De que serve a casta numa garganta cortada? - perguntou Kim, rasgando-a até à cintura. - Temos de te transformar da cabeça aos pés num saddhu amarelo. Despe-te, despe-te rapidamente e sacode o cabelo para cima dos olhos, enquanto eu espalho a cinza. Agora, um sinal de cas~ ta na testa. - Tirou do peito a pequena caixa de tintas da pesquisa e um bocado de laca carmesim.

- És apenas um principiante? - perguntou o E23, trabalhando lite~ ralmente pela sua querida vida, ao livrar-se dos seus agasalhos e ficar livre, só com a tanga, enquanto Kini aplicava urn nobre sinal de casta na testa manchada de cinza.

- Entrado no Jogo apenas há dois dias, irmão - replicou Kini. - Besunta mais cinza no peito.

- Conheceste um médico de pérolas doentes? - Esticou o grande pano do turbante, enrolado apertadamente e, com mãos ágeis, enrolou-o à roda e por debaixo dos rins, com as intricadas voltas da cintura de um saddhu.

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- Ah! Então conheces o estilo dele? Foi meu professor durante uns tempos. Temos de destacar as tuas pernas. A cinza cura as feridas. Espalha-a bem outra vez.

- Em tempos fui o orgulho dele, mas tu és quase melhor. Os deuses são bons para nós. Dá~me isso.

Era uma caixa de lata com pastilhas de ópio, no meio do lixo da trouxa dojat E23 engoliu de uma só vez mtade de uma mão-cheia.

- São boas para combater a fome, o tredo e o frio. E deixam os olhos vermelhos, também - explicou. - Agora terei ânimo para entrar no Jogo. Só nos faltam umas tenazes de saddh4. Que se faz com as roupas velhas?

ffim

Kini fez com elas um pequeno rolo e meteu-o no meio das pregas moles da sua túnica. Com um bocado de tinta amarelo-ocre, besuntou as pernas e o peito, grandes camadas em cima do fundo de farinha, cinza e açafrão.

- 0 sangue que as roupas têm é suficiente para te enforcar, irmão. - Talvez, mas não é preciso atirá-las pelajancla. Está pronto. - A sua voz vibrou com o autêntico prazer de um rapaz nojogo. - Vira-te e olha, ójat!

- Os deuses protegem-nos - disse o encapuçado kamboh, emergindo, como um búfalo, do meio das canas. - Mas... para onde foi o mahratta? Que fizeste?

Kim fora treinado pelo sahib Lurgan; e o E23, em virtude do seu ofício, não era mau actor. No lugar do trémulo e receoso comerciante, refastelava-se no canto um saddhu quase nu, besuntado com cinza, barrado de ocre, com o cabelo empoeirado, com os olhos inchados - o ópio tem um efeito rápido num estômago vazio -, luminosos de insolência e concupiscência animal, as pernas cruzadas debaixo do corpo, o rosário castanho de Kim à roda do pescoço e uns escassos centímetros de chita gasta, florida, nos ombros. A criança enterrou a cara nos braços de, seu assombrado pai.

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- Olha, Principelho! Viajamos com feiticeiros, mas eles não te farão mal. Oh, não chores... Qual é a lógica de curar uma criança num dia e matá-la de medo no seguinte?

- A criança será afortunada toda a vida. Ele viu uma grande cura. Quando eu era criança, fazia homens e cavalos de barro.

- Eu também Sír Banas vem de noite e dá-lhes vida, atrás da nossa estrumeira - soprou a criança.

- E, por isso, tu não tens medo de nada. Hem, Príncipe?

- Tive medo, porque o meu pai teve medo. Eu senti os braços dele a tremer.

- Oli, medroso! - disse Kini, e até mesmo o envergonhado jat se riu. - Efectuei uma cura neste pobre comerciante. Ele tem de renunciar aos seus ganhos e aos seus livros de contas e sentar-se à beira da estrada três noites, para vencer a maldade dos seus inimigos. As estrelas estão contra ele.

- Quanto menos usurários, melhor, digo eu; mas, saddhu ou não saddhu, ele devia pagar pelo meu material, que tem nos ombros.

- E então? Isso no teu ombro é o teu filho, entregue ao crematório há menos de dois dias. Ainda resta mais uma coisa. Eu fiz este encantamento na tua presença, porque a necessidade era grande. Contudo, se, por algum acaso, o homem de Jullundur, tu te lembrares do que viste, sej a cri- RU4yard KiPlíng

tre os anciãos sentados debaixo da árvore da aldeia, seja na tua própria casa, ou na companhia do teu padre quando ele benzer o teu gado, virá uma doença para os búfalos e um fogo para o teu telhado, e virão ratazanas para dentro da tua caixa de cereais, e a maldição dos nossos deuses Cairá sobre os teus campos, de modo que eles ficarão estéreis aos teus pés à passagem do ferro do arado. - Isto fazia parte de uma velha praga aprendida com um faquir junto da Porta da Taksali, nos tempos da inocência de Kim. Não perdera nada com a repetição.

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Para, Santo! Por caridade, para! - gritou ojat. - Não amaldiçoes a minha casa. Eu não vi nada! Não ouvi nada! Sou teu servo. - E simulou querer agarrar os pés nus de Kim, batendo ritmicamente no chão da carruagem.

Mas, já te foi permitido ajudar-me na questão da pitada de farinha e de um pouco de ópio e das ninharias que eu honrei ao utilizá-las na minha arte, os deuses enviarão uma bênção - e deu-a finalmente, para o imenso alívio do homem. Era uma que ele aprendera com o sahib Lurgan,

0 lama olhava através dos seus óculos, como não olhara para a operação de disfarce.

- Amigo das Estrelas - disse ele, por fim -, adquiriste grande sabedoria. Acautela-te, para que ela não faça nascer o orgulho. Nenhum homem com a Lei à frente dos olhos fala precipitadamente de nenhum caso que tenha visto ou enfrentado.

- Não, não, não, realmente não - gritou o lavrador, receoso de que o mestre estivesse decidido a fazer melhor que o aluno E23, com a boca descontraída, entregava-se ao ópio, que é carne, tabaco e medicamento para o asiático extenuado.

Assim, num silêncio de temor e grande incompreensão, entraram em Délhi por volta da hora a que acendem os candeeiros.

XII

Quem desejou o Mar - a vista da infinita água salgada?

A elevação e a pausa e o arremesso e o choque da onda perseguida pelo vento?

A cilíndrica ondulação antes da tempestade - cinzenta, sem espuma, enorme e crescente?

A calma persistente no batimento da linha - ou o louco furacão soprando? o Mar dele, não mostrando o mesmo - o mar dele e o mesmo debaixo de toda a vista.

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0 Mar dele que satisfaz o seu ser?

Assim e não de outro modo - assim e não de outro modo desejam os montanheses as suas montanhas!

0 Mar e as Montanhas

Recobrei de novo o meu ânimo - disse o E23, a coberto do tu~ multo da plataforma. - A fome e o medo deixam os homens desorientados, senão eu podia ter pensado antes nesta saída. Tinha razão. Eles vêm procurar~me. Salvaste a minha cabeça.

Um grupo de polícias do Punjab, de calças amarelas, comandados por umjovem inglês, impetuoso e a transpirar, abria caminho por entre a multidão, ao longo das carruagens. Atrás deles, sorrateira como um gato, vinha uma pessoa pequena, gorda, que parecia um informador do foro.

- Olha para o jovem sahib a ler um papel. A minha descrição está na mão dele - disse o E23. - Eles vão de carruagem em carruagem, como pescadores lançando redes a um lago.

Quando o cortejo chegou ao compartimento deles, o E23 estava a pas~ sar as contas do rosário, com um movimento regular do pulso, enquanto Vim fazia pouco dele por estar drogado ao ponto de ter perdido as tenazes com anéis, que são a marca distintiva do saddhu lama, mergulhado ern meditação à frente dele, olhava fixamente em frente; e o lavrador, com olhadelas, reunia os seus pertences.

- Não há aqui nada, a não ser "santos" - disse o inglês em voz alta e seguiu, por entre um sussurro de inquietação, pois polícia nativa é sino~ Ilinio de extorsão para os nativos, por toda a índia.

- 0 Problema agora - murmurou o E23 - está em mandar um te- Rudyard ffiplúZga

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legrama para o lugar onde eu escondi aquela carta que me mandaram pro~ curar. Não posso ir à repartição de tar nesta figura.

- Não é suficiente eu ter salvo o teu pescoço?

- Não, se o trabalho for deixado incompleto. 0 curador de pérolas nunca te disse isso? Vem aí outro sahib! Ah!

Este era um superintendente de polícia de bairro um tanto alto, amarelado - cinto, capacete, esporas polidas e tudo -, empertigando e enrolando o seu escuro bigode.

- Que tolos são estes sahibs polícias! - disse Kini jovialmente. 0 E23 olhou por debaixo das pálpebras.

- Bem dito - sussurrou, numa voz diferente. - Vou beber água. Guarda-me o lugar.

Tropeçou à saída, quase caindo nos braços do inglês, e foi insultado num tosco urdu.

- Tum mut? Está bêbedo? Não pode fazer distúrbios como se a estação de Délhi lhe pertencesse, meu amigo.

0 E23, sem mexer um músculo no seu semblante, respondeu com uma torrente do mais obsceno insulto, com o que Kin-i naturalmente rejubilou. Aquilo recordava-lhe os rapazes do tambor e os varredores de caserna em Umballa, nos tempos terríveis da sua primeira instrução.

- Seu grande tolo - disse lentamente o inglês. - Nickle-jao! Volte para a sua carruagem.

Aos passinhos, recuando deferentemente e baixando a voz, o saddhu amarelo subiu de novo para a carruagem, amaldiçoando o SPB até à mais remota posteridade, através - aqui Kim quase saltou -, através da maldição da Pedra da Rainha, através da inscrição debaixo da Pedra da Rainha e através de um sortido de deuses com nomes totalmente novos.

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- Não sei o que está a dizer - explodiu o inglês com irritação -, mas é uma maldita insolência. Saia daí!

0 E23, fingindo ter compreendido mal, apresentou gravemente o seu bilhete, que o inglês, aborrecido, arrancou da mão dele.

- Oli, zoolum! Que opressão! - resmungou o jat, do seu canto.

- Tudo por causa de uma brincadeira. - Tinha estado a rir-se da liberdade de expressão do saddhu. - Os teus encantamentos hoje não estão a funcionar bem, Santo!

0 saddhu seguiu o polícia, rastejando e suplicando. A turba dos passageiros, ocupada com os seus bebés e as suas trouxas, não reparara na questão. Kin-i foi atrás deles, pois metera-se-lhe na cabeça que tinha ouvido este

ffim

zangado e estúpido sahib a fazer ruidosos comentários ofensivos a uma velha senhora, perto de Umballa, três anos antes.

- Está tudo bem - murmurou o saddhu, apertado no meio da multidão que chamava e gritava, confusa: um galgo persa entre os seus pés e uma gaiola de falcões barulhentos, a cargo de um falcoeiro rajput, nas suas costas. - Ele foi agora enviar notícias da carta que eu escondi. Disseram-me que ele estava em Peshawar. Eu devia saber que ele é como o croco~ dilo... sempre no baixio contrário. Salvou-me da presente calamidade, mas é a ti que devo a minha vida.

- Ele também é um dos nossos? - Kin-i desviou-se do sovaco gor~ duroso de um condutor de camelos mewar e chocou com um bando de ta~ garelas matronas sikhs.

- Nada menos do que o maior. Ambos estamos com sorte. Relatar-lhe-ei o que tu fizeste. Estou seguro sob a protecção dele.

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Furou até à orla da multidão que cercava as carruagens e agachou-se junto de um banco, perto da repartição telegráfica.

- Volta, senão tiram-te o lugar! Não temas pelo trabalho, irmão, ou pela minha vida. Tu deste-me um espaço para respirar e o sahib Strick1and puxou-me para terra. Ainda podemos vir a trabalhar juntos no Jogo. Adeus!

Kini correu para a carruagem entusiasmado, desnorteado, mas um pouco irritado pelo facto de não ter nenhuma soluçao para os segredos que o cercavam.

- Sou apenas um principiante no Jogo, é certo. Eu não conseguiria pôr-me a salvo, como o saddhu. Ele sabia que estava mais escuro debaixo do candeeiro. Eu não teria pensado em transmitir notícias através de uma pretensa maldição... e como o sahíb era esperto. Não faz mal, eu salvei a vida a um... Onde foi o hamboh, Santo? - sussurrou ele, quando tomou o seu lugar no compartimento agora apinhado.

- Um medo apoderou-se dele - replicou o lama, com um toque de malícia suave. - Viu-te transformar o mahratta num saddhu num piscar de olhos, como protecção contra o mal. Isso abalou-o. Depois, viu o sad~ dhu cair completamente nas mãos da polis, o efeito da tua arte. Então, agar~ rou no filho e fugiu; disse que tu tinhas transformado um calmo comerciante num descarado provocador de distúrbios com os sahibs, e ele temia um destino igual. Onde está o saddhu?

- Com a polis - disse Kim... - No entanto, eu salvei o filho do hamboh.

0 lama fungou maliciosamente. R~ Kiplikg

- Ah, chela, vê como foste ultrapassado. Tu curaste o filho do harnboh somente para adquirir mérito. Mas fizeste um feitiço no rnahratta com Mo_ dos arrogantes, eu observei-te, e com olhares de esguelha para uni homem muito, muito velho e para o tolo lavrador: daí a calamidade e a desconfiança.

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Kim controlou-se com um esforço superior às suas forças. Não gostava mais do que outro qualquer jovem de ser censurado ou mal interpretado, mas viu-se numa situação difícil comboio rolou para fora de Delhi, embrenhando-se na noite.

É verdade - murmurou. - Naquilo em que te ofendi, errei.

E há mais, chela. Tu lançaste uma acção no mundo e, tal COMO pedra atirada para um lago, assim se espalham as consequências, de modo que não podes dizer até onde.

Esta ignorância era boa, tanto para a vaidade de Kim como para a paz de espírito do lama, se pensarmos que, nessa altura, estava a ser entregue em Sirala um relatório telegrafado em código, informando sobre a chegada do E23 a Délhi e, mais importante, sobre o paradeiro de uma carta de que ele fora encarregue - resumidamente. Incidentalmente, um polícia demasiado zeloso prendera, sob a acusação de assassínio cometido num longínquo estado do sul, um intermediário do algodão de Ajrnir, horrivelmente indignado, que se explicava a um senhor Strick1and na plataforma de Délhi, enquanto o E23 patinhava pelas ruas no coração fechado da cidade de Délhi. Em duas horas, vários telegramas chegaram ao zangado ministro de um estado do sul, relatando que se tinham perdido todos os rastos de um mahratta um tanto ferido; e, à hora em que o vagaroso comboio parava em Saharurípore, a última ondulação da pedra que KiM ajudara a lançar bateu nos degraus de uma mesquita na longínqua Roura - onde perturbou um pio homem em oração.

0 lama fez as suas longamente, junto da orvalhada latada de buganvílias, perto da plataforma, animado pela clara luz do sol e pela presença do seu discípulo.

- Deixaremos estas coisas para trás - disse ele, indicando o motor de bronze e a cintilante via férrea. - As sacudidelas do comboio... enibora... embora esta seja uma coisa maravilhosa... transformaram os ineus ossos em água. Utilizaremos o ar puro, de aqui em diante.

- Vamos para casa da mulher de Kulu - disse Kiní, e avançou alegremente, sob o peso das trouxas. De manhã cedo, o caminho Para Saharunpore é limpo e cheira bem. Pensou nas outras manhãs em São Xavier, e isso rematou a sua já enorme satisfação.

Kim

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- onde nasceu esta nova pressa? Os homens sensatos não correm por aí corno galinhas ao sol. já fizemos centenas e centenas de koss e, até ago~ ra, eu rnal estive sozinho contigo um instante. Como podes tu receber instruÇão enipurrado pela multidão? Como posso eu, esmagado por uma torrente de conversa, meditar no Caminho?

- Então, a língua dela não diminuiu com os anos? - 0 discípulo sorriu .

- Não o seu apetite por encantamentos. Recordo uma vez, quando falei na Roda da Vida - o lama procurou no peito a sua última reprodução _, ela estava apenas curiosa em relação aos diabos que cercam as crianças. Ela adquirirá mérito pelo entretenimento que nos dará, daqui a pouco, mais tarde, brandamente, brandamente. Agora caminharemos de pés descalços, esperando pela Corrente das Coisas. A Busca é certa.

Assim viajaram muito facilmente por e pelo meio dos vastos pomares floridos - por Aminabad, Sahaigunge, Akrola do Vau e pela pequena Mulesa -, a linha dos Siwaliks sempre para norte e, atrás deles, de novo as neves. Depois de um longo e doce sono sob as secas estrelas, veio a importante e lenta passagem por uma aldeia a despertar - tigela de mendigar estendida em silêncio, mas olhos errantes, desafiando a lei de um extremo ao outro do céu. Depois Kim regressou com pezinhos de lã pela poeira para junto do seu mestre, sob a sombra de uma mangueira ou da sombra mais estreita de um siris branco de Doon, para comer e beber à vontade. Ao meio-dia, depois da conversa e de um pouco mais de viagem, dormiram; encontraram o mundo renovado, com o ar mais fresco. A noite encontrou~os aventurando-se em novo território - uma aldeia observada três horas antes na terra fértil e muito discutida na estrada.

Lá, contaram a sua história - uma nova cada noite, no que dizia respeito a Kim -, e lá se tornaram bem-vindos, tanto pelo padre como pelo chefe, seguindo o costume do simpático Leste.

Quando as sombras diminuíam e o lama se apoiava mais pesadamente em Kiní, havia sempre a Roda da Vida para arrastar, mantida na hori~ zontal, debaixo de pedras limpas, como uma longa indicação, para interPretar ciclo a ciclo. Aqui no alto sentavam-se os deuses - e eram sonhos e Mais sonhos. Aqui era o nosso céu e o mundo dos semideuses - cavallirOs lutando no meio das montanhas. Aqui estavam as agonias infligidas aos animais, almas subindo e descendo escadas e que, por isso, não de~ viara ser perturbadas. Aqui eram os Infernos, quentes e frios, e as casas de falltasnias atormentados. Deixar o chela estudar os problemas decorrentes de corrier de mais - estõmago inchado e intestinos a arder. Obediente- Rudyard Kip1itg

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mente, então, com a cabeça curvada e o dedo castanho alerta para seguir o ponteiro, o chela estudava, mas, quando chegaram ao Mundo Humano atarefado e inútil, que está mesmo por cima das estrada, a própria Roda rolava, comendo, bebendo, negociando, casando e brigando - tudo calorosamente vivo. Frequentemente, o lama fazia dos quadros vivos o as_ sunto do seu texto, mandando Kini. -já preparado - reparar corno a carne toma milhares de formas, desejáveis ou detestáveis, como reconhecem os homens, mas, na verdade, sem nenhum valor, em qualquer dos casos; e como o estúpido espírito, ligado pela escravatura ao Porco, ao Pornbo e à Serpente - ansiando por noz de bétele, uma nova junta de bois, mulheres, ou o favor dos reis - é obrigado a seguir o corpo através de todos os Céus e todos os Infernos, num círculo vicioso. Por vezes, mulher ou um pobre homem, observando o ritual - não era outra coisa -, quando a grande carroça amarela estava aberta, atirava umas flores ou uma mão-cheia de conchas para cima dela. Era suficiente, para esta gente humilde, ter conhecido um santo que podia enternecer-se e lembrá-lo nas suas orações.

- Cura-os se eles estiverem doentes - disse o lama, quando os instintos brincalhões de Kin-i acordaram. - Cura-os se tiverem febre, mas de modo nenhum faças encantamentos. Lembra-te do que aconteceu ao mahratta.

- Então toda a acção é maligna? - replicou Kini, estendendo~se debaixo de uma grande árvore, na bifurcação da estrada de Doon, observando as pequenas formigas que corriam sobre a sua mão.

- Abster-se da acção é bom... excepto para adquirir mérito.

- Nas Portas da Erudição ensinaram-nos que abster-se da acção não é próprio de um sahib. E eu sou um sahib.

- Amigo do Mundo - o lama olhou directamente para Kini -, eu SOU um velho... contente com o espectáculo que são as crianças. Para aqueles que seguem o caminho, não há preto nem branco, nem Hind, nem Bhotiyal. Somos todos almas à procura da fuga. independentemente da sabedoria que adquiriste entre os sahibs, quando chegarmos ao meu rio libcrtar-te-ás de toda a ilusão, ao meu lado. Hai! Os ossos chegam a doer-me por esse rio, como me doiam no comboio; mas o meu espírito senta-se acima dos meus ossos, à espera. A Busca é garantida!

-já me respondeste. Agora posso fazer uma pergunta? 0 lama inclinou a sua altiva cabeça.

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- Comi o teu pão durante três anos, como sabes. Santo, de onde vinha ... ?

Kim

_ Há muita riqueza, como contam os homens, no Bliotiyal - retorquiu o lama, com calma. - No meu próprio lugar, eu tenho a ilusão da horira. peço o que preciso. Não estou preocupado com a conta. Isso é para o rneu niosteiro! Ai! Os altos assentos pretos no mosteiro e os noviços to~ dos às ordens!

E contou histórias, riscando com um dedo na poeira, acerca do imenso e SunIptuoso ritual de catedrais guardadas por avalanches; de procissões e danças do diabo; da transformação de monges e freiras em suírios; de cidades sagradas suspensas no ar, a quatro mil e quinhentos metros; de intrigas entre mosteiros; de vozes entre as montanhas e dessa miragem rnisteriosa que dança sobre neve seca. Falou até de Lhasa e do Dalai Lama, que ele vira e adorara.

Cada longo e perfeito dia erguia-se atrás de Kim como uma barreira para o afastar da sua raça e da sua língua-mãe. Voltou ao pensamento e ao sonho do vernáculo e, mecanicamente, seguia os hábitos cerimoniosos do lama ao comer, beber, ete espírito do ancião virava-se cada vez mais para o seu mosteiro, à medida que os seus olhos se viravam para as neves constantes seu rio não o preocupava nada. De vez em quando, de facto, olhava longamente para um tufo de relva, ou rebento, esperando, dizia ele, que a terra se fendesse e entregasse a sua bênção; mas estava contente por estar com o seu discípulo, à vontade no vento temperado que desce de Doon. Isto não era Ceilão, nem Buddh Gaya, nem Bombaim, nem umas ruínas com erva emaranhada em que parecia ter tropeçado dois anos antes. Falava desses lugares como um estudante desprovido de vaidade, como um pesquisador caminhando humildemente, como um velho, prudente e comedido, iluminando o conhecimento com brilhante discernimento. Pouco a pouco, confusamente, em cada episódio evocado por alguma coisa que se passasse à beira da estrada, ele falava de todas as suas peregrinações pelo Indostão; até Kim, que o amara sem razão, tinha agora cinquenta boas razoes para amá~lo. Assim, divertiam-se, com grande felicidade, abstendo-se, como manda a Regra, de palavras malignas, deSeJOS cobiçosos; não comendo de mais, não dormindo em camas altas, não usando roupas ricas. Os estômagos deles diziam-lhes as horas e as pessoas traziara-lhes a comida, como diz o ditado. Eram senhores das aldeias de Aniinabad, Sahaigunge, Akrola do Vau e da pequena Pluilesa, onde Kim abençoou a mulher sem a alma.

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Mas as notícias correm depressa na índia e rapidamente um servidor de suíças brancas apareceu arrastando~se pela seara, transportando um Cesto de frutas com uma caixa de uvas de Cabul e laranjas douradas - Rudyard Kipling

um oorya magro, seco -, implorando-lhes que desse à sua patroa a honra da sua presença, pois ela estava desolada pelo facto de o lama a ter negligenciado durante tanto tempo.

- Agora me lembro - falou o lama, como se fosse uma Proposta totalmente nova. - Ela é virtuosa, mas uma desmesurada tagarela.

Kim estava sentado na ponta de uma manjedoura, contando histórias ao filho de um ferreiro da aldeia.

- Ela apenas pedirá outro filho para a filha dela. Eu não a esqueci disse ele. - Deixa-a adquirir mérito. Manda dizer que nós vamos. Percorreram dezoito quilómetros pelos campos em dois dias e, no fira,

foram cumulados de atenções, pois a velha senhora mantinha uma óptima tradição de hospitalidade, à qual forçava o genro, que era dominado pelas mulheres da família e comprara a paz através de um empréstimo do usurário. A idade não enfraquecera a língua e a memória dela e, de j anela superior, discretamente oculta, ao alcance do ouvido de não menos de uma dúzia de criados, fez a Kini "elogios" que teriam precipitado audiências européias em profundo desalento.

- Mas tu ainda és o mesmo fedelho desavergonhado que pedia no parao - guinchou ela. - Não me esqueci de ti. Lava-te e come pai do filho da minha filha saiu por um instante. Por isso, nós, pobres mulheres, estamos mudas e inúteis.

Como prova, discursou abundantemente para a família toda, até a comida e a bebida serem trazidas; e, à noite - a noite de fumo cheiroso, castanho~acobreada e turquesa pelos campos -, agradou-lhe ordenar que o seu palanquim fosse colocado no desalinhado pátio de entrada, junto do fumarento archote, e aí, atrás de cortinas não completamente corridas, bisbilhotou.

- Se, o Santo tivesse vindo sozinho, tê-lo-ia recebido de outro modo; mas, com este velhaco, quem pode ser demasiado cauteloso?

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- Maharanee' - disse Kini, escolhendo, como sempre, o mais poniposo título -, é culpa minha que ninguém, a não ser um sahib, um sahib da polis, chamasse à Maharance, cujo rosto ele... nheces o - Chiu! Isso foi na peregrinação. Quando viajamos... tu co

provérbio. - Chamou à Maharance uma Destruidora de Corações e Distribuidora de Encantos? foi rio

- Recordar uma coisa dessas! Foi verdade. Assim disse ele. Isso

Kim

1. Mulher de marajá. (N. da T.)

t..Ipo da frescura da minha beleza. - Riu por entre dentes, como um papagaio satisfeito em cima do monte de açúcar. - Agora conta-me as tuas ídas c vindas... tanto quanto possa ser contado sem vergonha. Quantas criadas e quais esposas estão presas pelas tuas pestanas? Vindes de Benarés? Eu teria ido lá de novo este ano, mas a minha filha... nós só temos dois filhos. pff! Tal é o efeito destas baixas planícies. Agora em Kulu os homens ;ão elefantes. Mas queria pedir ao teu Santo... desvia-te, patife... um cricantarnento contra as ruidosas cólicas, bastante lamentáveis, que, no tem~ po das mangas, atingiram o mais velho da minha filha. Há dois anos ele deu-me urn feitiço poderoso.

- Oli, Santo! - exclamou Kini, sufocando a hilaridade, perante o rosto pesaroso do lama.

- É verdade. Dei-lhe um contra o vento.

- Dentes... dentes... dentes - disse a velha mulher, com brusquidão. - "Cura-os se estiverem doentes" - citou Kini, prazenteiramente -, "mas de modo nenhum faças encantamentos. Lembra-te do que aconteceu ao mahratta. "

- Isso foi há duas estações das chuvas; ela fatigou-me com a sua contínua impertinência. 0 lama lamentou-se, como o juiz injusto se lamentara antes dele. Assim acontece... toma nota,

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meu chela... que, mesmo aqueles que seguiam o Caminho, são empurrados para o lado por mulheres ociosas. Ao longo de três dias, enquanto a criança esteve doente, ela falou comigo.

- E então? Com quem havia eu de falar? A mãe do rapaz não sabia nada e o pai... foi nas noites do tempo frio... dizia - " Reza aos

euses", fran~ camente, e, virando~se para o outro lado, ressonava.

- Eu dei-lhe o encantamento. Que pode um velho fazer? - Abster-se da acção é bom... excepto para adquirir mérito. -Ali, chela, se tu me abandonas, fico completamente só.

- Ele descobriu facilmente os seus dentes de leite, de qualquer modo - disse a velha senhora. - Mas todos os padres são idênticos.

1(im tossiu gravemente. Sendo novo, não aprovava a irreverencia dela. - Incomodar os sábios fora da época própria é um convite à calamidade.

- Há um estorninho - a arremetida voltou com o bem conhecido ruído do indicador cheio de jóias - lá nos estábulos, que apanhou o tom e-'acto do padre de família

. Talvez eu esqueça as honras para os meus hósPedes, nlas, SO 0 tivessem visto dobrar os punhos contra a barriga, que estava c01110 Uma cabaça semi-inchada e a gritar: "A dor é aqui! ", perdoa- riam. Estou meio decidida a aceitar o medicamento do hahim. Ele vende~o barato e, certamente, ele torná-lo-á tão gordo como 0 Próprio touro de Shiv. Ele não renega os remédios, mas eu duvidei pela criança, por causa da pouco auspiciosa dor dos frascos.

0 lama, a coberto do monólogo, desaparecera na escuridão, na direcção do quarto preparado.

- Irritaste-o, possivelmente - disse Kini.

- Não. Ele está fatigado e eu esqueci-me, sendo avó, (Ninguém, excepto uma avó, deveria nunca vigiar uma criança. As mães são próprias apenas para dar à luz.) Amanhã, quando ele vir como o filho da mina filha está crescido, escreverá o encantamento. Depois, também pode ajuizar das novas drogas do hahim.

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- Que é o hakím, Maharanee?

- Um peregrino, como tu, mas um bengali bastante sóbrio de Dacca, um mestre da medicina. Aliviou-me de uma opressão que eu sentia depois da carne, por meio de pequeno comprimido que funcionou como um diabo à solta. Agora anda por aí a viajar, vendendo preparados de grande valor. Ele até tem papéis, escritos em inglês, dizendo que coisas tem feito pelos homens de costas fracas e pelas mulheres sem energia. Esteve aqui quatro dias; mas, ouvindo dizer que vocês vinham (hahims e padres são, por todo o mundo, como cão e gato), foi, suponho eu, esconder-se.

Enquanto ela tomava fôlego, depois desta torrente, o velho criado, sen~ tado sem cerimónia junto do archote, murmurou:

- Esta casa é um curral, por assim dizer, para todos os charlatães e... padres. Que o rapaz pare de comer mangas... mas quem consegue discutir com uma avó? - Ergueu a voz respeitosamente: - Sahiba, o hakim dorme, depois da sua carne. Ele está nos alojamentos atrás do pombal.

Kim eriçou-se como um expectante cão de toca. Enfrentar e fazer calar um bengali ensinado em Calcutá, um fluente vendedor de drogas de Dacca, seria um bom jogo. Não era decente que o lama e, incidentalmente, ele próprio, fossem postos de lado por tal pessoa. Ele conhecia esses curiosos anúncios ingleses corruptos, na última página dos jornais nativos. Os rapazes de São Xavier, às vezes, traziam~nos furtivamente para se rirem à socapa com os seus companheiros, pois a linguagem do grato paciente relatando os seus sintomas é bastante simples e revelador. o corya, ansioso por confrontar um parasita com o outro, afastou-se furtivarnente na direcção do pombal. deles

- Sim - disse Kim, com calculado desprezo. - A mercadoria

é um pouco de água colorida e um grande descaramento. As vítirrias de-

Kím

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1 são reis arruinados e bengalis barrigudos lucro deles está nas crianes

Ças, que ainda não nasceram.

A velha senhora soltou um riso abafado.

Não sejas invejoso . Os encantamentos são melhores, hem? Eu nunca o neguei. vê se o teu Santo me escreve um bom amuleto de manhã, - Ninguém, excepto os ignorantes, nega - ressoou uma voz grossa,

pesada, através da escuridão, ao mesmo tempo que apareceu uma figura que se agachou. - Ninguém, excepto os ignorantes, nega o valor dos medicarnentos.

- ratazana encontrou um bocado de açafrão. Disse ela: "Abrirei unia rnercearia" - retorquiu Kim.

Agora a batalha travava-se honestamente, e eles ouviram a velha se~ nhora empertigar~se para dar mais atenção.

- o filho do padre sabe os nomes da sua ama e três deuses. Diz ele: "Escutai-me, ou arnaldiçoar-vos-ei pelos três milhões de Grandes". Decididamente, este ente invisível tinha uma ou duas setas na aljava. Continuou: - Sou apenas um professor do alfabeto. Aprendi toda a sabedoria dos sahibs.

- Os sahibs nunca envelhecem. Dançam e brincam como crianças quando são avós. Uma raça vigorosa - soprou a voz de dentro do palanquim.

- Tenho, também, as nossas drogas, que libertem humores da cabeça nos homens ardentes e zangados. Sinà bem misturado, quando a lua está na Casa conveniente; tenho terras amarelas: arplan da China, que faz um homem renovar a sua juventude e assombrar a sua família; açafrão de Caxemira e o melhor salepo de Cabul. Muitas pessoas tem rnorrido antes de...

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- Nisso, sem dúvida, acredito - disse Kim.

- Sabiam o valor das minhas drogas. Eu não dou aos meus doentes a SiMples tinta com que se escreve um encantamento, mas remédios quentcs e fortes que descem e combatem o mal.

- Muito poderosamente o fazem - suspirou a velha senhora. A voz lançou-se numa história imensa de infortúnio e falência, ornamentada com abundantes rogos ao governo.

Mas, por seu destino, que comanda tudo, eu estivera agora ao serViÇo do governo. Trago um grau da grande escola de Calcutá, para onde talvez vá o filho desta casa.

- Irá, de facto. Se o fedelho do nosso vizinho pode ser transformado, e"' Poucos anos, num FA - First Arts - ela usava a expressão inglesa, que ouvira tantas vezes -, quantos mais prêmios não ganhará uma crian ça esperta como algumas que eu conhe ço na rica Calcutá.

- Nunca - disse a voz - vi tal criança. Nascida numa hora auspiciosa e... excepto por essa cólica que, ai!, transformando-se em cólera ne_ gra pode levá-lo como um pombinho... destinado a viver muitos anos, é invejável.

- Hai mai! - disse a velha senhora. - Elogiar as crianças é de rnau agoiro, senão eu podia escutar esta conversa. Mas as traseiras da casa não estão guardadas e, mesmo com este ar ameno, os homens considerarn-se como homens, e mulheres que conhecemos.. pai da criança também está fora e eu tenho de ser chowhedar [vigia] na minha velhice. Upa! Upa! Elevem o palanquim. Deixem o hahim e o J .ovem padre decidirem entre eles se são os encantamentos ou os medicamentos que valem mais. Oh! Gente inútil, vão buscar tabaco para os hóspedes e... vou dar a volta à casa!

0 palanquim deslocou~se, seguido por rochas dispersas e uma matilha de cães. Vinte aldeias conheciam a sahiba - os seus defeitos, a sua língua e a sua ampla caridade. Vinte aldeias a enganavam, segundo um hábito imemorial, mas nenhum homem teria roubado ou feito assaltos na sua jurisdição por nenhuma oferta sobre a terra. Contudo, ela fazia grande alarde das suas inspecções formais, o tumulto das quais podia ser ouvido até meio do caminho para Mussorie.

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Kim descontraiu-se como deve acontecer quando um áugure encontra outro hahim, ainda acocorado, empurrou o seu cachimbo de água com um pé amigável e Kini tirou uma cachimbada da boa erva.

Os parasitas esperavam sério debate profissional e talvez um pouco de medicina gratuita.

- Discutir medicina diante dos ignorantes é o mesmo que ensinar o pavão a cantar - disse o hakim.

- A verdadeira cortesia - ecoou Kini - é frequentemente desatenção.

isto, entenda-se, era delicadeza artificial, planeada para impressionar- - Olhem! Tenho uma úlcera na perna - gritou um ajudante de cozinha. - Olhem para isto!

- Fora daqui! Afasta-te! - exclamou o hahim. - É hábito da terra importunar hóspedes de honra? Vocês amontoam-se como búfalos.

- Se a sahiba soubesse... - começou Kini.

- Ai! Ai! Vamo-nos embora. Eles são tudo para a nossa patroa. Quando as cólicas do jovem Shaitan estiverem curadas, talvez nós, pobre gc"- te, possamos ser autorizados a...

Kim

-A patroa alimentou a tua mulher quando tu estiveste na prisão, por teres Partido a cabeça ao usurário. Quem diz mal dela? - 0 velho servidor encaracolou furiosamente o seu bigode branco, à luz da jovem Lua. _ Eu sou o responsável pela honra desta casa. Vão! - E conduziu os subordinados à sua frente.

Disse o hahim, fazendo pouco mais do que modelar as palavras com os lábios:

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- Como estás, O'Hara? Estou muito contente por ver~te de novo.

A mão de Kini ficou agarrada ao tubo do cachimbo. Em ponto ne~ nhum, em plena estrada, talvez, ele teria ficado espantado; mas aqui, nesta calma estagnação da vida, não estava preparado para ver o babu Hurree. Aborrecia-0, também, o facto de ter sido ludibriado.

- Ali, ah! Eu disse-te, em Luckhow.. resu rgam... aparecerei de novo e tu não me conhecerás. Quanto é que apostaste, hein?

Mastigava languidamente algumas sementes de cardamomo, mas respirava agitadamente.

- Mas porquê vir aqui, babuji?

- Ali! Essa é a questão, como diria Shakespeare. Venho felicitar~te pela tua extraordinária e eficiente representação em Délhi. Ah! Digo-te que estamos todos orgulhosos de ti. Foi muito hábil e conveniente nosso amigo comum é um velho amigo meu. Tem estado em algumas situações de aperto. Agora estará em mais algumas. Ele contou-me- eu contei ao senhor Lurgan; e ele está contente por teres aprendido tão em. Todo o departamento está satisfeito.

pela primeira vez na sua vida, Kini estava arrebatado pelo puro orgulho (este pode, contudo, ser uma armadilha fatal) perante o louvor dePartarnental - louvor ilusório de um igual cujo trabalho é apreciado peIOS companheiros de trabalho. A terra não tem nada no mesmo plano que se compare a isto. Mas, gritava o oriental que havia nele, os balus não viaJavam para longe para transmitir elogios.

- Conta a tua história, babu -- disse ele, autoritariamente.

- Ali, não é nada. Só que eu estava em Simla quando chegou o tele~ grartia sobre o que o nosso amigo comum disse que escondera e o velho Creighton... - Olhou para ver como Kim reagiria àquela amostra de au~ dácia.

- 0 sahib coronel - corrigiu o rapaz de São Xavier.

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- Claro. Encontrou-me desocupado e tive de ir a Chitor para desco~ brir essa desagradável carta. Não gosto do sul... é uma grande viagem de COrnboio; mas consegui um bom desconto na viagem. Ah, ah! Encontrei~ Rudyard

-me com o nosso amigo em Délhi, no regresso. Ele está muito calmo agora e diz que o disfarce de saddhu lhe calha às mil maravilhas. Bem, lá ouvi contar o que tu fizeste tão bem, tão depressa, no impulso instantãneo do momento. Contei ao nosso amigo comum que tu levaste vantagem, caramba! Foi esplêndido. Vim contar-te isto.

- Hum!

As rãs estavam atarefadas rios fossos e a Lua deslizava no horizonte. Algum criado feliz saíra para comungar com a noite e tocar tambor. A frase que Kim proferiu a seguir foi no vernáculo.

- Como é que nos seguiste?

- Ah! Isso não foi problema. Soube pelo nosso amigo que tu vinhas para Saharunpore. Por isso vim. Os lamas vermelhos não são pessoas que passem despercebidas. Comprei uma caixa de medicamentos para mime, realmente, até sou um médico muito bom. Fui a Akrola do Vau e ouvi contar tudo sobre ti e falei um pouco, aqui e além. Toda as pessoas vulgares sabem o que fazes. Também soube quando a velha senhora hospitaleira mandou o dooli. Eles têm aqui grandes recordações das visitas do velho lama. Conheço velhas senhoras que não conseguem passar sem medicamentos. Por isso sou médico, e... estás a ouvir? Eu penso que é muito bom. Palavra, O'Hara, sabem de ti e do lama num raio de oitenta quilómetros... as pessoas vulgares. Por isso vim. importas-te?

- Babuji - disse Kim, erguendo os olhos para o rosto amplo, sorridente -, eu sou um sahib.

- Meu caro O'Hara...

- E espero jogar o Grande jogo.

- No que respeita ao departamento, neste momento, estás subordinado a mim.

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- Então porquê cantar de galo? Os homens não vêm atrás de alguérn desde Smila, mudando de trajo, só por umas palavras doces. Eu não sou nenhuma criança. Fala hindi e entremos no ãmago da questão. Tu estás aqui... e não dizes uma palavra verdadeira em cada dez. Por que estás aqui? Dá uma resposta directa.

- É isso que têm de desconcertante os europeus, O'Hara. Tu devias saber muito mais, nesta altura da tua vida.

- Mas eu quero saber - disse Kim, rindo. - Se é 0 1090, eu Posso ajudar. Como posso eu fazer alguma coisa, se tu buhh [palras] só ern. tOrno do assunto?

é este gorgolejar de 0 babu Hurree alcançou o cachimbo e sorveu-o at

novo.

ffim

_ Agora vou falar no vernáculo. Senta-te bem, O'Hara... Diz respeito ao pedigree de um garanhão branco.

- Ainda? isso já acabou há muito tempo.

- Quando toda a gente morrer, o Grande jogo acaba. Não antes. ouve-rne até ao fim. Houve cinco reis que preparavam uma guerra repentina há três anos, quando o Mal---ibub Ali te deu o pedigree do garanhão. o nosso exército, devido a essa notícia e antes que se precavessem, caiu ern cinia deles.

- Sini... oito mil homens com canhões. Lembro-me dessa noite.

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- Mas a guerra não foi impulsionada. Esse é o costume do governo. As tropas foram retiradas, porque o governo supunha que os cinco reis estavarri intimidados e não é barato alimentar homens nos altos desfiladeiros. Hilás e Bunár... rajás com armas... tomaram a seu cargo, em troca de dinheiro, a guarda dos desfiladeiros contra todas as vindas do norte. Protes~ tavam o medo e a amizade. - Rompeu, com um risinho, para inglês: Claro, conto~te isto não oficialmente, para esclarecer a situação política, O'Hara. Oficialmente, estou impedido de criticar qualquer acção dos superiores. Agora, vou continuar... isto agradou ao governo, desejoso de evitar despesas, e foi feito um contrato de muitas rupias por mês, segundo o qual Hilás e Bunár deviam guardar os desfiladeiros assim que as tropas estatais fossem retiradas. Nessa altura, foi depois de nos termos conhecido, eu, que tinha estado a vender chá em Lch, tornei-me funcionário de contas no exército, Quanto as tropas se retiraram, fui deixado para trás para pagar aos coolies que faziam novas estradas nas montanhas. Esta construção de estradas fazia parte do contrato entre Bunár, Hilás e o governo.

- Então? E depois?

- Digo~te, também estava um frio brutal lá em cima, depois do Verão - disse o babu Hurree confidencialmente. - Todas as noites eu tinha medo de que estes homens de Bunár me cortassem a garganta por causa da arca dos salários meu guarda sipaio, todos se riam de mim! Caramba! Eu era um homem tão temeroso. Mas não interessa. Vou continuar, coloquialmente... Comuniquei muitas vezes que estes dois reis estavam vendidos ao

confirmou-o

norte; e Mahbub Ali, que estava ainda mais a norte, amPlamente.

Nada foi feito. Só os meus pés é que ficaram gelados e caiu-111C um dedo. Comuniquei que as estradas pelas quais eu pagava dinheiro OS cavadores estavam a ser feitas para os pés de estrangeiros e inimigos. - Para?

- Para os coolies. De~ Pois, fui Os russos. A coisa era uma galhofa evidente entre

chamado para relatar verbalmente o que sabia. Mal---ibub também Ru#ard Kipling

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Kim

- Ele alegrar-se-ia, decerto, por ver as montanhas outra vez - disse Kim, pensativamente. - Nestes últimos dez dias quase só tem falado disso. Se formos juntos...

- Ah! Podemos ser como estranhos uns aos outros na estrada, se o teu lama preferir. Eu estarei seis ou sete quilómetros à frente. Não há Pressa para Hurrec... e vocês vêm depois. Há muito tempo - eles vão traçar e pesquisar e planear, claro. Irei amanhã e vocês no dia seguinte, se quiserem. Ari? Vais pensar nisso até amanhã de manhã. Caramba, já é quase de manhã! - Bocejou ponderadamente e, sem uma única palavra de despedida, arrastou-se para o seu dormitório. Mas Kim dormiu pouco e os seus pensamentos fluíram em hindustãni-.

- E bem posto ao Jogo o adjectivo "grande". Fui ajudante de cozinha durante quatro dias em Quetta, servindo à mulher do homem cujo livro roubei. E isso fazia parte do Grandejogo. Do sul... sabe Deus de que distância... veio o mahratta, jogando o Grande jogo, receando pela própria vida. Agora irei cada vez mais longe, para o norte, jogando o Grande Jogo. Na verdade, ele corre como um comboio através de todo o Indostão. E o meu quinhão e minha alegria - sorriu para a escuridão devo aqui ao lama. Também a Mahbub Ali... também ao sahib Creighton, mas principalmente ao Santo. Ele tem razão... um mundo imenso e maravilhoso... e eu sou Kini - Kini - Kini... sozinho... uma pessoa... no meio de tudo isto. Mas verei estes estrangeiros, com os seus níveis e correntes...

- Qual foi o resultado da tagarelice da noite passada? - perguntou o lama, depois das suas rezas.

- Apareceu um vendedor ambulante de medicamentos... um sequaz da sahiba. Derrotei-o com argumentos e orações, provando que os nossos encantamentos valem mais que as águas coloridas dele.

- Ai de mim, os meus encantamentos! A mulher virtuosa ainda está resolvida a obter um novo?

- Firmemente.

- Então ele tem de ser escrito, senão ela deixar-me-á surdo com 0 seu clamor. - Procurou a sua caixa de canetas.

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- Nas planícies - disse Kini - há sempre pessoas de mais. Nas montanhas, tanto quanto sei, há menos.

- Oh! As montanhas e as neves nas montanhas. - o larna rasgou UII, pequeno quadrado de papel, próprio para meter num ainulet0. - ,4as que sabes tu das montanhas?

- Estão muito próximas. - Kini escancarou a porta e olhou para a

longa pacífica linha dos Himalaias, avermelhadas, sob o dourado da ma~ nhã. - Excepto no traj o de um sahib, nunca lá pus os pés.

o larna inspirou o vento melancolicamente.

- se formos para norte - Kini pôs a questão ao amanhecer, que des~ pontava - não seria evitado muito do calor do meio-dia caminhando cri~ tre as montanhas mais baixas, pelo menos?.. encantamento está pron to,Santo?

- Escrevi os nomes de sete estúpidos diabos, nenhum dos quais vale uni grão de poeira no olho. É assim que as mulheres tolas nos desviam do caminho.

o babu Hurrec veio de detrás do pombal, lavando os dentes com um ritual aparatoso. Bem nutrido, de ancas pesadas, pescoço grosso e voz profunda, não parecia um homem temeroso. Kini fez-lhe um sinal quase imperceptível de que as coisas estavam em bom andamento e, quando acabou a higiene matinal, o babu Hurree, numa linguagem floreada, veio prestar honras ao lama. Comeram, claro, à parte e, depois, a velha senhora, mais ou menos velada atrás de uma janela, voltou à questão vital das cólicas de manga verde do jovem. Os conhecimentos de medicina do lama eram, claro, apenas simpáticos. Acreditavam que o excremento de um cavalo, preto, misturado com enxofre e transportado numa pele de cobra, era um remédio perfeito para a cólera; mas o simbolismo interessava-lhe muito mais que a ciência babu Hurrec discordava deste pontos de vista com encantadora delicadeza, o que levou o lama a chamar-lhe médico cortês. 0 babu Hurree replicou que não era mais que um inexperiente amador dos mistérios; mas, pelo menos - por isso agradecia aos deuses - sabia, quando estava na presença de um mestre. Ele próprio fora ensinado pelos sahibs, que não têm em consideração os gastos, nos magníficos salões de C'lcutá; 'nas, como ele era sempre o

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primeiro a reconhecer, havia uma sabedoria por trás da sabedoria terrena - o alto e solitário saber da meditaÇão. Kini contemplava com inveja babu Hurree que ele conhecia gorduroso, efusivo e nervoso - fora-se- fora-se, também, o descarado vendedor de drogas da noite anterior. estava - civilizado, delicado, atencioso - um sóbrio e letrado filho da experiência e da adversidade, colhendo sabedoria dos lábios do lama. A velha senhora confiou a Kim que estes raros níveis de saber a ultrapassavam. Gostava de encantamentos COM riluita tinta, que se podiam fazer desaparecer com água, engolir e Pront'- Que outra utilidade tinham os deuses? Ela gostava de homens e Mulheres e falava deles - de reizinhos que conhecera no passado; da sua Própria juventude e beleza, das depredações dos leopardos e das excen- ffim

tricidades do amor asiático; da incidência da tributação, arrendamento de ferramentas, cerimónias fúnebres, o seu genro (isto por alusão, fácil d s

eguir), o cuidado com o jovem e a falta de decência da época. E Kim, tão interessado na vida deste mundo como ela em deixá-lo brevemente, acocorou-se com os pés debaixo da bainha da sua túnica, absorvendo tudo, enquanto o lama demolia, uma após outra, todas as teorias de cura corporal apresentadas pelo babu Hurre.

Ao meio-dia, o babu Hurree prendeu a caixa de remédios de latão, agarrou nos seus sapatos de verniz de cerimónia com uma mão, um garrido chapéu de sol azul e branco com a outra e partiu na direcção norte, para o Doon, onde, disse ele, andava em buscas entre os reis menores dessas paragens.

- Nós iremos com o fresco da noite, chela - disse o lama. - Aquele doutor, versado em medicina e cortesia, afirma que as pessoas no meio destas montanhas mais baixas são devotadas, generosas e muito necessitadas de um mestre. Daqui a muito pouco tempo... assim diz o hakim... chegaremos ao ar puro e ao aroma dos pinheiros.

- Ides para as montanhas? E pela estrada de Kulu? Oli, triplamente felizes! - guinchou a velha senhora. - Se eu não estivesse um pouco atrapalhada com o encargo da família, pegava no palanquim... mas isso seria vergonhoso e a minha reputação ficaria arruinada. Oh! Oli! Eu conheço a estrada ... conheço cada marca da estrada. Encontrarão caridade por todo o lado ... ela não é negada aos que têm boa aparência. Darei ordens para a provisão. Um criado para vos iniciar na vossa viagem? Não... Então, ao menos vou preparar~vos boa comida.

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- Que mulher é a sahiba! - disse o ooyra de barbas brancas, quando se elevou um burburinho da cozinha. - Nunca esqueceu um amigo: nunca esqueceu um inimigo, em todos os seus anos. E a culinária dela... mm! - Esfregou o estõmago vazio.

Havia bolos, havia doces, havia galinha fria estufada aos pedaços, com arroz e ameixas secas - em quantidade suficiente para carregar Kim como uma mula.

- Sou velha e inútil - disse ela. - Agora ninguém gosta de mim e ninguém me respeita... mas poucos se comparam a mim quando invoco os deuses e me agacho junto dos meus tachos. Vinde mais vezes, ó pessoas de boa vontade. Santo e discípulo, vinde outra vez quarto está senIPre preparado; as boas-vindas estão sempre prontas... Vê se as mulheres não seguem o teu chela demasiado publicamente. Eu conheço as rnulhere,; de Kulu. Tem cuidado, chela, para que ele não fuja quando sentir outra vez o

cheiro das montanhas dele... Hai! Não vires o saco do arroz de pernas para Abençoa a casa, Santo, e perdoa a esta tua criada os seus disparates. o ar..

Linipou os seus velhos olhos vermelhos num canto do véu e cacarejou guturaintente.

- As mulheres falam - disse o lama, por fim - mas isso é uma criferniidade da mulher. Eu dei-lhe um encantamento. Ela está na Roda e totairriente entregue aos espectáculos desta vida, mas, não obstante, chela, é virtuosa, amável, hospitaleira... de um integral e fervoroso coração. Quem dirá que ela não adquire mérito?

- Eu não, Santo - disse Kim, colocando a caritativa provisão aos ombros. - No meu espírito, atrás dos meus olhos, tentei visionar tal pessoa completamente liberta da Roda... não desejando nada, não provocando nada... uma freira, por assim dizer.

- E, ó diabrete? - 0 lama quase riu alto. - Não consigo imaginar.

- Nem eu. Mas há muitos, muitos milhões de vidas à frente dela. Ela obterá sabedoria, por pouca que seja, em cada uma.

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- E esquecerá como fazer estufados com açafrão, nessa estrada?

- 0 teu espírito está obcecado com coisas insignificantes. Mas ela tem perícia. Estou renovado da cabeça aos pés. Quando alcançarmos as montanhas mais baixas estarei ainda mais forte hahim falou verdade esta manhã, quando me disse que uma lufada das neves retira vinte anos à vida de um homem. Subiremos as montanhas, as altas montanhas, até ao som da água das neves e ao som das árvores... por um instante hahím disseque em qualquer altura podemos regressar às planícies, pois não fazemos mais do que ladear os lugares agradáveis hakim é cheio de saber- mas não é de modo nenhum orgulhoso. Falei com ele... quando tu esta`vas a conversar com a sahiba... sobre uma certa vertigem na minha nuca durante a noite e ele disse que é provocada pelo excessivo calor, curando~se com o ar Puro. Respeitosamente, espantou~se como não pensara em tão s'mPles remédio.

- Contaste-lhe sobre a tua Busca? - perguntou Kim, um pouco ciu~ rnent0. Preferia influenciar o lama através do seu próprio discurso, não através dos estratagemas do babu Hurree.

- Sem dúvida. Contei-lhe o meu sonho e o modo como adquirira mé~ rito ao Proporcionar que te ensinassem a ciência.

Não disseste que eu era um sahib?

Para quê? Eu disse~te muitas vezes que nós não somos senão duas a1's eni busca de saída. Ele disse... e está dentro do assunto... que o rio Ru#ard Kip1"g

da Cura jorrará mesmo como eu sonhei, aos meus pés, se for necessário. Tendo encontrado o Caminho, vês, isso libertar-me-á da Roda, precisarei de me incomodar a descobrir um caminho Pelos simples campos da terra--- que são ilusão? Isso não faria sentido. Eu tenho os meus sonhos, repetidos noite após noite; tenho o jâtaha; e tenho-te a ti, Amigo do Mundo. Estava escrito no teu horóscopo que um Touro Vermelho nuM campo verde... não me esqueci... te levaria à honra. Quem, senão eu, viu essa profecia realizada? Na realidade, eu fui o instrumento. Tu encontrar-me-ás o meu rio, sendo, como retribuição, o instrumento. A Busca é certa.

Virou o rosto cor de marfim amarelo, sereno e despreocupado, na direcção das montanhas que o chamavam, a sua sombra alongando-se muito à sua frente, na poeira.

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Quem desejou o Mar - as imensas e insolentes vagas? o tremor, o deslize, a guinada antes que o gurupés que toca as estrelas emeria -

As nuvens tranquilas dos Comércios e a safira ribombante com arestas por baixo -

Rajadas não anunciadas, escondidas nos penhascos e a trovoada que ribomba junto da bujarrona?

0 Mar dele, sem admiração o mesmo - o Mar dele e o mesmo em cada prodígio -

0 Mar dele que satisfaz o seu ser?

Assim e não de outro modo - assim e não de outro modo desejam os montanheses as suas montanhas!

0 Mar e as Montanhas

Quem vai para as montanhas, volta para a sua mãe. Tinham atravessado os Siwaliks e o semitropical Doon, deixado Mussoorie atrás deles e seguido para norte, pelas estreitas estradas de montanha. Dia após dia, penetravam mais profundamente nas montanhas sobrepostas e, dia após dia, Kim via o lama regressar à força de um homem. No meio dos socalcos do Doon apoiara-se no ombro do rapaz, pronto para aproveitar as pa~ ragens à beira da estrada. No princípio da grande ladeira para Mussoorie, lanÇou-se como um velho caçador ao encarar uma paisagem bem conhecida e, onde outros teriam caído exaustos, suspendeu as longas roupagens à sua volta, inspirou uma profunda lufada dupla de ar puro e caminhou COMO só um montanhês consegue. Kim, criado e alimentado nas planícics, suava e arfava, assombrado.

- Esta é a minha terra - disse o lama. - Ao pé de Such~zen, isto é mais plano que um campo de arroz - e, com regulares golpes de rins imPulsionadores, ia trepando. Mas era nas abruptas caminhadas pelas enCostas, um quilómetro em três horas, que ele se afastava extremamente de KinI, cujas costas doíam com o esforço e cujo dedo grande do pé estava quase cortado pela tira da sandália de bambu. Através das manchas de Sombra das grandes florestas de cedros do

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Himalaia; pelo meio de carvalhos forrados e ornamentados de fetos; vidoeiros, azinheiras, rododendros e pinheiros, até à escorregadia erva queimada do Sol, nas desprotegidas encostas, e de volta outra vez à frescura dos bosques, até o carvalho dar lugar ao bambu e à palmeira do vale, o lama caminhava incansável.

Virando-se para trás ao crepúsculo e contemplando as enormes cumeeiras atrás dele e a ténue e fina linha da estrada por onde tinham vin~ do, planeava, com a generosa largueza de vista de um montanhês, novas marchas para o dia seguinte; ou, parando à entrada de um desfiladeiro elevado, abrindo para Spiti e Kulu, estendia as mãos ansiosamente, na direcção das altas neves do horizonte. De madrugada, resplandeciam no vermelho ventoso, sobre o azul forte, quando do Kedamath e Badrinath reis daquela imensidade - recebiam a primeira luz do Sol. Durante todo o dia permaneciam como prata, derretida ao Sol e à noite punham de novo as suas jóias. A princípio, bons ventos sopravam temperadamente sobre os viajantes, agradáveis de sentir quando se caminha lentamente por uma gigantesca ondulação da linha de cuine; mas, ao fim de uns dias, a uma altura de dois mil e oitocentos ou três mil metros, essas brisas cortam; e Kim, amavelmente, permitiu que uma aldeia de montanheses adquirisse mérito ao dar-lhe um rude casaco para se cobrir lama ficou moderadamente surpreendido por alguém poder protestar contra as brisas cortantes que lhe tinham tirado anos de cima dos ombros.

- Estas são apenas as montanhas mais baixas, chela. Não há frio até chegarmos às verdadeiras montanhas.

- 0 ar e a água são bons e as pessoas são suficientemente devotas, mas a comida é muito má - resmungou Kini -, e nós caminhamos como se fôssemos loucos... ou ingleses. É um gelo à noite, também.

- Um pouco, talvez; mas apenas o suficiente para depois fazer deliciar os velhos ossos ao sol. Não podemos deleitar-nos sempre com camas macias e comida rica.

- Podíamos, ao menos, manter~nos na estrada.

Kim tinha um afecto de pessoa da planície pelo caminho bem batido, com menos de dois metros de largura, que serpenteava entre as montanhas; mas o lama, sendo tibetano, não conseguia privar-se: de atalhos Pelos picos e rebordos das vertentes cobertas de cascalho. COMO explicou ao seu trõpego discípulo, um homem criado entre montanhas consegue prever o curso de uma estrada de montanha e, embora as nuvens baixas Pudessem ser um obstáculo para um estranho que quisesse ir por um atalho, não fazem a mínima diferença a um homem

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previdente. Assim, depois do que seria considerado nos países civilizados como um agradável exercício de montanhismo, arfaram ao longo de uma depressão, escaparam a uns

ffim

desmoronamentos e desceram pela floresta, fazendo um àngulo de quarenta e cinco graus e voltando de novo à estrada. Ao longo da vereda ficavam as aldeias do povo das montanhas - cabanas de lama e terra, aqui e ali vigas rudemente esculpidas com um machado - pegando-se como ninhos de andorinha às escarpas, amontoadas em minúsculas plataformas a meio de inclinação de mil metros; comprimidas num canto, entre penhascos que afunilavam e concentravam todas as errantes rajadas de vento; ou, por causa da pastagem de Verão, aninhando-se numa garganta que, no Inverno, ficava coberta por três metros de neve. E as pessoas - as pessoas pálidas, untuosas, vestidas com grossos tecidos de lã, com as curtas pernas descobertas e rostos quase como esquimós - reuniam-se e veneravam. As planícies - bondosas e brandas - tinham tratado o lama como um santo entre santos. Mas as montanhas idolatravam-no como alguém da confiança de todos os seus demónios budismo deles era um budismo quase extinto, sufocado por uma adoração da natureza, tão fantástica como as suas próprias paisagens, tão elaborada como a disposição dos seus pequenos campos; mas reconheceram o grande chapéu, o tilintante rosário e os excelentes textos chineses que davam grande autoridade; e respeitaram o homem sob o chapéu.

- Vimos-te descer pelos negros montes de Eua - disse um betah que lhes deu queijo, leite azedo e pão duro como pedra, uma noite. - Não utilizamos muito esse caminho, excepto quando as vacas parideiras se perdem no Verão. Há um súbito vento entre essas pedras, que deita os homens abaixo no mais calmo dia. Ninguém liga ao Diabo de Eua!

Foi então que Kini, com dores no corpo todo, tonto de olhar para baixO, com os pés doridos das cãibras por meter os dedos em fendas inesperadas, se alegrou com a caminhada do dia - tanta alegria como a que te~ ria um rapaz de São Xavier que tivesse ganho a corrida dos quatrocentos inetros, ao receber os elogios dos seus amigos. As montanhas faziam-no suar e fortaleciam bastante os seus ossos; o ar seco, apanhado constanteMente nos desfiladeiros cruéis, firmava e desenvolvia as suas costelas suPeriores; e os planos inclinados punham novos e rijos músculos na perna e coxa.

Frequentemente meditavam sobre a Roda da Vida - ainda mais des~ de que, corno disse o lama, se libertaram das suas tentações visíveis. ExCePtuandO a águia cinzenta e um urso ocasional visto ao longe, escavando e fossando na encosta, uma visão de um pintalgado leopardo furioso encontrado ao amanhecer num silencioso vale devorando uma cabra e, de

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vez em quando, um pássaro de cores brilhantes, estavam sós, com os ven- tos e a erva cantando aos ventos. As mulheres das cabanas fumegantes, sobre cujos telhados caminhavam os dois peregrinos quando desciani as montanhas, eram feias e sujas, esposas de muitos maridos e atormentadas com bócio. Os homens eram cortadores de madeira, quando não erarn Iavradores - dóceis e de uma incrível simplicidade. Mas aquele apropriado discurso não podia falhar, o destino mandou~lhe, surpreendendo e sendo surpreendido na estrada, o cortês médico de Dacca, que pagava a sua comida com pomadas boas para o bócio e conselhos que restauravan, a paz entre homens e mulheres. Parecia conhecer estas montanhas tão bem como conhecia os seus dialectos e deu ao lama a posição da terra em relação a Ladakh e ao Tibete. Disse que eles podiam regressar às planícies em qualquer momento. Entretanto, para quem gostasse das montanhas, aquela estrada podia divertir. isto não foi tudo revelado de um fôlego, mas ao longo dos encontros nocturnos nas eiras de pedra, quando, com os pacientes dispostos em volta, o médico fumava e o lama tomava rapé, enquanto Kim observava as pequenas vacas pastando nos terraços, ou lançando o olho e a alma para os profundos abismos azuis entre cordilheiras. E havia conversas à parte nos bosques escuros, quando o médico procurava ervas e Kim, como principiante, tinha de o acompanhar.

- Percebes, O'Hara, não sei que diabo farei quando encontrar os nossos amigos brincalhões; mas, se tu amavelmente te mantiveres à vista do meu chapéu de sol, que é um óptimo ponto fixo para a pesquisa cadastral, sentir-me~ei muito melhor.

Kim relanceou o olhar pela selva de cumes.

- Este não é o meu país, hahirn. É mais fácil, penso eu, descobrir um piolho numa pele de urso.

- Ah, esses são os meus pontos fortes. Não há pressa para Hurree. Eles estavam em Lch não há muito tempo. Disseram que tinham vindo de edo que tenham Karalwrum com os troféus e cornetas e tudo. Só tenho m

mandado de Lch todas as suas cartas e coisas comprometedoras de volta para o território russo. Claro que eles se- afastarão o mais possível para leste... só para mostrar que nunca estiveram entre os estados ocidentais. Não conheces as montanhas? - Esgravatou com um galho na terra. - Olhal Eles devem ter entrado por Srinagar ou Abbottabad. Esse é o seu atalho, rio abaixo, por Bunji e Astor. Mas eles lançaram a discórdia no oeste. por isso - desenhou um sulco da esquerda para a direita - afastam-se cada vez mais para leste, para Lch (ah! está frio aqui) e, descendo os Indus até

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. para Bushahr e Han-lé (conheço essa estrada) e depois para baixo, vês, r vale de Chini. isso verifica-se pelo processo de eliminação e tarnbér" Po

Kim

pegtintas feitas a pessoas que eu curei muito bem. Os nossos amigos têm estado, há riluito tempo, a fingir e a tentar impressionar. Como tal, são bem conhecidos, mesmo em locais longínquos. Ver-me-ás caçá~los algures no vale.de Chini. Por favor, mantém-te de olho no chapéu de sol.

va-se como uma campainha soprada pelo vento, descendo Este agita

aos vales ' à volta dos flancos das montanhas e, na altura própria, o lama e Kini, que se guiava por uma bússola, alcançaram~no, vendendo pomadas e pós ao cair da noite.

-Viemos por tal e tal caminho!

o lama apontou para trás com um dedo descuidado, para as cumeeiras, e o chapéu de sol desfez-se em saudações.

Atravessavam um desfiladeiro cheio de neve à luz fria da Lua, quando o lama, arreliando Kini ligeiramente, penetrou nele de joelhos, como um camelo do tipo dos que entram no serai de Caxemira - criados de neve, com o pêlo emaranhado. Atravessaram camadas de neve fofa e de argila salpicada de neve, onde se refugiaram de um temporal, num acampa~ mento de tibetanos que conduziam apressadamente pequenos carneiros, cada um carregado com um saco de bórax. Saíram de lá cheios de erva, ainda salpicados de neve e entraram na floresta, de novo na erva. Kedar~ nath e Badrinath não ficaram impressionados com todas as suas caminhadas; e foi só ao fim de dias de viagem que Kim, empoleirado num insignificante cabeço de três metros, conseguiu ver que o perfil do ombro ou cometa dos dois grandes senhores - sempre tão leve - mudara o seu contorno.

Por fim, entraram num mundo dentro do mundo - um vale enorme, rodeado de altas colinas feitas de simples cascalho e isolado dos picos em ângulo das montanhas. Aqui, um dia de marcha não os levava mais lon~ ge, parecia, do que o passo abafado de um sonhador num pesadelo. Contornaram dolorosamente uma saliência, durante horas e, afinal, era apenas uma

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saliência isolada num isolado contraforte do amontoado Principal. Um prado arredondado revelou-se, quando o atingiram, num vasto planalto correndo até ao vale. Três dias mais tarde, surgiu uma súbita ondulação na terra, na direcção sul.

- Decerto os deuses vivem aqui! - exclamou Kini, derrotado pelo sihcio, e pelo terrível movimento e dispersão das sombras das nuvens dePois da chuva. - Isto não é lugar para homens!

- Há muito, muito tempo - disse o lama, como para si próprio Perguntaram ao Senhor se o mundo era eterno. A isto, o Excelente não deu resposta... Quando eu estive em Ceilão, um sábio pesquisador con- firmou isto a partir do Evangelho que está escrito em páli. Obviament, desde que conhecemos o caminho para a liberdade, a Pergunta era inútil mas... olha, e conhece a ilusão, chela! Estas são as verdadeiras montanhas. São como as minhas montanhas junto de Such-zen. Nunca houve tais montanhas!

Acima deles, ainda enormemente acima deles, a terra elevava-se a grande altitude na direcção da linha da neve, onde, de leste a oeste, ao longo de centenas de quilómetros, dirigidos como por um soberano, ficavam os úl_ timos vigorosos vidoeiros. Acima deles, em escarpas e blocos suspensos, as rochas empenhavam~se numa luta de cabeças, por cima do nevoeiro branco. Ainda acima destas, imutável desde o início do mundo, mas mudando em cada alteração da disposição de sol e nuvem, situava-se a neve eterna. Podiam ver manchas e névoas na sua superfície, nos pontos em que a tempestade e o errante- wullíe-wa se elevavam para dançar. Abaixo deles, de onde estavam, estendia-se a floresta, num lençol de azul e verde, quilómetro após quilómetro; por baixo da floresta havia uma aldeia salpicada de campos em socalcos e escarpados terrenos de pastagem. Por baixo da aldeia que eles conheciam, embora naquele momento uma tempestade ali importunasse e rugisse, uma inclinação de três mil e quinhentos ou quatro mil metros dava para o húmido vale onde se juntam as torrentes que são as mãos dó jovem Suthij.

Como era habitual, o lama conduzira Kini por caminhos de cabras e atalhos, longe do itinerário principal, ao longo do qual o babu Hurree, esse "homem temeroso", lutara três dias antes contra uma tempestade a que nove em cada dez ingleses teriam cedido completamente o seu direito de passagem. Hurree não era nenhum atirador profissional - o ruído de um gatilho fazia-o mudar de cor - mas, como ele próprio teria dito, era um "caçador razoavelmente eficiente" e esquadrinhara o enorme vale com um par de binóculos reles, com algum objectivo . Além do mais, o branco das tendas de lona gasta contra o verde vê-se ao longe babu Hurree vira

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_ Ziglaur, afastada trinta tudo o que queria ver quando se sentou na eira de

e dois quilómetros em linha recta e sessenta e quatro pela estrada - que é o mesmo que dizer, dois pequenos pontos que um dia estavam mesnIo por baixo da linha de neve e, no seguinte, se tinham movido para baixo,

e prontorpprara talvez quinze centímetros, na encosta. Uma vez arr

aqnujaadnotidade su cero trabalho, as suas gordas pernas nuas cobriam uma óleodente de terreno e esta era a razão até que a tempestade passasse, uni

so, molhado, mas sempre sorridente bengali, falando o melhor inglês con, as mais indignas expressões, se insinuava no meio de dois encharcados e

Kim

bastante reumáticos estrangeiros. Chegara, às voltas com muitos e imprudentes ardis, a seguir a uma tempestade que derrubara um pinheiro à frente do acampamento deles e convenceu tão bem uma dúzia ou duas de coo~ líes das bagagens, violentamente impressionados, de que o dia era pouco auspicioso para seguir viagem, que, unanimemente, eles largaram as suas CargaS e recusaram continuar. Eram súbditos de um rajá montanhês que arrendava os seus serviços, como era costume, em proveito proprio; e, para juntar às suas angústias pessoais, os sahibs estrangeiros já os tinham arneaçado com espingardas. A maioria deles conhecia espingardas e sa~ híbs de há muito: eram batedores e shikarris dos vales nortenhos, rápidos na perseguição a ursos e cabras selvagens; mas nunca tinham sido trata~ dos assim nas suas vidas. A floresta acolhera-os no seu coraçao e, por todas as pragas e gritos, recusavam-se a recomeçar. Não era necessário simular loucura - o babu pensara noutra maneira de assegurar um bom acolhimento. Torceu as roupas molhadas, calçou os sapatos de verniz, abriu o chapéu azul e branco e, com porte afectado e o coração na boca, apresentou-se como "agente de Sua Alteza Real, o Rajá de Rampur, senhores. Em que posso servi~los?"

Os "senhores" ficaram encantados. Um era visivelmente francês, o outro russo, mas falava um inglês não muito inferior ao do babu. imploravam os seus amaveis serviços. Os seus criados nativos tinham adoecido em Leli. Tinham-se apressado porque estavam ansiosos por trazer os despojos da caça para Sinila, antes que as peles fossem comidas pelas traças. Mostraram uma carta geral de apresentação (o babu saudou-a reverentemente, à maneira oriental), dirigida a

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todos os oficiais do governo, Não, não tinham encontrado mais nenhuma partida de caça en route. Desembaraçavam-se sozinhos. Tinham muitos mantimentos. Apenas desejavam pôr-se a caminho o mais depressa que pudessem. A isto, ele chamou à parte uni montanhês agachado entre as árvores e, ao fim de três minutos de Conversa e de algum dinheiro (não se pode ser económico em serviço de estado, embora o coração de Hurree sangrasse com o desperdício), os Onze coolies e os três sequazes reapareceram. Pelo menos, o babu seria test'munha da Opressão deles,

as são - 0 meu mestre real ficará muito aborrecido, mas estas pesso rias tic,fineri ente ignorantes. Se vossas senho

VaPcreenrasapaersnsaobaislivii d aidgea re sharsosolhos a um incidente lamentável, eu ficarci muito satisfeito. Daqui a pouco a chuva parará e poderemos então Prosseguir. Têm andado à caça, hem? É uma bela proeza!

Saltitava agilmente de um hilta para o seguinte, fingindo ajustar cada um dos cestos cónicos inglês não está, regra geral, familiarizado com o asiático, mas não daria um golpe de pulso a um amável babu que, acideritalmente, derrubara um hilta com uma cobertura de oleado vermelho Por outro lado, não pressionaria um babu a beber, se ele não fosse tão amigável, nem o convidaria para comer carne. Os estrangeiros fizeram todas estas coisas e fizeram muitas perguntas - especialmente sobre mulheres

às quais Hurree devolvia alegres e espontãneas respostas. Deram-lhe um copo de um líquido esbranquiçado, parecido com gim e, depois, mais; e, em pouco tempo, a sua gravidade foi-se. Tornou-se bastante pérfido e falou, em termos de completa indecência, de um governo que o forçara a uma educação de homem branco e negligenciara o fornecimento de um salário de branco. Balbuciou algumas histórias de opressão e mal até as lágrimas lhe caírem pelas bochechas, pelas misérias da sua terra. Depois cambaleou, cantando cantigas de amor da Baixa Bengala e sucumbiu, junto ao tronco molhado de uma árvore. Nunca um infeliz produto da dominação inglesa na índia impusera tão tristemente a sua presença a estrangeiros.

- São todos precisamente desse padrão - disse um dos caçadores para o outro em francês. - Quando chegarmos à índia propriamente dita, verás. Gostaria de visitar o rajá dele. Podia falar-se ali da boa-nova. É possível que ele tenha ouvido falar de nós e deseje exprimir a sua boa vontade.

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- Não temos tempo. Temos de chegar a Sinila o mais depressa possível - replicou o companheiro. - No que me diz respeito, espero que os nossos relatórios tenham sido mandados de Hilás, ou até de Leli.

- 0 correio inglês é melhor e mais seguro. Lembra-te de que temos todas as vantagens... e, Nome de Deus!... eles deram-nas a nós! Será isto uma inacreditável imbecilidade?

- É orgulho - orgulho que merece e receberá castigo.

- Sim. Combater um companheiro continental no nosso jogo é soberbo. Há um risco implícito, mas esta gente... bah! É demasiado fácil. - Orgulho, tudo orgulho, meu amigo.

- Agora, que diabo de vantagem há em Chandernagore ser tão Perto de Calcutá e tudo - disse Hurree, ressonando de boca aberta no musgo encharcado -, se eu não consigo compreender o francês deles? Falam tão particularmente depressa! Teria sido muito melhor cortar as suas desagradáveis goelas. r unia dor de Quando se apresentou outra vez, estava atormentado po

cabeça - arrependido e loquazmente receoso de que, na sua erribriaguez'

Kim

pudesse ter sido indiscreto. Gostava do governo britãnico - ele era a fonte de toda a prosperidade e honra e o seu mestre, em Rampur, sustentava precisamente a mesma opinião. A propósito disto, os homens começaram a ridicularizá-lo e a citar anteriores palavras suas, até que, passo a passo, com sorrisos depreciativos, risos untuosos e olhares irónicos de infinita astúcia, o pobre babu foi privado das suas defesas e forçado a falar... ver~ dade. Quando, mais tarde, contaram a história ao senhor Lurgan, ele Iamentou em voz alta não poder ter estado no lugar dos teimosos e distraídos coolies, que, com capachos de erva nas cabeças e as gotas de chuva a chapinhar nas suas pegadas, aguardavam o bom tempo. Todos os sahibs do conhecimento deles - homens rudemente vestidos, regressando ale~ gremente aos barrancos escolhidos, ano após ano - tinham criados e cozinheiros e ordenanças, muitas vezes montanheses. Estes sahibs viajavam sem acompanhamento. Por conseguinte, eram sahibs pobres e ignorantes, pois nenhum sahib no seu juizo perfeito seguiria o conselho de um ben~ gali, Mas o bengali, aparecendo não se sabia de onde, dera~lhes dinheiro e entendia-se com o dialecto deles. Habituados a um compreensivo mau trato, mesmo da sua própria cor,

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suspeitavam de uma armadilha em qualquer sítio e mantiveram~se alerta para fugir, se a ocasião surgisse.

Depois, através do ar lavado de novo, exalando os deliciosos cheiros da terra, o babu indicou o caminho pelas vertentes abaixo - caminhan~ do à frente dos coolies com orgulho; caminhando atrás dos estrangeiros com humildade. Os seus pensamentos eram muitos e variados e mesmo os mais insignificantes teriam interessado os seus companheiros para lá das palavras. Mas ele era um guia agradável, sempre entusiasta a chamar a atenção para as belezas dos domínios do seu mestre real. Ele povoava as montanhas com tudo o que eles estivessem decididos a matar - thar, íbex OU cabra selvagem e urso, com a permissão de Elislia. Discursava sobre botânica e etnologia com indiscutível falta de rigor e o seu armazém de lendas locais - fora um fiel agente do estado durante quinze anos, lembram-se - era inesgotável.

- Decididamente, este fulano é um excêntrico - disse o mais alto dos dois estrangeiros. - É como o pesadelo de um mensageiro vienense.

- Ele retratava em pequeno a índia em transição... o monstruoso hibridisnio, do Leste e do Ocidente - replicou o russo. - Somos nós que Podernos negociar com os orientais.

ri, -]le Perdeu a sua terra e não adquiriu outra. Mas tem .um ódio de 'rtC aos seus conquistadores. Escuta. Ele confiou-me, a noite passada... -disse o outro. RUdyard,KíP1g

Debaixo do chapéu de sol às riscas, o babu Hurree esticava orelhas e cérebro para seguir o rápido francês e mantinha ambos os olhos num hilta cheio de mapas e documentos - um muito grande, com uma cobertu~ ra dupla de oleado vermelho. Não desejava roubar nada. Desejava apenas saber o que roubar e, eventualmente, como fugir depois de o ter roubado. Agradecia a todos os deuses do Indostão e a Herbert Spencer que lá restassem alguns valiosos para roubar.

No segundo dia, a estrada elevou-se ingrememente até um pico cheio de erva, por cima da floresta; e foi aqui, pelo pôr do Sol, que eles encontraram por acaso um lama idoso - mas chamaram~lhe bonzo - sentado de pernas cruzadas em cima de um gráfico misterioso, seguro com pedras, que explicava a um jovem, evidentemente principiante, de singular beleza, embora sujo chapéu e sol às riscas fora avistado a meio do percur~ so e Kim. sugerira uma paragem, até ele chegar junto deles.

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- Ah! - disse o babu Hurree, desembaraçado como o Gato-das-Botas. - E um eminente santo local. Provavelmente súbdito do meu mestre real.

- Que está ele a fazer? É muito curioso.

- Está a interpretar um desenho sagrado... todo feito à mão.

Os dois homens permaneceram de cabeça descoberta no dourado da luz do sol baixo, reflectido na erva cor de ouro. Os carrancudos coolies, contentes com a pausa, pararam e arriaram as cargas.

- Olha - exclamou o francês. - É como a imagem do nascimento de uma religião... o primeiro mestre e o primeiro discípulo. Ele é budista? - De um género adulterado - respondeu o outro. - Não há verda-

deiros budistas nas montanhas. Mas olha para as pregas das suas vestes. Olha para os seus olhos, como são insolentes! Por que é que isto nos faz sentir que somos um povo tão jovem? - 0 orador batia apaixonadamente numas altas ervas daninhas. - Ainda não deixámos o nosso símbolo em lado nenhum. Em lado nenhum! É isso, percebes, que me inquieta. Lançou um olhar mal-humorado ao rosto plácido e à monumental calmada sua atitude.

- Tem paciência. Colocaremos juntos o teu símbolo... nós e vós, gente jovem. Entretanto, obtém o desenho dele.

0 babu avançou majestosamente as costas totalmente em desacordo com o deferente discurso, ou com o piscar de olhos na direcção de Kim. - Santo, estes são sahibs. Os meus remédios curaram um de uma di-

senteria e eu vou para Sirala para vigiar a sua convalescença. Eles desejam ver o teu desenho...

ffim

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- Curar os doentes é sempre bom. Isto é a roda da Vida - disse o lama -, a mesma que te mostrei na cabana de Ziglaur quando caía a chuva.

- E ouvir-te explicá-lo.

Os olhos do lama iluminaram-se ante a perspectiva de novos ouvvn - Eles têm algum conhecimento de hindi, como tinha o conser ia dteosr. das Imagens?

- Um pouco, talvez.

Nisto, simplesmente como uma criança absorta num jogo novo, o lama atirou a cabeça para trás e começou a invocação gutural do Doutor da Divindade antes de iniciar a doutrina completa. Os estrangeiros apoiavam-se nos seus paus ferrados e ouviam. Kim, humildemente acocorado, observava a luz avermelhada do sol nos seus rostos e a mistura e bifurcação das suas longas sombras, Usavam polainas não inglesas e curiosos cintos, que lhe faziam lembrar vagamente as imagens de um livro da biblioteca de São Xavier: As Aventuras de Umjovem Naturalísta no México era o seu nome. Sim, pareciam-se muito com o maravilhoso M. Sumichrast dessa história e pouco com as "pessoas muito Pouco escrupulosas" da imaginação do babu Hurree. Os coolies, da cor da terra e mudos, estavam reverentemente inclinados a uns vinte ou trinta metros e o babu, com a moleza do seu fino adorno estalando como uma bandeira de sinalização na brisa glacial, estava atento, com um feliz ar de posse.

- Estes são os homens - sussurrou Hurree, enquanto o ritual continuava e os dois brancos seguiam o trajecto pelas folhas, do Inferno até ao Céu e da volta ao Inferno. - Todos os livros deles estão no Uta grande, que tem a cobertura vermelha... livros e relatórios e mapas... e eu vi a carta de um rei, escrita por Hilás, ou por Bunár. Guardam-na com muito cuidado. Não enviaram nada de Hilás, nem de Leh. Isso é certo.

- Quem está com eles?

- Só os pobres coolies. Eles não têm criados. São tão porcos que cozinham eles próprios a sua comida.

- Mas que devo fazer?

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- Espera, para ver. Só se me aparecer alguma oportunidade é que tu saberás onde procurar os papéis.

- Isto estava melhor nas mãos do Mahbub Ali que nas de um bengali - disse Kim, desdenhosamente.

- Não é com vinagre que se apanham moscas.

- Vede aqui o Inferno designado para a avareza e cobiça. Acompanhado de um lado pelo Desejo e do outro pelo Tédio. - 0 lama entu- Rudyard Kipling

Debaixo do chapéu de sol às riscas, o babu Hurree esticava orelhas e cérebro para seguir o rápido francês e mantinha ambos os olhos num hilta cheio de mapas e documentos - um muito grande, com uma cobertura dupla de oleado vermelho. Não desejava roubar nada. Desejava apenas saber o que roubar e, eventualmente, como fugir depois de o ter roubado. Agradecia a todos os deuses do Indostão e a Herbert Spencer que lá res~ tassem alguns valiosos para roubar.

No segundo dia, a estrada elevou~se ingrememente até um pico cheio de erva, por cima da floresta; e foi aqui, pelo pôr do Sol, que eles encontraram por acaso um lama idoso - mas chamaram-lhe bonzo - sentado de pernas cruzadas em cima de um gráfico misterioso, seguro com pedras, que explicava a um jovem, evidentemente principiante, de singular beleza, embora sujo chapéu e sol às riscas fora avistado a meio do percur~ so e Kim sugerira uma paragem, até ele chegarjunto deles.

- Ah! - disse o babu Hurree, desembaraçado como o Gato-das~Bo~ tas. - E um eminente santo local. Provavelmente súbdito do meu mestre real.

- Que está ele a fazer? É muito curioso.

- Está a interpretar um desenho sagrado... todo feito à mão.

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Os dois homens permaneceram de cabeça descoberta no dourado da luz do sol baixo, reflectido na erva cor de ouro. Os carrancudos coolies, contentes com a pausa, pararam e arriaram as cargas.

- Olha - exclamou o francês. - É como a imagem do nascimento de uma religião... o primeiro mestre e o primeiro discípulo. Ele é budista? - De um gênero adulterado - respondeu o outro. - Não há verda-

deiros budistas nas montanhas. Mas olha para as pregas das suas vestes. Olha para os seus olhos, como são insolentes! Por que é que isto nos faz sentir que somos um povo tão jovem? - 0 orador batia apaixonadamente numas altas ervas daninhas. - Ainda não deixámos o nosso símbolo em lado nenhum. Em lado nenhum! É isso, percebes, que me inquieta. Lançou um olhar mal-humorado ao rosto plácido e à monumental cal~ mada sua atitude.

-Tem paciência. Colocaremos j .untos o teu símbolo... nós e vós, gente jovem. Entretanto, obtém o desenho dele.

0 babu avançou majestosamente as costas totalmente em desacordo com o deferente discurso, ou com o piscar de olhos na direcção de Kim. - Santo, estes são sahibs. Os meus remédios curaram um de uma di-

senteria e eu vou para Simla para vigiar a sua convalescença. Eles desejam ver o teu desenho...

Kim

- Curar os doentes é sempre bom. Isto é a roda da Vida - disse o lama -, a mesma que te mostrei na cabana de Ziglaur, quando caía a chuva.

- E ouvir-te explicá-lo.

Os olhos do lama iluminaram-se ante a perspectiva de novos ouvintes. - Eles têm algum conhecimento de hindi, como tinha o conservador das Imagens?

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- Um pouco, talvez.

Nisto, simplesmente como uma criança absorta num jogo novo, o lama atirou a cabeça para trás e começou a invocação gutural do Doutor da Divindade antes de iniciar a doutrina completa. Os estrangeiros apoiavam~se nos seus paus ferrados e ouviam. Kim, humildemente acocorado, observava a luz avermelhada do sol nos seus rostos e a mistura e bifurcação das suas longas sombras. Usavam polainas não inglesas e curiosos cintos, que lhe faziam lembrar vagamente as imagens de um livro da biblioteca de São Xavier: As Aventuras de UrnJOvem Naturalista no México era o seu nome. Sim, pareciam-se muito com o maravilhoso M. Sumichrast dessa história e pouco com as "pessoas muito pouco escrupulosas" da imaginação do babu Hurree. Os coolies, da cor da terra e mudos, estavam reverentemente inclinados a uns vinte ou trinta metros e o babu, com a moleza do seu fino adorno estalando como uma bandeira de sinalização na brisa glacial, estava atento, com um feliz ar de posse.

- Estes são os homens - sussurrou Hurree, enquanto o ritual continuava e os dois brancos seguiam o trajecto pelas folhas, do Inferno até ao Céu e da volta ao Inferno. - Todos os livros deles estão no hilta grande, que tem a cobertura vermelha... livros e relatórios e mapas... e eu vi a carta de um rei, escrita por Hilás, ou por Bunár. Guardam-na com muito cuidado. Não enviaram nada de Hilás, nem de Leh. Isso é certo.

- Quem está com eles?

- Só os pobres coolies. Eles não têm criados. São tão porcos que cozinham eles próprios a sua comida.

- Mas que devo fazer?

- Espera, para ver. Só se me aparecer alguma oportunidade é que tu saberás onde procurar os papéis.

- Isto estava melhor nas mãos do Mahbub Ali que nas de um bengali - disse Kim, desdenhosamente.

- Não é com vinagre que se apanham moscas.

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- Vede aqui o Inferno designado para a avareza e cobiça. Acompanhado de um lado pelo Desejo e do outro pelo Tédio. - 0 lama entu- siasmava~se com o seu trabalho e um dos estrangeiros fazia o seu esboço o à luz que esmorecia rapidamente.

- Chega - disse por fim o homem, bruscamente. - Não o compreendo, mas quero aquele desenho. Ele é melhor artista do que eu. Pergunta-lhe se o vende.

- Ele diz "Não, sar" - replicou o babu.

0 lama, claro, não teria cedido o gráfico a um viajante acidental, tal al como um arcebispo não empenharia os cálices sagrados da catedral. Todo jo o Tibete está cheio de reproduções baratas da Roda; mas o lama era um ar- irtista, assim como um abastado abade na sua própria terra.

- Talvez daqui a três dias, ou quatro, ou dez, se eu vir que o sahib é b é um pesquisador e de boa compreensão, possa desenhar-lhe outro. Mas tas este foi usado para a iniciação de um noviço. Diz-lhe isto, hakini.

- Ele deseja~o agora... em troca de dinheiro.

0 lama abanou a cabeça lentamente e começou a dobrar a Roda russo, por seu lado, não via mais do que um velho sujo, discutindo um um pedaço de papel porco. Fez aparecer uma mão~cheia de rupias e tentou Lou arrebatar o gráfico, que se rasgou na mão do lama. Um baixo murmúrio 'rio de horror elevou-se no meio dos coolies - alguns dos quais eram homens ens de Spiti e, pelas suas capacidades, bons budistas lama ergueu-se, ao in- insulto; a sua mão dirigiu-se à pesada caixa de ferro das canetas, que é a armamia do padre, e o babu agitou-se, em agonia.

- Agora vês... vês porque é que eu queria testemunhas. Eles são pes-Pcssoas muito pouco escrupulosas. Oli, sar! Sar! Não pode bater num santo! rito! - Chela! Ele profanou a Palavra Escrita!

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Era tarde de mais. Antes que Kim o pudesse desviar, o russo atingiu o,u o ancião em cheio na face. No instante seguinte, rolava sem parar pela en- encosta abaixo, com Kini agarrado à garganta soco acordara todos os des_des~ conhecidos demónios irlandeses no sangue do rapaz e a súbita queda do.a do seu inimigo fez o resto lama caiu de joelhos, meio atordoado; os coo- Coolies, com as suas cargas, fugiram montanha acima, tão depressa como os10.05

plana. Tinham presenciado in- o in

Kim

homens da planície correm por uma área

descritível sacrilégio e isso levou-os a fugir, antes que os deuses e demo- znlómos das montanhas se vingassem francês correu para o lama, procu- oCurando o seu revólver, com uma vaga ideia de o fazer refém, pelo seu ) seu

têra companheiro. Uma chuva de pedras cortantes - os montanheses tern

muita pontaria - afastou-o e um dos coolies, de Ao-chung, deitou a mac L nião ao lama, na debandada. Tudo aconteceu tão depressa como a súbita escu- escuridão das montanhas.

- Eles levaram a bagagem e todas as armas - gritou o francês, disparando às cegas, ao crepúsculo.

Está bem, sar! Está bem! Não dispare. Eu vou ajudar - e o babu, descendo pesadamente a encosta, lançou-se sobre o encantado e surpreendido Kini, que batia com a cabeça esbaforida do seu adversário contra uni pedregulho.

- volta para o pé dos coolies - sussurrou o babu ao ouvido dele. Eles téra a bagagem. Os papéis estão no hilta com a cobertura vermelha, nias vasculha tudo. Apanha-lhes os papéis e especialmente a murasla [carta do rei] . Vai! Vem aí outro homem!

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Kim rompeu encosta acima. Uma bala bateu numa rocha ao seu lado e ele aninhou-se à maneira da perdiz.

- Se dispara - gritou Hurrec - eles descerão e aniquilar~nos-ão. Eu salvei o cavalheiro, sar. isto é particularmente perigoso.

- Caramba! - Kini pensava em inglês, com dificuldade. - Isto é uma situação apertada, mas eu penso que é autodefesa. - Tacteou no pei~ to à procura do presente de Malibub e, com pouca firmeza, exceptuando uns poucos tiros de treino no deserto de Bikaffir, nunca utilizara a pequena arma... carregou no gatilho.

- Que disse eu, sarl - 0 babu parecia estar em lágrimas. - Vinde cá abaixo ajudar no regresso à vida. Estamos todos em apuros, digo-vos eu. Os tiros cessaram. Ouviu~se um som de pés aos tropeções e Kini apres-

sou-se a subir na escuridão, praguejando como um gato - ou um educado no campo.

- Feriram-te, chela? - gritou o lama por cima dele.

- Não. E a ti? - Mergulhou num maciço de abetos raquíticos.

- Ileso. Vem daí. Vamos com esta gente para Shamlegh-sob-a-Neve. - Mas não antes de termos feito justiça - gritou uma voz. - Tenho as armas dos sahibs... as quatro. Vamos lá abaixo.

- Ele atacou o Santo, nós vimos! 0 nosso gado ficará estéril... as nossas inulheres deixarão de dar à luz. As neves desabarão sobre nós quando fOrnios para casa... Em cima de toda a outra opressão, também!

0 pequeno maciço de abetos encheu-se de ruidosos coolies atacados Pelo pânico e, no seu terror, capazes de tudo homem de Ao~chung fez estalar a Culatra da sua arma com impaciencia e fez menção de descer a criCosta.

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vol- Espera um pouco, Santo; eles não podem ir longe. Espera até eu t-1r - disse ele.

- Esta pessoa é que sofreu o mal - disse o lama, com a mão na testa. - Precisamente por-y cssc motivo - foi a resposta.

- Se esta pessoa sol=reviver, as tuas mãos ficam limpas. Além do mais, ad quiris mérito pela obe, ediéncia.

- Espera e iremos t --odos juntos para Sharrilegli - insistiu o homem. Por um momento, s só o suficiente para meter um cartucho numa esPhigarda, o lama hesitc)-()u. Depois ergueu-se e pós um dedo no ombro do hcrnem.

- ouviste? Eu digc o que não haverá mortes... eu, que fui abade de SUch-zeri. Tens algum d Jesejo de renascer sob a forma de uma ratazana, ou ur)ia cobra debaixo da x goteira... um verme na barriga do animal mais ruim? É teu desejo...

0 homem de Ao-ch- --iung caiu de joelhos, pois a voz ressoava como um gOngo demoníaco do T~-ibete.

- Ai! Ai! - gritara--m os homens de Spiti. - Não nos amaldiçoes... não o amaldiçoes. Foi a 3-penas zelo, Santo!... Baixa a espingarda, tolo!

- Cólera sobre có1e_-ra! Mal sobre mal! Não haverá mortes. Deixai ir os qll xe batem em padres, c-- -orno escravos dos seus próprios actos. justa e certa é a Roda, não se de s-,,--iando um milímetro! Eles nascerão muitas vezes... at,)rmentados. - A cal=3eça tombou-lhe e apoiou-se pesadamente no ombl-o de Kim.

- Aproximei-me d -1e um grande mal, chela - murmurou ele naquele Sil êncio de morte, deb aixo dos pinheiros. - Estive tentado a disparar a b.,-la; e, na verdade, no Tibete teria havido uma pesada e lenta morte para eL,s... Ele bateu-me na -face... ria carne... - Deslizou para o chão, respira rido pesadamente, e Kini conseguiu ouvir o acelerado coração bater e P Irar.

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- Eles feriram-no F- até à morte? - perguntou o homem de Ao-chung, eriquanto os outros per rmaneciam mudos.

Kim ajoelhou junto D do corpo com um medo de morte.

- Não - gritou e 1 - le apaixonadamente -, isto é só uma fraqueza. D.epoislembrou~sede que era branco, com acessórios de acampamento dç)s brancos ao seu ser-----viço. - Abram os kiltas! Os sahibs podem ter um 1r-,edicamento.

-Oh!Entãoeuco )nheço-o -disse o homem de Ao-chung com uma g- irgalhada. - Não fui À durante cinco anos shikarri do sahib Yaniding, sem C(-)nhecer esse medicai-:~nento. Eu também o provei. Vejam!

Tirou do peito uma _:i garrafa de uísque barato - como o que é vendido ac,35 exploradores em L LeIn - e inteligentemente introduziu um pouco à fc`rça entre os dentes d Jo lama.

- Foi assim que fiz quando o sahib Yank1ing torceu o pé do outro lado de Astor. Ali! já examinei os cestos deles, mas faremos uma divisão justa em Sharrilegli. Dá-lhe um pouco mais. É um bom remédio, sente! 0 coração dele bate melhor agora. Deita~lhe a cabeça e esfrega-lhe um pouco no peito. Se ele tivesse esperado calmamente enquanto eu ajustava contas com os sahibs, isto nunca teria acontecido. Mas talvez os sahibs consigam caçar-nos aqui. Por isso, não faria mal matá-los com as suas próprias armas, hem?

- Um já está castigado, acho eu - disse Kini entre dentes. - Dei-lhe um pontapé na virilha, quando fomos pela encosta abaixo. Se o tivesse matado!

- É bom ser corajoso quando não se vive em Rampur - disse um ho~ mem cuja choupana ficava a poucos quilómetros do inseguro palácio do rajá. - Se ganharmos mau nome entre os sahibs, ninguém nos tornará a dar trabalho como shikarrís.

- Oli, mas estes sahibs não são ingleses... não são homens de espírito alegre, como o sahíb Fostum ou o sahíb Yank1ing. São estrangeiros... não falam inglês como falam os sahibs.

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Aqui o lama tossiu e sentou-se, procurando às apalpadelas o rosário. - Não haverá mortes - murmurou. -justa é a Roda. Mal sobre mal...

- Não, Santo. Estamos todos aqui, - 0 homem de Ao~chung acariciou os pés dele timidamente. - Excepto por ordem tua, ninguém será morto. Descansa um instante. Faremos um pequeno acampamento aqui e, mais tarde, quando a Lua aparecer, vamos para ShamIegli-sob-a~Neve.

- Depois de uma pancada - disse sentenciosamente um homem de Spiti - o melhor é dormir.

- Há, por assim dizer, uma tontura na minha nuca, uma trilhadela. Deixa-me deitar a cabeça no teu colo, chela. Sou um velho, mas não estou livre da paixão... Temos de pensar na Causa das Coisas.

- Dá~lhe um cobertor. Não nos atrevemos a acender uma fogueira, com receio de que os sahibs vejam.

- É melhor fugirmos para Shamlegh. Ninguém nos seguirá até ShamIegli.

Isto era o nervoso homem de Rampur.

- Fui shikarri do sahib Fostum e sou shikarri do sahib Yank1ing. Devia estar agora com o sahib Yankling se não fosse este amaldiçoado serviço [a corvéel. Deixem dois homens de vigia com as armas, não vão os sahibs fazer mais disparates. Eu não deixarei este Santo. Sentaram-se um pouco afastados do lama e, depois de escutarem por um momento, passaram em volta um cachimbo de água cujo reservatório era um velho frasco de graxa Day and Martin brilho do carvão vermelho, enquanto passava de mão em mão, iluminava os estreitos olhos que piscavam, os salientes malares chineses e as gargantas grossas que se dissipavam nas escuras pregas de tecido grosso à volta dos ombros. Pareciam duendes de alguma mina mágica - gnomos das montanhas em assembleia.

E, enquanto conversavam, as vozes das águas do degelo à sua volta diminuíam uma a uma, à medida que o frio intenso da noite paralisava e obstruía os regatos.

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- Como ele nos resistiu! - disse um homem de Spiti, com admiração. - Lembro~me de um íbex, no caminho para Ladakh, que o sahib Du~ pont deixou fugir, ao falhar um tiro de ombro, há sete estações, enfren~ tando-o precisamente como ele sahib Dupont era um bom shikarri.

- Não tão bom como o sahib Yankling. - 0 homem de Ao~chung deu um trago na garrafa de uísque e passou-a. - Agora ouçam~me... a não ser que algum outro homem pense que sabe mais.

0 desafio não foi aceite.

-Vamos para Shamlegh quando a Lua aparecer. Lá, dividiremos com justiça a bagagem entre nós. Estou satisfeito com esta nova espingardazinha e todos os seus cartuchos.

- Os ursos só são maus na tua terra? - perguntou um companheiro, chupando o seu cachimbo.

- Não, mas as vagens de almíscar valem agora seis rupias cada uma e as tuas mulheres podem ficar com a lona das tendas e alguns dos apetrechos de cozinha. Faremos tudo isso em Shamlegh antes do alvorecer. De~ pois, seguiremos o nosso caminho lembrando~nos que nunca vimos ou aceitámos trabalho a estes sahibs, que podem, de facto, dizer que lhes roubámos a bagagem.

- Isso está certo para ti, mas que dirá o nosso rajá?

- Quem lhe contará? Esses sahibs, que não podem falar ou conversar, ou o babu, que, para os seus próprios fins, nos deu dinheiro? Dirigirá ele um exército contra nós? Que prova restará? 0 que não precisarmos, atiraremos na estrumeira de Shamlegh, onde nenhum homem pôs ainda os pés.

- Quem está em Shamlegh este Verão? - 0 lugar era apenas um centro de pastagem, com três ou quatro cabanas,

- A mulher de Sharalegli. Ela não tem afeição aos sahibs, como sabe-

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mos. Os outros podem ser contentados com pequenos presentes; C aqui há o suficiente para todos nós. - Deu palmadinhas nos lados bojudos do cesto mais próximo,

- Mas... mas...

- Eu disse que eles não são verdadeiros sahibs. Todas as suas peles e cabeças foram compradas no bazar em Leh. Eu conheço os sinais. Mostrei-os a vós na última marcha.

- É verdade. Foram todas compradas, peles e cabeças. Algumas tinham até traças.

Aquele era um forte argumento e o homem de Ao-chung conhecia os seus companheiros.

- Se o pior acontecer, contarei ao sahib Yankling, que é um homem de espírito alegre e ele rir-se-á. Nós não estamos a fazer mal a nenhuns sahibs que conheçamos. Eles são espancadores de padres. Assustaram-nos. Nós fugimos! Quem sabe onde largámos a bagagem? Pensam que o sahib Yankling permitirá que a polícia do interior ande a vaguear pelas montanhas, perturbando o i ogo dele? É uma grande distância de Simla a Chini e maior ainda de Sharalegli à estrumeira de Shamlegh.

- Seja, mas eu levo o hilta grande cesto com a cobertura vermelha que os próprios sahibs empacotam todas as manhãs.

- Assim se prova - disse habilmente o homem de Shainlegh - que eles não são sahíbs em caso algum. Quem ouviu alguma vez dizer que o sahib Fostum, ou o sahib Yanakling, ou mesmo o pequeno sahib Peel, que fica a pé até tarde na noite, para matar antílopes... repito, quem ouviu alguma vez dizer que estes sahibs foram para as montanhas sem um cozinheiro provinciano e um carregador e... e todo o tipo de gente bem paga, despótica e opressiva atrás? Como podem eles causar problemas? Que há com o Uta?

- Nada, mas está cheio da Palavra Escrita, livros e papeis nos quais escreveram e estranhos instrumentos, como os de culto.

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A estrumeira de Shamlegh acolhê-los-á a todos.

É verdade! Mas e se nós, desse modo, ofendermos os deuses dos sahibs? Não gosto de lidar com a Palavra Escrita dessa maneira. E os ídolos de bronze deles estão para lá da minha compreensão. Não é saque para o simples montanhês.

- 0 ancião ainda dorme. Schiu! Perguntaremos ao chela dele. - o homem de Ao-chung reanimou-se e inchou de orgulho de chefia.

- Temos aqui - sussurrou ele - um hilta cuja natureza não conhecemos, ffim

- Mas eu conheço - disse Kim cautelosamente lama respirava num sono natural, fácil, e Kim estivera a pensar nas últimas palavras de Hurree. Como jogador do Grande Jogo, naquela altura, estava disposto a reverenciar o babu. - É um kilta com uma cobertura vermelha, cheio de coisas maravilhosas, que não é para ser manuseado por tolos.

- Eu disse-o; eu disse-o - gritou o carregador daquele fardo. - pensas que nos trairá?

- Não, se mo derem. Eu consigo retirar-lhe a magia. De outro modo, fará grande mal.

- Um padre fica sempre com a sua parte. - 0 uísque estava a desmoralizar o homem de Ao-chung.

- A mim não me interessa - respondeu Kim, com a esperteza da sua terra-mãe. - Dividam-no entre vós e vejam o que acontece!

- Eu não. Estava só a brincar. Dá a ordem. Há mais do que o suficiente para todos. Partimos de Sharnlegh ao amanhecer.

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Fizeram e refizeram os seus pequenos e simples planos durante mais uma hora, enquanto Kim tremia de frio e de orgulho humor da situação divertia o irlandês e o oriental que havia nele. Aqui estavam os emissários do temido poder do norte, possivelmente tão poderosos na sua terra como Mahbub, ou o coronel Creighton, subitamente atacados e abandonados. Um deles, que ele conhecia particularmente, ficaria aleijado durante uns tempos. Tinham feito promessas a reis. Esta noite estavam deitados algures por debaixo dele, sem mapas, sem comida, sem tendas, sem armas - exceptuando o babu Hurree -, sem guias. E esta derrota do

esta apaGrande jogo (Kim pensou a quem apresentariam eles relatório),

vorada fuga na noite, acontecera não pelas artes de Hurree, ou por sugestão de Kim, mas simplesmente, lindamente e inevitavelmente, como a captura dos amigos faquires de Mahbub, pelo jovem e zeloso polícia em Umballa.

- Eles estão além... sem nada- e caramba, está frio! Eu estou aqui, com todas as coisas deles. Oh, eles icarão zangados! Tenho pena do babu Hurree. to o

Kim podia ter poupado a sua piedade, pois, embora nesse mornen bengali sofresse intensamente na carne, a sua alma estava inchada e PORIposa. A um quilómetro e meio de distãncia, descendo a montanha, no extremo da floresta de pinheiros, dois homens Meio gelados - um c0" violentos enjoos de vez em quando - acusavam-se com recrirninaçõcs mútuas, com os mais ásperos insultos ao babu, que parecia enlouquecido de terror. Procuravam um plano de acção. Explicou-lhes que tinham mui-

ta sorte por estarem vivos; que os seus coolies, se não andavam a persegui-los, tinham avançado, esquecendo-se deles; que o rajá, seu senhor, estava a uma distãncia de cento e quarenta quilómetros e, longe de lhes emprestar dinheiro e uma comitiva para a viagem até Simla, decerto os meteria na prisão, se soubesse que tinham batido num padre. Exagerou neste pecado e suas consequências, até que eles lhe ordenaram que mudasse de assunto. A sua única esperança, disse ele, era uma fuga discreta de aldeia em aldeia, até atingirem a civilização e, pela centésima vez debulhado em lágrimas, perguntou às altas estrelas porque é que os sahibs tinham batido no santo.

Dez passos teriam colocado Hurree na escuridão cheia de ruídos, completamente fora do alcance deles - com a protecção e comida da aldeia mais próxima, onde escasseavam os médicos de discurso fluente. Mas ele preferiu suportar o frio, a fome, palavras ásperas e socos

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ocasionais na companhia dos seus ilustres patrões. Encostado a um tronco de árvore, fungava lamentosamente,

- E já pensaste - perguntou acaloradamente o homem que não estava ferido - que tipo de espectáculos daremos caminhando por estas montanhas, no meio destes indígenas? mas o 0 babu Hurree pensara em pouco mais, durante algumas horas,

reparo não lhe fora dirigido.

- Nós não podemos caminhar! Eu mal posso andar - grunhiu a vítima de Kim.

Talvez o santo seja piedoso, na sua terna bondade, sar, de outro modo...

- Prometo a mim próprio o especial prazer de esvaziar o meu revólver naquele i ovem bonzo, da próxima vez que nos encontrarmos - foi a resposta pouco cristã.

- Revólveres! Vingança! Bonzos! - Hurree inclinou~se mais. A guerra estava a rebentar de novo. - Não têm consideração pela nossa perda? A Bagagem! A bagagem! - Conseguia literalmente ouvir o orador dançar na erva, - Tudo o que trouxemos! Tudo o que defendemos! Os nos'Os lucros! 0 trabalho de oito meses! Sabem o que isso significa? "Decididarnente, somos nós que podemos lidar com os orientais! " Oh, fizestes a bonita!

Atacaram em várias línguas e Hurree sorriu. Kim estava com os hiltas e rios hiltas estavam oito meses de boa diplomacia. Não havia maneira de COnIunicar com o rapaz, mas podia confiar-se nele. Quanto ao resto, Hur'ec Podia organizar as etapas da viagem através das montanhas de tal Rudyard,Kip1ijg

modo que Hilás, Bunár e seiscentos e cinquenta quilómetros de estradas de montanha contariam a história durante uma geração. Homens que não conseguem dominar os seus próprios coolics são pouco respeitados nas montanhas e o montanhês tem um sentido de humor muito agudo.

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" Se eu mesmo o tivesse feito ", pensou Hurree, " não teria sido melhor; e, caramba, agora que penso nisso, claro que fui eu que o planeei. Como fui rápido! Só pensei nisso quando corri pela encosta abaixo! A ofensa foi acidental, mas só eu a podia ter manobrado... ali... pois acabou por valer bem a pena. Considerei o efeito moral nestas pessoas ignorantes! Sem acordos... sem papéis... sem nenhuns documentos escritos, e eu a fazer de intérprete. Como me vou rir com o coronel! Também gostava de ter os papéis deles: mas não se pode ocupar dois lugares no espaço simultaneamente. Isso é axiomático. "

XIV

0 meu irmão ajoelha (assim diz Kabir) Perante a pedra e o bronze à maneira pagã, Mas na voz do meu irmão eu oiço

As minhas próprias agonias sem resposta.

0 Deus dele é como os seus Fados atribuem A oração dele é de todo o mundo - e minha.

0 Pregador

Quando nasceu a Lua, os cautelosos coolies puseram-se a caminho. o lama, retemperado pelo seu sono e espírito, não precisava de mais do que o ombro de Kint para o amparar - um homem silencioso, com a passada larga, Prosseguiram pela erva salpicada de argila durante uma hora, contornaram a aba de um penhasco imortal e treparam até atingir uma nova terra inteiramente bloqueada, fora do alcance da vista do vale de Chini. Um enorme terreno de pasto subia em leque até à nave viva. Na sua base esta~ va talvez meio acre de terra plana, na qual havia algumas cabanas de terra e madeira. Atrás delas - pois, à maneira montanhesa, estavam empoleiradas no extremo de tudo - o terreno caía a pique, seiscentos metros até à estrumeira de Shalegh, onde ainda nunca ninguém pôs os pés.

Os homens não fizeram nenhum movimento para dividir o saque até terem visto o lama acomodado no melhor quarto do sítio, com Kim lavando os seus pés, à maneira maometana.

- Mandaremos comida - disse o homem de Ao~chung -, e o hilta com a cobertura vermelha. Ao alvorecer não haverá ninguém para testemunhar, de qualquer maneira. Se houver alguma coisa no hilta que não seja necessária... olha aqui.

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Apontou para a j anela - abrindo para um espaço ocupado com o luar reflectido pela neve - e atirou lá para fora uma garrafa vazia de uísque. - Não é preciso esperar pela queda. Isto é o fim do mundo - disse ele e saiu.

0 lama olhou em frente, uma mão no parapeito, com olhos que brilhavam como opalas amarelas. Do enorme abismo à sua frente, picos RudyardKipling

brancos erguiam-se, suspirando ao luar resto era como a escuridão do espaço interestelar.

- Estas - disse lentamente - são realmente as minhas montanhas. Assim devia um homem viver, elevado acima do mundo, separado dos prazeres, considerando grandiosas questões.

- Sim, se tiver um chela para lhe preparar chá e dobrar um cobertor para ele encostar a cabeça e para afugentar as vacas parideiras.

Um candeeiro fumacento ardia num nicho, mas a luz da Lua cheia ofuscava-o; no meio daquela luz misturada, inclinado sobre as tigelas de comida e sacos, Kim movia-se como um alto fantasma.

- Ai! Mas agora que deixei arrefecer o sangue, a minha cabeça ainda lateja e martela e parece haver uma corda à volta da minha nuca.

- Não admira. Foi um soco forte. Possa aquele que o deu...

- Se não fosse pelas minhas paixões, não teria havido nenhum mal. - Que mal? Tu salvaste os sahibs da morte que mereciam cem vezes. - A lição não está bem aprendida, chela. - 0 lama veio repousar

num cobertor dobrado, enquanto Kim continuava com a sua rotina noct. - 0 soco foi apenas uma sombra na sombra mal em si mesmo... as minhas pernas têm-se fatigado rapidamente nestes últimos dias!... encontrou-se com o mal que havia dentro de mim: cólera, furor e um dese~ jo de retribuir o mal. Manobraram o meu sangue, acordaram os tumultos que havia no

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meu estõmago e confundiram os meus ouvidos. - Aqui, be~ beu cerimoniosamente chá preto a escaldar, depois de receber da mão de Kim a chávena quente. - Se eu tivesse sido desapaixonado, o soro do mal só teria causado dano corporal, uma cicatriz ou nódoa negra... que é ilusão. Mas o meu espírito não estava absorto, pois imediatamente se apossou de mim um desejo de deixar os homens de Spiti matar. Ao lutar con~ tra esse desejo, a minha alma rasgou~se e torceu-se em mais de mil golpes. Foi só quando repeti as Bênçãos - referia-se às Beatitudes budistas - que alcancei a calma. Mas o mal instalado dentro de mim por esse descuido momentâneo funciona até ao fim. justa é a Roda, não se desviando um milímetro. Aprende a lição, chela.

- É muito difícil para mim - murmurou Kim. - Ainda estou completamente abalado. Estou contente por ter magoado o homem.

- Eu senti isso, quando dormia nos teus joelhos, lá em baixo, no bosque. isso perturbou os meus sonhos, o mal na tua alma penetrando na minha. Todavia, por outro lado - soltou o rosário -, adquiri mérito salvando duas vidas... as vidas desses que me ofenderam. Agora tenho de examinar a Causa das Coisas barco da minha alma vacila.

Kim

- Dorme e restabelece-te. É o mais sensato.

- Medito. Há uma necessidade maior do que tu pensas.

Até ao amanhecer, hora após hora, enquanto o luar empalidecia nos altos cumes e aquilo que fora apertada escuridão dos lados das monta~ nhas longínquas se apresentou como suave floresta verde, o lama olhou fixamente para a parede. De quando em quando, lamentava-se. Do lado de fora da porta trancada, onde as vacas desconcertadas vinham procurar o seu velho estábulo, Sharnlegh e os coolies entregavam-se à pilhagem e à vida dissoluta homem de Ao-chung era o seu chefe e, quando abriram as comidas enlatadas dos sahíbs e descobriram que eram muito boas, não se atreveram a voltar atrás. A lixeira de Sharnlegh recebeu o saco.

Quando Kim, depois de uma noite de pesadelos, veio cá fora para lavar os dentes ao frio matinal, uma mulher de cor clara com um toucado guarnecido de turquesas travou-lhe o passo.

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- Os outros partiram. Deixaram-te este hilta, como prometido. Eu não gosto de sahibs, mas tu far-nos~ás um encantamento em troca dele. Não queremos que a pequena Sharnlegh adquira mau nome, por causa do... acidente. Eu sou a Mulher de Shamlegh. - Examinou-o com olhos impudentes, brilhantes, ao contrário da habitual olhadela furtiva das montanhesas.

- Certamente. Mas tem de ser feito em segredo.

Ela ergueu o pesado hilta como um brinquedo e atirou~o para dentro da sua própria cabana.

- Sai e tranca a porta! Não deixes ninguem aproximar~se até estar acabado - disse Kim.

- Mas depois... podemos conversar?

Kim virou o kilta no chão - uma cascada de instrumentos de pesquisa, livros, diários, cartas, mapas e correspondência nativa com uma estra~ nha fragrãncia. Mesmo no fundo estava um saco bordado, cobrindo um documento selado, dourado e iluminado, como os que um rei envia a outro. Kim susteve a respiração com prazer e reviu a situação do ponto de vista de um sahib.

- Os livros não os quero. Além disso, são logaritmos... pesquisa, suponho. - Põ~los de parte. - As cartas, não as compreendo, mas o coronel Creighton compreenderá. Têm de ser todas guardadas. Os mapas ... eles desenham mapas melhor do que eu, claro. Todas as cartas nativas ... oh!... e, particularmente, a murasla - Cheirou o saco bordado. - Deve ser de Hilás ou Bunár e o babu Hurree disse a verdade. Caramba! É uma _Ru4yard,111

óptima aq1 tisição. Gostava que Hurree soubesse.. resto tem de ir Pela janela. - `assou os dedos por uma soberba bússola com Prisma e pela brilhante P arte superior de um teodolito. Mas, afinal de contas, um sahib não sabe r(,ubar muito bem e as coisas podiam constituir mais tarde prova incor"vc ,iiente. Separou todos os pedaços de papel manuscritos, todos os map1s e as cartas nativas. Faziam um maço maleável. Os três livros Com

4e ferro, juntamente com cinco livros de apontamentos gastos, lo rnbad as (

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pós de lad(-" urasla tenho de transportar dentro do casaco e de_ ,,s C,/artas e a m

bLixO do ci rito, e os livros escritos à mão tenho de os põr no saco da con-iida, Fical -a muito pesado. Não. Parece-me que não há mais nada. Se há, os coolies ai , iraram-no para o khud, portanto está bem. Agora vais tu também. - T. rnou a encher o hilta com tudo o que tencionava fazer desaparecer e lanç- ou-o pelo peitoril da j anela. Trezentos metros abaixo havia um

lente banco de neblina arredondado, ainda não tocado pelo sol longo, indo zentos metros abaixo, era uma floresta de pinheiros com cem n-iatinal. Tr>- .

arios. C_= ,eguia ver as copas verdes, parecendo uma cama de musgo, quando Urj i remoinho de vento dispersava a nuvem.

- Não, Não me parece que alguém vá à tua procura!

Ao cair o cesto giratório vomitou o seu conteúdo teodolito bateu no rebordo de um penhasco saliente e rebentou como uma concha; os livros, tintei(-Os' caixas de tintas, bússolas e réguas mostraram-se durante uns segun(Jos' como um enxame de abelhas. Depois, desapareceram; e,

ri, pendurado fora dajanela, esforçasse os seusjovens ouvidos, e rnbora Kij -iviu um som vindo do precipício .

riunca sc 01 entas... mil rupias não podiam comprá~las", pensou ele triste"Quirib, i um grande desperdício, mas tenho todas as outras coisas deliiente. "Fo' que eles faziam... espero. Agora, como diabo vou contar ao les, tudo o e e que diabo devo fazer? E o meu ancião está doente. Tenho de babu Hurrel as cartas em oleado. É uma coisa a fazer em primeiro lugar, seembrulhar todassuadas... E eu estou completamente só 1 "

não ficarão as num pacote asseado, dobrando o rígido, espesso oleado juntou- nos cantos, pois a sua vida errante tornara~o tão metódico para baixe elho caçador, em questões de estrada. Depois, com redobrado como um -ondicionou os livros no fundo do saco da comida.

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cuidado, a, - r bateu levemente na porta.

A muIIII`2 ela, olhando em - Mas (tu não fizeste nenhum encantamento - disse

volta.

-Não

há necessidade.

ffim

1<im esquecera completamente a indispensabilidade de uma pequena tagarelice. A mulher riu-se irreverentemente da sua confusão.

-Nenhuma... para ti. Tu podes lançar um feitiço através do mero piscar de uni olho. Mas pensa em nós, pobre gente, quando tu te fores embora! Eles estavam todos demasiado bêbados a noite passada, para ouvir unja mulher. Tu não estás bêbado?

- Eu sou um padre. - Kim recompusera-se e, estando a mulher de qualquer modo bem disposta, achou que o melhor era manter-se na sua posição.

- Eu avisei-os de que os sahibs ficarão zangados e farão uma investigação e um relatório ao rajá. Também estã o babu com eles. Os funcionários têm línguas aguçadas.

- É esse todo o teu problema? - 0 plano apareceu completamente formado no espírito de Kim e ele sorriu encantadamente.

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- Nem todo - disse a mulher, estendendo uma mão toda coberta com turquesas encastoadas em prata.

- Posso acabar com ele de um fôlego - continuou ele rapidamente. - 0 babu é precisamente o hakim (ouviste falar dele?) que andava a peregrinar pelas montanhas perto de Ziglaur. Eu conheço-o.

- Ele falará, em troca de uma recompensa. Os sahibs não conseguem distinguir um montanhês do outro, mas os babus têm olhos para os homens... e mulheres.

- Leva-lhe uma palavra minha.

- Não há nada que eu não fizesse por ti.

Ele aceitou calmamente o cumprimento, como devem fazer os homens nas terras onde as mulheres ditam o amor, rasgou uma folha de um bloco-notas e, com um original lápis indelével escreveu em grosseiro shihast -a escrita que os pequenos rapazes maus usam quando escrevem asneiras nas paredes:

Tenho tudo o que eles escreveram: os desenhos que fizeram da região e muitas cartas. Especialmente a murasla. Diz-me o que devo fazer. Estou em Shanilegh-sob-a-Neve ancião está doente.

- Leva-lhe isto. Fechará completamente a boca dele. Ele não pode ter ido longe.

- De facto, não. Eles ainda estão na floresta, do outro lado do pico. As "Ossas crianças foram espiá-los ao nascer do dia e gritaram a notícia lá de 101,ge. RudycrdiPlii,

Kim

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Kim pareceu espantado, mas, do extremo da pastagem de ovelhas elevou~se um trinado estridente, como o de um papagaio. Uma criança a guardar o gado recebera-o de um irmão ou irmã no extremo da encosta que domina o vale de Chini.

- os meus maridos também andam além a apanhar madeira. - Tirou uma mão-cheia de nozes do peito, abriu uma com habilidade e começou a comer. Kim simulou uma desorientada ignorãncia.

- Não sabes o significado da noz, padre? - perguntou ela recatadamente e entregou-lhe as duas metades da casca.

- Bem pensado. - Introduziu o pedaço de papel rapidamente no meio delas. - Tens um pouco de cera para as fechar sobre esta carta?

A mulher suspirou alto e Kim compadeceu-se.

- Não há pagamento até o serviço ter sido prestado. Leva isto ao babu e diz que foi enviado pelo Filho do Sortilégio.

- Ai! É verdade! É verdade! Por um mágico... que e como um sahib. - Não, um Filho do sortilégio, e pergunta se haverá resposta.

- Mas se ele me maltrata? Eu... eu tenho receio. Kim riu-se.

- Ele está, não tenho dúvidas, muito cansado e esfomeado. As mon~ tanhas produzem amantes muito frios. Ai, minha... - tinha na ponta da língua a palavra mãe, mas mudou-a para irmã - tu és uma mulher sensata e espirituosa. A esta hora todas as aldeias sabem o que aconteceu aos sahibs, hem?

- É verdade. A notícia estava em Ziglaur à meia-noite e amanhã já deve estar em Kotgarh. As aldeias estão receosas e zangadas.

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- Não há motivo para isso. Diz às aldeias para alimentarem os sahibs e os deixarem seguir em paz. Temos de os tirar discretamente dos nossos vales. Roubar é uma coisa, matar é outra. o babu compreenderá e não liaverá posteriores recriminações. Sê rápida. Tenho de cuidar do meu rncstre quando ele acordar.

- Seja. Depois do serviço, disseste- tu?... vem a recompensa. Eu sou a Mulher de Sharrilegli e dependo do rajá. Não sou uma vulgar portadora de crianças. Sharrilegh é tua. pé e- corno e pele, leite e manteiga. E pegar ou largar.

Dirigiu~se resolutamente encosta acima, com os colares de prata tiliritando no seu amplo peito, para se encontrar com o sol matinal quatrocentos e cinquenta metros acima deles. Desta vez, Kim pensou em v'rnaculo, enquanto dobrava para baixo as pontas do oleado dos embrulhos*

" Como pode um homem seguir o Caminho, ou o Grande J 090, sendo

serripre tão importunado pelas mulheres? Havia a rapariga em Akrola do Vau, e havia a mulher do ajudante de cozinha, atrás do pombal - sem contar corri as outras -, e agora aparece esta. Quando eu era uma criança, ainda estava bem, mas agora sou um homem e elas não me olham como um homem. Nozes, deveras! Oli! Oh! São amêndoas, nas planícies! "

Saiu para recolher contributos na aldeia - não com uma tigela de mendigar, como faria no sul, mas à maneira de um príncipe. A população de Sharrilegh no Verão são apenas três famílias - quatro mulheres e oito ou nove homens. Estavam cheios de carnes enlatadas e bebidas misturadas, de quinino amoniacado até vodca branco, pois tinham recebido um grande quinhão da pilhagem da noite anterior. As limpas tendas continentais tinham sido há muito cortadas e divididas e havia frigideiras aber~ tas de alumínio, espalhadas pelo chão.

Mas eles consideravam a presença do lama uma salvaguarda perfeita contra todas as consequências e obstinadamente traziam a Kim o melhor que tinham - mesmo um trago de chang, a cerveja de cevada que vem dos lados da Ladakh. Depois foram~se aquecer ao sol e sentaram-se com as pernas penduradas nos abismos infinitos, tagarelando, rindo e fumando. julgavam a índia e o seu governo apenas pela experiência que tinham dos sahibs errantes que lhes tinham dado trabalho, ou aos seus amigos, como shikarris. Kim ouviu histórias de tiros falhados sobre o íbex, o antílope ou a cabra selvagem por sahibs há vinte anos sepultados - cada detalhe iluminado por detrás como ramos em copas de árvores vistos contra a luz dos relãmpagos. Contaram-lhe dos seus pequenos males e, mais imPortante, das doenças dos seus

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pequenos animais de andar seguro; de viagens até Kotgarh, onde as ruas são pavimentadas com prata e todos, repare-se, conseguem arranjar trabalho com os sahibs, que se deslocam em carros de duas rodas e gastam dinheiro à pazada. Nesta altura, grave e distante, caminhando muito pesadamente, o lama juntou-se à tagarelice sob os beirais e eles deram~lhe um amplo espaço ar rarefeito refrescava-o e sentou-se à beira dos precipícios como qualquer um deles e, quando a conversa esmorecia, atirava seixos para o vazio. A cinquenta quilómetros de distância, em linha recta, ficava a região de pastagem seguinte, sulcada Com canais e marcada por pequenos remendos que pareciam escovas florestas, cada uma a um dia de pesada marcha da outra. Atrás da aldeia, a própria montanha de Shamlegh cortava toda a vista na direcção sul. Era como estar sentado num ninho de andorinha sob o beiral do telhado do Mundo.

De tempos a tempos, o lama estendia a mão e, com um pequeno inci- Kim

tamento em voz baixa, apontava para a estrada de Spiti e, para norte, Parungla.

-Além, onde as montanhas são mais compactas, fica De-ch'eri'_ referia-se a Han-lé -, o grande mosteiro. S'Tag-stan-rasch'en construiu-o C corre por lá a seguinte história sobre ele. - Após o que a contou: fantástica narrativa cheia de bruxarias e milagres que deixaram Shamlegh arquej ante. Virando~se um pouco para oeste, examinou as montanhas verdes de Kulu e procurou Kailung, sob os glaciares. - Pois de lá vim eu há muito, muito tempo. Vim de Leh, através de Baralachi.

- Sim, sim, nós sabemos - disse o distante povo de Shainlegli.

- E dormi duas noites com os padres de Kailung. Estas são as niontanhas do meu encanto! Sombras abençoadas sobre todas as outras sombras! Lá os seus olhos abriram~se a este inundo; lá encontrei a Iluminação; e lá me preparei para a minha Busca. Saí das montanhas... as altas monta~ nhas e os ventos fortes. Oh, justa é a Roda!

Abençoou-os em pormenor - os grandes glaciares, as rochas nuas, as morenas acumuladas e a argila amontoada; montanhas secas, lagos salgados escondidos, madeira milenária e férteis vales irrigados, um após outro, como um homem moribundo abençoa o seu povo; e Kim pasmou desta paixão.

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- Sim, sim. Não há lugar como as nossas montanhas - disseram as gentes de Shamlegh. E ficaram a pensar como é que um homem conseguia viver nas terríveis planícies quentes onde os animais são tão grandes como elefantes, impróprios para trepar a uma encosta; onde cada aldeia toca na seguinte, tinham ouvido dizer, ao longo de cento e sessenta quilómetros; onde as pessoas andavam a roubar em quadrilhas, e, o que os assaltantes poupavam, a polícia levava.

Assim se arrastou a calma parte da manhã e, no fim, a mensageira de Kim desceu da escarpada pastagem, tão esbaforida como quando partira. - Mandei uma palavra ao hakim - explicou Kiní, enquanto ela fazia reverência.

- Ele juntou-se aos idólatras? Não, eu lembro-me de que ele curou um deles. Adquiriu mérito, embora o homem curado empregasse a sua força no mal. justa é a Roda! Que há com o hahim?

Receei que tu tivesses sido ferido e... e sabia que ele era sábio.

s da Kini, recebeu a casca de noz encerada e leu em inglês, na parte de trá

sua nota: "Tua carta recebida. Não posso livrar-me da actual companhia e a no momento, mas levá~los-ei para Simla. Depois disso espero reunir-rn vós. Inconveniente seguir cavalheiros zangados. Regresso pela mesma es-

trada por onde vocês vieram e alcançar-vos~ei. Altamente grato pela correspondência aquilo que premeditei". - Ele diz, Santo, que fugirá das idólatras e regressará para junto de nós. Esperaremos um pouco em Sham~ legh, então?

o lama olhou longa e ternamente para as montanhas e sacudiu a cabeÇa-

- Isso não pode ser, chela. Fisicamente, os meus ossos desejam~no, mas é proibido. Eu vi a Causa das Coisas.

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- Porquê, quando as montanhas te devolvam a força, de dia para dia? Lembra-te de que estávamos fracos e débeis lá em baixo, no Doon.

- Tornei-me forte para fazer o mal e esquecer. Um zaragateiro e um ferrabrás, eis o que eu fui nas encostas. - Kim respondeu com um sorriso. -Justa e perfeita é a Roda, não se desviando um milímetro. Quando eu era um homem, há muito tempo, fui em peregrinação a Guru Ch'wan, no meio dos choupos - apontou na direcção de Bhotan - onde está a Casa Sagrada. - Ele está - Calados, estejam calados! - disse Shamlegh, a uma voz.

a falar deJam-lin-nin-k'or, o Cavalo Que Consegue Dar a Volta ao Mundo num Dia.

- Falo apenas para o meu chela - disse o lama, numa branda censura e eles dispersaram, como a geada de manhã nos beirais virados a sul. Nesses tempos eu não buscava a verdade, mas a discussão da doutrina. Tudo ilusão! Bebi a cerveja e comi o pão de Guru Ch'wari. No dia seguinte, alguém disse: "Vamos sair para lutar contra Sangor Gutok no vale, para descobrir" (observa de novo como o desejo está ligado à cólera), "qual é o abade que domina o vale e recolhe o lucro das orações que eles publicarn em Sangor Gutck". Eu fui e lutámos durante um dia.

- Mas como, Santo?

- Com as nossas longas caixas de canetas, como eu podia ter mostrado... digo, lutámos, debaixo dos choupos, abades e todos ostrásongcossetruomu abriu~rne a testa até ao osso. Vê! - Inclinou o chapéu para

unIa franzida cicatriz prateada. -Justa e perfeita é a Roda!

Ontem tive co~ rilichão na cicatriz e, ao fim de cinquenta anos, recordo como foi feita e o rosto de quem a fez insistindo um pouco na ilusão. Seguólatras caiu so~

. e

VSt ... conflito e estupidez. justa é a Roda! 0 soco dos id i aquilo que tu bre a cicatriz. Então, a minha alma foi abalada: ela estava escurecida e o Seu barco balançava nas águas da ilusão. Só

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quando cheguei a ShamIegh consegui rneditar sobre a Causa das Coisas, ou delinear as contínuas raíZes da erva do Mal. Empenhei-me durante toda a longa noite, Rudyard Kiplíng

Kim

- Mas, Santo, tu estás isento de todo o mal. Possa e li ser o teu sac fício!

Kini estava genuinamente aflito com a mágoa do ancião e a express;i, de Mal---ibub Ali saiu-lhe inconscientemente.

-Ao alvorecer - continuou o lama com mais gravidade, o rosário li_ limando entre as frases lentas - veio a iluminação. Está aqui... eu sou velho... criado nas montanhas, alimentado pelas montarihas e nunca posso sentar no meio das minhas montanhas . Durante trê s anos viaj ei pe Indostão, mas... poderá a terra ser mais forte que a Terra-Mãe? 0 meu estúpido corpo ansiava pelas montanhas e as neves das moI-itanhas, de- lá debaixo. Eu disse, e é verdade, que a minha Busca é certa. Por isso, na casa da mulher de Kulu virei na direcção das montanhas, persuadido por rimin mesmo. o hahirti não tem culpa nenhuma. Ele... scgUindo o desejo... prognosticou que as montanhas me tornariam forte. Elas fortaleceram~rlle para o mal, para esquecer a minha Busca. Deliciei-me na vida e na ãnsia de viver. Desejei íngremes encostas para trepar. Lancei-nie ao encontro delas. Medi a força do meu corpo, que é o mal, contra as altas montanhas. Escarneci de ti quando o teu fõlego diminuiu, emjamnotri. Trocei quando tu não enfrentaste a neve do desfiladeiro.

- Que mal tem isso? Eu tive medo. Foi justo. Eu não sou um montanhês; e gostei de ti pela tua nova força.

- Mais do que uma vez, recordo-me - repousou a face dolorosamente na mão -, procurei o teu elogio e o do hahim pela simples força das minhas pernas. Assim o mal seguiu o mal, até a chá\-ena transbordar. justa é a Roda! o Indostão inteiro, durante três anos, prestou-me todas as honras. Da Fonte da Sabedoria, na Casa das Maravilhas a - sorriu uma pequena criança a brincar junto de um grande ca rihão... o mundo preparou~me o caminho. E porquê?

- Porque gostámos de ti. isso é apenas a febre, por causa do soco. próprio ainda estou enjoado e abalado.

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- Não! Foi porque eu estava no Caminho, afinado como os si-ncl` [cálculos] para o desígnio da Lei. Afastei-me dessa determinação. A hlrmonia quebrou-se: seguiu-se o castigo. Nas minhas próprias montanh,15, no extremo do meu próprio país, precisamente no lugar do meu desejo maligno, vem a bofetada... aqui! - Tocou na testa. -Assim como uni riO' viço é espancado quando troca os lugares às chávenas, ta mbém eu sou "5_ pancado, eu que fui abade de Such-zen. Nem uma Palavra, repara, W1s um soco, chela.

- Mas os sahibs não te conheciam, Santo?

Estávamos a condizer. Ignorância e desejo encontram igriorância e desejo na estrada e geram a cólera soco foi um sinal para mim, que não sou melhor que um iaque perdido, de que o meu lugar não é aqui. Quem consegue compreender a causa de um acto está a meio caminho da Liberdade! "Volta para a estrada", diz o Soco. "As montanhas não são para ti. Não podes escolher a Liberdade e seguir em escravidão para os prazeres da vida. "

Quem me dera que, nunca tivéssemos encontrado aquele maldito russo!

- 0 próprio Senhor não consegue fazer girar a Roda ao contrário. E pelo mérito que eu adquirira, ainda obtive outro sinal. - Pós a mão no peito e tirou de lá a Roda da Vida. - Olha! Concluí isso depois de ter meditado. Depois do que o idólatra rasgou, não resta mais do que o tamanho de uma unha minha.

Estou a ver.

É desse tamanho, então, o tempo da minha vida neste corpo. Servi a Roda em todos os meus dias. Agora a Roda serve-me a mim. Mas, pelo mérito que adquiri ao guiar-te no Caminho, ter-me-á sido acrescentada ainda uma outra vida, até que tenha encontrado o meu rio. Está claro, chela?

Kini olhava para o gráfico brutalmente desfigurado. Da esquerda para a direita, diagonalmente, corria o rasgão - da Décima Primeira Casa, onde o Desejo dá à luz a Criança (como é desenhado pelos tibetanos -, pelos mundos humano e animal, até à Quinta Casa-a vazia Casa dos Sentidos. A lógica era incontestável.

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-Antes de ter conseguido a Iluminação, o Senhor - o lama dobrou tudo reverentemente - foi tentado. Eu também tenho sido tentado, mas acabou. A seta caiu nas planícies, não nas montanhas. Portanto, que fazeMos aqui?

- Esperaremos, ao menos, pelo hahirn?

- Eu sei quanto tempo viverei neste corpo. Que pode um hahirn fazer? - Mas tu estás doente e abalado. Não podes caminhar.

- COMO posso eu estar doente, se vejo a Liberdade? - Ergueu-se, vacilante, pondo-se de pé.

- Então, tenho de arranjar comida na aldeia. Oh, a estrada cansativa! Kini sentia que também ele precisava de repousar.

- Isso é legítimo. Vamos comer e partir. A seta caiu nas planícies... 'r`as eu clamei ao desejo. Prepara tudo, chela.

Kin, virou-se para a mulher do toucado com turquesa, que estivera ociosamente a lançar seixos pelo penhasco. Ela sorriu com grande, amabilidade. i_o como um búfalo perdido num campo ele trigo... o babu - Descobr q

resfolegando e espirrando com frio. Estava tão esfomeado ue esqueceu a sua dignidade e dirigiu-me palavras doces. os sahilgs estão sem nada. Atirou um ramo de palmeira - UM deles está muito doente do estÔmago. Trabalho teu?

Krin acenou, corri os olhos brilhantes.

- Falei primeiro com 0 bengali... e depois com as pessoas de uma aldeia próxima. Eles darão aos,;(Àliibs a comida de que precisarem, e as pessoas não pedirão dinheiro saqueJá esta distribuído. o b(bu faz discursos mentirosos aos sahibs. Por que é que ele não os deix2

Por causa da grandeza do sci-i coração. uma noz mir- - o que

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e r Nunca houve um berigali que o tivess -ai01 G

rada. Mas não interessa... Agora no que diz respeito às nozes. Depois do serviço, vem a recompensa. Eu disse que a aldeia era tua.

- o prejuízo é para mim - começou Kim. - Mesmo agora tinha planeado coisas que o meu coração desqava... não há necessidade de repetir os elogios próprios destas ocasiões. - Suspirou profundamente... Mas o meu mestre, conduzido Pou Lima vlsao...

- Hum! Que conseguem velhos olhos vislumbrar, senão uma tigela de mendigar cheia?

volta desta a ideia para as planícies outra vez. Pede-lhe que fique

Kim abanou a cabeça.

- Eu conheço o meu Santo e a sua raiva se for enganado - replicou ele, com solenidade. - As suas maldições abalarn as triontanhas.

- É pena não o terem salvo de cabeça partida! Ouvi dizer que foste o coração-de-leão que castigou o sahib. Deixa-o sonhar um pouco mais. Fica!

- Montanhesa - disse Kim, com uma austeridade que não consegUla endurecer as linhas do se u i ovem rosto oval -, estas questões são demasiado avançadas para ti.

- os deuses são bons para nós. Desde quando os homens e mulheres deixaram de ser homens e mulheres?

- Um padre é um padre. Fie diz que irá agora. Eu sou seu chela e vou com ele. Precisamos de comida para a viagem. Ele é um hóspede de hon~ ra em todas as aldeias, mas,.. - Rorripeu num autentico riso de rapaz a comida aqui é boa. Dá-me alguma.

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Kim

- E se eu não ta der? Eu sou a mulher desta a] deia.

- Então eu amaldiçoo-te... um pouco... não muito, mas o suficiente para recordares. - Não conseguiu evitar um sorriso.

- Tu já me arrialdiçoaste com as tuas longas pestanas e queixo arrebitado. Maldições? Que me interessam simples palavras? - Firmou as mãos no peito.. . - Mas eu não quero que vás zangado, pensando mal de mim... uma apanhadeira de estrume de vaca e erva em Shamlegh, mas ainda mulher de fibra.

- Eu não penso nada - disse Kim -, excepto que estou desolado por partir, Pois estou muito fatigado, e que precisamos de comida. Aqui está o saco.

A mulher agarrou-o com irritação.

- Fui tola - disse. - Quem é a tua mulher nas planícies? Loira ou morena? Eu já fui loira. Ris-te? Uma vez, há muito tempo, se conseguires acreditar, um sahib contemplou-me aprovativamente. Há muito tempo usei roupas europeias, na missão, além. -Apontou na direcção de Kotgarh. Há muito tempo, fui ker-lis-ti-an [cristã] e falei inglês... como os sahibs o falam. Sim meu sahib disse que voltaria e casaria comigo, sim, casaria comigo. Foi-se embora... eu tinha cuidado dele quando esteve doente... mas nunca mais voltou. Então eu vi que os deuses dos kerlistians mentiam e voltei para o meu povo... Desde então, nunca mais vi um suhib. (Não te rias de mim. A crise passou, pequeno padre.) 0 teu rosto, o teu andar e o teu modo de falar fizeram-me recordar o rneu sahib, embora tu sej as apenas um mendigo errante a quem eu faço uma oferta. Amaldiçoar-me? Tu não podes amaldiçoar, nem abençoar! - Pôs as mãos nas ancas e riu amargamente. - Os teus deuses são mentiras; as tuas obras são mentiras; as I tias palavras são mentiras. Não há deuses nenhi ins sob os Céus. Eu sei-o... Mas, por um momento, pensei que era o regresso do meu saffib e ele era o meu Deus. Sim, uma vez toquei música num piano, na missão de Kotgarh. Agora dou esmolas a padres que são hcattheri [pagãos]. - Baralhou-se com a palavra inglesa e atou a boca do saco cheíssimo.

- Estou à tua espera, chela - disse o lama, apoiando-se na ombreira da porta.

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A mulher abrangeu com a vista a alta figura.

- Ele, caminhar] Ele não consegue fazer nem meio quilómetro. Até onde iriam tão velhos ossos?

A isto, Kim, já desorientado com o colapso do lama e prevendo o peso do saco, perdeu completamente a serenidade.

- Que te interessa, mulher de mau agoiro, onde ele vai? - Nada, Mas a ti interessa rim bocadinho, padre com rosto de sahib. Carregá-lo-ás às costas?

- Eu vou para as planícies. Ninguém deve impedir o meu regresso. Lutei com a minha alma até ficat: sem forças, o estúpido corpo CSLá exausto e nós estamos longe das planícies.

- Olha! - disse ela simplesinente e alasiou- se para o lado, para deixar Kim ver o seu completo desamparo. - ArnaldiÇoa-me. Talvez isso lhe ,rande Deus. Tu és um Pa dê força. Faz um encantamento! Chama o teu 9

dre . - Afastou-se . nela agarrado à ombreira da 0 lama tinha-se sentado molemente, ai

porta. Não se Pode deitar abaixo um velho, de niodo que ele se recomponha de novo numa noite. A fraqueza vergava-o até ao chão, mas os olhos que se fixavam em Knn estavam vivos e, imploravam.

--- Está tudo bem - disse Kuri. - E o ar tino que te enfraquece. Daqui a pouco vamos. É o enjoo da montanha. Também eu eslou um POUCO doente do estõmago... - e ajoelhou e confortou-o cou) estas pobres palavras, que foram as primeiras que, lhe vieram aos lábios. Depois a mulher voltou, mais empertigada que nunca.

- os teus deuses são inúteis, bem? Tenta os meus. Eu sou a mulher de Shamlegh. - Chamou corri voz IOnca e, de tu ri curral de vacas, saíram os seus dois maridos e três outros com um

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dooli, a rudimentar liteira riativa das montanhas, que eles usam para transportar doentes e para visitas de Estado. - Estes animais - ela não condescendeu a olhar para eles são teus durante o tempo que Precisales-

- Mas nos não vamos para o lado de Situla. Não vamos aproximar-nos dos sahibs - gritou o primeiro marido.

-- Eles não fugirão, como fugirarn Os Outros, nem ro, ubarão bagagem. Dois deles, tenho-os como pessoas débeis. Fiquem no timão da retaguar~ da, Sonoo e Taree. - Eles obedeceram rapidamente. ---- Baixem agora C icem aquele santo. Tomarei conta da aldeia e das vossas virtuosas esposas até, regressardes.

- Quando será isso?

une,z. coloca osaco da comi~ - Pergunta aos padres, Não me irriport

da aos pés, fica mais equilibrado. as nossas pla~ - Ob, Santo, as tuas montanhas são mais amáveis que

nícies! --- gritou Krin, aliviado, quando o lama subiu vacilante para a teira. - É uma cama digna de um ci... um lugar de honra e conforto. E devemo-lo a_

bênçãos CornO -- uma mulher de mau agorro. Precis0 IantO Ilas luas

Kim

preciso das tuas maldições. A ordem é minha e não é nada contigo. Elevem-no e partam! Olha aqui! Tens dinheiro para a estrada?

Chamou Kim à cabana dela e inclinou-se sobre uma resistente caixa de dinheiro inglesa, que tinha debaixo da cama.

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Não preciso de nada - disse Kini, irado com o que devia estar grato. -já estou duramente sobrecarregado de favores.

Ela ergueu os olhos com um curioso sorriso e pos uma mão no ombro dele.

- Ao menos, agradece-me. Eu sou mal encarada e uma montanhesa, mas, segundo a tua conversa, adquiri mérito. Queres que te mostre como é que os sahibs agradecem? - e os seus duros olhos enterneceram-se.

- Sou apenas um padre errante - disse Kim, com os olhos a brilhar, como resposta. - Tu não precisas das minhas bênçãos, nem das minhas maldições. em dez - Não. Mas, por um momento... tu consegues alcançar o dooli

passadas... se tu fosses um sahíb, posso mostrar-te o que é que farias?

- E se eu adivinhar, antes? - perguntou Kim e, pondo o braço à volta da cintura dela, beijou-a na face, acrescentando em inglês: - Muito obrigado, minha .querida.

0 beijo é praticamente desconhecido entre os asiáticos, o que pode ter sido a razão pela qual ela se inclinou para trás, com os olhos muito abertos e cara de pãnico.

Da próxima vez - continuou Kim -, não podes ter tanta certeza sobre os teus padres pagãos. Agora, despeço-me. - Esticou a mão, à maneira inglesa. Ela apertou-a mecanicamente. Adeus, minha querida.

-Adeus, e... c... - ela estava a lembrar-se das suas palavras inglesas, uma por uma - voltarás aqui? Adeus c... que os teus deuses te abençoem. Meia hora mais tarde, quando a liteira chiava aos solavancos Pelo ca-

minho montanhoso que leva a sudeste de Sharrilegli, Kim viu uma figura minúscula à porta da cabana, acenando um pano branco.

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- Ela adquiriu mais mérito que todas as outras - disse o lama pois colocar um homem no caminho da Liberdade é meio caminho andado para a própria obtenção da Liberdade.

Hum! - disse Kim, re [lecti damente, pensado no passado. - Pode ser que eu também tenha adquirido mérito... Pelo menos, ela não me tratou como se eu fosse uma criança. - Amarrou a parte da frente da túnica, onde estava o maço de documentos e mapas, acondicionou o precioso saco de cornida. aos pés do lama, pós as mãos no extremo da liteira e prestou atenção à lenta passada dos rabugentos maridos. Rudyard,iÉ

- Estes também adquirem mérito - disse o lama, ao fim de cinco quilómetros.

- Mais do que isso, serão pagos em prata - disse Kini. A mulher de Shamlcgh dera-lhe algumas moedas de prata e era mais do que justo, argumentou ele, que os seus maridos as recuperassem.

XV

Eu não deixaria passar um Imperador Defenderia a minha estrada para um Rei. Perante a Coroa Tripla não me curvaria Mas isto é uma coisa diferente!

Não lutarei com as Forças do Ar Sentinela, passa por ele!

Ponte levadiça em baixo - Ele é o Senhor de todos nós 0 Sonhador cujo sonho se concretizou!

0 Cerco das Fadas

Trezentos e vinte quilómetros a norte de Chini, no xisto azul de La~ dakh, o sahib Yankling, homem de espírito alegre, passando os binóculos indignadamente pelas serranias, busca sinal do seu batedor preferido um homem de Ao-chung. Mas esse desertor, com uma nova espingarda Mãnnlichen e duzentos cartuchos, está noutro local, caçando almiscareiros para o mercado e o sahib Yankling, na próxima estação, será informado da sua grave doença.

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Pelos vales de Bushalir - as perspicazes águias dos Himalaias desviam-se do novo chapéu de sol espetado, às riscas azuis e brancas -, apressa-se um bengali, em tempos gordo e bem-parecido, agora magro e consumido pelo tempo. Recebeu os agradecimentos de dois estrangeiros distintos, habilidosamente conduzidos para o túnel de Mashobra, que leva à grande e alegre capital da índia. Não foi por culpa sua que, cober~ to pelas névoas húmidas, os transportou para lá da estação telegráfica e da colónia européia de Kotgarh. Não foi por culpa sua, mas dos deuses, sobre quem discursava tão cativantemente, que os confundiu com sol~ dados britãnicos desertores babu Hurree explicou a grandeza e glória dos seus companheiros no seu próprio país, até o sonolento reizinho sorrir. Explicava-as a todos os que perguntavam - muitas vezes - em voz alta - de várias maneiras. Mendigou comida, arranjou acomodação, provou ser um hábil médico num ferimento numa virilha - um golpe corno o que se pode fazer ao rolar por uma encosta coberta de rochas na escuridão - e em todas as coisas iri dispensáveis motivo da sua dedicação honrava-o. Com cem milhões de companheiros servos aprendera Rudyard "I

a olhar a Rússia corno 0 grande salvador do norte. Era um homem t, meroso. Tivera receio de não conseguir salvar os seus ilustres patrões da cólera de uns excitados camponeses. A ele, tanto lhe fazia bater num santo como não bater, mas... Estava profundamente grato e sinceramente exultante por ter feito o "pouco que estava ao seu alcance" no sentido de levar o empreendimento deles exceptuando a bagagem perdida - a bom termo. Esquecera os socos-, negou que se tivesse dado quaisquer socos naquela inconveniente primeira noite, debaixo dos pinheiros. Não pediu pensão, nem taxa de serviços, mas, se eles o consideravam merecedor, passar-lhe-iam um certificado? Podia ser-lhe útil mais tarde, se outros amigos deles passassem pelos desfiladeiros. Implorou-lhes que se lembrassem dele nas suas futuras grandezas, pois ele "alvitrava subtil-

e, mesmo ele, Mohendro Lal Dutt, "prestara alguns serviços mente" qu

ao Estado ". prestabilidade e inDeram-lhe um certificado louvando a sua cortesia

falível perícia corno guia. Ele colocou-o no seu cinto e soluçou de emoção; tinham suportado tantos perigosjuntos. Conduziu-os no pino do dia pela apinhada SimIa Mall até ao Alliance BanI de Smila, onde eles desejavam deixar a sua identidade . De lá, desapareceu como uma nuvem matinal no Jakko.

Observai-o, demasiado magno para suar, demasiado aflito para alardear as drogas da sua pequena caixa de latão, subindo a encosta de Shanlegh, um homem justo tornado perfeito.

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Olhai-o, todo o cavalheirismo posto de lado, fumando ao meio-dia numa cama-rede, enquanto uma mulher com um toucado cravejado de turquesas aponta para sudeste, através da erva nua. As liteiras, diz ela, não viajam tão depressa como homens sozinhos, mas os seus pássaros deviam estar agora nas planícies santo não quis ficar, embora Lispeth o tivesse pressionado. o babu Iamenta~se pesadamente, enfaixa os seus enormes lombares e parte d .e

ois do anoitecer- mas as suas caiunovo. Não se importa de viajar dep iam as nhadas - não há ninguém para as registar num livro - espantar pessoas que escarnecem da sua raça. Aldeões amáveis fazendo lembrar o vendedor de drogas de Dacca de há doi s meses, dão~lhe protecção Con~ tra os espíritos malignos do bosque. Sonha com deuses bengalis, Com manuais universitários de educação e com a Real Sociedade, Londres, Inglaterra. Na madrugada seguinte, o balanceado chapéu de sol azul C branco segue em frente. atrás e as planície' Co-

No extremo do Doon, com Mussooric Mesmo

bertas de poeira dourada à frente, repousa uma gasta liteira, na qual

so sabem - está um lama doente que procura um rio todas as montanha

para o curar. As aldeias quase disputaram a socos a honra de o sustentar, pois não só o lama as abençoou, mas o seu discípulo lhes deu bom diIlheiro - um terço dos valores dos sahibs dooli percorria trinta quilómetros por dia, como mostram as extremidades gordurosas, coçadas e por estradas que poucos sahibs utilizam. Pelo desfiladeiro de Nilang sob a tempestade, quando a fina neve impelida pelo vento enchia todas as pregas das vestes do impassivo lama 1no meio dos picos negros de Raieng, onde ouviam o assobio das cabras selvagens através das brumas; inclinado e torcido rio xisto, mais abaixo; bem seguro entre o ombro e o maxilar cerrado, quando rodeavam as curvas medonhas da estrada cortada, sob Bhagirati; balançando e chiando até ao regular meio-trote da descida para o Vale das Águas; comprimido ao longo dos fumegantes socalcos desse vale fechado, subindo e saindo outra vez, para ir ao encontro das ensurdec 1 epouso do meio-dia, edoras rajadas, longe de Kedarmath- no r

na obscuridade parda das agradáveis florestas de carvalhos; avançando de aldeia em aldeia ao frio matinal, quando mesmo os devotos podem ser perdoados por rogar pragas a santos impacientes; ou, à luz de tochas, quando o menos temeroso pensa em fantasmas - o dooli

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alcança a sua última etapa. Os pequenos montanheses suam, ao calor diferente na base dos Siwaliks e reúnem-se à volta dos padres para a sua bênção e pagamento.

- Adquiristes mérito - diz o lama. - Mérito superior ao vosso conhecimento. E regressareis às montanhas - suspira.

- Decerto. As altas montanhas, o mais depressa possível.

0 carregador esfrega o ombro, bebe água, cospe-a outra vez e reajusta a sua sandália de pano. Kuri - o seu rosto está deformado e cansado paga com pequenas moedas de prata retiradas do cinto, iça o saco da comida, enfia um pacote gorduroso - são escrituras sagradas - no peito e ajuda o lama a põr-se de pé. A paz voltou aos olhos do ancião e ele não espera que as montanhas caiam e o esmaguem, como fez naquela noite terrível em que foram atrasados pela enchente do rio.

Os homens apanham o dooli e desaparecem da vista, pelo meio das matas enfezadas.

0 lama ergue uma mão na direcção da muralha dos Himalaias.

- Não foi em vós, o abençoadas entre todas as montanhas, que caiu a seta do Senhor, E nunca mais eu respirarei os vossos ares!

- Mas tu és um homem dez vezes mais forte neste bom ar - diz Kirn, pois, à sua fatigada alma, atraem as planícies semeadas, simpáticas. RU ldpeliW-

- Aqui, ou por aqui, caiu a seta, sim. 'remos muito suavemente, talvez um koss por dia, pois a Busca é certa. Vias o saco pesa muito.

- Sim, a nossa Busca é certa. Eu saí de grande tentação.

Agora nunca faziam mais do que uns quilómetros por dia e os ombros de Kin-i suportavam todo o peso -- o i-ardo deturi velho, o fardo do pesado saco de comida com os livros fechados

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à chave, a carga das escrituras no seu coração e os pormenores da rotina diária. Mendigava ao amanhecer, estendia cobertores para a meditação do lama, aguentava a fatigada cabeça no seu regaço durante os calores do incio-dia, enxotando as moscas até os pulsos lhe doerem, mendigava outra vez à tarde e esfregava os pés do lama, que o recompensava com a Promessa da Liberdade - hoje, amanhã, ou, mais tardar, no dia seguinte.

- Nunca houve um tal chela. De vez em quando duvido que Ananda tivesse servido o Senhor com mais fidelidade. E tu és um sahib? Quando eu era um homem... há muito tempo... esquecia-me disso. Agora olho frequentemente para ti e em todas as vezes me lembro de que tu és um sahib. É estranho.

-'lu disseste que não há preto nem branco- Para quê atormentar-me eixa-me esfregar-te o outro pé. isso aborrececom esta conversa, Santo? D

-me. Eu não sou um scihtb. Sou o teu chela e a cabeça pesa-me nos ombros. -Um pouco de paciência! Atingimos a Liberdade juntos. Depois, tu e eu, na margem mais longínqua do rio, olharemos para trás nas nossas vidas, como vimos nas montanhas as nossas caminhadas diárias estenderem-se atrás de nós. Talvez eu tenha sido alguma vez um sahib.

- Nunca houve um sahib como tu, Juro.

- Estou certo de que o conservador das Imagens da Casa das Maravilhas foi, em vida anterior, um abade muito sábio. Mas mesmo os óculos dele não fazem os meus olhos verem L)em. Aparecem sombras, quando eu preciso de ver a... nós conhecemos Os truques da distintamente. Não interess'

pobre e estúpida carcaça, sombra transfoumando-se noutra sombra. Estou preso à ilusão do tempo e do espaço. Que porção de matéria percorrernos? - Talvez meio hoss - Um quilõmctro e foi uma marcha fatigante.) - Meio 1zoss. Ah! Eu percorri dez mil em espírito. como estarrios to-

dos dobrados e envolvidos e enfaixados nestas coisas sem sentido! Olhou para a sua fina mão, com veias azuis, que achava as contas tão Pesadas. - Chela, nunca tens o desejo de me deixar?

Knn pensou no pacote de oleado e nos livros no saco da cornida. Se,

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Kim

ao menos, alguém devidamente autorizado se encarregasse da sua entrega, o Grande jogo podia jogar-se, livrando-o daquela preocupação. Estava cansado e tinha a cabeça quente e uma tosse que vinha do estõmago importunava-o.

- Não - disse ele quase severamente. -- Não sou um cão ou uma cobra, para morder quando aprendi a amar.

- Tu és muito afectuoso para comigo.

- Também não é tanto assim. Eu agi num assunto sem te consultar. Enviei uma mensagem à mulher de Kulu através daquela que nos deu o leite de cabra esta manhã, dizendo que estavas um pouco fraco e precisavas de uma liteira. Recrimino-me por não o ter feito quando entrámos no Doon. Agora ficamos neste lugar até a liteira chegar.

- Estou satisfeito. Ela é uma mulher de coração de ouro, como tu dizes, mas uma tagarela... uma grande tagarela.

- Ela não te fatigará. Tratei disso também. Santo, o coração pesa-me muito por causa dos muitos descuidos em relação a ti. - Um nó de emoeceu-lhe na garganta. - Conduzi-te longe de mais: não arranjei çao apar L

sempre a melhor comida para ti' não tive em consideração o calor 1 conversei com pessoas na estrada e deixei-te só... Eu... eu... Hai mai! Mas cri gosto de ti... e agora é tarde de mais... eu era uma crianca... Ol-i,porqueé que eu não era um homem?...

Dominado pela tensão, pela fadiga e pelo peso superior à sua idade, Kini sucumbiu e soluçou aos pés do lama.

- Que rebuliço vai para aqui! - disse ternamente o ancião. - Tu nunca te desviaste um milímetro do Caminho da Obediência- Negligenciar-me? Pequeno, eu dependi da tua força como uma

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velha árvore da cal de uma nova parede. Portanto, tu não estás enfraquecido por nenhum pecado teu. É o corpo... o tolo, estúpido corpo... que fala agora. Não a segura Alma. Consola-tel Conhece, ao menos, os diabos que combates. Eles SãO terrenos, filhos da ilusão. Iremos ter com a mulher de Kulu. Ela adquirirá mérito ao hospedar-nos e, principalmente, ao cuidar de mim. Tu irás em liberdade até a força voltar. Tinha esquecido o estúpido Corpo. Se há alguma culpa, eu assumo-a. Mas nós estamos demasiado próximos dos Portões da Salvação para carregarmos culpas. Eu podia louvar-te, mas que necessidade há? Daqui a pouco... daqui a muito pouco... sentar-nos-ernos 1 salvo de todas as necessidades.

E assim acarinhou e confortou Kini com máximas sábias e textos solenes sobre esse animal Pouco compreendido, o nosso Corpo, que, sendo aPenas ilusão, insiste em colocar-se na posição da Alma, para o escureci- - Ruvard Kipling

mérito do Caminho e para a imensa multiplicação de demónios desnecessários.

- Ai! Ai! Falemos da mulher de Kulir. Pensas que ela pedirá outro encantamento para os netos? Quando era um jovem, há muito, muito tempo, fui atormentado por estas fantasias, e algumas outras, e consultei um abade... um homem muito santo e um pesquisador da verdade, embora eu, nessa altura, não o soubesse. Senta-te e ouve, filho da minha alma. Contei-lhe a minha história. Disse-me ele: "Chela, aprende isto. Há muitas mentiras no mundo e não apenas alguns mentirosos, mas não há mentirosos tão grandes como os nossos corpos, exceptuando as nos~ sas sensações". Pensando nisto confortei-me e, por grande favor dele, deixou-me beber chá na sua presença. Deixa-me agora beber chá, pois tenho sede.

com um riso pelo meio das lágrimas, Kini beij ou os pés do lama e preparou o chá.

- Tu apoias-te em mim no corpo, Santo, mas eu apoio-me em ti para outras coisas. Sabias?

- Adivinhei, talvez - e os olhos do lama brilharam. - Temos de mudar isso.

Assim, quando, com desordens e arranhões e um imenso ar de importãneia, apareceu nada menos do que o palanquim favorito da sahiba, percorridos trinta e dois quilómetros, com aquele mesmo criado oorya velho e grisalho à frente e quando chegaram à desordenada ordem da grande e irregular casa branca atrás de Saliarimpore, o lama tomou as suas medidas.

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Depois das saudações, disse a sahiba alegremente, de uma janela superior:

- De que serve o conselho de uma velha mulher a um ancião? Eu dis~ se-te, eu disse-te, Santo, para vigiares o chela. Como é que fizeste? Nunca me respondes. Eu sei. Ele tem andado a correr no meio das mulheres. Olha para os olhos dele... encovados e perdidos e a Linha de Traição, do nariz para baixo. Ele tem andado a cirandar! Fora! Que vergonha! E um padre, também!

Kin---r olhou para cima, demasiado cansado para sorrir, abanando a cabeça em negação. Esse tempo aca

- Não brinques - disse o lama. - bou, Estanios aqui por causa de grandes questões. Uma doença da alma apossou-se de Mir11 nas montanhas e dele uma doença do corpo. Desde então, tenho vivido da força dele... consumindo-o.

Kin

- Duas crianças,juntas... novo e velho. - Ela fungou, mas absteve-se de quaisquer novas piadas. --- Possa a presente hospedagem revigorar-vos! Esperai um momento e eu virei conversar sobre as altas e boas montanhas.

À noite - o genro dela estava de volta, por isso ela não precisava de ir em inspecção'pcla quinta -, ela atingiu a essência do problema, explicado em voz baixa pelo lama. As duas velhas cabeças acenavam sabiamente juntas. Krin cambaleara até um quarto com uma cama-rede e dormitava encharcado lama proibira-o de usar cobertores ou ir buscar comida.

- Eu sei, eu sei. Quem, senão eu_ - cacarej .ou ela. - Nós, que descemos aos crematórios, agarramos as mãos daqueles que vêm do rio da Vida com jarros de água cheios até à borda. Fiz mal ao rapaz. Ele emprestou-te a sua força? É verdade que o velho consome o novo diariamente. Segue-se agora que temos de o restabelecer.

- Tu adquiriste mérito muitas vezes...

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- 0 meu mérito queé? Uma velha carga de ossos fazendo caril para homens que não perguntam: " Quem cozinhou isto? ". Agora se fosse acu~ mulado para o meu neto...

0 que tinha a dor de barriga?

Pensar que o Santo se lembra disso! Tenho de contar à mãe dele. E uma honra muito singular! "0 que tinha a dor de barriga"... imediata~ mente o Santo se lembrou. Ela ficará orgulhosa,

- 0 meu chela é, para mim, como uni filho é para os não esclarecidos. Diz antes neto. As mães não têm a sabedoria da nossa idade. Se uma criança chora, dizem que os céus estão a cair. Agora uma avó está suficientemente distanciada da dor de dar à luz e do prazer de dar o Deito para ajuizar se um choro é pura maldade ou é o vento. E já que se fala de novo no vento, quando o Santo esteve aqui da outra vez talvez eu o tivesse ofendido ao insistir nos encantamentos,

- Irmã - disse o lama, usando a forma de tratamento que um budista pode, por vezes, empregar ao dirigir-se a um freira -, se os encantamentos te confortam...

São melhores que dez mil médicos.

Repito, se eles te confortam, eu, que fui abade de Such-zen, farei tantos quantos tu possas desejar. Nunca vi o teu rosto...

- Isso até os macacos que roubam as nossas nêsperas consideram um ganho. Eli! Efr!

- Mas, como diz aquele que dorme além - acenou para a porta fe- chada do quarto de hóspedes do outro lado do pátio -, tu tens um coração de ouro... E ele é, no meu espírito, meLi "ncio".

- Muito bem! Eu sou a vaca do Santo. - Isto era puro hinduísirio, mas o lama não prestou atenção. - Sou velha. Gerei filhos neste corpo. Oh, em tempos satisfiz homens! Agora posso curá-los. - Ele ouviu as suas pulseiras tilintando, como se ela arregaçasse as mangas para agir.

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Tomarei conta do rapaz e medicá-lo-ei e obrigá-lo-ei a comer C torná~lo-ei completamente são. Ai! Ai! Nós, velhos, ainda sabemos alguma coisa.

Por conseguinte, quando Kini, com dores nos ossos todos, abriu os olhos e foi à cozinha arrarijar a comida do seu mestre, encontrou forte coerção à sua volta e uma velha figura à porta, com um véu, tendo ao seu lado o servo grisalho, que lhe disse com muita precisão as coisas que ele não devia fazer em nenhuma circunstãncia.

- Tens de levar? Não levarás nada quê? Uma caixa fechada para guardar livros sagrados? Ah, isso é outra questão. Os céus proíbem que eu me ponha entre um padre e as suas orações. Traremos a caixa e tu ficarás com a chave.

Empurraram o cofre para debaixo da cama e Kini trancou a pistola de Malibub, o pacote de oleado com cartas e os livros e diários, com um sus~ piro de alívio. Por alguma absurda razão, o peso que traria aos ombros não era nada comparado com o peso que traria na mente. Por causa disso, o pescoço doeu-lhe toda a noite.

-A tua doença é invulgar na juventude, nestes tempos: desde que os jovens desistiram de cuidar dos seus superiores remédio é o sono e cer~ tas drogas - disse a sahiba, e ele ficou contente por ceder ao vazio que, por um lado o ameaçava e, por outro, o acalmava.

Ela fabricou bebidas, num misterioso equivalente asiático da destilaria poções que cheiravam pestilentamente e sabiam ainda pior. Ficou a vigiar Kim até ele beber tudo e interrogou-o exaustivamente mal a beberragem começou a fazer efeito. Colocou uma proibição no pátio de entrada e fê-la cumprir por intermédio de um homem armado. É verdade que ele tinha setenta e tal anos, que a sua espada embainhada acabava no punho; mas representava a autoridade da sahiba e carroças carregadas, criados tagarelas, vitelos, cães, galinhas, etc., descreviam uma larga curva por aquelas paragens melhor de tudo foi que, quando o corpo ficou limpo, ela recrutou entre o conj .unto de parentes pobres que apinhavam as traseiras dos edifícios da casa - cães domésticos, como lhes chamamos -, a viúva de um primo, perita naquilo a que os europeus, que não sabem nada sobre isso, chamam massagem. E as duas, virando-o para um lado e para o outro,

que as misteriosas correntes da terra que fazem vibrar a vida dos nossos corpos podiam ajudar e não embaraçar, lizeram-no em bocados durante longa tarde - osso Por osso, músculo por músculo, ligamento por ligamento e, finalmente, nervo por nervo. Reduzido a uma massa informe, rneio hipnotizado pelo perpétuo movimento e reajustamento dos incómodos

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chudders que ocultavam os olhos delas, Kim deslizou milhares de quilómetros num torpor sonolento - trinta e seis horas, que se infiltravam como a água da chuva depois de uma seca.

Depois ela alimentou-o e a casa rodopiou com os gritos dela. Fez matar aves de capoeira; mandou buscar vegetais, e o j.ardineiro, cauteloso, de compreensão lenta, quase tão velho como ela, moirejou por eles; misturou condimentos, leite e cebolas com pequenos peixes dos regatos - limas para limonada, gordas codornizes dos fossos, depois fígados de galinha no espeto, com rodelas de gengibre no meio.

- Tenho visto muita coisa no mundo - disse ela por cima das bandejas cheias - e há nele apenas dois tipos de mulheres... aquelas que tiram a força a um homem e aquelas que lha restituem. Em tempos fui das primeiras e agora sou das segundas. Não, não finjas que és um padre. Foi apenas uma brincadeira. Se não for válida agora, será quando retomares a estrada. Prima - disse, virando~se para a pobre parente, que nunca se cansava de enaltecer a caridade da sua patroa -, ele está a ficar com a frescura da pele de um cavalo arranjado de novo nosso trabalho é como polirjóias para serem atiradas a uma bailarina, hem?

Kini sentou-se e sorriu. A terrível fraqueza tinha-o deixado como um sapato velho. A sua língua formigava por falar livremente outra vez e apenas uma semana antes a mais leve palavra embaraçava-o como cinzas. A dor no pescoço (devia tê-la apanhado através do lama) fora-se,,juntamente com as fortes dores nas articulações e o mau sabor na boca. As duas velhas mulheres, agora um Pouco mais cuidadosas com os véus, mas não muito, cacarejavam tão alegremente como as galinhas que tinham entrado a debicar, através da porta aberta.

- Onde está o meu Santo? - perguntou ele.

- Oiçam~no! 0 teu Santo está bom - atirou ela, maliciosamente. Erribora isso não seja mérito dele. Se eu soubesse de algum encantamento Para o tornar sensato, venderia as minhas jóias e comprá-lo-ia. Recusar boa comida que eu própria cozinhei, e ir vaguear para os campos durante duas noites, de barriga vazia, e dar um trambolhão para dentro de um regato... chamas a isto saritidade? Depois, quando já quase se tinha partido de ansiedade o que tu deixaste do meu coração, diz-me que adquiriu RudY

mérito. Ol-i, como os homens são todos igriais1 Não, não foi isso... ele diz-me que está liberto de todo o pecado. Eu podia ter-lhe dito isso antes de ele se ter encharcado da cabeça aos pés. Ele está bem agora... isto aconteceu há uma semana... mas consome-me tanta santidade! Um

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bebé de 3 anos faria melhor. Não te preocupes com o Santo. Ele mantém os dois olhos em ti quando não anda a chapinhar nos nossos regatos.

- Não me lembro de o ter visto. Lembro-me de que os dias e as noi~ tes passavam como barras de preto e branco, abrindo e fechando. Eu não estive doente: estava apenas cansado.

- Uma letargia que aparece alguns anos mais tarde. Mas agora acabou.

- Maharance - começou Kim, mas, guiado pelo olhar dela, mudou para o título do evidente afecto: - Mãe, eu devo~tc a minha vida. Como posso agradecer-te? Dez mil bênçãos para a tua casa e...

- Que a casa seja amaldiçoada! - E impossível transmitir o termo exacto da velha senhora. - Agradece aos deuses como padre, se quiseres, mas agradece-me a mim, se o desejares, como filho. Céus. Mudei~te e ergui-te e dei-te palmadas e esfreguei os teus dez dedos dos pés para receber palavras bíblicas? Uma mãe, algures, deve ter-te dado à luz para lhe quebrares o coração. Como a tratavas, filho?

- Não tive mãe, minha mãe - disse Kini Ela morreu, dizem-me, quando eu era novo.

- Hai mai! Então ninguém pode dizer que eu lhe usurpei um direito se, quando tu voltares à estrada e esta casa não for se não uma em mil, usada para abrigo e esquecida depois de uma bênção apressada. Não m~ teressa. Eu não preciso de bênçãos, mas... mas... - Bateu o pé à parente pobre. - Leva as bandejas para a casa. Qual é a vantagem de deixar envelhecer comida no quarto, o mulher de mau agorro?

- Eu dei... dei à luz um filho no meu tempo, também, mas morreu choramingou a figura curvada, por detrás do chudder. - Tu sabes que ele morreu. Eu só esperava a ordem para levar a bandeja.

- Sou eu que sou a mulher de mau agoiro - gritou a velha senhora penitentemente. - Nós, que descemos até aos chattris [os grandes chapéus de sol sobre as plataformas de cremação, onde os padres cumprem a sua última obrigação] temos dificuldade em estender a mão aos carregadores de chattis [jarros de água - gente nova, cheia do orgulho da vida, queria ela dizer, mas o trocadilho era desajeitado]. -Quando não se pode dançar na festa não se deve nem

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olhar pela janela, e ser avó toma todo o tempo a uma mulher teu mestre dá-me todos os encantamentos que eu

Kim

agora desejo para o filho mais velho da minha filha, devido a... será?... estar completamente livre do pecado hahim tem andado muito desanirnado por estes dias. Anda para aí a envenenar os meus criados por falta dos seus superiores.

- Que hahim, mãe?

- 0 mesmo homem de Dacca que me deu a pastilha que partiu em três bocados. Apareceu como um camelo extraviado há uma semana, jurando que ele e tu tinham sido irmãos de sangue, juntos no caminho de Kulu e fingindo grande ansiedade pela tua saúde. Estava muito magro e esfomeado, por isso dei ordens para ele ser também alimentado... ele e a sua ansiedade.

- Gostava de o ver, se ele está aqui.

- Ele come cinco vezes por dia e ocupa-se a lancetar furúnculos aos meus criados para se salvar de uma apoplexia. Está tão ansioso pela tua saúde que fica grudado na porta da cozinha e alimenta-se com restos. Ele vai ficar aqui. Nunca nos livraremos dele.

- Manda-o aqui, mãe - o brilho voltou por um momento aos olhos de Kini -, e eu tentarei.

- Mandá-lo-ei, mas escorraçá-lo é um acto reprovável. Pelo menos ele teve inteligência para pescar o Santo para fora do regato-1 assim, como o Santo não disse, adquiriu mérito.

- Ele é um hahim muito sábio. Manda-o, mãe.

- Um padre a e] ogiar outro padre? Um milagre! Se ele é algum amigo teu (vocês brigaram no vosso último encontro) mantê-lo-ei aqui à força, com cordas e dar-lhe-ei um bom jantar a

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seguir, meti filho ... Levanta~te e vê o mundo! Este estar deitado é a mãe de setenta demónios ... meu filho! Meu filho!

Ela afastou-se com agilidade, e quase provocou um tufão na cozinhacolado à própria sombra, chegou o babu, vestido corno um imperador ro' mano, parecido com Tito, de cabeça descoberta, com sapatos novos de verniz, num estado de grande gordura, exultante de alegria e saudações.

- Caramba, O'Hara, mas eu estou contentíssimo por ver~te. Fecharei amavelmente a porta. É uma pena estares doente. Estás muito doente? - Os papéis... os papéis do hiL'ta,. Os mapas e a murasla. - Estendeu

a chave com impaciência, pois a necessidade actual da sua alma era ver-se livre do saque.

- Tens toda a razão. É, um correcto ponto de vista departamental. Tens tudo?

- Trouxe tudo o que estava escrito à mão resto atirei da monta- nha abaixo. - Pôde ouvir a grelha da chave na fechadura, o puxão pe_ gaioso do oleado a rasgar lentamente e um rápido folhear de Papéis. Ficara aborrecido, para além de todos os outros motivos, por saber que os papéis tinham estado debaixo de si durante os dias ociosos de doença... um fardo incomunicável. Por essa razão, o sangue formigava pelo seu corpo quando Hurree, movimentando-se pesadamente, lhe apertou novamente a mão.

- isto é bom! isto é óptimo! O'Hara. Tu... ah! ali!... roubaste todo o saco de artifícios, fechaduras, valores e caixas. Eles disseram-me que fo~ ram oito meses de trabalho por água abaixo! Caramba, como eles me castigaram!... Olha, aqui está a carta de Hilás! - Entoou uma ou duas linhas em persa erudito, o que é a linguagem da diplomacia autorizada e não autorizada. - 0 sahib rajá acabou de meter o pé na argola. Terá de explicar oficialmente como diabo está a escrever cartas de amor ao czar. E são mapas muito inteligentes... e há três ou quatro primeiros-ministros destas paragens comprometidos pela correspondência. Com a breca, sar! 0 governo britãnico mudará a sucessão em Hilás e Bunár e nomeará novos herdeiros ao trono. "Vil traição"... mas não compreendes? Hem?

-- Eles estão nas tuas mãos? - perguntou Kini. Era só o que lhe interessava.

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-Podes apostar que sim. - Acondicionou todo o tesouro no seu corpo, como só os orientais saber fazer. - Eles vão também para o departamento. A velha senhora pensa que eu sou um objecto fixo, mas eu partirei com isto já, .. imediatamente senhor Lurgan ficará orgulhoso. Estás oficialmente subordinado a mim, mas eu vou incluir o teu nome no meu relatório oral. É uma pena não termos autOrização para apresentar relato~ rios escritos. Nós, bengalis, notabilizamo-nos na ciência exacta. -Voltou a atirar a chave e mostrou a caixa vazia.

- Bom. Isso é bom. Eu estava muito cansado meu Santo também estava doente. E caiu rio...

- Oh, sim. Eu sou bom amigo dele, digo-te. Ele estava a comportar-se de modo estranho quando vim atrás de vocês e pensei que talvez ele tivesse os papéis. Segui-o nas suas meditações e também para discutir questões etnológicas. Compreendes, hoje em dia eu sou aqui uma pessoa insignificante, em comparação com todos os encantamentos dele. Caramba, O'Hara, sabes, ele está atormentado com a franqueza provocada pelas suas síncopes. Sim, estou a dizer-te. Cata] éptico, também, se não até epiléptico. Encontrei-o debaixo de uma árvore em estado de articulo MOr-

Kim

tem e ele deu um salto e caminhou para dentro de um ribeiro e quase se afogava, se não fosse eu. Eu tirci-o de lá.

- Porque eu não estava lá! - disse Kini. - Ele podia ter morrido, - Sim, ele podia ter morrido, mas agora está seco e assegura que passou por uma transfiguração. - 0 babu deu uma palmada na testa, com ar conhecedor, - Tomei nota das suas afirmações para a Real Sociedade... in posse. Tens de põr-te bom depressa para voltar para Sinila e eu contar-te-ei toda a minha história em casa do Lurgan. Foi magnífico. Os fundilhos das calças deles estavam bastante rotos e o velho rajá Nahan, pensou que eram soldados europeus desertores.

- Oh, os russos? Quanto tempo estiveram contigo?

- Um era francês. Oli, dias e dias e dias! Agora os montanheses acreditam que os russos são todos mendigos. Caramba! Não houve nada que eu não tivesse de lhes arranjar. E eu contei às pessoas vulgares... oh, cada história e anedota! Contar-te-ei na casa do velho Lurgan, quando apareceres. Teremos, ali, uma noite de festa! Será um motivo de orgulho para nós ambos! Sim, e eles deram-me um certificado. Isso é a maior piada. Devias tê~los visto no Alhance Bank a

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identificarem-se. E agradeço ao Todo-Poderoso por teres conseguido tão bem os papéis deles! Tu não te ris muito, mas rir-te-ás quando estiveres bom. Agora vou directo ao caminho-de-ferro e parto. Terás todos os tipos de honras para o teu jogo. Quando é que vens? Estamos multo orgulhosos de ti, embora nos tenhas pregado grandes sustos. E, especialmente, o Mahbub.

- Sim, o Malibub. E onde está ele?

- A vender cavalos na cidade mais próxima, claro.

- Aqui! Porquê? Fala baixo. Ainda sinto um peso na cabeça. 0 babu baixou os olhos timidamente.

- Bem, sabes, eu sou um homem temeroso e não gosto de responsabilidades. Tu estavas doente, percebes, e eu não sabia onde diabo estavam todos os papéis e, se estavam, quantos eram. Por isso, quando vim para aqui, comuniquei confidencialmente com Mal---ibub por telégrafo... eleestava em Mecrut, para as corridas... e disse-lhe como estavam as coisas. Ele velo com os seus homens e entendeu-se com o lama e depois chamou-me tolo e foi muito grosseiro

- Mas por que motivo? Por que motivo?

- Isso roi o que eu perguntei. Eu só sugeri que, se alguém tivesse roubado os papéis, gostaria de ter alguns h oniens bons, fortes e valentes para os trazer de volta. Estás a ver, eles são de uma importãncia vital e o Malibub Ali não sabia onde estavas. Rudyard KipAg

- Malibub Ali, assaltar a casa da sahiba? Tu estás louco, babu - disse Kini com indignação.

- Eu queria os papéis. Supõe que os tinham roubado? Foi só uma sugestão prática, penso eu. Não estás satisfeito, hem?

Um provérbio nativo - que não se pode citar - exemplificou a severa desaprovação de Kini.

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- Bem - Hurree encolheu os ombros -, não há motivo para tanta simpatia Malibrib também ficou aborrecido. Tem vendido por aqui cavalos e diz que a velha senhora é uma anciã puhha [cuidadosa] e não condescenderia a tais faltas de cavalheirismo. Eu não me importo. Tenho os papéis e fiquei muito contente com o apoio moral do Malibub. Digo-te, sou um homem temeroso e meto-me nas mais apertadas situações. Por isso fiquei contente por teres vindo comigo para Chini e estou contente porque Mal---ibub estava perto. A velha senhora, às vezes, é muito desagra~ dável comigo e com as minhas lindas pastilhas.

- Ala seja misericordioso! - disse Kini junto dele, alegrando-se, Que animal maravilhoso é um babu! E esse homem caminhou sozinho... se é que caminhou... com estrangeiros espoliados e furiosos!

- Oli, isso não foi nada, depois do que me fizeram; mas, se eu perdesse os papéis, o caso era muito mais sério. Malibrib quase me bateu tam~ bem e foi-se embora e conversou interminavelmente com o lama. Daqui L

para a frente, fixar-me-ei apenas nas investigações etnológicas. Agora adeus, O'Hara. Ainda consigo apanhar o comboio das 16:45 para UmbalIa, se me despachar. Passaremos bons tempos quando contarmos todos a tua história ao senhor Lurgan. Farei um relatório oficial melhor sobre ti. Adeus, meu querido companheiro e, da próxima vez que enfrentarmos si~ tuações emocionantes, por favor não utilizes termos maometanos com o trajo tibetano.

Apertou-lhe a mão duas vezes - um babu da cabeça aos pés - e abriu a porta. Com o declínio da luz do Sol no seu rosto ainda triunfal, voltou a ser o humilde charlatão de Dacca.

"Ele roubou-os", pensou Kim, esquecendo a sua própria participação no jogo. "Enganou-os. Mentiu-lhes como um bengali. Eles deram-lhe um chit [certificado]. Ridicularizou-os com risco da própria vida... eu nunca teria ido ter com eles depois dos tiros de pistola... e depois diz que é um homem temeroso... E é um homem temeroso. Tenho de voltar ao mundo. "

A princípio as pernas dobravam-se como tubos de cachimbo deficientes e a inundação e ímpeto do ar luminoso ofuscavam -no. Agachou-

Kím

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-se junto da parede branca, o espírito passando em revista os incidentes da longa viagem no dooli, as fraquezas do lama e, agora que desaparecera o estímulo da conversa, a sua autocompaixão, da qual, como os doentes, tinha grande reserva seu desalentado cérebro afastou-se cautelosamente de todo o exterior, como um cavalo rebelde, em tempos esporeado, seguindo agora sem esporas. Era suficiente, amplamente suficiente que a pilhagem do hilta tivesse ido para longe - para fora do seu alcance -, fora da sua posse. Tentou pensar no lama - pensar porque é que ele tropeçara para dentro de um regato - mas a grandeza do mundo, vista por entre os portões do pátio de entrada, punha de lado os pensamentos que se encadeavam. Depois, olhou para as árvores e para os amplos campos, com as cabanas cobertas de colmo escondidas no meio das colheitas - olhou com olhos estranhos, incapazes de abranger o tamanho e proporção e utilidade das coisas -, olhou fixa~ mente durante uma calma meia-hora. Durante todo esse tempo sentiu, embora não conseguisse exprimir por palavras, que a sua alma não estava sintonizada com o ambiente circundante - uma roda dentada sem ligação com qualquer mecanismo, precisamente como a inactiva roda dentada de uma barata trituradora de açúcar Belicea, posta de parte num canto. A brisa soprava, os papagaios gritavam-lhe, os ruídos da populosa casa das traseiras - querelas, ordens e repreensões - batiam em orelhas moucas.

- Eu sou Kim. Eu sou Kim. E quem é Kim? - A sua alma repetia-o vezes sem conta.

Não queria chorar - nunca tivera menos vontade de chorar na sua vida - mas, com uma súbita facilidade, estúpidas lágrimas corriam-lhe pelo nariz abaixo e, com um estalido quase inaudível, sentiu que as suas rodas internas estavam travadas para o mundo exterior. Coisas que haviam passado sem sentido pelo globo ocular um instante antes, retomavam agora as devidas proporções. As estradas eram feitas para serem percorridas, as casas para se viver nelas, o gado para ser conduzido, os campos para serem cultivados e os homens e mulheres para se falar deles. Era tudo real e verdadeiro - solidamente assente nos pés -, per~ feitamente compreensível - corpo do seu corpo, nem mais nem menos. Sacudiu-se como um cão com uma mosca na orelha e saiu pelo portão. Disse a sahiba, a quem olhos observadores relataram este passo:

- Deixa-o ir. Eu já fiz a minha parte. A Mãe-Terra tem de fazer o resto. Quando o Santo voltar da meditação, conta-lhe.

A um quilómetro de distância, num pequeno monte, estava um car- Ru -dK

ro de bois vazio, com uma jovem figueira dos baianes por trás - sentinela, por assim dizer, acima de alguns socalcos recém-lavrados; C as pálpebras dele, banhadas de ar ameno, ficaram

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mais pesadas quando se aproximou chão era de terra batida, limpa e boa - não a erva nova que, mesmo viva, está já a meio caminho da morte, mas a terra prometedera que sustenta as sementes de toda a vida. Sentiu-a no meio dos dedos dos pés, acariciou-a com as palmas das mãos e, articulação por articulação, suspirando voluptuosamente, estendeu-se ao comprido na sombra do carro de madeira de pinho. E a Mãe-Terra foi tão leal como a sabiba. Respirou através dele para restabelecer o equilíbrio que ele perdera, deitado durante tanto tempo numa enxerga, afastado dos seus bons fluidos. A cabeça pendia-lhe, sem força, no peito e as mãos abertas rendiam~se à força da terra. A árvore cheia de raízes por cima dele e até a maltratada madeira morta ao lado, sabiam melhor do que ele próprio o que procurava. Hora após hora jazeu, numa imobilidade mais profunda que o sono.

Já perto da noite, quando a poeira do gado que regressava fazia fu~ megar todos os horizontes, apareceram o lama e Mahbub Ali, ambos a pé, caminhando cautelosamente, pois ela contara-lhes onde ele fora.

- Ala! Que truque tão estúpido para fazer às claras! - murmurou o negociante de cavalos. - Ele podia ser morto cem vezes... mas isto não é a fronteira.

- E - disse o lama, repetindo uma história muitas vezes contada nunca houve um tal chela. Comedido, amável, sensato, de carácter generoso, um coração na estrada, nunca egoísta, instruído, fiel, cortês. Grande será a sua recompensa!

- Eu conheço o rapaz... como disse. - E ele era todas estas coisas?

- Algumas, mas eu ainda não conheço encantamentos do gênero do Chapeuzinho Vermelho para o tornar excessivamente fiel- Decerto ele tem sido bem tratado.

- A sahiba tem um coração de ouro - disse o lama com seriedade. Trata-o como um filho.

- Humpf! Meio Indostão parece para aí virado. Eu só queria ver que não acontecia nada de mal ao rapaz e ele era um agente livre. Como tu sabes, ele e eu éramos velhos amigos nos pnmeiros dias da vossa peregrinação.

- Isso é um laço entre nós. - 0 lama sentou-se. - Estamos no fin, da peregrinação.

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- Não foi graças a ti que a tua não foi interrompida para sempre ria

Kim

semana passada. Ouvi o que a sahiba te disse quando te pusemos na cama. Malíbub riu-se e puxou a sua barba recém-tingida.

- Nessa ocasião eu meditava noutros assuntos. Foi o haffim de Dacca que quebrou as minhas meditações.

- De outra maneira - murmurou em pushtiA, por pudor -, terias acabado as tuas meditações no ardente Inferno... um descrente e um idólatra, por toda a simplicidade do teu pequeno. Mas agora, Chapeuzinho Vermelho, que se deve fazer?

- Esta noite mesmo - as palavras saíam lentamente, vibrando de triunfo -, esta noite mesmo ele estará tão livre de toda a mancha do pecado como eu, seguro como eu estou, quando deixar este corpo, da Libertação da Roda das Coisas. Tenho um sinal - colocou a mão no gráfico rasgado que tinha no peito - de que o meu tempo é curto; mas eu tê-lo-ei salvaguardado através dos anos. Lembra-te, eu alcancei o Conhecimento, como te contei há apenas três noites.

- Deve ser verdade como disse o padre de Tirah quando eu roubei a mulher do primo dele, que eu sou um sufi [livre~pensadorl, Po's estou aqui sentado - disse Malíbub consigo mesmo - a beber em impensavel blasfémia... Eu recordo a história. Segundo ela, depois, ele vai parajannatu l'Adn [osJardins do Éden]. Mas como? Vais matá-lo ou afogá-lo naquele rio maravilhoso do qual o babu te retirou?

- Eu não fui retirado de rio nenhum - disse simplesmente o lama. - Tu esqueceste o que aconteceu. Descobri isso através do Conhecimento.

- Oh, sim. É verdade -gaguejou Mahbub, dividido entre a imensa indignação e o enorme júbilo. - Tinha esquecido o curso exacto do que aconteceu. Tu descobriste-o pelo conhecimento.

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- E dizer que eu roubaria a vida é... não um pecado, mas uma simples loucura meu chela ajudou-me quanto ao rio. Tem o direito de ser purificado do pecado... comigo.

- Sim, ele precisa de purificação. Mas depois, ancião... depois?

- Que interessa, sob os céus? Ele está certo sobre Nibban... iluminado... como eu estou.

- Bem dito. Eu tinha medo de que ele pudesse montar o cavalo de Maorné e fugir.

- Não, ele tem de seguir em frente, como professor.

- Ah! Agora estou a ver! Esse é o passo certo para o potro. Certamente tem de seguir em frente, como professor. Ele é necessário com uma certa Urgência como escrivão do Estado, por exemplo. Rudt,ardKip '

- Com esse fim foi preparado. Eu adquiri mérito ao dar dinheiro para a sua educação. Uma boa acção não deve morrer. Ele ajudou-a na minha Busca. Eu ajudei-o na sua. justa é a Roda, o vendedor de cavalos do norte. Deixá-lo ser professor deixá-lo ser escrivão, que importa? Ele terá alcançado a liberdade, no fim resto é ilusão.

- Que importa? Quando eu tenho de o ter comigo para lá de Balkhy daqui a seismeses! Venho aqui com dez cavalos coxos e três homens de costas fortes... graças a esse babu medricas... para tirar à força um rapaz doente da casa de uma velha mulher. Parece que eu sou posto de lado enquanto um jovem sahib que invoca Ala toma conhecimento do céu de um idólatra, por intermédio de um velho Chapéu Vermelho. E eu próprio sou considerado um grande jogador dojogo. Mas o louco gosta do rapaz; e eu devo ser também razoavelmente louco.

- Qual é a oração? - perguntou o lama, quando o rude pushtu ressoou na barba vermelha.

- Não interessa,1 mas, agora que compreendo que o rapaz acredita no Paraíso e pode ainda entrar ao serviço do governo, o meu espírito está mais tranquilo. Tenho de voltar para os meus

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cavalos. Está a escurecer. Não o acordes. Não tenho nenhum desejo de o ouvir chamar-te mestre.

- Mas ele é meu discípulo. Que mais?

- Ele disse-me. - Malibub engoliu o seu acesso de irritação e ergueu-se, rindo. - Não partilho totalmente da tua fé, Chapeuzinho Vermelho... se uma questão tão insignificante te preocupa.

Não é nada - disse o lama.

Também pensei que não. Por isso, não te comoverás, tu, que estás isento de pecado, purificado e, além disso, quase te afogaste, quando eu te chamar bom homem... um homem muito bom. Conversámos os dois umas quatro ou cinco noites até agora e, apesar de ser um negociante de cavalos, consigo mesmo assim, como diz o ditado, reconhecer a santidade para além das patas de um cavalo. Sim, também consigo ver como o nosso Amigo do Mundo pôs a mão na tua desde o princípio. Trata-o bem e permite-lhe voltar ao mundo como professor, depois de lhe termos banhado as pernas, se esse é o remédio certo para o potro.

- Por que não segues tu próprio o Caminho, acompanhando, assim, o rapaz?

Malibub ficou estupefacto perante a magnífica insolência da pergunta, à qual, do outro lado da fronteira, teria respondido com uns Socos. Depois, o humor dela tocou a sua alma mundana.

Kim

- Calmamente, calma 1mente.J. um pé de cada vez, como fez o cavalo coxo para saltar os ohstác-u'os de 1 rriballa. Posso ir para o Paraíso mais tarde, tenho trabalho para esses lados.. . grandes movimentações... e devo -as à tua simplicidade. u nunca mentiste?

- Que, i iceessidade há?

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--- 0 ALá, escuta-o! "Que necessidade há" neste teu mundo! Nem fizeste nunca mal a um homem?

- Uma vez, com uma caixa de canetas, antes de obter a sabedoria. - Então? Eu penso o melhor de ti. Os teus ensinamentos são bons, Tu desviaste um horriem que eu conheço do caminho do conflito. - Riu-se imensamente. -- Ele veio aqui decidido a praticar um dacoity [um assalto

1

a uma casa, com violênciali . Sim, para ferir, roubar, matar e levar o que desej asse.

Uma grande tollice!

Ob! nma grande vergonha também. Assim pensou ele, depois de te ter visto a ti, e a a [guns outros, homens e muilheres. Por isso, abandonou a ideial- e, agora vai bater num grande e gordo babu.

- Não compreendo.

-- Que Ala o proíba! Alguns homens são fortes em sabedoria, Chapeuziriho'Vcrirelho, Atua força é ainda maior. Guarda-a... penso que o farás. Se o rapaz não for um bom servo, puxa-lhe as orelhas.

m puxão aoseu ri

Com U amplo cinto de BokI ariot, o patane, todo em~ proado, embrenboii-se tio crepúsculo e o lama desceu das suas nuvens, de modo a poder olhar para trás.

--- A este hornem falta cortesia e está iludido pela sombra das aparências. Mas falou bem do meu chela, que agora entra ria posse da sua recompensa. Deixa- ni e fazer a oração!... Acorda, o afortunado acima de todos os nascidos das mulheres. Acorda! Está encontrado!

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Kim emergiu daquelles poços fundos e o lama cuidou do seu sono-

1 -

lento prazer, esiafando deviclamente os dedos, para desviar os espíritos do maL

- Dormi cem anos. Onde...? Santo, estás aqui há muito tempo? Saí para te procurar, mas -- ritt-se sonolentamente -- adormeci rio caminho. Agora estou completamente bom. Comeste? Vamos para a casa, Há muitos dias que nao cuido de ti. E, a sahiba alimentou-te bem? Quem lavou as tuas pernas? E as fraquezas... a barriga e o pescoço e a vibração nos ouvidos'2

PassoL'i, passou tudo. Não sabes?

Não seJ riada, excepto qne já não te, via há séculos. Sei o quê? - RU )9ih_

- É estranho que o conhecimento não tenha chegado a ti, quando todos os meus pensamentos te eram dirigidos.

- Não consigo ver o resto, mas a voz é como um gongo. A sahiba fez de ti uni j overn, com os seus cozinhados?

Observou a figura de pernas cruzadas, uma silhueta negra como o azeviche contra o movimento de. luz cor de limão. Assim se senta o iluminado de pedra que observa as engenhosas portas em cruz que registam automaticamente os visitantes do Museu de Lahore.

0 lama mantinha silêncio. À excepção do estalido do rosário e do ténue clop-elop do cavalo de Mahbub em retirada, o calmo e enevoado si~ lêncio da noite na índia crivolvia-os completamente.

- Ouve-me! Trago uma notícia. - Mas vamos...

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A longa mão amarela precipitou-se, obrigando ao silêncio. Kini, obedientemente, escondeu os pés debaixo da bainha da sua túnica.

- Ouve-me! Trago uma notícia! A Busca terminou. Vem agora a recompensa... Assim. Quando nós estávamos nas montanhas, eu vivi da tua força até que, o jovem ramo curvado e próxinio se quebrou. Quando saímos das montanhas, preocupei-me contigo e com outros assuntos que trazia no meu coração barco da minha alma carecia de direcção, não con~ seguia examinar a Causa das Coisas. Por isso, entreguei-te inteiramente à virtuosa mulher. Não me alimentei. Não bebi água. Mesmo assim, não vi o Caminho. Pressionaram-me para eu comer e gritaram à minha porta fechada. Por isso, desloquei-me ate uma cavidade debaixo de uma árvore. Não comi. Não bebi água. Sentei-me em meditação dois dias e duas noites, abstraindo o meu espírito; inspirando e expirando da maneira requerida... Na segunda noite - tão grande era a minha recompensa -, a sábia Alma soltou-se do tolo Corpo e ficou livre. Isto nunca eu antes alcançara, embora tivesse estado no seu limiar. Presta atenção, pois é uma maravilha.

- Realmente, uma maravilha. Dois dias e duas noites sem comida. onde estava a suhiba? - perguntou Km-i baixinho.

- Sim, a minha Alma libertou-se e, planando como uma águia, viu que, na realidade, não havia nenhum lama Teshoo, nem qualquer outra alma. Como uma gota desliza para a água, assim a minha Alma se arrastou até à Grande Alma, que está acima de todas as coisas. Nesse ponto, exaltado em contemplação, vi todo o Indostão e Ceilão, junto ao mar, até às montanhas e as minh as próprias Rochas Pintadas, em Such-zen-I vi todos os acampamentos e alde,is, até a última, onde nós repousámos, Vi-as todas ao mesmo tempo e num único lugar, pois estavam dentro da

Kim

Alma. Com isto eu soube que a Alma passara para lá da ilusão do Tempo e Espaço e das Coisas. Com isto, eu soube que estava livre. Vi-te deitado na tua cama e vi-te rolar pela encosta abaixo, com o idólatra - de uma só vez, num único lugar, na minha Alma, que, como digo, tocou a Grande Alma. Também vi o estúpido corpo do lama Teshoo deitado e o hahirn de Dacca joelhado ao seu lado, gritando-lhe ao ouvido. Depois, a minha Alma ficou completamente sozinha e eu não vi nada, pois eu era todas as coisas, tendo alcançado a Grande Alma. E meditei durante milhares de anos, desapaixonadamente, bem consciente das Causas das Coisas. Depois, uma voz gritou: " Que acontecerá ao rapaz se tu morreres? " e fui sacudido, dentro de mim, com pena de ti, e disse - "Voltarei para o meu cheIa, para ele não se

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desviar do Camínho". Com isto, a minha Alma, que é a Alma do Lama Tesboo, afastou-se da Grande Alma com esforços e ãnsias e vómitos e agonias que não podem ser descritas. Como a ova do peixe, como o peixe da água, como a água da nuvem, como a nuvem do espesso ar, assim a Alma do lama Téshoo se lançou, assim saltou, assim se afastou, assim se separou da Grande Alma. Depois, uma voz gritou- "0 rio! Tem cuidado com o rio! ". E eu baixei os olhos para o mundo, que era como eu o vira antes - único no tempo, único no espaço - e vi claramente o rio da Seta aos me ,us pés. Nessa hora, a minha Alma foi embaracada por um ou outro mal de que eu rião estava completamente purificado e que permaneceu nos meus braços e se enrolou à volta da minha cintura1 mas eu pu-lo de lado e precipitei-me, como uma águia, no meu voo para o preciso local do rio. Empurrei para o lado mundo após mundo por tua causa. Vi o rio por baixo de mim -- o rio da Seta - e, descendo, as suas águas fecharam-se sobre mim; e vi que estava de novo no corpo do lama Teshoo, mas livre do pecad o, e o halzirn de Dacca erguia a minha cabeça nas águas do rio. É aqui! É aqui atrás do bosque de mangueiras, aqui mesmo!

- Al herim! Olí, ainda bem que o babu estava perto! Ficaste muito molhado?

- Por que havia eu de prestar atenção? Lembro -me de que o hahim estava preocupado com o corpo do Lama Teshoo. Puxou-o para fora da água sagrada com as suas mãos e depois apareceu o teu vendedor de cavalos do norte, com cama e homens e puseram o corpo na cama e carregaram-rio até à casa da sahiba.

- Que disse a sahiba?

- Eu meditava nesse corpo e, não ouvi. Então, assim, a Busca está terminada. Pelo mérito que eu adquiri, o rio da Seta está aqui. Irrompeu aos Rudya,-d Kíp1í,u

nossos pés, corno eu disse. Eu encontrei-o. Filho da minha Alma, arranquei a minha Alma do Limiar da liberdade para te livrar de todo o peca_ do ... como eu estou livre e sem pecado! justa é a Roda! Certa é a nossa salvação! Vem!

Cruzou as mãos no regaço e sorriu, como um homem que obteve a redenção para si próprio e para os entes queridos. Nascido em Bombaim, mas educado na Grã

Bretanha, Rudyard Kipling (1865-1936) começou,

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ao regressar à índia, a trabalhar como jornalista e a escrever relatos curtos como Contos da Colina e o esplêndido 0 Homem que Queria Reinar. Mais tarde viria Capitães Corajosos e 0 Livro da

Selva, em que os animais são os protagonistas, seguido de líricas obras que retratam a índia colonial como Os Sete Mares e Kim, um dos seus romances mais populares, protagonizado por um menino

inglês a viver em Lahore que fica órflão e é criado como um hindu por um religioso que o adopta. Em 1908 foi publicada a sua autobiografia Alguma

coisa de mim.


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